Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ao João Honrado,
pela Verticalidade e pela Luta.
163 .......... Manuel José Santinhos, um poeta inspirado pela natureza - Manuel João da Silva
166 .......... Breve nota ao corpus
168 .......... Antologia poética
PARTE V SETE • TEXTOS CONSIDERADOS [QUASE] FUNDAMENTAIS
309 ..........
PARTE VII GUIA DE AUDIÇÃO
367 ..........
FOTOGRAFIAS • AUGUSTO BRÁZIO
373 ..........
13
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
E
, de repente, estava ali tudo! Fado que a décima alcançara o Alentejo. Que, a pá-
A décima, que há tantos anos me fascina- ginas tantas, me punha a capital desse mesmo Alen-
va como estrutura poética, que me intrigava tejo em Lisboa e os fadistas a politizá-lo. Que me
por quase ter desaparecido depois do séc. XVII e desvendava a terminologia alentejana da versifica-
reaparecido no séc. XIX, cantada no Fado de Lis- ção e os métodos iniciáticos desses génios da orali-
boa e recitada no Alentejo (c’os diabos, porquê no dade que foram os improvisadores de décimas.
Alentejo?), aparecia-me explicada nas suas origens, Ah! Como é rico Portugal, que tem Camões e uns
na sua evolução, nas suas variantes – eu que jul- camponeses semi-analfabetos a cultivar a palavra
gava existirem só dois esquemas rimáticos! – pelo na mesma metrificação e com a mesma eficácia!
Paulo Lima. Todas as dúvidas estavam respondi- Que tem uma música própria a apoiar a palavra
das e uma quantidade de nova informação palpita- e uma palavra tão forte que dispensa música, se o
va naqueles capítulos, enviados por correio infor- que importa é a mensagem!
mático, de um livro ainda por publicar... Que tem Paulo Lima.
Um Paulo Lima que me revelava Vicente Espinel,
que se metia pelo Fado dentro com o à-vontade do
antropólogo perspicaz, a pôr em relevo o que me ti-
nha passado ao lado na “Guitarra de Portugal”, na
“Canção do Sul” e noutras publicações afins. Que Daniel Gouveia
me explicava como, afinal, tinha sido pela via do Junho 2004
15
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
P
AULO Lima pediu-me que escrevesse umas pa- Manuel Viegas Guerreiro (de 1993 até ao fim da
lavras para serem presentes, como “prefá- sua vida activa, Novembro de 1996) e este logo
cio”, neste seu trabalho: O fado operário no se apercebeu da sua excepcional aptidão para a
Alentejo [sécs. xix-xx] (o contexto do profanista pesquisa no terreno, da sua vivíssima curiosida-
Manuel José Santinhos). Considero o convite uma de pelo saber e estudo e do poder de análise críti-
honra para mim e aceitei-o com alegria mas tam- ca dos conhecimentos, nas áreas de pesquisa que
bém com alguma emoção: não era eu a pessoa in- pratica, e das conjunturas que os enformam. Pau-
dicada para o fazer mas devo fazê-lo por ser uma lo Lima mostrava-se capaz, e tem-no demonstra-
testemunha deste percurso da pesquisa de Paulo do!, de pôr de pé e levar a cabo um projecto, e vi-
Lima e desde há bastantes anos. Explico o por- venciando os objectivos que se propusesse com tal
quê e a relação de entreajuda que se foi formando projecto, com uma determinação e aplicação de
e que se mantém com sólida amizade. esforços notáveis desde que fortemente aí empe-
Paulo Lima apareceu-nos pelo Centro de Tra- nhado. O que se evidencia pela sequência de tra-
dições Populares Portuguesas (CTPP) em 1993, balhos vindos a público mais notoriamente e em
interessado em consultar livros da biblioteca do que os títulos são sempre indicadores do “objec-
Centro. Frequentava o ISCTE, curso de Antro- to” estudado e do objectivo prospectivo das aná-
pologia. Não era raro alunos do ISCTE procura- lises a que se aplica. Dilucido.
rem documentação do CTPP, quer pelo fundo de Em 1994 sai o livro Poetas de Cá – breve pa-
consultas bibliográficas que possibilitava (obras norama da poesia em Portel, recolha, organiza-
de referência, livros de consulta básica, edições ção e introdução de Paulo Lima, edição da Câ-
dificilmente encontráveis, em Etnografia, Etnolo- mara Municipal de Portel. A recolha maioritária
gia, Literatura Popular e publicações fundamen- e relevante é de “Quadras”. A introdução, uma
tais de Antroplogia) quer, também, pela riqueza abordagem de 27 páginas, focaliza como priori-
do contacto com Prof. Manuel Viegas Guerreiro, tária a atenção aos produtores e (re)utilizadores
Director do Centro. Prof. Manuel Viegas Guerrei- deste subgénero de poesia narrativa e estuda já a
ro, se se encontrava no Centro, nunca estava ocu- sua estrutura formal, o código rimático e a rit-
pado demais que não interrompesse para escutar mia, o léxico particular da sua poética, quer em
as pessoas e prestar a ajuda precisa ou pedir a um termos técnicos de composição, quer numa tipo-
de nós, seus colaboradores, que o fizéssemos, se logia temática.
16
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Em 1996, aquando do colóquio realizado pe- da Verdade/José Inácio Horta, título do próprio
lo CTPP/Câmara Municipal de Portel sobre “Ar- autor; na folha de rosto consta: José Inácio Horta/
tes da Fala”, em Portel, é lançado um CD, extra- Livro da Verdade/o dialogismo como processo de
ído dos arquivos das recolhas para Poetas de Cá, construção cultural/Paulo Lima/Fixação de texto,
intitulado No Jardim do Mundo (edição da Câ- notas e nota introdutória (Odivelas, Agir – Pro-
mara Municipal de Portel), a partir do primeiro duções gráficas, 2000). A enfocagem bakhtiniana
verso, “Vivo no jardim do mundo”, do mote de dos textos, seis páginas de nota introdutória, pre-
uma “quadra” de tema em enigma. O caderno cede um excelente tratamento do corpo textual do
de textos que acompanha o CD consolida a li- autor, quer para o discurso narrativo e dialógico,
nha de pesquisa de Paulo Lima sobre “Produtores quer para as 250 produções enversadas.
e (Re)utilizadores de Textos em Verso Circulan- Este excurso pelo que Paulo Lima já publicou re-
do a Sul do Tejo”. Igualmente a comunicação que mete-nos para a penetração do universo cultural,
apresenta nesse Colóquio, “Artistas da fala a Sul (em fontes, “objectos” de estudo e seu estudo) no
do Tejo” (publicada em 1997 nas actas, Artes da presente bloco de O fado operário no Alentejo [sécs.
Fala, Celta Editora, pp. 47-85) reitera uma pers- XIX-XX] (o contexto do profanista Manuel José
pectiva, além de antropológica, vincada pelo cru- Santinhos). Dez anos de pesquisa para além do fun-
zamento com uma leitura histórico/social de cau- do já atesourado em Poetas de Cá. Apresenta-se em
sas de tal produção e comércio. três painéis fortemente interligados pelo horizonte
Em 1999 surge um outro CD, coordenado por histórico da leitura consequente que iluminam. A
Paulo Lima e editado pela Câmara de Castro Ver- história da décima em Portugal e a sua aplicação
de. O caderno de textos que acompanha o CD in- pelos “quadristas” e os circuitos do seu comércio;
dicia uma abordagem tensa de rigor documental o problema do fado como definição de forma ou
e onde vem revelar-se um imaginário reconstruin- de uso, sua opção fulcral, determinante, pela letra
do modelos expectantes. O título do CD é uma em “quadra” e suas complexificações, a dissemina-
síntese de movência histórico-humana: No paraí- ção como meio de sensibilização nos meios assalaria-
so real – Tradição, revolta e utopia no Sul de Por- dos, também os rurais, dos ideais políticos/sociais
tugal. Ainda que levantando-se a partir da difu- que levaram à Primeira República e à pujança ide-
são de ideologias socio/políticas de filosofia mate- ológica das duas primeiras décadas do século XX,
rialista, afloram na assimilação popular dos mo- os modelos de persistência e itinerâncias na produ-
vimentos de renovação os parâmetros das utopias ção e oferta/”venda” no Sul do país; a apresentação
igualitárias e paradisíacas milenaristas. A selec- e estudo “de caso” do poeta profanista Manuel Jo-
ção dos textos e dos testemunhos feita por Paulo sé Santinhos (n. Santo André 1905 – m. Santo André
Lima direcciona para esta leitura. 2001), notável exemplo (história de vida e “obra” de
De 2000 é a vinda a público, passada injusta- “quadrista”), contextuado pelos dois densos e rigo-
mente despercebida, de um extraordinária “histó- rosos estudos precedentes no volume, da enfocagem
ria de vida”, escrita ao longo de dois anos pelo su- da “cultura popular” (saberes e produtos desses sa-
jeito e autor dela, José Inácio Horta (1913-2001), beres) ser resultado de uma forte miscigenação de
“pedreiro alvanel”, perito em “abobadilhas de tijo- instrução/prática oral, objectos impressos modeli-
lo” e “chaminés” e que redigiu o seu manuscrito zadores, iniciações quase codificadas no que respei-
depois dos 80 anos de idade. Também produtor e ta ao estatuto parental ou laboral dos mestres ini-
(re)utilizador de décimas e de “quadras”. O traba- ciadores e superação, nos “lideres” criadores, da es-
lho de Paulo Lima para a edição dos materiais de cassez ou impossibilidade de instrução escolar ins-
José Inácio Horta é exemplar. Volto à inteligência titucional.
que os títulos propõem para os objectos em estudo É impossível não afirmar que este trabalho de
e para o horizonte das abordagens do investigador. Paulo Lima é de fôlego longo, riqueza informati-
O protocolo do livro indica: na capa apenas Livro va forte, sólido, e levando avante hipóteses pros-
17
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
pectivas pioneiras que, ao fim, se confirmam vec- manuscritos ou gravações feitas pelo Prof. Viegas
tores vivos e actuantes. O bloco, na sua totalida- Guerreiro ou, a seu pedido, por familiares, no con-
de, reenvia-se, nos seus três textos (já não estou celho de Loulé). Integra, ainda, esse fundo, uma
falando dos painéis) um espelhamento mútuo de pequena mas significativa, pelo recorte histórico
documentário veraz sobre história/geografia de e temático dos princípios do século XX, colecção
habitat/e homem: o texto impresso, o texto sono- (de caderno manuscrito possivelmente elaborado
ro (tem dois CD’s) e o texto imagem (tem um por- nos anos 20 do século XX) de que foi dada cópia
te fólio com fotografias, retrato humano e retrato a Prof. Viegas Guerreiro, em 1982, em Ponta Del-
de alguns lugares) peregrinação e captação do ex- gada, São Miguel, Açores.
cepcional fotógrafo que é Augusto Brázio. Bastantes desses textos/letras (das recolhas mais
Volto, para terminar, à minha afirmação, no iní- antigas não há gravações) assumem-se, pelos pró-
cio do meu escrito, de que não sou a pessoa indica- prios autores proclamados, como fados ou “qua-
da para fazê-lo; é exacto. Se fosse possível prolon- dras” cantadas em fado; recorrentemente. Alguns
gar o ciclo de vida, e com sua força de madurez, se- textos/letras, sobretudo na cópia da colecção ma-
ria Prof. Manuel Viegas Guerreiro, que já não está nuscrita de São Miguel, referem, ou exaltam, de
connosco, que o faria. Salvo na inflexão que Paulo mistura com outros textos de recorte romântico e
Lima fez, no prosseguimento da sua pesquisa, pa- ultra-romântico, a catequese social renovadora le-
ra o “território” específico do fado, Prof. Manuel vada na difusão do “fado operário”. As linhas da
Viegas Guerreiro era quem mais conhecia e sabia afirmação do discurso analítico de Paulo Lima ex-
sobre “quadras” e a sua prática no Sul do Alente- pressas no seu título são pontualmente corrobora-
jo e no Algarve. Textos fundadores (que Paulo Li- das por tais testemunhos.
ma frequenta e cita como fundadores) são-lhe de- O eu ter tentado, e ter achado que devia fazê-lo,
vidos como, por exemplo, “Literatura Popular: uma viagem compreensiva ao universo científico
em torno de um conceito” (1986, Paris), “Poesia frequentado por Paulo Lima, e que eu só conhe-
Popular, Conceito, a redondilha, a décima. Dé- ço como “curiosa leitora”, é também um testemu-
cimas em poetas do Alentejo e do Algarve” (1992, nho: do meu aprender sempre com os trabalhos
Lisboa), ou o vivo testemunho na sua participa- de Paulo Lima e de trocarmos “saberes”. Aqui lhe
ção no Colóquio de Portel, “Literatura e Litera- refiro uma pequena fonte, mais, para seu fundo
tura Popular? Casos exemplares” (1996). Além de de investigação. No opúsculo Os Versos de Fran-
exemplo e mestre de trabalho no terreno que infa- cisco Martins Farias, poeta popular (n. 1861 – m.
tigavelmente praticou toda a sua vida, colector ri- 1930), da Freguesia de Querença (cuja Junta edita
goroso e ao mesmo tempo de uma empatia que se o pequeno livro em 1980) o meu amigo encontra
pode dizer carismática. a mão amiga do Prof. Manuel Viegas Guerreiro,
No CTPP temos um fundo, com que estou a tra- as itinerâncias de operários rurais (eventualmen-
balhar, de cerca de 500 espécimes de textos/letras te mineiros sem fixação) do Algarve para o Alen-
de “quadras”, de recolhas (não sistemáticas mas tejo e do sul alentejano para cá da Serra algarvia,
sempre persistindo) que vão de 1927 (colector o uma “história de vida” e, creio, um “sábio” das
jovem liceal Manuel Viegas Guerreiro, de 15 pa- “contas da mão” que, “analfabeto, tinha organiza-
ra 16 anos) em Querença, até 1992, num traba- do um calendário perpétuo que, como dizia, per-
lho de campo no concelho de Odemira (colecto- mitia-lhe saber, nem que fosse daqui a mil anos, o
res das “quadras” Prof. Manuel Viegas Guerreiro, dia do Entrudo e, em questões de datas não o en-
Dr. António Machado Guerreiro e Dr. Francisco ganava” (p. 6). Como o “Tio” Inácio Horta!
Melo Ferreira). A colecção incide em espécimes re- Aqui tem, Paulo Lima, para a “história”, do seu
colhidos no Sul do Alentejo (particularmente gra- livro, estas palavras e a nossa amizade.
vações feitas no concelho de Odemira pelo Dr. A.
Machado Guerreiro), e no Algarve (particularmente LISBOA, MAIO DE 2004
18
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
19
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Os c. d.’s têm em comum uma questão, que se remota do fado. Pouco, ou nada, nos importa se
pode resumir no seguinte: existirá uma oralidade este é brasileiro, africano, português, de origem ur-
na cultura popular da Região Histórica do Alen- bana ou rural. Para nós, o fado, na sua fase moder-
tejo? na, inicia-se na década de sessenta do século xix.
Um portfólio fotográfico da autoria de Augusto É aí que ele se estrutura na letra e na música, su-
Brázio acompanham este livro. Desde 1994, este portado por uma classe social que também começa
fotógrafo tem vindo a percorrer o Alentejo, traba- a emergir: o operariado como indivíduo. É a esse
lhando com poetas e ambientes, captando o pro- mesmo operariado que, na segunda metade do sé-
fundo silêncio das palavras andantes3 que trans- culo xix, se deve, em grande parte, o espalhar desta
portam homens e mulheres por estradas e sítios, trova pelo país. Primeiro para o norte, onde quar-
guardando a profunda solidão que os envolve. teto prova tal afirmação; depois para o sul, onde a
décima como glosa tão bem o demonstra.
II. Mas o fado, entretanto, na cidade de Lisboa, en-
Importa, além da descrição do objecto e do argu- tre finais de oitocentos e princípios de novecentos,
mento que o sustenta, partilhar alguns princípios sofre uma série de experimentações. A estrutura
que orientaram a construção deste trabalho. musical enriquece-se e os textos sofrem uma pro-
O título Vai alta a Lua... fomos buscá-lo a um funda revolução: mudam-se as temáticas, e as es-
«fado» que Manuel José Santinhos tinha em al- truturas poéticas complexificam-se num processo
to valor. Assim se funda a grande razão do bap- sem paralelo na poesia popular portuguesa. E são
tismo deste livro. Mas outras razões estão aqui os operários fadistas o motor dessa alteração. O
esposadas. Este fragmento poético é retirado de fado entra, então, plenamente no seu quotidiano.
uma balada do poeta ultra-romântico Soares de Serve como veículo de educação, de memória e de
Passos intitulado «O noivado do sepulcro». Pa- elemento lúdico. Mas, fundamentalmente, é usado
ra quem deseja questionar uma oralidade primeva como espaço de construção social. É através dele
presente no Alentejo, este apresenta-se-nos como que os operários tentam produzir uma consciência
um bom título. de classe, unindo a costureira, o ferroviário, o ti-
Mas um outro motivo mais fundo encastra na pógrafo... a um só ideal revolucionário, socialista
escolha do nome. Na viragem do século xix pa- e anarquista, republicano, a um porvir melhor, que
ra o século xx, este poema era um dos textos mais afaste a exploração e a miséria do seu quotidiano,
popularizados em fado. Em resumo, não só se vai do duro e penoso dia-a-dia destes homens e destas
ao encontro de uma vida e de uma obra, a de Ma- mulheres. Ninguém melhor que Avelino de Sousa
nuel José Santinhos, como através dele se ilumina [n. Lisboa:1880 – m. Lisboa:1946] exporá a importância do
um conjunto de problemas que este trabalho in- fado para a classe operária
tenta inventariar.4
Se o título é algo pacífico, já o mesmo não se N’estas trovas faz-se propaganda contra a Reac-
poderá dizer do seu subtítulo, O fado operário no ção, stygmatiza-se o roubo legal comettido pe-
Alentejo [sécs. xix-xx], poderá revestir-se de uma lo honrado commerciante, disseca-se o ventre da
certa estranheza. Abundancia, cheio á custa do suor do pobre, da
Desde 1994 que afirmamos5 que alguma da poe- eterna besta de carga, jungida ao carro triumphal
sia da Região Histórica do Alentejo, em particular do Rei-Milhão!6.
a décima, é credora do fado, assumindo claramen-
te que o fado de que falamos tem como epicentro Serão, pois, estes homens, unidos pelos ideais so-
alguns bairros da cidade de Lisboa, onde a partir ciais, que o cantarão por toda a parte, e em espe-
da década de trinta de oitocentos se acantonam de- cial pelo Alentejo. João Black [n. 1872 – m. 1955], José
terminados grupos sócio-profissionais. Carlos Rates e outros transportarão estas trovas
Não nos interessa aqui a origem mais ou menos por toda esta geografia, espalhando textos e ideais.
21
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Estes fados vamos encontrá-los muito mais tarde reno, “construímos” uma definição que importa
nas antologias de poetas populares alentejanos.7 partilhar, pois é fundamento para se entender a
Mas um outro fenómeno será companheiro des- posição que tomámos neste livro. Na procura de
te. Uma certa industrialização agrícola, a partir da uma poesia oral, encontrámos uma poesia onde o
década de setenta de oitocentos, levará o Alentejo objecto impresso era nuclear. A rede de tipogra-
a ter como capital económica a região de Lisboa8. fias usada, os muitos textos impressos ou a circu-
Essa circulação de gentes, de cortiça, de minérios, lação de livros, a aprendizagem dos conteúdos des-
de gado, cereais e lã ajudará, também, a fixar essa tes por ouvir ler ou por ler directamente, os dife-
forma operária de cantar no sul de Portugal. rentes caminhos da aprendizagem da leitura e da
O fado será a expressão que sustentará a décima escrita, mostram uma presença do ler e do escre-
na província transtagana até à década de sessen- ver muito intensa. Muitos dos poetas populares
ta do século xx, quando, por razões várias, come- que entrevistámos sabiam ler e escrever; outros, a
ça a morrer. O redescobrir desta expressão, no pós esmagadora maioria, sabia ler. O maior exemplo
’74, levará a tomar-se esta poesia cantada por poesia disto é o pedreiro e poeta popular José Inácio Hor-
dita. Será a morte do fado operário no Alentejo e ta [n. Santana 1913 – m. Portel 2001], que organizou a sua
uma autonomização da décima em relação a este vida a partir de um livro do século xviii, O Tesou-
cantar. Então a palavra dita matará o fado, e com ro de Prudentes. Calculava as festas móveis a par-
a morte deste morrerá o elo de ligação com Lisboa tir de complexos cálculos matemáticos. Encontrá-
e com o movimento operário. mos depois ecos deste saber noutros que nunca ti-
É esta história que este volume tentará contar a nham visto tal livro, como é o caso de um poeta
partir da vida e da obra do poeta popular Manuel popular de Panóias, funcionário da Câmara Mu-
José Santinhos, para quem o fado era central no nicipal de Ourique, cuja aprendizagem tinha sido
seu quotidiano. feita com a mãe.9
Estas observações levaram-nos a não confundir
III. iletrado com oral, já que este último é redutível a
Importa avançar duas ideias que são fundamen- uma forma que não é possível localizar nas socie-
tais para a compreensão de todo este trabalho. A dades ocidentais da Época Moderna e Contempo-
primeira é o nosso entendimento da geografia a rânea.
que chamamos Alentejo. A outra é o entendimen- Assim, definimos cultura popular, na Região
to que fazemos da oralidade no sul. Histórica do Alentejo, como não caligráfica, antes
Comecemos pela última, a oralidade. tipográfica, e por isso letrada mas pouco escolari-
Muitos são os autores que, quando falam de po- zada, no sentido institucional. Significa isto que,
esia popular no Alentejo, referem que esta está li- para a entendermos, temos que ter algum conheci-
gada a uma profunda e ancestral oralidade; ligam- mento da história da imprensa, do objecto impres-
na ao universo da cultura oral. Não importa ago- so e das formas paralelas do ensinar e aprender a
ra analisar as premissas com que esses investiga- ler e a escrever, assim como dos hábitos de leitura
dores trabalham para chegar a essa conclusão. É dos homens e das mulheres que no Alentejo per-
necessário, isso sim, ver as suas conclusões, e essas tencem àquilo a que chamamos cultura popular.
estão sempre presas a algumas ideias que há mui- Ao contrário de muitos que atribuem uma ora-
to são pouco sustentáveis, não tomando em con- lidade primária, ancestral, e que está a ser destruí-
ta um amplo conjunto de reflexões que têm sido da, ou já foi destruída, pela escrita e pela televisão,
produzidas em torno da cultura popular e do ob- defendemos que a oralidade presente nesta região
jecto impresso. E o primeiro aspecto é a caracte- não é prístina, mas antes produto da cultura escri-
rização da cultura popular em relação à oralida- ta performatizada em fórmulas erradamente con-
de e à escrita. fundidas com a cultura oral. Isto não significa que
A partir da nossa experiência de trabalho no ter- a cultura escrita se subalternizou em relação a uma
22
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
oralidade, mas antes que o que encontramos nesta anos quarenta e cinquenta do século xx se dança-
região histórica é um sincretismo processual que se va o fado em Lisboa, assim como manteve uma re-
arrastou ao longo de cinco séculos e que só na se- lação profunda com os grupos sociais considera-
gunda metade do século xx se concluiu a favor da dos como marginais. Conhecemos imagens, data-
cultura escrita.10 das de 1940, onde ainda se vêem pessoas a execu-
Sabemos muito pouco sobre a circulação do ob- tar esta dança nas hortas, ou melhor, nos olivais. O
jecto impresso ao longo do século xx entre as classes segundo tipo, é aquele que poderemos classificar
populares; e para os dois séculos anteriores, que aqui como o fado de salão, onde se inclui o fado aristo-
nos interessam, Portugal não produziu ainda uma bi- crático. O terceiro é o fado operário. Este é o gran-
bliografia suficiente a que possamos recorrer para re- de responsável pela modernização desta canção. O
solver satisfatoriamente esta questão essencial para o último tipo é aquele que poderemos classificar co-
entendimento da oralidade com que trabalhamos. mo o fado profissional, o que gera capital. Inclui o
teatro, as casas de fado, emergentes a partir da dé-
Ao longo do livro, fixaremos Alentejo de diferen- cada de trinta, passando pelo disco e pela rádio.
tes formas. Duas coisas devem ser ditas sobre isto. A Neste livro só trabalho, embora de forma muito
primeira é o espaço que entendemos como Alentejo resumida, o fado operário. Espero ter oportunida-
ou como sul. De forma correcta, talvez devêssemos de de o trabalhar com mais acuidado.
fixar um território a seguir à Serra da Estrela. É aí Nenhum livro, por muito grande que o seja, es-
que começa o sul. Mas para este trabalho, o sul é o gota todos os materiais que vão sendo reunidos
território entre o Rio Tejo e o litoral algarvio e entre para a sua construção. Deixo de lado algumas in-
a fronteira com Espanha e o litoral alentejano. A se- formações que ao longo de duas décadas foi reu-
gunda é que, quer escrevamos província transtagana, nindo, mas que aqui não fazia sentido colocar.
Região Histórica do Alentejo ou simplesmente Alen- Toda a parte do fado retira materiais de um ou-
tejo, tomamos como certeza que este sul não é uma tro trabalho que estamos a construir sobre a can-
unidade cultural, mas antes uma realidade histórica, ção nacional, e que incide sobre um período que
e que os seus limites geográficos devem mais a um vai entre 1860 e 1930. Trabalho que intenta reunir
processo político-administrativo que a uma qualquer informações sobre os intervenientes neste amplo
razão genético-cultural. Traduz-se isto no seguinte: movimento de fundação do fado, assim como ela-
não encontrámos dados que nos permitam defender borar um tratado de versificação sobre os fados re-
a ideia de uma poesia alentejana, ou melhor, do Alen- gulares. Tais projectos serão sustentados por uma
tejo, fixada numa matriz cultural longínqua. E que se análise histórica deste aro temporal e por um di-
tivermos de caracterizar a poesia popular do Alente- cionário bio-bliográfico dos intervenientes (fadis-
jo, ela deve ser olhada pelo signo do movimento, da tas, jornalistas, tocadores…). Por isso, é fácil su-
abertura e do sincretismo. por que muitas das conclusões que aqui propomos
são passíveis de uma profunda revisão.
Deixámos de lado a definição de cultura popu-
lar. A sua delimitação coloca problemas e frontei- Todos os trabalhos são sempre devedores a mui-
ras de difícil resolução e demarcação. Neste traba- ta gente, embora a responsabilidade do que aqui
lho, serão os próprios objectos em estudo os defi- exponho seja inteiramente minha.
nidores da nossa posição. Devo, antes de mais, agradecer à Câmara Mu-
nicipal de Santiago quer a confiança, quer a paci-
IV. ência por um trabalho que demorou mais do que
Durante a feitura deste livro, penso ter identifi- se esperava. Para com Vítor Proença, primeiro co-
cado quatro, digamos, tipos de fado. O primeiro é mo vereador da cultura e depois como presidente
aquele que segue a tradição, quase que se pode di- desta autarquia, tenho uma dívida que espero es-
zer que está próximo à sua «origem». Ainda nos tar agora, em parte, saldada. A actual vereadora
23
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
da cultura, Dr.ª Margarida Santos, esteve sempre o acesso a diversa documentação. Agradeço, tam-
disponível para rever um projecto que parecia, e bém, ao Mestre de guitarra portuguesa António
parece, não ter fim. A Dr.ª Robertina Pinela, que Parreira a disponibilidade para responder às mui-
além de amiga, foi sempre uma interlocutora em tas, e por vezes disparatadas, perguntas que um
todos os problemas que ao longo destes anos se fo- novato nestas áreas sempre tem.
ram colocando. Muito lhe devo. Ao fotógrafo Pau- A Walter Reis devo a construção do c. d. «Vai al-
lo Chaves se deve o acesso à fabulosa documenta- ta a lua». Os dois dias que passei em sua casa fo-
ção fotográfica de José Benedicto Hidalgo Vilhena ram espantosos. Quer ele, quer a sua esposa, Lo-
[n. 1870 – m. 1943] que este livro divulga. O vereador reta, foram de uma simpatia extrema.
José Baguinho é o grande responsável pela exis- Agradeço a Daniel Gouveia a sua disponibilida-
tência este trabalho: a ele se deve o abrir de portas de, assim como a simpatia, para discutir algumas
que o possibilitou. ideias que este livro transporta. Espero que possa-
Mas para com duas pessoas desta Câmara Mu- mos continuar a almoçar para falar sobre fado, co-
nicipal tenho uma particular dívida. A primeira mida goesa e alcunhas.
é ao Professor Manuel João da Silva. A ele devo, Devo ao Professor Maximiano Trapero, da Uni-
além dos muitos ensinamentos, o acesso a infor- versidad de Las Palmas de Gran Canaria, a opor-
mações e pistas de trabalho de muito valor. Se a tunidade de contactar com improvisadores e déci-
sua morte me fez perder um mestre, separou-me madores cubanos, venuzuelanos, canarinos, mexi-
também do Amigo. Esta dívida é partilhada com canos, argentinos... e a Rui Arimateia, da Câma-
Dulcelina Santinhos Pereira, sua colaboradora. Es- ra Municipal de Évora, a oportunidade de traba-
pero que este livro corresponda a algumas das su- lhar com improvisadores brasileiros, açoreanos e
as expectativas. madeirenses.
Em Santiago do Cacém, muitas foram as pesso- Agradeço também a Domingos Fialho Barreto as
as que me ajudaram. Na impossibilidade de as tra- informações prestadas. Sei quanto penoso lhe foi,
zer aqui todas, não posso esquecer a poetisa Ma- assim como à sua esposa, receber-me em sua casa
ria Antónia, de Santo André, que no meio dos seus nas condições físicas em que se encontra11.
muitos afazeres culturais e familiares, sempre en- Ao Professor Rui Vieira Nery, a José Manuel
controu alguns minutos para me ouvir; Fernan- Osório, a Ruben de Carvalho e a Carlos do Car-
do Espada, de São Francisco da Serra, foi funda- mo agradeço a disponibilidade para falar sobre es-
mental neste trabalho, muito do que escrevi não te escrito, assim como as amáveis palavras.
existiria sem o seu conhecimento e amizade (es- Ao Victor Duarte Marceneiro tenho uma dívida
pero, sinceramente, que o seu neto venha a gos- que será impossível de saldar: devo-lhe a entrada
tar de fado!); a Albano Miguel devo a minha pri- no mundo do fado.
meira, e importante, lição de fado, assim como o A Dr.ª Ana Borges, mais uma vez, apoiou incon-
poder editar um fado cantado por Manuel José dicionalmente um trabalho sobre o Alentejo. Mais
Santinhos acompanhado à guitarra. Reservo um do que o apoio financeiro, estou-lhe grato pelas
agradecimento especial a Miguel Capitã, um dos palavras. Muito lhe deve o Alentejo.
tocadores que acompanharam Manuel José Santi- Ao Centro de Tradições Populares Portuguesas
nhos. Passei dois dias espantosos na sua compa- devo muito do caminho que percorri neste traba-
nhia, além de me ter dado a provar um bagaço... lho etnográfico. A Manuel Viegas Guerreiro devo
Devo também agradecer à Dr.ª Clarinda Pereira, saberes. Nunca lhe poderei pagar.
do centro de dia «O moinho» o tempo que dispo- Ao Amigo Neves Galhoz devo a possibilidade
nibilizou para conversar comigo. de divulgar um desenho que é os olhos de todas as
Devo agradecer à Dr.ª Sara Pereira todo o apoio utopias que encontrei.
prestado, assim como à Dr.ª Sofia Bicho, da Ca- Qualquer livro é muito mais do que texto e fo-
sa do Fado e da Guitarra Portuguesa, em Lisboa, tos. É também uma peça de arte. A Bibito se de-
24
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
ve o primeiro olhar que este trabalho transporta. vantaria. Pela sua tolerância e pelo seu Amor. Apenas.
Também ele é autor deste livro. Por fim, evocar a dívida e o medo maior. Espero
Sem a disponibilidade de Bernardo, Celestino, que o poeta do Tojal Manuel José Santinhos não
Eduarda e Glória Pereira Santinhos, filhos do po- se sinta, onde quer que esteja, decepcionado. A
eta do Tojal, grande parte deste trabalho não seria sua amabilidade, simpatia e disponibilidade para
possível. Espero que não se sintam defraudados. com aquele que vinha da terra da Zéfinha foi sem-
Ao Zé Caruca devo este livro. Construtor de uto- pre muito grande. Neste livro só tive um objecti-
pias em Abril, foi um Amigo sempre presente ao lon- vo: dar-lhe o tempo, o seu presente temporal. Não
go de milhares de quilómetros. Este livro é dele. tenho outra forma de lhe agradecer.
Este trabalho é também uma dívida que saldo pa- Por último, agradeço, da forma mais simples que
ra com o Amigo, e editor deste projecto, José Mo- sei, e posso, a todos aqueles que neste sul me rece-
ças, ele é devedor da sua paciência e amizade. Aliás, beram em sua casa e partilharam comigo poesia,
ele é, no respeitante às dívidas, um grande credor. cantes, memórias e, tantas vezes, a mesa (e eu sei
Mas três são as pessoas a quem muito particular- quanto vale partilhar o pouco que se tem!) ao lon-
mente gostaria de dedicar este trabalho. go dos últimos vinte anos. Na mão dura e amá-
A primeira é a Augusto Brázio, de quem fui com- vel desses homens e dessas mulheres, com quem
panheiro de dez anos de viagem. aprendi todas as utopias do Mundo, deposito este
A segunda pessoa é Maria Aliete Galhoz. Em todos livro. Foi para eles que o escrevi.
os caminhos que trilhei tive sempre a sua mão, quer na
partilha de saberes, quer como Amiga. Agradecer-lhe
o muito que lhe devo nunca é demais. PORTEL,
A terceira é a Ana. Sem ela este trabalho nunca se le- 12 DE NOVEMBRO DE 2003 – 11 DE ABRIL DE 2004.
NOTAS
1 Pequeno núcleo urbano do concelho ta por Alberto Lopes, e data da Pás- de Manuel José Santinhos.
de Sintra, que deu origem à cidade e coa de 1996, e contou com uma no- 5 Lima 1994: 15.
município da Amadora. ta introdutório da Professora Doutora 6 Sousa 1912: 6.
2 Edição da Câmara Municipal de Por- Maria de Fátima Sá e Melo Ferreira. 7 A obra pioneira de Modesto Navar-
tel, de 1996, que contou com o apoio 3 Galeano & Borges 1994. ro, Navarro s. d., é um exemplo pa-
do Ministério da Cultura. Este c. d. fa- 4 Um pouco antes de fechar o livro, re- radigmático do que afirmamos.
zia parte de um trabalho que, além das solvemos alterar o título, deixando o 8 Fonseca 1996.
vozes, tinha um álbum fotográfico da subtítulo assumir-se como rosto deste 9 Horta 2000.
autoria de Augusto Brázio, e um tex- trabalho. Perdeu em poesia, ganhan- 10 Ong 1999; Hagège 1990: 63-86.
to de Paulo Lima. A recolha do som do em rigor. Mantivemos o «Vai alta 11 Fialho Barreto veio falecer antes do
e montagem do alinhamento foi fei- a lua» para o c. d. que prende a voz término deste livro.
Neves Galhoz
Profeta, 2001
Técnica mista
26
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
27
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
AOS REVOLUCIONÁRIOS
A REPÚBLICA MUITO DEVE
A ESSES BRAVOS OPERÁRIOS,
QUE DEIXARAM ‘SPOSA E FILHOS
SÓ P’RA SER REVOLUCIONÁRIOS.
A DÉCIMA NO ALENTEJO
1.ª FASE: 1750-1880
30
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
31
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
D
EFINIR a décima como uma estrofe de dez É só com doce brandura
versos e cujo pai literário é Vicente Espinel, E sem vos fazer agravo:
é demasiado redutor. Esta estrofe é muito Dar-vos pancada no cravo,
mais complexa do que aquilo que deixa adivinhar. O Sem tocar na ferradura.
verbete mais interessante que conhecemos sobre ela é (Abade de Jazente)
da autoria de Amorim de Carvalho, presente na sua
Teoria geral da versificação, levantando nele precio- A separação lógica – por ponto final, ou ponto e
sas questões. Importa lê-lo na íntegra vírgula, ou dois pontos, etc. – entre a quadra e a
sextilha, é a regra, para fazer distinguir as duas
A décima clássica consta de: uma quadra+sextilha, estrofes. A sextilha desenvolve o pensamento da
perfazendo, portanto dez versos, com transportação quadra numa dedução mais ou menos conceituo-
de uma das rimas da quadra para o primeiro verso da sa – processo que iremos encontrar, com estilo di-
sextilha, nos dois sistemas rimáticos que apresentam ferente, de outras características, na glosa e no vi-
os dois exemplos seguintes: lancete.
À décima tem-se dado tradicionalmente a disposi-
ção gráfica monostrófica (de uma só estrofe), mas
Soltai-me, Amor enganado, a estrutura lógica é a de duas estrofes, e como tal a
Que enganado me prendeis; dispomos graficamente.
Que em meu poder não tereis
a) a erudição literária tem ido até ver a origem da
Seguro o vosso cuidado. décima clássica nas décimas do poeta espanhol Fer-
rant Manuel de Lando:
Sou um pastor desprezado,
Que numa aspereza vivo, Anda el osso por la xara
A toda a brandura esquivo, Muy esquivo manzellero;
Sujeito a todo o rigor, El vestiglo carnicero
Não posso servir a amor Circunda la gran pyara:
Que estou da sorte cativo.
(Rodrigues Lobo) Está puesta em alcatara
Com façion rrepleta;
Tendes o cravo no peito? Pues fablad, gentil poeta,
O lugar impróprio é, Com vuestra lengua discreta
Pois se o tivésseis no pé, Pues esta leción secreta
Era o lugar mais perfeito. De turbia se forma clara.
32
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Vicente Martinez Espinel (1550-1624) teria feito dieval, e que foi usada até ao século xvi por poetas das
esta modificação na sextilha: substituiu a rima se- chamadas medida velha e da medida nova. Esta estro-
guida CCCC por duas rimas emparelhadas CCDD fe denominada falsa décima, é formada por duas quin-
e fez rimar a primeira rima emparelhada com o úl- tilhas, recorrendo a diferentes esquemas rimáticos. Ve-
timo verso da sextilha, como temos na décima do ja-se este exemplo de Bernardim Ribeiro, que a coloca
Abade de Jazente. na boca de um pastor de nome Silvestre
Outra tese da erudição literária dá as décimas de Bar-
tolomeu de Torres Naharro, outro poeta espanhol do Triste de mim, que será,
século XVI, como sendo a origem da décima clássica. ó coitado, que farei,
Naquelas, o segundo verso da segunda estrofe (sexti- que não sei onde me vá
lha) é um trissílabo; Espinel ter-se-ia limitado a substi- Com quem me consolarei’
tuir este trissílabo por um heptassílabo, igualando to- ou quem me consolará?
dos os versos – e assim se fixou a décima clássica, que Ao longo das ribeiras,
por isso, também se chamou espinela. Ao som das suas agoas,
Chorarei minhas canseiras,
b) O verso consagrado deste sistema estrófico é o minhas mágoas derradeiras
heptassílabo. A décima clássica, que é um sistema minhas derradeiras mágoas.
estrófico, não a devemos confundir com a décima [Écloga iii]2
como simples estrofe de 10 versos, bem que esta,
pelo grande número de versos que a compõem, ten- Portanto, a medieval é substituída por uma outra
da geralmente a tornar-se verdadeiramente um sis- que uma certa tradição literária diz ser obra de Vi-
tema estrófico composto cente Espinel, poeta espanhol do Siglo de Oro. Ali-
ás, será um seu discípulo, Lope de Vega, que identi-
[...] A divisão formal e lógica em quadra e sextilha, ficará esta estrofe com o nome de Espinel, embora
e as travações rimáticas como nos exemplos que este último a tenha denominado por redondilha de
demos, de Rodrigues Lobo e Abade Jazente, ca- dez versos. O novo esquema estrófico, um quarte-
racterizam a décima clássica como sistema estrófi- to e uma sextilha, ou, por vezes, um quarteto, um
co especial. É hoje pouco ou quase nada cultivado. verso de ligação e uma quintilha, tem uma só fór-
Damos, no entanto, como exemplo de um poeta de mula [ABBAACCDDC]3. Os primeiros quatro versos são
hoje esta linda décima o mote da restante composição; quando a décima é
glosa, são um submote, e os restantes versos o seu
Numa noite de beleza natural desenvolvimento e conclusão. O estudo da
sonhei com um’alma irmã, décima literária deixa antever, antes de mais, uma
mas acordei de manhã possibilidade plástica muito grande.
para um dia de tristeza. Devido a esta atribuição autoral, esta décima
é conhecida por espineliana, designação pouco
Ficou a minh’alma presa ou nada vulgarizada em Portugal4. Neste perío-
à sua meiga ternura, do, a décima era usada para poesias ligeiras: can-
e o que desde então procura tigas, glosas, vilancetes e esparsas. Vejamos, como
é dormir continuamente, exemplo, uma décima de Espinel
vivendo a vida presente
a sonhar com a futura. No hay bien que del mal me guarde,
(Edmar da Silva)1 temeroso y encogido,
de sinrazón ofendido,
Amorim de Carvalho deixa adivinhar uma outra y de ofendido cobarde.
fórmula anterior à espineliana, denominada por me- Y aunque mi queja, ya es tarde,
33
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
NOTAS
1 Carvalho 1987: 105-107. 5 Trapero 2000: 123. rária, embora enformada de uma visão
2 Ribeiro 1982: 63. 6 Curvo Semedo... 1988: 70. bastante «hispânica», veja-se Trapero
3 Popularmente podem surgir variantes. 7 Resende, vol. iii 1993: 334. & Ruiz 2001: 15-39 e também Lemus
4 Guerreiro 1997: 141-144. 8 Para uma mais detalhada descrição lite- 2001: 41-60 em Trapero 2000.
34
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
D
EVE-SE a Virgílio López Lemus e Maximia- tros-festivais da Décima e do Verso Improvisado.
no Trapero uma primeira tentativa de car- Na Espanha continental, a décima surge esporadi-
tografia extensiva dos territórios que a dé- camente em algumas áreas do Levante Sul, em Múr-
cima ocupa1, ou ocupou. Para o que nos propomos, cia, Granada e Almería, mas de forma muito loca-
tal cartografia torna-se suficiente, embora não pos- lizada. Esta presença é devedora a contactos com
samos deixar de apontar algumas fragilidades, no- Cuba. De notar que não é cantada, antes resada2.
meadamente tomando amplos territórios sem ver se Trapero e Lemus definem como Zona ii Portugal
há fracturas entre eles. Estes autores não referem se continental e Arquipélago dos Açores, consideran-
esta percorre toda a extensão ou se, pelo contrário, do o sul de Portugal, Alentejo e Algarve, como um
ocupa manchas geográficas de forma difusa; igual- «microcosmos» dentro do mundo hispânico, pela
mente não mencionam a sua constante tensão com sua diversidade no uso da décima: memorialista,
outros géneros estróficos, como acontece na região cordel e improviso. Referem que a décima aqui em
do Nordeste brasileiro. uso é própria da escrita, vulgarizada por cantado-
Estes dois investigadores, a quem muito se de- res ambulantes que a disseminaram3.
ve para o entendimento da décima e do verso im- Referem também a sua existência no Arquipéla-
provisado na Ibero-América, propõem-nos sete zo- go dos Açores, em particular nas ilhas de São Mi-
nas, a saber guel e Terceira, considerando a sua presença vi-
va e com alguma pujança. Voltaremos à Zona ii
ZONA I Espanha Peninsular e Ilhas Canárias; após percorrermos todas as zonas inventariadas
ZONA II Portugal Peninsular e Arquipélago dos por Trapero e Lemus.
Açores; O Caribe e Flórida são integrados na Zona iii.
ZONA III Caribe e a Flórida; Contempla territórios insulares, Cuba, Porto Rico
ZONA IV México e Sul-Oeste dos EUA; e República Dominicana, e continentais, as costas
ZONA V Costa do Pacífico; da Venezuela e Colômbia, e todos aqueles países
ZONA VI Cone Sul da América: da América Central, tais como Nicarágua e Cos-
ZONA VII Nordeste do Brasil. ta Rica, às quais se deve ligar o Estado da Flórida,
em particular Miami e áreas limítrofes, onde se fi-
Na Zona i, que compreende a Espanha peninsu- xou uma importante colónia de cubanos.
lar e Ilhas Canárias, a décima é usada como texto Deve-se salientar a diferença de géneros musicais
de improviso e muito pouco como texto narrativo que servem de suporte à décima cantada e improvi-
fixo. Nas Canárias, a décima compete em algumas sada, que vai desde o punto cubano ao galéron vene-
ilhas com o romanceiro; noutras suplantou-o. De- zuelano, passando pelo seis em Porto Rico, que con-
ver-se-á chamar a atenção que entre as Ilhas Ca- ta com mais de meia centena de variantes.
35
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Ainda é de realçar que nesta zona, mais do que la cantoria, ou seja, pelo improviso e muito ligada
em qualquer outra, a décima está presente nas ex- ao chamado «cordel». Pelos motivos descritos, pa-
pressões mais literárias e nas mais populares. ra estes autores, existe uma relação entre o sul de
A Zona iv condensa um imenso território: Mé- Portugal e esta Zona, podendo a sua introdução
xico e Sul-Oeste dos EUA. Esta poderá ser defini- em Portugal fazer-se a partir daquilo que se chama
do como a área da grande influência hispânica, e os textos de «torna-viagem»5.
que até há cerca de cento e cinquenta anos estava De forma sintética, tentámos resumir a presença
dependente – ou fortemente influenciada – por Es- geográfica da décima no mundo ibero-americano6.
panha: Califórnia, Novo México e costas do Golfo Importa agora descer criticamente à zona que nos
do México, Texas e Luisiana (aqui com forte pre- interessa, a Zona ii: Portugal peninsular e o Arqui-
sença de população de origem canária4). Mas de- pélago dos Açores.
vemos ter em conta que a designação décima, nes-
ta última região, poderá já cobrir outros tipos de II.
textos, como é o caso do corrido. Falar em poesia popular no Alentejo e Algarve, é
Em todo este território, é no México que a déci- fazer referência à décima, olhando-a como uma es-
ma predomina, literária e popularmente, associan- pecificidade transtagana. Tal afirmação é engana-
do muitas vezes performances ligadas à dança. dora, quer ao nível da geografia, quer da história,
A Costa do Pacífico integra a Zona v. Debaixo quer ainda das práticas sobreviventes.
desta designação coloque-se a Colômbia (excep- Hoje, a décima como glosa – porque é assim que
ção da costa caribenha), Panamá, Equador, Peru e ela essencialmente surge – existe no aro de Lisboa,
possivelmente o norte do Chile. A grande caracte- no Alentejo e no Algarve. Mas a sua expressão au-
rística parece ser a sua predominância na popula- menta nos municípios já afastados do Rio Tejo, pa-
ção afro-americana. ra sul. Surge também, muito esporadicamente, nos
A Argentina, o Uruguai, a parte sul do Chile, que municípios de Tentúgal7 e Montemor-o-Velho, aqui,
faz fronteira com a Argentina, e o estado brasileiro na freguesia de Carapinheira8. Isto no continente.
do Rio Grande do Sul, integram a Zona vi. A déci- Insularmente, surge apenas no arquipélago açoria-
ma ocupa aqui manchas e não um território exten- no, mais especificamente nas ilhas da Terceira e de
so. Na Argentina e Uruguai difunde-se em torno São Miguel, e com fortes ligações ao fado9.
de La Plata e liga-se ao contexto cultural gauches- Mas esta distribuição geográfica pode ser corri-
co da Pampa e do payador, que tem a sua figura gida se recuarmos cerca de cem anos. Até nos po-
exponencial literária na obra de José Hernández, demos situar num determinado ano, e 1910 é uma
Martín Fierro. Nesta zona, a décima tem-se vin- data muito sugestiva: marca não só a passagem do
do a atenuar em competição com outras fórmu- regime monárquico para o regime republicano, co-
las poéticas. mo foi um momento fundamental para alguns pro-
Em oposição a cantos «a lo humano», caso do motores dos poetas populares e para o fado.
Caribe, aqui os cantos «a lo divino» com recurso Em 1910, a décima em Portugal ocupava uma
à décima, têm uma forte expressão, em particular geografia bastante vasta. O seu território descia do
no sul do Chile, integrando o devocionário, a His- Porto por todo o litoral e ia-se alargando até tocar
tória Sagrada, Novo e Velho Testamento, ou ou- a zona montanhosa da serra da Estrela, onde pare-
tros factos religiosos. ce que nunca entrou(?), até atingir Lisboa e subir o
A última região contemplada por Trapero e Le- Tejo, e deste acidente caminhar até às águas quen-
mus é o Nordeste brasileiro. Esta zona, a vii, é con- tes do Algarve. Fora do continente, vamos encon-
siderada uma região à parte no desenvolvimento trá-la em São Miguel, associada ao teatro e ao fa-
da décima, embora de forma algo subjectiva. Li- do10, e na Terceira levada por soldados, que aqui
gam-na ao Caribe, devido a ser acompanhada por imprimiram folhetos, ou por homens ligados di-
uma guitarra(?). A décima aqui caracteriza-se pe- rectamente ao fado, embora mais tarde.
36
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
A sua presença nesta imensa geografia é atesta- vação, assim como, dado importante, uma afirma-
da em diversos textos e figuras mostrando que, até ção de João David Pinto Correia
um determinado momento, a décima foi uma estro-
fe que teve um espectro muito mais vasto do que ho- Desde o século XIX até hoje, essa geografia foi muito
je se supõe11. alargada – e reconheceremos que, se as zonas mais fe-
O seu desaparecimento em muitas partes do país de- cundas na tradição se podem situar em Trás-os-Mon-
veu-se a um variado leque de razões, levando a uma tes, Açores e Madeira, «três zonas laterais bastante ar-
lenta substituição por outras estrofes nos gostos po- caizantes em relação ao resto do País» [...], acrescentar-
pulares. Uma das razões mais fortes, a par da coinci- -lhes-emos as Beiras, o Algarve, o Alentejo [...], o Mi-
dência das grandes migrações no pós II Guerra Mun- nho e a Estremadura também como áreas a explorar.16
dial que levou a quebras geracionais de transmissão,
foi o aumento do acesso à rádio e à audição de gra- Em 1946-‘47, é lançado pelas várias(?) províncias
vações em disco, levando que a décima, texto longo, de Portugal um inquérito, tendo por objectivo pro-
fosse substituído, por textos mais curtos: a sextilha, a duzir um cancioneiro popular, dividido administra-
quintilha e o quarteto. Os objectos impressos, que an- tivamente, e um inquérito linguístico com o intui-
tes tinham décimas, vão agora ter as mesmas notícias to de, complementarmente, se produzir um trabalho
com recurso a outras estrofes, assim como os textos sobre a linguagem popular do povo português. Tal
impressos que se dispersam a partir de Lisboa e Por- projecto envolveu não só os chamados eruditos lo-
to, com os textos musicais dos filmes, dos discos e das cais, mas também a Junta Central das Casas do Po-
revistas, já não trazem décimas. A sua persistência até vo que, através de Luís Chaves, se envolveu na co-
aos dias de hoje no Alentejo deve-se a outros motivos, ordenação destes inquéritos. Este projecto teria co-
que se devem observar em separado. mo culminar a sua apresentação no Congresso Por-
tuguês e Brasileiro de Folclore, a realizar em Lisboa
III. aquando das comemorações da tomada desta cida-
Importa aqui introduzir uma outra questão: a opo- de aos mouros por Afonso Henriques. O congresso
sição entre áreas do romance e áreas da décima. É não se realizou, e o cancioneiro e a linguagem popu-
Trapero que coloca esta questão, possivelmente liga- lar do povo português nunca foram, na sua expres-
da à sua experiência de recolha romancística nas Ca- são nacional, editados.
nárias12. Para Trapero, onde existe décima não exis- Deste inquérito provincial sobrevivem, que conhe-
te romance13. çamos, pouco mais de cem respostas da província do
Em Portugal, uma certa tradição coloca nas zonas Baixo Alentejo, respostas que o Prof. Joaquim Ro-
montanhosas o “país” do romance, deixando a pla- que, seu responsável, tratou minimamente e que, de
nície, se o quisermos dizer, para a décima. De cer- forma preciosa, chegaram algo intactas até nós. Es-
ta forma, se traduzirmos para o espaço português a sas respostas enviadas por professores e regentes do
afirmação de Trapero, temos uma oposição entre re- ensino primário, entre o Outono de 1947 e a Prima-
giões mais conservadoras e outras menos resistentes, vera de 1948, cobrem todos os concelhos que à al-
ou mais abertas, às inovações, como é o caso das dé- tura se inseriam no Baixo Alentejo17. Essas respostas
cimas, que de facto parecem não penetrar no interior foram recolhidas maioritariamente por crianças jun-
centro e norte montanhoso de Portugal14. to de mulheres, facto que podemos afirmar com al-
Mas o facto é que não temos ainda uma cobertu- guma certeza, devido ao género usado na transcrição
ra efectiva de recolhas extensas e com introdução das respostas. Grande parte dos conteúdos são gran-
de novas problemáticas em Portugal, onde, de certa des listas de cantigas e modas, respostas às questões
forma, o paradigma do romance e da lírica mínima de linguagem colocada pelo inquiridor e, numa pe-
ainda surgem como nucleares. Basta ver a extensão queníssima parte, algumas indicações de usos e cos-
territorial ocupada pela guitarra portuguesa15 e pe- tumes. Na parte do cancioneiro, num sentido lato,
lo fado para colocar algumas dúvidas nesta obser- existem muito poucos romances, e quando existem
37
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
são fragmentos, à excepção de «Os três reis do Orien- os homens cultivam estrofes maiores, centrando-se,
te» e de «A vida de Jesus Cristo» (um amphiguri). As quase exclusivamente, na décima, e quando produ-
décimas ainda estão menos representadas. Partindo zem o quarteto, ligam-no ao cante às vozes.
deste inquérito, podemos caracterizar o Baixo Alen- Sendo as respostas ao inquérito dadas por mulhe-
tejo, na segunda metade da década de quarenta do res, é a lírica mínima que impera, em detrimento da
século xx, como uma província onde o romancei- décima. A presença destes dois romances no inquéri-
ro está em perda e as décimas quase não tinham ex- to de Joaquim Roque liga-se, quanto a nós, ao tem-
pressão. Mas a realidade mostra algo diferente. Tra- po da recolha, em torno do Natal: a concentração de
balhos de pesquisa na área do romanceiro mostram respostas dá-se no mês de Novembro.
uma persistência romancística nesta região18, assim A relação da décima em oposição ao romance não
como de cantigas narrativas. Neste período, a déci- nos parece muito clara para o território português,
ma viveu um momento de grande pujança. porque é provável que esta seja não um texto regio-
Há que trazer para aqui um outro dado. No Alen- nal, mas antes um texto de classe sócio-laboral que,
tejo, a poesia popular está mais ou menos dividida por motivos que adiante veremos, se fixou no uni-
por sexos: as mulheres produzem uma lírica mínima, verso masculino.
NOTAS
1 Lemus & Trapero 2001: 179-195 em 7 Agradeço a José Craveiro, de Tentúgal, 11 O geógrafo Jorge Gaspar, ainda nos
Trapero 2000. todas as informações prestadas. anos de 1965 e 1966, na Beira Litoral,
2 No sentido de dizer, não cantadas. 8 Veja-se Monteiro 2001 e Oliveira encontrou cantadores de feira e vende-
3 Informações baseadas no nosso traba- 1992. dores de folhetos. Ver Est. X e Docu-
lho de 1996, Lima 1996, que aqui é pro- 9 Ver com atenção Díaz-Pimienta que, pa- mento V, onde Gaspar reproduz uns
fundamente revisto. ra o improviso e para a décima em Por- versos, décimas, de 1938, de Barcouço,
4 Veja-se Armistead 1992: 12-38, um ex- tugal, faz algumas confusões. Díaz-Pi- Aveiro [Gaspar 1986: 102, Est. V.].
celente estudo da presença hispânica na mienta 1998: 82-83. Sobre a décima e o 12 Trapero 1989.
literatura do Estado da Luisiana. fado em São Miguel ver Câmara 2003. 13 Trapero 1996.
5 Para uma crítica da relação entre os ob- 10 Em Guerreiro 1990, na página 415, sur- 14 Parece traduzir-se a divisão de Portugal
jectos impressos portugueses que teriam ge um quarteto glosado em quatro dé- proposta por Orlando Ribeiro na déca-
influenciado o chamado «cordel» brasi- cimas, com a indicação de «à Virgem da de quarenta do século xx, Ribeiro
leiro ver Márcia 1999. Esta autora nega Nossa Senhora da Bem aparecida/ que 1987. Em relação a este olhar, veja-se a
tal dependência, propondo antes uma se venera em S. Paulo, Estado do Bra- crítica feita pelo historiador José Matto-
autonomia do «cordel» como fenóme- sil», com a data de Janeiro de 1931, da so, Mattoso 2001; 29-54 e Mattoso em
no cultural particular na sua história autoria de Manuel José Dias. Na mes- Farinha & Carreira & Serrão 2001: 73-
criativa. mo obra, página 539, surge um conjun- 89.
6 Seguimos o trabalho de Trapero & Le- to de cinco décimas que se aproximam 15 Sardinha 2000: 414-444.
mus, que está editado em La décima: su mais da décima medieval do que da dé- 16 Pinto-Correia 2003: 52.
historia, su geografia, sus manifestacio- cima espineliana [ex.: ABBACADAED, 17 À altura, Sines, Santiago do Cacém,
nes, obra coordenada pelo próprio Ma- com partição no quinto verso, mas sur- Grândola e Alcácer do Sal integravam o
ximiano Trapero. Muita da informação gem também décimas espinelianas, em- distrito de Beja. É também a partir des-
dada não foi tomada em atenção, mas bora mal pontuadas]. As páginas 541- te inquérito, que, Manuel Joaquim Del-
é de muito interesse para aqueles que 567, contemplam uma peça intitulada gado, seu auxiliar, faz o Subsídio para o
sobre o tema se debrucem. Trata-se de «Décima de João de Calais», mas que é cancioneiro popular do Baixo Alentejo,
uma obra de referência, já que sintetiza formada por quartetos. Ou estamos na em dois volumes, que teve duas edições,
todo um conjunto de dados, além de fa- presença de sobrevivências, ou perdeu- 1955 e 1980.
zer um estado da questão. se a estrutura rimática. 18 Martins & Ferré 1988; Teiga 2000.
38
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
E
MBORA não possamos ter certezas relativa- vavelmente, de um manuscrito de princípios des-
mente à introdução da décima no Alentejo te mesmo século.
e dos factores que contribuíram para a sua Antes de as usarmos, devemos defender o crédi-
popularização, temos alguns dados que nos permi- to da sua fidedignidade. Embora tenham sido es-
tem assumir as últimas décadas de setecentos co- critas com uma diferença de cerca quarenta anos
mo um momento em que esta já se encontra está- umas das outras, e rebusquem memórias com mais
vel no uso popular, muito provavelmente apenas de cem anos tendo por base a tradição, e não a do-
como improviso. cumentação, e, no caso da de José Leite de Vascon-
Temos duas formas de aferir esta afirmação: a bi- celos, tenhamos buscado inutilmente um confron-
bliografia disponível e aquilo a que podemos de- to documental, existem demasiadas coincidências
nominar como sobrevivências dos primeiros tes- nas informações dadas para as não tomarmos co-
temunhos. mo próximas da realidade.
Duas levantam figuras e acontecimentos do Bai-
I. xo Alentejo (os textos de Vasconcelos e Carvalho);
As informações mais antigas que conhecemos so- uma refere uma figura, e alguns dados biográficos,
bre a décima e o seu uso na cultura popular foram do Alto Alentejo (Subtil).
escritas entre finais do século xix e princípios do Podemos datar com alguma certeza, se as fontes
século seguinte. Com estas informações podemos estiverem correctas, todos os acontecimentos entre
recuar até aos últimos anos de setecentos e avan- 1777 e 1834, havendo aqui alguma margem de er-
çar nas primeiras décadas de oitocentos. ro. Mas, como veremos, as situações narradas e o
Três são as fontes bibliográficas que vamos utili- que podemos inferir, dão-nos elementos em torno
zar1: a primeira data de 25 de Janeiro de 1904, e é destas datas, embora os acontecimentos se possam
de Pedro de Almada Pereira, dedicado a António estender até à segunda metade do século xix.
Lobo de Almada Negreiros, avô e pai, respectiva- Vejamos, então, cada um dos textos.
mente, do multifacetado José de Almada Negrei- O texto de Leite de Vasconcelos evoca um po-
ros2, sendo retirada da Revista Litteraria, Scien- eta popular da região em torno de Beja, conheci-
tifica e Artistica d’O Século e reeditada por Jo- do como Potra3. Vasconcelos arquiva esta notícia
sé Leite de Vasconcelos na Revista Lusitana, dois (publicada dois anos antes por Pedro de Almada
anos mais tarde; a segunda data de 31 de Janeiro no jornal O Século) na Revista Lusitana, integrada
de 1937, dada por Manuel Subtil e publicada no num seu projecto de reunir informações sobre va-
semanário de Estremoz Brados do Alentejo; a últi- tes populares portugueses4; sendo esta a última no-
ma não está datada e é da autoria de Ernesto Car- tícia que lhe conhecemos sobre o tema. Esta centra-
39
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
se em dois improvisos em que Potra esteve envol- cais levantados são: Messejana, onde se situam
vido: um com Frei Manuel do Cenáculo, em Beja, Costa Velhinho e Pedro da Moura, e onde passa,
e outro em Lisboa. para despique, Potra, de seu nome Brás Martins
O texto de Ernesto de Carvalho, também ele de Beirão, que é de Cuba e que faz um improviso em
Messejana, não tem data, mas deverá ser da vi- Beja e em Lisboa; para o Alto Alentejo, temos Va-
ragem do século xix para o século xx. O exem- le do Peso, terra natal de Ambrósio.
plar a que tivemos acesso está dactilografado, de- Assim, nesta geografia, temos informação de um
vendo basear-se em cópia manuscrita à qual, em aro entre os actuais municípios do Crato e de Al-
época posterior, foram acrescentadas novas infor- justrel. Ou seja, estão representados o Alto e o Bai-
mações5. Neste texto, Ernesto de Carvalho, evo- xo Alentejo.
cando memórias de algumas décadas atrás, recor- As estrofes utilizadas por estes poetas, todos ho-
da um conjunto de figuras que lhe trouxeram ou- mens, são a décima e as «cantigas de don-don».
tras figuras. Traça pequenas notas picarescas que As décimas em uso são a espineliana heptassi-
servem de explicação a alguns poemas. As figuras lábica, de dois corpos: quarteto e sextilha, usada
e situações evocadas não tratam apenas de gente por Ambrósio, Velhinho, Pedro da Moura e Brás
desta vila do município de Aljustrel, como é o ca- Martins Beirão.
so de Velhinho ou de Pedro da Moura, trata tam- O «don-don», um quarteto, onde três versos
bém o poeta Potra, de Cuba, que Pedro de Alma- são heptassilábicos e um pentassilábico [ABB/C//
da também refere. CDD/E etc.], criando um nonsense ao longo do texto,
O terceiro texto, da autoria de Manuel Subtil, de é usado por Ambrósio e Velhinho.
1937, é uma notícia publicada no semanário Bra- As décimas recorrem sempre a um mote de um
dos do Alentejo que fala de um poeta de finais do só verso, repetido no fecho da décima, como é o
século xviii, natural de Vale do Peso, município do caso do mote dado por Cenáculo, «Nós ambos
Crato, conhecido por Ambrósio de Vale do Peso. somos pastores», e que Brás Martins Beirão, de
Dá alguns dados biográficos, evoca situações on- Cuba, glosa com esta espantosa décima
de houve improvisos de textos deste vate e mostra
o desejo de que a sua terra, Vale do Peso, não se Senhor meu batei as palmas
esqueça dele6. Que nós não somos iguais
No aspecto cronológico, estes três textos situam Vós sois pastor de almas
um conjunto de personagens em finais de setecen- Eu sou pastor de animais
tos e primeira metade de oitocentos. Evocam situ- Sofro frio e sofro calmas
ações pós-Pombal, como é o caso do pedir pelas al- Sinto do tempo os rigores
mas de Ambrósio, ou o encontro de Potra com Frei Vós brilhais entre os doutores
Manuel do Cenáculo, que a dar-se só poderia ter Servindo aos sábios de exemplo
acontecido entre 1777 e 1802, datas que cobrem Eu no prado e vós no templo
a presença deste bispo no Paço de Beja. Nós ambos somos pastores7
A guerra civil, entre 1828 e 1834, opondo libe-
rais e miguelistas, durante a qual Ambrósio, já ve- Em nenhum dos contextos e improvisos que es-
lho, faz um improviso, deverá ser visto como a da- tes autores enumeram, onde são sempre produ-
ta mais recente. zidas décimas, é referido se estas são resadas, se
Assumimos, então, que estes poetas estão acti- cantados à capela ou se se recorre a instrumentos.
vos entre as últimas duas décadas de setecentos e Deve-se também chamar a atenção para o que pa-
as duas primeiras décadas de oitocentos. Importa rece ser uma fórmula ou protocolo entre o agen-
também fazer notar que as referências de Ernesto te do mote e o agente do improviso, «Venha de lá
de Carvalho vão até mais tarde. mote», que é dito em Ambrósio e em Brás Mar-
No que diz respeito ao espaço geográfico, os lo- tins Beirão8.
40
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
As cantigas de «don-don» surgem em Velhinho de expressão da poesia popular desta região. Em-
e em Ambrósio, e não parecem ser improvisadas; bora domine, existem algumas dissonâncias que
são antes memorialistas e carnavalizados ou chari- importa inventariar e estudar. As décimas que re-
varis. Veja-se a cantiga de despeito amoroso de Ve- correm a um só verso como mote ou as chamadas
lhinho ou o testamento de entrudo de Ambrósio. décimas silvadas, com ou sem leixa-pren, o teatro
Além destas estrofes, surge uma com sete versos em décimas ou as loas, também em décimas, são
[ABbCDCD ou ABCDEDE], para a qual não temos para- algumas dessas dissonâncias. Importa perceber al-
lelo, e nem sabemos se está completa ou se a li- gumas questões que lhe estão subjacentes e ver até
ção apresentada é correcta. Surge, também, em- que ponto nos poderão abrir perspectivas de leitu-
bora mais tardiamente, a referência a Sofia Frade ra para factos da cultura popular.
no texto de Ernesto de Carvalho, que improvisa-
va em quartetos, mas que também fazia quartetos No município de Arraiolos, freguesias de Igreji-
glosados em décimas9. É posterior a 1855, uma vez nha, Vale do Pereiro e Carrascal/São Gregório, ha-
que evoca a data da extinção do concelho, e não via a tradição de resar décimas em louvor a São Se-
pode ultrapassar a data de 1897, que é a data da bastião ou à Senhora da Consolação12.
sua morte. Os quartetos que Sofia Frade improvi- Esta prática quase desapareceu, sobrevivendo ape-
sava são designados por cantigas10, e são heptas- nas na aldeia de Igrejinha, onde, em Setembro de to-
silábicas [ABCB]. dos os anos, na noite de Sábado de festa, homens e
Existem demasiadas concordâncias entre os ex- mulheres sobem a um estrado, ou a um banco, e aí
tremos do aro geográfico para que estes não sejam resam as suas décimas, em número variável de es-
tomados em conta. Mesmo criticando as referên- trofes que, segundo o protocolo, deverá terminar
cias a Potra ou a qualquer outro poeta aqui pre- sempre com «Nossa Senhora da Consolação».
sente, é recorrente em todos eles o uso do mesmo Esta prática de louvar terminou há algumas dé-
tipo de estrofes e em contextos muito semelhantes. cadas nas outras duas freguesias, Vale do Pereiro
É claro que não encontrámos qualquer referência e Carrascal/São Gregório. O louvar nestas festas
nos papéis de Cenáculo, presentes na Biblioteca era em honra de São Sebastião, e terminava com
Pública de Évora, ou na bibliografia sobre ele que «Dou vivas ao [mártir] São Sebastião». Ambas as
nos diga que o seu encontro com Potra tenha efec- práticas desapareceram na segunda metade do sé-
tivamente acontecido. Mas a análise destes textos, culo xx.
aqui feita de forma algo sumária, deve ser tomada Importa referir que ambas as festas eram realizadas
com alguma veracidade. em igrejas cujo orago não era este santo. Em Carrascal/
Podemos então inferir o seguinte: por volta de São Gregório, era na Igreja Paroquial de São Gregório;
1800, a décima espineliana está perfeitamente es- em Vale do Pereiro, era na Igreja de Santa Justa. Este úl-
tabilizada no Alentejo, pois é usada em improvisos timo caso, deve-se a uma transferência de culto da pri-
e em despiques, desenvolvendo, no improviso, um mitiva capela de Vale do Pereiro, cujo orago era São Se-
só verso, que é fixado no verso dez desta estrofe. bastião, para a Igreja de Santa Justa. Em 1911-1913, o
A par da décima improvisada, parece surgir tam- templo, possivelmente de fundação medieval, foi trans-
bém o quarteto [ABCB]. Veja-se a situação de deso- formado em escola, e todas as alfaias religiosas, com a
briga que levou Brás Beirão a fazer um quarteto e transferência do culto, foram levadas para a igreja situ-
que é descrita por Ernesto Carvalho. O «don-don» ada junto ao cemitério desta freguesia, localizado a al-
acompanha a décima, mas é usado em textos car- guns quilómetros de distância. Esta, entretanto entrou
navalizados e pré-fixados11. em ruína, construindo a população há poucos anos
uma nova igreja junto à área urbana.
II. Na Igreja de São Gregório, a imagem escultórica
No Alentejo, durante todo o século xx, o quar- de São Sebastião encontra-se ao lado da imagem do
teto glosado em quatro décimas cobre e é a gran- santo padroeiro.
41
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Embora se trate de invocações diferentes, o pro- São Sebastião, o evento cai fora do dia em que se
tocolo da festa em Santa Justa e em São Gregório é festeja este Santo, já que nenhuma festa se reali-
idêntico: levantava-se uma estrutura virada para a za em Janeiro, mas todas durante o Verão, entre
fachada, onde a imagem era colocada no seu andor, Agosto e Setembro.
de costas para entrada da igreja; à noite, um a um Julgamos que a razão esteja numa outra faceta
dos pagantes, subia à estrutura em madeira, e aí re- deste santo, não profiláctica mas sim ao nível da
sava as suas décimas. Cada décima era entrecortada ligação santo-mester. Ele é também, além das be-
com a intervenção de uma banda filarmónica. Es- xigas e pestes, o padroeiro das actividades ligadas
ta prática era, e é, tanto masculina como feminina, à feitura de tapetes, havendo uma relação simbó-
facto de muita importância, já que a décima se ins- lica entre as setas, que prefiguram o martírio, e as
creve maioritariamente no universo masculino. agulhas, elemento de identificação do mester que
Mas, para melhor entendermos esta festa, é ne- os tapeteiros exercem15. Esta relação entre um san-
cessário juntar outros elementos. to, o São Sebastião, e uma actividade económica,
Durante o trabalho de campo que desenvolvemos a feitura de tapetes, tem aqui pertinência, pois em
em Arraiolos13, constatámos uma forte presença de Arraiolos esta actividade tem, desde há alguns sé-
esculturas representando São Sebastião, datáveis culos, uma forte expressão económica.
dos séculos xvii e xviii. Rara a igreja, dentro da A nossa hipótese é a seguinte: estamos na presen-
área do antigo concelho, que não tenha uma ima- ça da sobrevivência de uma festa de um mester, que
gem deste santo. Tal deixa adivinhar uma forte popularmente cultuava o seu santo padroeiro, São
presença cultual a São Sebastião, cuja festa se rea- Sebastião16. Daí a deslocação da festa para um ou-
liza a 20 de Janeiro. Na tradição portuguesa, este tro período que não o Inverno, onde o festejar de
santo liga-se à peste e às bexigas, estando a «Ben- um santo seria, em todos os aspectos, mais pobre
ção das laranjas», ou algumas orações contra a do que se se realizasse no Verão17, além de ganhar
peste, numa linha profiláctica de protecção contra uma individualidade.
aqueles males. Já o culto da Senhora da Consola- A ocorrência desta prática cultual na Igrejinha po-
ção liga-se a práticas de piedade popular e não po- derá dever-se a dois factores: a deslocação de popu-
pular, presentes a partir da Idade Moderna. lação ou a adaptação de um texto a um protocolo
As décimas em uso recorrem a um tipo de glo- de festa com um outro orago. Aliás, como dissemos,
sa corrente, como vimos, ao longo do século xviii, a povoação não deverá ser anterior ao século xviii, o
mas que não poderá ser muito anterior, pois a dé- que parece mostrar a sua arquitectura e o seu urba-
cima não se pode ter popularizado antes de 1700. nismo. Existe, inclusive, informação documental que
Importa, então, entender que prática cultual te- comprova uma deslocação populacional de Vale do
mos em Arraiolos, que grupos a mantiveram e por- Pereiro e de são Gregório para a Igrejinha.
que tem sobrevivido. Portanto, a presença da décima espineliana no
O louvar ou pagar promessas com canções é co- município de Arraiolos mostra um formulário mui-
mum a grupos de fracos recursos económicos, sen- to próximo ao que vimos ter sido utilizado por po-
do corrente a realização de romarias onde pasto- etas do mesmo período, o século xviii, em outros
res não detentores de rebanhos pagavam as inter- locais do Alentejo: um mote de um só verso desen-
cessões em versos. volvido por uma só décima. Fica em aberto se estas
É afirmado também, por historiadores locais, seriam memorizadas, como hoje, ou improvisadas,
que a origem da povoação da Igrejinha não é an- o que nos parece ser o mais provável.
terior ao século xviii, tendo sido formada por gen-
tes que se deslocaram das freguesias de São Gre- III.
gório e Vale do Pereiro14. Surgem, também, dois outros formulários que
Um elemento estranho é o porquê do culto a um empregam a décima. Falamos das décimas silvadas
santo que ou é secundário ou, nos dois casos de e do rol de quadras.
42
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
O rol de quadras é, simplesmente, um conjunto de A leitura desta fala, ou de outras, mostram uma
décimas, em número não inferior a quatro, e, quan- fixação que está, nos três primeiros versos, entre
do superior, deverá em ser múltiplos de quatro: oito, o romance e o texto não versado, o último ver-
doze, dezasseis... Trata-se de um conjunto de estrofes so. Só que esta fixação está errada. Muito do tex-
apenas relacionáveis ao nível do conteúdo, sem ne- to deste auto é construído em quartetos ou em dé-
nhuma outra obrigação. cimas. Vejamos o mesmo texto, mas agora fixado
Já as décimas silvadas, pelo contrário, não tendo correctamente
um limite ou um número certo de estrofes, têm que
obedecer a uma norma de construção: são obriga- Eu sou o Sol brelhante,
das ao uso de um ponto preso18. Ou seja, o último que a todo o Mundo dou luz,
verso da estrofe será o primeiro da estrofe seguin- Deu-me esse poder Jasus,
te, o que lhe dá também uma continuidade na rima. por eu ser o mais constante.
Significa isto que recorrem a uma técnica chamada Sou dos astros dominante,
leixa-pren. Uma silva. dou a tudo claridade.
Consiste m’nha vontade
IV. todos os astros e resplendores,
Vamos deixar de lado as chamadas «Brincas» ou todos os campos e flores
«Brincadeiras» – teatros populares feitos durante o estão por minha autoridade.22
Entrudo, que recorrem à décima como estrofe para
os seus fundamentos, e que não são mais do que as A correcta fixação da estrofe mostra que esta-
cegadas, localizáveis um pouco por todo o Alentejo, mos na presença de décimas espinelianas usadas
com ou sem contra-dança –, para nos centrarmos, em textos ligados ao teatro.
ainda que sumariamente, nos chamados «Bonecos Mas os bonecreiros de «Santo Aleixo» não re-
de Santo Aleixo», a mais representativa forma de corriam apenas à décima engajada no século xviii.
sincretismo entre os modelos de uso da décima do Eles vão recorrer também à décima em uso a par-
século xviii e de finais do século xix. tir de finais do século xix: a décima como glosa
Não queremos entrar na polémica das origens de quarteto.
materiais destes bonecos, que aqui pouco interes- Os autos e outras peças menores (como os «baili-
sa. Importa-nos, isso sim, os textos, que conside- nhos») eram entrecortados com improvisos acom-
ramos mal fixados ao nível das estrofes19. panhados à guitarra. E era desses improvisos, se-
Num dos mais belos autos representados por es- gundo António Joaquim Talhinhas, último mestre
tes bonecos, o Auto da criação do Mundo20, quan- bonecreiro, que vinha muito do dinheiro que ga-
do o Sol e a Lua entram em cena, o Sol diz nhavam23. Esses improvisos eram feitos a partir do
fado corrido(?), mas também no mouraria, sendo
Eu sou o Sol brelhante, que a todo o Mundo a estrofe usada a décima submetida ao quarteto e
[dou luz, não a décima solta ou submetida apenas a um só
Deu-me esse poder Jasus, por eu ser o mais verso, como seria usual se usassem um improviso
[constante. que se mantivesse desde o século xviii.
Sou dos astros dominante, dou a tudo claridade. Assim, os «Bonecos de Santo Aleixo» mostram
Consiste m’nha vontade todos os astros uma persistência e uma adaptação da décima, que
e resplendores, todos/ absorve dois momentos da história desta e do seu
os campos e flores estão uso: a presença arqueológica do teatro setecentis-
por minha autoridade.21 ta e a modernidade do fado.
43
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
NOTAS
1 Estas três fontes são dadas na ínte- Cada dia! ros, mas também sabemos que popular-
gra em anexo. Filho da Virgem Maria, mente a Senhora do Rosário é a invo-
2 Sobre as origens de Messejana da Que Deus Padre cá mandou, cação das confrarias ligadas aos negros.
família do lado paterno de Alma- E por nós na cruz passou Agradecemos ao Professor Doutor Ví-
da Negreiros, veja-se Paquete 1993- Crua morte. tor Serrão as informações prestadas.
1995: 11-17. Ver também Ambrósio [...] 17 Deve-se chamar a atenção para o fac-
1979: 17-21. Lima 1942: 102-104. to de serem as freguesias de Igreji-
3 Alcunha que lhe adviria de uma hér- nha e de São Gregório, na primei-
nia intestinal, ou quebradura. Ver também interessante nota de ra metade do século xix, as maiores
4 Conseguimos reunir seis destas notí- D.ª Carolina Michaelis de Vascon- produtoras de gado lanígero, o que
cias, que damos em anexo. Não pu- celos inserta no segundo volume do é relevante, sendo a lã a matéria-pri-
blicamos o texto original de Almada Cancioneiro da Ajuda [Vasconcelos ma fundamental na produção de ta-
Negreiros, porque Leite de Vascon- 1990 vol. ii: 907n1]. petes, Rivara 1985: 55.
celos o reproduz na íntegra, omitin- 12 Ver c. d. «No Jardim do Mundo», 18 Ponto significa verso.
do embora o autor. gravação feita em Igrejinha, 5. 19 Muito do teatro popular, ou para
5 Damos em anexo o capítulo que usá- 13 Em colaboração com a Dr.ª Ana Pa- bonecos, no século xviii recorria à
mos e que é sobre poetas populares. gará. Infelizmente, por desinteresse décima espineliana, à mistura com
6 Esta notícia foi incluída na mono- da autarquia de Arraiolos, este pro- outras estrofes, como o quarteto.
grafia de Vale do Peso, Subtil 2001: jecto foi abandonado. 20 Uma leitura deste auto poderá abrir
88-98. 14 Agradeço ao Dr. Manuel Branco as perspectivas de análise para os mo-
7 Alguns investigadores consideram informações prestadas. vimentos sociais nos campos do sul.
este improviso como um fragmento 15 Em Jorge Tavares, Tavares 1990: Sobre este assunto ver Lima 1999, em
de um quarteto de repetição glosado 213, surge : «Tapeçarias, Fabrican- particular os testemunhos 1, 2 e 3, em
por quatro décimas, o que é errado, tes de – S. Francisco de Assis; S. Lu- que damos especial atenção à expul-
ver Coelho 2002.Janeiro.28. ís, rei de França; S.ta Bárbara; S.ta são de Adão e Eva do Paraíso Real. A
8 Veja-se o entremez setecentista Gra- Genoveva; S. Sebastião (porque é re- religiosidade popular e os movimen-
de da freira, onde várias persona- presentado eriçado de flechas, que se tos sociais não foram até agora alvo
gens glosam motes de um só verso assemelham às agulhas de executar de uma relação profunda, e este auto
em uma só décima, e onde surgem tapetes).» é para tal da maior relevância.
protocolarmente as expressões «[...] Em Juan Ferrando Roig. PBRO en- 21 Recolha de Michel Giacometti, fixação
lá vai mote [...].» ou «[...] venha o contramos: «Patrocinio de los san- textual de Machado Guerreiro. Segui-
mote.», Barata 1983: 452-487. tos mos o c. d. Bonecos de Santo Aleixo,
9 Informação de muito interesse, já Agujeteros: San Sebastián, Nativi- vol. i, editado pela Strauss, em 2000,
que é raro encontrarem-se mulheres dad de la Virgen. com textos de Michel Giacometti e Fer-
a glosarem quartetos em décimas. [...] nando Lopes-Graça, com a colabora-
10 Nome dado aos quartetos que se Alfilereros: Cf. Agujeteros.» ção de Gustavo Marques e de Macha-
cantam nas modas. Por último, em Louis Réau é afirma- do Guerreiro. Infelizmente, esta reedi-
11 Veja-se Pires 1986: 12-15, onde sur- do: «Sébastien (20 Janvier) ção não recupera a beleza e informação
gem dois textos em «don-don», um [...] gráfica que as edições dos Arquivos So-
dos quais, “Pelo signal” de Junot, II. – Culte noros Portugueses deram aos seus tra-
deverá ser contemporâneo às inva- Les flèches, qui avaient été balhos. Veja-se o caso da reedição dos
sões francesas. Este texto sobreviverá l’instrument de son supplice et de- cinco volumes da Música Regional Por-
no Nordeste brasileiro, onde foi re- vinrent son attribut, lui ont valu le tuguesa, os famosos discos em capa de
colhido por Câmara Cascudo, Cas- patronage de nombreuses corpo- serapilheira.
cudo 1984: 99-100. Esta fórmula es- rations : les archers et arbalétriers, 22 Mas o texto está correctamente fixado
trófica é muito antiga no Brasil: o Pa- les tapissiers parce que les flèches em Bonecos de Santo Aleixo s. d.
dre José Anchieta [1530-1597] com- dont il était hérissé ressemblaient à 23 Sobre a obra memorialista e impro-
pôs uma Oração ao Santíssimo Sa- de grosses aigulles à tapisserie, les visada de António Talhinhas, ver o
cramento, na qual usa o «don-don» marchands de ferraille parce que les trabalho algo sui generis de José Ma-
points de flèches étaient en fer.» nuel Costa Coelho, Coelho 1997.
Oh que pão, oh que comida, 16 É claro que referenciámos a existência Sobre o fado ver a quadra editada
Oh que divino manjar da bandeira da Senhora do Rosário na na página 36. Ver também Passos
Se nos dá no santo altar Casa dos 24, identificadora dos tapetei- 1999: 172-173.
44
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
A
décima, uma estrofe de suposta origem es- sempre ligada ao universo masculino. Estes impro-
panhola, marca presença na cultura popu- visos são sempre em uma só décima que desenvol-
lar do Alentejo desde a segunda metade do ve um mote de um só verso, fechando a estrofe.
século xviii. Rastreámos indícios físicos e documen- Esta fórmula, que se usa extensamente até finais
tais que atestam essa presença e o seu uso em dife- de oitocentos, ainda hoje é localizável um pouco
rentes contextos. por este Portugal meridional. Ainda se encontram,
Persistem, no entanto, aspectos por explicar. com alguma facilidade, textos antigos, quase to-
Como se introduziu a décima nos gostos popula- dos aprendidos, que recorrem a este modelo2.
res desta região? Foi o ficar fora de moda (noção Mas estes improvisos não esgotam o uso da dé-
problemática e eivada de nonsense) entre os poe- cima nesta região. As décimas em louvor a São Se-
tas ditos de corte que levou o pequeno soneto a bastião ou à Senhora da Consolação, em Arraio-
entrar nos gostos populares? Terá sido através de los, mostram um modelo que se encosta ao acima
textos de cordel, de temática charivaresca, ou por descrito, o que deixa antever possíveis protocolos
via de peças de teatro que tal sucedeu?, ou a partir de improviso nestas festas.
dos outeiros conventuais? Ou, por outro lado, de- Mas as dissonâncias não terminam aqui. O uso
veremos procurar essa emergência a partir de Es- da décima em grupos estróficos, com ou sem lei-
panha, acompanhando os movimentos artísticos e xa-pren, ainda localizáveis numa área cuja fron-
a feitura de encomendas a pintores espanhóis me- teira mais meridional não ultrapassa(?) a serra de
nores que decoraram as nossas igrejas nos sécu- Portel, abrem perspectivas de abordagem que im-
los xvii e xviii1? A poética popular sobrevivente porta tomar em conta. Um atlas que construa as
mostra que fomos influenciados pelo Siglo d’Oro áreas que ocupam diferentes tipos de estrofe e de
e não pelo modelo italiano. Designações como pé metro continua por fazer. Sem esta ferramenta de
para verso e verso para quarteto caminham nesta trabalho, muito do que é dito sobre poesia popu-
direcção. Mas este é um território que nunca foi lar não passa de um conjunto de afirmações sem
percorrido pelos investigadores em Portugal, pois grande sustentabilidade.
tem-se olhado a criação poética popular como al- Por último, os fabulosos «Bonecos de Santo
go tão natural que se tem esquecido a existência Aleixo». Falta ainda a edição de um trabalho pro-
de uma arquitectura teórica, cuja compreensão se- fundo sobre estes, que cruze a antropologia e a
ria fundamental para abrir perspectivas muito in- sociologia, a história das mentalidades, a geogra-
teressantes de trabalho. Aliás, seria axial pensar o fia... E a primeira coisa a fazer seria uma correcta
poeta e a poesia popular a partir de outros olhares fixação dos textos. Seria também importante ava-
disciplinares, como por exemplo da história da ar- liar as implicações destes textos na cultura popu-
te e da história agrária. lar. Veja-se o caso do trabalho editado há cerca de
Se muitas dúvidas nos acompanham, algumas cinco anos, da autoria de Alexandre Passos3, que
45
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
embora compile muita informação sobre estes bo- Nas últimas décadas de oitocentos, uma décima
necos, não consegue criar um sério entendimento renovada surge na região meridional. Mas agora
do fenómeno, além de deixar esquecidas figuras encontramo-la subalternizada ao quarteto que lhe
importantes neste processo de refolclorização, co- serve de mote e que a usa em grupos de quatro –
mo é caso do Arquitecto Gustavo Marques4. ficará localmente conhecida como quadra. Produ-
A importância dos «Bonecos» para a história da déci- to de uma experimentação poética feita por operá-
ma é grande. Neles se embebe, primeiro, o uso de uma rios na cidade de Lisboa, aqui chegará não só atra-
estrofe seguindo o modelo barroco e, depois, seguindo vés deles, mas será sempre a sua canção, uma can-
o modelo romântico, que importa agora seguir. ção de engajamento social. Falamos do fado.
NOTAS
1 Confronte-se o texto do historiador Mundo» a gravação número 4, on- cia de Alexandre Passos em Zurba-
de arte Vítor Serrão sobre a presen- de Joaquim Marques, de Selmes (Vi- ch 2002: 175, mas continua a deixar
ça de pintores espanhóis em Portu- digueira), desenvolve o mote “Cristo de lado figuras importantes, como é o
gal, particularmente no Alentejo, Ser- na ponta dum corno” numa só déci- caso Machado Guerreiro. Só a edição
rão 1986. Parece-nos que, ao nível do ma, que julgamos não ser da sua au- de um álbum fotográfico com as ima-
popular, se criou uma forte tradição toria, mas sim de Ambrósio de Vale gens do Arquitecto Gustavo Marques
enraizada nos modelos culturais espa- do Peso. – que pensamos estarem hoje no Mu-
nhóis tendo origem no Siglo d’Oro. 3 Passos 1999. seu Nacional de Arqueologia – seria
2 Veja-se no c. d. «Vivo no Jardim do 4 Claro que conhecemos a referên- um contributo importante.
PARTE I
DOIS
FADO: 1910
48
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
49
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
O
S cerca de vinte jornais dedicados ao fa- maioria, os intervenientes desta criação, ainda estão
do fundados a seguir a Abril de 19101 são vivos na década de dez de novecentos. Os que entre-
unânimes num aspecto: esta canção, na sua tanto morreram são testemunháveis por outros que
fase moderna, nasceu por volta de 1860. os conheceram, com quem cantaram ou tocaram.
Foram seus fundadores João Maria dos Anjos, na É nestes registos que é necessário centrar a investi-
guitarra, e José Maior, Damas, e outros, nos fados. gação sobre o fado. Sem uma investigação séria em
O primeiro abriu vastas possibilidades musicais à torno destas figuras, a história do fado estará sem-
guitarra. Os outros reformaram os fados, dando pre por fazer. No fundo, é imperativo retomar o tra-
importância aos textos memoriais e introduzindo balho de Pinto de Carvalho, Tinop, suportado pelo
outras temáticas nos poemas. método avançado por Alberto Pimentel.
A partir desta reformulação, para não chamar Uma análise dos textos usados e da sua evolução
fundação, o fado aperfeiçoa-se e torna-se a canção mostra que algo de único se passou entre 1877 e
da consciência da classe operária. Quase podería- 1918. Os poetas populares, ao mesmo tempo que
mos dizer que a sua reformulação foi propositada. deixam de usar exclusivamente o quarteto, passan-
A leitura dos periódicos parece indicar tal facto. do a incorporar a décima, iniciam um processo de
Intitular esta parte «Fado: 1910» prende-se a um complexificação textual, que ao nível do improviso
facto para o qual a leitura dos periódicos coevos é vertiginoso. Esta, se poderá ter tido na sua génese
nos alertou: a importância da implantação da Re- um acaso, em breve se tornou algo único no panora-
pública para a canção operária. Não só durante a I ma da poesia popular portuguesa. Não conseguimos
República se editam mais de uma vintena de jornais identificar paralelo algum para este fenómeno.
dedicados exclusivamente ao fado, como em todos Mas o fim da I República, em 1926, e o início da
eles é referido o significado desta trova para o des- Ditadura Militar, o advento do disco2, o início da
pertar da consciência operária, social. censura, e até mesmo a obrigatoriedade da profis-
Não importa aqui inventariar e contextualizar as sionalização, vão matar o fado como canção operá-
diferentes origens, mais ou menos arroladas, do fa- ria, levando a que esta fórmula se marginalize, as-
do. O nosso trabalho segue um caminho diferente: sim como ao término do que ele tinha de mais es-
assumimos que o fado é uma canção operária, e ire- pantoso: a experimentação textual.
mos fazer um levantamento de diferentes estrofes e
mostrar como houve, desde muito cedo, uma pes-
quisa com o objectivo de estruturar uma estrofe, ou NOTAS
estrofes, de grande perfeição ao nível da rima e do
metro, espelho de uma grande vontade de saber. 1 Data da fundação do primeiro(?) jornal dedicado ao fado, O Fa-
Para este trabalho, as obras clássicas sobre a cha- do.
mada trova nacional, quer a História do Fado, quer 2 As primeiras gravações datarão dos primeiros anos de novecentos
a Triste Canção do Sul, são fontes secundárias. Pre- e terão, possivelmente, como protagonistas actores de teatro e pro-
tendemos trazer à luz a voz daqueles que estiveram fessores de guitarra. Acreditamos que poucos nomes do movimen-
directamente ligados ao processo de criação do fa- to que trabalhamos tenham gravado. Basta confrontar os nomes
do. Assim, as diferentes entrevistas ou textos alusi- dos jornais com os nomes nas etiquetas.
50
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
N
O jornal Canção Nacional, publicado entre Embora Barata Dias não nos apresente datas, tal
1927 e 1928, na última página de todos os actuação deverá passar-se em finais da década de
números editados (que foram muito poucos!) vinte do século passado4.
surge, entre vários anúncios, o de uma taberna. Diz Em Notas de música, o mestre de guitarra portu-
guesa António Parreira e o maestro Jorge Macha-
Este belo cantador, do, atribuem a autoria da música do fado Baca-
Hoje sócio de Deus Baco, lhau a José António da Silva, informando que este
Nunca perdeu o valôr é cantado em sextilhas5.
Nem foi vendido a pataco! Ruben de Carvalho, em Um Século de Fado (tex-
JOSÉ BACALHAU to que amplia um trabalho anterior de 19946), ao
Cantador e taberneiro – Fado e Vinho listar «Cento e trinta e sete fados clássicos» atri-
mais popular casa de Alcantara bui, também, a autoria deste, embora com interro-
preferida por toda a população do Bairro gação, a José António da Silva, explicando
Rua Gilberto Rola, 21 – Lisboa
exótico. É esse mesmo exotismo que está presente Andar à chuva e aos ventos,
quando Guinot, Carvalho e Osório afirmam Quer de verão, quer de inverno
Parecem o proprio inferno
O Fado Duplicado e Triplicado, as glosas de ri- As tempestades!
ma cruzada, a aposição de versículos foram al- Don, don.
gumas das muitas «habilidades» que ao longo
do final de Oitocentos e primeiras décadas des- As nossas necessidades
te século entretiveram os poetas populares e de- Nos obriga a navegar,
ram origem a uma vastíssima produção de litera- A passar tempos no mar,
tura de cordel. Tratando-se embora as mais das E aguaceiros.
vezes de puros exercícios formais, há que não es- Don, don.
quecer que sobre estes exercícios de estilo impen-
dia a obrigação de se prestarem a ser cantados, o Passam-se dias inteiros
que introduzia obrigações do ponto de vista das Sem se poder cosinhar;
tónicas e das acentuações. A título de exemplo, Nem tão pouco mal assar
o verso alexandrino que desfrutou de grande po- Nossa comida!
pularidade até aos anos 30-40 é particularmente Don, don.
exigente: não basta que tenha as doze sílabas de
regra para poder ser cantado na melodia de um Arrenego de tal vida,
Fado alexandrino tradicional: é necessário que as Que nos dá tanta canceira!
tónicas estejam certas do ponto de vista poético, Sem a nossa bebedeira
pois só assim correspondem à melodia.14 Nós não passamos!
Don, don.
Importa, pois, rastrear esta transformação tex-
tual. Para tal, temos que recuar antes da nossa da- Quando socegados estamos
ta limite, o ano de 1860. No rancho a descançar,
Então é que ouço gritar:
IV. Oh! leva ariba!
Segundo diferentes autores, o fado mais antigo, Don, don.
sobre o qual foram decalcados todos os outros, é
«A vida do marujo». Aqui se funda a hipótese da O mestre logo se estriba,
génese do fado ser uma canção de marinhagem15. Bradando d’esta maneira:
Devemos ter em atenção que, quando se diz que é Moços, ferra a cevadeira
neste fado que está a origem da canção de Lisboa, E o joanete.
estamos a falar somente do aspecto musical, pois Don, don.
segundo diversos autores é sobre este fado que é
construído o corrido, considerado o pai de todos Também dá o seu falsete
os estilos. Não podendo mais gritar:
Mas o que é «A vida do marujo»? O texto é o Cada qual ao seu logar
seguinte Até ver isto.
Don, don.
Triste vida a do marujo,
Qual d’ellas a mais cansada. Mais me valera ser visto
Por’mor da triste soldada, Ë porta d’um botequim,
Passa tormentos, Do que ver agora o fim
Don, don.16 Da minha vida!
54
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
O chamado fado alexandrino, que é um me- E enquanto a procissão dos grilhetas da dor
tro e não uma estrofe, como erradamente alguns Desliza com horror, sem ter onde se acoite;
autores o definem, recorre a diferentes estrofes, Há forçados tambem que trabalham de noite
umas mais populares, outras menos, como é o Regando engenhos mil com bagas de suor.
caso do soneto. O que o diferencia é o núme- P’ra o escravo a noite é pranto e riso p’ra o Senhor
ro de sílabas: doze. Veja-se este exemplo de Ju- Porque tem oiro vil, carruagens, amantes!...
lio Guimarães São esmagados os bons e vencem os tratantes!...
Um lado oiro, alegria... outro a turba exaurida
Á noite, quando o céo é lugubre e funereo, Sorvendo todo o fel das botas cruciantes.33
Todo feito de sombra e estrelas vacilantes;
Vagam almas sem lar... os filhos do mistério Entretanto, outros tipos de estrofes e de esque-
Sorvendo todo o fel das botas cruciantes. mas rimáticos são introduzidos no fado. Um dos
exemplos mais interessantes é o fado com versícu-
A poalha do sol desfez-se em anciedade... lo, (o duplicado(?), e cujo autor é Avelino de Sou-
A noite estende o luto... um luto sem luar... sa) como é o caso deste fado de Luiz de Souza po-
Só ficam peitos mil, baixinho a soluçar pularizado por Alfredo Marceneiro
O éco de um gemido e a dor de uma saudade...
Fugindo loucamente a luz, a claridade, Naquele dia de Entrudo, | Lembro bem
O vicio, a podridão retomam seu império; Um intrigante “pierrot”, | Da cor dos ceus
As consciencias vis, mais negras que o siderio, Um ramo de violetas, | Pequeninas,
Começam na missão de manchar a pureza... Á linda morta atirou, | Como um adeus.
Campeia livre o mal, a miseria, a tristeza,
Á noite, quando o céo é lugubre e funereo! Passa triste o funeral, | É duma virgem
Mas ao povo que lhe importa | Aquele entêrro,
Quanto poeta assim faminto como eu sou Que a morte lhe passe à porta, | Só por êrro,
Tomba sem provar pão, com a ventura ausente; Em dia de Carnaval | E de vertigem.
Tristonho como um réo, que dolorosamente, A hora é de bacanal, | Côr’s a tingem,
Morre na própria cruz dos sonhos que sonhou!... Por isso se alheia a tudo; | Num vai-vem
Quanta mulher gentil que a precisão forçou Farto de estar carrancudo | E sem vintem
A leiloar amor... procura viandantes! Anda êle um ano inteiro, | Bem contado,
Quanta creança chora em gritos lacinantes E assim ‘stava galhofeiro | E tresloucado
Por sentir fome e dor no negro viver seu, Naquele dia de Entrudo. | Lembro bem
Viver ainda mais negro que o próprio céo,
Todo feito de sombra e estrelas vacilantes; O cortejo lá seguiu, | Tristonhamente,
Indif’rente aos mascarados | Foliões,
Mas como a vida tem contrastes poderosos; Que par’ciam vitimados, | Corações
Enquanto a legião dos pobres desgraçados Dum eterno desvariu, | Impenitente.
Chora na solidão... pelos salões doirados O meu olhar, então, viu. | Amargamente,
Dos palácios e clubs gargalham os ditosos... Um caso que o intrigou: | Oh! Olhos meus!
Lá dentro a vida a rir; cá fora angustiosos Quando o cortejo chegou | Entre plebeus
Labios a suplicar a paz de um cemiterio! Á porta do cemitério, | Taciturna,
Lá dentro Chopin geme em um velho psaltério, Seguia o carro funerário, | Junto à urna,
59
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Um intrigante “pierrot”, | Da côr dos ceus. Ë luz da tosca lanterna, | chora a esposa idolatrada;
Abaixo a másc’ra! – gritei | Com energia – Abraçada ao filho querido
Quem és tu grosseiro que ousas | profanar, Para casa se dirigia | já farto de trabalhar
Perturbar a paz das lousas, Tumular? Pensando na esposa querida
E o pierrot disse: – Nem sei! – | Que não sabia!– Quando no caminho encontra | um amigo que o convida
Sei apenas que a adorei | Um certo dia P’ra numa taberna entrar.
Num amor todo grilhetas | Assassinas. Instado pelo amigo, | em vão tenta recusar
SE não vim de vestes pretas | Em ruinas, Na espelunca cisterna
Visto negro o coração | Irresoloto. Esgota o copo e outro copo |até que esquece a esposa terna
E atirou sobre o caixão, | Como um tributo, Já depois de embriagado
Um ramo de violetas, | Pequeninas. Adormeceu encostado | ao repelente balcão
Da mais imunda taberna.
Os guardas não permitiram, | Com razão,
No cemitério a entrada | Triunfante A esposa em casa chora, | e enquanto isto se passa
Aquela dor mascarada, | Aquele amante, Num copioso lamento
Cujos soluços se ouviram | De paixão. Porque o marido não vem | p’ra comprar o alimento
Disseram-me então que o viram | Em aflição, Com a sua féria escassa
Que o pobre amante tirou | Dos olhos seus Vai procura-lo e encontra-o | no meio da gente devassa
A másc’ra que o disfarçou | E fê-los réus; Seu esposo estremecido
E num adeus, num temor, | Com humildade, Que esta servindo de escarneo, | ainda um tanto adormecido
Um casto beijo de amor, Todo saudade, Ë vil turba de devassos
Á linda morta atirou, | Como um adeus.34 Enquanto a esposa, chorando, | com o filhinho nos braços
Contempla o ébrio perdido,
Um pouco antes de 1920, é introduzido no fado
uma estrofe que vai marcar toda a década seguin- No meio dum atroz sussurro, | o ébrio acordou
te, a sextilha, dando a possibilidade de se passar E ao vê-la com o filhinho
do dístico para o trístico. Os dentes com raiva range, | e impelido pelo vinho
Esta inovação é atribuída a José António da Sil- Barbaramente a espancou
va, conhecido como Bacalhau. Até 1918, todos os Para fora da locanda, | p’los cabelos a arrastou
textos a que os fadistas recorrem são redutíveis a A pobre desventurada,
quartetos, logo a dísticos. A sextilha em uso vai re- Por fim cai na calçada | ao som duma gargalhada
duzir-se a trísticos, grupos de três versos. Tal alte- Da vil turba pouco séria
ração vai colocar problemas no acompanhamen- Enquanto ele gasta a féria | à luz da tosca lanterna
to musical, mas vai também provocar alterações Chora a esposa idolatrada
nas estrofes então mais tradicionais em uso pelos
fadistas. De novo torna a dormir | até que consegue curar
Conhecemos um texto denominado como “O A embriaguez pouco a pouco
Ébrio”, (não datado, mas será sempre posterior a Desperta, recorda a scena, | corre a casa como louco
1918) e que é retirado do que julgamos ser a capa de Quer sua esposa abraçar,
um livro de fados intitulado Oração ao vinho: ser- Mas oh! Cruel desengano, | em casa não pode entrar.
mão bachanal das festas de S. Martinho, editado pe- Seu bater não foi ouvido
la Livraria Barateira35. Esse fado, cujo autor se desco- Chama pela visinhança, | que ao vê-lo tão comovido
nhece, é apresentado como “Fado Bacalhau” O ajuda a abrir a porta.
Entrou e viu junto ao leito | a sua esposa já morta.
Ao repelente balcão, | da mais imunda taberna Abraçada ao filho querido36
Contempla o ébrio perdido
60
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
O que é certo é que, a partir da década de trin- – De bacalhau, gosto muito e de toda a maneira,
ta do século xx, a adaptação da décima ao fado com batatas ou com grelos. Mas, do fado, não gos-
Bacalhau vai desaparecer, dando lugar à sextilha to nada. Acho-o inestético, longo, maçador. Tudo
e ao quarteto. Tal deve-se a várias razões, sendo a que vejo fugir ás velhas décimas – exceção feita ao
fundamental a explosão e vulgarização do disco e duplicado e triplicado, variações interessantes cujos
da rádio, que vão standartizar o tempo de dura- versículos não adulteram as antigas glosas – enten-
ção de um fado. do que não está certo.
Desaparece, é certo, mas deixa um rasto de al- – Se o autor se antolhava necessário dizer mais, ti-
guma polémica. nha para isso o alexandrino. Escusado era pois,
Em 1922, o periódico Guitarra de Portugal fará fazer 66 versos, quando 44 já eram muitos. Não
uma série de entrevistas a figuras de interesse pa- compreendo o progresso assim, eu que me prezo
ra o mundo do fado. Nessas entrevistas, uma das de ser um homem moderno. Se um automóvel para
questões tinha a ver com as evoluções do fado. O me levar a Belem leva mais tempo do que um bur-
escritor Manuel Ribeiro, um dos entrevistados, à ro, então prefiro o jumento, visto que, a despeito
pergunta de primitivo, fica-me mais barato.40
NOTAS
1 Dias 1954. 16 Esta primeira estrofe surge em Alberto 31 Este mote surge em Carvalho 1994:
2 Dias 1954: 152. Pimentel, Pimentel 1904: 104. 98, mas sem a aposição de hemistí-
3 Dias 1954: 127. 17 Neves 1893: 101. quios.
4 José Ramos Tinhorão também partilha 18 Vasconcelos 1990 vol. ii: 907, nota 1. 32 Guinot & Carvalho & Osório 1999:
esta cronologia, Tinhorão 1994: 123. 19 Carvalho 1994: 80. 242.
5 Parreira & Machado 1999: 90 20 Pimentel 1904: 153. 33 A Canção do Povo 1926.Setem-
6 Carvalho 1994. 21 Pimentel 1903: 155. bro.24.
7 Carvalho 1999:186. 22 As lições dadas não devem esconder as 34 Guitarra de Portugal 1929.Feverei-
8 Guinot & Carvalho & Osório 1999: dissonâncias. Luis Augusto Palmeirim, ro.20.
333. Palmeirim 1891: 286, ao descrever o 35 A que tivemos em acesso em cópia
9 Brito (coord.) 1994: 146. Em 1922, seu encontro com Severa, refere que digital na Casa do Fado e da Guitar-
o guitarrista Armando Freire, Ar- ela se acompanhava a cantar – o que ra Portuguesa.
mandinho, em entrevista à Guitarra era comum – e transcreve um quarteto 36 O texto foi impresso, na divisão das
de Portugal, à questão de se tinha fa- com a rima ABCB, que é o seguinte estrofes, de forma errada, surgindo
dos seus, responde «Sim, por exem- divididas na seguinte forma: primei-
plo o fado Armandinho que fiz há 12 Quem tiver filhas no mundo ra estrofe, seis versos; segunda estro-
anos que foi o meu primeiro fado, o Não falle das desgraçadas, fe, oito versos; terceira estrofe, no-
do civico que o sr. Bernardo Ferreira As que são hoje perdidas ve versos; quarta estrofe, 10 versos;
aplicou a uma revista, o fado Fontal- Tambem nasceram honradas. quinta estrofe, onze versos. Acontece
va oferecido ao conde d’este nome, e que a divisão está errada, pois se tra-
ultimamente um fado muito em vó- Este quarteto mostra a dificuldade ta de um quarteto glosado em quatro
ga para José Bacalhau cantar as suas em estabelecer padrões de versifica- décimas, como na lição mostramos,
produções poeticas.» [Guitarra de ção enquanto não houver um sério com a aposição de hemistíquios no
Portugal 1922.Novembro.04.] estudo sobre a poética do fado. mote no primeiro e terceiros versos e
10 A Guitarra de Portugal 1922. Se- 23 Carvalho 1994: 100. nas décimas na aposição de hemistí-
tembro. 02. 24 Carvalho 1994: 101. quios nos primeiros, terceiros, quin-
11 A Guitarra de Portugal 1923. Ju- 25 O Pimpão 1897.Janeiro.03. tos, sétimos e nonos versos, cons-
nho. 02. 26 A Lyra do Fadinho, n.º 13, 1877, truindo-se assim uma alternância en-
12 Pimentel 1904:128-129. pág. 19. tre versos curtos e longos.
13 Verbete Fado, da Grande Enciclopé- 27 Não conseguimos localizar este nú- 37 Guitarra de Portugal 1933.Dezem-
dia Portuguesa e Brasileira. mero na Biblioteca Nacional de Lis- bro.22.
14 Guinot & Carvalho & Osório 1999: boa. A colecção está incompleta, as- 38 Guitarra de Portugal 1933. Julho. 09.
336-337. sim como a de A Pimpona, esta a 39 Guitarra de Portugal 1922. Setem-
15 Carvalho 1994: 42-44. Aliás, esta ori- partir de 1876. bro. 02.
gem é puramente especulativa, nada 28 Ver referência em Pimentel 1904: 40 Guitarra de Portugal 1922. Agosto.
aponta a origem do fado como uma 69. 19.
primitiva canção de marinheiros, um 29 Carvalho 1994: 193-192. 41 Guitarra de Portugal 1922. Janeiro.
género portuário. 30 O Faduncho 1918.Junho.30. 17.
63
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
N
O último quartel do século xix, um conjun- Até ahi haviam as cantigas de desafio sobretudo entre
to de poetas populares começam a proceder o Maximo dos Terramotos e o João Patusquinho. Pois
a alterações nos textos canónicos em uso no bem: mudamos tudo isso que era banal e principiei eu
fado, mercê de condições sociais, culturais, laborais e com o canto da moralidade, o canto às flores1, final-
políticas específicas, levando a que os textos se com- mente o canto que illustra o povo e que lhe abre os
plexifiquem. A partir da segunda metade dos anos olhos no meio da analphabetice em que chafurdeia...2
vinte, a dinâmica desta intervenção sofre uma inver-
são, também, por razões sociais, políticas e econó- Esta postura de educação do povo está presente
micas, encontrando-se na década seguinte morta ou em todas as entrevistas da década de dez e dos pri-
condenada à marginalidade. meiros anos da década seguinte. Avelino de Sou-
sa dirá em 1919
II.
Uma das características dos periódicos fadistas, [...] é a trova da demolição do Preconceito, a can-
que emergem a partir de 1910, é dedicarem gran- ção que é o simbolo da alavanca do Progresso, o
de atenção às figuras ligadas ao fado, dando rele- fado da propaganda social que só nos traz ensina-
vância à história deste poema e das sociabilidades mentos, preparando-nos o cerebro para as gran-
a ele inerentes. Procuram, pois, estruturar histori- des concepções do Ideal, educando-nos o espirito
camente a sociedade fadista. d’uma maneira ponderada e suasori[sic], sim, mas
A partir destas informações, ficamos a saber que de modo que acorde energias másculas, fortes, vi-
dividem a história do fado, até à altura, em três brantes, para a conquista do amanhã.3
momentos: o primeiro que vai até à morte de Se-
vera (1846); o segundo até cerca de 1860; e o ter- O mesmo Avelino de Sousa, em 1932, reafirma-
ceiro a partir de 1863, quando, em Cascais, João rá esta posição, mas agora numa forma mais inti-
Maria dos Anjos [n. 1836 – m. 1889] e João Patusqui- mista e devedora
nho [n. 1844 – m. 1922] actuaram. Considera-se essa
actuação como o momento da modernização do Tudo o que sou, tudo o que valho – pouco ou mui-
fado. A esta última data deverá ser acrescida uma to – devo-o ao fado. As minhas relações com os
outra, a apresentação de guitarras portuguesas em grandes artistas, com os grandes escritores, o meu
1873 no Casino Lisbonense. Assume-se aqui o ver- apêgo ao estudo, a ânsia sempre insatisfeita de lêr
dadeiro início do fado moderno. muito, de aprender, de aumentar os meus conheci-
Assim, a partir da década de sessenta, o fado inicia mentos, tudo nasceu com o Fado, dessa melódica e
uma revolução, não só musical, mas também poéti- sempre querida trova, que comecei a cantar dos 16
ca. Isto mesmo nos diz José Maior [n. 1847 – m. ?], em para os 17 anos, nas cégadas.4
64
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
psychologia da velha canção e quanto ela está arrei- Chegaram a argumentar-me com essa espanto-
gada no animo do povo, a burilaram carinhosamen- sa incoerência dos Fados patrióticos, sem se lem-
te, retocando-a, aperfeiçoando-a, fazendo d’ella a brarem dos que já para aí correm, em quadras de
trova educadora, por meio da qual se confraternisa, redondilha e verso heróico, entrelaçados na foice
se chora e ri, se combate pelo Ideal e se condemna e e no martelo.10
immoralidade, a tyrannia, a impudicia!7
considerando que
Fazendo evoluir a letra, modificando a décima,
aperfeiçoando os conhecimentos de verso e metro, As costureiras dos Bairros de Lisboa, caixeiros
tornando assim os fados perfeitos, promove-se um e operários, todos reunidos à volta duma dessas
afastamento entre o que vão chamar fado canção personificações do sacrifício e da paciência que
e fado-alcouce é o «maestro» de córos, verão a pouco e pouco
iluminar-se o cérebro, aligeirar-se a alma, afor-
Ao Fado tudo se canta e tudo se diz! Há no seu mosear-se o espírito, só com a prática fraternal e
amago: Alma, Sentimento, Energia, Coração! (E’ bela do canto coral, com as noções de beleza mu-
bom não confundir este coração com outras miu- sical que a mesma prática faculta.
dezas que abundam no fado-alcouce...).8 Muitos são hoje os orfeãos espalhados por êsse
país fora. Lisboa também os vai formando, o que
O que vimos em torno do fado Bacalhau mostra essa é seguro indício de melhoria no grau da sua edu-
mesma necessidade de afastamento, que aliás será cen- cação popular. Mas isso não basta. Ao «sistema»
tral no fado como canção de intervenção social. de organização do Fado, dos seus periódicos e
«caldos de cultura», suas emissões radiofónicas,
Vemos, pois, o fado tornar-se numa expressão é necessário responder com o «sistema» da orga-
de grupo, numa fórmula cada vez mais ampla, po- nização do canto coral.11
sicionando-se aí a vontade de tornar o fado a can-
ção nacional, porque é cantada pelo povo e está ao Contra a prática fadista, associativa e politi-
serviço do povo. camente engajada, emerge um modelo educativo
Mas o fado será atacado como canção de venci- e germanófilo, aparentemente próximo de Anto-
dos, usando como mote uma conferência de An- nio Arroyo12, mas tão distante nos objectivos. E
tonio Arroyo feita em 1909 na universidade de não nos devemos esquecer que costureiras, cai-
Coimbra, intitulada O canto coral e a sua fun- xeiros e tipógrafos eram todos operários13.
ção social9. Importa trazer aqui o facto que Luis Moita,
Esta comunicação é fundamental para se enten- além de escritor e olisípógrafo, é um industrial
der todos os ataques que o fado sofrerá futura- tipográfico (o que acumula com a presidência
mente. Importa, inclusive, cruzar esta conferência do Anuário Comercial), pelo que está em cons-
com O fado e os seus scensores (1912), e com O tante contacto com um dos grupos mais empe-
Fado, canção de vencidos (1936). Nestes textos nhados no fado como canção social e onde as
não se discute somente o fado. O que se discute ul- ideias sociais imperam: os tipógrafos e litógra-
trapassa em muito este cantar. Discutem-se mode- fos. Para estes convém construir uma estraté-
los de sociedade e qual o papel do operário, e da gia de «sã» ocupação de tempos livres, posi-
sua formação, nesses mesmos modelos políticos, cionando-se a música como um óptimo meio
sociais e económicos. quer de ocupação, quer de manipulação social.
Luiz Jesus Moita [n. 1894 – m. ?], atento aos peri- O negativo disto será, mais tarde, a canção re-
gos políticos das ideias propagandeadas pela can- gional portuguesa e a actuação de Lopes Gra-
ção social para um estado emergente, ditatorial e ça junto do Coro da Academia dos Amadores
fascizante, alerta de Música.
66
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Eu, que á minha humilde mesa de trabalho tantas custa do suor do pobre, da eterna besta de carga,
trovas, mais ou menos incorrectas, tenho produzi- jungida ao carro triumphal do Rei-Milhão! Estas
do, é que posso, indubitavelmente, explicar-lhe to- são as canções sociaes, em redondilha ou em ale-
das as diversas cambiantes porque passa, á luz ce- xandrino, – que para tudo o Fado tem variantes
rebrina da inspiração, a mimosa trova. O Fado que o doutor desconhece – onde ha brados de re-
percorre toda a gamma social! volta, gritos de desespero, clamores d’alma, so-
Hoje, é o trovador humilde, que não escreve, e me breexcitações do espirito em que o protesto resal-
pede para fazer-lhe uma canção, que elle cantará na ta forte, viril, austero e justo, contra as torpezas,
festa a favor de uma viuva cheia de filhos; e n’este mais do que muito condemnaveis, do Existente!
caso, a musica é o Fado propriamente dito, dedi- Ao Fado tudo se canta e tudo se diz! Há no seu
lhado em tom menor, acompanhando o verso apro- amago: Alma, Sentimento, Energia, Coração! (E’
priado, que é um mixto de revolta e amargura pelas bom não confundir este coração com outras miu-
desegualdades sociaes. Ámanhã, é outro que deseja dezas que abundam no fado-alcouce...).17
cantar as delícias do hymineu e brindar os noivos,
Não devemos esquecer que estes operários e operá-
Um parsinho que ajoelha e que se vae casar rias estão implicados numa profunda transformação
social e são confrontados com um quotidiano onde
como diz Julio Dantas na Ceia dos Cardeaes. En- a revolução e a conspiração, a par de uma profun-
tão, a musica é um mixto de amor e alegria, e já pó- da miséria, estão em cada esquina. Avelino de Sou-
de cantar-se n’um lindo fado-marcha, saltitante e vi- sa, João Black ou José Carlos Rates18 empenham-se
vo, em que os tonicos ridentes do verso se harmoni- nessa mudança. Estudarão, cantarão, fundirão tex-
sam delicadamente com a alacre vibração da guitarra! tos, fórmulas e autores e farão do fado uma arma de
E, n’essa toada poetica, há beijos d’amor, há augurios combate social. Empenhar-se-ão para que o fado-al-
de felicidade, há a treva densa e emocionante da Vi- couce nada tenha a que ver com o fado como can-
da! Depois, é a festa do baptisado d’esse «pedacinho ção social. A alteração da construção textual faz par-
de carne nascido entre dois beijos» e que representa o te deste projecto19. E tal deve-se a profundos conheci-
fructo da união e do amor dos paes. Aqui, a trova é mentos de métrica e de rima – vimos como as trans-
marchetada das perclas delicadas e rutilas que nascem formações formais mostram uma clara intenção de
no mais recondito do coração das mães! busca de novas fórmulas estróficas.
Pensar que estamos perante apenas «habilida-
«Há lagrimas a rir, e risos a chorar» des» de uns tantos poetas ou cantadores, como
afirma Ruben de Carvalho, Maria Guinot e José
Mas que, a par da sentimentalidade natural, dei- Manuel Osório, é não entender o que aconteceu
xam vibrar a musica dentro d’alma, em tom maior, nos sessenta anos mais profícuos da história do fa-
de onde se filtra a alegria esfusiante, enternecedo- do. Talvez o único momento em que o fado, como
ra, perfumada! um todo ideológico, existiu.
Mais tarde, vem o humilde filho do povo, o de- A melhor síntese de todo este movimento que en-
sherdado da blusa – com eu, doutor – e esse quer contrámos é do punho do sapateiro Manoel Soa-
trovas energicas, dramatisadas, onde se concreti- res, o Intendente, redactor-principal do jornal O
se toda a sua discrepancia por tudo que é iniquo fado. Em 22 de Abril de 1923, no primeiro núme-
e revoltante, a dentro de uma sociedade infame e ro deste jornal, escreve
polluida, e de cujos poderosos detentores do Ca-
pital só o operario é victima! N’estas trovas faz- No momento psicológico que atravessamos, em
se propaganda contra a Reacção, stygmatiza-se que as questões mais fundamentais da nacionalida-
o roubo legal comettido pelo honrado commer- de, se nos apresentam envoltas na brumosa treva
ciante, disseca-se o ventre da Abundancia, cheio á do Amanhã.
68
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
No abjecto pântano em que a sociedade se contorce, dor não basta esterioriza-la com um tremor de voz,
preste a precipitar-se no abismo onde vegetam, numa nuns versos piegas. É necessário que esses versos sejam
promiscuidade aterradora, os sórdidos egoismos e os expressão fiel duma dôr sentida! Ou como diremos: Pe-
impulsivismos torpes dos que enformando duma cri- daços duma alma que se arrebata, porque a verdade lhe
minosa crise de caracteres, pretendem esmagar com a nasce expontanea do coração. É isto o fado. E nós de
pata férrea dos ódios tôrvos, o tradicional sentimen- há muito proclamamos a nossa revolta porque a ope-
talismo da raça. ra não é acessível às camadas populares, que tão neces-
Vem à luz da publicidade o nosso semanário. Não sário lhes é educar-lhes o sentimento, como poderemos
tem o nosso jornal a pretenção de levantar a canção nós consentir que aqueles que infelizmente por tara ou
nacional! Porque a nosso ver, o fado que a algumas inconsciência, ainda não abandonaram a taberna, se ve-
décadas de anos vem irradiando de geração em gera- jam privados do unico divertimento, ou gérmen educa-
ção, subindo das vielas turtuosas da Ribeira das Naus tivo que ali pode penetrar e que em versos persuasivos e
(onde julgamos teve a sua origem). E apoz um estudo sentimentais lhes recorde no seu declive moral a compa-
aturado nos mais cancerosos prostíbulos, aprendeu a nheira e os filhinhos? Não. Tal não consentiremos. Con-
chorar as dores das infelizes abandonadas duma so- tinuemos pugnando para que o fado seja mais alguma
ciedade madrasta. E subindo, subindo sempre, pene- cousa de que um val de lágrimas…
trou por fim nos mais luxuosos salões erguendo na Penetremos com ele nos mais recônditos meandros
sua instrutiva rotina o indestrutível facho da verdade. da sciencia, da arte e da filosofia. Mas levemo-lo de
O fado que, por assim dizer, se civilizou, não nega, mãos dadas, no amarfanhado dédalo de via sinuosas
nem poderia abandonar aqueles que o elevaram. E onde vejetam as mais baixas camadas da sociedade,
quem melhor de que as desgraçadas poderia sentir o agitando em nossa dextra em vez da navalha, o facho
fado? Quem poderia imprimir ao fado um sentimen- intangível da instrução»
talismo sincero, senão aqueles que o teem por confi-
dente?
Implicitamente ninguém. Porque para se transmitir uma
NOTAS
1 Tinop [Carvalho 1994: 171] dá a 10 Moita 1936: “Em guisa de...” 15 Romance que parte de uma peça le-
seguinte informação: «O Damas – 11 Moita 1936: 222-223. vada à cena em 1927.
cantador fino – cantava às flores, ti- 12 Curiosamente, no Alentejo será em 16 A Canção de Portugal 1916.Outu-
nha bonito estilo e bonita voz. Real- zona mineira que se formará o pri- bro.01.
çava o seu canto por estes dois predi- meiro grupo coral, Grupo Coral do 17 Sousa 1912: 5-6.
cados essenciais num bom cantador. Sindicato da Indústria Mineira do 18 Que será o fundador de um dos pri-
O Damas reformou o canto do fado, Sul, Mineiros de Aljustrel, fundado meiros jornais dedicados ao fado, O
foi o “Calcinhas” daquele tempo.» em 18 de Janeiro de 1926, assim co- fadinho.
2 O Fado 1910.Abril.23. mo serão as Casas do Povo a susten- 19 Veja-se Guinot & Carvalho &
3 A Canção de Portugal 1919.Janei- tarem os diversos grupos corais co- Osório 1999: 14, que, em nota,
ro.05. mo projecto. consideram curiosa a notícia sobre
4 Canção do Sul 1932.Março.16. 13 Veja-se o caso de Joana, costureira, a ocorrência de uma sessão de fa-
5 Sousa 1912: 4. apresentado em Almeida, 1993: 83- dos na Amadora, aquando da rea-
6 Sousa 1912: 8. 84. Sobre os caixeiros e as tensões lização do Congresso do PCP, em
7 Sousa 1912: 3. de classe por estes provocadas, veja- 1923. No interior da nossa hipó-
8 Sousa 1912: 6. se Sousa 1912. tese, tal sessão de fados é mais do
9 Arroyo 1909. 14 Valentim de Carvalho 1972. que significativa.
69
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
ANTÓNIO MARIA EUSÉBIO E MANUEL ALVES: uma Folha de Saudação. O poeta não esteve pre-
FADISTAS E PROTÓTIPOS DOS POETAS POPULARES sente para não se emocionar.
DO SÉCULO XX PORTUGUÊS No número dois do segundo(?) jornal sobre fa-
do, O Fadinho, fundado por José Carlos Rates
I. em Julho de 1910, a primeira página é-lhe dedica-
O
S fadistas hoje recordados são aqueles que da3. E nos jornais que lhe seguiram, Calafate sur-
emergem nas décadas de vinte e trinta do ge sempre como uma personagem importante na
século xx. Todos os outros foram quase es- história da canção nacional.
quecidos. Há apenas duas excepções: os improvisa- Pinto de Carvalho, no capítulo dedicado aos
dores Calafate, de Setúbal, e Cavador, de Anadia. Pe- cantadores do fado, na sua História do Fado, re-
las particularidades de que se revestiram, importa es- mata com uma referência aos cantadores provin-
boçar sobre eles algumas breves considerações, até cianos, escreverá
porque a sua presença no pensamento intelectual da
época vai ser importante para traçar o perfil dos fu- O primeiro, na ordem hierárquica e na ordem cro-
turos poetas populares portugueses e, particularmen- nológica, é António Maria Eusébio, o Eusébio Ca-
te, dos meridionais. lafate ou o Cantador de Setúbal. O provecto canta-
dor, que já conta oitenta e dois anos de idade, tor-
II. nou-se famoso pela sua admirável facilidade no
António Maria Eusébio [n. Setúbal:1819 – m. Setúbal: trovar, e pela originalidade das ideias satíricas, que,
19111] deve à profissão que exerceu, a de calafetar nos descantes, maravilhava os ouvintes pela justeza
barcos, o nome pelo qual será conhecido, Calafa- e pelo incisivo traço, quer nos versos que vinham
te. Mas um outro nome lhe será associado, o de de memória, quer nos improvisados ali, conforme
Cantador de Setúbal. Lia letra de forma, mas na explica o sr. Henrique das Neves nas linhas biográ-
de mão não entrava, como anotará José Leite de ficas que acompanhavam o livro do Cantador de
Vasconcelos em 19022, quando o conhece em Se- Setúbal, livro em que aquele ilustre escritor coligiu
túbal, na casa de Paulino de Oliveira. Este último algumas produções poéticas do trovador octoge-
está há muito empenhado na sustentação de Antó- nário4. Como amostra dos seus versos, onde, mui-
nio Eusébio e na projecção da sua obra. Em 1901, tas vezes, põe de manifesto a nota satírica, mas on-
o general Henrique das Neves organizará um livro de também, muitas outras, se espelha a bondade do
com os seus versos, juntando-lhe vários testemu- seu coração, damos a seguinte décima:
nhos. A edição foi acompanhada de um prefácio
do poeta coimbrão Guerra Junqueiro. O AUTOR
Quando completou 82 anos, foi-lhe feita uma
homenagem no velho teatro D. Amélia, em Setú- Nunca fui mal procedido,
bal, promovida pelo casal Paulino de Oliveira e Nunca fiz mal a ninguém,
Ana de Castro Osório, durante a qual foi vendida Se acaso fiz algum bem
70
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Este último, na polémica sobre fado que sustenta Eu sei que nasci chorando,
com Forjaz Sampaio, defende o Cantador de Setú- Coisa que não ignóro.
bal quando este é ridicularizado E ainda que às vezes chóro,
Talvez que morra cantado.
O velho respeitavel que se chamou Calafate, foi to- Não sei a hora nem quando
da a vida um famelico, um operario honesto, um Acabará meu viver,
fautor da riqueza publica, um escravo preso á gle- Que, segundo o meu parecer,
ba, como eu. Nunca aspirou a ter um pantheon Já perto estará o meu fim.
que lhe guardasse os ossos, aliás, tão veneraveis Não tenham pena de mim
como os de qualquer outro mortal que fosse, pe- Rapazes, quando eu morrer!
lo menos, trabalhador honrado como elle. Sem em-
bargo, se não teve um pantheon, gosou a felicida- Estrugiam as palmas, que o prestígio do Calafate
de suprema de ouvir da bocca de Guerra Junqueiro subia incessante nas noites de tertulia.11
palavras de infinita doçura, elogios de requintada
sinceridade, á sua obra, á sua intelligencia de anal- Nos trabalhos que saíram sobre estes dois fadis-
phabeto, que, n’um esforço supremo de cerebrisa- tas, a questão do fado foi continuamente secunda-
ção inculta, soube arrancar da Iyra d’alma – a mais rizada. O livro sobre Manuel Alves e os diferentes
honesta e rica de todas – maviosissimos sons, a que papéis e livros que sobre António Maria Eusébio
a prosa vil de v. ex.ª não chegará nunca! Guerra foram sendo dados à estampa, não referenciam o
Junqueiro ouviu o pobre Calafate, com aquelle re- fado. Temos que aceder a informações secundárias
colhimento proprio do seu altissimo espirito.10 para nos apercebermos que era em torno do fado
que a obra destes homens se estruturava. O melhor
deixando adivinhar que o sentido da polémica é exemplo está na edição de Os Versos do Cantador,
muito mais profundo e vasto do que esta deixa por onde o organizador, Rogério Claro, na introdução
vezes percepcionar. ao primeiro volume, a qual constitui um extenso
A mais interessante referência vamos encontrá-la texto biográfico e contextualizador, não faz uma
em Manuel Envia que, em Coisas de Setúbal, evo- única referência a esta canção12.
ca assim António Maria Eusébio
V.
Eh rapaziada! Vai cantar o Calafate! Não é, pois, o fado que interessa aos promotores
Assim rumorejava a assistência na Adega do Pauli- das homenagens aos poetas Manuel Alves e Antó-
no ali ao Largo da Conceição em noites de cantiga nio Maria Eusébio. Interessa, sim, um outro as-
de Fado. A rapaziada evocada era a dos marnotei- pecto, concordante nas duas homenagens, na vida
ros, chinchorreiros e descarregadores de sal que en- e na morte. Guerra Junqueiro sintetiza aquilo que
chiam por completo, o ambiente da casa amornado todos, de forma mais ou menos explícita, dão a en-
pelo fumo do tabaco e pelas emanações da aguar- tender quando se interessam por estes poetas
dente bagaceira.
O vozear continuava agitado como em disputa: Mas agora dou fé que, sem o querer, estou cantan-
- Eh rapaziada! Vai cantar o Calafate. do e não percebes o meu canto. Fallar-te-hei com
E, enquanto o Carga d’Ossos passava os dedos pe- simplicidade para que me entendas. Não sabendo
la guitarra num repenique preludioso, e o Josué es- lêr nem escrever, és um grande poeta, meu ignoran-
perimentava na viola a posição de dó maior para a te e ignorado cantador de Setúbal. Os grandes po-
modulação do fado, o Calafate, agitando a guizeira etas são os grandes homens, e a grandesa humana,
colocada entre fitas coloridas numa pequena vara aos olhos de deus mede-se pela virtude, pela ino-
e divagando o olhar pela assistência, entoava com cencia, pelo juiso verdadeiro da nossa alma, pela
vóz forte e arrastada. ternura infantil do nosso coração. Ora a tua bon-
72
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
dade, meu velho, exhala-se das tuas cantigas sem queiro. Para estes, a figura de Calafate e o uso
arte, como um aroma delicioso d’um matagal in- do improviso no fado, colocam-no na posição de
culto, que nasceu entre pedras. combatente pelo ideal revolucionário que a can-
O vicio não te manchou, o crime não te deshon- ção nacional incorporava para os operários, desde
rou. Ganhaste com o suor da fronte o pão de cada há cerca de trinta anos, como expressão da cons-
dia, com a alma em Deus abriste o olhar a todas as ciência social. Ou então, como entender este fado,
manhãs, e todas as noites, tranquillo, na misericor- publicado em 1901, de António Maria Eusébio, o
dia de Deus adormeceste. Arrancaram-te lagrimas Calafate, o Cantador de Setúbal?
piedosas os tormentos do mundo, – guerras, fomes,
flagellos, desastres, miserias, iniquidades. Amaldi- Prevalece o socialismo
çoaste a soberba, cuspiste no dolo e na tirania. Para bem da humanidade
Bondade ingenua, pobresa santa, alegria clara, eis P’ra não ver os desvalidos
o resumo simples da tua vida.13 Luctando com a necessidade.
Queremos que qualquer homem mens incompletos, a quem falta a educação para as-
Já na edade avançado cender a um patamar civilizacional superior, e, por
Tenha de pão um bocado outro, resíduo de esperança na renovação moral da
Para não morrer de fome. Pátria. De uma qualquer forma, sempre cegos co-
Se as privações o consome mo o aedo grego. Amputado o fado, poema incó-
Accuda-lhe a sociedade, modo, já inquinado pela higiene e foco, para mui-
Dê-lhe ao menos ametade, tos, do mal que corrompia a virilidade do Povo, fi-
Se ainda a pode ganhar, ca a palavra dita, ou cantada, sem a especificidade
P’ra que não o veja andar da forma. Manuel de Castro, de Cuba, Josefa Inácia
Luctando com a necessidade.16 Prego, de Portel, Jaime Velez, do Cano, e António
Aleixo, de Vila Real de Santo António, serão os her-
Mas não será esta a face iluminada pelo derramar deiros deste olhar. Serão poetas da palavra e nunca
de olhares futuros. Manuel Alves e António Maria vozes ligadas à trova da consciência social. Os inte-
Eusébio, não serão vistos como fadistas, mas só, e lectuais de oitocentos, já sem saber o que fazer com
apenas só, como pobres vates populares, homeros o fado, tornaram-no inexistente quando homenage-
de um país cego que foi muito e que em finais de aram Manuel Alves e António Maria Eusébio. Os
oitocentos não é nada. Mercê de um estado de coi- fadistas meridionais do século xx serão a face futu-
sas, os fadistas, ou os poetas, são, por um lado, ho- ra do olhar então construído.
NOTAS
1 Embora na base do busto que lhe é Além tendes, meus amigos, Além tendes meus amigos
Por onde haveis de passar; Por onde haveis de passar
dedicado estejam as seguintes datas:
Confunde-se o rico e o pobre, Confunde-se o rico com o pobre
1820-1912. A rectificação é feita em Tudo à terra vai parar. Mas tudo à terra vai parar
Mota s.d.
2 Vasconcelos 1903-1904: 45-48. Vós que passais, vede além Vós que passeis vezes além
Na sepultura deserta, A sepultura deserta
3 O fadinho 1910.08.04. E num dos
De fria terra coberta, De fria campa coberta
primeiros números do jornal Germi- A face da vossa mãe! As faixas do meio também
nal, também de José Carlos Rates, lo- Que poder a morte tem O poder que a morte tem
calizámos uma décima de Calafate. Sobre os reis, sobre os mendigos! Sobre marginais e mendigos
Olhai os vastos jazigos Olhai os vastos jazigos
4 Versos do Cantador de Setúbal
De tanta família honrada: Cheios de família honrada
acompanhados de um prefácio de Fria porta, escura entrada, Feia a porta negra entrada
Guerra Junqueiro e de «Algumas Além tendes, meus amigos. Além tendes meus amigos
palavras acerca da vida do autor»
Vede além a negra campa Tudo ali está por conta
pelo Coleccionador, que é o sr. Hen-
Cobrindo a corrupta ossada... Cada campa numerada
rique das Neves. Sobre a caveira mirrada Além uma caveira mirrada
5 Carvalho 1994: 245-246. Eis que uma cruz se levanta. Onde uma cruz se levanta
6 Em 1987, recolhemos em Santa- Porque chamais terra santa Chama-se à terra santa
A tão infame lugar, Aquele triste lugar
na, Portel, dita por João Rato, um
Onde a morte vai levar Onde a morte vai levar
quarteto glosado em quatro décimas Filhos, esposas, maridos?... Filhas e esposas e maridos
que é atribuída a Manuel Alves É uma estrada de gemidos É uma entrada de gemidos
Por onde haveis de passar. Por onde haveis de passar
74
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
7 Carvalho 1994: 246. Para nos dar sempre queijo Porque é que o arroz com bichos
8 Fernando Cardoso que, na década de Peço ao senhor capitão! Tem dado por tantas vezes?
setenta e oitenta do século xx, publi- Os pobres dos portugueses
ca em quatro volumes uma antologia Dê bacalhau com batatas, Engolem bichos inteiros!...
de poetas populares portugueses, rela- Que assim manda a tabela: Recomende aos cozinheiros
ciona, de forma interessante Calafate e É p’ra tapar a taramela Que o bacalhau quer mais molho!
Cavador. Na nota biográfica referente A estes pataratas. Mande deitar mais repolho
a António Eusébio alude ao fado [Car- Tratem as coisas exactas, Na sopa dos passageiros!
doso 1990: 47-80], mas na de Manuel Sejam homens cavalheiros; Alves 1993: 183-185.
Alves [1989: 49-80], não existe a menor Demos os nossos dinheiros
referência a esta canção. P’ra viagem e alimento... 10 Sousa 1912: 32.
9 Alves 1993: 56. O improviso completo é Peço melhor tratamento 11 Envia 1947: 123-124.
Em nome dos companheiros. 12 Eusébio 1985: 7-27.
Peço ao senhor capitão, 13 Calafate 1901 : ix-x.
Em nome dos companheiros, Nestes que vem de terceira 14 Alves 1993: 263-266.
Mande deitar mais gordura Não ouço senão gemidos; 15 Alves 1993: 266.
Na sopa dos passageiros. Vejo-os tristes e encolhidos, 16 Eusébio 1901: 52.
Tudo a cair com fraqueira.
Mande retirar a abóbora Dão-nos abóbora porqueira,
Que no rancho nos manda dar, Tudo comer de impostura.
Que essa apenas dá lugar Tratem-nos com mais candura,
E origem a qualquer obra! Que a tabela assim o manda!
De bacalhau com mais sobra Prove o calda da caçamba,
Queremos mais ração; Mande deitar mais gordura.
E esse que fabrica o pão
Deite mais sal com mais sobejo; Se os capitães ingleses
Dizem ter tantos caprichos,
75
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
CONCLUSÃO II.
Sabemos que, quando se levanta a origem do fa-
I. do, estamos no plano das identidades. Veja-se ape-
O
fado, fadinho ou faduncho, tem sido, desde nas, como exemplo, as discussões e as edições sur-
há cerca de cem anos para cá, alvo de gran- gidas em 1994, em partidos muito claros: um cen-
de polémica. A partir dos textos fundado- trado na Lisboa ’94 que, numa certa ambiguidade,
res de Pinto de Carvalho, Alberto Pimentel e Luis tinha na centralidade lisboeta o princípio da ex-
Moita, construíram-se diferentes olhares, que mais cursão expositiva, para terminar no colportage pa-
não foram que espelhos dos momentos políticos e ra a expansão do fado; uma outra argumentação
sociais que os viram ser produzidos. em torno da presença escrava, transporte entre o
Desde o primeiro momento, dois aspectos foram Brasil e a metrópole, logo defendendo uma origem
essenciais: Maria Onofriana e a origem do fado. exógena desta canção, prefigurada no trabalho de
Traçar a biografia de Severa foi, e ainda contínua José Ramos Tinhorão1. Aliás, Joaquim Pais de Bri-
a ser, importante para alguns historiadores do fado. to ao construir a hipótese comparativa entre o fa-
Mas é sobre a origem desta canção urbana que mais do e a rebética de Atenas ou o tango de Buenos Ai-
se tem escrito. Para uns, o fado tem origem na antiga res, aparentemente mais não faz que recuperar as
colónia portuguesa do Brasil, a partir do sincretismo linhas de força aventadas pelos clássicos do fado.
cultural entre escravos negros e classes baixas de co- Mas o que ele recupera é uma geografia, o porto de
lonizadores; para outros, o fado vem do plang tro- mar, e não os grupos sociais, aproximando-se en-
vadoresco, rastreando-se a sua presença, depois, em tão mais de Tinop, e da sua teoria da marinhagem,
Camões; mas outros quiseram ver a sua origem em como génese do fado2, lateralizando a questão le-
fórmulas muito mais remotas, como cantares celtas. vantada por Pimentel dos grupos sociais.
Ainda há quem considere, também, a canção regio- A importância da Severa não se prende apenas
nal portuguesa como a raiz da canção nacional. aos trágicos amores de uma ‘cigana’ e de um no-
Não foi nenhum destes caminhos que intentá- bre. A questão é muito mais profunda e pretende
mos seguir. Limitámo-nos a perseguir o caminho ilustrar uma relação entre o fado dos aventais-de-
proposto pelos autores fundadores do fado – todos pau e a aristocracia, ou seja construir, e datar, um
são concordantes quanto à alteração profunda que momento na relação fado versus aristocracia, ou
o fado sofre por volta de 1860 no poema e na mú- seja, a subida do fado do alcouce para os salões.
sica – e pelos periódicos – que a partir de 1910 re- Pois que à Severa liga-se a primeira presença do fa-
ferem o fado como a trova da consciência social. do em salões da aristocracia lisboeta. A Severa e o
A escolha de um título como «Fado 1910» é as- fado mais não são do que a metáfora da decadên-
sim prenhe de significado. Data o primeiro jornal cia da nobreza portuguesa.
sobre fado e data também uma revolução em que A importância de Amália Rodrigues (o outro
os operários colocaram tantas esperanças, e pela ícone) para o fado no século xx mede-se pela re-
qual os fadistas e o fado tanto fizeram. volução que se dá com a introdução de outras so-
76
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Para nós, o fado tem uma origem marítima, origem Mas Alberto Pimentel, após recusar a filiação
que se lhe vislumbra no seu ritmo onduloso como árabe, defendida por Teófilo Braga16, tenta apro-
os movimentos cadenciados da vaga [...].9 ximações, digamos, de carácter sociológico. Para
este autor, não é no mar, mas antes em terra, que
Afirmando, peremptoriamente, mais adiante devemos procurar a origem da canção
O fado nasceu a bordo, aos ritmos infinitos do O facto de termos encontrado nos Mysterios do Li-
mar, nas convulsões dessa alma do mundo, na em- moeiro a palavra fadista (como termo de calão e
briaguez murmurante do que dizemos.10 por isso graphada em italico) sem que até essa epo-
78
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
ca (1849) appareça qualquer vestigio do vocabu- tre uma certa tradição arreigada a um certo núme-
lo Fado ou Fadinho na acepção de cantiga popular, ro de bairros de Lisboa e uma presença difusa nas
leva-nos á conjectura de que foi da moderna no- décadas entre quarenta e sessenta do século xix,
menclatura da classe que derivou o nome da can- num aro geográfico nuclear que vai da Porcalho-
ção, em vez de da canção que proviesse o nome á ta a Setúbal, subindo quase até Santarém, e esten-
classe.17 dendo-se, depois, até ao Porto.
O inventário dado quer por Pimentel, quer por
Estas duas posições opostas, embora Pimentel Tinop, e também presente nas diferentes memó-
também afirme rias publicadas pelos diversos periódicos, enu-
meram cantadores, poetas e tocadores que não
O marinheiro é muito mais fadista do que o solda- podem estar isolados nos locais onde vivem;
do: talvez porque a guitarra de bordo seja o traço apenas poderão ser os expoentes locais de uma
de união que o põe em constante communicação expressão cuja história está ainda por fazer. Se
espiritual com os outros fadistas.18 antes de 1900, já Manuel Alves, na Mealhada,
ou Calafate, em Setúbal, eram famosos, susten-
escondem, no entanto, duas abordagens distintas. tando localmente improvisos com outros poetas,
Na referência ao mar, Tinop liga-se ao movimento é um facto que mostra uma presença que impor-
republicano que, em 1880 e 1890, eleva a epopeia ta realçar e perceber. É necessário também en-
dos Descobrimentos a um êxtase de pátria perdida tender as estruturas de versificação que usavam,
e que urge reencontrar19. Pimentel, mais sociológi- assim como a teoria poética que possuíam, já
co, mais retraído, é um homem na esteira de Her- que existe um corpus que importa levantar e en-
culano, preocupado com o rigor histórico. Veja- tender, pois só assim teremos acesso aos aspec-
se o cuidado colocado na nota à pág. 2820 sobre o tos criativos particulares e gerais.
«Nascemos de um grupo de lusitanos»21, ou a bre- Existem indícios elucidativos de que antes de
ve incursão sobre o municipalismo e a sua deca- 1860/’70, o fado transpõe a península de Lisboa
dência22. Mas a marca fundamental entre os textos em direcção ao norte do país – se é que a cidade
é também pessoal. Tinop desenvolve um discurso do Porto, por outro lado, não constituiu também
onde emerge a nostalgia de uma Lisboa que vai de- um pólo difusor de fado25. Os quartetos, estrofe es-
saparecendo, que descreve numa alma camiliana truturante do fado no norte de Portugal, mostram
transposta para uma linguagem queiroziana, em isso mesmo. Será só após esta data que vamos en-
oposição a um Pimentel mais científico, que com- contrar a décima no sul de Portugal, embora tam-
para o fado com as canções da província, opondo bém a vamos localizar no litoral norte, o que mos-
os espaços abertos, mundo rural, aos espaços fe- tra uma contínua leva e renovação de estrofes. Fi-
chados, o mundo urbano ca por explicar a desgarrada no sul, que é feita em
quartetos, o que poderá ter ocorrido tardiamente.
O povo de Lisboa, limitado ás ruas e ás tabernas Esta cronologia de dispersão geográfica é ainda
da cidade23, e, uma vez por outra, quando muito, muito embrionária, e deixa grandes espaços por
ás hortas dos arrabaldes, encontra na guitarra, nas explicar. Voltaremos a ela mais adiante quando en-
cantigas do Fado, a sua melhor distracção.24 trarmos na história da décima no século xx no sul
de Portugal.
IV.
Um aspecto de grande importância, é como é V.
que o fado transpõe Lisboa e, nos alvores do sécu- Sabemos apenas que o fado usou, em fórmulas
lo xx, ocupa uma parte substancial do país. Ou- antigas, o que Maria Aliete Galhoz denominou co-
tro, é como é que se vai alterando a sua cartogra- mo «cantigas de don don», expressão retirada do
fia presencial, mostrando aspectos dissonantes en- «Fado do marujo» que, segundo Tinop e Pimentel,
79
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
seria o fado mais antigo, e cujos sistemas estrófico verá ser olhado na horizontal e na vertical. Bas-
e rimático parecem já estar popularizados a partir ta comparar este objecto, o fado, com um outro
da segunda metade do século xviii, já que o encon- que é, de uma forma genérica, o improviso em
tramos em diversos pontos do Alentejo, nomeada- Portugal. Debaixo de um nome generalizado de
mente, Messejana, Cuba/Beja e Crato. despique, localizável em bastantes locais, escon-
A partir da segunda metade do século xix, o fado de-se uma outra realidade, e embora estejamos
recorre apenas a dois sistemas estróficos: o quar- sempre a falar de improvisos, o despique do Bai-
teto, num uso mais antigo, e o quarteto glosado xo Alentejo não é o mesmo do Alto Alentejo, e
em décimas, numa fórmula mais contemporânea e estes são diferentes dos da Madeira ou dos Aço-
mais próxima do século xx. res. Parece-nos, pois, que a designação de fado
Mas os autores clássicos, Tinop e Alberto Pi- esconde um indeterminado número de variantes
mentel, deixam antever uma arquitectura poética que poderão ser, ou não, recorrentes a outros sis-
muito mais complexa, que os textos que nos che- temas de improviso que com ele coabitaram, en-
garam não mostram na sua totalidade. costaram ou se misturaram.
Segundo Tinop, o canto à desgarrada foi prete- O caso do «don don» é paradigmático: mais do
rido pelos cantadores em relação ao canto ao fan- que um fado estabilizado, estamos a falar de um
dango, e este abandonado quando surgiu o can- modelo de improviso ainda há poucas décadas em
to do fado, assim como aconteceu com a dança uso na área de Peroguarda28 e que, segundo os in-
do fandango em relação à dança do fado. Mas em formantes com quem trabalhámos, era cantado,
que é que consistiam estes improvisos, já que, até uma estrofe por improvisador, a partir do que de-
muito tarde, o fado era feito na base do improviso? nominaram como fado corrido. O «don-don» é
Tinop dá-nos uma breve informação quando fala uma cantiga de pé-quebrado, ou seja, uma estrofe
de Bernardino Ferreira Saldanha, da Porcalhota, e de quatro versos, três em redondilha maior e um,
na altura com 80 anos de idade (terá nascido por o último verso, em redondilha menor. O primeiro
volta de 1820) e o quarto verso são soltos e o segundo é concor-
dante com o terceiro – dando a intenção de uma
Principiou por cantar à desgarrada e ao fandango, carnavalização poética –, embora o último verso
canto que é feito de improviso, por ter de se cin- vai servir de rima com a estrofe seguinte. Foi for-
gir à deixa do adversário, e, na resposta a dar-lhe, ma vulgarizada no Nordeste brasileiro, recebendo
ter de fazer rima com a palavra com que este ter- aí a designação de Pelos sinais29.
minou.26 Importa também entender que os cantadores
que vamos conhecendo através dos livros de Ti-
informando também que nop e Pimentel, assim como aqueles que são referi-
dos nos periódicos entre as décadas de dez e trinta
Quando se principiou a cantar o fado, foi posto de do século xx, embora tenham preferência pelo fa-
parte o canto do fandango, e o Bernardino Salda- do, mostram de quando em vez a possibilidade de
nha abandonou este para encetar aquele, que co- terem cantado outras fórmulas, sobre as quais na-
meçou a moda popular.27 da sabemos. Por volta de 1870, Calafate, em res-
posta a uma injustiça de trabalho, faz um impro-
Sobre estas formas de cantar não sabemos nada. viso em dois quartetos ligados por leixa-pren30. Es-
Podemos ter textos versados, mas estes muitas ve- tamos na presença de fado, de um modismo, ou de
zes são ilusórios já que ter, por exemplo, um quar- textos da tradição?
teto, não implica que tenhamos acesso à sua forma Um outro dado com algum interesse é a forma
de construção durante o improviso. a que Tinop recorre para descrever cada modelo:
Cremos não ser possível ver a alteração de gos- uns são versos, outros motes e outros quadras – e
to apenas como uma sequência evolutiva, tal de- está sempre a referir-se a quartetos.
80
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
NOTAS
1 Tinhorão 1994. 7 No século xix, fadim designava uma que uma perda de letras da palavra fa-
2 Carvalho 1994: 15-16. moeda de cobre de baixo valor.. Aliás, dista, técnica algo comum nas gírias
3 Carvalho 1994: 10. falta uma análise sóciolinguística sobre (fadista=faia).
4 Sousa 1944. a terminologia em uso no fado. Veja-se 8 Baptista-Bastos 1999: 220.
5 Brito 1993: 159. o caso da palavra faia como auto-deno- 9 Carvalho 1994: 42.
6 Sucena 2002:12. minação de fadista; faia mais não é do 10 Carvalho 1994: 42.
81
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
11 Carvalho 1994: 43. da. Informação dada por Agostinho por ter a companha
12 Carvalho 1994: 44. e Virgínia Dias, a quem agradece- de barrete encarnado
13 Carvalho 1994: 44. mos todas as informações.
14 Carvalho 1994: 288. 29 Cascudo 1984: 95-101; Pires 1986: De barrete encarnado
15 Carvalho 1994: 288. 12-15. tudo berra e grita
16 Braga 1987: 559-560. 30 O improviso é o seguinte - Como está danado
17 Pimentel 1904: 43. o patrão Zé da Rita.
18 Pimentel 1904: 54. Eu já cá sabia Envia 1947: 78-79,
19 França 2002: 33-45. que eras malaio
20 Pimentel 1904: 300. a mim não me enganas embora se afaste do improviso de
21 Veja-se Herculano 1853: 11-13. a quatro de maio. Calafate, pois dobra nos dois últi-
22 Pimentel 1904: 36-37. mos versos.
23 Seria de muito interesse, investigar A quatro de maio 31 Exemplo
um conjunto de detracções ao fado a não me enganas, não,
partir do conceito panóptico de Mi- que eu d’aqui não vou Vejam o que pode sair
chel Foucault, Foucault 2001. sem dinheiro na mão. Debaixo duma mantana:
24 Pimentel 1904: 26. Eusébio 1908: 110-111. Monteiro, deita a fugir,
25 Veja-se de Camilo, Eusébio Macário Tu, Pimentel, vai p’rá cama...
e A corja, ou de Eça de Queiroz, A Manuel Envia edita também um texto cha- E esse que aí está a grunhir,
ilustre casa de Ramires. rivaresco construído no mesmo modelo Vá p’rá mãe que lhe dê mama!
26 Carvalho 1994: 175. Alves 1993: 241.
27 Carvalho 1994: 175. Ólha o Zé da Rita
28 Beja. Ferreira do Alentejo: Peroguar- como está danado 32 Não desenvolvemos aqui a proposta
PARTE I
TRÊS
A DÉCIMA NO ALENTEJO
2.ª FASE: 1880-1990
84
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
85
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Ao anotar a recente feitura das décimas, o que per- conhecido principalmente entre a gente do campo.
mitia saber muitas vezes o autor, Leite de Vasconce- 3.ª Nenhum livro ou escripto anterior ao actual se-
los, refere-se não à décima barroca, em uso no Alen- culo (XIX) faz a menor referencia a esta musica
tejo e já perfeitamente popularizada (embora em popular.
competição com outras estrofes, como vimos), mas 4.ª A poesia com que, invariavelmente quasi, se
sim à décima vulgarizada pelo fado. Devemos cha- canta o Fado é uma quadra glosada em decimas,
mar a atenção para o facto de que estas informações forma poetica d’uma antiguidade pouco remota, de
surgem na construção de uma nota explicativa às uma origem nada popular e sem relação alguma
obras de Calafate. Embora o Cantador de Setúbal se- com a poesia arabe.6
ja um fadista que sedimentou diferentes fórmulas, no
texto só surgem décimas como glosas de quarteto. Neste verbete do Diccionario musical, publica-
O que nos importa fazer notar no texto deste fi- do em 1880, encontram-se informações de muito
lólogo, é não só a referência à décima como uma interesse para a história do fado e para a história
característica da província transtagana bem como da décima. Primeiro, o assumir-se que a décima
a sua modernidade. não é um texto popular. Segundo, o enquistamen-
Dois aspectos devem ser, contudo, relevados. Jo- to desta canção fora dos grupos considerados tra-
sé Leite de Vasconcelos não desconhece certamen- dicionais. Terceiro, um desconhecimento quase to-
te o que se passa com o fado e o uso da décima mas, tal no sul do fado. Quarto, a assunção que a estro-
prendendo-se estes a uma cultura urbana e operá- fe mais usada no fado é a décima como glosa.
ria, o filólogo não os tomou como objecto privile- Cruzando esta informação com a que Leite de
giado nas suas pesquisas, centradas nos costumes Vasconcelos dá, podemos inferir que a décima, co-
e nas tradições do povo português. mo glosa de um quarteto, sustentada musicalmen-
O outro aspecto é a pouca dispersão que tem a te pelo fado, não pode estar no Alentejo em data
décima no resto do país, o que mostra que, muito muito anterior à data da edição do dicionário, isto
provavelmente, o fado no norte, ou não conseguiu com todos os cuidados cronológicos com que nos
implementar a décima, depois de se ter associado podemos precaver. Vasconcelos, ao afirmar a mo-
ao quarteto, ou José Leite de Vasconcelos não as- dernidade desta no Alentejo, assim como quando a
similou o fenómeno recente de expansão desta es- liga ao universo da escrita, fundamenta, pois, esta
trofe. De qualquer maneira, estes aspectos mos- afirmação. Situando na década de setenta e oitenta
tram o carácter tardio da décima como glosa de do século xix a introdução e expansão da décima
um quarteto nos gostos da cultura popular. como glosa de quarteto, assim como do fado, pa-
rece não ser uma hipótese de grande risco.
II.
Quando Alberto Pimentel recusa a hipótese ára- III.
be da origem do fado, recorre a Ernesto Vieira e No livro Resistências populares ao Liberalis-
ao seu Diccionario musical, retirando deste as se- mo (1834-1844)7, Maria de Fátima Sá e Melo
guintes conclusões Ferreira faz uma caracterização económica das
províncias do sul que, pela síntese e riqueza in-
1.ª O Fado só é popular em Lisboa: para Coim- formativa, interessa seguir de perto, na medida
bra foi levado pelos estudantes, e nem nos arredo- em que caracteriza esta região até ao momento
res d’estas duas cidades elle é usado pelos campo- anterior à introdução do fado, década de sessen-
nezes, que teem as suas cantigas especiaes e muito ta do século xix.
differentes. Por volta desta altura, a percentagem de superfície
2.ª Nas provincias do sul, onde os arabes se conser- inculta no Alentejo rondaria os 60% do total do ter-
varam por mais tempo e os seus costumes e tradi- ritório provincial, traduzindo-se provavelmente num
ções são ainda hoje mais vivos, o Fado é quasi des- alargamento em relação ao século xviii,
87
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
A extensão dos incultos ia de par com uma fra- Lisboa abastecia-se de trigo e bovinos meridio-
ca densidade da população: 11 habitantes/km2, o nais. O Algarve era também abastecido pelo tri-
que correspondia a um terço da média nacional. A go transtagano. A lã escoava-se não só nas manu-
grande concentração do habitat acentuava ainda o facturas locais, Portalegre ou Reguengos de Mon-
seu aspecto desértico. saraz, ou regionais, as manufacturas da Covilhã,
Em algumas das suas aglomerações, em particular mas também era exportada para os mercados eu-
nas vilas e cidades do norte da província, reunia-se ropeus.
contudo uma população numerosa. As cidades de
Évora, Portalegre, Elvas e Beja e as vilas de Estremoz A dinâmica comercial da agricultura e da criação
e Castelo de Vide contavam mais de cinco mil habi- de gado alentejanas estiveram na base de uma pre-
tantes no início do século XIX, o que era verdadeira- coce afirmação do individualismo agrário na pro-
mente importante em termos nacionais; na realidade, víncia e do recuo do colectivismo agrário, o que é
estas seis aglomerações representavam um quarto das particularmente válido para o centro e sul da re-
localidades do país que ultrapassavam este marco. gião correspondendo grosso modo aos distritos de
A concentração dos habitantes nas cidades, em vilas Évora e de Beja.9
urbanizadas e em grandes aldeias não excluía a exis-
tência de uma população dispersa, ainda que menos Complementarmente a esta análise, no livro inti-
numerosa, vivendo nos «montes», as habitações das tulado O Alentejo no século XIX: economia e ati-
herdades que constituiam, como se sabe, as principais tudes económicas, Helder Adegar Fonseca afirma
unidades de exploração agrícola da região, explora-
ções caracterizadas na maior parte dos casos pelas su- [...] a partir de Oitocentos, o Alentejo enveredou
as vastas dimensões, o que não significava que a pe- por uma experiência económica baseada na ex-
quena propriedade e sobretudo a pequena exploração ploração das possibilidades produtivas não ape-
não tivessem lugar assinalável no panorama da agri- nas agrícolas mas também industriais, diversifi-
cultura alentejana. Com efeito, nos finais do Antigo cou a oferta que dirigiu tanto para o mercado in-
Regime explorações de dimensões modestas tinham terno como externo. Este processo atingiu o seu
uma parte importante na estrutura agrária da provín- auge na década de 1880 que marcam uma vira-
cia, situando-se tanto nos arredores das aglomerações, gem fundamental para uma economia mais es-
em terrenos destinados à cultura intensiva, como nas pecializada sectorialmente (agricultura) e essen-
zonas mais afastadas em que se praticava a agricultu- cialmente empenhada em produtos destinados ao
ra dos cereais e a criação de gado. mercado interno. Isto significa que o efeito pola-
Convém recordar que apesar do carácter desértico rizador de Lisboa sobre a região económica que
da sua paisagem e do isolamento das suas aglomera- veio a liderar foi lento e é provável que, na vi-
ções a economia alentejana estava longe de ser uma ragem para Novecentos, com o pacote reformis-
economia fechada nos finais do Antigo Regime.8 ta que marcou a política agrícola e industrial do
país (1889-1900), tenham sido dados passos tão
Esta extensa citação mostra-nos que, ao contrá- decisivos no processo de integração como aque-
rio de uma imagem de deserto tantas vezes dada les que se promoveram durante o terceiro quartel
como certa, o Alentejo possuía uma economia de- do século XIX.
senvolvida, onde a agricultura e a produção de ga- Finalmente, se tivermos em conta o que se passou
do apostava quer nos mercados internos, quer nos com actividades como a mineração, a moagem e
externos, a par de uma forte concentração urbana, a industria corticeira ou a forma como evoluiu o
característica das regiões mediterrâneas. produto agrícola na Área de Évora, é difícil aceitar
Os principais produtos desta economia comer- a ideia de uma economia pouco dinâmica, caracte-
cial eram o trigo, a lã e, numa percentagem me- rística que deve ser reconhecida independentemente
nor, o gado. do sucesso obtido, que foi limitado.10
88
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Temos assim uma região economicamente dinâmi- depois de 1890 a inovação de debulhas à máquina,
ca, que se vai estruturar em torno de três produtos embora agradasse como novidade, circunscreveu-se
agrícolas, a cortiça, o trigo e os suínos, a par da pro- apenas a algumas zonas. Só pegou a valer do ano de
dução de rebanhos lanígeros, que vão alimentar in- 1896 em diante. Desde então, em cada nova colheita,
dustrialmente todo um conjunto de sectores de trans- vêem-se aumentar os maquinismos de debulha. No
formação, tanto internos como externos. As minas e último verão (1911) funcionaram na região elven-
a indústria conserveira (esta em particular no Algar- se vinte e cinco debulhadoras, construidas nas casas
ve) vão ser pólos económicos de grande importância. Clayton, Ruston, Marshall e Garrett, predominando
As minas de São Domingos, em Mértola, cuja explo- as Ruston de tipo mediano e as Clayton, grandes.12
ração se inicia por volta de 1860, serão um centro
operário de grande importância, assim como Aljus- IV.
trel. Estes coutos mineiros são o expoente máximo Nas décadas de setenta e oitenta do século xix,
de uma constelação de zonas mineiras espalhadas pe- mercê da circulação de matérias-primas e de gen-
lo Alentejo e que hoje se invisibilizam na paisagem. tes, o quarteto glosado em décimas sustentado mu-
Todos estes produtos necessitam de escoamento: sicalmente pelo fado começa a entrar no Alentejo,
é também antes de 1900 que se inicia a estrutura- substituindo nos gostos populares meridionais o
ção do caminho-de-ferro. uso da décima de tradição barroca, e secundari-
Escorados pelas afirmações anteriores, podemos zando o uso de outras estrofes.
considerar o Alentejo como palco de um processo Não existe documentação directa que tal nos di-
de industrialização. A paisagem agrícola que hoje ga, por isso importa “fazer mão” de todos os da-
nos envolve quando percorremos o sul, deve mais dos disponíveis.
ao século xix do que à sedimentação de períodos Nos jornais da década de dez e vinte do século xx
históricos anteriores. Esta forte industrialização te- dedicados ao fado, quando se faz menção às várias
ve de ter gente que, mais do que camponeses, são o figuras importantes no universo desta canção, refe-
que poderíamos qualificar como assalariados, logo re-se o seu papel importante quer na defesa do fado,
mais próximos do mundo operário. Uma visita a quer nas suas deambulações pelo país a espalhar a
São Domingos não deixa dúvidas relativamente ao trova. Quando o fado é atacado, um dos argumen-
duro e sofrido quotidiano em que esta gente vivia. tos utilizados é a sua importância na divulgação dos
Interessa também fazer salientar a forte depen- ideários socialistas e republicanos. Veja-se as pala-
dência económica desta região da cidade Lisboa vras de Avelino de Sousa, datadas de 1911
como consumidora e como zona portuária, colo-
cando em relevo o movimento de gentes, elemento V. ex.ª sabe lá o que é o Fado! Quanta propaganda,
fundamental para o transporte das diferentes ma- nos saraus das associações, na rua, na sala, na ta-
térias-primas11. berna, fez o humilde trovador em prol da Republi-
Podemos, assim, perceber de uma outra forma a ca que hoje nos rege! E o povo rude, o povo ope-
afirmação de José da Silva Picão ao falar da depen- rario, quedava-se recolhido a ouvi-lo, entenden-
dência dos lavradores elvenses em relação às má- do talvez melhor esses pobres versos – muitas ve-
quinas para debulha zes sem metrica – do que os mirabolantes discursos
dos oradores de comicios!13
[...] a primeira debulha a vapor efectuada nos cam-
pos de Elvas e vizinhanças, fez-se no ano de 1879, chamando a atenção para um dos aspectos mais
na herdade da Gromicha, por iniciativa do lavrador ignorados da história do fado: o seu gesto propa-
Joaquim Lúcio do Couto. Mas isto foi um ensaio gandístico. No verbete «João Black», Guinot, Car-
passageiro. As debulhadoras só funcionaram eficaz- valho e Osório escrevem
mente aí por 1890, quando o governo as adquiriu e Com Júlio Janota, peregrinou pelo Alentejo defen-
as facultou de aluguer aos lavradores [...]. Mesmo dendo a justiça social, na esteira do famoso cantor
89
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
social Isidoro Pataquinho, de forma porém mais dá-me aonde eu tire a valia
contundente no ataque ao regime monárquico.14 para os socorrer coitadinhos
abre-me fortes caminhos
É da sua autoria o seguinte mote, que depois se aonde eu tire o meu sustento
espalhará autonomamente no cancioneiro popu- dá-me o fruto e o alimento
lar do Alentejo e aumenta a minha féria
que eu vivo na miséria
Se o trabalho ao bem conduz, e tu és rico e opulento
Em que consiste esse bem?
Tudo tem quem não produz Para me deitar a roubar
E quem produz nada tem!15 pões-me o nome de ladrão
para morrer de fome também não
Esta catequética fadista contra a monarquia, fei- e para pedir posso trabalhar
ta por homens engajados política e socialmente, é quero os meus filhos criar
dos momentos mais desconhecidos quer na histó- sem vergonha de ninguém
ria do fado, quer na história da poesia popular me- pois tu rico podes bem
ridional, e cujos efeitos, fora da décima, ainda mal e vale-me pelo Deus verdadeiro
se podem calcular: não sabemos quais as alterações eu sou pobre sem vintém
que o fado provocou nas estrofes em uso nesta re-
gião no período referido. Sou um pobre e mal fadado
Outros, de certeza, cruzaram o sul neste período, que ando neste mundo de enganos
em momentos posteriores. O cantador a atirar João deito mais de mil planos
Patusquinho, José Carlos Rates, fundador de um dos e todos me saem errados
primeiros jornais dedicados ao fado, também circu- quando à noite sou chegado
laram neste sul urbano composto de trabalhadores onde os meus filhinhos estão
assalariados. Mas os alentejanos também cruzaram até corta o coração
o sul levando mercadorias, e concerteza eram con- sem ter que lhes dar de comer
frontados com o fado junto ao mar da Palha, onde mas para os poder socorrer
frequentariam tabernas e casas de pasto, como a do dá-me aonde eu ganhe o pão
famoso cantador Ginguinha no Barreiro. Também
os revolucionários que se espalhavam pelo sul atra- Que tristeza é para um homem
vés do caminho-de-ferro o devem ter usado. quando os filhos chego a avistar
Destas prédicas fadistas ficaram no Alentejo fa- ao pé da mãe a chorar
dos que influenciaram a construção de outros. A todos coitadinhos com fome
obra de Modesto Navarro Poetas populares alente- mas tudo isto consome
janos reúne um número considerável destes textos. o interior à pobre mãe
O poeta Gil Quintas, de Montoito, dirá, por volta miséria há mais de cem
de 1976, a seguinte quadra e anda arrastada como a cobra
e dá-me as migalhas que sobram
Tu és rico opulento para meu sustento também16
e sou pobre sem vintém
dá-me aonde eu ganhe o pão Sobre estas glosas dirá
para meu sustento também
Esta é antiga, já não se sabe quem a fez. Bom, mas
Estou cercado de filhinhos é uma obra dedicada à pobreza, assim a uns estar-
sem ter da noite para o dia mos tão mal e outros tão bem.17
90
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Mas no final desta década, este processo institu- José Leite de Vasconcelos, em 1904, chamará a
cional está agonizante. Nos anos noventa, um ou- atenção para o facto de ainda se saberem alguns
tro interesse substitui o dos poetas populares: o pa- dos autores dos textos manuscritos ou editados em
trimónio arqueológico, arquitectónico e artístico. circulação. Durante as décadas seguintes, as glosas
Não obstante, a semente estava deitada e frutificou. surgem sempre associadas a um autor, textos mui-
Os poetas populares iniciaram um processo editorial tas vezes retirados de folhetos impressos.
autónomo, que na década de noventa foi de autên- Navarro, ao editar o seu livro, vai preocupar-
tica explosão. Dezenas e dezenas de livros de poesia se com dois aspectos fundamentais: um peque-
são editados por todo o sul. Com ou sem apoio, vá- no escorço biográfico do poeta (aqui em sentido
rios poetas editam, por vezes com saídas de dois ou lato, englobando poetas e dizedores) e anteceder
de três mil exemplares que vendem em dois ou três cada poema com um pequeno excerto da entre-
anos, para se abalançarem a nova edição. Há, inclusi- vista, para ser perceptível o sentido deste. Algu-
ve, autores que em poucos anos publicam dois ou três mas antologias ainda vão na esteira deste traba-
livros de que são vendedores-distribuidores, viajando lho, destacando-se o livro de Carlos Curto, Um
um pouco por toda a região. Estas edições têm uma poema chamado Grândola, de 1982, mas tam-
solidariedade económica de muitas das tipografias, fa- bém não devemos esquecer o excelente trabalho
zendo os poetas contratos de pagamento, muitas ve- sobre a obra de Francisco Passinhas, de 1988,
zes orais, à medida das vendas. Em alguns casos recu- editado pela Câmara Municipal de Reguengos
peram velhos compromissos do tempo em que edita- de Monsaraz.
vam folhetos. No entanto, estas fórmulas pouco duram. O olhar
Mas não são já só os homens que editam ou ape- de individualização e de contextualização que esta-
nas os poetas populares. Muitas mulheres desco- va a ser construído, não resistiu à alteração políti-
brem-se como poetas e muitos autores são oriundos ca que atravessou o Alentejo nos finais da década
de grupos sócio-profissionais que nunca cultivaram de oitenta. O trabalho de engajamento de esquer-
esta arte popular. De alguma forma, nos anos no- da associado ao Partido Comunista Português mor-
venta, mercê do interesse que recaiu sobre a poesia reu no final desta mesma década. O antigo olhar do
popular, esta popularizou-se, alargando os seus li- anonimato do criador tradicional sobrepôs-se ao
mites, tornando-se espaço de construção de todos indivíduo, com rosto e com biografia reconhecida.
aqueles que de alguma maneira se sentiram identi- A par desta desindividualização textual, estes
ficados com esta forma de criação artística. começam a ocupar o lugar que os quartetos antes
ocupavam, passando as décimas de poesia popu-
VI. lar, escrita, impressa e cantada, para poesia tradi-
Os primeiros olhares que se construíram sobre a cional, alma de um povo, cerne de uma tradição. A
décima como glosa viram-na como um texto não poesia popular (no sentido de tradicional) em dé-
tradicional, antes popular, e ligado ao mundo da cimas e o cante alentejano serão doravante a mar-
escrita e da tipografia. Por estar associada ao fado, ca da cultura popular meridional.
com tudo o que este arrastava de contestação, os Em 1994, Monarca Pinheiro publicará uma an-
colectores, mais interessados no quarteto – olhado tologia de poesia popular do Alandroal. A esmaga-
como a verdadeira alma do lirismo do povo portu- dora maioria dos poetas publicados fazem ou sa-
guês – pouca atenção lhe deram. Será a revolução bem quartetos glosados em décimas. No texto in-
de 1974 que irá focalizar o interesse nesta poesia trodutório Monarca Pinheiro escreverá
e naqueles que a sabiam ou faziam. O escritor An-
tónio Modesto Navarro, que percorrerá o Alente- O concelho de Alandroal é uma das áreas interio-
jo na segunda metade da década de setenta, reco- res de Portugal, um dos últimos redutos europeus
lhendo testemunhos e poesia popular, terá aqui um onde a poesia oral-popular tem cultores em núme-
papel fundamental. ro e em mérito [...].
93
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Com vestígios milenares da presença humana a aproximação a este cantar. A palavra afirma-
(construções megalíticas, povoados castrejos[...]) e se dita e raramente cantada, só em despique ou
com uma paisagem árida, de xistos, azinheiras e es- em desgarrada, esta última sempre sustentada
tevas, bordejada pela frescura do Guadiana, esta pelo corrido.
terra guardou no seu seio durante tempos infindos Em 25 anos a décima ocupou o lugar do quarte-
o segredo da poesia oral-popular. to e o fado, aparentemente, morreu. Os estudiosos
As raízes desta tradição afundam-se na memória cortaram a ligação que havia entre as experimenta-
colectiva dos ditos e cantares poéticos, talvez desde ções e o uso operário, domesticaram o movimento e
os cantares guerreiros dos povos autóctones até aos a subversão deste com a localidade e o lamento.
cânticos sagrados dedicados aos deus luso-romano Mas se a realidade bibliográfica é esta, a reali-
Endovélico que teve [...] santuário no alto do outei- dade vivencial é outra. O fado continua vivo e in-
ro de S. Miguel da Mota, perto de Terena.21 delevelmente mantém-se viva a presença da cida-
de operária. O fado e os fadistas no município de
Nem uma referência ao fado, expressão úni- Santiago do Cacém, desde o poeta Manuel José
ca de as cantar, o que é reconhecido por estes Santinhos aos fadistas Fernando Espada e Albano
poetas, ou fadistas. Nem a alusão à guitarra do Miguel, passando pelos guitarristas António Chai-
tocador Sebastião Grilo22 ou a inclusão daqui- nho e António Parreira, são a prova viva desta pro-
lo que poderemos classificar como cegada23 faz funda, frutuosa e contínua ligação.
NOTES
A DÉCIMA NO ALENTEJO DO SÉCULO XX1 ção de textos e comentários sobre poesia no renas-
cimento e maneirismo espanhol se trata de uma
I. fonte inesgotável para a compreensão da nossa po-
A
O contrário do que se afirma, a poesia popu- esia popular3. A provar esta afirmação, Juan d’El
lar não é isenta de uma teoria, que importa le- Encina [n. 1469 – m. 1529] e o seu El arte de poesía cas-
vantar2. Para tal, temos que retomar alguns tellana, texto datado de 1496, que é uma das ba-
aspectos já referidos. ses para se compreender as técnicas e as denomi-
A décima resulta de uma experimentação e de nações de uso popular no Alentejo.
uma renovação da poesia espanhola, num período Isto mesmo nos diz, de forma sintética, um dos
a que se deu o nome de Siglo de Oro, que ocor- grandes estudiosos da nossa literatura, Georges Le
reu entre finais do século xv e meados do século Gentil [n. 1875 – m. 1953].
xvii, em oposição a toda a corrente latinista e ita-
liana que os novos modelos culturais renascentis- L’influence de l’Espagne, au XVIIe siècle, est indénia-
tas tinham espalhado na Península Ibérica. Este Si- ble. On peut se demander si elle ne modifie pas
glo de Oro da poesia, teatro e literatura espanhola jusqu’aux manières de penser ou de sentir. Certes
foi produto de uma expansão territorial e económi- le fait n’est pas nouveau. On le constatait déjà
ca de um império que se estendia da Polónia às Fili- au temps du Cancioneiro de Resende. Les poètes
pinas. Portugal esteve durante pouco mais de meio ont continué, sauf de très rares exceptions, à
século sob domínio da Coroa castelhana, domínio employer concurremment les deux langues.[...]
político bem como de gostos e de práticas cultu- Par les migrations saisonnières de travailleurs, les
rais, não sendo assim difícil de entender a introdu- romances ont passé les frontières. Maintenant le
ção e o uso da décima em Portugal. Essa introdu- peuple lui-même est contaminé.
ção, em muito, é devedora da imprensa espanhola,
que através dos pliegos sueltos espalhou modelos e Falta um trabalho que estude as formas de cons-
textos por toda a Europa dos séculos xvi e xvii. trução da poesia popular, à semelhança de estudos
Foram séculos de forte circulação de ideias entre que existem no Brasil sobre a poética nordestina4. A
as camadas literatas e ligadas à Corte e as cama- quase inexistência de trabalhos deste género pren-
das populares. Necessário se torna referir que é du- de-se, inevitavelmente, a dois motivos: pensar que
rante estes séculos que se dá a explosão do uso da quem faz este tipo de texto, fá-lo espontaneamente
imprensa, embora os cadernos manuscritos conti- e de improviso; olhar para quem produz textos ex-
nuem a circular, cheios de poesia. Conhecem-se pe- tensos, como é o caso da décima, como possuindo
didos de cortesãos e poetas castelhanos que solici- quebras de raciocínio, já que incapaz de se expandir
tavam a poetas portugueses poesia de seu punho, em largas tiradas poéticas. Olham-se, pois, as déci-
no sentido literal da expressão, e vice-versa, para mas como algo anómalo dentro do “espírito criati-
juntar às suas colecções. vo do povo”, já que a pretensa tradição poética em
Assim, não é de estranhar que a visita à produ- Portugal assentaria na lírica mínima [ABCB ou ABAB]5.
95
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
A décima é o texto versificado mais populariza- g) no litoral alentejano, os quartetos que glosam
do no sul de Portugal e é também aquele a que se um quarteto são denominados quadras curtas;
dá mais valor. Surge-nos, regularmente, em con- h) em muitos locais a designação décima é desco-
juntos de quatro, desenvolvendo um mote de qua- nhecida e em seu lugar utiliza-se quadra; a palavra
tro versos, um quarteto. Este grupo de cinco com- décima ainda é tão recente que muitas vezes se diz
posições recebe em muitos locais a designação de uma quadra de décimas;
quadra. Quem tem vindo a interessar-se por este i) quando as décimas desenvolvem o fundamento
tipo de textos versificados, assume que a designa- dado pelo mote, diz-se que quadram com o mote.
ção de quadra vem de o mote ser uma quadra ou
de as décimas serem em número de quatro. O que significa então quadra?6 Designa a pró-
A explicação para quadra como proveniente do pria décima, pois esta quadra, enquadra-se, com o
número quatro, não nos parece convincente, pois mote e com o fundamento. Não existe no sul, co-
apenas designaria o mote que, glosado, daria o no- mo fizemos notar, a relação entre quarteto e qua-
me a toda a composição, além de que a designação tro versos, excepto numa questão formal de cons-
de quadra como equivalente a quarteto era prati- trução aquando da necessidade de rima entre o
camente desconhecida no sul até à década de seten- primeiro e o quarto verso e entre o sétimo e o dé-
ta do século passado. A aplicação performativa do cimo verso. Para além disso, designando a décima
quarteto denominava-se por verso, letra (também por quadra, os poetas afastam-se de uma estrutu-
letrinha) ou cantiga. ra apenas formal e aproximam-se do entendimen-
O que vamos aqui defender é o produto de um to do conteúdo. A décima/quadra é assim a exten-
trabalho sobre aquilo que designámos, provisoria- são e a mostra do entendimento do fundamento
mente, como Poética do popular. Muitos dos ter- que muitas vezes o mote não mostra – um mote
mos e expressões com uso na construção da ver- dado tem que ser acompanhado por uma explica-
sificação são de uma extraordinária fragilidade. ção. Vemos assim que, para lá da forma, o que in-
Uma expressão num contexto pode ser totalmente teressa é o que se quer dizer, ou seja, o conteúdo
diferente num outro. O termo quadra é um exem- discursivo.
plo maior da dificuldade de apreender o sentido de
uma designação. Vejamos II.
Mas como se constrói uma quadra?
a) quando, na décima, o primeiro verso rima com o Primeiro, o autor, o artista, o quadrista ou o dé-
quarto verso diz-se que quadra ou os pontos quadram, cimador, tem que ter um fundamento, um porquê,
assim como quando o sétimo verso rima com o décimo; uma razão, que pode ter por base uma estória do
b) quando na décima todos os versos – o verso é quotidiano, irónica ou não, o querer fazer uso de
chamado ponto, palavra ou linha – têm uma rima um mote alheio, fixar um acontecimento, um dra-
perfeita, diz-se que os pontos quadram, logo tem- ma, uma notícia de jornal...
se uma boa quadra ou uma boa obra; Tendo-se o fundamento, faz-se o mote. Este po-
c) se o quarteto que serve de mote tem uma rima de ser de quatro pontos ou de um só ponto. O
perfeita [ABAB/ABBA] diz-se que o mote é quadrado; mote de quatro pontos é aquele onde todos os
d) existem conjuntos de quatro, oito ou doze déci- versos são diferentes; o de um só ponto é aque-
mas, multiplicações do número quatro, que rece- le que repete um só verso quatro vezes. Este úl-
bem a designação de um rol de quadras; timo não é muito apreciado, já que, obrigando
e) existem, também, décimas sem recurso a mote a pontos simples, como o ponto do ar (palavras
que fazem uso do leixa-pren, chamam-se décimas cuja última sílaba seja em ...ar, como andar, tra-
ou quadras silvadas. balhar...) ou o ponto do chão (palavras cuja últi-
f) muitos folhetos com quatro décimas que glosam um ma sílaba seja em ...ão, como carvão, pão...), pro-
mote têm a indicação de «Umas Lindas Quadras»; voca na décima uma monotonia sonora. O mo-
96
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
te divide-se em dois dísticos, sendo o segundo o rima forçada, como aquela que há entre as pala-
mais importante. vras mãe e também. Quando não existe rima, a
Ponto é entendido como designando o verso, quadra é furada.
embora por vezes também surja palavra ou linha Na décima, os pontos mais importantes são os
– uma quadra tem quarenta (ou quarenta e qua- quatro primeiros e os dois últimos. No primeiro
tro se se contar com os quatro do mote) pontos grupo de versos tem que se procurar encaminhar
ou quarenta palavras. Até às primeiras décadas o «sentido da conversa» para o último ponto. No
do século xx, a designação ponto diferenciava- segundo grupo de versos, o mais importante na dé-
se de palavra. Palavra designaria o verso e pon- cima, e onde está o ponto do mote, procura-se o
to a última sílaba desse verso. Hoje, ponto tan- atenuante, ou seja, a inexistência de quebra frási-
to designa o verso como a última sílaba. O ter- ca e de sentido entre a primeira parte da décima e
mo linha não parece ser muito usual e provavel- os últimos versos. Isto é muito importante na dé-
mente tem origem na observação do número de cima; torna-se necessário que esta gire sempre em
linhas que a quadra possui, quando impressa ou torno de um mesmo discurso e que nunca se afas-
manuscrita. te por obrigação de rima. Muitas vezes o quadris-
Após a construção do mote, começam-se a fazer ta desmancha o seu texto porque não possui mais
as décimas, em número de quatro. Pode haver uma palavras do fundo sinonímico e de conteúdo a que
quinta estrofe, uma décima, uma oitava, uma sex- possa “jogar mão”, pois não se deve repetir uma
tilha, uma quintilha ou um quarteto que recebe o palavra usada na rima. O atenuante é a utiliza-
nome de remate ou cantigo, a finda literária. ção prática, num determinado momento da ver-
Para ser bem feita e memorizada, a quadra nun- sificação (o nono e o décimo verso) de um outro
ca é de improviso, pois raramente sai perfeita termo complexo que é o consoante7, ir ao..., que
quando assim construída, e esta forma não per- mais não é que enquadrar todos os quarenta ver-
mite a sua memorização. A quadra tanto pode ser sos no tema proposto que o mote deixa em aber-
feita numa noite ou num dia, como levar uma se- to. Assim, a existência de consoante no texto ver-
mana ou um mês. Cada décima tem que terminar sificado é o perfeito equilíbrio entre um atenuante
com um dos pontos do mote – o último verso da frásico e de sentido ao nível da décima e a perfeita
décima denomina-se como o ponto do mote. A pri- relação desta no interior da quadra, aqui entendi-
meira décima fecha com o primeiro ponto do mo- da no seu conjunto.
te, a segunda décima com o segundo e assim suces- A fórmula de versificação e o seu ensino de-
sivamente até à última estrofe. Estas tanto podem monstram um claro entendimento desta por par-
ser feitas continuamente, do primeiro verso até ao te do poeta popular. Se existe um conhecimen-
último, como podem ser feitas do décimo verso, to teórico, também existe um método de ensi-
ponto do mote, para o primeiro verso. no. Este método encontra-se nas mãos. Com as
A rima da décima é explicada da seguinte for- mãos demonstra-se como versam os pontos. Es-
ma: o primeiro ponto quadra com quarto pon- tendendo os dedos da mão esquerda, com a pal-
to e quinta com o quinto; o segundo ponto ver- ma para cima, a mão direita agarra o mínimo, o
sa com o terceiro; o sexto ponto versa com o sé- anelar e o polegar, deixando livres os outros dois
timo e quinta com o ponto do mote; o oitavo dedos, indicador e médio; esses dois grupos de
ponto versa com o nono ponto. Os versos sexto pontos/dedos são os que têm que versar com os
e sétimo recebem a designação de os pontos que mesmos pontos; cinco pontos da décima estão
puxam o ponto do mote. explicados, os outros cinco são iguais, só que ao
Todos os versos da quadra têm que ser versan- contrário, agora com a palma da mão esquerda
tes, não podendo haver toantes. Significa que tem para baixo. Ou seja, na fórmula o verso A é o
que existir uma rima perfeita e concordante entre polegar e o A’ e A’’ são o anelar e o mínimo, o B
os versos. Considera-se toante quando existe uma e B’ são os outros dois dedos, etc.
97
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Palma da mão esquerda para cima Não é nosso objectivo discutir ou apresentar um
A – polegar da mão esquerda; esquema tipológico alternativo. Com base na poé-
B – indicador da mão esquerda; tica inventariada no sul, pretende-se apenas dar a
B’ – médio da mão esquerda; conhecer os diferentes tipos de quadras e como es-
A’ – anelar da mão esquerda; tas são divididas localmente.
A’’ – mínimo da mão esquerda. As décimas, numa tipologia de formas, podem
surgir das seguintes maneiras
Palma da mão esquerda para baixo
C – mínimo da mão esquerda; a) quadras ou décimas soltas, uma só décima de-
C’ – anelar da mão esquerda; senvolve um mote de um só verso;
D – médio da mão esquerda; b) quadras ou décimas silvadas, décimas em con-
D’ – indicador da mão esquerda; juntos de número indeterminado recorrendo à téc-
C’’ – polegar da mão esquerda. nica do leixa-pren;
c) rol de quadras, décimas sem mote em conjuntos
Mas este método não existe à superfície, é ne- de quatro ou em múltiplos deste número;
cessário ser recortado dos diálogos com os poetas, d) quadras com mote de quatro pontos, quatro dé-
pois só existe a posteriori. Tal levantamento per- cimas desenvolvem um quarteto [ABCB];
mite percepcionar as suas prováveis origens. e) quadras com mote quadrado, quatro décimas
A primeira origem será uma arte de versificar ga- desenvolvem uma quarteto de rima perfeita [ABAB
laico-portuguesa8, em pouco número e patente nos ou ABBA];
termos palavra, como sinónimo de verso, e dobra, f) quadras com mote de um só ponto, quatro décimas
que mais não é que o «dobre» medieval9. desenvolvem um quarteto cujos versos são iguais [AAAA].
A segunda origem será o Siglo de Oro. Termos
como verso, sinónimo de quarteto, ou pé, desig- Quanto ao fundamento, numa tipologia temáti-
nando verso, mostram-nos esta aproximação, que ca, as quadras dividem-se em
El arte de poesía castellana deixa a descoberto na
seguinte explicação a) quadras de fundamento, quando dedicadas ao
sol, à lua, às estrelas, a Deus, à Virgem...;
Toda la fuerza de trobar está en saber hazer y conocer b) quadras ao profano, quando dedicadas às coisas
los pies, porque dellos se hazen las coplas y por ellos da vida, ao trabalhador e ao patrão, à miséria...;
se miden, y pues asi es sepamos qué cosa es pie. Pie c) quadras à campa, quando dedicadas à morte11;
no es otra cosa en el trobar sino un ayuntamiento de d) quadras ao namoro, quando dedicadas às rapa-
cierto número de sílabas: y llamase pie porque por élo rigas e ao casamento; dentro deste fundamento po-
se mide todo lo que trobamos, y sobre los tales pies demos incluir as quadras de algibeira, composições
corre y roda el sonido de la copla. [...] escatológicas, que recebem esta designação devido
[...] los latinos llaman verso á lo que nosotros à proibição de venda de folhetos com este tipo de
llamamos pie: y nosotros podemos llamar verso textos, levando o vendedor a escondê-las nas algi-
a donde quiera que ay ayuntamiento de pies que beiras.
comunmente llamamos coplas, que quiere decir [Existe um outro tipo de texto em décimas, as
cópula ó ayuntamiento.10 chamadas quadras de 120 pontos, nas quais cada
verso nomeia geralmente três objectos, três no-
A terceira origem será a cidade de Lisboa, como mes masculinos ou femininos.... São uma possí-
centro impressor, e o fado. Estilo, música, e ter vel transformação dos antigos abecedários, que
obra, muitos textos para cantar ou dizer, são al- no Nordeste brasileiro são conhecidos por ab-
guns dos exemplos dessa influência. cês12.]13
III. IV.
98
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
É vulgar afirmar-se que o poeta popular é uma for- Já se escutava da manada a choca
ça da natureza e a sua arte espontânea, o que signi- Ao longe da campina: da outra banda
fica a existência de um inatismo no ser-se poeta, tra- Alli punha a serrana a lã na roca,
duzindo-se tal afirmação na expressão «é uma coisa Aqui pastava a cabra a relva branda;
com que se nasce». Um guardador além a flauta toca,
Muito do que se escreve sobre os poetas popula- Quando a beber o gado á fonte manda:
res encosta-se à ideia do bom selvagem, que começa Ouvia-se alternada em seus amores
a ser construída a partir do século xvi, reforçando- A sincera cantiga dos pastores.17
se a partir dos séculos xviii e xix (fruto do confron-
to com o outro, aquele que está para além do espa- O uso de mapas genealógicos produzidos durante o
ço europeu)14. trabalho de campo e o estudo feito dos percursos bio-
Este facto coincide, nos séculos xvi e xvii, com a se- gráficos de alguns poetas – juntando-se, ainda, a reco-
paração definitiva de gostos culturais entre os grupos lha de informação obtida que visava saber a posição
sócio-económicos europeus e com a construção so- ocupada por estes na estrutura complexa, hierárqui-
cial daquilo que denominamos como cultura popu- ca, social, laboral e económica – em vez de reforçar
lar15. Se se juntar a este esforço de análise compara- tais ideias, veio, pelo contrário, torná-las pouco con-
tiva uma outra que entronque entre esta noção, a do sistentes.
bom selvagem, e a ideia de tradição greco-romano Importa salientar que, maioritariamente, todos
renascentista, recuperada nos séculos xvi a xix, que estes poetas são assalariados ou pequenos proprie-
a chamada poesia popular surge em meios campone- tários. O seu acesso à terra ou se faz enquanto mão-
ses, logo pastoris, teremos o quadro mental que gerou de-obra, especializada ou não, ou (ainda há alguns
muitos dos olhares que moldam as formas correntes anos) como seareiros e pequenos rendeiros, permi-
de pensar a poesia dita tradicional, arcaica, oral-po- tindo, pois, demarcar este grupo. Fora deste não
pular ou ancestral. Isto mesmo nos diz Margit Frenk existe o gosto por este tipo de texto versificado,
nem o gosto de participar na sua performance18.
[...] uno de los aspectos claves de la ideologia
renacentista es la idealización del hombre primitivo, V.
al que se creía cercano aún a Dios, libre de los vicios Ao nível profissional, já se referiu, devemos sa-
que la civilización en la humanidad. De ahí nacen a lientar a quase ausência de pastores. No percurso
la vez mitos como el de la “Edad de Oro” o el del da inserção laboral, mais ou menos idêntico pa-
“Buen salvaje” y el aprecio por los brotes del ingenio ra todos os assalariados do sul – e veremos co-
y la fantasia del vulgo (refranes, cantares, juegos mo este percurso é de extrema importância para
infantiles). Toda Europa pasa entonces por esa misma o entendimento do valor que estes textos versifi-
experiencia vital. Parece, sin embargo, que en España cados desempenhavam na sociabilidade e na inte-
ella se produjo de manera más honda y prolongada gração social dos poetas populares –, um dos pri-
que en los demás países. Toda la literatura hispánica meiros trabalhos que a criança do sexo masculi-
de la gran época, desde la Celestina hasta Caldéron, no desempenhava era a de ajuda de gado; é, assim,
está atravesada por una veta popularizante, sin la normal que a uma pergunta directa sobre que tra-
cual no sería lo que es.16 balhos desempenhou, o trabalho de pastoreio se-
ja referido.
Foram assim os camponeses e os pastores pen- Vejamos, genericamente, o percurso laboral.
sados como poetas, pois estes são, em muito, o ar- Até cerca dos sete ou oito anos, as crianças brin-
quétipo perfeito da relação entre o poeta bucólico cavam ou frequentavam, se possível, a escola. A
e o bom selvagem. Veja-se esta oitava de João Xa- frequência variava conforme o sexo. Um rapaz po-
vier de Mattos [n. ? – m. 1789] deria ir até à antiga 4.ª classe, a rapariga raras ve-
zes a terminaria, sendo normal a frequência só até
99
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
à 3.ª. A instrução escolar feminina era, portanto, um vizinho; alteração social ou política, como, por
pouco valorizada. exemplo, o 25 de Abril de 1974. Podemos tam-
Isto não significava uma total disponibilidade bém incluir neste subgrupo aqueles que, embora
para este universo de aprendizagem, muito pelo pertencendo ao subgrupo dos que iniciando a sua
contrário. Este fazia-se parcialmente, complemen- aprendizagem de textos versificados21 antes dos 22
tando pequenas tarefas de pouca exigência técni- anos, nunca produziram texto algum e que, devido
ca. Os rapazes ajudavam em trabalhos não espe- a razões acima mencionadas, construíram um ou
cializados: ajuda de gado, quase sempre, ou agua- mais textos. Quando questionados sobre a razão
deiros. As raparigas ajudavam em casa, tornando- que os levou a fazer uma quadra ou uns versos, a
se particularmente importantes quando existiam resposta dada é, invariavelmente, a necessidade de
crianças de menor idade. Entre os sete e os do- uma recordação.
ze anos desenhava-se toda a repartição sexual do Todos aqueles que começaram a produzir ou a
trabalho. decorar textos versificados antes dos 22 anos, po-
Entre os 14/15 e os 17 anos, os jovens do se- dem dividir-se em três patamares etários
xo masculino iniciavam a aprendizagem dos tra-
balhos agrícolas. Até serem considerados traba- I. aqueles que começaram entre os 6/7 anos e os
lhadores e poderem ter um salário igual aos mais 11/12 anos, quando eram ajudas de gado. O fazer
velhos, o ganho era à mulher. A passagem de um ou o aprender quadras está quase sempre ligado a
grupo para outro era feita após a aprendizagem uma aprendizagem da leitura e da escrita, cujo en-
de um trabalho do campo – a limpeza de árvores sino é feito pelo moiral que ajudam e que muitas
ou o tirar da cortiça – para o qual arranjavam um vezes também é poeta. Quase sempre este moiral é
padrinho, muitas vezes um tio, que os passava de um familiar; no Baixo Alentejo predomina o lado
ruça a trabalhador. paterno, no Alto Alentejo não encontrámos uma
Cerca dos 20 anos, os jovens iam tirar as sor- clara definição, mas os elementos recolhidos pare-
tes (apresentação na inspecção militar), e, se não cem indiciar que será o lado materno que apoia o
tivessem nenhum problema, cumpriam o serviço jovem na primeira fase do seu ciclo laboral;
militar. Posteriormente, casavam-se ou juntavam- II. na sua grande maioria começam o seu percurso
se, a situação mais frequente (ela quase sempre um de produção ou aprendizagem poética entre os 14
pouco mais nova); quando acontecia o juntamen- e os 17 anos. A razão que nos é dada prende-se ao
to era na casa dos pais da jovem que residiam, até namoro, a poder frequentar as vendas, porque al-
fundar um novo fogo19. guém na família fazia, a tentativas de experimen-
Resumindo, temos três divisões no ciclo laboral tação ou porque viram alguém nos trabalhos do
e biográfico: um primeiro que vai dos sete aos 12 campo a fazer quadras;
anos; um segundo que vai dos 14 aos 17; e um ter- III. existe, por fim, um grupo que se inicia no universo
ceiro que se dá por volta dos 20 anos20. poético por volta dos 20 anos, quando cumpre o ser-
Os poetas que entrevistámos, em cerca de seten- viço militar. Os locais ou momentos de maior influên-
ta locais do Alentejo e Algarve, iniciaram a feitu- cia foram: o prestar serviço militar no forte de Elvas,
ra de poemas ou a sua aprendizagem antes dos 22 a ida para os Açores durante a II Guerra Mundial e
anos ou num momento posterior não generalizá- a presença na Guerra Colonial. Os textos ligados ao
vel a todo este subgrupo. forte de Elvas falam de sofrimento e de desumanida-
O subgrupo dos que iniciaram a sua produção de e os textos ligados quer aos Açores, quer à Guerra
poética depois dos 22 anos, compreende apenas Colonial, falam de saudade e de lonjura22.
uma pequena minoria dos entrevistados. A razão
dada para o início da sua produção liga-se a fac- É visível a relação que existe entre o ciclo la-
tores de ordem biográfica: doença, sua, de fami- boral masculino e o momento que marca o início
liar ou de um vizinho; morte, de um familiar ou de da aprendizagem ou feitura dos primeiros versos.
100
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Muitos dos futuros poetas utilizam ou recorrem à provisador e vendedor de folhetos, natural de Santa
quadra de forma bastante notória para uma rápi- Bárbara de Padrões, Almodôvar, residente entre o Al-
da socialização e integração nas redes sócio-labo- garve e Corte Vicente Anes, Aljustrel, o mapa gene-
rais. Assim, o ano em que se começa a trabalhar, alógico mostra um percurso idêntico: filho segundo
as primeiras frequências nas vendas, os pedidos que herda de um tio, irmão do pai, o fazer poesia.
de namoro, o marcar na memória a passagem pe- Para o Alto Alentejo interior, a alteração faz-se,
lo serviço militar, são os momentos importantes em muitos dos casos analisados, ao contrário. Não
que estão intimamente ligados aos primeiros pas- existe uma referência ao lado paterno, mas sim
sos deste universo. ao lado materno. Em ambos os casos, os parentes
A construção de mapas genealógicos dos poetas nomeados são, na sua maioria, um avô ou tio se-
populares permitiu levantar algumas hipóteses. gundo. Em algumas biografias, este tio segundo foi
Durante as conversas que mantivemos, foi cor- muito importante no ciclo laboral do poeta.
rente afirmarem que a poesia nasce com as pessoas. No Alto Alentejo interior nomeiam-se, maiorita-
Quando lhes perguntávamos se não tinham algum riamente, os parentes maternos; no Baixo Alentejo,
parente que fizesse quadras ou cantasse de impro- Alentejo Litoral e Algarve nomeiam-se, sobretudo,
viso, havia quase sempre uma alteração no discur- os parentes paternos.
so. Os nomes surgiam e fazia-se referência a algo O levantamento da posição que o poeta ocupa
que era explicado como as linhas que puxavam a na hierarquia económica e social, permite construir
geração. Foram estas informações que nos leva- uma divisão entre estes: ou ocupam um espaço de re-
ram à aplicação do método biográfico, acedendo levo social ao nível local (mestres de ofício, seareiros,
a dois campos de informação: que lugar ocupa o feitores...), ou o espaço de menor valoração social ao
poeta no seu grupo familiar e que lugar ocupam, nível local (o bêbado, o aleijado, o trabalhador de
em relação a este, os parentes que também fazem, pouca valia económica…). É deste último grupo que
ou faziam, textos versificados. têm origem os que vendem folhetos e cantam por fei-
A maior parte dos poetas nunca são primeiros fi- ras e mercados, muitas vezes ligados a redes de pros-
lhos e geralmente não herdam, no caso de existir, tituição de barraca, de tiro ou às putas de manta.
a profissão do pai. Álvaro Pedro (filho de Manuel A produção de textos versificados possui, entre es-
Pedro, quadrista e improvisador famoso), um dos tes dois grupos, grandes diferenças ao nível do con-
maiores poetas e vendedores de folhetos do Bai- teúdo, permitindo-nos aceder a uma posição ideoló-
xo Alentejo, natural de Gomes Aires, Almodôvar gica que os seus produtores ocupam. Existia, antes
– hoje acoitado junto à vila de Ourique –, não che- de 1974, uma menor crítica nos que ocupavam uma
gou a aprender o ofício do pai, que era albardeiro. hierarquia mais elevada, e uma maior crítica naque-
Por morte de Manuel Pedro, o ofício foi herdado les que ocupavam os lugares mais baixos dessa mes-
pelo seu filho mais velho, que se recusou a ensinar ma hierarquia, além de que estes últimos pareciam
a este a arte. Este irmão mais velho nunca produ- estar muito melhor informados das condições sociais
ziu um único verso (existe mais uma irmã que ape- e laborais que o país atravessava antes da data referi-
nas foi referida como tendo casado). Este exemplo, da. Muitos dos poetas populares que vendiam folhe-
a que outros se podem juntar, possibilita a percep- tos mantiveram, antes da Revolução, algumas liga-
ção de um certo controlo por parte do grupo fami- ções com a clandestinidade do PCP, o que os levou,
liar de quem acede a certas partes do património nos anos que se seguiram a Abril de 1974, a ocupar
disponível. Os mais velhos herdam as técnicas do lugares políticos de relevo ao nível local. Veja-se os
ofício; os mais novos, herdam outras possibilida- casos de António Maria Coelho, de Corte Vicente
des de subsistência, como, por exemplo, cantar e Anes (Aljustrel), Francisco Bentes, de Pedrógão (Vi-
vender folhetos por feiras e mercados23. digueira), que embora encarregado de minas sempre
Em casos de inexistência de especialidades laborais, frequentou feiras e mercados, ou Francisco Melri-
como é o caso de António Maria Coelho, poeta, im- nho, do Alandroal24.
101
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
NOTAS
1 Todo este capítulo é retirado, com ligei- 11 Para uma breve discussão deste funda- ses. Para o contexto do sul de Portu-
ras alterações, de Lima 1996. mento ver Lima, 1994: 693-694. gal ver Cutileiro 1977: 57-117 e Bar-
2 Manuel Viegas Guerreiro afirmava em 12 Para uma análise e estudo dos A. B. C. ros 1986: 191-283.
1992: «Está, porém, por fazer um es- ver Cascudo 1984: 82-94. Não se abordará aqui o percurso biográ-
tudo aprofundado da poética popu- 13 Os recursos estilísticos não são aqui fico e o ciclo laboral-feminino, pois
lar: variedade de ritmos, complexi- estudados. Embora nas suas denomi- não é relevante na análise aqui desen-
dade de rimas, estrutura das estrofes, nações locais exista matéria para pro- volvida. Todo este texto se move no
peculiaridades de estilo e sintaxe, com fundas reflexões, inclusive ao nível das interior do masculino na poesia. De-
repetições que se ordenam ora parale- dissonâncias, como é o caso das qua- ve-se acentuar que todo um trabalho
listicamente, ora em certos lugares e dras de vir’ó-verso. nesta área está por fazer: estudando a
com alternâncias por conhecer. Vol- 14 Frenk 1987: v-xxvi. sua relação com o universo masculino
ta-se ao princípio, repete-se o que está 15 Burke 1989. da poesia e procurando saber como se
no meio, segundo determinadas prá- 16 Frenk 1994: 16. posiciona a mulher num espaço que
ticas de comunicação. Uma arte de 17 Vasconcelos 1891-1896: 22. aparentemente não lhe é aberto nem
compor, em suma, cujas leis se igno- 18 Esta observação não contempla aque- favorável, considerando-se social-
ram.» Guerreiro 1997: 141. O itáli- les que, regional e localmente, se inte- mente muito negativa a participação
co é nosso. ressaram pelas recolhas do cancioneiro de mulheres nestas unidades perfor-
3 Para uma excelente análise deste período dito tradicional e pelas chamadas tradi- mativas. A mulher, quando nos surge,
ver Mayo s. d.: 19-82. ções do povo, já que os eruditos locais ou está relacionada com a prostituição
4 Batista 1982. posicionam-se como observadores/ de feira, ou possuía problemas físicos,
5 Escreve Zaluar Nunes: «Numerosas dé- estudiosos, construindo uma relação ou transportava algo que socialmen-
cimas, por vezes glosas a motes podem vertical entre o informante e o inquiri- te a inferiorizava em relação ao que a
ser curiosas por denotarem certa influ- dor. Também aqui não se contemplam mulher deveria ser na “norma” moral
ência da poesia culta. Mas mostram a os padres, professores ou proprietá- (embora seja uma “norma” conceptu-
marcada dificuldade da musa popular rios, que localmente dinamizaram e al, logo manipulável).
se espraiar em longas tiradas orató- apoiaram grupos, quer femininos, 21 Este subgrupo é geralmente denomi-
rias: há frequentes quebras de sequên- quer masculinos, de folclore, em muito nado nas bibliografias por ‘dizedo-
cia do raciocínio e evidentes emba- baseados no «Concurso da Aldeia res’ e localmente por homens que
raços de expressão. Estão bem longe mais Portuguesa», ou alicerçados só sabem obra alheia; embora sejam
da transparência cristalina e aliciante em disputas locais de obtenção de (re)utilizadores de textos pré-existen-
simplicidade verificáveis na maioria status ou sob a influência estética de tes, isto não significa que não façam
das outras cantigas, singelas e espon- promoção cultural das províncias pelo alterações nos versos, que julguem
tâneas.», Nunes 1975: XXXVIII. Estado Novo. não estarem bons, das composições
6 Embora não saibamos quando se come- 19 Para uma informação mais detalhada versificadas que decoram.
ça a denominar assim. da escolha de um novo fogo na socie- 22 Sobre uma «certa» amnésia social em
7 No Cancioneiro de Resende consoan- dade camponesa alentejana na vira- relação a referências à violência du-
te denomina a resposta que um ou- gem do século ver a descrição apre- rante a Guerra Colonial ver Conner-
tro, ou um ‘outro’ transfigurado, o sentada em Picão 1947: 125-190. ton 1993: 16-26.
próprio poeta, dá a uma composição, 20 Para uma análise mais detalhada da so- 23 Em pequenos povoados a pulverização
utilizando o mesmo sistema de versifi- ciedade camponesa, na primeira me- de mestres de ofício provocaria um ex-
cação e a mesma rima. tade deste século, do sul da Penínsu- cesso de oferta em relação à procura
8 Gonçalves & Ramos 1985: 64-70. la Ibérica ver Mintz 1982: 33-61, em- existente.
9
Uma estranha sobrevivência! bora sobre um caso andaluz, pode ser 24 Navarro s. d.: 71-76, 151-170, 173-
10 Batista 1982: 3. utilizada noutros contextos campone- 212.
102
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
P
OR volta de 1900, a décima cobre todo o sul. antiguo conjunto, de una clasificación en elementos
Nas décadas seguintes, virá a ser visível um ou- «sábios» o «eruditos», y hasta «cortesanos». Es
tro fenómeno, que hoje ligamos imediatamen- cierto que todavía al principio de nuestro siglo varios
te a esta estrofe e às diferentes formas de cantar nes- rasgos de nuestras «culturas populares» procedían
ta região: os cantadores ambulantes e os vendedores formalmente de tradiciones medievales: el hecho
de objectos impressos. esta demostrado por muchos cuentos y canciones
Poderá parecer estranho não termos feito até campesinas, tanto en Europa como en América. Pero
agora qualquer alusão a este grupo, embora, de eso nos es más que una apariencia de continuidad;
quando em vez, tenhamos feito referência ao col- funcionalmente, no ay nada que vincule entre sy
portage. Eles, os cantadores e vendedores, tornar- los términos de esas falsas analogías. Los universos
se-ão responsáveis pelo transporte do fado e da dé- románticos en los que respectivamente se inscriben
cima no Portugal meridional, depois de 1900. Se- apenas son comparables y no podemos, en el plano
rão a espuma que ficou na praia depois da onda documental, interferir gran cosa entre ellos.1
ter recuado para o mar.
Nesta breve incursão sobre a palavra em movi-
II. mento, dita, cantada, escrita, impressa, vamos fe-
Não vamos aqui estabelecer um paralelismo en- char um círculo aberto quando abordámos Ma-
tre este fenómeno do colportage e o universo tro- nuel Alves e António Maria Eusébio.
vadoresco, tão apetecível a alguns autores que se Não consideramos os cantadores ambulantes e
têm debruçado sobre o fenómeno da palavra anda- os vendedores de folhetos os introdutores do fado
rilha. Simplesmente, não são relacionáveis. Qual- e da décima no sul. Esta hipótese há muito que de-
quer esforço resulta infrutífero após as primeiras veria estar afastada, pois mais não faz do que rein-
e simples correlações. Sobre este jogo apetecível, troduzir uma velha teoria de Teófilo Braga2.
Paul Zumthor faz uma análise histórica de gran- Estes cantadores têm particular importância na
de interesse alimentação de textos impressos e na continuidade
de um gosto introduzido pelos fadistas operários
[...] la inmensa mayoría de los textos cuya vocalidad oriundos da região de Lisboa e pela intensa circu-
interrogo son anteriores a la aparición de esta «cultura lação de gentes entre o sul e a capital.
popular», distinta – unas veces menospreciada y otras Segundo o nosso entender, o que estes andarilhos
alabada por su encanto anticuado – y consecutiva a da palavra – ou filhos de Caim – vão fazer é ocupar
la ruptura social, política, ideológica, del 1500. No es um determinado lugar deixado vazio ou que estes pe-
103
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
regrinadores da consciência social abriram. No fun- O poeta António Aleixo, cauteleiro e guarda-
do, o que os homens e mulheres que viviam das pa- dor de rebanhos, cantor popular de feira em fei-
lavras fazem, é seguir um gosto da moda que a re- ra, pelas redondezas de Loulé, é um caso singu-
alidade sócio-económica permitia. A mudança ope- lar, bem digno de atenção de quantos se interes-
rada em Portugal no pós 1945 culminou com o fim sam pela poesia.
do universo do colportage. Este universo estará mor- Embora não totalmente analfabeto – sabe ler e tem
to na década de sessenta do século xx. E o que vai lido meia dúzia de bons livros – não é capaz, po-
acontecer na década de oitenta e noventa do sécu- rém de escrever com correcção e a sua preparação
lo passado, com a venda de livros de poesia popu- não lhe dá certamente qualificação para poder ser
lar, não deve ser confundido com o fenómeno que considerado um poeta culto.3
aqui é referido.
E nem uma única referência ao fado. Mais uma
III. vez. Será preciso ir visitar a obra de Martinho Ri-
Quando se fala em poesia popular, um nome é ta Bexiga, amigo de Aleixo, organizada por Jo-
imediatamente associado: António Aleixo. Mas es- sé Ruivinho Brazão, para termos referências ao
te poeta é apenas um entre vários da primeira me- fado, mas mesmo assim de forma não explícita4.
tade do século xx meridional. Outros, porventura Nem Fernando Cardoso, no seu inventário de po-
até mais famosos, deverão ser recordados: Manuel etas populares, faz alguma alusão à forma de can-
de Castro, Josefa Inácia Prego e Jaime Velez. tar de Aleixo5. Curiosamente, será um poema de
Todos estes poetas populares são fotografias po- Joaquim Magalhães, feito no ano em que o poeta
bres de uma outra poesia, a culta ou erudita, sendo morreu, a melhor prova de que o fado era central
por isso que se realça tanto o facto de serem analfa- na obra de Aleixo. Uma das sextilhas diz
betos e a pobreza que arrastam. Não estamos longe
dos princípios que nortearam Guerra Junqueiro, To- Improvisador sem par
más da Fonseca ou Paulino de Oliveira. Da guitarra acompanhado,
António Fernandes Aleixo [n. Vila Real de Santo Antó- Andava de feira em feira,
nio:1899 – m. Loulé 1949] foi criador de cabras, vendedor E era capaz de levar
de cautelas e folhetos, a um escudo, pelas feiras e A cantar a noite inteira
mercados do Algarve, Beira-Serra e Baixo Alente- As suas quadras no fado.6
jo. Também enviava o seu filho a vender papéis im-
pressos a sítios como a feira de Ferreira do Alen- A este gosto das quadras cantadas em fado – e
tejo. Improvisador famoso de versos, pelos quais não esqueçamos que quadras aqui tem um senti-
ficou conhecido, glosava quartetos em décimas, do ambíguo, pois tanto pode indicar quartetos co-
cantava o fado e era exímio tocador de guitarra. mo a glosa em décimas – não poderá ser estranho
Os seus livros, com textos recolhidos e editados o seu pai, o tecelão José Fernandes Aleixo, que
por outros, vão fazer dele a imagem populariza- também fazia e dizia(?) quadras populares, e que
da de um Camões sofredor e que encarna todos os integrava
males que um poeta transporta: a desgraça, o gé-
nio, a incompreensão... Livros que importa revisi- [...] as comissões de trabalhadores que acolhiam
tar criticamente, dando particular atenção ao pa- em Loulé deputados republicanos e fortemente an-
pel dos intermediários culturais, aspecto que é visí- ticlericais. Afonso Costa terá sido um dos políti-
vel na fórmula dos seus quartetos [ABAB], fenómeno cos que José Fernandes Aleixo conheceu no âmbito
algo estranho na poesia popular do sul. Sobre ele dessas actividades parapolíticas.
escreverá o Prof. Joaquim Magalhães, na introdu- Aliás [...], José Fernandes Aleixo [...] terá sido cor-
ção que fez à recolha de quadras feitas pelo relojo- relegionário no Centro Socialista de Loulé, inaugu-
eiro e arqueólogo amador José Rosa Madeira rado no dia 1 de Maio de 1919.7
104
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Joaquim Palminha da Silva, na nota biográfica autoria, mas o qual, entre outros, tem a marca da
a Manuel António de Castro [n. Cuba:1885 – m. Cuba: presença do movimento operário dos alvores do
1972], escreve século xx
Decorria o ano de 12, a grande jornada de luta de Além vem no carro da morte
trabalhadores contra a República burguesa, a grande A tumba de um indigente;
«tournée» de organização dos Rurais do sul, realizava- Lutou na vida, sem sorte,
se em Agosto – 25/26 – Évora o PRIMEIRO CON- Desce à vala pobremente!
GRESSO DOS TRABALHADORES RURAIS estan-
do representados 39 sindicatos e 12 525 trabalhado- Mais um pobre que morreu
res, presente, MANUEL ANTÓNIO DE CASTRO No catre de um hospital;
delegado dos trabalhadores de Cuba. Cansado de passar mal,
A questão da guerra era já claramente abordada e Não resistiu, faleceu;
os próprios trabalhadores rurais a discutiram no seu Apenas tinha de seu
Congresso, revelando posições diferentes face à even- As fúrias do vento norte,
tual compra de material de guerra pelo Governo. Tem agora este transporte
Castro foi um dos oradores que defendeu «esse objec- Por geral conveniência,
tivo do governo em termos patrióticos». Com toda a sua indigência,
No último dia do Congresso os trabalhos são dirigidos Além vem, no carro da morte!
por Manuel António de Castro, que intervindo a pro-
pósito dos assuntos tratados, ele, que na véspera defen- É um carro funerário,
dera posições nacionalistas e belicistas quando as dis- De aparência taciturna;
cussão do orçamento militar do governo, repudiava Não conduz pomposa urna,
agora a sua anterior posição. Afirmou que quando ali Traz a tumba de um operário;
entrou tinha uma pátria muito estreita: Chama-se Por- Se fosse a de um milionário,
tugal. Hoje tem outra mais ampla: Chama-se Terra.8 O aspecto seria diferente,
Vinha a colcha refulgente
Manuel de Castro, mais conhecido como Castro E a capela de flores,
da Cuba, será dos cantadores de feira mais famosos Assim só traz, meus senhores,
do Baixo Alentejo, cuja fama só é ultrapassada por A tumba de um indigente.
Josefa Inácia Prego. Grande cantador de despique,
será respeitado pelas suas quadras e por «ter uma A tumba que tem servido
arca cheia de livros». Dizia-se que tinha o 5.º ano Em diversos funerais
dos liceus. Pombinho Júnior, em 1962, escreverá o P’ra centenas de mortais
seguinte sobre ele Como este desprotegido;
Embora tivesse sido
Parece que este Manuel de Castro fora sargento do Prestável, de braço forte,
Exército e, dado o seu feitio boémio, andava tam- De limpo e correcto porte,
bém por feiras e romarias como cantador popular.9 Verdadeiro homem de bem,
Seja quem for, lá vem,
Os seus improvisos em décimas ficarão na me- Lutou na vida sem sorte!
mória de muitos que com ele cantaram ou o ou-
viram cantar. Deve ser um infeliz
Cristovão Enguiça, no livro As deixas de Ma- Vivendo em contínuo empeço,
nuel António de Castro, atribui-lhe o que consi- Como tantos que eu conheço
deramos um fado e que dificilmente será de sua De quem a sorte maldiz.
105
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
E não foi porque quis, das ou não, nos desafios a «ponto solto» ou «preso»,
Deserdado e padecente, «simples» ou «dobrado»; conhece a maioria das can-
O destino irreverente ções e «modas» mais em voga no riquíssimo folclore
É que o talhou malfadado do Baixo Alentejo, onde, sem dúvida, mais e melhor se
E como tal, abandonado, canta em Portugal. É autora de muitas «décimas», que
Desce à vala pobremente.10 tem publicado e vendido nas suas peregrinações, «dé-
cimas» a que chamam «quadras populares» ou «canti-
A mais importante e famosa figura do cantar gas», focando sobretudo casos tristes (suicídios, assas-
andarilho e da venda de papéis impressos é Jose- sínios, crimes passionais, etc.), que infelizmente ainda
fa Inácia Prego [n. Portel:1889 – m. Portel:1966], também são vulgares na vasta região alentejana.13
conhecida por Ceguinha de Portel, Cega da Prega
ou Zéfinha de Portel, epítetos que lhe servirão pa- De Josefa Inácia, Ceguinha, conhecemos um fo-
ra assinar os folhetos que vendia. lheto intitulado «A vida duma Ceguinha», que só
As bexigas, que a atacam por volta dos seis, oito poderia ser cantado no fado Bacalhau, composto
meses, provocar-lhe-ão a cegueira. Entre os anos por Armandinho, já que é em sextilhas divisíveis
dez e os anos quarenta, cinquenta, do século pas- em dois corpos de três versos cada, trísticos. As
sado, percorrerá todo o Baixo Alentejo, Algarve, primeiras estrofes são
Alentejo Litoral, indo até junto de Lisboa. Travará
tenções com os mais famosos poetas e cantadores, O português canta a trova,
saindo geralmente vencedora. Tem feito da velha nova
Morará em diversos locais: Aljustrel, Beja, Pe- Em muitas ocasiões.
drógão, Portel... de onde sairá sempre em Mar- Também eu às vezes canto,
ço para só voltar nos primeiros dias de Dezem- E envôlto o amargo pranto
bro, após a feira de Santo André. Tocará diversos Com quem grinaldo paixões.
instrumentos, gaita-de-beiços, concertina11, mas o
instrumento da sua preferência é a guitarra a que A trova do portugês
chamará «Bandurra, minha bandurra»12. Aquela que muita vez,
Sobre ela, Pombinho Júnior escreverá Nos faz maguas disfarçar.
O que canta e alivia,
Esta pobre cega tem calcorreado, pelo braço do mari- Esse, pode ser que um dia,
do e dos filhos, vales e montes, vilas e aldeias de qua- Sinta a alma aliviar.
se todo o Baixo Alentejo, cantando e tocando guitar-
ra por festas, feiras e romarias, “batendo--se” ao desa- Tem-se passado comigo
fio noites inteiras, nas barracas de comes-e-bebes, com Tenho a paixão por castigo,
os mais afamados cantadores do Sul, que a temem mas Essa que alivio chorando.
procuram para os seus despiques, por ela cantar muito Só o cantar me distrai.
bem, ter bonita voz e mostrar sempre bom agrado pa- Emquanto o coração vai
ra todos, sendo por isso muito estimada. As máguas contemplando.
Nos desafios, de que ordinàriamente sai vencedora, faz
largo uso do género satírico, muito da simpatia dos Se alguém dos meus versos rir,
cantadores e do seu numeroso auditório, com tal mor- Quem os ler ou os ouvir,
dacidade que chega a ser contundente, daí muitos an- Pense primeiro do que ri.
tagonistas abandonarem o desafio, vencidos e enver- Descorra pela memória
gonhados... Verseja bem e com a maior facilidade; tem Que a minha vida é uma história
grande memória, pelo que sabe de cor centenas e cen- Que eu mandei escrever aqui.
tenas de quadras populares, que aproveita, modifica- [...]
106
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Ainda o que mais me admira Consta que esta quadra, assim como as respectivas dé-
e penso vezes a “miúdo”: cimas, brotaram naturalmente do poeta na própria ca-
dizem que o Sol nasce para tudo sa do patrão Eduardo Magalhães e frente a várias in-
mas eu digo que é mentira. dividualidades lisboetas entre as quais se encontrava
Se o pobrezinho conspira um Ministro – o Prof. Dr. Pinto da Costa Leite (Lum-
O burguês com ele ralha, brales). O abastado lavrador teria então insistido com
Até diz que o põe à calha, o poeta-ganhão para que este, com seus “improvisos”,
Nem à porta o pode ver. divertisse o banquete oferecido na Herdade dos Barros
A não trabalhar e só comer aos seus convidados, após uma grande caçada.16
Não vejo senão canalha.
IV.
Quem passa a vida arrastado, Este inventário, que poderia ser muito maior, mos-
por se ver alegre um dia tra até que ponto o fado e os temas operários dos fi-
logo diz a burguesia nais de oitocentos e princípios de novecentos, perma-
que é muito mal governado, neceram nos poetas meridionais, nas suas atitudes e
que é um grande relaxado, na sua obra. É claro que cantavam outros estilos e
que anda só no bote e “dête”. modelos de estrofes que não o fado, mas o mais im-
Antes que o pobrezinho “respête”. portante era a trova da consciência social. Embora
tratam-no sempre ao desdém. provocatório, não será de mais chamar a estes ho-
E vê-se andar quem muito tem mens e mulheres fadistas, não apenas porque canta-
De banquete para banquete vam o fado, e faziam fados, mas porque incorpora-
ram toda a catequética que litógrafos, tipógrafos, fer-
É um viver tão diferente! roviários, socialistas, republicanos fizeram em pere-
Só o rico tem valor grinação social pelos campos do sul nos finais do sé-
e o pobre trabalhador culo xix e no dealbar do século seguinte.
107
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
NOTAS
1 Zumthor 1989: 33-34. 9 Pombinho Júnior 1962. ram sempre nos negaram o saber to-
2 Nogueira 2003: 14. 10 Enguiça 1987: 23-24. car tal instrumento, referindo-nos
3 Aleixo 1960: 7. 11 José Alberto Sardinha informa ter re- sempre que o seu instrumento era
4 Brazão 1993: 47. colhido testemunhos de que Josefa a guitarra. Tal não significa que a
5 Cardoso 1989: 17-28. Prego tocava viola campaniça, Sar- informação de Sardinha não este-
6 Duarte 1999: 161. dinha 2001: 107-119. Os diferentes ja correcta.
7 Duarte 1999: 27-28. informantes, familiares, moço de ce- 12 Lima 1994: 189.
8 Silva 1997: 15-16. go e cantadores que a acompanha- 13 Pombinho Júnior 1962.
108
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
N
O sul mediterrâneo, urbano e assalaria- fesa dos interesses dos trabalhadores agrícolas,
do, o fado começa a insinuar-se depois mineiros ou gente de fábricas. Todos operários.
de 1860. As décadas de setenta e oiten- A máquina será uma companheira em todas es-
ta deverão corresponder a uma penetração lenta, tas actividades.
que se torna mais rápida após 1890. Este cantar e estas estrofes vieram sobrepor-se,
Esta lenta penetração nos gostos da cultura adaptar-se ou levar a adaptar modelos existentes
popular deverá ter sido feita nas áreas urbanas de cantar e de construir estrofes. Enfim, um efeito
e industriais. As minas, as fábricas de cortiça de contaminação cultural.
e de conserva, assim como os caminhos-de-fer- Num trabalho pioneiro sobre o baldão, Maria
ro, terão sido espaços onde uma canção operá- José Barriga refere que este é mais recente que
ria iniciou a mancha que em breve se espalharia o despique, e aponta o seu surgimento para fi-
por todo este território. nais do século xix1. Seria de extraordinário in-
Mas o movimento de gentes e mercadorias, de teresse ver até que ponto as novas glosas e es-
há muito presente no Portugal meridional, deverá trofes não vão obrigar a alterações e a modis-
também ter sido de grande importância neste es- mos nas práticas poéticas e musicais do Alente-
palhar da décima e do fado. jo e Algarve. Um exemplo de muito interesse é
Os objectos impressos em Lisboa, os fadistas o texto de Pombinho Júnior sobre o cante das
operários – e a sua prédica social – e o movimen- gralhas... à solta
to gerado pela economia alentejana, terão sido os
responsáveis por esta disseminação da trova social Segundo me disse numa tarde de Outubro de 1947,
e dos seus conteúdos. o nome de Gralhas à solta foi posto na Cuba, ia
Os cantadores andarilhos e vendedores de pa- para 35 anos, por Manuel de Castro, outro apaixo-
lavras ditas, cantadas e impressas, conscientes nado dos cantes populares, especialmente do despi-
de um novo espaço aberto nos gostos populares, que, quando pela primeira vez o cantou e lhe pedi-
alimentarão, durante cinco ou seis décadas, os ra para ele lhe pôr o nome.2
gostos das populações rurais e operárias do sul
de Portugal. Pensamos que os velhos modelos em uso no sul
vão ser confrontados ou com a extinção, ou com a
II. complexificação. O despique, o baldão ou as gra-
A décima e o fado irão fazer parte integrante lhas poderão ser efeito e produto disso mesmo.
das sociabilidades dos rurais desta região. Serão
um património a que «jogarão mão» e que pa- III.
ra muitos será uma forma de criação de status Mas o mais importante não é os modismos es-
109
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
1 Barriga 2003. Esta investigação etno- é nada mais do que um quarteto do- de desafio. Tal denominação não é
musicológica é uma viragem nos es- brado, ou seja dois quartetos, cuja úl- muito correcta, já que a forma in-
tudos meridionais sobre as formas de tima estrofe repete dois dos versos da ternacional é improviso e em Portu-
cantar e é o melhor contributo para primeira, técnica de larga difusão no gal o termo que percorre todo o país
o conhecimento destas práticas dos cancioneiro popular do sul. Aliás, pa- é despique. Usar uma denominação
últimos anos. Pena é que esta inves- rece-nos que a origem do baldão tem específica do norte não parece ser de
tigadora não tenha desenvolvido al- mais a ver com uma técnica de impro- grande precisão.
gumas das propostas ou aspectos que viso no cante às vozes do que noutras Por último, nada nos autoriza ai-
se adivinham no seu trabalho. Infeliz- explicações mais rebuscadas – era co- dentificar estas estrofes como quar-
mente, e aí influenciada pelo trabalho mum entre a repetição da moda cons- tetos. Muito do que denominamos
de Fialho Barreto, Barreto 1991, so- truírem-se cantigas de improviso. Se como estrofes de quatro versos em
bre as formas de improviso no Alen- analisarmos os estilos em que o bal- grupos de dois, poderão ser estrofes
tejo, tenha chamado ao fado cante em dão é cantado, vemos que este usa o de cinco, seis, sete, oito versos e que
décimas. Sobre a definição que dá de mesmo modelo estrófico que a moda em nada têm a ver com os quartetos.
baldão, parece-nos que este não tem a na tradição lhe é correspondente. So- São uma ilusão dos colectores.
ver com a simplicidade estrófica, mas bre a demografia, raiz de uma divisão 2 Pombinho Júnior 1962.
antes com a possibilidade de ser can- entre as formas de cantar da planície 3 Galhoz 1988: 731. Ver também, des-
tado sem recurso a um instrumento. e da serra, parece-nos difícil de sus- ta investigadora, o excelente traba-
Cantar à balda é cantar sem acom- tentar tal ideia sem estudos monográ- lho em torno desta parábola publi-
panhamento instrumental. Temos di- ficos específicos sobre estas mesmas cado no c. d. No Paraíso Real.
ficuldade em entender o que é que o formas de cantar. 4 Lima 1994: 347.
despique tem a ver, estroficamente, Um outro aspecto a críticar é de- 5 Navarro s. d.: 253-254.
com o baldão, pois este último não nominar esta forma de cantar com 6 O Fado 29 de Abril de 1923
PARTE II
QUATRO
A
Parte ii deste livro é sobre o poeta popular, popular meridional dos séculos xix e xx. Ou melhor,
ou fadista?, Manuel José Santinhos, profa- por um segmento dessa mesma poesia. Essa viagem,
nista natural de Santo André. Na poesia po- algo extensa, era necessária para entendermos como
pular meridional, especialmente em torno da cons- surge e como se desenvolve a obra de um poeta como
trução de uma poética da quadra, dividem-se quan- é a de Manuel José Santinhos. É na proposta assen-
do ao sentido, de forma claramente encostada ao fa- te nessa viagem que se encontra a nossa explicação
para o «ruído» que é o corpus reunido deste poeta.
do, as obras em quatro grandes temas: fundamento,
Os seus textos enversados não cabiam até agora em
prostitutas (ou namoro), campa e profano. Enten- nenhuma tentativa explicativa. Ficavam sempre sem
da-se, pois, profanista como aquele que faz obras ao arrumo. Sem apressar conclusões, podemos afirmar
profano, «às coisas da vida». que não temos a «cadeia de ADN» completa – reco-
A Parte i serviu para dar contexto à obra poética nhecemos este facto, e nem todas as peças encaixam!
deste lavrador de Santo André, e também para, isola- –, mas o que fica de fora é agora muito menos. Acre-
damente – e de forma sumária – traçar uma história ditamos que resolvemos parte do exotismo que o po-
do fado e da décima, o que em muitos pontos é uma eta do Tojal apresentava e representava.
e a mesma coisa. Sem esta excursão não seria possível Com esta chave explicativa, o movimento operário
criar, pela primeira vez, um entendimento sério sobre e o fado, este poeta surge-nos agora como um poeta
a obra de um poeta que poderia ser visto como uma da modernidade, presente no grande movimento de
perturbação no espectro da poesia popular alenteja- renovação da poesia popular de que nos alvores de
na e, particularmente, do litoral. novecentos submergiu o fado, transformando-o na
Na Parte ii deste trabalho iremos fazer um escor- canção nacional, na trova da consciência social. Ma-
ço biográfico do poeta. Faremos, seguidamente, uma nuel José Santinhos viveu essa transformação (muito
abordagem comparativa entre os textos que sobre ele e provavelmente, sem o saber), legando-nos uma obra
sobre a sua obra foram escritos1. Os textos comparados que marca de forma indelével a presença desse mo-
serão os dois textos do Dr. Carlos Teiga, um datado do vimento no Alentejo. Esse é o seu maior contribu-
ano de 2000 e outro do ano de 2002, e um texto de Ví- to. Metaforicamente, Manuel José Santinhos, o poe-
tor Bastos, de 1991, que constitui a primeira reflexão ta do Tojal, tem a importância que o celacanto teve
feita sobre a vida e a obra deste poeta, bem como da para a história da evolução: foi o elo que nos faltava
sua contextualização. A partir deste embasamento, ire- para encontrar a ligação entre a poesia popular me-
mos analisar separadamente – e propor algumas solu- ridional, o fado e as gentes que circularam nesta pai-
ções dentro do argumento que temos vindo a perseguir sagem a sul do rio Tejo.
neste trabalho – as duas dissonâncias maiores existentes
na obra de Manuel José Santinhos: a presença de uma
balada ultra-romântica, «O noivado do sepulcro», do NOTAS
poeta portuense Soares de Passos, e as singulares estro- 1 A impressa periódica não será trabalhada, pois não acarreia
fes localizadas na obra deste poeta popular. dados novos.
116
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
P
OR volta de 1900, Delfina Santinhos [n. Santo An- feitas para destruir o mato e produzir um mato
dré:1860 – m. Santo André:19422],
residente no monte fino para as cabras comerem (os chamados «re-
Tojal de Baixo e foreira dos 120 hectares que novos» do mato), tem a ideia de experimentar a se-
compõem a propriedade do Tojal3 – aforamento fei- mear trigo nestas areias «gordas». A terra, «que
to à condessa de Alenquer, cuja paga anual monta- estava folgada» – pois nunca tinha sido até aí se-
va em três alqueires de cereal(?), vertidos em dinhei- meada – dá uma boa seara. Vendo o resultado,
ro, e numa galinha poedeira sem estar choca – fica José Joaquim Gonçalves divide a propriedade do
viúva de José Luís, de Ribeira da Ponte, que morreu Tojal em courelas e dá-as a semear – para «rom-
jovem, «entrevou», deixando três filhos, um rapaz e per» as terras – ficando o seareiro obrigado a pa-
duas raparigas. Esta propriedade do Tojal tem como gar um molho de cereal por cada dez. Estas lavras
limites a ribeira de Baleizão, o monte Maria da Ma- serão feitas com bois, em juntas de quatro ani-
ta e Terras do Concelho (faixa de terreno não afora- mais por charrua, já que na terra, até então nun-
do que ia até ao mar). ca cultivada, as raízes do mato tornavam difícil o
Algum tempo depois, Delfina Santinhos contrai rasgar da terra.
um segundo casamento com José Joaquim Gonçal- A charneca, até aí espaço de pastoreio, começa
ves [n. Margavél:1870 – m. Santo André:1915]. Este Gonçal- a produzir milho, cevada, centeio, trigo – o trigo
ves, vendedor de bombazina pelos montes, é con- mocho – e arroz. Estamos em 1908, 1909, e Ma-
trabandista de cortes de fazenda, que vai «a salto» nuel José Santinhos tem agora três ou quatro anos.
buscar a Espanha. Para este casamento, muito te- É interessante salientar que esta alteração ecológi-
rá contribuído o marido4 de uma irmã mais velha ca, findando os matos compostos por estevas, ma-
de Delfina Santinhos, aconselhando Gonçalves a ta salgadeira, trovisco, tojo, mato durázio, etc., e
casar com a irmã da mulher, pois esta estava so- dando lugar ao resmono, mato branco e outros, a
zinha e tinha uma propriedade para administrar. par da transformação das terras incultas em ter-
Desta união, nasceram cinco filhos. Manuel José ras agrícolas, leva ao recuo da presença caprina e
Santinhos [n. Santo André:1905.Dezembro.27 – m. Santo André: a uma substituição destes por ovinos.
2001.Outubro.05], o poeta do Tojal, será o primeiro da Mas José Joaquim Gonçalves morrerá aos 45
prole deste segundo matrimónio. anos, e Delfina Santinhos contrairá ainda um ter-
Joaquim Gonçalves será o primeiro(?) a seme- ceiro casamento, agora com Dâmaso Mendes [n. San-
ar pão nesta charneca, cerca de três décadas antes to André:1860 – m. Santo André:19405], também viúvo, que
do plantio de pinheiros. Até essa altura, o pasto- trará para o Tojal de Baixo os seus filhos, qua-
reio de ovelhas e porcos, assim como das grandes tro rapazes e uma rapariga. Desta terceira e últi-
cabradas que desciam das serras de Santa Cruz e ma união de Delfina Santinhos, já não nascerá fi-
de São Francisco, para aqui trazidas de modo a lho algum.
117
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
gório que embora tivesse pouca obra, tinha boa Nesta bela maravilha
voz; vinha Jacinto do Outeirão com a sua gui- O LINDO BAIRRO HORIZONTE
tarra, e vinha também a tia Luísa Santinhos, ir-
mã mais velha da mãe, da aldeia do Giz, que fa- Existiu neste local
zia quadras e cantava o fado, «o fado antigo»7. Habitações cabanal
Comiam-se filhós, que Delfina Santinhos frita- É bem que isto se conte
va, e bebia-se vinho. Lá está que mete cobiça
Santinhos nunca aprenderá a tocar instrumen- Uma casa feita em cortiça
to algum. Ainda tenta aprender a tocar gaita-de- E TEM UMA RUA DEFRONTE
beiços, realejo, mas não irá longe nesta aprendiza-
gem: «ficava com os lábios esfolados». Em Baleizão situado
Aos 86 anos, Vítor Bastos e Maria Celeste Ro- Pelas brisas bafejado
drigues editam um primeiro livro com os seus tex- Que levantam da maré
tos, e aos 95 anos, Carlos Teiga editará uma se- Os prédios todos em linha
gunda antologia dos seus poemas. Entretanto, será E sita numa chapadinha
convidado para participar em encontros de poesia E COM UMA VÁRZEA AO PÉ
popular, terá entrevistas em jornais locais e regio-
nais, em diversas rádios locais, vindo também a ser Calhou nesta região
entrevistado pela RTP. Meninas de estimação
Em 2001, a Junta de Freguesia de Santo André As delícias de quem ama
dará o seu nome a uma rua desta aldeia, Entre os tojais e a lezíria
Há povo que se admira
RUA TI MANEL DO TOJAL COMO O SEU NOME TEM FAMA
Manuel José Santinhos, Poeta Popular
nascido a 24 de Dezembro de 1905 Esta é que é bem iluminada
JFSA, 2001/04/21 Serve de rua e de estrada
E às vezes serve de cama
acto integrado numa homenagem intitulada «O Aonde se passa à vontade
canto do Tojal» que decorrerá entre 21 de Abril Retiro da mocidade
e 22 de Maio, contando também com uma ex- A DITA RUA SE CHAMA
posição que esteve patente na Escola Básica do
1.º Ciclo da Aldeia de Santo André. Sobre es- O querer agradar quem vem
sa homenagem, comporá Santinhos as seguin- Seu nome quis mostrar bem
tes sextilhas Quem cá houve em Santo André
Foi um grande amor do Fado
O LINDO BAIRRO HORIZONTE Que hoje tem o seu nome gravado
TEM UMA RUA DEFRONTE POETA MANUEL JOSÉ
E COM UMA VÁRZEA AO PÉ
COMO O SEU NOME TEM FAMA Em Outubro de 2003, a Liga de Amigos de Vila
A DITA RUA SE CHAMA Nova de Santo André (LASA) promove a primeira
POETA MANUEL JOSÉ edição do prémio de poesia «Ti Manel do Tojal».
Hoje, existe um movimento, constituído por
Quem parte da marginal amigos e admiradores, que pressiona a Câmara
Com direcção ao Tojal Municipal de Santiago do Cacém para dar o no-
Como quem quer ir à fonte me de Manuel José Santinhos à futura biblioteca
Vê bem como o sol brilha de Vila Nova de Santo André.
124
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
IV.
Mas os melhores relatos biográficos são constru- Fui logo assim de criança
ídos pelo próprio Manuel José Santinhos. Uma das De criança fui logo assim
mais sugestivas quadras é esta dita e retornada Alguém tinha esperança em mim
Em mim alguém tinha esperança
S OU O M ANUEL J OSÉ DO TOJAL Tinha moral e lembrança
D O TOJAL M ANUEL J OSÉ Lembrança tinha e moral
D E S ANTO A NDRÉ NATURAL E ao depois fui parcial
E NATURAL DE S ANTO A NDRÉ Parcial fui ao depois
E natural de Santo André sou hoje
Quem por bem me assome eu abraçado H OJE SOU DE S ANTO A NDRÉ NATURAL
Eu abraçado a quem por bem me assome
E baptizado para ter nome Não nasci para ser fingido
E para ter nome baptizado Para ser fingido eu não nasci
No Azinhal fui registado Conto o sucedido até aqui
Registado no Azinhal Até aqui conto o sucedido
A quem me amou eu amo igual Com o que é isto é parecido
Amo igual a quem me amou Parecido isto com o que é
E do Tojal Manuel José sou Sou quem apareceu nesta maré
S OU M ANUEL J OSÉ DO TOJAL Nesta maré sou quem apareceu
E natural de Santo André sou eu
Aos que leais me querem falar E U SOU NATURAL DE S ANTO A NDRÉ
Aos que me quiserem falar leais
É perguntar não têm mais
Não têm mais que é perguntar
Que eu até gosto de explicar
De explicar eu gosto até
Com a Primavera eu tive fé
Tive fé com a Primavera
E Manuel José do Tojal era
E RA DO TOJAL M ANUEL J OSÉ
NOTAS
1 Baseada em entrevistas, em DAT, renos desta propriedade. Pereira Santinhos [1945], Silvério Pe-
efectuadas em Dezembro de 1994, 4 Este tio, e também padrinho, de reira Santinhos [1948], Eduarda Ma-
e em Maio e Julho de 2000. Manuel José Santinhos poderá ser o ria Pereira Santinhos [1951], Glória
2 Datas aproximadas. quadrista Parral. Pereira Santinhos [1956].
3 Na década de setenta estas terras serão 5 Datas aproximadas. 7 Oposição ao fado moderno, que se-
expropriadas pelo Gabinete da Área 6 Bernardo José Pereira [1932], Ce- rá cantado por Santinhos. Possível
de Sines, como muitas outras proprie- lestino Pereira [1934], José Pereira referência à primeira expansão do
dades desta região. Hoje, parte de Vila [1936], Vitalina Pereira [1938-1956], fado, ainda ligado quer ao corrido,
Nova de Santo André ergue-se nos ter- António Pereira [1940 - ?], António quer ao quarteto.
125
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
A
PARTIR da década de oitenta, Manuel José drigues (licenciada em Línguas e Literaturas Mo-
Santinhos desperta o interesse de investiga- dernas e professora na Universidade de Lisboa, on-
dores e colectores. Rastreámos a sua pre- de, à altura, era docente na cadeira de Fonologia
sença em: periódicos locais; no trabalho de Vítor e Morfologia do Português). Celeste Rodrigues é
Bastos e de Celeste Rodrigues, que lhe é inteira- também sobrinha do poeta do Tojal. Este livro foi
mente dedicado1; numa antologia de poetas alen- editado em 1991, pela Câmara Municipal de San-
tejanos e algarvios, produto de um encontro em tiago do Cacém, e é uma produção da Editorial
Monchique organizado pela radialista da Rádio Caminho.
Fóia Idalete Marques, onde se publica um poe- Esta publicação é o resultado de uma profunda
ma seu2; numa antologia de poetas de Santiago do relação de amizade entre o poeta e Vítor Bastos,
Cacém, onde parte substancial lhe é dedicada, or- que transparece nas cerca de vinte cassetes áudio
ganizada pelo Dr. Carlos Teiga3; e, também, nu- que sobreviveram das suas recolhas e que se en-
ma antologia dedicada a dois poetas grandolen- contram à guarda na Câmara Municipal de San-
ses, José Pedro Guerreiro, o Rei dos Malhadais ou tiago do Cacém, gravadas entre meados dos anos
Rei do carvão, e a seu irmão Manuel Guerreiro, oitenta e os finais da mesma década.
o Bruxo, organizada por este último autor4. Exis- O livro é composto por um prefácio, pelo corpus
tem ainda algumas brochuras que repetem dados recolhido e por um pequeno glossário.
retirados do trabalho de Vítor Bastos e de Celes- O glossário é um léxico, ou melhor, uma lista-
te Rodrigues. gem de palavras e expressões retiradas dos textos
Na nossa breve análise, iremos apenas apresen- enversados. Este é de interesse variável.
tar criticamente três referências bibliográficas: o O corpus reúne pouco mais de centena e meia
trabalho de Vítor Bastos e de Celeste Rodrigues, de textos, divididos morfologicamente: quadras,
de 1991, e os dois trabalhos do investigador local quintilhas, sextilhas, quadras de 40 pontos e qua-
Dr. Carlos Teiga, de 2000 e 2002. dras de 60 pontos.
O prefácio indica ser da autoria de Vítor Bastos,
II. pois que evoca, na primeira pessoa, uma experiên-
A primeira grande referência feita à vida e obra cia de ensino em Moçambique, assim como o de-
de Manuel José Santinhos encontra-se no livro sencadear do seu interesse por esta poesia. Tal ex-
Memória das Gentes do Lugar. Manuel José San- periência de contacto com culturas orais, leva-o,
tinhos, poeta popular, cujo trabalho de campo e após a presença numa tertúlia de poetas em San-
tratamento paraeditorial é de Vítor Manuel Bas- tiago do Cacém, a ficar sobressaltado pela perda
tos (licenciado em filosofia e em Ciências Antro- irreparável deste tipo de poesia,
126
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
[...] numa noite de convívio com poetas iletrados, dar-se, expressamente, poetas locais de nomeada.7
numa tertúlia a céu aberto de um 1986 distante
e quase anónimo, o conteúdo dos poemas recita- Esta ancoragem leva-o a estruturar, após um traba-
dos, no respeito pelo melhor da tradição oral, nos lho de cinco anos com o poeta do Tojal – e com ou-
colocasse na senda do sobressalto e do receio pe- tros poetas da região –, os seguintes postulados
la perda inglória de tal riqueza. Colette Magny dis-
se um dia: «Quando em África morre um velho [...] Trata-se de um indicador importante de uma afir-
é como se um fogo consumisse uma biblioteca.». mação cultural autónoma de profundo recorte socio-
De facto, África inculcou-me o gosto pela tradição lógico, psicológico e cultural.
oral. Mas, desta vez, o entusiasmo transbordou na [...] É um indicador importante do interesse das gen-
espectativa[sic] duma recolha que não se afigurava tes do lugar pelos seus usos, costumes, práticas e tra-
fácil nem cómoda.5 dições.
[...] Pela sua estrutura melódica e rítmica, as compo-
Após um ano de trabalho, e com cerca de trinta sições desta literatura oral são concebidas para uma
composições poéticas, Vítor Bastos iniciou um con- memorização durável e uma repetição frequente. Pela
junto de reflexões, que se prefiguraram em torno de sua forma estabilizada e pouco dada a modismos é de
qual fácil assimilação e retenção.
[...] Pelo seu conteúdo e linguagem facilmente com-
O papel social da tradição oral e da literatura po- preensíveis, pelos apreciadores, agrega cultores e
pular no âmbito da problemática estudada.6 apreciadores em número importante e suscita a iden-
tificação e adesão das populações aos seus conteúdos,
Caminho que o leva a interrogar a bibliografia e sua reprodução e preservação. Ainda que de forma
os usantes, tentando encontrar qual o espaço so- assistemática e pouco fiel.
cial que ocupa a poesia e o que é a «literatura po- [...] É um tipo de composição que encontra na memó-
pular», assim como esta se constrói, e, em última ria no[sic] seu veículo de divulgação e de conservação
análise, se a designação é correcta. Tal reflexão le- privilegiado. Por isso, ao longo da sua evolução tem-
va-o a concluir se adaptado às exigências que o registo mnésico-repe-
titivo impõe.8
Portanto, esta literatura cumpre, ainda, uma função
de registo, não dos Homens grandes da História, mas Após esta entourage, apresenta de forma breve
dos homens grandes das estórias. Daqueles que por o corpus do poeta do Tojal e descreve sucintamen-
mor da sobrevivência vão escrevendo os episódios de te o trabalho que desenvolveu ao longo de cinco
que se fazem as estórias e história do homem do sen- anos, o que lhe permitiu aceder a cerca de cento
do comum – e por que não de bom senso? – que as e cinquenta composições (a estas outras se devem
vive e protagoniza, nessa tarefa difícil que é a vida somar, embora incompletas. Neste caso Santinhos
das pequenas localidades onde o tempo se rege pe- já não consegue uma recuperação efectiva, como
los grandes ritmos naturais, mais do que pelos da ci- o mostram as cassetes áudio.).
vilização urbana. Não é, pois, difícil de conceber que Um aspecto que importa relevar é a questão da
nestas circunstâncias o povo veja nas quadras da «li- memória e das variantes textuais
teratura popular» o seu reflexo ou o reflexo de si.
A sua produção ocorre, frequentemente, no local de Trabalhando com o autor, pudemos assistir a prodí-
trabalho: pastoreio, sementeira, monda, colheitas, fim gios de criatividade operados na recuperação de ex-
dos trabalhos agrícolas, e, como já dissemos, nas ven- certos esquecidos. Frequentes vezes, ao estudar as no-
das, nas funções ou funçanadas, no terrado da feira, tas das nossas recolhas, nos confrontávamos com a
no arraial, em casamentos, baptizados, aniversários, perplexidade de saber acerca das composições reco-
etc. Para algumas destas actividades chegam a convi- lhidas qual era a versão original e qual era a varian-
127
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
te. Quando junto do autor procurávamos destrinçar sem a presença visível desses sinais gráficos, a apreen-
entre original e variante obtínhamos um sorriso con- são do sentido dos textos só será possível – e mesmo as-
descendente e a esperança que um dia mais soalheiro sim com algumas dificuldades e não menos deficiências
permitiria ajudar a restabelecer a ordem nas dúvidas – mediante leituras várias, um grande esforço de concen-
que o nosso trabalho suscitava. Não obstante, a me- tração e um afincado trabalho de análise o que, como é
mória prodigiosa que o poeta Manuel José Santinhos óbvio, está fora do alcance do leitor comum!10
revela é, em nosso entender, um caso excepcional.9
Mas é no «Prefácio» ao corpus poético que Tei-
III. ga explana toda a pesquisa desenvolvida em tor-
No ano de 2000, Dr. Carlos Teiga, edita, em edi- no da vida e obra do poeta em causa, chamando
ção de autor, o livro Poesia popular de terras de a atenção para o
Santiago, onde divulga um corpus textual que cor-
re entre o romanceiro e a poesia popular. Das cerca [...] aliciante pelo que ela ressuma a diferente e a
de 360 páginas, 200 são dedicadas ao poeta Ma- novo.11
nuel José Santinhos.
O Dr. Carlos Teiga é professor de português apo- Tal novidade é, em grande parte, motivada pelo
sentado e desde há alguns anos que dedica-se à re-
colha e ao estudo da literatura tradicional do su- [...] “achamento” de estruturas poéticas novas, di-
doeste alentejano. ferentes, e que são, em muito, criação do nosso po-
A parte referente ao poeta do Tojal divide-se entre eta do Tojal. Estão neste caso as quadras ou déci-
uma advertência, um prefácio, o corpus reunido, um mas de 40 pontos em verso longo – 10 a 14 sílabas
glossário e um anexo onde respiga de um caderno métricas – e que apresentam (imagine-se!) dupla ce-
manuscrito algumas composições. O corpus é divi- sura e triplo esquema rimático, e ainda, as quadras
dido da seguinte forma: quadras sem mote, quadras de 60 pontos que exibem um esquema rimático que
com mote (em verso curto), quadras com mote (com é pura criação sua! E, como se isto não bastasse,
dupla cesura e triplo esquema rimático), quintilhas vai aplicar o esquema dos versos longos com dupla
sem mote, sextilhas sem mote, sextilhas com mote, cesura e triplo esquema rimático a uma sequência
quadras de 40 pontos (em verso curto), quadras de de quatro quadras ou de quatro estrofes de 4 pon-
40 pontos (e em verso longo com dupla cesura e tri- tos sujeitas a mote! Não admira, pois, que esta sen-
plo esquema rimático), quadras de 60 pontos. sação de novidade e de diferença se consolide e se
Na «Advertência», Carlos Teiga define o méto- aprofunde quando confrontamos a poesia do nosso
do de trabalho que empregou poeta com a dos outros poetas populares – poesia
essa que pulula por aí, saída da boca ou da pena
[...] interessou-nos sobretudo revelar os poemas en- de tantos e tantos poetas populares, antigos e mo-
quanto textos literários, admitindo, no entanto, que es- dernos, já falecidos ou ainda vivos, e que, de facto,
ses mesmos textos possam ser objecto de miradas dife- não ombreiam com o nosso poeta no tocante às ex-
renciadas, segundo critérios específicos das várias disci- celências da sua arte de poetar: nem quanto à lírica
plinas das ciências humanas. Por isso, não nos repugna singeleza do seu pensamento poético nem quanto
aceitar a impressão tipográfica dos poemas tal como eles à novidade das estruturas formais únicas, ímpares,
apareceram numa edição saída há poucos anos atrás, que o seu talento de artista forjou!12
embora cientes e convictos de que esse procedimento é,
de facto, fortemente redutor quanto à possibilidade da Perante tal observação e após uma análise do cor-
clara e integral compreensão deles. Assim, só alguém, pus, Teiga conclui
munido de alguma competência literária, estará apto a
captar o sentido pleno dos poemas sem que haja, como [...] ficou-nos a convicção de que estamos perante
suporte de leitura, um único sinal de pontuação! Ora, o poeta popular mais autêntico e mais talentoso de
128
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
quantos alguma vez proliferaram por estas terras se estes dois exemplos: em Janeiro de 1963, dá-
alentejanas. Poeta popular que o é no sentido me- se uma tragédia na Lagoa de Santo André. Uma
dular do termo porque campesino por nascimento, onda causa a morte de dezassete pescadores, na
por vivências e por cultura; porque se expressa a praia. Tragédia terrível numa pequena comunida-
si próprio e ao mundo que o rodeia dando apenas de piscatória. Manuel José Santinhos faz – ou pe-
voz à sua cultura de raiz, às emanações expontâne- lo menos sobreviveram – dois textos: um é uma
as dum atavismo rural secular, “às murmureias” fi- quadra de 40 pontos com cesura e o outro é uma
losóficas da aceitação agrilhoada a um destino que quadra de 60 pontos. Vítor Bastos separa-os for-
não pediu mas que lhe calhou em sorte.13 malmente. A quadra de 40 pontos relata o aconte-
cimento18. A quadra de 60 pontos evoca os nomes
Dois anos depois, o mesmo investigador, em «No- dos pescadores afogados19. Ora, a separação des-
tas breves» à recolha dedicada aos dois irmãos poe- tes dois textos faz perder o sentido que motivou a
tas grandolenses de nome Guerreiro, aproveita pa- sua construção.
ra não só construir uma crítica ao livro Poetas de O segundo exemplo é o suicídio de Vitalina San-
cá14 e à atribuição autoral de alguns textos a poe- tinhos [n. Santo André:1938 – m. Santo André:1957], filha de
tas de Portel15, como para voltar ao poeta do To- Manuel José Santinhos e de Luísa Pereira. Manuel
jal, ajuntando-lhe mais algumas informações, on- José Santinhos faz a este propósito alguns dos mais
de a mais importante é a ligação ao fado como su- pungentes poemas, as chamadas quadras à campa.
porte construtivo das quadras de 40 pontos (e em A sua pulverização leva a que a força que o con-
verso longo com dupla cesura e triplo esquema ri- junto lhes dava se reduza20. Mas a estes exemplos
mático)16. poderíamos ajuntar os textos relativos à expro-
priação das terras pelo Gabinete da Área de Sines,
IV. ou aqueles outros que se referem à sua estada no
Não importa, agora, analisar as conclusões a que Centro de Dia «O Moinho».
chegou Carlos Teiga, uma vez que é o único que in- Um outro aspecto que importa reter é a diferen-
tentou desenvolver algumas hipóteses explicativas te estratégia em relação à edição dos textos. A an-
sobre a obra deste poeta; importa, antes, perceber tologia de 1991 assume
algumas premissas base que estão nos trabalhos de
1991 e de 2000. A ausência de pontuação fica a dever-se ao facto de
A leitura da organização do corpus mostra que o Poeta, que é iletrado, não a praticar.21
houve em ambos os trabalhos um arrumo por estro-
fes e por tipos de glosas. No trabalho de Bastos e Ro- Criticando esta posição, Carlos Teiga escreve
drigues, entre cada tipo houve um arrumo alfabético.
No trabalho de Teiga houve um arrumo cronológico, Ora, sem a presença visível desses sinais gráficos,
ficando para o fim os textos não datados. a apreensão do sentido dos textos só será possível
A inexistência de critérios organizativos por con- – e mesmo assim com algumas dificuldades e não
teúdos e a não inclusão dos fundamentos, premissa menos deficiências – mediante leituras várias, um
fundamental postulada no livro de Modesto Navar- grande esforço de concentração e um afincado tra-
ro17, levou à perda de informação, sofrendo os tex- balho de análise o que, como é óbvio, está fora do
tos um alinhamento que os retira das constelações alcance do leitor comum!22
a que pertencem. Claro que é complexo a organi-
zação de um corpus, mas é na sua estruturação, e Quer a organização do corpus, quer a forma de
nas chamadas de atenção, que está o princípio cla- o editar, importa. De interesse é também reflectir
rificador da obra. sobre as posições que cada um toma em relação
Nos corpus publicados, localizam-se textos que não só à importância da salvaguarda das obras dos
fazem parte de uma mesma constelação. Vejam- poetas populares, e em particular do poeta do To-
129
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
jal, como do olhar que sobre este é construído em Um outro ponto a que importa fazer referência é
ambos os autores. a pontuação. Se Vítor Bastos e Celeste Rodrigues
A leitura mostra que ambas as posições são optaram pela não inclusão de qualquer sinal orto-
coincidentes. Manuel José Santinhos surge sem- gráfico, Carlos Teiga procurou construir uma pon-
pre como analfabeto, preso a uma cultura oral tuação. A discussão em torno do acto de pontuar
que o amarra a um sítio que é imóvel e estanque textos recolhidos oralmente é antiga, tendo já da-
às transformações e possui uma aceitação abnega- do azo a alguma polémica em Portugal23. Torna-se
da do que o destino lhe ditou. Não estamos, pois, antes necessário pensar nos objectivos que se pre-
distantes do que, cem anos antes, Tomás da Fon- tendem atingir e naquilo com que o colector se jul-
seca ou Guerra Junqueiro pensaram e escreveram ga apetrechado.
sobre António Maria Eusébio, de Setúbal, ou Ma- A análise da localização ortográfica usada por
nuel Alves, de Vale do Boi. Não queremos com is- este último investigador, mostra uma perturbação
to afirmar que os contextos não se alteraram. A textual profunda, pois afasta estes textos quer do
visão permanece idêntica devido, não só, à pouca sentido, quer da norma de construção que lhe esta-
expressão de trabalhos sobre poetas e poesia po- va subjacente. O caso mais paradigmático é a pon-
pular que procuram novas abordagens, mas tam- tuação usada nas quadras de 60 pontos, onde os
bém porque se manteve um determinado olhar ain- trísticos praticamente desaparecem, dando lugar a
da muito enquistado em fórmulas românticas de uma grande confusão conteudística. E tal pontua-
analisar estas formas de construção textual. Os ção, inclusive, afasta-se das normas de dicção que
aspectos político-culturais são diferentes, mas o Santinhos lhe dava ou que informava quem lia: de-
olhar manteve-se em muito idêntico: constrói-se ver-se-iam ler de três em três pontos, e depois pro-
uma hipótese e modela-se a realidade para que es- ceder a uma paragem. Aliás, encontrámos em al-
ta se adapte a ela. gumas destas estrofes uma marca gráfica, um pon-
Quanto aos suportes que cada um usou nessa to, de três em três versos. Julgamos, pois, muito
mesma recolha, as edições mostram diferentes es- mais honesto, a não inclusão de pontuação, e jun-
tratégias. Vítor Bastos e Celeste Rodrigues usa- tar a informação de como se dividem estas estro-
ram extensamente o gravador, até porque não ha- fes no momento da verbalização, já que existem re-
via muitos textos manuscritos ou dactiloescritos. gras bastante fixas e que se repercutem (e são re-
Carlos Teiga, terá usado – pensamos – muito pou- percussão!) na sua feitura.
co o método da gravação áudio, recorrendo exten- É necessário, também, chamar a atenção para o
samente a cadernos manuscritos onde, ao longo da facto de Manuel José Santinhos ter mais de oiten-
década de noventa, amigos e admiradores fixaram ta anos quando começa a ser território de trabalho
os poemas do poeta do Tojal. A revisitação por nós para colectores, pelo que, também por isso, gran-
efectuada aos textos de Manuel José Santinhos e de parte da sua obra estava já irremediavelmente
a sua confrontação com os possíveis originais evi- perdida ou parcialmente esquecida. Por outro la-
dencia isto mesmo. A forma de fixação textual pe- do, muitos dos contextos ou poetas e cantadores
la qual um e outro optaram é de variável confian- com quem partilhou estas performances já tinham
ça. Muitos dos textos recolhidos e publicados por morrido ou estavam afastados por diversos moti-
Vítor Bastos mostram uma demasiada rapidez na vos. E estamos a falar de um homem velho, que
fixação e edição. Por outro lado, Teiga trabalha os embora ainda estivesse intelectualmente apto, as
poemas com mais cuidado, embora não tenha em suas capacidades poéticas tinham há muito perdi-
conta uma crítica muito atenta dos textos que re- do o exercício quotidiano.
colheu, e que estão alterados, muitas vezes, por um Torna-se também importante referir que as cam-
intermediário. Do mesmo modo, não entendendo panhas de recolha na década de oitenta e na dé-
algumas vezes as letras, ou seja o texto escrito, co- cada de noventa caem em momentos biográficos
loca palavras sem sentido entre aspas. muito diferentes. Na década de oitenta, Manuel
130
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
NOTAS
1 Bastos Rodrigues 1991. balhar séria e extensamente com poe- são de nomes de montes idênticos ou
2 Marques 1993: 145. tas populares, será confrontado cons- de variantes desse mesmo nome. Por
3 Teiga 2000: 7-210. tantemente com a difícil atribuição de último, não são as quadras que defi-
4 Teiga 2002: 34-39. um texto a um autor, e sem falar dos nem o autor, mas sim os fundamen-
5 Bastos & Rodrigues 1991: 15. textos que se entroncam noutros, as- tos, experiência de vida que muitas
6 Bastos & Rodrigues 1991: 16. sim como é errado transportar noções vezes utiliza textos alheios para vei-
7 Bastos & Rodrigues 1991: 18. autorais rígidas para estes grupos so- cular uma dor, uma perda, uma pai-
8 Bastos & Rodrigues 1991: 19. ciais, onde a noção individual de au- xão, um carinho, uma revolta. No
9 Bastos & Rodrigues 1991: 20. tor é, em muitos aspectos, inexistente fundo, um esqueleto de palavras on-
10 Teiga 2000: 8. ou bastante fluida. Se o entrevistado de se agarra a carne do quotidiano,
11 Teiga 2000: 11. assume o texto como seu, o colector, prenhe vivencial que a edição textual
12 Teiga 2000: 11. por respeito, deverá assumir essa po- mata quando amputa a estes textos os
13 Teiga 2000: 26. sição, não invalidando isto a constru- fundamentos.
14 Lima 1994. ção de uma crítica textual com refe- 16 Teiga 2002: 37-39.
15 O Dr. Carlos Teiga critica uma atri- rências à dispersão desse mesmo tex- 17 Navarro s. d.
buição feita por nós a dois textos, to. Por fim, ter uma resposta a uma 18 Bastos & Rodrigues 1991: 74.
fazendo uma referência muito pou- quadra não implica ser o autor de am- 19 Bastos & Rodrigues 1991: 176.
co educada: «Infelizmente há sempre bas as quadras, assim como uma re- 20 Bastos & Rodrigues 1991: 44, 94 ou
quem queira engalanar as suas pobres ferência toponímica não é por si ele- 174.
penas de gralho, vestindo, despudora- mento redutor da propriedade textu- 21 Bastos & Rodrigues 1991: 11.
damente, penas de pavão de talentos al: basta consultar o Reportório topo- 22 Teiga 2000: 8.
alheios!» Teiga 2002: 39. Quem tra- nímico de Portugal para ver a disper- 23 Sousa 1997: 141-156.
131
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
A
S dissonâncias presentes na obra de Manuel Jo- ção desta balada ultra-romântica pelo poeta do Tojal
sé Santinhos são duas: a primeira é um núcleo
de textos que podemos situar como românti- [...] sendo ele jovem aí pelos 15/16 anos, na feira de San-
cos ou ultra-românticos; a segunda é o tipo de estro- to André, comprara uma dessas folhas que os vendedo-
fes e de esquemas rimáticos a que este recorre para as res ambulantes negociavam a preço de pataco e, nela
suas composições poéticas. impressa, o poema “O Noivado do Sepulcro” de Soares
Iremos, por agora, analisar a primeira dissonância: de Passos; e o nosso poetazito do Tojal pediu a alguém
os textos românticos ou ultra-românticos. que o lesse e logo ali, ouvindo-o extasiado, o gravou, e
para sempre, na memória. E ainda hoje diz os versos ini-
II. ciais do poema e já lá vão quase oitenta anos!3
Ao percorrer-se o corpus reunido deste poeta, mui-
tos são os textos de difícil atribuição. Não porque ele Numa das entrevistas efectuadas4, Manuel José Santi-
conferisse paternidade a obras alheias1, mas porque nhos resou e cantou com batida de fado(?) sete dos deza-
nunca houve um verdadeiro inquérito sobre a origem nove quartetos de «O noivado do sepulcro». O contex-
de cada texto versificado ou sobre os fragmentos que to da aquisição deste folheto recolhido por nós é em tudo
ele entroncou em obras suas. E se há textos em que fa- idêntico, nos traços gerais, ao recolhido por Carlos Teiga,
cilmente podemos percepcionar uma aprendizagem, embora este, infelizmente, não o descreva de forma muito
noutros tal será muito difícil, pois surgem-nos como minuciosa. Sabemos que o folheto (ou folhetos) foi adqui-
fragmentos entroncados em poemas que sabemos es- rido por um grupo de jovens moirais, entre os quais esta-
tarem ligados à sua biografia. va Santinhos, e que, aquando da compra, não estava a ser
O exemplo mais interessante é o «O noivado do se- cantado. Santinhos ouvirá posteriormente este texto can-
pulcro», pelo que se pode desocultar para a história tado por um desses moirais e será nessa batida que a can-
do fado e do objecto impresso no Alentejo. tará oitenta anos depois. Importa referir que este não rete-
Deve-se a Carlos Teiga a chamada de atenção pa- ve a identidade do vendedor de folhetos.
ra a presença desta balada na obra Santinhos. A par- Infelizmente, Teiga não recolheu (ou pelo menos
tir de um inventário do vocabulário praticado por es- não editou) o fragmento que ouviu a Santinhos, em-
te poeta nas suas composições, este investigador deu- bora nos informe que este só se recordava do início.
se conta de Não sabemos, assim, quantos quartetos ouviu.
A lição dada por Santinhos, cujo fragmento fixámos,
[...] uma área vocabular muito diferente, por mais es- e a 2.ª edição desta balada, datada de 1858, que consul-
peciosa e mais culta: a área vocabular ultra-romântica támos, são praticamente idênticas, basta cotejá-las nas
dos fins do século passado inícios do presente século!2 estrofes que Santinhos ainda retinha em 2000
132
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Vai alta a lua na mansão da morte Vae alta a lua! na mansão da morte
Já meia noite com vagar soou Já meia noite com vagar soou;
Que paz tranquila nos vaivéns da sorte Que paz tranquilla dos vaivens da sorte
Só tem descanso quem ali baixou Só tem descanço quem alli baixou.
Que paz tranquila mas ao longe ao longe Que paz tranquilla!... mas eis ao longe, ao longe
Funérea campa com fragor rugiu Funerea campa com fragor rangeu;
Branca fantasma semelhando em monge Branco phantasma, semelhando um monge,
Entre os sepulcros a cabeça ergueu D’entre os sepulcrhos a cabeça ergueu.
Ergueu-se ergueu-se com sobre espanto Ergueu-se, ergueu-se! Com sombrio espanto
Olhou em roda não achou ninguém Olhou em roda... não achou ninguem...
Por entre as campas arrastando o manto Por entre as campas, arrastando o manto,
Em lentos passos caminhou além Com lentos passos caminhou alem.
E chegando perto duma cruz alçada Chegando perto d’uma cruz alçada,
Que entre os sepulcros alvejava ao fim Que entre os cyprestes alvejava ao fim,
Parou-se sentou-se com voz magoada Parou, sentou-se, e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim Os echos tristes acordou assim:
Mulher formosa que adorei na vida «Mulher formosa que adorei na vida,
A que na tumba não cessei de amar «E que na tumba não cessei d’amar,
Porque atraiçoas desleal desmentida «Porque atraiçôas desleal, mentida,
O amor eterno que te ouvi jurar «O amor eterno que te ouvi jurar?
Amor engano que na campa finda «Amor! Engano que na campa finda,
Entre os antigos[?] da ilusão falaz «Que a morte despe da illusão fallaz:
Quem de entre os vivos se lembrará ainda «Quem d’entre os vivos se lembrára ainda
Do pobre morto que na terra jaz «Do pobre morto que na terra jaz?
Feliz que pude acompanhar-te até fundo «Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
[...] «Da sepultura, succumbindo á dôr:
Deixei a vida... que importava o mundo, «Deixei a vida... que importava o mundo,
O mundo em trevas sem a luz do mundo «O mundo em trevas sem luz do amor?
Prova, pois, que o texto a que este teve acesso O «povo» adoptava (e adaptava) a poesia ultra-ro-
através de um folheto por volta de 1920, na feira mântica e, ao mesmo tempo, fazia seus os temas. E
de Santo André, era a balada de Soares de Passos não apenas o «povo»: «o ultra-romantismo propa-
na versão original, e não um apócrifo ou uma ver- gou-se das letras para as famílias burguesas dando-se
são carnavalizada. na nação o singular fenómeno da perda do senso do
Santinhos considerava que este fado tinha ver- ridículo» – informa-nos ainda Teófilo.
sos muito bonitos e o seu autor seria um poeta de Pois o «Noivado do Sepulcro» encontra o seu cor-
grande valor. Fundamentava, depois, a razão da respondente, com outro escandir de versos, no lú-
compra do folheto no desejo de querer saber o que gubre, amoralhudo e inconcebível «Fado do Rol-
os outros poetas diziam, lamentando, por fim, ter dão», que sobrelevaria o mais conseguido humor
«deixado esquecer os versos». negro surrealista se não fosse apenas uma perver-
A importância da localização deste texto no cor- são alambicada.
pus de Santinhos é fundamental: mostra que até à
década de vinte, pelo menos, a balada de Soares Nas frias e negras campas
de Passos circulou, e circulou impressa; que embo- onde tudo é cinza e pó
ra o não ouvisse cantado, imediatamente foi asso- ouviam-se os esqueletos
ciada ao fado; e, também, que é um texto funda- cantando o fado liró.
mental na vida criativa deste autor, como bem su-
blinha Carlos Teiga. [...]
O «Noivado do Sepulcro» de Soares dos Passos, reve- Vae alta a noite na mansão do estudo,
la-nos Teófilo Braga, era cantado numa melopeia que Triste relogio duas horas dá!
o vulgarizou entre o povo, pelas ruas, em noites de Oh! que saudade do folgar das ferias
luar, deturpado «pelos mais deploráveis plebeismos». Soffre o que em livros sepultado está!
135
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
NOTAS
1 Importa clarificar que a noção de 3 Teiga 2000: 14. 6 Neves 1893: 124.
autoria na poesia popular está por 4 Entrevista, em DAT, de 1 de Julho de 7 Lima 1994: 324.
trabalhar. 2000, feita no Monte do Tojal.
2 Teiga 2000: 13-14. 5 Osório 1974: 56-57.
137
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
O
que mais tem prendido a atenção daqueles nem quanto à lírica singeleza do seu pensamento po-
que ouviram, leram ou estudaram a obra de ético nem quanto à novidade das estruturas formais
Manuel José Santinhos é a sua singularida- únicas, ímpares, que o seu talento de artista forjou!2
de. A poesia popular no Alentejo e Algarve caracteri-
za-se pelo quarteto ou pela glosa em décimas, à par- É então necessário inventariar com alguma mi-
te de uma ou outra variante, geralmente enquistada núcia estas estruturas formais.
no improviso.
A maior parte das estrofes do poeta de Santo An- II.
dré, pelo contrário, segundo os autores que o estu- As estruturas formais que Manuel José Santinhos
daram ou que sobre ele redigiram alguma notícia recorre ao longo da sua obra percorrem um aro que
fogem a todos os modelos conhecidos. vai dos modelos mais comuns aos modelos mais sin-
Carlos Teiga, aquele que mais o estudou1, e cujo gulares e complexos. Importa descrevê-las
texto é o mais extenso, não cala este espanto ao
escrever ESTROFES GLOSADAS
I. QUARTETO GLOSADO EM QUATRO DÉCIMAS [qua-
Outro aspecto há que prende e suspende a nossa dras de quarenta pontos ou de ponto cheio, quadra
atenção de leitores habituais de poesia popular: é o de 40 pontos com mote de um só ponto]. O quar-
“achamento” de estruturas poéticas novas, diferen- teto-mote pode surgir em três formas rimáticas: du-
tes, e que são, em muito, criação do nosso poeta do as rimas cruzadas [ABAB], uma só rima cruzada [AB-
Tojal. Estão neste caso as quadras ou décimas de 40 CB], repetindo o mesmo verso [AAAA]; a glosa é a dé-
pontos em verso longo – 10 a 14 sílabas métricas – e cima [ABBAACCDDC]
que apresentam (imagine-se!) dupla cesura e triplo es-
quema rimático, e, ainda, as quadras de 60 pontos LEMBREM-SE DA CRIAÇÃO
que exibem um esquema rimático que é pura criação LEMBREM-SE DA CRIAÇÃO
sua! E, como se isto não bastasse, vai aplicar o esque- LEMBREM-SE DA CRIAÇÃO
ma dos versos dos versos longos com dupla cesura e LEMBREM-SE DA CRIAÇÃO
triplo esquema rimático a uma sequência de quatro
quadras ou de quatro estrofes de 4 pontos sujeitas a Filhos meus olhem por mim
mote! Não admira, pois, que esta sensação de novi- Que eu já por vocês olhei
dade e de diferença se consolide e se aprofunde quan- Ganharão o que eu ganhei
do confrontamos a poesia do nosso poeta com a dos Que a nossa vida é assim
outros poetas populares – poesia essa que pulula por Tem que haver princípio e fim
138
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Quando sai para distrair | pensa a vida Eu não sei | se sou sério | ou se há pecados
E VAI PELOS CAMPOS A ANDAR | DANDO SUSPIROS Eu querer bem nosso | estar vivendo | será ruim
Não posso | ficar sabendo | o meu fim
IIA. QUARTETO DE DUPLA CESURA GLOSADO EM QUA- CHOREI | NO CEMITÉRIO | DOS FINADOS
TRO DÉCIMAS DE DUPLA CESURA [quintilhas]. O quar-
teto é composto por três hemistíquios por verso e A querer perdão | dos bravos perigos | desta rota
pode surgir nas seguintes formas: duas rimas cru- Que se não cala | é porque a vasa | não contenta
zadas, permitindo três rimas [AA’A’’BB’B’’AA’A’’BB’B’’], Quem lhe fala | é da casa | dos noventa
uma só rima cruzada [AA’A’’BB’B’’CC’C’’BB’B’’]; a glosa é Atenção | caros amigos | tomem nota
a décima espineliana com dupla cesura, permitin- Ter compaixão | pelos antigos | é que importa
do três rimas, sempre espinelianas [AA’A’’BB’B’’BB’B’’A Com os sarilhos | e enganos | casuais
A’A’’AA’A’’CC’C’’CC’C’’DD’D’’DD’D’’CC’C’’] Perdendo os brilhos | e os planos | divinais
Eu sofri tanto | mas quero | ir disfarçando
VISITEI | OS MEUS DEFUNTOS | SEPULTADOS Hoje eu canto | mas com o coração | chorando
LACRIMOSO | DEI-LHE SUSPIROS | E AIS POR MEUS FILHOS | MEUS MANOS | E MEUS PAIS
CHOREI | NO CEMITÉRIO | DOS FINADOS
POR MEUS FILHOS | MEUS MANOS | E MEUS PAIS III. QUARTETO GLOSADO EM QUATRO QUARTETOS
[quadras curtas]. O quarteto-mote pode surgir nas
Do que me ilude | antes do corte | é minha lida seguintes formas: duas rimas cruzadas [ABAB], uma
Em pensares meus | a consciência | é pequenina só rima cruzada [ABCB]; o quarteto-glosa apresenta
Graças a Deus | e à Providência | Divina sempre uma rima cruzada [ABAB]
Tenho saúde | e tenho sorte | de ter vida
Que Deus me ajude | em meu transporte | | na corrida A LUA É NOSSA SENHORA
Porque eu sei | que há muitos | apagados DEUS É O SOL SUPERIOR
Passei | onde estão juntos | agachados A TERRA É MÃE CRIADORA
Pude saber | pelas mudanças | do sino E O MAR É O NOSSO AMOR
Por dever | ou lembrança | do destino
VISITEI | OS MEUS DEFUNTOS | SEPULTADOS As nuvens são passarinhos
A voar sobre a lavoura
Quis ver alguém | que já não brilha | estão nas lousas As estrelas são anjinhos
Três defuntas | todas calmas | lá no fundo A LUA É NOSSA SENHORA
Repousam juntas | como almas | do outro mundo
Minha mãe | minha filha | e minha esposa O tempo é a nossa sorte
Não há porém | uma maravilha | bonançosa Quem nos dá frio e calor
Para um repouso | para os retiros | dos mortais O Diabo é a nossa morte
Eu saudoso | por delírios | naturais DEUS É O SOL SUPERIOR
E com receios | desta eterna | morada
Visitei-os | sem que pudesse | dar nada Saúde é a colcha estendida
LACRIMOSO | DEI-LHE SUSPIROS | E AIS Ao pé de água superiora
A esperança é a nossa vida
Quem isto fez | sabe que dá | para acabar A TERRA É MÃE CRIADORA
Já há poucos | desta santa | geração
Era um dos loucos | que se levanta | num serão O astro formoso e cheio
Qualquer vez | ela virá | para me levar Não se demuda de cor
Um português | que cá está | a querer cantar O vento é o nosso recreio
Não sabe a lei | do mistério | dos condenados E O MAR É O NOSSO AMOR
140
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
dupla cesura e triplo esquema rimático da autoria jo», lição dada atrás quando analisámos a modifi-
do Manuel José Santinhos, o ti Manel Zé do Tojal. cação dos textos usados no fado. Aliás, esta desig-
Dizia-nos ele, na altura, que ao elaborar essas suas com- nação de «don don» é retirada do estribilho desse
posições longas tinha sempre em mente, subjacente à mesmo fado, e nunca foi até agora publicada – é
palavra, o ritmo do fado, nunca explicitando, contudo, apenas uma designação de trabalho utilizada por
qual o ritmo em causa nem o tipo de fado que lhe ser- esta investigadora para simplificar a designação
via de suporte musical. Parece-nos (embora neste domí- destes amphiguris formais.
nio da musica tenhamos de confessar honestamente que Parece-nos, pois, que a explicação terá que ser pro-
nos movemos nela com grande desconforto tal a nos- curada noutro território. E esse território é o fado, não
sa ignorância a respeito de tudo o que se refere à música como Carlos Teiga o refere, pois não se trata de ritmos
dita popular), parece-nos, hoje, contudo, que esse ri- mas antes de textos. Vimos que na década de setenta
tmo seria ou poderia eventualmente ser o do “fado dom- de oitocentos se inicia a aposição de um hemistíquio
dom”, dado que essas composições longas de dupla ce- nas estrofes mais correntes à altura, o quarteto glosado
sura e triplo esquema rimático possuem um corpo de 7 em décimas, e que nos princípios do século xx é atri-
a 8 sílabas métricas, acrescido dum segmento rítmico fi- buído a Avelino de Sousa a introdução do alexandrino
nal, um quebrado de 3 a 4 sílabas, tal como a estrutura e do triplicado, assim como começaram a surgir fados
dos versos do “fado dom-dom” apresenta.9 com versículo, o duplicado?, dos quais o mais conheci-
do é «O Pierrot», cantado por Alfredo Marceneiro. A
Resumindo. Segundo Carlos Teiga, as origens complexificação dos fados no campo textual é acom-
destas estrofes estão, uma, as estrofes de quinze panhada pela construção de um xadrez mais elabora-
versos, na audição de um possível cantador de fei- do desenvolvido por alguns excelentes improvisadores,
ra, José Muleta, que depois Santinhos complexifi- como é o caso do sapateiro e propagandista da canção
cou; a outra, na adaptação de um fado, o “fado nacional Manoel Maria.
do dom-dom”, à décima espineliana, no caso das Parece-nos, então, que é no fado que deve ser
quadras com triplo hemistíquio. localizada a origem desta estrofe. Num primeiro
olhar, poderíamos adiantar que estamos na pre-
IV. sença de um cruzamento entre o alexandrino – o
Carlos Teiga defende, em relação às quadras de que vai permitir versos mais longos –, o fado tripli-
três hemistíquios, que denomina como quadras de cado e o fado com versículo, estando, então, aqui a
quarenta pontos com dupla cesura e triplo esque- génese das quintilhas de Manuel José Santinhos.
ma rimático, e a que José Manuel Santinhos cha- Mas tal explicação parece-nos demasiado rebus-
mava de quintilhas (cada verso era composto por cada. Vejamos, de novo, o que em 1922 diz Ave-
cinco pontos), que a sua origem está no “fado do lino de Sousa
dom-dom”. Quanto a ele este fado é, como as es-
trofes de Santinhos, composto de Tudo que vejo fugir ás velhas décimas – exceção
feita ao duplicado e triplicado, variações interes-
[...] um corpo de 7 a 8 sílabas métricas, acrescido santes cujos versículos não adulteram as antigas
dum segmento rítmico final, um quebrado de 3 a 4 glosas – entendo que não está certo [...].11
sílabas [...]10.
O duplicado é a aposição de um hemístiquio em
Não existe, que saibamos, nenhum fado deno- cada verso da estrofe, e o triplicado seria a aposi-
minado como “fado de dom-dom”. A única desig- ção de dois hemístiquios em versos alternados. No
nação que se lhe aproxima é a de «cantigas de don primeiro caso, que começa a surgir na primeira dé-
don», dada por Maria Aliete Galhoz às estrofes cada de novecentos, a rima poderia ser interna e ex-
de três versos heptassilábicos e um pentassilábico terna ou só externa. No segundo caso, a rima faz-se
[ABB/C//CDD/E...], cujo exemplo é o «Fado do maru- nos dois hemístiquios por eco. Aqui surge uma di-
146
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
vam presentemente o fado Canção mais conhecido contexto da sua aprendizagem: no universo do fa-
pelo fado Bacalhau, que pela vagarosidade, repeti- do e do objecto impresso.
ções e numero irregular de versos, se torna mono- Os textos que o poeta do Tojal aprendeu e a for-
tono, aborrecido e por vezes incompreensivel de- ma como os ouviu provam claramente este facto.
vido á forma atrabiliaria da sua construção defi- Todos os textos que Santinhos memorizou, cons-
ciente e desconhecida. No entanto, a “Guitarra de truiu ou entroncou, são suportados pelo fado, o
Portugal” tem, pela pena de um dos seus directores, que não é o mesmo que Teiga afirma quando es-
publicado varias produções nesses genero, acompa- creve
nhando assim o espirito da epoca, mas, nunca ad-
vogando essa inovação por não lhe conhecer leis Dizia-nos ele, na altura, que ao elaborar essas suas
a que o verso, pela sapientissima autoridade dos composições longas tinha sempre em mente, subja-
mestres anda ligado há muitos anos.16 cente à palavra, o ritmo do fado, nunca explicitan-
do, contudo, qual o ritmo em causa nem o tipo de
Portanto, parece-nos que as singulares estrofes fado que lhe servia de suporte musical.17
do poeta popular Manuel José Santinhos não são
mais do que uma variante do fado Canção ou fado Santinhos não verte os seus poemas num qual-
Bacalhau, como vimos anteriormente. Fica é por quer estilo de fado. Ele copia um formulário es-
explicar a existência de duas variantes do fado Ba- trófico e rimático, sabendo de antemão a forma
calhau, uma, produto da transformação da décima de o cantar, pois todas as composições deste po-
espineliana, e outra, com uma rima diferente, mas eta são para serem cantadas nos diferentes fados
que segue o mesmo molde: uma sextilha que se di- que suportam estas estrofes (o corrido, o menor,
vide por quatro estrofes, numa sequência de dois, o mouraria, fados marcha...) Todas à excepção(?)
um, dois, um. Já vimos como é que a sextilha, ou do despique. Por isso, era no fado que tinha de
melhor, o trístico, origina uma composição de 15 ser encontrada a chave para as singulares estrofes
versos. Necessitamos é de entender como é que es- presentes na obra do poeta do Tojal Manuel José
ta alteração origina duas rimas muito diferentes. Santinhos.
Estes fados extensos, atribuídos a José Bacalhau Além do fado, o objecto impresso marca tam-
ou a João Mulato, são subsidiários de uma altera- bém forte presença. Santinhos aprende a balada
ção nas letras, que depois teve consequências na «O noivado do sepulcro» a partir de um folheto;
parte musical, passando os textos de redutíveis a também aprenderá o texto de José Muleta através
dois, ou quatro, a redutíveis a três, ou seis versos. de folha impressa. Para quem considera o mundo
Tal leva a que se procure adaptar as estrofes clás- de há cem anos fechado, esta é uma lição profun-
sicas a este novo modelo. O que na obra do poeta da da abertura e da modernidade que atravessava
do Tojal nos surge são os dois modelos diferentes esse mesmo mundo.
dessa adaptação. Um sabemos que é introduzido Santinhos participou nesse amplo movimen-
através de um tal José Muleta (veja-se alguma se- to de circulação operária, ouvindo fados, apren-
melhança entre José Muleta e João Mulato); outro dendo com eles, construindo a sua obra poética à
que resulta da evolução, e simplificação, desse mo- sua semelhança. Recusando a tradição, presente
delo que evolui da décima, onde em vez de se repe- em fórmulas mais simples, Manuel José Santinhos
tirem versos, se constroem novos pontos. Quanto opta por uma obra que, à parte da complexidade,
a este, não sabemos onde e como o poeta do To- é marcada por essa mesma modernidade.
jal o aprendeu.
VI.
V. Em Fevereiro de 1923, Domingos Serpa en-
Mas como é que Santinhos tomou contacto com trevista João Black para a Guitarra de Portugal.
estas inovações? A resposta está subjacente no Transcrevemo-la na íntegra
148
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Não há que vêr. O João Barbosa18 jurou que dava a casa onde estava empregado. Das glorias alcan-
comigo em doido e enquanto o não conseguir não çadas pelos propagadores do fado, cabe-me uma
descança. grande parte porque muito trabalhei para que á
Agora embirrou que eu seria quem entrevistasse o lusa-canção fosse dada outra feição. Se bem que
Black e não houve meio de o dissuadir de tal cousa. o Izidoro Pataquinho provocou inovações muito
Como se encontra na posse d’uma actividade cerebral aproveitaveis no fado, o que é verdade é que o Ave-
extraordinaria, esquece que eu estou gasto e sem von- lino, o Rosa e eu creamos-lhe alicerces indestruti-
tade propria, mas como toda a sua vida e perseveran- veis e creio que muito ganharam as classes traba-
ça pertence á «Guitarra de Portugal», não perdoou a lhadoras com tal facto.
minha caturrice e lá me fez ir até ao Val de Santo An- Foi tão grande o nosso trabalho que levou o Aveli-
tonio, ao Club dos Sempre Unidos onde o distinto e no de Sousa a exclamar n’uma frase feliz o seguinte:
modesto poeta costuma passar alguns bocados. «Nós somos portadores de cantigas aos domicilios».
Assim que transponho a porta do Club, vêjo a um Era tal a febre do nosso entusiasmo que um be-
canto sentado, o Sebastião Eugenio, figura inapaga- lo dia, depois de termos cantado em trez partes,
vel de luctador e antigo camarada dos tempos idos. chegamos a um sitio onde nos esperavam ainda e
Aguarda a chegada do Black para a constituição d’um cheios de fome e de cansaço, comemos uma caldei-
jury de que ambos fazem parte. Nas salas mal se res- rada em cima d’uma carroça e com tal rapidez o fi-
pira, tal é a aglomeração de influentes que esperam zemos que procurando as espinhas, estas tinham
um concurso poetico que breve tem realisação. desaparecido. Não sei se tiveram a sorte dos seus
Sinto que alguem me abraça, fico atonito. Era o malogrados possuidores.
João Black Devo ao fado o grau de cultura que tenho, mas
Sem mais preambulo atiro-lhe com esta – Já sei que não ao fado que anavalha consciencias e prostitue
fazes parte do jury? a densa [deusa(?)] dileta dos nossos sonhos, a esse
– É verdade, meu caro Serpa, escolheram mal. Es- nem sequer o conheço.
tou neurastenico, esquecido, não aceito convites, Que saudades eu tenho, meu velho amigo, dos tem-
não escrevo, não faço versos e apenas me satisfaz pos idos e quando ia para espraiar sobre qualquer as-
o repouso. sunto é levado para a mesa do jury no meio de mui-
– Outro tanto vai cá por casa e sem que o Black pen- tos dos seus amigos. E assim á traição consegui ou-
sasse que o entrevistava, perguntei-lhe: Há quantos vir o meu velho e querido amigo; escutar-lhe a voz
anos cantas o Fado? auctorisada e recordar n’esse momento os seus con-
– Há mais de trinta anos; mas as minhas peregrina- ceituosos alexandrinos, as suas soberbas redondilhas
ções semanaes pelas sociedades de recreio, datam quando elas cahiam como chuveiro educador sobre
de 25 anos. Tu lembras-te que eu, o Avelino e o Ro- as massas ignaras e ao vê-lo velho como eu, pensei
sa, constituimos um terceto, que foi alguma cousa e o então n’esta tragedia de todos os dias e sahi deixan-
que não conseguimos nas associações de classe, apro- do essa inconfundivel figura entre amigos, muitos dos
veitamos em Clubs de variada ordem. Conhecia-mos quais terão bebido o nectar saborosissimo da educa-
a indole do nosso povo e sabendo-o falho de educa- ção que o distinto poeta distribuiu cantando o fado.19
ção, mas muito inclinado ao fado, resolvemos fazer
pelo verso cantado uma intensa propaganda de socio- João Salustiano Monteiro, mais conhecido por João
logia. Assim passamos muitos anos sem outro premio Black, evoca o período que se segue a 1890, quan-
que não fossem os aplausos dos que nos ouviam e a do, em catequética fadista e libertária, percorreu o
satisfação da nossa vontade. Alentejo. Nos inícios da segunda década do século
– Tu nasceste na vila d’Almada? xx esta acção fadista está agonizante. Sabemos que
– É verdade, foi ali que vi o sol da minha primeira no princípio da década de trinta, o sapateiro e impro-
madrugada e foi ainda d’ali que abalei para o Ale- visador Manoel Maria ainda deambula pela provín-
mtejo com o Julio Janota, perdendo n’essa ocasião cia, até ser encontrado morto junto a Vila Franca de
149
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Xira. Mas esta circulação em prole da canção nacio- nées de propaganda sindical, tendo por objectivo a
nal já há muito tinha deixado de ter a base política constituição de associações rurais, que contaram em
que a sustentava. Ela acompanha o desaparecimen- Agosto desse mesmo ano, com a presença de António
to das associações de classe rurais, aí por meados da Henriques e de José Carlos Rates20, o mesmo Carlos
década de dez. Rates que dois anos antes tinha fundado em Setúbal,
E não deixa de ser interessante saber que à altura em Julho de 1910, O fadinho, um dos primeiros pe-
em que Santinhos inicia os seus primeiros passos no riódicos dedicados ao fado e que dez anos antes no
universo da poesia e do fado, aí por 1912, percorrem seu Germinal tinha publicado um texto de António
Santiago do Cacém, vindas de Lisboa e Setúbal, tour- Maria Eusébio, O Calafate21.
NOTAS
1 Infelizmente, o Prof. Manuel João POR DEDICAR GRANDE AMOR Rival do mais adorado
da Silva nunca publicou, que conhe- À MULHER DO SEU IDEAL Fez com que o enamorado
çamos, nenhum estudo sobre este A QUEM QUERIA DAR O SEU NOME Fosse pelo rei desterrado
poeta. O MAIS SUBLIME CANTOR Pela inveja que lhe tinha
2 Teiga 2000: 11. DAS GLÓRIAS DE PORTUGAL De Camões a amiguinha
3 Existem outras estrofes, caso do des- DEIXARAM MORRER À FOME Adoeceu coitadinha
pique ou do baldão, que Manuel Jo- Pelo desgosto fatal
sé Santinhos também conheceu, mas Camões poeta e soldado Catarina era leal
estas não estão ligadas, pelo menos Foi o mais apreciado Pelo vate imortal
directamente, à discussão que se tem Dos poetas dessa era Até que morreu de amor
construído em torno da obra do po- Natércia que o conhecera Ao saber chorou de amor [dor?]
eta do Tojal. Por ele se envaidecera O MAIS SUBLIME CANTOR
4 Bastos & Rodrigues 1991. E fê-lo seu namorado DAS GLÓRIAS DE PORTUGAL
5 Bastos & Rodrigues 1991: 88, 96, Mas ao ser por ele amado
97101, 104, 117, 118, 119. Foi por alguém invejado Desterrado em Macau
6 Teiga 2000: 11- 27, 34-39. Porque encontrou um rival Não subiu ao alto grau
7 Guerreiro 1997: 141. Cujo imbecil mortal Que merecia em nobreza
8 Teiga 2000: 20; que confirma em O causador do seu mal Mas descreveu com beleza
Teiga 2002: 34. Fizeram com que o cantor A epopeia portuguesa
9 Teiga 2002: 37. Perdesse todo o valor E amava o escravo Jau
10 Teiga 2002: 37. POR DEDICAR GRANDE AMOR Naufragou caiu da nau
11 Guitarra de Portugal 1922.Agos- À MULHER DO SEU IDEAL E o mar apesar de mau
to.19. As Lusíadas não corcome
12 Guinot & Carvalho & Osório 1999: No Paço em nobres salões Essa obra cujo nome
242. Mas confrontando com o livro Suas melhores produções Que o tempo jamais consome
de Artur Arriegas, Arriegas 1922, Os poetas recitavam É de grande merecimento
nenhum dos fados tem esta denomi- Todas as damas que estavam Mas votado ao esquecimento
nação de fado triplicado. O que mais apreciavam Um homem de tanto talento
13 E não nos devemos esquecer que Era a obra de Camões DEIXARAM MORRER À FOME
Santinhos conhecia o duplicado, ou Entre aplausos e ovações Teiga 2000: 20-21.
fado com versículo, pois localizámos Eram só suas canções
um texto destes na sua obra. E o poe- Considerado de renome 16 Guitarra de Portugal 1922.Janei-
ta do Tojal mostra um perfeito en- Para que bom lugar não assome ro.17
tendimento da sua construção, pois Fazem com que o rei o tome 17 Teiga 2002: 37.
que informa Vítor Bastos das regras Por um homem de má sina 18 Referência a João Linhares Barbosa,
que enformam a sua construção. Só por amar Catarina poeta e director deste jornal.
14 Cantada por Amélia Ameixa, de Aquela excelsa menina 19 Guitarra de Portugal 1923.Feverei-
Portel, respeitando os modelos A QUEM QUERIA DAR SEU NOME ro.24
cantados pelos vendedores de fo- 20 Madeira 1988: 19; ver também Ven-
lhetos. Um vate Pedro Caminha tura 1977: 58-60.
15 Cujo texo completo é De inspiração mesquinha 21 Germinal 1903. Outubro. 18.
PARTE III
CINCO
NOTA FINAL
152
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
153
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
M
ANUEL José Santinhos viveu entre 1905 e os trabalhadores meridionais tiveram à sua disposi-
2001. Foram quase 96 anos de vida. En- ção, resultado de uma catequética social cantada, um
tender a sua obra é entender a história da formulário para articular poeticamente uma vivência.
décima e, sobre estas, a história do fado. Se é em Lisboa que todo o processo se constrói, é
Tentei, ao longo deste livro, mostrar como estas se ali também que ele é destruído. E vai ser o Alentejo
encontram ligadas. o depositário dessa experiência.
A décima é das estrofes mais interessantes e belas que E, em todo o Portugal meridional, será Manuel Jo-
temos em Portugal, infelizmente pouco ou nada estu- sé Santinhos, o poeta do Tojal, o elo que permitirá re-
dada. Quem quiser sobre ela trabalhar em Portugal ain- constituir toda a cadeia entre a poesia popular alen-
da tem que recorrer a três autores, que continuam hoje tejana e o fado de Lisboa. Será esse o seu grande mé-
a ser fundamentais: José Leite de Vasconcelos, António rito: ter mantido intacto o legado fadista operário,
Modesto Navarro e Manuel Viegas Guerreiro. anarquista, socialista e republicano.
O pequeno soneto, como muitas vezes foi apelida- Entender, pois, a poesia, ou melhor, os fados do
da, é talvez a marca maior da relação cultural ibe- poeta do Tojal é entender uma parcela da história
ro-americana. Ouvir um brasileiro, um cubano, um não só do fado, mas também deste imenso sul por-
português, um venezuelano, um mexicano ou um ca- tuguês.
narino improvisar nesta estrofe é algo de inesque-
cível. E em Portugal, a décima ainda tem cultores Há umas semanas atrás morreu com silicose An-
em grande número. Importava fazer um inventário/ tónio Maria Coelho. Tinha 83 anos. Foi mineiro em
dicionário de poetas populares, assim como um estu- Aljustrel e na Panasqueira, foi preso e espancado pe-
do dos métodos de versificação e a sua dispersão. Is- la PIDE, andou por feiras, mercados e tabernas ven-
to, com o suporte da musicologia, seria de um valor dendo a voz e folhas com quadras impressas. Um
informativo incalculável. Sem tal, continuamos a fa- dia, vínhamos de Loulé, perguntei-lhe o que era isso
lar de poesia popular, ou tradicional, de forma muito da poesia. Respondeu-me com uma frase que nunca
pobre e, queira-se ou não, muito pouco sustentada. esquecerei, Enquanto houver miséria, haverá poetas.
O fado, canção operária, é fruto de uma experimen- Esta resposta encerra tudo o que quis dizer neste li-
tação intelectual única no panorama da poesia popu- vro. Para os homens e mulheres empenhados nesta
lar. Muitas das discussões em torno da sua origem, de poesia popular a que chamamos décimas, mas que
Maria Severa ou da importância de Amália Rodrigues seria muito mais correcto chamar fado, era necessá-
não são, que me perdoem, mais de que fait divers. Fru- rio combater essa mesma miséria com fados, que de-
to do trabalho de um conjunto de homens ao longo de vemos entender como fundamentos, e palavras im-
60 anos, o fado entre 1860 e 1930 não tem qualquer pressas. Se pudéssemos sintetizar tudo aquilo que es-
paralelo na poesia popular. A trova nacional, a can- crevemos numa pequena frase, a resposta do meu
ção da liberdade ou a canção da consciência foi cons- Amigo António Maria Coelho seria a mais forte, a
truída para que pudesse também ela contribuir para a mais triste e a mais sincera síntese.
formação de um grupo social e da sua consciência: o P0RTEL, FEVEREIRO DE 2004
154
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Burke, Peter. (1989). Cultura popular na Idade Moderna: Eu- Connerton, Paul. (1993). Como as sociedades recordam. Oei-
ropa 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras. ras: Celta.
Cabral, Pedro Caldeira. (1999). A guitarra portuguesa. Ama- Cordeiro, Graça Índia. (1995). Um bairro no coração da cida-
dora: Ediclube. de: estudo antropológico sobre a construção social de um
Camacho, Brito de. (s. d.). Gente rústica. Lisboa: Guimarães & C.ª. bairro típico de Lisboa. Lisboa: ISCTE. (Tese de doutora-
Câmara, José Bettencourt da. (2003). Poetas populares açoria- mento em Antropologia Social).
nos i. Lisboa: Salamandra. Cortez, Maria Rita Ortigão Pinto. (1994). Cancioneiro de Ser-
Cardoso, Fernando. (1982). Poetas populares. 3.º volume. Li- pa. Serpa: Câmara Municipal de Serpa.
vraria Portugalmundo Editora. Costa, António Firmino da & Maria das Dores Guerreiro.
Cardoso, Fernando. (1989). Poetas populares. 1.º volume. Li- (1984). O trágico e o contraste: O Fado no bairro de Alfa-
vraria Portugalmundo Editora. ma. Lisboa: Dom Quixote.
Cardoso, Fernando. (1990). Poetas populares. 2.º volume. Li- Cruz, Francisco Ignacio dos Santos. (1984). Da prostituição na
vraria Portugalmundo Editora. cidade de Lisboa (1841). Lisboa: Dom Quixote.
Cardoso, Fernando. (s. d.). Poetas populares. 4.º volume. Li- Curvo Semedo, textos escolhidos. (1988). Almansor. N.º 6.
vraria Portugalmundo Editora. Montemor-o-Novo: Câmara Municipal de Montemor-o-
Carvalho, Amorim de. (1991). Tratado de versificação portu- Novo.
guesa. Coimbra: Almedina. Cutileiro, José. (1977). Ricos e pobres no Alentejo (uma socie-
Carvalho, Amorim. (1987). Teoria geral da versificação. A me- dade rural portuguesa). Lisboa: Sá da Costa.
trificação e a rima. Volume i. Lisboa: Editorial Império. Dantas, Júlio. (1994). A Severa. Porto: Porto Editora.
Carvalho, Amorim. (1987). Teoria geral da versificação. As es- Decimas e oitavas feitas por José Lucio da Silva Cardoso.
trofes, os sistemas estróficos e a história da versificação. (1939.Setembro.17). Brados do Alentejo. Estremoz.
Volume ii. Lisboa: Editorial Império. Delgado, Manuel Joaquim. (1955). Subsídio para o cancionei-
Carvalho, Ernesto de. (s. d.). De roda do lume: coisas do Alen- ro popular do Baixo Alentejo. 2 volumes. Lisboa: Revis-
tejo. (Dactilografado). ta de Portugal.
Carvalho, Pinto de (Tinop). (1994). História do fado. Lisboa: Dias, Barata. (1954). O fado do fado. Coimbra: Coimbra Edi-
Dom Quixote. tora.
Carvalho, Ruben de. (1994). As músicas do fado. Porto: Cam- Díaz-Pimienta, Alexis. (1998). Teoria de la improvisación. Pri-
po das Letras. meras páginas para el estúdio del repentismo. Oiartzun:
Carvalho, Ruben de. (1999). Um século de fado. Amadora: Sendoa Editorial.
Ediclube. Duarte, António de Sousa. (1999). António Aleixo: o poeta do
Cascudo, Luis da Câmara. (1984). Vaqueiros e cantadores. São povo. Lisboa: Âncora.
Paulo: Itatiaia. Duarte, Vítor (Marceneiro). ( 2001). Alfredo Marceneiro... os
Castelo-Branco, Salwa El-Shawan. (1997). Voix du Portugal. fados que ele cantou. Lisboa: Clássica Editora.
Paris: Cite de La Musique/ Actes Sud. Duarte, Vítor. (1995). Recordar Alfredo Marceneiro. Venda
Bonecos de Santo Aleixo. Textos tradicionais. I. (s. d.). Évora: Nova: Sistema J. [Inclui c. d.].
Centro Cultural de Évora. (Texto policopiado). Durão, Susana. (2003). Oficinas e tipógrafos: cultura e quoti-
Chartier, Roger (direcção). (1998). As utilizações do objecto dianos de trabalho. Lisboa: Dom Quixote.
impresso (Séculos XV-XIX). Algés: Difel. Eisenstein, Elizabeth. (1983). La revolucion de la imprenta en
Chaves, Luís. (1961). Lisboa nas auras do povo e da história la Edad Moderna Europea. Madrid: Universitaria. Akal
– ensaios de etnografia. Volume i. Lisboa: Câmara Muni- ediciones.
cipal de Lisboa. Envia, Manuel. (1947). Coisas de Setúbal (prosas regionais).
Coelho, Costa. (2002.Janeiro.28). Cenáculo, Pôtra e Talhi- Setúbal: Edição de Autor.
nhas – pastores de palavras e poetas de rebanhos… Diá- Eusebio, Antonio (Calafate). (1908). O Cantador de Setúbal.
rio do Sul. Évora. Lisboa: Parceria Antonio Maria Pereira.
Conde, Paulo. (s. d.). Fado: vida e obra do poeta Carlos Con- Eusebio, Antonio (O Calafate). (1901). Versos do Cantador de
de. Alpiarça: Garrido Editores. Setúbal. Lisboa.
156
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Eusébio, António Maria (O Calafate). (1985). Versos do can- Lisboa: Centro de Estudos Geográficos / Instituto Nacional
tador de Setúbal. Volume i. Lisboa: Ulmeiro. de Investigação Científica.
Fado (s. d.) Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira. Vo- Galhoz, Maria Aliete. (1988). Literatura popular - cantigas
lume x. Lisboa-Rio de Janeiro: Editora Enciclopédia. 823- narrativas. Revista Lusitana, (Nova Série). 9. Lisboa Insti-
826. (Verbete possivelmente da autoria do maestro Frede- tuto Nacional de Investigação Científica. 151-172.
rico de Freitas.) Gaspar, Jorge. (1981). A área de influência de Évora. Sistema
Farinha, António Dias & José Nunes Carreira & Vítor Serrão (co- de funções e lugares centrais. Lisboa: Instituto Nacional de
ordenação). (2001). Uma vida em história. Estudos em homena- Investigação Científica.
gem a António Borges Coelho. Lisboa: Editorial Caminho. Gaspar, Jorge. (1986). As feiras de gado na Beira Litoral. Lis-
Ferreira, Joaquim. (s. d.). Líricas de Diogo de Bernardes. Por- boa: Livros Horizonte.
to: Domingos Barreira. Gaspar, José Rabaça (organização e estudo). (1987). Poetas po-
Ferreira, Maria de Fátima Sá e Melo. (2002). Rebeldes e insub- pulares de Beja. Beja: Câmara Municipal de Beja.
missos. Resistências populares ao liberalismo (1834-1844). Gaspar, José Rabaça. (1998.Agosto). Décimas – uma lingua-
Porto: Afrontamento. gem comum Ibero-Americana. Arquivo de Beja. Volumes
Fonseca, Helder Adegar. (1996). O Alentejo no século XIX: vii/viii. Série iii. Beja: Câmara Municipal de Beja. 95-141.
economia e atitudes económicas. Lisboa: Imprensa Nacio- Gaspar, José Rabaça. (1999.Dezembro). Décimas de Inocêncio
nal-Casa da Moeda. de Brito: gritos na solidão. Arquivo de Beja. Volume xii. Sé-
Fontaine, Laurence. (1993). Histoire du colportage en Europe rie iii. Beja: Câmara Municipal de Beja. 89-133.
(XVe-XIX siècle). Paris: Albin Michel. Le Gentil, Georges. (1995). La littérature portugaise. Paris:
Fortes, José Maciel Ribeiro (s. d.). O Fado: ensaio sobre um Editions Chandeigne - Librairie Portugaise. Série Lusitane.
problema etnográfico-folclórico. Porto: Companhia Portu- (Ouvrage complété par Robert Bréchon pour la période
guesa Editora. contemporaine.)
Foucault, Michel. (1997). A ordem do discurso. Lisboa: Reló- Ginzburg, Carlo. (1991). O queijo e os vermes. São Paulo:
gio D’Água. Companhia das Letras.
Foucault, Michel. (2001). Vigiar e punir. Nascimento da pri- Gomes, Paulo Alexandre P. N.. (2000). Ermidas-Sado: história
são. Petrópolis: Vozes. de uma povoação contemporânea. Ermidas-Sado: Junta de
França, José-Augusto. (1989). Lisboa: Urbanismo e Arquitec- Freguesia de Ermidas-Sado.
tura. Lisboa: ICALP. Gonçalves, António José. (1998). Santo André em poesia. San-
França, José-Augusto. (1990). A arte em Portugal no Século to André: Edição de Autor.
XIX. Volume ii. Venda Nova: Bertrand. Gonçalves, António José. (1999). Um olhar sobre a Lagoa.
França, José-Augusto. (2002). Lisboa 1898: estudo de factos Santo André: Edição de Autor.
socioculturais. Lisboa: Livros Horizonte. Gonçalves, António José. (2000). Minha terra é o Alentejo.
Franquezas, Sebastião. (1990). 150 poesias de Sebastião Fran- Santo André: Edição de Autor.
quezas. Santiago do Cacém: Edição de Autor. Gonçalves, António José. (2001). O Alentejo e o mar. Santo
Freitas, Frederico de. (1984). “O fado, canção da cidade de Lis- André: Edição de Autor.
boa: suas origens e evolução”. Colóquio sobre música po- Gonçalves, António José. (2001a). Como olhar o Alentejo.
pular portuguesa. INATEL. 9-24. Santo André: Edição de Autor.
Frenk, Margit. (1987). Corpus de la Antigua Lírica Popular Gonçalves, Elsa & Ana Maria Ramos. (1985). A lírica gale-
hispánica (siglos XV a XVII). Madrid: Editorial Castalia. go-portuguesa (textos escolhidos). Lisboa: Editorial Co-
(Foi publicado em 1992 um suplemento). municação.
Frenk, Margit. (1994). Lírica española de tipo popular. Edad Gorani, Giuseppe. (1989). Portugal: a Corte e o País nos anos
Media y Renacimiento. Madrid: Ediciones Catedra. de 1765 a 1767. Lisboa: Lisóptima Edições.
Galeano, Eduardo (textos) & J. Borges (gravuras). (1994). As Guerra, Maria Luísa. (2003). Fado – Alma de um Povo (Ori-
palavras andantes. Porto Alegre: L&PM. gem Histórica). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Mo-
Galhoz, Maria Aliete (organização, introdução, notas e biblio- eda.
grafia). (1988). Romanceiro popular português. Volume ii. Guerreiro, António Machado. (1990). São Miguel, fonte de te-
157
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
atro popular. Volume i. Lisboa: Instituto Nacional de In- ge Freitas & Paulo Lima. Artes da Fala. Oeiras: Celta Edi-
vestigação Científica. tora. 47-85.
Guerreiro, Manuel Viegas & João David Pinto-Correia. (1986. Lopes, Modesto Martins. (1988). A minha poesia: vi, pensei...
Agosto-Dezembro). Almanaques ou A Sabedoria e as Tarefas escrevi. Santiago do Cacém: Câmara Municipal de Santia-
do Tempo. ICALP. N.º 6. Lisboa: Instituto de Cultura e Lín- go do Cacém & Edição de Autor.
gua Portuguesa.43-52. Lord, Albert Bates. (1991). Epic singers and oral tradition.
Guerreiro, Manuel Viegas. (1983). Para a história da literatura Ithaca & London: Cornell University Press.
popular. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa Lord, Albert Bates. (1997). The singer of tales. USA: Harvard
/ Ministério da Educação. University Press.
Guerreiro, Manuel Viegas. (1991). Uma excursão à serra do Machado, Álvaro Manuel. (1986). Les romantismes au
Algarve. Loulé: Câmara Municipal de Loulé. Portugal: modeles etrangers et orientations nationales.
Guerreiro, Manuel Viegas. (1992). Poesia popular: conceito, a Paris: Fondation Calouste Gulbenkian / Centre culturel
redondilha, a décima; décimas em poetas do Alentejo e Al- Portugais.
garve. Literatura popular portuguesa. Lisboa: ACARTE. Madeira, João. (1988). As associações de classe dos trabalha-
Fundação Calouste Gulbenkian. 191-237. dores rurais em Santiago do Cacém (1910-1914)... Setúbal:
Guerreiro, Manuel Viegas. (1997). Povo, povos e culturas (Por- Associação para a Salvaguarda do Património Cultural e
tugal – Angola – Moçambique). Lisboa: Colibri. Natural da Região de Setúbal (SALPA).
Guimarães, Ana Paula. (2000). Conversas a cantar (sobre can- Madeira, João. (1993). Santo André no século xix: o homem
tares ao desafio). Nós de vozes: acerca da Tradição Popular e a Lagoa. Encontro sobre a Lagoa de Santo André. San-
Portuguesa. Lisboa: Edições Colibri. 217-252. tiago do Cacém: Associação Cultural de Santiago do Ca-
Guimarães, Paulo Eduardo. (2001). Indústria e conflito no cém. 45-64.
meio rural: os mineiros alentejanos (1858-1936). Lisboa: Malta, Joaquim Pinto (recolha). (1988). As cegadas no conce-
Edições Colibri & CIDEHUS-UE. lho do Seixal. Seixal: Câmara Municipal do Seixal.
Guinot, Maria & Ruben de Carvalho & José Manuel Osório. Marques, Idalete (recolha) & Pinto, José A. Teixeira (selecção)
(1999). Histórias do Fado. Amadora: Ediclube. & Serápio, António (promoção). (1993). Alameda dos po-
Gurevitch, Aron L.. (1990). As categorias da cultura medieval. etas. Monchique: Rádio Fóia.
Lisboa: Editorial Caminho. Massignon, Geneviève. (1994). Trésors de la chanson populaire
Hagège, Claude. (1990). O homem dialogal. Lisboa: Edições française. Autor de 50 chansons recueillies en Acadie, 1-
70. textes. Paris: Bibliothèque Nationale de France.
Herculano, Alexandre. (1853). Historia de Portugal. Volume i. Matos, Maria Joaquina. (1998). As décimas da Ribeira do Sa-
Lisboa: Em Casa da Viuva Bertrand e Filhos. do. (Dissertação de mestrado na Universidade Nova.)
Horta, José Inácio. (2000). Livro da verdade. O dialogismo co- Mattoso, José (2001). Identificação de um País. Oposição. Vo-
mo processo de construção cultural. (Fixação de texto, no- lume i. Lisboa: Círculo de Leitores.
tas e nota introdutória de Paulo Lima). Odivelas: Agir Pro- McCormick, John & Bennie Pratasik. (1998). Popular puppet
duções Gráficas. theatre in Europe, 1800-1914. Cambridge: University Press.
Jiménez de Báez, Yvette (editora). (1998). Voces y cantos de la Mestre, Francisco. (1988). Vida e obra. Santiago do Cacém &
tradición. México: El colegio de México. Odemira: Câmara Municipal de Santiago do Cacém & Câ-
Leite, Orlando. (1994.Dezembro.9). Tudo isto existe. Vida, jor- mara Municipal de Odemira.
nal semanário Independente. Lisboa. 50. Mintz, Jerome R. (1982). The anarchists of Casas Viejas.
Lima, Augusto C. Pires de. (1942). A poesia religiosa na litera- Chicago: The University of Chicago Press.
tura portuguesa. Porto: Domingos Barreira. Miranda, Sacuntala de & Pedro Cardim (organização). (s. d.). A
Lima, Paulo. (1994). Poetas de cá. Volume i. Portel: Câmara revolução industrial britânica (antologia). Lisboa: Teorema.
Municipal de Portel. Moita, Luiz. (1936). O fado, canção de vencidos. Lisboa.
Lima, Paulo. (1996). No Jardim do Mundo. Textos. Portel: Câ- Morais, António Manuel. (2003). Fado e Tauromaquia no Séc.
mara Municipal de Portel. XIX. Lisboa: Hugin.
Lima, Paulo. (1997). Artistas da fala a sul do Tejo. Branco, Jor- Mota, Arlindo (organização). (s. d.). António Maria Eusé-
158
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
bio “O Calafate”, o Cantador de Setúbal: poesia. Setú- The collected papers of Milman Parry. New York &
bal: SALPA. Oxford: Oxford University Press.
Mota, Arsénio. ( 1990). Letras bairradinas. Anadia: Associa- Passos, A. A. (1858). Poesias. Porto. 14-18.
ção de Jornalistas e Escritores da Bairrada. Passos, Alexandre. (1999). Bonecos de Santo Aleixo. As mario-
Mullett, Michael. (1990). La cultura popular en la Baja Edad netas em Portugal nos séculos XVI a XVIII e a sua influên-
Media. Barcelona: Editorial Crítica. cia nos Títeres Alentejanos. Évora: CENDREV.
Navarro, António Modesto. (1980). Poetas populares alente- Passos, Soares de. (1983). Poesias. Lisboa: Vega.
janos. Lisboa: Vega. Pellerin, Agnès. (2003). Le fado. Paris: Chandeigne. [Inclui
Negrão, Albano Zink. (s. d.). O Parque Mayer. Lisboa. c. d.].
Neves, Cesar das. (1893). Cancioneiro de musicas populares. Picão, José da Silva. (1947). Através dos campos. Lisboa: Ne-
Porto: Typographia Popular. ogravura.
Noda Gómez, Talio. (1999). La música tradicional en la isla Pimentel, Alberto. (1904). A triste canção do sul (subsidios pa-
de La Palma. La Palma: Excmo. Cabildo Insular de La ra a historia do fado). Lisboa: Livraria Central.
Palma. Pina, Luís de. (1986). História do cinema português. Mem
Nogueira, Carlos. (2000). Literatura oral em verso. A poesia Martins: Publicações Europa-América.
em Baião. Vila Nova de Gaia: Estratégias Criativas. Pinheiro, José Manuel Monarca. (1993). Cantadores de ale-
Nogueira, Carlos. (2002). O essencial sobre O Cancionei- grias, mágoas e mangações, Alandroal: Câmara Munici-
ro narrativo tradicional. Lisboa: Imprensa Nacional-Ca- pal de Alandroal.
sa da Moeda. Pinheiro, Magda. (2000). O Liberalismo nos espaços públi-
Nogueira, Carlos. (2003). Literatura de cordel portuguesa: his- cos. Oeiras: Celta.
tória, teoria e interpretação. Lisboa: Apenas Livros. Pinto-Correia, João David. (1992). Para uma teoria do texto da
Nunes, Maria Zaluar. (1975). Cancioneiro popular português literatura popular tradicional. Literatura popular portuguesa.
coligido por José Leite de Vasconcelos. Volume i. Coim- Lisboa: ACARTE. Fundação Calouste Gulbenkian. 101-128.
bra: Acta Universitatis Conimbrigensis, Por Ordem da Uni- Pinto-Correia, João David. (2003). Romanceiro oral da tradi-
versidade. ção portuguesa. Lisboa: Edições Duarte Reis.
Oliveira, António Resende de. (2001). O trovador galego-por- Pires, António Tomás. (1986). Cancioneiro popular político.
tuguês e o seu mundo. Lisboa: Editorial Notícias. Lisboa: Editorial Labirinto.
Oliveira, Ernesto Veiga de. (1982). Instrumentos musicais Pizarroso Quintero, Alejandro (coordenador). (1996). História
populares portugueses. Lisboa: Fundação Calouste Gul- da imprensa. Lisboa: Planeta Editora.
benkian. Pombinho Júnior, José António. (1942). Cantigas dobradas.
Ong, Walter J. (1999). Oralidad y escritura: tecnologías de la Ethnos. Volume ii. Lisboa: Instituto Português de Arqueo-
palabra. México: Fondo de Cultura Económica. logia, História e Etnografia. 391-409.
Os cegos e as notícias. (1942.Abril.14). Brados do Alentejo. Pombinho Júnior, José António. (1962). O ‘cante’ das
Estremoz. ‘gralhas...à solta’. Almanaque Alentejano. Ano xxiv. Lis-
Osório, António. (1974). A mitologia fadista. Lisboa: Livros boa. 194-195.
Horizonte. Porqueras Mayo, A. (s. d.). La teoria poetica en renaciamiento
Paias, João Chouriço. (1992). Tenho pena de saber. Moura: y manierismo españoles. Barcelona: Puvill Libros.
Câmara Municipal de Moura. Portela, Manuel. (2003). O comércio da literatura: mercado &
Palmeirim, Luis Augusto. (1891). Os excentricos do meu tem- representação. Lisboa: Antígona.
po. Lisboa: Imprensa Nacional. Porto da Cruz, Visconde do. (1954). Trovas & cantigas do ar-
Paquete, Francisco Soares Victor. (1996.Agosto). Almada Ne- quipélago da Madeira. Aveiro: Edição de Autor.
greiros / Messejana e Aljustre. Cadernos Culturais iii, 1993- Praça, Afonso. (2001). Novo dicionário de calão. Lisboa: Edi-
1995. Messejana: Junta de Freguesia de Messejana. torial Notícias.
Parreira, António (recolha) & Machado, Jorge (transcrição). Queirós, Eça de. (2001). A ilustre casa de Ramires. Lisboa: Te-
(1999). Notas de música. Amadora: Ediclube. mas e Debates.
Parry, Adam (edited). (1987). The making of Homeric verse. Quintas, Maria da Conceição & Chagas, Soledade Brites &
159
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Contreiras, Élia Almada. (1981). Greves-sindicalismo – Se- do Cacém: breve inventário. Santiago do Cacém: Edições
túbal 1910/’13. Setúbal: Assembleia Distrital de Setúbal. Colibri & Câmara Municipal de Santiago do Cacém.
Raposo, Eduardo M. (s. d.). Canto de intervenção: 1960-1974. Sousa, Ana Teresa Santos de Sousa. (1997). Vida, obra e espó-
Lisboa: Biblioteca Museu República e Resistência. lio de J. A. Pombinho Júnior. Notas acerca de um trabalho
Réau, Louis. (1959). Iconographie de l’art chrétien. Tomo iii, em curso. Branco, Jorge Freitas & Paulo Lima (organizado-
vol. ii. Paris: PUF. 1191. res). Artes da fala. Colóquio de Portel. Oeiras: Celta.
Reckert, Stephen & Macedo, Hélder. (1996). Do cancioneiro Sousa, Avelino de & Júlio Guimarães. (1946). Cantigas ao fa-
de amigo. Lisboa: Assírio & Alvim. do. Lisboa: Edição de Autor.
Reis, Maria da Conceição. (2002). O monte alentejano – a Sousa, Avelino de. (1912). O Fado e os seus scensores. Lisboa:
transformação no século xx – o caso da Amoreira de Cima. Edição de Autor.
Lisboa: Universidade Nova de Lisboa. Sousa, Avelino de. (1944). Bairro Alto (romance de costumes
Resende, Garcia de. (1993). Cancioneiro geral de... Volumes i, populares). Lisboa: Livraria Popular.
ii, iii e iv. (Fixação do texto e estudo por Aida Fernandes Sousa, Maria Clementina Pires de Lima Tavares de. (1942).
Dias.). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Folclore musical. Porto: Portucalense editora.
Ribeiro, Aquilino & M. Marques Braga (prefácio e notas). Souza, Liêdo Maranhão de. (1976). Classificação popu-
(1982). Bernardim Ribeiro, obras completas. Volume ii. lar da literatura de cordel. Petrópolis: Vozes.
Lisboa: Sá da Costa Editora. Subtil, Manuel. (1937.Janeiro.31). Um poeta popular alenteja-
Ribeiro, José Luiz (Pepe Luiz). (1945). Fado, mulheres e toiros. no do século XVIII. Brados do Alentejo. Estremoz. 20-21.
Lisboa: Livraria Popular. Subtil, Manuel. (2001). Vale do Peso: história e tradição. Vale
Rodrigues, Edgar. (1977). Breve história do pensamento e das do Peso: Junta de Freguesia de Vale do Peso.
lutas sociais em Portugal. Lisboa: Assírio & Alvim. Sucena, Eduardo. (2002). Lisboa, o Fado e os Fadistas. Lis-
Rodrigues, Edgar. (1982). A oposição libertária em Portugal: boa: Vega.
1839-1974. Lisboa: Sementeira. Süssekind, Flora & Rachel Teixeira Valença. (1983). O Sapateiro
Roig. PBRO.,Juan Ferrando. (1950). Iconografia de los santos. Silva. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa.
Barcelona: Ómega. Talhinhas, António Joaquim & José Manuel Costa Coelho. (1997).
Roseiro, António. (s. d.). Fados tradicionais. 1.º volume. Ma- Contos versados versus Versos contados. Évora: CENDREV.
fra: Edição de Autor. Tavares, Jorge Campos. (1990). Dicionário de Santos. Porto:
Roseiro, António. (s. d.). Fados tradicionais. 2.º volume. Ma- Lello & Irmão. 213.
fra: Edição de Autor. Teiga, Carlos. (2000). Poesia popular de Terras de Santiago.
Roseiro, António. (s. d.). Fados tradicionais. 3.º volume. Ma- Santiago do Cacém: Edição de Autor.
fra: Edição de Autor. Teiga, Carlos. (2002). Poesia popular do sudoeste alentejano:
Santos, J. J. Carvalhão. (1991). Literatura e política: pombalis- José Pedro Guerreiro (o Rei dos Malhadais ou o Rei do
mo e antipombalismo. Coimbra: Livraria Minerva. Carvão) e Manuel Guerreiro (o Bruxo). Grândola: Câmara
Saraiva, Arnaldo. (1980). Literatura marginal izada. Novos en- Municipal de Grândola.
saios. Porto: Edições Árvore. Thompson, E. P.. (1991). The making of english working class.
Sardinha, José Alberto. (2000). Tradições musicais da Estrema- London: Penguin.
dura. Vila Verde: Tradisom. Tinhorão, José Ramos. (1988). Os negros em Portugal. Uma
Sardinha, José Alberto. (2001). Viola campaniça: o outro Alen- presença silenciosa. Lisboa: Editorial Caminho.
tejo. Vila Verde: Tradisom. Tinhorão, José Ramos. (1994). Fado, dança do Brasil, cantar
Serrão, Vítor Manuel Guimarães Veríssimo. (1986). Relató- de Lisboa: o fim de um mito. Lisboa: Editorial Caminho.
rio – ii-iii. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. (Poli- Trapero, Maximiano & Santana Martel, Eladio & Márquez
copiado). Montes, Carmen (edición). (2000). Actas del VI Encuentro-
Soares de Passos (António Augusto). (1978). Grande Enciclo- Festival Iberoamericano de la Décima y del Verso
pédia Portuguesa e Brasileira. Volume xxix. Lisboa-Rio de Improvisado. I. Estudios. Las Palmas de Gran Canaria:
Janeiro: Editorial enciclopédia. 354-355. Universidad de Las Palmas de Gran Canaria & ACADE.
Sobral, Carlos et alii. (2001). Património edificado de Santiago Trapero, Maximiano (coordinador). (2001). La décima. Su historia,
160
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
su geografía, sus manifestaciones. Gran Canaria & Évora: Centro Ventura, António. (1977). O sindicalismo no Alentejo. A
de Cultura Popular Canaria & Câmara Municipal de Évora. «tournée» de propaganda de 1912. Lisboa: Seara Nova.
Trapero, Maximiano. (1989). Cultura popular y tradicion oral: Vernon, Paul. (2000). A History of thePortuguese Fado.
en busca de romances por La Gomera. Centro de la Cultu- Burlington: Ashgate. [Inclui c. d.].
ra Popular Canaria. Vieira, Ernesto. (1899). Diccionario musical ornado com gra-
Trapero, Maximiano. (1996). El libro de la décima. La poesía vuras e exemplares de musica. Lisboa: Lambertini.
improvisada en el mundo hispánico. Las Palmas de Gran Vilhena, M. Assunção. (1997). Gente do monte: recordação da
Canaria: Universidad de Las Palmas de Gran Canaria & infância. Santiago do Cacém: Edição de Autor.
Cabildo Insular de Gran Canaria & UNELCO. Zumthor, Paul. (1989). La letra y la voz de la «literatura» me-
Valente, Vasco Pulido. (1999). O poder e o povo: a revolução dieval. Madrid: Cátedra.
de 1910. Lisboa: Gradiva. Zurbach, Christine (coordenação). (2002). Teatro de marione-
Valverde, Paulo. (1999). O fado é coração: o corpo, as emo- tas: tradição e modernidade. Évora: Casa do Sul Editora.
ções e a performance no fado. Etnográfica. Volume i. N.º
1. Lisboa: Celta. 5-20.
Vansina, Jan. (s. d.). La tradición oral. Barcelona: Editorial C. D.
Labor. Alfredo Marceneiro (Biografias do fado). (1997). Pracana, José
Vasconcelos, Carolina Michaëlis de (edição). (1990). Cancio- (compilação) & Daniel Gouveia (texto). Lisboa: EMI.
neiro da Ajuda. Volume ii. Lisboa: Imprensa Nacional-Ca- Bonecos de Santo Aleixo. Auto da criação do Mundo.
sa da Moeda. (2000).Giacometti, Michel & Fernando Lopes-Graça. Vo-
Vasconcelos, José Leite de. (1891-1896). Ensaios Ethnogra- lume i. Lisboa: Strauss.
phicos. Volume i. Espozende: Colecção Silva Vieira. 27- No paraíso real. Tradição, revolta e utopia no Sul de Portugal.
31, nota 7. (1999). Lima, Paulo (coordenação). Castro Verde: Câmara
Vasconcelos, José Leite de. (1903-1904). Poetas populares por- Municipal de Castro Verde.
tugueses. I - O Cantador de Setubal. Revista Lusitana. Vo-
lume 8. N.º 1. Lisboa: Antiga Casa Bertrand. 45-48. CRÉDITOS FOTOGRÁFICO
Vasconcelos, José Leite de. (1903-1904). Poetas populares por- pág. 31 Bonecos de Santo Aleixo (Orada), Augusto Brázio
tugueses. II - José dos Reis. Revista Lusitana. Volume 8. N.º pág. 48 Cego e acompanhante, Hidalgo Vilhena, CMSC
1. Lisboa: Antiga Casa Bertrand. 48-49. pág. 84 Tocador de guitarra, Hidalgo Vilhena, CMSC
Vasconcelos, José Leite de. (1903-1904).Poetas populares portu- pág. 114 Manuel José Santinhos, Augusto Brázio
gueses. III - Antonio Augusto Monteiro. Revista Lusitana. Vo- pág. 152 Manifestação de trabalhadores de Santo André em
lume 8. N.º 1. Lisboa: Antiga Casa Bertrand. 50-51. frente ao jornal Semeador, Santiago do Cacém, 1912,
Vasconcelos, José Leite de. (1906). Poetas populares portugue- Hidalgo Vilhena, CMSC
ses. IV - O Pôtra. Revista Lusitana. Volume 9. N.º 1-2. Lis- pág. 162 Manuel José Santinhos e Miguel Capitã (guitarra),
boa: Imprensa Nacional. 139-141. Rui Chaves
Vasconcelos, José Leite de. (1916). Cantigas quadradas: nótulas pág. 238 Fadista, postal ilustrado (finais do séc. xix)
etnográficas. Separata do Correio Elvense. Nº 1659, de 29 de pág. 310 Fotógrafo de feira, Feira do Monte, Santiago do Ca-
Abril de 1916. Elvas: António José Torres de Carvalho. cém, Hidalgo Vilhena, CMSC
PARTE IV
SEIS
MANUEL JOSÉ SANTINHOS, podemos criar outras semelhantes, que nos pare-
UM POETA INSPIRADO PELA NATUREZA cem mais razoáveis:
Olhemos para o nosso Mundo, esta máquina
PROF. MANUEL JOÃO DA SILVA maravilhosa em todas as manifestações da vida e
Q
até nas coisas inanimadas.
UEM teria ensinado os primeiros “músicos” Quem rege toda esta “engrenagem” que nenhum
da palavra, a quem os falantes determina- homem pode igualar, mas que muitos, infelizmen-
ram chamar poetas? O que é certo é que te, se esforçam por destruir?
Homero compôs os seus poemas há perto 3 mil anos, Assim, para descanso da nossa mente, temos de
e antes dele outros poetas teriam existido. “criar” um Deus-Natureza, um Deus-Científico,
Recuemos, ainda mais, no tempo: sublime, inconsciente ou possuidor duma consci-
Quem teria ensinado os homens primitivos a de- ência transcendente que nenhuma mentalidade hu-
senhar e pintar as figuras cheias de força e reali- mana pode compreender; um Deus que distribui
dade, que se vêem nas grutas existentes em vários os dotes pelos humanos tal como distribui a chu-
lugares da Terra? E além destas, outras manifesta- va pelos vários lugares da Terra, ficando uns com
ções da arte primitiva? mais quantidade do que outros. Um Deus que bem
Certamente ninguém. Será a resposta pronta e pouco tem a ver, com o Deus tradicional que nos
impensada. é apresentado.
Então serão essas obras maravilhosas, quer se- Todo este preâmbulo não foi mais que um en-
ja no aspecto físico ou intelectual, um produto do saio, para tentar explicar o inexplicável, isto é,
acaso, sem haver um “Mestre” invisível que orien- atribuir a uma “inspiração divina” (para não lhe
tasse esses artistas? chamarmos outro nome) ao aparecimento da obra
Os gregos, com um sentido muito prático, cria- do Poeta, que ora apresentamos.
ram os deuses, que superintendiam em todos os A História classificou Camões como Príncipe
actos da vida dos homens. As deusas, com a ca- dos poetas portugueses. Num sentido mais res-
tegoria de musas, estavam encarregadas de inspi- trito, classificamos Manuel José Santinhos como
rar os poetas. Príncipe dos poetas populares desta e doutras re-
Segundo a mitologia grega, o Olimpo era a mo- giões, tão grande e excelente é a sua obra.
rada dos deuses, e estava situado nas altas monta- Neste artigo, que pretendemos não alongar mui-
nhas da Grécia. to, não nos move qualquer outro objectivo, senão
Num aparte, apetece-nos perguntar: Qual seria fazer justiça ao Poeta, pelas suas excepcionais qua-
a musa que voou do Olimpo e veio pousar no te- lidade, como homem de bem, como pessoa inteli-
lhado do monte do Tojal, e inspirou o Poeta Ma- gente, e principalmente pela sua inspiração poé-
nuel José Santinhos? tica com que foi dotado pela tal musa partida do
Como pensantes que somos, hoje não podemos Olimpo.
aceitar as teorias dos antigos gregos. No entanto, Os seus admiradores contam-se entre todos
164
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
aqueles que o ouvem recitar suas poesias. E, caso sociais e tudo quanto fazia sofrer os deserdados da
curioso: o auditório que o escuta, pode ser cons- sorte. Este rol de desventuras provocava situações
tituído por pessoas que já ouviram as suas “qua- que muito impressionavam os poetas.
dras” dezenas de vezes, mas, pela harmonia dos Mas tal qual como a vida das pessoas, nem tu-
seus versos, recitados com sua voz suave mas cheia do é sempre um mar de rosas nem um poço de so-
de força na sua expressão poética, é coisa que nin- frimento.
guém quer perder a oportunidade de os ouvir mais Neste aspecto, já temos observado que o poeta,
uma vez. quando recita umas poesias que fazem chorar a as-
A obra de Manuel José Santinhos, além da po- sistência, se não com os olhos mas sim com o senti-
esia, encerra outro valor: Pela facilidade e clareza mento, ele apresenta a seguir umas poesias humo-
da comunicação, ela é ainda um documento valio- rísticas ou brejeiras, e dum momento para o outro
so, pela quantidade dos temas tratados pelo poeta, todo o auditório ri. Com esta habilidade a boa dis-
ao longo da sua longa existência. posição volta novamente.
É como uma verdadeira reportagem sobre os A propósito das cantigas brejeiras onde se nota
usos e costumes da região, onde se mencionam os certas doses de erotismo, não ferem a sensibilidade
acontecimentos mais importantes da freguesia, os de quem quer que seja porque em poesias deste gé-
usos e costumes da população, a vida difícil dos nero, o Autor usa sempre linguagem figurada.
pequenos e médios agricultores a cuja classe o au- Outro tema que o poeta se refere largamente, é
tor pertence. o Amor. Usa este tema referindo-se ao amor entre
os membros da mesma família e não só. Nas su-
Se passarmos pelo vasto conteúdo da obra de as poesias encontramos algumas dedicadas às su-
Manuel José santinhos, temos a impressão que es- as apaixonadas, certamente compostas quando o
tamos perante um filme em que as imagens se su- Autor era rapaz.
cedem conforme a imaginação e a descrição do É interessante notar que até na obra do Poeta
Autor. Manuel José Santinhos, a História da poesia an-
Se bem pensarmos, o Poeta é também um “histo- tiga se repete. Pois tal como no tempo do nosso
riador” do meio e da época em que vive, visto que rei D. Dinis, aqui as cantigas de “amigo” tam-
talvez sem dar por isso, nos apresenta os aconte- bém aparecem quando o Autor as dedica aos seus
cimentos, os usos e costumes, fazendo o “retrato” colegas e outras pessoas que estima. Também na
das pessoas conforme as suas boas ou más quali- continuação do tema que vem de longe, como
dades. dissemos, os maus vizinhos são “contemplados”
Nem só as pessoas, mas também as coisas da fre- com as “cantigas de maldizer” dedicadas a indi-
guesia nos são apresentadas. E será ouvindo uma víduos que dalguma forma prejudicaram o Poe-
“cantiga” que o Poeta dedicou à feira de Santo An- ta, ou faltaram ao respeito à sua vizinhança, co-
dré, composta ainda quando o Autor era um rapaz, mo era o caso dos donos de valados de piteiras
há cerca de setenta e cinco anos, que nós podemos nas azinhagas.
fazer uma ideia sobre as características duma feira Apesar disso, o Autor como pessoa pacífica que
desta época. Por esta “quadra” soubemos da exis- é não descompõe nem cita os nomes dessas pes-
tência da barraca de Maria José Preta, cuja dona soas. Pelo contrário, lamenta o seu procedimento
tocava guitarra e cantava ao despique com os fre- como que fazendo um apelo para o bom compor-
gueses, causando certa admiração e prazer aos po- tamento, de modo que a paz reine no lugar onde
etas de santo André por ser coisa que até ali nun- todos vivem.
ca tinham visto. No princípio da década de setenta deste sécu-
Depois, os temas sucedem-se, ora dramáticos, se lo, implantou-se o Gabinete da Área de Sines nes-
tratam de assuntos relacionados com a morte, com te Concelho e em parte da freguesia de Santo An-
a mendicidade, com as doenças, com as diferenças dré. Nas poesias que o Autor dedica a este aconte-
165
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
cimento, descrevendo a forma despótica como es- Em nosso entender, mesmo que o Autor não ti-
sas expropriações foram realizadas, podemos co- vesse composto outras cantigas além desta, pa-
nhecer o descontentamento que esta medida cau- rece-nos que ela seria suficiente para o tornar
sou nos pequenos e médios agricultores, grupo a célebre.
que pertence Manuel José Santinhos.
Outro tema predilecto do Poeta era a sua vida de A PROPÓSITO DO “POETA POPULAR”
agricultor, tanta vez cheia de dificuldade. No en-
tanto, como humorista de fino quilate que é, des- Na verdade, não simpatizamos muito com es-
creve a sua vida, muitas vezes atribulada, recitan- te termo, por nos parecer que ele foi criado pa-
do as suas poesias a esse respeito com um sorriso ra diferençar o poeta erudito que vive na cidade,
nos lábios, fazendo desta forma, sorrir também os rodeado de cultura, com o seu colega de poucas
seus ouvintes. ou nenhumas letras, que até há poucos anos vi-
Neste capítulo, consideramos uma poesia genial via rodeado de analfabetismo nas aldeias e nos
da qual transcrevemos o mote: campos. No entanto, as “musas” podem ter vi-
sitado uns e outros. E neste caso, o poeta a que
Lá anda o velho campónio fazemos referência neste trabalho, é disso um
Labutando com a vida exemplo flagrante. Daí o nosso desacordo em
“Enludido” pela esperança pôr “rótulos” nas pessoas antes de analisar as
São João e Santo António suas obras.
Trazem-lhe a ideia “enludida” É certo que, a obra dum poeta ilustrado, alcan-
De morrer não tem lembrança çará maior prestígio que aquela produzida por ou-
tro poeta que não recebeu qualquer embelezamen-
A apreciação à Obra de Manuel José Santinhos to da educação.
não teria fim, mas já vai longo o nosso trabalho, Por outro lado, não é menos verdade que há flo-
e nós vamos terminar um tanto abruptamente fa- res silvestres que cresceram espontâneas nos cam-
lando da sua poesia mais conhecida, que como a pos, e apesar disso, se bem olharmos para elas, ve-
anterior transcrevemos o mote: rificamos que a sua beleza singela rivaliza com as
mais perfeitas flores modernamente tratadas nos
A água da minha fonte jardins, em que algumas vezes, pouco perfume elas
Dou eu a quem a vá buscar exalam para o ambiente.
Nunca por mim foi vendida
E há queixumes lá no monte Terminamos sem palavras rebuscadas, dando as-
Que a têm ido comprar sim a nossa simples opinião como simples é a gran-
Em nome de outra bebida deza da Obra de Manuel José Santinhos.
166
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
E
RA nossa primeira intenção editar todos os do por Nicolau
textos que recolhemos de José Manuel Santi-
nhos. Essa edição seria crítica. Motivos vários AO LADO DE NOSSO [Quadra curta de Manuel José
impossibilitaram a edição dos cerca de 500 textos SENHOR Santinhos]
versificados. A estes juntar-se-iam aqueles que lhe fo-
A lua é Nossa Senhora A lua é Nossa Senhora
ram sendo dedicados por vários poetas. De qualquer Que está no seu altar Deus é o sol superior
forma, todo o corpus recolhido e tratado foi deposi- Ao lado de Nosso Senhor A terra é mãe criadora
A terra mãe criadora E o mar é o nosso amor
tado na Câmara Municipal de Santiago do Cacém, Ao mar se vai buscar
assim como todas as gravações efectuadas. Muito carinho e amor!
Não devemos ter a veleidade de imaginar que As nuvens são passarinhos As nuvens são passarinhos
algum dia teremos um livro onde se reúnam todas Formando um grande bando A voar sobre a lavoura
as composições do poeta do Tojal. Grande parte Voando sobre a lavoura As estrelas são anjinhos
As estrelas são os anjinhos A lua é Nossa Senhora
desta era feita em improvisos ou ia sendo altera- Para se irmos aproximando
da, transformada, substituída por outras compo- A lua é Nossa Senhora
sições. O que ficou na sua memória são textos de Deus está na Igreja
há muitos aprendidos ou que de alguma forma Que existe em tudo o mundo
E gosta de lá estar
marcaram, pelo seu fundamento, um momento O bem a todos deseja
importante na sua história de vida. Ainda assim, Com um sentimento profundo
juntámos uma das maiores colecções já há algu- Que está lá no seu altar
ma vez reunidos de um só poeta. Esperamos, no O tempo é a nossa sorte O tempo é a nossa sorte
futuro, vir a poder editar criticamente todo es- O saber dá nos luz Quem nos dá frio e calor
E também muito calor O Diabo é a nossa morte
te corpus. O destino é muito forte Deus é o sol superior
Alguns destes textos já foram publicados quer Maria mãe de Jesus
Al lado de Nosso Senhor
por Vítor Bastos e Celeste Rodrigues quer por Car-
los Teiga. Embora coloquemos a referência biblio- Saúde é toalha estendida Saúde é a colcha estendida
gráfica em cada texto, há algumas diferenças entre Ao pé da fonte a correr Ao pé de água superiora
Que mata a sede duradoura A esperança é a nossa vida
os textos já editados e os que aqui divulgamos: se- A esperança é a nossa vida A terra é mãe criadora
guimos sempre as gravações da década de oitenta É o que há a dizer
A terra mãe criadora!
feitas por Vítor Bastos, as nossas ou os manuscri-
tos em posse de Glória e de Eduarda Santinhos; só Há um ser que nos conduz
Sem ninguém se aperceber
a inexistência – casos raros – de versões é que nos Mas põe tudo a andar
fez seguir as já anteriormente dadas. Tudo de bom se produz
Os textos vão organizados por temas, em parte E o peixe para se comer
Ao mar se vai buscar!
relacionados com a história de vida de Manuel Jo-
sé Santinhos. Temos consciência de que se o poeta Há o astro que não é feio O astro formoso e cheio
Com um azul clarinho Não se demuda de cor
do Tojal estivesse vivo, as daria de uma outra for- E nunca muda de cor O vento é o nosso recreio
ma, mas o contacto de quatro anos com a sua obra E na hora do recreio E o mar é o nosso amor
Recebemos devagarinho
dá-nos, por vezes, a vertigem de uma partilha que Muito carinho e amor!1
é apenas uma ilusão.
Seria de extremo interesse aprofundar a ques-
tão autoral. Durante o processo de trabalho, fo- Mas esta estratégia de construção também é
mos confrontados com a obra do poeta «Nico- localizável em muitos textos de Santinhos. Ele
lau». Este, de seu nome António José Gonçalves, aproveita versos, adágios, fragmentos de déci-
parece em muitas composições plagiar o seu ain- mas… para as suas quadras. O confronto com
167
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 001 › › 002 ›
MANUEL JOSÉ DO TOJAL N AS CAMPINAS ME CRIEI
NATURAL DE SANTO ANDRÉ Q UANDO HAVIA LIBERDADE
NO TOJAL JÁ SE NÃO CRIA D OS TEMPOS QUE EU JÁ PASSEI
OUTRO RAPAZ COMO ELE É A INDA SINTO SAUDADE
› 006 › › 007 ›
FUI À FESTA DE SANTA CRUZ EU NUM DOMINGO PASSADO
COISA LINDA E DISTINTA FUI AO AZINHAL PASSEAR
NO DIA CINCO DO CINCO POR SER UMA ALDEIA TÃO BELA
DE MIL NOVECENTOS E TRINTA ONDE FIQUEI ENCANTADO
POR VER UMA ROSA BRILHAR
Tinha saúde e prazer NO PEITO DUMA DONZELA
Determinei em ir à festa
Pensei hoje a vida é esta Eu pensava em vida alheia
Gozar quando puder ser Já mais que na minha vida
O gosto dos olhos é ver E senti o cérebro doente
Foi o que a pensar me pus Com a ideia iludida
E enquanto eu viver à luz Andava perdidamente
Quero deitar os meus planos Visitando aquela aldeia
E para honrar vinte e quatro anos Por uma moça bem parecida
FUI À FESTA DE SANTA CRUZ Quem eu não achava feia
E tinha olhos de cativar
Depois de à ermida chegar E eu com as minhas paixões
Pus o meu chapéu na mão Já não podia negar
Respeitando a procissão Que andava hipnotizado
E a santa que ia a passar E cheio de amor e ilusões
Fui ouvir moças cantar EU NUM DOMINGO PASSADO
Como rouxinóis numa quinta FUI AO AZINHAL PASSEAR
Digo à família que se pinta
Em obras que eu oiço e vejo Eu ouvia lá no Tojal
Assisti a esse festejo Era as rãs na lameira
COISA LINDA E DISTINTA E na charneca as cotovias
E ali uma voz aldeeira
Essa dita segunda-feira Me animava muitos dias
Quando eu gozava assim Quando eu ia ao Azinhal
Com a mocidade no fim Para meu gosto era a primeira
Mas tinha boa maneira Era um primor divinal
Na mocidade solteira Aonde um amor se revela
Com alegria ainda brinco E eu para comigo pensava
E na orgia ainda me afinco Se a minha fosse aquela
Com muitos gostos de vida Ainda eu no mundo era alguém
Fui visitar a ermida E doutras terras não gostava
NO DIA CINCO DO CINCO Ali é que eu estava bem
POR SER UMA ALDEIA TÃO BELA
O gozo é conforme as marés
E que a gente ir não se aborreça Roseira perto da fonte
E eu tinha um boné para a cabeça Que dava gosto de se ver
E umas lindas botas nos pés Cheia de flores mimosas
E um fato de duzentos mil réis Dava à aldeia prazer
Que eu tinha da cor de tinta E o aromado das rosas
Para estrear uma linda cinta Perfumava o horizonte
Hoje da minha casa saio Nascente de água a correr
Foi no dia cinco de Maio E fresca ribeira defronte
D E MIL NOVECENTOS E TRINTA As donas iam lavar
Bastos & Rodrigues 1991: 85. E borboletas da campina
Ali vinham ondear
Ao pôr-do-sol dourado
Nesta aldeia pequenina
ONDE EU FIQUEI ENCANTADO
POR VER UMA ROSA BRILHAR
172
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 015 › › 016 ›
Mas ao depois a outra era … trazer a cortiça. E então aquilo é uns chapadões,
é uma coisa que é assim quase empinado, mas lá à
Q UANDO PENSO A MINHA SORTE roda do barranco sempre ajeitou e descobriu lá uma
M INHA ALMA NO PEITO CHORA fonte. E ao depois fez lá uma festa e vieram-me bus-
P OIS GANHANDO EU MENOS QUE AOS MAIS car para ir lá, a essa festa, e então ele disse-me, Fazer
E O PATRÃO MANDOU - ME EMBORA uma obrasinha também dedicada a isto, e eu fiz.
Pois quando fui um dia lá ao Parral, fui lá levar a
Senhor Arsénio Sobral obra, quer dizer, fui lá dizer a cantiga. Ele deu-me cin-
Eu sou muito seu amigo co litros de azeite! Encheu um garrafão de cinco litros
Mas desculpe eu sempre lhe digo e disse, Leve lá, que é a melhadura da cantiga.
Não se portou natural Foi a obra mais importante que fiz foi esta.
Porque eu fui pelo seu forno da cal Mais bem paga?!?
Um interessado bem forte Sim senhor, mas eu é que não sou capaz
Eu desforcei quase à morte Não está lembrada dela agora.
Os animais que eu exploro Dizia
Por isso eu às vezes choro
QUANDO PENSO A MINHA SORTE SURGISTE DO SEIO DA TERRA
LINDA FONTE APAIXONADA
Eu vinha para cá de madrugada DÁS ÁGUA DO TEU NASCENTE
E abalava de serão ÉS O ENCANTO DA SERRA
A ver se contentava o patrão NASCESTE PARA SER AMADA
E nunca me serviu de nada E FAZER BEM A MUITA GENTE
Levantava-me para fazer palhada
Da meia-noite à uma hora Tens dote da natureza
E quando rompia a aurora Senhora da perfeição
Seguia para o meu encargo Trouxeste o nosso bem
E hoje ao receber mal pago És tu quem regas o chão
MINHA ALMA NO PEITO CHORA E fazes curas a alguém
E não me lembra mais nada!
Não me acontecia coisas destas Mostras amor e beleza
Se não viesse ao seu trabalho Tens a boa fresquidão
Eles fazerem de mim bandalho A mais linda clareza
Dizerem vai-te embora que não prestas És de todos invejada
Ficarem fazendo festas És tu a dona do fundo
Soltando risos brutais A filha da mãe sagrada
E os senhores chegando a pontos finais Quem seus caminhos não erra
Ouvir verdades deste Manuel E para dar alegria ao mundo
Que ainda me ficou devendo um quartel S URGISTE DO SEIO DA TERRA
E GANHANDO EU MENOS QUE AOS MAIS LINDA FONTE APAIXONADA
› 019 › › 020 ›
SINTO PRAZER AO TRATAR O CARRO DO MEU ANIMAL
MEUS ANIMAIS POBREZINHOS DEU-SE AO LUXO EM SER PINTADO
MANTÊ-LOS SINTO-ME BEM É PENA É SER CHIADEIRO
LEMBRO QUE ASSIM VOU PAGAR SABENDO QUE POUCO VALE
OS MIMOS E OS CARINHOS DIZ-ME EM SERMÃO MAGOADO
QUE LOGREI DE MINHA MÃE LEVA-ME PARA O CARPINTEIRO
› 032 › › 033 ›
EXISTE UM VELHO MOINHO Ó CENTRO MODESTO LAR
NA VILA DA FREGUESIA ÉS PAI DO POVO VELHINHO
DE SANTO ANDRÉ MARGINAL DÁS-LHE TRANSPORTE E COMIDA
SÓ MÓI PARA O POVO VELHINHO QUEM NÃO POSSA TRABALHAR
E QUEM BAIXOU AO CENTRO DE DIA LÁ TEM CONFORTO E CARINHO
DA ASSISTÊNCIA SOCIAL NOS DIAS DO FIM DA VIDA
› 041 › › 042 ›
AO MEU CELESTINO E AO MEU JOSÉ MANUEL JOSÉ DO TOJAL
PEÇO OFERTA AGRADECIDA HOJE NA SUA FREGUESIA
ANTES DE EU IR PARA SANTO ANDRÉ FAZ LEMBRAR FLORES DE ABRIL
FESTEJEM A MINHA VIDA É DE SANTO ANDRÉ NATURAL
E TEM PRAZER E ALEGRIA
Antes que haja uma paixão DE ENTRAR NO ANO DOIS MIL
Que a vida desfaça em nada
Da minha família amada Na vida ainda me afinco
Quero-lhe fazer despedição Considerado amor querido
Beijá-los apertar a mão E da sociedade me lembro
O braço a perna e o pé No Tojal fui nascido
Cortesia como é Em vinte e quatro de Dezembro
O dever dum pai querido De mil novecentos e cinco
Quero fazer este pedido Dizem os que têm ouvido
AO MEU CELESTINO E AO MEU JOSÉ Minha poesia um brinco
Em alta categoria
Umas pingas da adega Sou jóia de altos valores
Fazem um festejo bonito Mantendo o meu porte em dia
O Zé fornece o cabrito Minha fama é mundial
E o Celestino uma borrega E quero ser membro dos cantores
E falar-se ao que a gente chega MANUEL JOSÉ DO TOJAL
Esperança quase perdida HOJE NA SUA FREGUESIA
Como eu folha caída
A tristeza que me invade Já subiu ao raro grau
Para esta infelicidade Noventa e mais além
PEÇO OFERTA AGRADECIDA E com vida às mil maravilhas
A tratarem do seu bem
A Pereira e o Azinhal Doutores e filhos e filhas
Prontos a contribuir O seu belíssimo amparo
Para a gente se reunir Para que eu seja um alguém
Na Zimbreira do Tojal O combustível é tão caro
Antes que haja um funeral Para o meu tacho ou barril
Que se perca esperança e fé E quando eu sentindo vontade
O dois mil é boa maré De dar emprego ao funil
A dar início ao meu festejo Para as minhas regalias
Satisfaçam o meu desejo E quando de na sociedade
ANTES DE EU IR PARA SANTO ANDRÉ EXPANDE AS SUAS POESIAS
› 044 › › 045 ›
VAI TÃO LONGE A MINHA IDADE PLANTEI UMA FIGUEIRA
SINTO TÃO PERTO O MEU FIM PARA RECURSO FUNÉRIO
ÀS VEZES ME DÁ VONTADE DAS ALMAS DO OUTRO MUNDO
DE VESTIR LUTO POR MIM QUE JAZEM NO CEMITÉRIO
› 046 › › 047 ›
AO LEMBRAR HÉLDER MEU NETO SOU O MANEL ZÉ DO TOJAL
E ESPOSA DONA PAULINHA DIZEM FAMÍLIAS AMIGAS
NOS BRILHOS DO SEU PROJECTO E DA BOCA DOS QUE NÃO PRESTAM
HÁ UMA FILHA E BISNETINHA SOU O MANEL DAS CANTIGAS
Antes da campa como eu queira um abraço Só quem cabe irá no trilho da glória
Eu já contei anos e meses tempo passado E tem que amar uma Maria bem formosa
Já me encontrei algumas vezes assombrado Para galar uma melancia bem gostosa
Da sulipampa de eira e beira e do ameaço Tem que atingir a assembleia sobre a lavoura
A minha estampa derradeira eu é que a faço E possuir uma ideia adamastora
Com patinhas de folia e estrondação PARA DEDICAR UMA POESIA VALOROSA
E com talhadinhas de melancia da chaminé
Se preferes vir dar-me uma distracção › 055 ›
E se quiseres apertar a minha mão É TRISTE A INFELICIDADE
BARREIRINHAS VEM UM DIA A SANTO ANDRÉ NUM FADISTA QUE DEU FAMA
Bastos & Rodrigues 1991: 77. QUEM TÃO LINDAMENTE CANTAVA
E AGORA CHORA NA CAMA
› 054 ›
A S ESPERANÇAS TUDO EU DIGO AO MEU VIZINHO Foi um homem parcial
POR GOSTAR DA OUSADIA EM SUA PROSA Com o seu préstimo fiel
POR TER LEMBRANÇAS DUM AMIGO JÁ VELHINHO Todos conheciam o Manuel
PARA DEDICAR UMA POESIA VALOROSA Dâmaso Pereira Parral
Com decadência e moral
Eu só estava à espera com vigor Foi um amor da sociedade
Duns arredios apaixonados do serão Gozou a probabilidade
E os elogios que foram dados na canção Como um cravo num jardim
Eu pensava que não era merecedor Num homem que foi assim
Não esperava de nesta era ter valor É TRISTE A INFELICIDADE
Para as almas mansas neste artigo de São Martinho
Entrar nas danças de pão de trigo e carne e vinho Ó Deus tão poderoso
E mais comida castanha assada e água-pé Que dás saúde a tanta gente
E enquanto a vida é dedicada a um José Tem dó do pobre doente
AS ESPERANÇAS TUDO EU DIGO AO MEU VIZINHO Não o mates dá-lhe gozo
Que as expressões do queixoso
Quando diz eu ser cantor é uma verdade Saúde para si chama
Quando em novo o meu ser já era assim Suas lágrimas derrama
E do meu povo houve um prazer sobre mim Exclamando sua sorte
Sou feliz por ser amor da sociedade Pois vê-se assombrado da morte
Eu não quis ser inferior que não agrade UM FADISTA QUE DEU FAMA
O trabalhar sem mania é que goza
O meu cantar em voz macia e amorosa Ao ser por todos estimado
Tudo o que eu sei vai em meu cante para o repouso Como seu modo de agradar
E então fiquei mui radiante e orgulhoso Teve sempre para se colocar
POR GOSTAR DA OUSADIA EM SUA PROSA Um posto muito elevado
Hoje já se não vê animado
Os haveres melhor que nada é ter à farta Como em tempo costumava
E faz figura quem cantar com bom sentido Aonde quer que chegava
Houve uma altura em que eu fiquei surpreendido Tinha dizeres como um barra
Com os dizeres da sua prezada carta E ao som da sua guitarra
Se tem poderes de alma sagrada não parta TÃO LINDAMENTE CANTAVA
Nas mudanças o perigo vem num instantinho
Eu finanças não consigo sou fraquinho Ao ver-se na infelicidade
Sabedoria é que era boa para os cantores E a saúde já sem esperança
E também merecia uma coroa de flores Deu a fazenda para lembrança
POR TER LEMBRANÇAS DUM AMIGO JÁ VELHINHO A quem lograva amizade
Rapaz que na mocidade
Ser suave e ter um brilho é ter memória Conquistou mais de uma dama
Para não esquecer que ser alguém é cantar fado E hoje da mulher que tanta ama
O dever é ir além àquele lado A morte o querer separar
Plantar uma árvore ter um filho e uma história Este que em tempo se ouviu cantar
E AGORA CHORA NA CAMA
Bastos & Rodrigues 1991: 73.
200
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 058 › › 059 ›
TÚLIO DA SILVA JÁ PENSAS QUE CANTAS BEM AOS POETAS DE CONFIANÇA
COM TEU PRANTO A DAR A VER QUE VAIS ERRADO MUITO LEMBRADOS POR MIM
É PENA CONFUNDIRES-TE COM ALGUÉM VENHO PEDIR UM FAVOR
GABARES-TE TANTO E SEM SABERES CANTAR O FADO QUERO-OS EM MINHA PRESENÇA
ANTES DO MEU TRISTE FIM
Tu inspiras guitarradas és bom parceiro PARA ALIVIAR MINHA DOR
Fazes-te de novo e sem desconto no falar
Queres que o povo esteja pronto a te aturar Álvaro Pedro e Paulinho
A ouvir mentiras inventadas do estrangeiro São lá do Alto Alentejo
Tu admiras com badaladas do mundo inteiro Ambos são alentejanos
Isso deriva das desavenças do desdém E em Vale de Água uns que eu invejo
Resposta activa só endereças se te convém Amigos que são como manos
Não estares calado tens memória e tens valores O Modesto e o Francisquinho
E por colectado na história dos cantores Joaquim Augusto do Brejo
TÚLIO DA SILVA JÁ PENSAS QUE CANTAS BEM O Aleixo e o Cavalinhos
São flores do meu jardim
Foi descoberto por mentiras que eu ouvi Com a Tonica no sentido
Tu te gabares a uns senhores que te conhecem E como o Túlio há poucos assim
Sem te lembrares que os mais cantores também Com sabedoria imensa
[merecem Eu quero fazer um pedido
Não está certo quereres o saber só para ti A POETAS DE CONFIANÇA
Eu não fui esperto tempo perder como eu perdi E MUITO LEMBRADOS POR MIM
Por meu encanto ou meu dever ter-te escutado
Não sou santo para te valer neste bocado O senhor Jorge Ganhão
Para te dar a salvação de opiniões É ciência muito altiva
Tu queres entrar na secção dos campeões Está em classe primeira
E COM TEU PRANTO A DAR A VER QUE VAIS ERRAR E o doutor Alves da Silva
E o Chaparreira
Sendo assim és mui falado em Portugal E o professor Manuel João
Para assunto não tens alcance vais à toa Para a guitarra a tarde inteira
Pegas muito no romance da enjoa O senhor Francisco Aragão
Quem é ruim é premiado por cantar mal E concertinistas em flor
Mas no fim és afamado mundial Quero que haja desporto algum
Por essa cena a despedires-te do amém Sou da sociedade amor
Reza pequena se achas triste diz quem Gosto de os ouvir cantar
Que essa oração é santa e pura e mui querida E em Abril de dois mil e um
E se teu brasão mete censura escarnecida Que me venham visitar
É PENA CONFUNDIRES-TE COM ALGUÉM VENHO PEDIR UM FAVOR
Soam os boatos dos clientes pelos montes Silvério Palhinhas seu pai
Sobre a vida dos que vêm para beber A mãe Custódia da Graça
Dizem que as bebidas que eles têm para vender Ao verem o que se passa
Estão em contacto com as nascentes lá das fontes Desmaiam dizendo ai ai
Povo pacato fecha os dentes e não contes Quem a triste sorte lhe cai
Há quem para lá galga dando ais em gritaria Quando o azar reflecte
Até dá mágoa gritos tais com agonia A mãe mil vezes repete
Para esta gente compreendem frases modernas Meu querido filho adorado
Dizem que a aguardente que eles vendem Foi morrer despedaçado
[nas tabernas DEBAIXO DE UMA CAMIONETE
TEM MAIS ÁGUA QUE OUTRAS MAIS NA FREGUESIA Teiga 2000: 105.
Bastos & Rodrigues 1991: 97.
› 065 ›
› 064 › EM JANEIRO DE SESSENTA E TRÊS EM SANTO ANDRÉ
EM DIA 10 DE FEVEREIRO NUM NÁUFRÁGIO DO PIOR DE SUPORTAR
DE MIL NOVECENTOS E TRINTA E SETE DEZASSETE PESCADORES FORAM MORTAIS
MORREU JOSÉ ABEL PALHINHAS NA LAGOA MAS COM UMA ONDA DE MAR
DEBAIXO DE UMA CAMIONETE
Quando uns breves ficaram sem acção
O triste destino fatal Para dizer aos mestres companheiro olha
Aproximou-se num instante [que eu morro
Da criancinha elegante Nos seus gestos derradeiros pedem socorro
Que alegrava o pessoal Alguns ainda acenaram com a mão
Da aldeia do Azinhal Desses nenhum apoderaram salvação
Chorou este povo inteiro Nenhum foi ligeiro para o que o mar
Ah chofer tão traiçoeiro [fez nesse dia
Tão lindo anjinho mataste Nem o primeiro teve altivez e boa-fé
Grande crime praticaste Para pôr em média não ser possível o que
EM DIA 10 DE FEVEREIRO [aconteceu
Da tragédia mais horrível que apareceu
EM JANEIRO DE SESSENTA E TRÊS EM SANTO ANDRÉ
205
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 071 › › 072 ›
EM ABRIL DE UM OUTRO ANO SE AS COISAS APARECESSEM FEITAS
NASCEU UMA LINDA CRIANÇA E PARA DAR SE HOUVESSE ALGUM JEITO
SE NO FUTURO NÃO HÁ ENGANO SE AS ACÇÕES FOSSEM ÀS DIREITAS
TEMOS NELA GRANDE ESPERANÇA E EM VEZ DE ABUSO RESPEITO
› 074 › › 076 ›
No cemitério de finados NUMA DAS MINHAS VIAGENS
No campo da igualdade PASSEEI NUMA CIDADE
Defuntos sepultados E QUIS IR À RUA DA SORTE
Deixam para sempre a saudade MAS ENGANEI-ME NAS PASSAGENS
Bastos & Rodrigues 1991: 28; Teiga 2000: 18. DEIXEI O LARGO DA SAUDADE
E FUI PARA A TRAVESSA DA MORTE
› 075 ›
A Dona Morte maldita Tive um prazer de encantar
Quis Dona Dor para seu lar Quando por meu encontrei
Nenhuma é esquisita Bom sol e boas aragens
Mas a Dor é mais bonita E pus-me então a apreciar
E eu com ela quis dançar As delícias que eu gozei
NUMA DAS MINHAS VIAGENS
Não querendo eu ser ruim
Nas danças e nas balouças Ainda tenho lembranças
Ao lembrá-la perco as forças De estar na estação da espera
Por saber que aquelas moças E no Templo da Virgindade
As duas gostam de mim E passar aos Campos da Esperança
Quando em minha primavera
Em qualquer ocasião PASSEEI NUMA CIDADE
Por pequenas bagatelas
Solto lágrimas singelas Estive em pensão Terra e Mar
Por saber que alguma delas Na freguesia Defeso
É a minha perdição E no cruzamento Mau Porte
Vim do bairro do Azar
Com a saúde perdida Na calçada do Desprezo
Em momentos de agonia E QUIS IR À RUA DA SORTE
Falta às vezes alegria
Por saber que elas um dia Num restaurante Maré
Darão fim à minha vida No cimo de uma tribuna
Vi as mais lindas imagens
Para a vida ter mau porte Quis ir ao Retiro da Fé
Em ninguém ter amor E ao mosteiro da Fortuna
Vestem-se da mesma cor MAS ENGANEI-ME NAS PASSAGENS
Engraço mais com a Dor
Mas devo de ser para a Morte Nessa viagem que vim
Avistei muitos haveres
A Morte leva-me ao fundo Mas não vi sinceridade
Sem ver do sol as luzernas Para o hospital Bom Fim
Não quero saber das modernas E o cemitério dos Prazeres
Namoro as que são eternas DEIXEI O LARGO DA SAUDADE
Últimas noivas do mundo
Bastos & Rodrigues 1991: 33. Estive na fonte dos Amores
A essa fonte e à praça
Vão moças de sul a norte
Namorei virgens das dores
Atraído pela desgraça
E FUI PARA A TRAVESSA DA MORTE
Bastos & Rodrigues 1991: 49.
212
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 077 › › 078 ›
COM PENA PEGUEI NA PENA SENTI PRAZER COM REMORSO
DEIXAM-ME ENTREGUE À PAIXÃO ASSIM QUE TEUS OLHOS VI
AS PENAS DE NÃO PODER E MESMO QUE QUEIRA NÃO POSSO
PENSANDO EM TI Ó MORENA NEGAR QUE GOSTO DE TI
CAIU-ME A PENA DA MÃO
COM PENA DE TE NÃO VER És a minha simpatia
A jóia que eu mais adoro
Há tempos que cá não vinhas Sem ti padeço e choro
Apreciar as delícias Só tu és minha alegria
Dum amor que ainda reina[ ’ ]
RE NA
És para mim a luz do dia
E para te dar novas minhas O doce com que me adoço
As desejosas notícias És das flores que eu não roço
COM PENA PEGUEI NA PENA Sempre a mais desprendida
Quando te encontrei na vida
Há campinas de flores SENTI PRAZER COM REMORSO
Nos arredores aonde eu rodo
Na Primavera do Verão Sem ti sei que não sou nada
Teus olhos encantadores Contigo serei alguém
E o teu agradável modo Por eu te querer tanto bem
DEIXAM-ME ENTREGUE À PAIXÃO Não te orgulhes seres amada
Nesta vida amargurada
O teu amor nunca esquece Mil caminhos percorri
Mui feliz é quem namora Se há fontes que eu não bebi
Um amor que dá prazer Eu quem era já não sou
O meu coração padece Minha alma presa ficou
Minha alma no peito chora ASSIM QUE TEUS OLHOS VI
AS PENAS DE NÃO PODER
Estar um dia sem te ver
És a jóia mais querida Para mim é uma penitência
Rainha das alegrias Não me faças uma ausência
A mais excelsa novena Se não queres que eu vá morrer
És o futuro da minha vida Por laços do bem-querer
Acordo todos os dias Liga bem este amor nosso
PENSANDO EM TI Ó MORENA Com amizade os engrosso
Para em vigor os manter
Gosto tanto de te ouvir E o nosso amor esquecer
As tuas razões amenas E MESMO QUE QUEIRA NÃO POSSO
No lirismo da canção
E quando eu fui para transmitir Ficaria mal disposto
As minhas amargas penas Se o nosso amor acabasse
CAIU-ME A PENA DA MÃO Se não querias que eu te amasse
Não nascesses a meu gosto
Mantém teu rosto enxuto O brilho desse teu rosto
Não perguntes quem morreu Foi para quem eu me perdi
Se aos sinais dão para sofrer Tenho andado até aqui
Vai para casa veste luto A procurar maneira
Quem morre por ti sou eu Sem poder mesmo que queira
COM PENA DE TE NÃO VER NEGAR QUE GOSTO DE TI
Teiga 2000: 82. Bastos & Rodrigues 1991: 107.
213
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 079 › › 080 ›
O MAR BEIJA A PRAIA DE OURO FUI UM DIA PASSEAR
NAS BALSAS BEIJAM-SE AS ROSAS AO JARDIM DA MOCIDADE
SÓ EU NÃO POSSO BEIJAR VI-ME ENTRE MUITA FLOR
AS TUAS FACES MIMOSAS E SOFRI ILUSÃO DE AMAR
DAS ROSAS A MAIS BELDADE
Um beijo é coisa divina ESCOLHI PARA MEU AMOR
Sendo se amor é mais querido
Não devia ser proibido Achei-a tão linda e bela
Dar-se a quem se destina Julguei ver do mundo o fim
Beringel a barca pequenina E lendo nela os bons engodos
Beijada com desaforo Ao vê-la sorrir para mim
Nas águas que fazem coro Perdi os trambelhos todos
Assoprada pela brisa E entreguei-me toda a ela
Enquanto a barca desliza Das rosas desse jardim
O MAR BEIJA A PRAIA DE OURO Nem cor branca nem cor amarela
Eu sentia mais saudade
O vento beija as papoilas Com ideia atraída
Nas serras dos horizontes Por uns laços de amizade
E pelos caminhos das fontes Deixava-me cativar
Os jovens beijam as moçoilas Querendo distrair na vida
Os ceifeiros beijam as noilas FUI UM DIA PASSEAR
Das ceifeiras mais formosas AO JARDIM DA MOCIDADE
E nas florestas frondosas
Ao cantar dos passarinhos A gajedo havia um cheiro
Beijam-se as aves nos ninhos Que abrangia a distância
E NAS BALSAS BEIJAM-SE AS ROSAS Por entre as flores do prado
E eu no meu tempo de infância
Beija a mãe seu filho querido Fui desse cheiro assombrado
Unindo-o contra seu seio Ainda em jovem solteiro
E nos laços doce enleio Querendo amar com abundância
Beija a esposa o marido Preferi ser do mar prisioneiro
O namorado atrevido No meu ramo encantador
Quando à bela vai falar Fui beijado pela aurora
Trata de um beijo roubar Meu emprego era pastor
E às vezes rouba segundo Gozei as sombras da hera
Tudo beija neste mundo E passeei pelos campos fora
SÓ EU NÃO POSSO BEIJAR E num jardim de primavera
VI-ME ENTRE MUITA FLOR
Grande paixão nos invade
Quando a luz do amor se acende
E quando um coração se prende
No laços de uma amizade
E quando diz a verdade
Em palavras amorosas
Nas horas deliciosas
Surgem de amor os carinhos
Deixa encher de mil beijinhos
AS TUAS FACES MIMOSAS
Teiga 2000: 124.
214
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 082 › › 083 ›
UNS AMANTES PRISIONEIROS[*e’ros] QUANDO VEJO UMA MULHER
DOTADOS DE UMA LEMBRANÇA FICO ENTREGUE À PERDIÇÃO
DE UM DIA CONSTRUIR UM NINHO SUSPIRAR É MEU DESTINO
NÃO PENSAM NOS DESESPEROS ATRAVÉS DUMA PAIXÃO
ANIMA-OS A FÉ E A ESPERANÇA
DE SE AMAREM COM CARINHO Se a vejo passar além
Seu brilho muito me encanta
Lembrando a linda giesta Recordando aquela santa
Quando em noites de luar Que um dia foi minha mãe
Alvejam brilhos e cheiros Tanta beleza contém
E os passarinhos em festa A que só amor prefere
Dão-se ao luxo em festejar Enquanto mulheres houver
UNS AMANTES PRISIONEIROS O nosso mundo flora
Minha alma no peito chora
Com martírios de amargura QUANDO VEJO UMA MULHER
Sem terem lições de ensino
Estudam laços de aliança As mulheres são as flores
Num ânimo de ternura Festejam-se as suas vindas
Foram pelo seu destino Culpadas as mulheres lindas
DOTADOS DE LEMBRANÇA De no mundo haver amores
Dão seus brilhos sem favores
Sofrendo pena e dor Por natureza o condão
Lá vão as almas chorosas Têm os amores na mão
No seu tristonho caminho Encantados nessa história
Dando suspiros de amor E eu com a minha memória
E com tentativas saudosas FICO ENTREGUE À PERDIÇÃO
DE UM DIA CONSTRUIR UM NINHO
Se eu do ventre de uma vim
Deitando o futuro ao longe[lões] E sou a impureza da espuma
Com ambição desmedida Se me visse dentro de uma
Que é o manjar dos solteiros Talvez tivesse um bom fim
Para aliviar corações Tinha quem cuidasse de mim
Das más tragédias da vida Quem olhasse pelo menino
NÃO PENSAM NOS DESESPEROS Eu queria ser pequenino
Sorrir alegre e contente
Como eles ninguém se veja Quando eu dela vivo ausente
Com a liberdade presa SUSPIRAR É MEU DESTINO
E o coração em balanço
Por maior que o azar seja Por meninas e senhoras
Não se entregam à tristeza Homens perdem os sentidos
ANIMA-OS A FÉ E A ESPERANÇA Vivem no mundo perdidos
Neste jardim de amadoras
Quando houver uma carta amada Em amar são superioras
Com palavras a dizer Brilham de Inverno e Verão
Adeus linda adeus lindinho De alma vida e coração
Não precisam de mais nada O destino é amor
Basta-lhes o gosto e o prazer Donde às vezes vem a dor
DE SE AMAREM COM CARINHO ATRAVÉS DUMA PAIXÃO
Bastos & Rodrigues 1991: 54. Teiga 2000: 123.
216
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 084 › › 085 ›
ESTA NOITE QUE PASSOU AS VIÚVAS MAIS DISCRETAS
VEIO-ME UM SONHO AO SENTIDO COM LUTO PESADO EM CIMA
QUE AO ACORDAR TIVE PENA LEMBRAM CACHOS DE UVAS PRETAS
O QUE O DESTINO MARCOU A PEDIR OUTRA VINDIMA
SONHAR QUE ESTAVA CAÍDO
NOS BRAÇOS DUMA MORENA Em momentos de tristeza
Choram sua pouca sorte
Estando eu a dormir sozinho Enquanto o golpe da morte
Chorando o meu ressonar Quis roubar sua nobreza
Assim que a luz se apagou Cheias de amor e beleza
E apesar de velhinho Foram lindas predilectas
Lembrei-me dos tempos de amar Apaixonam-se os poetas
ESTA NOITE QUE PASSOU Ao vê-las a viver só
E são merecedoras de dó
Do velho se torna a menino AS VIÚVAS MAIS DISCRETAS
É dito que deu tristeza
Desde o tempo já volvido Tristes acontecimentos
E por instintos do destino Da morte o grande naufrágio
Ou poder da natureza Usam sinais no seu trajo
VEIO-ME UNS SONHOS AO SENTIDO Demonstrando sentimentos
São grandes os seus lamentos
Sonhei que tinha vontade Ao perderem sua estima
De ainda ser um amor Nada no mundo as anima
Dos que a ciência ordena Ficando a esperança perdida
Lembrei-me da mocidade E vão passando a triste vida
Tive um sonho encantador COM LUTO PESADO EM CIMA
QUE AO ACORDAR ME DEU PENA
Lastimam suas desditas
Serem jovens com belezas Suportando a grande dor
Com sorrisos de encantar Mesmo com a paixão de amor
E a saberem quem eu sou Não deixam de ser bonitas
Chorei as minhas tristezas Não brilham laços nem fitas
Quando me pus a pensar Nem rosas nem violetas
O QUE O DESTINO MARCOU E se fazem acções bem feitas[fe’tas]
São merecedoras de bem
O sonho dava-me forças E metem cobiça a alguém
Para eu estudar a maneira LEMBRAM CACHOS DE UVAS PRETAS
Do tempo não ser perdido
E atracado a uma moça O preto também alveja
Depois duma brincadeira Seu brilho é excelente
SONHEI QUE ESTAVA CAÍDO Para o gosto de muita gente
Há quem essa cor deseja
Não sei que será de mim Porque o que é bom alguém boceja
Com sonhos de doidice Porque o destino é sua rima
E inspirações que ainda reina Comparando em obra-prima
Talvez tivesse um bom fim As excelentes senhoras
Quando eu um dia caísse Como as uvas tentadoras
NOS BRAÇOS DUMA MORENA A PEDIR OUTRA VINDIMA
Teiga 2000: 196. Bastos & Rodrigues 1991: 66.
217
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 086 › › 087 ›
É DO MELHOR CALHA BEM EU VI AS RENDINHAS DELA
É DO MELHOR CALHA BEM Ó MAS QUE COISA ENGRAÇADA
É DO MELHOR CALHA BEM MAS MAL EMPREGADO TRABALHO
É DO MELHOR CALHA BEM DEVIA DE SER MAIS TAPADA
› 088 › › 089 ›
MOÇAS PARA MIM FOI MANJAR Vamos lá a ver se eu sou capaz de dizer, que eu
MELHOR DO QUE O PÃO DE TRIGO às vezes atrapalho-me.
E HOJE SE QUISEREM BRINCAR Ah, essa não se atrapalha!
NÃO FAÇAM CONTA COMIGO [Risos.]
A MULHER UMA FALTA TEM
No tempo da mocidade NEM MUITO BAIXA NEM ALTA
Quando eu era ambicioso E O HOMEM TEM QUE LHE SOBEJA
Estava sempre desejoso PARA TAPAR AQUELA FALTA
De haver oportunidade
Eu tinha sempre vontade Houve um sábio muito fino
Para adquirir um bom par Quem inventou toda a obra
E levei noites a dançar Formou a falta e a sobra
Aprendi a dançar bem O signo e o destino
E no tempo que eu era alguém Foi esse mestre divino
MOÇAS PARA MIM FOI MANJAR Quem avançou muito além
Formou o mal e o bem
De coisas que elas dissessem A fé e a esperança e a sina
Estava eu sempre à escuta E para ser fêmea feminina
Que eu era amigo de fruta A MULHER UMA FALTA TEM
E gostava que elas me dessem
Como elas não me oferecem Apareceu formosa e linda
Isso para mim é castigo E dela nasceu o amor
Com um marmelo ou um figo Brilha na vida em flor
Tudo isso eu dava valor Enquanto esta não finda
Que a fruta tinha um sabor Orgulhosa ser bem vinda
MELHOR DO QUE O PÃO DE TRIGO Canta brinca e salta
E a alegria da malta
Certas meninas e senhoras Foi muito prazer trazê-la
De as ver ficava contente Ao nascer trouxe uma estrela
Aquele brilho sorridente NEM MUITO BAIXA NEM ALTA
Bonitas e tentadoras
Há moreninhas e loiras[lo’ras] O homem que ama e prefere
Por esse mundo a brilhar E que igualdade é seu desejo
E eu já sem poder rimar Pronto com o seu sobejo
E a perder ocasiões Dá compostura à mulher
Vão dar uma volta mais longe[lões] Se há caridade em quem der
HOJE SE QUISEREM BRINCAR Muito abençoado seja
E esse bem que ela deseja
Meu irmão pediu descanso Alcança-o a dar à trela
Ninguém sua mágoa entende E para compor a falta dela
E eu sou lírio que pende E O HOMEM TEM QUE LHE SOBEJA
No rio que corre manso
E quanto mais no mundo avanço Elas menos eles mais
Mais me vou fazendo antigo Quando juntam as fazendas
Cheio de vergonha eu lhe digo Põem-se os altos nas fendas
Gosto de festas e feiras Ficam as partes iguais
Mas para certas brincadeiras São instintos divinais
NÃO FAÇAM CONTA COMIGO Sendo a amizade em torre alta
Teiga 2000: 130. E quando o grande amor se exalta
E que se mostram os poderes
O homem tem seus haveres
PARA TAPAR AQUELA FALTA
Bastos & Rodrigues 1991: 59.
219
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 090 › › 091 ›
EM MEU LEITO HOUVE UMA EXTREMA QUIS AMAR UMA MULHER
O QUE ERA MEU EU SABIA COM AS PERNAS CLARINHAS
MESMO EM NOITES FRESQUINHAS E VI-ME À RASCA PARA SABER
ANTES DE HAVER PROBLEMA QUAIS AS DELA E QUAIS AS MINHAS
O MARCO QUE AS DIVIDIA
AS PERNAS DELA DAS MINHAS Ter amores é um bom dote
Quando a natureza o der
Quando a gente se deitasse E eu quando era rapazote
Vindos de perto ou de longe[lões] QUIS AMAR UMA MULHER
E que um abraço nos esprema
Para que a gente avizinhasse Apanhei uma borboleta
E não haver confusões Na praia das Marujinhas
EM MEU LEITO HOUVE UMA EXTREMA E vi que a rapariga era preta
COM AS PERNAS CLARINHAS
Em tempo de ideias puras
Não tínhamos receio Haveres que ela possuía
De perder a teiria Eu fui curioso em ver
E mesmo que fosse às escuras E onde ficava a setia
Nos laços do doce enleio VI-ME À RASCA PARA SABER
O QUE ERA MEU EU SABIA
As pernas que a gente usava
Hoje direcção não vai certa Depois de misturadinhas
De um marco fez-se um cajado Ninguém as diferençava
Nem presta para ir às pinhas QUAIS AS DELA E QUAIS AS MINHAS
E sempre sentinela alerta Teiga 2000: 73.
O marco estava aprumado
MESMO EM NOITES FRESQUINHAS › 092 ›
FICA-ME PENA É O GAJEDO
Brincadeiras davam graça E FICA-ME PENA É O GAJEDO
Nos campos ou nos pinhais E FICA-ME PENA É O GAJEDO
Num paul ou numa adema E FICA-ME PENA É O GAJEDO
O primor da enlaça
Nunca se achava demais De encontro à minha vontade
ANTES DE HAVER PROBLEMA Com o tempo envelheci
E já não passarei daqui
De madrugada ou serão Cheguei à maior idade
Quando anda tudo envolvido Mas na perda da mocidade
Num enleio de pernaria Foi-se embora o meu segredo
Ninguém sabe de quem são Comecei a sofrer cedo
Desde que se encontre caído Por minha sina ruim
O MARCO QUE AS DIVIDIA Mas quando me lembra o meu fim
FICA-ME PENA É O GAJEDO
Guerra de pernas trocadas
Destino que o povo anseia Ao esquecer minha raça
Como quem ama sardinhas Lastimo as minha desditas
E depois delas misturadas Sonhar com moças bonitas
Só o tempo desenleia Foi sempre a minha desgraça
AS PERNAS DELA DAS MINHAS Não sei que promessa eu faça
Teiga 2000: 73. Para nada me meter medo
Não dá jeito ficar quedo
Nos vaivéns da triste sorte
E nas recordações da morte
FICA-ME PENA É O GAJEDO
220
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 093 › › 094 ›
HÁ UMA DOENÇA EM GAJEDO TENHO UM NINHO DE ANDORINHA
EM GAJEDO HÁ UM DOENÇA DEBAIXO DO MEU BALCÃO
UM HOMEM PENSA EM SEGREDO AS MOÇAS NÃO DÃO COM O NINHO
EM SEGREDO UM HOMEM PENSA COM O NINHO ELAS NÃO DÃO
› 095 › › 096 ›
DUMA VEZ ACHEI UM NINHO HERDEI UMA JUNTA DE NOVILHOS
NUMA FORCA ENTALADO E ESTÃO CAPAZES DE AMANSAR
ESTAVA LÁ UM PÁSSARO PRETO MAS EU NÃO ME AFOITO SOZINHO
COM O BIQUINHO ENCARNADO SÃO DANADOS COM MARRAR
› 097 › › 098 ›
UM SOBERBO LATIFÚNDIO PASSOU LÁ UM POBREZINHO
CONSIDERA-SE ABASTADO COM UM BARRETE ENCARNADO
SOLTA BERROS EM VOZ ALTA ATRAÍDO PELA FOME
QUE NINGUÉM O DÁ ATURADO COM UM ALFORGE PENDURADO
› 099 › › 100 ›
A ROLA DA MINHA PRIMA TENHO UMA ÁRVORE NA HORTA
AINDA NÃO FOI GALADA QUE ÀS VEZES ME FAZ PENSAR
APETECE-LHE COMER QUE O SEU NOME VERDADEIRO
MESMO COM A DONA DEITADA POUCOS LHE QUEREM CHAMAR
› 101 › › 102 ›
PORQUE TOMA PORQUE DEIXA ESTÁ O VELHO MAIS A VELHA
PORQUE FOI PORQUE TORNOU OS DOIS A DAR À TRAMELA
TOMA ABAIXO DEIXA ACIMA A VELHA DELE TEM NOJO
E PORQUE SOU PORQUE NÃO SOU E ELE TAMBÉM TEM NOJO DELA
› 103 › › 104 ›
A SAÚDE ENFEITA A VIDA MORRE UM VIVENTE OUTRO NASCE
AS FLORES ENFEITAM O PRADO VAI-SE UM DESEJO OUTRO VEM
AS MULHERES ENFEITAM O MUNDO DEPOIS DE UM SONHO OUTRO SONHO
A POESIA ENFEITA O FADO DE TANTOS QUE A VIDA TEM
› 105 › › 106 ›
DERAM À VIOLETA O ROXO DO TEMPO NASCE A SAUDADE
E O AMARELO AO MALMEQUER E NASCE O PRANTO DO SOFRER
E AO HOMEM A PACIÊNCIA E DA NOITE NASCEU O DIA
E A FORMOSURA À MULHER E NASCE A MORTE DO VIVER
› 107 › › 108 ›
PARA SEREM RICOS OS SACANAS BATEM-ME À PORTA DO QUARTO
OS ALARVES PARA SEREM GABADOS CREDO SERÁ A POLÍCIA
OS CABRÕES PARA TEREM FAMA QUEM TERIA TAL LEMBRANÇA
OS CARECAS PARA INVEJADOS MINHA SOGRA ESTÁ DE PARTO
VIRÃO TRAZER-ME A NOTÍCIA
O mundo para se compor QUE JÁ TIVERA A CRIANÇA
A alegria para a sorte
Para o final a morte Eu não abro a minha porta
Para o sofrimento há a dor Minha sorte é desditosa
Para a ilusão há amor E de martírios eu estou farto
Para negócios as ciganas E acordam-me em hora morta
Para a perdição as tiranas Em noite tempestuosa
Para a tristeza os ceguinhos BATEM-ME À PORTA DO QUARTO
Para a miséria os pobrezinhos
PARA SEREM RICOS OS SACANAS Eu adoro muitas pessoas
E o prazer de puro e sério
Não se explica a miúdo É medo que dá delícia
Para a galderice os vaidosos E em defesa às moças boas
Os bêbados para mentirosos E em busca de alguma galdéria
E para os segredos quem é mudo CREDO SERÁ A POLÍCIA
O tempo para vencer tudo
Para a guerra os tristes soldados Se eu já de mim não sou dono
Os padres para andarem cansados Não respondo a quem me chama
E para descanso o cemitério Ser bom demais também cansa
E para a censura quem é sério E interromperem meu sono
E OS ALARVES PARA SEREM GABADOS Segredos da minha cama
QUEM TERIA TAL LEMBRANÇA
Os poetas para versarem
Para animação os fadistas No espaço a percorrer
Os malandros para vigaristas Forçada pelo destino
Os humildes para trabalharem Atravessa o mar antarto
Os velhos para se gabarem À espera de nascer
Os mamões para quererem mama Uma menina ou um menino
Para ter cuidados quem ama MINHA SOGRA ESTÁ DE PARTO
Para compromisso os do emprego
Os cobardes para o sossego Ficarei triste ou contente
E OS CABRÕES PARA TEREM FAMA De perigos não estou isento
Será azar ou delícia
Para terem casa os caracóis Com certeza é a minha gente
Para a abundância o celeiro Houve um acontecimento
Para galo cantante o dinheiro E VIRÃO TRAZER-ME A NOTÍCIA
E para a música os rouxinóis
Para sábios os heróis O destino é tão profundo
Para chorinos os reformados Abrange a humanidade
Para amparo há os cajados Aonde há fé e esperança
E para guarda da vinha o medo Santa mãe que deu ao mundo
E para as conquistas o gajedo A saudosa novidade
OS CARECAS PARA INVEJADOS QUE JÁ TIVERA A CRIANÇA
Teiga 2000: 120.
228
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 109 › › 110 ›
ESTA NOITE QUE HÁ-DE VIR DO OLHO DE COUVE UMA PESTANA
FORAM-ME OS LADRÕES AO MONTE E DA BOCA DA NOITE UM DENTE
ROUBARAM-ME O QUE EU NÃO TINHA E DUM PÉ DE VENTO UM CALCANHAR
E LARGARAM-ME FOGO À FONTE HAJA ALGUÉM QUE ME APRESENTE
› 111 ›
ELEFANTE SAIU DO NINHO Talvez tivessem melhor
E À JANELA SE ASSUMOU Os parvos longe dos espertos
DEU PROVAS DE TER NASCIDO Para governarem a vida
SEM TER ASAS AVOOU Porque há cabrões nesses desertos
Com a maldade introduzida
Nem eu nem ninguém sabia E fazem o mundo pior
Dum ser vivo sem carinho Mas os que estão já descobertos
Para dar ao mundo ousadia E que a fama deita fedor
ELEFANTE SAIU DO NINHO Irem já para as capações
Para ninguém andar à toa
Demonstrando pressa sua E evitar as confusões
Despediu-se e abalou E o valor dá-se a quem merece
Antes de ir para a rua Era grande coisa boa
À JANELA SE ASSUMOU Se esta escolha houvesse
ENTRE TODAS AS NAÇÕES
Soltando um estrondo de alarve
Nuns arredores foi ouvido Ser cabrão não é defeito
E com o seu eco suave Se o destino assim o quer
DEU PROVAS DE TER NASCIDO E é dotes da natureza
E dá-se a razão à mulher
De expandir sentiu vontade Para compor sua nobreza
Seu brado ao longe entoou Também tem o seu direito
Quando achou-se em liberdade Diga o povo o que quiser
SEM TER ASSAS AVOOU Quem pensar a tal respeito
Vê que não é tudo igual
[Remate] Mas se os que são fossem marcados
Este ser desconhecido Num programa mundial
Veio ao mundo armar banzé Dava ao mundo mais prazer
E chamou-se a este indivíduo Então deviam ser assinalados
Um contrabaixo sem pé PARA TODA A GENTE SABER
Teiga 2000: 41. E SER CONHECIDO O SINAL
› 113 › › 114 ›
HÁ CABRÕES QUE SÃO CABRÕES GEORGINA PERPÉTUA E ROSA
E HÁ CABRÕES QUE NÃO SÃO ADELAIDE RITA SOFIA
E HÁ CABRÕES SEM TEREM DONO JUSTA PAULA E BERTOLINA
E HÁ CABRÕES DUM CABRÃO HELENA BÁRBARA E MARIA
› 116 › › 117 ›
DIABO DEUS E SANTIDADE EU OIÇO O POVO FALAR
MUITOS DIZEM QUE NÃO HÁ EM RELIGIÃO DE IGREJA
E PODE SER MENTIRA OU VERDADE E EM DEUS E EM SANTIDADE
OU SERÁ OU NÃO SERÁ E É CUSTOSO ACREDITAR
EM COISAS QUE SE NÃO VEJA
Como eu não sei agradecer E QUE NINGUÉM SABE SE É VERDADE
A quem me possa explicar
Para eu poder conversar Como eu me tenho visto
Naquilo que eu não conheço Com a charrua e a enxada
Nasci penso que mereço Nos campos a trabalhar
Seguir para a eternidade E saber que há quem não faz nada
Sei que andam mais de metade E que é rico só a rezar
Enganados sem saber Não percebo nada disto
E ninguém viu nem há-de ver Lendo a Bíblia sagrada
DIABO DEUS E SANTIDADE Que é a história de Deus Cristo
Que tanta gente deseja
Dizem que Deus existiu Se o que há bom mete cobiça
E por milagre ainda existe Muito abençoado seja
Eu ignoro e acho triste Quem pôs o mundo a brilhar
Ter fé no que ninguém viu E nas assembleias de missa
Só se Deus entrou e saiu EU OIÇO O POVO FALAR
Por ter mandado sorte má EM RELIGIÃO DE IGREJA
Ninguém sabe onde ele está
Com o poder de ser eterno Do que eu não sei não explico
E no mundo céu e inferno Sei que são para nós sermos desiguais
MUITOS DIZEM QUE NÃO HÁ Vai sorte para quem é nobre
E eu serei menos que os mais
Deus não nos pode salvar Porque eu trabalho e sou pobre
Muito amigo que ele seja E quem não trabalha é rico
E andam uns de igreja em igreja Eu dou suspiros e ais
Levam a vida a rezar Nessa paixão em que eu fico
Não querem é trabalhar Quando a tristeza me invade
Para o bem da humanidade Fica-me a ideia presa
Deixam para sempre a saudade Eu não tenho actividade
E no fim tudo acaba em nada E de saber não sou capaz
E o que diz a bíblia sagrada Para falar da natureza
E PODE SER MENTIRA OU VERDADE E na côca e em Satanás
EM DEUS E EM SANTIDADE
Na nossa vida de horrores
Vive-se uma falsa aparência Já a alguém ouvi dizer
Morrem sábios de ciência Que o perigo a sorte e o medo
E morrem padres e doutores Estão aonde a gente está
A Santa Virgem das Dores Deus e Diabo e bruxedo
A salvação não nos dá Muitos dizem que não há
E ninguém sabe para onde vá E eu quase me leva a crer
Para fugir à má sentença Há uns que armam um enredo
E um tempo de confiança Não trabalham querem comer
OU SERÁ OU NÃO SERÁ E quem produz dá-lhe em bandeja
E com a história de queridos manos
Há tanta perna caneja
Por tanta vez de se ajoelhar
Se o mundo está cheia de enganos
É CUSTOSO ACREDITAR
EM COISAS QUE SE NÃO VEJA
232
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
› 119 › › 121 ›
TANTO À VIRGEM SE PARECE DOIS SERES DA NATUREZA
A MINHA QUERIDA MÃEZINHA UM ESCURO OUTRO LUMIANDO
ATÉ NEM CRISTO AS CONHECE QUAL DE NÓS SERÁ MAIS LINDO
QUAL A DELE E QUAL A MINHA AMBOS DOIS QUEREMOS BELEZA
E TU ÉS SOL VEM-TE CHEGANDO
Ouvia-os, claro! E SOU SOMBRA VOU FUGINDO
E desenvolveu, ou não?
E depois eu… Numa estrada ou numa rua
Num monte ou numa campina
Por um amor que me encanta Tu tentas querer-me falar
Quero-lhe o bem que merece E eu fujo por minha sina
Ao lembrar que aquela santa Não me deixo cativar
TANTO À VIRGEM SE PARECE Sei que namoras a lua
Tu menino e eu menina
Lembro com tanta saudade E ao saberes que nasci nua
Um primeiro amor que eu tinha Queres-te vir aproximando
Parecida com a santidade Manda um poder divino
A MINHA QUERIDA MÃEZINHA Tu andas eu também ando
És livre e eu não estou presa
Ao recordar estas vidas Namoram-se por destino
Que a natureza oferece DOIS SERES DA NATUREZA
Uma à outra tão parecidas UM ESCURO OUTRO LUMIANDO
QUE ATÉ NEM CRISTO AS CONHECE
Tu és sol criador
Se uma é mais má ou mais feia De manhã pões tudo alerta
Só sabe alguém que adivinha Aquecendo o ar e o chão
Cristo não as diferenceia E eu sombra com porta aberta
QUAL A DELE E QUAL A MINHA Que seja de inverno ou verão
Bastos & Rodrigues 1991: 30. Defendo seja quem for
O brilho da minha oferta
› 120 › Dado sempre sem favor
A MÃE É PRIMEIRO AMOR E o modo é sempre sorrindo
O PAI É AMOR SEGUNDO Eu venho todos os dias
A MÃE PRODUZ SEM FAVOR E enquanto tu vais subindo
O MAIOR AMOR DO MUNDO Tenho eu sempre lugar novo
Sou primor das regalias
Para termos vida e saúde Pergunta-se a todo o povo
E vermos o mundo em flor QUAL DE NÓS SERÁ MAIS LINDO
Ao nascer da juventude
A MÃE É PRIMEIRO AMOR Linda rama verde escura
Na floresta frondosa
Quem ama e é verdadeiro Vencendo calma medonha
Na crença de amor fecundo Aonde a sociedade goza
Sendo a mãe amor primeiro A bela tarde risonha
O PAI É AMOR SEGUNDO Aos sopros da aragem pura
Na expansão grandiosa
O pai é um grão de areia Brilha o sol na mais altura
Que anda na vida ao rigor Dos tempos que vão passando
E a semente amor semeia E nós vamos numa descida
E A MÃE PRODUZ SEM FAVOR Lentamente caminhando
Declinando fraqueza
Nesta vida que é um ai E para as maravilhas da vida
Quem estudou ciência a fundo AMBOS PREFERIMOS BELEZA
Julgou ser amor de pai E TU ÉS SOL VEM-TE CHEGANDO
O MAIOR AMOR DO MUNDO
Bastos & Rodrigues 1991: 26.
234
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Animais e criaturas
Talvez nada escapasse
E ficava o mundo às escuras
SE O SOL UM DIA FALTASSE
NOTAS
1 Gonçalves 2000: 55
2 Ver Mestre 1988.
3 Ver «Jardim do Mundo».
235
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
PARTE V
SETE
TEXTOS CONSIDERADOS
[quase] FUNDAMENTAIS
238
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
239
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
S
ELECCIONÁMOS quinze textos que consideramos dobradas, de 1942, publicado na Ethnos, e outro
de interesse e cuja leitura foram fundamentais sobre o cante das gralhas, que é também uma no-
para a construção deste trabalho. Diversas são ta à biografia dos poetas populares Josefa Prego e
as suas origens, as motivações dos seus autores e o de Manuel de Castro, e que este lexicógrafo publi-
tema que elegem, mas de alguma forma estão inter- cou no Almanaque Alentejano, em 1962. O quin-
ligados entre si e com o argumento que aqui expu- to, e último, corpo, “O Fado, canção operária”, é
semos. constituído por um texto de Avelino de Sousa, fru-
Dividimos estes em cinco corpos. No primeiro to de uma polémica entre este, Albino Forjaz de
corpo, “Irmandade do Menino de Jesus dos Ho- Sampaio e Samuel Maia, e que foi transposto para
mens Cegos de Lisboa”, publicamos um texto que separata em 1912.
saiu no semanário Brados do Alentejo, em 1942.
No segundo corpo, “Arquivo de notícias sobre II.
poetas populares”, juntamos uma série de notí- Com o reunir destes textos, quer-se não só tor-
cias sobre poetas populares arquivadas por José nar acessível um conjunto de textos caros à cons-
Leite de Vasconcelos, entre 1896 e 1906. No ter- trução deste livro, como para o estudo da poesia
ceiro corpo, “Notícias de poetas e poesia popula- popular portuguesa e, em particular, da meridio-
res do Alentejo”, damos a conhecer de Ernesto de nal. Poder-se-iam juntar outros, mas acreditamos
Carvalho um capítulo do livro inédito de, À roda que o grupo reunido é, em si, bastante interessante
do lume, sem data, e de Manuel Subtil uma notí- e homogéneo, cuja exploração poderá indicar ca-
cia sobre um poeta de Vale do Peso, publicada em minhos de curiosos resultados.
1937 nos Brados do Alentejo. Fechamos este cor- Não quisemos intervir criticamente no conjunto.
po com um conjunto de estrofes dadas como de Jo- O que sobre eles dizemos, ou que nos influencia-
sé Lucio da Silva Cardoso, e também publicadas ram, já inquina suficientemente a sua leitura, para
em 1939 nos Brados do Alentejo. O quarto corpo, que aqui façamos propostas de abordagem.
“Sistemas estróficos do Alentejo”, reúne um texto Assim, este corpus deve ser visto, por um lado,
de Leite de Vasconcelos sobre cantigas quadradas, como ilustração do texto que escrevemos, mas,
primeiro publicado no Elvense, do qual se fez se- também, como a disponibilização de textos con-
parata, tudo em 1916; um texto inédito do Prof. siderados [quase] fundamentais.
240
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
241
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
T
INHAM os cegos, noutro tempo, o seu modo de
vida, o seu ganha pão, era a venda de livros ve- “Dom Joam, etc. Senhor de Guiné, etc. Faço saber
lhos, e papéis avulsos, indústria garantida por que o Juiz e mais officiaes da Meza da Irmanda-
privilégio real. Não há ainda muitos anos que os ce- de de Menino de Jesus dos Homens Cégos, sita na
gos deixaram de correr as ruas, apregoando notícias, Parochial Igreja de S. Jorge d’esta Cidade me re-
versos populares e outros papéis. Hoje já não se en- presentaram por sua Petição que elles tinhão o seu
contra um cego nesse mister. Compromisso, e acrescentamento approvado por
Bastante gente se lembrará ainda de que alguns ce- mim, e pelo Ordinário, como se mostrava do Ins-
gos tinham o seu cão, que os guiava. Tudo isso aca- trumento que juntavão, do qual se mostrava as pe-
bou. nas que impunha áquelles Cégos, que sem serem Ir-
Agora, são rapazes que andam na venda de perió- mãos da dita Irmandade rezassem pelas portas, ou
dicos noticiosos, papéis avulsos e juntamente de cau- vendessem papeis avulsos, como tambem aos de
telas da lotaria da Santa Casa da Misericórdia. Não vista: e para melhor augmentarem a dita Irman-
nos parece que seja modo de vida que aproveite no dade, pois o não podiam fazer senão das esmolas,
futuro a ésses rapazes; antes nos parece que os habi- que lhes davão os devotos que os mandavão rezar,
tua a um viver relaxado e ocioso, porque se vão acos- e dos papeis que vendião, porque dos mesmos Ir-
tumando a um trabalho voluntário, pouco pesado, e mãos havião muitos, que não só por si vendião pa-
lhe facilita a inclinação para o vicio. peis, e livros, que lhes era permitido o venderem,
Seja como for, antigamente eram os cegos os privi- mas o mandavão vender por seus moços, e em ten-
legiados vendedores de tôda a papelada noticiosa. das que tinhão por sua conta, no que lhes causa-
Havia uma irmandade exclusivamente composta vão grande prejuiso, e para o evitarem recorrião a
de homens cegos, sob a invocação do Menino Jesus, mim para ordenar que hum dos Corregedores do
a qual teve a sua sede na freguesia de S. Jorge, e de- Civel da Corte fizesse ir à sua presença os Irmãos,
pois na de S. Martinho: a esta irmandade pertencia que pela Meza dos Supplicantes lhe fossem nome-
o exclusivo da venda das folhinhas, histórias, rela- ados, e também os de vista que costumavão ven-
ções, reportórios, comédias «portuguesas e castelha- der pelas ruas, ou em tendas do Terreiro do Paço, e
nas, autos e livros usados» como se lê no capt. 2.º do lhes fizesse a todos assignar termo, e aos Cégos de
compromisso da mesma irmandade. não venderem papel algum senão em uma só parte,
Não fala o compromisso de periódicos, porque en- e que sendo em mais o não poderem fazer sem pri-
tão não os havia, mas publicavam-se muitas relações meiro requererem á Meza dos Supplicantes, e lhes
242
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
JOSÉ DE ALMEIDA CANDIDO3 não entra. Elle mesmo o confessa nos versos em que
[José Leite de Vasconcelos 1891-1896] se refere aos elogios que lhe fez Guerra Junqueiro:
José de Almeida Candido (da Beira-Alta), que era Como posso agradecer
cego e costumava andar tocando rebeca pelas terras Tanta bomdade e affecto,
onde havia festividades, tinha tambem os seus mo- Sendo um pobre analphabeto,
mentos de repentista. Estando elle uma vez pór oc- Infeliz até morrer?6
casião de certa festa, em companhia de quatro pa-
dres e outras pessoas á espera de prègador, que jà As suas producções são numerosas: Versos do Can-
tardava, perguntaram-lhe: tador de Setubal, Lisboa 1901, vol. de XVI-120 pag.;
Tudo e nada, Lisboa 1901, folheto de 8 pag.; e uma
– Que ha-de ser ó meu Almeida, serie de pliegos sueltos, como por exemplo: Cantigas
Se nos falta o prègador? para guitarra (pelo menos ha tres folhetos com este ti-
tulo); Cantigas (ha tambem tres, pelo menos, com este
Respondeu Almeida immediatamente, e com a pres- titulo); Versos bregeiros; Cantigas á guerra de Hespa-
teza de um Bocage a um epigramma de Bersane Leite: nha e festa d’Arrabida (assuntos bem heterogeneos!),
Quadras glosadas sobre a guerra hispano-americana.
Já cá temos quatro padres, Como amostra das suas composições, aqui trans-
Qual d’elles mais impostor... crevo duas quadras glosadas, que lhe ouvi em casa
de Paulino de Oliveira, e que julgo ineditas:
Quasi todas ou todas as nações tem os seus re-
pentistas com que se orgulham: a Italia, entre mui- CANTIGAS
tissimos, Zucco, Metastasio; a Hispanha, Lopo de 1.º PARTE: - PERGUNTA
Vega, Quevedo (D. Francisco); Portugal e Brazil,
Bocage, Bingre, Bersane Leite, Caldas Barreto, &. MOTE
Nos outeiros poeticos, que em tempos passados COM DINHEIRO DE CONTADO
se faziam ás portas dos nossos conventos, por oc- NINGUEM A MORTE COMPROU,
casião dos abbadessados, também se viam mui- POR SER FRUTO PRECIOSO
tas vezes improvisadores mais ou menos notaveis. QUE NO MUNDO SE PAGOU.
GLOSA
O CANTADOR DE SETUBAL4 De que serve a um avarento
[José Leite de Vasconcelos 1903-1904] Tanta riqueza e cobiça,
Se uma recta justiça
Em 1902 passei parte do verão em Setubal. Uma ‘Stá sempre em seu seguimento?
tarde recebi um recado de Paulino de Oliveira para É este um fatal tormento
ir a casa d’elle, porque estava lá o Cantador5, a quem Para quem se acha culpado:
eu desejava conhecer pessoalmente. Fui, e confesso Ser da justiça julgado
que, quando encarei com aquelle velho de 81 annos, Sem aggravo nem appello,
rijo e de aspecto inculto, a recitar bellos versos de sua Nem comprar o7 seu zelo
lavra, me senti bastante impressionado. O Cantador COM DINHEIRO DE CONTADO.
é alto, encorpado, de voz grossa. Diz os versos com
enphase no tom e no gesto, dá-lhes vida, e commu- Oh! justiceira sentença,
nica tambem a propria emoção a quem o ouve. Que Que tudo á morte condemna,
forte organização poetica! E comtudo é analphabeto; Por ser a terrivel pena
mal sabe lêr lettra redonda, e só esta, pois na de mão Que a Parca deu á nascença!
244
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
com ellas, que passam de mão em mão, e de ca- De taça na mão nervosa, ahi desfiava, ao «to-
sa para casa. As décimas, como nos exemplos que ast», o rosario de brindes rimados, encadeando os
a cima vimos, servem de glosa a uma quadra que nomes de todos os convivas, a cada um dos quaes
tem a fórmula abcb; esta quadra é extremamente annotava chistosas referencias.
simples, e as décimas, em que já fica assim haven-
do versos conhecidos, tornam-se um pouco meca- Chorava ao narrar os interessantes episodios
nicas10. Á sua disposição natural para rimar junta das suas viagens pelo Amazonas: as festas do Es-
o Calafate prática e exercicios continuos, desde os pirito Santo com as suas novenas, suas lubricas
verdes annos: em virtude d’isso, e da relativa facili- danças gentilicas, e as suas aventuras amorosas
dade com que se fazem as décimas, compõe as suas por entre as collossaes florestas virgens do maior
poesias com muita rapidez, não obstante empregar rio do mundo, como elle com respeito sagrado
de quando em quando rimas opulentas; os versos lhe chamava.
saem-lhe fluentes, e geralmente correctos.
Não é lyrico nem sentimental; nas suas poesias ha Com vinho de «cuspuscú»
poucas imagens e comparações. As décimas limitam- Ella matava-me a sêde;
se não raro a meras enumerações. Todavia o Cala- Trazia-me, á noite, a rede;
fate tem grande poder de observação: pinta o que vê Chocolate com «beijú»;
em volta de si, – as arvores, os trajos populares, os De milho fazia «angú».
objectos domesticos; discute os assuntos que no mo- Sabia bater «timbó»,
mento preoccupam a opinião publica, como a cima Cozinhava o «sarapó»,
se viu de alguns dos titulos das Cantigas; verbera, «Marapá» assado em espeto.
com mordaz ironia, o que na vida ou na sociedade Um dia fugiu co’um preto
lhe não agrada. O caracter fundamental da sua poe- P’ras bandas de Marajó!13
sia é este: realistico, sentencioso e satirico. Na satira
usa frequentemente da licenciosidade, como por ve- Cantava tambem ao desafio, á viola, levando de
zes Bocage, seu conterraneo, usou. vencida os mais afamados «cantadores» e «canta-
Num homem sem instrucção de especie alguma, deiras» d’estas redondezas.
a não ser a que espontaneamente colheu na pratica
da sua longa vida, é admiravel esta malleabilidade José dos Reis teve alguns meios de fortuna, gran-
de talento, e esta fecundidade metrica. geados no Brasil. Por mil contrariedades da sorte,
vivia ultimamente sustentado pelos seus bons fi-
Lisboa, 5 de Dezembro de 1902.11 lhos, que elle amava doidamente.
Convidado uma vez para cantar ao desafio, a
JOSÉ DOS REIS12 «cantadeira» atira-lhe esta quadra, de fazer enca-
(VALLONGO) vacar o mais pintado:
[José Leite de Vasconcelos 1903-1904]
Oh, que rico cantador
É ainda com grande compungimento na alma que me apparece p’la frente:
que venho fallar-lhes da morte de José dos Reis, o Elle será brasileiro,
alegre e gracioso espirito que com as suas anecdo- Mas não mostra na corrente...
tas e improvisos de fertil versejador tantas horas
deliciosas nos proporcionou. José dos Reis, já pobre, usava um relogio de pra-
O popular poeta nasceu nesta localidade, indo ta com corrente de metal barato.
em plena juventude para o Brasil, onde, reconhe- O poeta, ferido na sua vaidade de repentista in-
cida a sua veia poetica, era disputado para os fes- vencivel, funga com a mão trémula uma pitada de
tins, como o «melhor prato» do fim. vinagrinho, e canta:
246
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
riando a serra, caçando as perdizes, indiferente á lada em que, desde os verdes anos, temos andado en-
civilisação, vivendo só do seu cerebro, havia de, volvidos. Recorrendo, porém, a um coevo do Velhi-
por força, fazer versos, e versos lindos, ainda que nho (o mestre João Zabumba já havia muito que fora
mais não fosse senão para os cantar ao sol poente, para o outro mundo juntar-se á sua Carolina – a uni-
quando o crepusculo ri e a brisa é um beijo, ainda ca mulher que namorara, veja vocemecê lá, como ele
que mais não fosse senão para os gargantear nos afirmava) que se lembrava muito bem do poeta com
bailaricos e nas «fumeiras» do seu Algarve quando quem privara e do qual com saudade, se recordava.
as moças trigueiras, de face coradas e cintura fina Da boca dele ouvimos muitas poesias, algumas que
embebessem no seu olhar leal a pupila nêgra como nos pareceram interessantes aqui as deixamos, pa-
os seus cabelos, cintilante como carvão ardente. ra se poder avaliar o estro do pobre Costa Velhinho,
O mesmo sucederia a Camões, a Bocage, a Go- que jamais pensou que o seu nome modestissimo an-
mes Leal, a António Corrêa de Oliveira, a Guerra dasse, tempos passados, em letra redonda.
Junqueiro e a todos esses que nasceram poetas. Como acima dissemos empregava-se ele como
O povo adora os poetas – os seus poetas, princi- «ganhão»; mas um dia emancipou-se e poz lavoira
palmente – esses que falam a linguagem que ele fa- por sua conta arrendando um ferrejalito nos subur-
la, servindo-se, para traduzir e dar claresa ao pen- bios da vila. O dinheiro, porem, era pouco não che-
samento, das mesmas frases de que ele se serve e gando para comprar uma junta de novilhos, ou uma
que, portanto, mais lhe falam á alma, despertando- parelha de muares; lembrou-se então de fazer «torna
lhe as faculdades e delicias do amor, – amor que boi» com um visinho: ele, Velhinho, tinha uma vaca,
ele, se não fosse a poesia – quadras e decimas para o visinho um boi, juntavam os dois animaes, toma-
cantar – só reconheceria como os outros animaes vam-n’os ao arado e um dia lavraram na terra dum
pela necessidade genesica. e outro dia na terra do outro, valeu?
Tratamos, pois, d’alguns poetas populares de – Valeu!
que temos conhecimento e que existiram no Baixo E no dia seguinte eis o nosso Velhinho lavrando no
Alentejo, desde a ultima metade do seculo XIX. seu ferregeal com a sua vaca e o boi emprestado; mas
o arado estava mal «encaminhado» desafinado, «la-
«O VELHINHO» E «O PÔTRA» vrava de bico» isto é, «d’estaca» e, naturalmente por
ter as aivecas muito fechadas, «engasgava-se» não
Joaquim da Costa Velhinho, natural de Messeja- «despedia a terra». Velhinho, esgotada toda a pacien-
na ahi vivia ainda, já bastante idôso, pelos anos de cia, arreliado, atira com o instrumento agricola para
1867 ou 1869 tendo morrido pouco depois. o lado, deixando-lhe a rabiça e improvisa:
Sabendo ler, mal sabia escrever, empregando-se
como ganhão (criado de lavoira). O diabo te leve arado
Dele correm entre o povo muitas peças poeticas, E mais a mão que te fez!
algumas com bastante engenho feitas e com inspi- Mais de cento e uma vez
ração, sendo notaveis e apreciadas aquelas a que Já te tenho excomungado!
esse mesmo povo chama «decimas ao profundo» Um homem com um machado,
– coisas tiradas da História Sagrada – em que en- Ahi de qualquer chamiço
tram os nomes e feitos de muitas personagens da Faz um arado inteiriço
Biblia, – desfiando genealogias. Para um boi e p’ra uma vaca!...
Coleccionamos algumas dessas decimas, que te- Não lhe bonda andar d’estaca
mos idêa d’ouvir ao mestre João Zabumba – pedrei- E ainda é engasgadiço!...
ro, grande beberrana – excelente pessoa duma me-
moria felicissima e que tambem «compunha a sua Vêmos por essa decima, que bem em relevo põe
decimasinha» como ele dizia; mas o caderno em que o desespêro do poeta, que ele tinha faculdades de
tinhamos escrito perdeu-se no marcmagnau da pape- repentista.
250
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Não nos foi possivel saber o que se passou em Fer- nos cantos e despiques por vigilias e romarias; e hoje
reira entre Pedro e o Raio – devia ter sido de respeito, no cancioneiro popular muitas dessas quadras – aque-
ou de falta de respeito ás Musas, a contenda. las que mais impressionassem os ouvidos dos seus ad-
Pedro voltou, mas só – faltaram-lhe a paciencia miradores – Para prova da categoria em que o povo a
para aturar a «Paciência» – esta provara-lhe que mais considerava basta citar a cantiga de rima forçada que
para diante não ia porque não queria – estava no trivial era ouvir-se nos bailaricos dessa epoca:
seu direito e ele tambem, por mais nas suas pernas
confiar do que nas dela. Pedro, porem, não apare- D’Ourique é o Morêta
ceu ao alferes; este manda-o chamar e apostrofa-o: D’Aljustrel o Cara Rôta
De Messejana a Sofia
Pedro o que é feito de ti Como essa não há outra!23
Tu vieste e eu já sei
Mas ainda não te vi?! Em todo o caso aqui deixâmos mote e glosa du-
ma sua composição, que se não prima como peça de
Pedro responde incontinente valôr, mostra que ela tinha pela sua Messejana uma
afeição, lastimando a decadencia em que essa terra
’stou sentido da matraca22 caira depois de lhe tirarem o concelho em 1855.
P’los traste que m’impingiu
O pão e o queijo? Caiu MOTE
Cada um por sua enxada!... MESSEJANA N’ALGUM DIA
A burra, que é velha e fraca, ILUSTRE FOI TEU BRASÃO
Serviu-me mais mal que bem; TAL É A TUA DESGRAÇA
Puxões dei-lhe mais de cem ... SEM RELOGIO E SEM CIRURGIÃO
Por se ver em terra extranha!
Mas é velha e não tem manha GLOSA
Como o senhor alferes tem... Quando tinhas o Convento
E as mais igrejas de pé
E digamos adeus ao alferes, mais ao Pedro de Moi- Então ainda tinhas fé
ra, que pelo que deles publicamos nem porteiros ou Em Deus e no Sacramento.
môços de recados do Parnaso prestimo teriam... – Eras feliz nesse momento.
Grande cristandade havia
Viveu ha anos em Messejana – nasceu em 1853 e E toda a crença existia!
morreu em 1897 – uma rapariga de nome Sofia Fra- Tinhas Cam’ra e Hospital;
de que improvisava versos com a maior facilidade, Vivias bem em geral
sendo escutada com atenção e carinho nos «balhos» MESSEJANA N’ALGUM DIA
das romarias da Senhora da Cola, de S. João do De-
serto, da Sª. D’Ayres e de todas as vigilias em que Chegaste a ter Corregedora
aparecia e em que a sua previligiada voz repostava Juiz de Fora e Escrivão
aos adeversarios nas cantigas ao desafio, pondo-os Tinhas muito figurão
fora de combate, aturando horas e horas nesses tor- E tambem muita senhora.
neios, colhendo sempre as palmas da victoria. Disso eras merecedora
Conhecemos muito bem essa rapariga e bastas Iam todos á Confissão
vezes a ouvimos cantar e recitar admirando-lhe a Hoje? Nem á missa vão,
prontidão na rima e a graça no epigrama. Estão as crenças perdidas!
Infelizmente poucas provas podemos dar aqui do seu Aqui há uma ou duas vidas
estro, porque quase toda a sua obra era improvisada ILUSTRE FOI TEU BRASÃO.
253
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Eis se não quando a seu lado Nunca indagamos porque a «fala» lhe enfraque-
Vê uma môça trigueira cêra; já nessa idade eramos pouco curiosos...
Que num pranto desolado
Lhe fala desta maneira: Falámos atraz do Pôtra, outro poeta muito co-
nhecido no Baixo Alentejo: Chamava-se Braz
– Ó senhor Rei vá pedir Martins Beirão – era analfabeto, pastor e vivia em
A meu pae que alem está, Cuba – o que não evitava que fosse fazer os seus
Que embora se queira ir torneios poeticos pela provincia e, assim, o vimos
Não queira tambem que eu vá; já, em contenda, com o Costa Velhinho.
Que ainda é cedo... E córou... Foi o Pôtra coevo do notavel Frei Manoel do Ce-
naculo, que pastoreou o bispado de Beja.25
E o rei sorriu Era esse Bispo muito ilustrado e dedicado a to-
E pediu das as manifestações de talento. Alguem lhe fala-
E a môça ficou... ra das aptidões do pobre pastor em materia de po-
esia, recitando-lhe, mesmo, alguns improvisos do
Concordêmos que estes versos de metro... tão poeta, feitos sobre motes que lhe davam – dahi, o
variado devem, pela certa, reproduzir cena vista desejar conhecê-lo.
pelo autor já talvez, bastante velhote ou, então, Veio o Pôtra ao palacio episcopal. Cenaculo ou-
pode ser que a ouvisse contar a quem a presen- viu-o, gostou dele e ficou mais ou menos, prote-
ciasse. A ingenuidade dela é interessante e aqui gendo-o
fica arquivada para o leitor se quizer, dar-se ao Ora, o poeta se, com facilidade, improvisava,
labor d’indagar do senhor Fernando Manoel se com prontidão, tambem mandava para o estoma-
ela se deu ou não, ou se nasceu duma fantasia go os quartilhos e meios ditos que os amigos e ou-
do mesmo. vintes lhe pagavam nas adegas de Cuba, grande-
Aquela môça trigueira faz-nos lembrar a Sofia... mente afamada, provincia em fora pelos brancos
Seria ela que o poeta viu chorosa... e ficar a pedi- e tintos das roupeiras e manteúdas das suas var-
do do Rei, ao pae? Naturalmente não era, porque zeas ferteis.
a nossa poetisa apesar de trigueira e amiga de «ba- Andava, pois, o Pôtra quasi sempre «com ela em
lhar» era avêssa a lagrima... massa» como o alentejano costuma dizer dos que
Tivemos ocasião de, por mais duma vez, nas nos- amiude se embriagam; e como ele, pela quaresma,
sas férias do Carnaval, ou pelo S. João, nos bailes quizesse desobrigar o corpo e a alma dos pecados
das Comadres, ou da Teresinha Nobre, ouvir «o acumulados um ano inteiro, foi ajoelhar-se aos pés
garganteado» da Sofia. do confessor; este, que o conhecia de gingeira e lhe
Que encanto de voz! cheirou á erva doce – da matadela do bicho, ne-
Mais tarde foi ela serviçal em nossa casa; gou a absolvição. Doeu-se o Pôtra; e tirando-se
mas, então, desconfiada de que as quadras não dos seus cuidados ala! A caminho de Beja «a estar
lhe saiam dos labios com a mesma frescura do com o senhor Bispo».
que dantes, com o timbre melodiosissimo, que Depois de algum trabalho, conseguiu que o fizes-
tanto a distinguia de todas as raparigas que ti- sem conduzir junto do Prelado, que, não o conhe-
nham boa voz, era trivial ouvirmo-la, melanco- cendo logo, perguntou quem era e o que desejava,
licamente, cantar: ao que o Pôtra prontamente respondeu:
255
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
tícias dos improvisos do genial e desgraçado poeta, Quando o padre deu por isso, ficou grandemen-
bem como da facilidade com que este glosava os mo- te contrariado e rompeu em alta voz a censurar o
tes que lhe arremessavam. Se assim foi, não há dúvi- culpado, ameaçando-o até, segundo parece, de o
da de que procurou imitá-lo, se bem que a distância castigar com o chicote que tinha na mão. Mas foi
que os separa seja equivalente àquela que vai do mo- apenas um desabafo: não passou de uma ameaça.
desto pintassilgo que apenas volita a pequenas altu- Logo que ele se afastou do local, o poeta re-
ras, à águia magestosa que, em altos e arrojados vô- citou aos companheiros uma décima que come-
os, se eleva às maiores culminâncias. çava assim:
Infelizmente os pais não poderiam, ainda que o
quizessem, dar ao filho a educação literária que as Pedro António de Oliveira
suas faculdades requeriam. – um Judas Iscariote –
E assim ficou aquele incipiente engenho sem meio quis-me dar com o chicote
eficaz de se desenvolver, sendo de tal modo rudi- por esnocar uma esteveira
mentar a sua cultura que não falta quem presuma (...).
que ele nem sequer sabia ler, embora haja quem
afirme o contrário. As pessoas mais idosas a quem A continuação perdeu-se: sabe-se apenas que ter-
pedimos informações sobre este ponto não foram minava com uma expressão plebeia, das mais vul-
todas da mesma opinião. gares, e desrespeitosa para o cura.
Porque as composições do poeta Ambrósio não fo-
ram passadas ao papel, infelizmente, é certo que só O dr. Manuel Dias Marinho, de Vale do Pêso, on-
um pequeno número delas chegaram até nossos dias, de faleceu, em 1682, instituíra na Igreja Paroquial,
na memória de alguns dos seus admiradores. Nos fins uma Capela, à qual vinculara as suas numerosas
do século passado ainda teria sido possível recolher e propriedades, cujo rendimento era importante.
agrupar em livro muitas das suas valiosas poesias, por Quando, pelas leis pombalinas, este vínculo foi ex-
se conservarem então ainda frescas na memória dos tinto, a Capela das Almas, – assim se chamava – fi-
contemporâneos do poeta, já então falecido. cou sem recursos suficientes para manter-se condig-
Embora nem todas essas poesias pudessem ser pu- namente, ela que tivera até capelão privativo. A Con-
blicadas por demasiado livres ou excessivamente ple- fraria das Almas viu-se por isso obrigada a estabele-
beias é pena que ninguém se abalançasse a uma tare- cer peditórios periódicos, dentro da terra, e alguns
fa tão simples como interessante. Hoje é que isso se extraordinários fora dela, em obediência a normas
torna impossível, porque os mortos não falam... curiosas que não descrevemos para não alongar ain-
da mais êste enfandonho artigo.
Ambrósio trabalhava um dia no campo ao ser- Ao ouvirem o canto que se apróximava, a “pedir pa-
viço do Padre Pedro António de Oliveira que foi ra as Almas”, tôda a gente se preparava para dar a sua
cura de Vale do Pêso mais de 30 anos. O poeta, esmola. Ninguém a recusava. Uma vez, porém, na vizi-
com outros trabalhadores andava roçando mato que nha vila de Gáfete, um morador irreverente, chamado
era constituído, em grande parte, por xara ou este- Cesário, recusou-se ostensivamente a dar o seu óbulo.
va, arbusto silvestre bem conhecido e também cha- Admirado e ofendido com tão desusado procedi-
mado esteveira, quando desenvolvido, bastante. mento, Ambrósio, que era dos cantadores, imediata-
Tinha o padre em grande estima uma destas plan- mente cantou, na mesma toada dolente e arrastada,
tas, talvez pelo seu porte, e desejou conservá-la: própria do acto, a quadra seguinte:
mas, ou porque não tivesse recomendado que a pou-
passem ou os trabalhadores esquecessem a reco- Ó almas santas, benditas,
mendação, o certo é que o poeta se dispôs a cortá- mandai castigo ao Cesário,
la, começando por lhe esnocar alguns ramos que que não quiz dar uma esmola
estorvavam o corte do caule. p’ra aquilo que é necessário.
257
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Apesar da gravidade do acto, os ouvintes que pertencente ao Grão Priorado do Crato. Enquanto
eram muitos, não puderam deixar de sorrir. duravam as eiras, o sítio da Figueira-da-Velha – as-
sim se chamava o local – animava-se extraordina-
A malha do centeio, naquêle tempo em que se não riamente e parecia um grande acampamento.
sonhava, sequer, em máquinas de debulhar, era uma Cada um dos seareiros se esforçava por ter me-
das mais interessantes fainas agrícolas. Os malha- lhor funda que todos os outros. Aquele que tinha
dores, em número de seis, oito ou dez, dispunham- melhor produção era citado no acampamento:
se, sobre o eirado, em duas filas paralelas e iguais, – Este ano, quem ganhou a palma, foi Fulano. Te-
os de uma voltadas para os da outra. Munidos de ve tantas sementes.
manguais, os homens de uma ala, batiam o cereal, “Ganhar a palma” era, pois, a aspiração de to-
alternando com os da outra, num ritmo cadencia- dos, incluindo o Possidónio. Como não havia de
do, regular, muito certo, como se fora uma só pan- ele querer as gavelas bem malhadas, como não ha-
cada de cada vez. via ele de fazer cruzes!
Ao mesmo tempo iam caminhando vagarosamen- Convém também não esquecer que era costume
te e literalmente até ao fim do eirado e em seguida piedoso doutros colocar uma cruz, junto dos cami-
retrocediam na mesma disposição e cadência, sem- nhos onde quer que tivesse morrido alguém, quer
pre malhando. de morte natural quer por efeito de crime: e isto
Acontecia às vezes ficarem algumas gavelas por para que os transeuntes rezassem pela ajuda do
esbagoar, mal malhadas depois da primeira passa- falecido.
gem dos manguais. O dono ou encarregado da ei- Vejamos agora a décima improvisada por Ambró-
ra, ao dar por isso, costumava dispor essas gave- sio, a qual reproduzimos integralmente, sem ex-
las em cruz, para se tornarem mais visíveis, afim clusão de um plebeismo, que importa à rima, pe-
de que os malhadores, notando-as na volta seguin- lo menos:
te, malhassem sobre elas com mais cuidado e in-
sistência. Quem quizer ver cruzes vá
Como isto envolvia, de certo modo, uma censu- à eira do Possidónio:
ra, os trabalhadores embirravam com tais cruzes e pôs lá tantas o demónio
muito menos com quem as fazia. que ao Sol encobrem...
Um certo Possidónio, homem exigente e miudi- Cuida aquele cheira-cus...
nho, ao que parece, achou na sua eira muitas ga- que na malha ganha a palma...
velas mal malhadas e um pouco exasperado, tal- mas não ganhas, não, acalma,
vez, pelo pouco cuidado dos que o serviam, fez um meu Possidónio – verruma.
exagerado número de cruzes e retirou-se. Não prantaras tu lá uma
Quando os trabalhadores viram aquela afrontosa pro- p’ra te rezarem por alma!
fusão de cruzes, ficaram indignados e é de crer que
dirigissem ao ausente Possidónio alguns epítetos pou- Apesar do eco notado no 6.º verso, não deixa de
co amáveis: e como o poeta estava presente, disse-lhe ser uma décima perfeita.
um deles, como quem procura um desforço:
– Ó tio Ambrósio! Isto merecia uma décima!... Um dia, já quinquagenário, voltava de Castelo
– ... Já está feita – respondeu simplesmente o po- de Vide com outras pessoas de Vale do Pêso, que
eta, que já estaria pensando nela quando lha pedi- tinham ido ao mercado daquela simpática vila. Era
ram. Para melhor se compreender o significado de- na época lamentável da guerra civil entre absolu-
la, convém dar prèviamente algumas elucidações: tistas e liberais.
as searas dos pequenos lavradores, daqueles que De repente, já perto de Vale do Pêso, no sítio da
não tinham eira própria eram malhadas em eiras Tapada de Pedra, surgiu uma guerrilha das muitas
improvisadas em terreno baldio para o povo, mas que então infestavam o país.
258
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
um sapateiro que costumava identificar a sua pes- tos bem antagónicos: – o mais sagrado com o mais
soa invariávelmente por estas palavras: profano. Não podemos reproduzi-lo aqui.
– Sebastião Custódio, natural de Serpa, filho de Ambrósio ficou silencioso e, pouco tempo depois
pais incógnitos. recitava, glosando o mote dado, uma décima per-
Era viúvo, mas casou segunda vez, em Vale do feita, que deixou o Cura assombrado e lhe fez sol-
Pêso, onde ainda existe uma sua néta quasi sep- tar esta exclamação:
tuagenária. Durante a fase do namoro, o mestre – És um diamante em bruto!29
Sebastião, apesar de não ser já muito jovem, ani- Convencidos estamos de que a apreciação do Pa-
mou-se bastante com os novos amores, enfeitan- dre, bem digna foi do inculto poeta de Vale do Pê-
do-se mais do que até aí fora costume. Comprou so, cuja modesta casa na Rua Nova, talvez um dia
uma ampla capa de pano azul, com a qual apare- venha a ostentar uma inscrição que recorde o seu
cia em toda a parte, flamante e satisfeito da sua nome, agora cada vez mais esquecido.
pessoa, tornando-se um pouco ridículo pelas mo- Temos nisso um grande empenho.
das e pela ostentação da célebre capa, que, segun-
do ele informava quantos lha admiravam, era de DECIMAS E OITAVAS FEITAS
bom pano. Ambrósio contemplou-o no testamen- POR JOSÉ LUCIO DA SILVA CARDOSO...30
to, desta fórma: [Anónimo 1939]
Há nos versos do ignorado poeta popular qua- Deus te salve egreja de Jesus
si sempre ritmo, cadência, e até rigor na métrica, Ha tantos annos profanada
com pequenas excepções, como no verso Recebe hoje a benção da nova luz
Porque fostes sempre denominada
antes que a Morte me dê calma, Arvorai de novo a santa cruz
E fica eternamente respeitada
o qual tem oito em vez de sete sílabas. E deixa essa nodoa interdicta
Vê-se que possuía engenho natural e um estilo E sejas para sempre santa e bendita.
muito apreciável.
Grande é o dia nove de Novembro
O Cura de Alpalhão deu uma vez ao poeta um De mil oito centos e oitenta e quatro
mote deveras arrevezado, não pela dificuldade da Até me parece que estou vendo
rima, mas porque misturava, num só verso, elemen- Dos teus antigos frades o retrato
260
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
SISTEMAS ESTRÓFICOS DO ALENTEJO dois pontos versam dois a dois»; ponto quer dizer
verso, e versar quer dizer rimar. Outro ganhão, me-
CANTIGAS QUADRADAS: nos hábil que o primeiro, mas também grande sabe-
NÓTULAS ETNOGRÁFICAS31 dor de versos, e que me recitou de um jacto vinte e
[José Leite de Vasconcelos 1916] uma cantigas quadradas, definiu-as assim: «hai nelas
quatro pontos notados, dois pontos parecidos de um
A veia poética do povo está em elaboração cons- feitio, dois parecidos d’outro», ao passo que, com re-
tante: adaptam-se formas antigas a temas modernos; lação às de pé quebrado, disse: «nã são os pontos ir-
os cantadores compõem de motu próprio, e lançam mões, são dois irmões, e outros dois nã são».
em circulação poesias sobre assuntos íntimos, ou so- As cantigas quadradas consideram-nas, com razão,
bre acontecimentos sociais que impressionam a ima- mais modernas, mais da moda, e por isso superiores
ginação do público; dá-se estilo popular a versos de às restantes: «faz a gente mais gosto numa cantiga
origem literária; finalmente, e disso vou aqui em es- quadrada do que nas outras de pé quebrado» [pala-
pecial ocupar-me – acontece no Alentejo, por aper- vras textuais de Marcelino]. As raparigas preferem-
feiçoamento do gosto artístico, devido, como creio, a nas. Quando alguém canta num baile uma cantiga de
influência culta, se substitui o tipo usual de quadra, pé quebrado, zomba-se dessa pessoa:
em que apenas rima o verso 2.º com o 4.º [fórmula:
abcb], por outro tipo mais difícil, em que todos os Cantigas de pé quebrado
quatro versos rimam em cruz [fórmula: abab]. Não nas cantes a ninguém!
Se uma rapariga ou um rapaz de qualquer pro- Podes-te ver envergonhado,32
víncia nos recitar ou cantar seguidamente meio Mais aqui ou mais além!33
cento de cantigas vulgares, de certo que quarenta
e sete de fórmula abcb virão três de fórmula abab; Tudo isto prova o que acima afirmei: que os can-
mas isto, que na mór parte das províncias pode ser tadores têm plena consciência do apuro da forma
esporádico, é propositado, e perfeitamente cons- métrica que empregam.
ciente, no Alentejo, pelo menos no Central. Assim, Incidentemente se vê que as nossas cantigas po-
por exemplo, no concelho do Alandroal, ouvire- pulares, embora possam remotamente ascender a
mos a cada passo cantigas como a que vai ler-se: dísticos de 14 [16] sílabas, devem transcrever-se
como faço, e como entre nós sempre tradicional-
Amor do meu coração, mente se fez, isto é, como quadras.
Não vi palavra mais doce! Tanto Marcelino como o outro ganhão sabiam se-
Ou gostes de mim, ou não, gundo e conforme me asseveraram,34 o dobro ou o
Gosto de ti, – acabou-se! triplo das cantigas que copiei. Não nos devemos ad-
mirar de dizer Cesar que os druídas conservavam de
Onde, de mais a mais, a fonética é rigorosamen- cor imensa doutrina. O que tanto nos celtas, como
te meridional, pois doce rima com acabou-se, cujo na nossa gente do povo, se havia ou há-de aprender
ditongo se pronuncia condensado. Uma vez um ga- por leitura, aprendia-se ou aprende-se por audição:
nhão, por nome Manuel Inácio Marcelino, do Rosá- a faculdade da memória aperfeiçoa-se com exercício.
rio, de 29 anos de idade, casado, e grande cantador, Deixo de transcrever outras cantigas quadradas, pa-
que nos seus tempos de solteiro fez nos balhos eston- ra não estender demasiadamente o presente artigo.
tear a cabeça a muita moça guapa, recitou-me sem Lembro a propósito que assim como há canti-
interrupção sessenta cantigas, todas de aquele tipo. gas quadradas, as há também oitavadas, ou de «oi-
Tais cantigas denominam-nas no Alandroal qua- to pontos». Um cantador estava certo dia cantando
dradas, por oposição a cantigas de pé quebrado, ou cantigas oitavadas a outro, a despique, isto é, «a de-
fórmula abcb. O próprio ganhão me deu a definição safio», e o adversário respondia-lhe em quadradas,
seguinte: «Cantigas quadradas são aquelas em que porque sabia menos. O primeiro tornou-lhe então:
263
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
As minhas cantigas oitavadas P.S. Embora, como acima digo, e como, já depois
Vão d’reitas bem como velas; de impressa a presente nótula, verifiquei, ouvin-
E assim d’essas quadradas do vários cantadores, as cantigas, logo que se apre-
Já não faço uso d’elas sentem com a fórmula abcb, se chamam de pé que-
brado, chamam-se também assim por estes sítios
cantiga que, bem se vê da irregularidade do metro, as que não tem rima nenhuma abcd, e nas quais o
foi improvisada, e não recebeu ainda os retoques que último verso não se harmoniza no sentido com os
a prática e o cante35 costumam dar às quadras. restantes, por exemplo:
*
Quando às vezes vou ao Alentejo por uma estrada, Passei pela tua porta,
ou através de uma herdade, e encontro um campónio, Pus a mão na fechadura,
aparentemente bronco, encostado a um bordão ou a Veio de lá o teu pai,
um cajado, vestido de peles, imóvel, que de longe dei- Deu-me c’uma bota n’alma.
xa a gente em dúvida se é um homem, se um tronco
de sobreira, de pé, sem ramagens nem pernadas, – a Que lindo botão de rosa
minha alma vibra sempre de emoção, porque sei que Aquela roseira tem!
está diante de mim um artista: ou é um ganadêro, que Debaixo ninguém lhe chega,
em horas de paz, nos extensos montados, costuma es- – Maria, traz’ cá a escada.
culpir com canivete num pedaço de cortiça ou de bu-
xo, ou num duro chavelho, as mais delicadas e rendi- Tais cantigas só se cantam de brincadeira, visto
lhadas figuras, ora tiradas da imaginação, ora da Na- que movem a riso. No Norte tem o nome de canti-
tureza que o cerca; ou é um ganhão, a quem, apesar do gas às avessas: vid. Revista Lusitana, XI, 351.
seu áspero mister, Apolo infundiu génio poético que se
traduz em cânticos multiformes durante os balhos, ou CANTIGAS DOBRADAS36
nas lavoiras, quando agarrado ao rabanejo da charrua [José António Pombinho Júnior 1942]
vai levantando leivas, sob ardente sol.
Sem dúvida aparecem por todas as nossas provín- Aí por Agosto de 1923, pouco mais ou menos, já
cias escultores e versejadores populares: no Minho eu tinha em meu poder algumas cantigas dobradas
gozam de justa fama os feitores dos jugos bovinos, e da autoria do Sr. Manuel Capela, natural de Por-
aí e na beira não faltam desafios em romarias e em tel (Alentejo).
esfolhadas; o pegureiro barrosão borda com cuida- Últimamente, residindo eu na referida vila alente-
do espadelas e cabos de seitoras, e o Mirandês suavi- jana, também minha terra natal, resolvi fazer a co-
za o trabalho da ceifa e da malha do centeio, modu- lheita de mais umas cantigas do mesmo género, e,
lando antiquíssimas jácaras e versos ad hoc; o fadista assim, consegui as que hoje, juntando-lhes aquelas,
de Lisboa desadormece as vielas do Bairro Alto com constituem o presente artigo. Compõem-no, afora
o fado que descanta na bandurra; o Algarvio enfeita- as cantigas que então tinha, mais algumas do mes-
se poeticamente de flores de alfarrobeira, ao mesmo mo autor e ainda outras tantas do Sr. António Par-
tempo que entalha objectos de uso diário como os delha, portelense também, tôdas elas muito interes-
do seu vizinho de aquém Monchique: todavia neste santes, impregnadas do mais puro lirismo português,
a escultura constitui um hábito geral, uma segunda encerrando bonitos conceitos e grande beleza os seus
profissão inseparável da do pastoreio; e em nenhuma versos, como o leitor vai ter ensejo de apreciar.
outra zona de Portugal a poesia lírica atingiu, quan- Na recolha não lhes fiz, confesso, a mais ligeira al-
to eu sei, a perfeição rítmica que ostenta na boca dos teração. Coligidas e coordenadas foram elas, sim, tal
ganhões e das raparigas do Alentejo. como as ouvi e as fizeram os seus autores. Basta-me a
satisfação — e não pequena — de ser eu a pessoa que
ALANDROAL, 25 DE ABRIL DE 1916. tem a ventura de dar a público tão singulares com-
264
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
posições do folclore alentejano, compensando-me o tejo (distrito de Beja), chamam cantigas dobradas,
pouco trabalho que tive, o grande prazer espiritual são as compostas do seguinte modo: a uma qua-
que senti ao ouvi-las quando as arquivei e ainda pre- dra improvisada no cante de desafio ou já do can-
sentemente sinto quando as leio. cioneiro popular, é feita a dobra, uma nova qua-
Aos seus autores, meus patrícios e bons amigos, dra que apresenta, alternados, nos versos 3.º e 4.º,
sem dúvida verdadeiros poetas populares — jul- ou os dois primeiros(1.º e 2.º) ou os dois últimos
go não exagerar assim chamando-lhes — consig- versos (3.º e 4.º) da 1.ª quadra. Ambas as quadras
no mais uma vez, agora neste lugar, os meus since- são relacionadas no sentido e têm ligação com as
ros agradecimentos. já anteriormente cantadas, característica que deve
Além do que, mais adiante, dêles digo nas pou- sempre manter êste género poético. (Veja as canti-
cas linhas que antecedem os seus versos, devo ain- gas n.os 38, 39 e 40). Cada cantador canta as du-
da dizer, para melhor conhecimento de quem são, as quadras, a cantiga dobrada, a seguir. A música
que ambos sabem de cor muitíssimas quadras sôl- (estilo) é a de qualquer moda da região, havendo
tas, muitas modas e canções, etc., por isso, natu- porém uma especial que é a preferida pelos can-
ral é que algumas das suas produções poéticas apro- tadores.
veitem, inconscientemente, dêsse seu saber, quer re- Eis os dois tipos citados:
produzindo, ás vezes, versos completos, as qua-
dras até, quer aproveitando-lhes o sentido, etc. Con- 1.º TIPO
tudo, suponho, na colectânea de cantigas que ora [Veja a cantiga n.º 1]
se vai ler os casos se não verificam, a não ser onde
faço a devida anotação. 1.ª quadra 1.º verso
Na poesia popular portuguesa, que eu saiba — 2.º “
não ignoro que pouco e sem valor é o meu saber 3.º “
— nada conheço no género que haja sido publica- 4.º “
do, e creio até que o assunto ainda não foi trata- DOBRA:
do pelos nossos folcloristas. Bem sei que a Ex.ma 2.ª quadra 1.º verso
Sr.ª D. Maria Portugal Dias, a quem as tradições 2.º “
populares do Baixo-Alentejo muito devem, no ar- 3.º “ (é o 2.º verso da 1.ª quadra)
tigo intitulado «Como se canta no Alentejo» (Vid. 4.º “ (é o 1.º verso da 1.ª quadra)
Arquivo Transtagano — n.º I4 — 2.º ano — de 30
de Junho de I934 — págs. 2I6 e seguintes), diz que
na sua região se usa dobrar a cantiga, isto é, «re- 2.º TIPO
petir os dois primeiros versos, e depois o terceiro [Veja a cantiga n.º 2]
e o quarto na mesma ordem». Parece-me bem que
a técnica, neste caso, outra será — e é certamente 1.ª quadra 1.º verso
— lamentando eu que a ilustre escritora nos não 2.º “
mostre ali um modêlo sequer como dobram a can- 3.º “
tiga no Baixo-Alentejo, para se poder estabelecer o 4.º “
confronto com as que vou apresentar. No entanto,
espero remediar o inconveniente, num futuro ar-
tigo, uma vez que essa senhora me forneça os ele- DOBRA:
mentos já pedidos e eu receba mais esclarecimen- 2.ª quadra 1.º verso
tos de outras proveniências. 2.º “
O que na minha região, concelho de Portel (dis- 3.º “ (é o 4.º verso da 1.ª quadra)
trito de Évora), e também, pelo menos, nos conce- 4.º “ (é o 3.º verso da 1.ª quadra)
lhos de Vidigueira, Beja, Cuba e Ferreira do Alen-
265
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Os cantadores dizem que o primeiro tipo tem a Que se não esqueça de mim,
dobra no 1.º verso; o segundo tipo, no verso 3.º. é Vai dizer àquela rosa;
êste último o mais vulgar na zona atrás indicada. Por êsse mundo sem fim,
E agora o estilo especial (Portel): Vai-te, carta, venturosa.
Ó erva cidreira
Esta música foi recolhida pelo meu conterrâneo Que estás no alpendre,
Sr. Artur Duarte, hábil músico reformado da Ar- Quanto mais se rega
mada, a quem testemunho o meu agradecimento. Mais a fôlha pende.
***
Êste modo de cantar é aqui muito antigo; não se sa- Mais a fôlha pende,
be mesmo de quando data, como igualmente se des- Mais a rosa cheira;
conhece a sua origem. As pessoas mais idosas da vi- Que estás no alpendre,
la, sempre desta forma ouviram cantar, concluindo- Ó erva cidreira.
se portanto que há mais de um século já em Portel (CP. O 1.º TIPO).
eram conhecidas as cantigas dobradas.
Creio, pois, que a partir dêste momento, aos estudio- E, sendo assim, num ou noutro caso, teríamos nós
sos do folclore nacional interessará saber se a curiosi- a origem das cantigas dobradas, modalidade poética
dade poética é só notada na zona que indico, se é ori- das mais interessantes da arte popular.
ginária de qualquer dessas localidades, se veio de ou- Quanto ao nome por que são conhecidas, não con-
tra região de Portugal; se é de origem literária, se po- segui apurar até o presente se é devido à quadra ter
pular, etc. dobra, se por serem duas quadras da cantiga, se por
No desejo de contribuir com alguns elementos subsi- qualquer motivo. Eu julgo-o proveniente da dobra.
diários para o seu estudo, informarei ainda que as supo- E por último, saiba-se ainda que estas cantigas são
nho ignoradas, desta maneira, fora do Alentejo, e nes- quási exclusivamente cantadas por homens no can-
te, só de uso no Sul; que o meu patrício Pardelha ma- te de despique e, à parte uma ou outra das impro-
nifestou a opinião, aliás muito aceitável, que a cantiga visadas que fica na tradição oral, por mais curiosa,
dobrada deve ser filha da cantiga quadrada, depois dita as restantes e muito especialmente as dobras são es-
— emprego a sua própria expressão — de «viço-verso», quecidas.
ou seja, repetida mas com os versos invertidos. As cantigas desta colectânea foram por mim reco-
Por exemplo: lhidas dos seus autores, fora do cante, não sendo por
isso feitas na ocasião do desafio, daí o seu assunto
Vai-te, carta, venturosa, não estar devidamente ligado. Foram pensadas... To-
Por êsse mundo sem fim; davia, conto assistir, na primeira oportunidade, a um
Vai dizer àquela rosa torneio de cantigas dobradas, para então comparar
Que se não esqueça de mim. com estas de agora.
266
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Sei já, que o seu valor é, evidentemente, inferior, tembro de I879, na vila de Portel, como já disse. É
pois quási sempre o improviso, como se sabe, é im- trabalhador rural, mas trabalhando para si, solteiro
perfeito, visto a cantiga precisar de acção do cante e e vive só, cultivando «ao quarto» a terra áspera da
do tempo para se depurar. Já o devotado etnógrafo e serra que lhe dá o trigo suficiente para comer e ven-
folclorista Dr. Pires de Lima, diz no Cancioneiro Po- der, além de outros produtos (fava, cevada, etc.) que,
pular de Vila Real — I928 — pág. I4: «No momen- em parte, também vende, para dêste modo conse-
to da elaboração as cantigas saem naturalmente ir- guir o dinheiro para as restantes necessidades da vi-
regulares, e vão-se lapidando depois, à medida que da. Completamente analfabeto, de curioso falar, diz
passam de bôca em bôca, num trabalho demorado». o indispensável e a propósito emprega ditados popu-
Igual opinião tem sido manifestada por outros me- lares e as suas próprias cantigas; crê ver as coisas co-
nos ilustres folcloristas. mo são, com rude filosofia embora, e por tudo isto e
*** pelas suas compridas barbas ruças, é uma das figuras
O autor das primeiras 25 cantigas dobradas cha- mais típicas e estimadas da vila. Foi cantador na mo-
ma-se Manuel Capela, mais conhecido pelo «Chara- cidade, mas a sua maior paixão manifestou-a sempre
pa», alcunha herdada de seu pai que igualmente as- por estas cantigas. Algumas vezes lhe tenho ouvido
sim fôra sempre alcunhado. Filho de Miguel Cape- dizer: — «Cantiga que não é dobrada, não presta».
la e de Joana Rosa (falecidos), nasceu em 16 de Se- Seguem-se as suas cantigas:
10 Está-me a parecer que o bem estar DOBRA Tenho uma paixão comigo,
Que não enfada ninguém: Que a não posso disfarçar:
Só eu não posso gozar Uma hora de estar bem
Uma hora de estar bem. Só eu não posso gozar.
11 Não sei dizer quem está bem, DOBRA Chega àqueles de milhões,
Como não sei quem está mal, Chega a outros sem vintém;
Uma vez que a desgraça vem Por tôda a parte em geral,
Por tôda a parte em geral. Uma vez que a desgraça vem.
16 Quem a mim me ouvir cantar, DOBRA Pode que ainda mais tarde
Cuidará que estou contente; Venha o meu êrro emendar.
Eu canto para disfarçar Minha paixão tam ardente
Minha paixão tam ardente. Eu canto para disfarçar.
(Popular)
21 Eu já morri nos teus braços, DOBRA Foi das coisas que eu gozei
Achei o morrer tam doce! Neste mundo mais queridas.
Quem me dera ter mil vidas Que aos teus braços morrer fôsse,
Que aos teus braços morrer fosse...47 Quem me dera ter mil vidas!
(Popular)
Foi e é grande apaixonado do cante, de boa mas, sobretudo, o que nêle mais de deve admirar
voz e melhor memória, sendo lembrados ainda é, sem dúvida, a relativa facilidade com que sem-
hoje com saüdade os grandes desafios em que to- pre lembra as modas e canções (letra e músicas)
mou parte, em ocasiões de festas, nos balhos, em que antigamente aqui foram cantadas.
S. Pedro e na Horta de Tojo, subúrbios da vila; Eis as suas cantigas:
32 Ainda que queira não posso DOBRA Já por vezes tenho dito,
Disfarçar o sentimento: Alivia o pensamento:
Quando um homem tem tristezas, Ainda que queira não posso
Tristezas com fudamento. Disfarçar o sentimento.
35 Não sei de que tem servido DOBRA Não sei de que tem servido
A minha sinceridade, A minha sinceridade,
E esforços que tenho feito E esforços que tenho feito
Por te ter tanta amizade. Por te ter tanta amizade.
44 Cada vez que passo e vejo DOBRA Depois que teus olhos vi
A tua seriedade, Todos os mais aborreço;
Pelo olhar te conheço Que me não tens amizade
Que me não tens amizade. Pelo olhar te conheço.
(Popular)
Para mais clara compreensão, se possível, do que É, por ora, quando sei acêrca de cantigas dobradas.
digo no preâmbulo, as cantigas vão agrupadas por Oxalá os folcloristas portugueses com os modes-
tipos neste artigo, mas na prática nem sempre as- tos materiais que aqui lhes deixo, consigam fazer
sim sucede (melhor, não sucede nunca) por os can- o competente estudo crítico de tão original mani-
tadores dobrarem as quadras conforme o tipo a festação da poesia popular alentejana.
que dão preferência, ou aquele que mais fácil do-
bra dá no despique. PORTEL, MARÇO DE 1938
272
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
O ‘CANTE’ DAS ‘GRALHAS... À SOLTA’64 de sarampo, quando com seus pais vivia na er-
[José António Pombinho Júnior 1962] mida de S. Pedro, a 3 quilómetros de Portel e o
sítio mais alto da serra, donde se defruta surpre-
É assim conhecido talvez só no Alentejo um endente panorama.
curiosíssimo modo de cantar, que julgo ser ain- Segundo me disse numa tarde de Outubro de
da ignorado dos nossos folcloristas, e que foi in- 1947, o nome de Gralhas à solta foi posto na
ventado, assim como a música – ela pelo menos Cuba, ia para 35 anos, por Manuel de Castro,
diz-se sua autora –, por Josefa Inácia, «A Cégui- outro apaixonado dos cantes populares, especial-
nha» ou a «Cega do Prego», natural da linda vi- mente do despique, quando pela primeira vez o
la de Portel, onde reside últimamente depois de cantou e lhe pedira para ele lhe pôr o nome.
uma ausência de mais de 30 anos, em Pedrogão Parece que este Manuel de Castro fora sargento do
do Alentejo, concelho de Vidigueira. Exército e, dado o seu feitio boémio, andava também
Esta pobre cega tem calcorreado, pelo braço do por feiras e romarias como cantador popular.
marido e dos filhos, vales e montes, vilas e aldeias A música das Gralhas não a publico, com pe-
de quase todo o Baixo Alentejo, cantando e tocan- sar meu, por na ocasião não ter quem a recolhes-
do guitarra por festas, feiras e romarias, “batendo- se, e hoje vivendo em Évora não me ter sido pos-
se” ao desafio noites inteiras, nas barracas de co- sível ainda consegui-la.
mes-e-bebes, com os mais afamados cantadores do Agora, algumas particularidades deste cante
Sul, que a temem mas procuram para os seus des- digno de todo o interesse.
piques, por ela cantar muito bem, ter bonita voz e O esquema rimático é assim:
mostrar sempre bom agrado para todos, sendo por
isso muito estimada. aabcccb–bbaaaab
Nos desafios, de que ordinàriamente sai vence-
dora, faz largo uso do género satírico, muito da Tem 14 pontos ou versos de 7 sílabas e de rima
simpatia dos cantadores e do seu numeroso audi- consoante. Os versos 1.º, 10.º e 11.º são iguais; o 2.º
tório, com tal mordacidade que chega a ser con- é igual ao 13.º e o 3.º ao 14.º; o 7.º e 8.º são também
tundente, daí muitos antagonistas abandonarem o os mesmos, isto, é o último da primeira estância é
desafio, vencidos e envergonhados... Verseja bem o primeiro da segunda. Os versos grafados consti-
e com a maior facilidade; tem grande memória, pe- tuem uma quadra do cancioneiro popular, caracte-
lo que sabe de cor centenas e centenas de quadras rística creio que obrigatória do cante, o que o tor-
populares, que aproveita, modificadas ou não, nos na mais difícil pela intercalação dos versos. Note-
desafios a «ponto solto» ou «preso», «simples» ou se ainda que na segunda estância não entra o 3.º
«dobrado»; conhece a maioria das canções e «mo- verso da quadra.
das» mais em voga no riquíssimo folclore do Bai- Eis alguns exemplos de como podem ser as Gra-
xo Alentejo, onde, sem dúvida, mais e melhor se lhas à solta, embora estes sejam da mesma pessoa,
canta em Portugal. É autora de muitas «décimas», no caso presente, «A Cega», que cantou e respon-
que tem publicado e vendido nas suas peregrina- deu com uma rapidez que me causou admiração:
ções, «décimas» a que chamam «quadras popula-
res» ou «cantigas», focando sobretudo casos tris- ELE:
tes (suicídios, assassínios, crimes passionais, etc.), (1.º) Por medidas, por compassos,
que infelizmente ainda são vulgares na vasta re- (2.º) Anda cá para meus braços,
gião alentejana. (3.º) Se tua vida queres ter...
Nasceu a Ti Zèfinha, como ela própria se inti- (4.º) Caso que Deus nos ajude,
tula, a 9 de Fevereiro de 1889. Foram seus pais (5.º) Como tem toda a virtude,
António Agostinho e Maria da Piedade Prego (6.º) Os meus braços dão saúde,
(falecidos). Cegou aos 6 meses, por forte ataque (7.º) A quem está para morrer.
273
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
para a poesia, compõe lindos versos, quer seja de tejo resume-se quase exclusivamente à chamada
poucas letras ou erudito. “cantiga” ou “quadra” de “40 pontos”.
Para nós a boa poesia composta nos meios ru- Cada cantiga é constituída por um mote de 4 “pon-
rais é um conjunto de lindas flores silvestres que tos” (versos) e 4 “décimas” de 10 “pontos” (ver-
nascem nos campo espontâneos e livres, encanta- sos).
doras na sua simplicidade, rivalizando com aque- Cada verso do mote repete-se no último verso
las que são criadas nos jardins por meios mais ou da décima respectiva.
menos sofisticados. As “cantigas” mais apreciadas eram as “cantigas de
Talvez alguém pense que exageramos, mas tanto Afundamento”, isto é as que tratavam de assuntos sé-
as flores silvestres como a boa poesia popular são rios e que o poeta demonstrava a sua “filosofia” sobre
apreciadas conforme a sensibilidade de cada um. determinado tema, numa série de “cantigas”.
Por meio dos documentos poéticos acima men- Alguns do “afundamentos” mais usados pelos
cionados podemos tomar conhecimento dos usos poetas populares eram por exemplo: a crítica so-
e costumes através dos tempos: em justiça social, cial, a campa, a História, os astros, o mar, a Pri-
os acontecimentos mais importantes ocorridos em mavera, as flores e os pássaros, o Amor, a velhi-
determinada época e região, os sentimentos domi- ce... Enfim, tudo o que impressionava as pessoas,
nantes no povo, as suas ideias religiosas, as cren- conforme a sua vivência.
dices, o nível de vida da população, etc. Ao grupo de cantigas que não tinham “afunda-
No que diz respeito à injustiça social, é curio- mento”, pertenciam todas aquelas que se referiam
so notar a forma como as pessoas a aceitavam, por exemplo a uma pessoa ou acontecimento iso-
há cerca de 70 a 100 anos (referente a 1995). Se- lado, qualquer sátira ou crítica para fazer rir, “jo-
gundo poesias dessa época, os pobres sabiam ins- gos” de palavras sem sentido, somente para dis-
tintivamente que as coisas não estavam certas, trair os ouvintes.
que uns viviam bem outros mal... Mas estavam Até há cerca de uns 30 anos era costume, por
conformados, porque a doutrina da Igreja dizia: ocasião de festas de família (Natal, Páscoa), nos
“Não é desprezo servir porque Jesus também ser- casamentos, mastros, bailes... juntarem-se os po-
viu”. “Os que sofrem na Terra terão no Céu o go- etas duma região em qualquer lugar para onde fos-
zo eterno”. sem convidados, e aí fazerem os seus encontros
E os desgraçados diziam: “Então que havemos ou “duelos” de poesia que chegavam a durar dias
de fazer? Toda a vida houve ricos e pobres... É a e noites seguidas, só terminado quando as obras
nossa “sina”... Trabalhar até morrer”. de cada um se esgotavam.
E pronto. Mais nada havia a fazer... Era o destino. Era dado um “afundamento” e sobre ele todos
As poesias dessa época era apenas lamentações deviam cantar ao “consoante”. Quando um poeta
em que se nota o intento de alcançar a caridade esgotava o seu repertório sobre esse tema, canta-
dos ricos e poderosos. va qualquer outra coisa, mas ficava um tanto des-
Com o rodar dos tempos, as ideias avançam. A classificado pela assistência.
poesia começa a reflectir a revolta contra a injus- Era costume nesta espécie de poesia popular, o
tiça e diferença de classes. poeta inventar duas personagens, geralmente con-
Não temos dúvidas, que foram muitos destes po- trárias e estabelecer entre elas o diálogo, pondo na
etas populares que “sacudiram” os seus irmãos no boca de cada uma a sua “cantiga”.
infortúnio e os alertaram contra a exploração de Exemplo: O rico e o pobre, o ferro e o ouro, o
que eram vítimas, porque os poetas populares que homem e a mulher, etc.
fossem analfabetos ou não, eram uns pensadores, ti- Instintivamente usavam uma figura de retóri-
nham um poder de expressão crítica e observação, ca, chamada prosopopeia.
superior à maior parte dos seus conterrâneos. Nos “duelos” poéticos havia cantigas de elogiar
A modalidade de poesia popular praticada no Alen- e de ofender.
275
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Nem mais nem menos que as cantigas de Amigo Sempre que fosse possível, a canção do despique
ou de Escárnio ou Maldizer que já se usavam no era acompanhada à guitarra ou à viola.
tempo de D. Dinis, há cerca de 700 anos. Era curioso notar que muitos homens que nun-
A literatura popular não era só divulgada nes- ca fizeram qualquer espécie de poesia, cantavam
tes encontros. Alguns autores mandavam impri- noites inteiras de improviso, compondo versos
mir as suas poesias e vendiam-nas, em folhas sol- muitas vezes cheios de graça e sentimento. Há
tas, em feiras e mercados. alguns anos a esta parte, o despique caiu em
Geralmente essas poesias eram dedicadas a acon- desuso.
tecimentos importantes e sensacionais, como de- Os poetas populares eram tão considerados pe-
sastres, crimes, calamidades, etc. la população da sua área que, quando alguém se
Estas poesias, uma vez publicadas, já não po- mostrava superior às outras pessoas, em qualquer
diam servir para encontros de poetas. Por isso actividade dizia-se: “O gajo é um poeta”, que po-
estes não mandavam imprimir as suas melhores dia ser a dança, a ceifar, a correr de bicicleta, a
obras. Assim se perdeu tudo com a morte do au- ler, a escrever, etc.
tor. A não ser as “quadras” que ficaram na “cabe- O poeta, neste caso era aquele que se distinguia
ça” de algum admirador do poeta. dos outros, pela sua competência.
Conscientes dessa perda irreparável, e não que-
rendo que ela continue a registar-se, nos poetas
que conhecemos, vimos desde há anos a esta par-
te, recolhendo toda a espécie de poesia que nos SANTIAGO DO CACÉM, MARÇO DE 1993
é possível. Noutro local mencionaremos o nome
das pessoas que têm colaborado nesta obra de de-
fesa do nosso Património Cultural.
cançado, que não terá de couraçar a barriga, pa- elemento de propaganda para os grandes idea-
ra livral-a da navalha... — Mas, vamos ao Fado, es! Que importa que o rufião ou a meretriz es-
ao choradinho: tropiem o Fado? Isso que prova? Simplesmen-
Diz v. ex.ª, no seu primeiro artigo, que o fado te que essa bella trova está na alma popular, e
é abjecto, porcalhão e avinhado e que depois de que, justamente porque é cantada do mais bai-
ter vivido escondido, vegetando miseravelmente xo ao mais alto da escala social, é que tem fó-
em humidas alfurjas, n’uma atmosphera de aguar- ros de canção nacional. Nasceu nas viellas? Em-
dente, tabaco réles e alecrim, um dia algum larva- bora! Tambem — e cá temos nós o fado-destino
do sybarita, travando o braço ao rigoroso fado, — Emilio Zola nasceu em berço pobre e moure-
entrou com elle a porta dos palacios. O besun- jou noite e dia como simples caixeiro de uma li-
tão entrou na moda e todas as portas se lhe abri- vraria de Paris, passando tantalisadoras fomes e
ram. Mas, pelo facto de o exporem á grande luz cruciantes miserias, até elevar-se, á força de es-
e de lhe mostrarem a vida movimentada e bella, tudo, de genio, de talento e de vontade, á cathe-
cheia de tonicas emoções e de estimulo comba- goria do maior cerebro do seculo XIX!
tivo, permaneceu com o feitio relaxado, lamen- E ha tanta mais paridade n’esta comparação,
tando a fatalidade do destino, recluso dentro de quanto é certo que, se esse colossal medico da
uma systematica impotencia. O choradinho nas penna soube escalpelisar as podridões de uma so-
salas, no meio da gente culta! Como se uma ra- ciedade deleteria, tambem o Fado já me serviu —
meira fosse capaz de ser rainha! como poeta humilde e trovador popular — pa-
Eu podia agora provar ao dr. Felix, com exem- ra cantar a gigantesca obra d’esse altissimo es-
plos da Historia, que há rameiras com alma de pirito, em cujos livros o dr. Samuel Maia poderá
rainhas e rainhas que apenas são rameiras! Mas, aprender a palpar o pulso ás multidões, quando
limito-me a dizer: o dr. Felix sabe tanto o que novamente quizer receitar sobre Sociologia!
é o Fado, como o seu ilustre collega, dr. Samuel No lôdo — metaphoricamente, é claro — tam-
Maia, sabe o que são questões sociaes. O dr. Samuel bem nascem flôres! E o Fado, vindo do lôdo,
Maia — incontestavelmente um medico distinc- transformou-se n’uma flôr vicejante e bella, á
to — quando (pelo menos uma vez, que eu lês- custa de muito esforço e boa vontade dos humil-
se) se lembrou de tratar n’O Seculo de questões des poetas e trovadores populares, que, sentido
referentes ao operariado, só conseguiu escrever bem dentro d’alma toda a psychologia da velha
burguezissimas orações! E o dr. Felix, ao abor- canção e quanto ella está arreigada no animo do
dar a questão do Fado, apenas tem produzido povo, a burilaram carinhosamente, retocando-a,
periodos palavrosos! De modo que o dr. Felix e aperfeiçoando-a, fazendo d’ella a trova educa-
o dr. Samuel Maia, se fossem irmãos... não se- dora, por meio da qual se confraternisa, se chora
riam, talvez, tão parecidos! e ri, se combate pelo Ideal e se condemna a im-
Dois excellentes medicos, sem duvida, mas... moralidade, a tyrannia, a impudicicia!
nada mais. Censurar o Fado?! Só quem não tem alma
É necessario discenir: O fado-alcouce e o fado- para sentir! E o dr. Felix é um d’elles, porque
destino são coisas diversas do Fado-Verso e do não o conhece!
Fado-Musica. Nada de mistifórios! Soube que elle se canta nas alfurjas, por vezes
A canção nacional não tem que vêr com a meia- avinhadas e por boccas pintalgadas de almagre,
porta. Se o Fado-canção foi lá nascido — o que e tanto bastou para que, do alto da sua cathe-
não está averiguado, e talvez só o illustre lumi- dra da Hygiene Pratica, onde pontifica, o condem-
nar das lettras portuguezas, dr. Theophilo Bra- nasse como coisa nojenta! Nem ao menos se lem-
ga, nol-o possa dizer — isso não obsta a que es- brou que, no dia 5 de outubro, em todos os la-
sa trova se metamorphoseasse á luz vivificado- bios estava a Portugueza, sem distincção de clas-
ra do Progresso e se tornasse de ha muito n’um ses ou gerarchias! E depois d’essa data gloriosa,
278
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
em todos a cantaram, ainda ninguem se lembrou e vivo, em que os tonicos ridentes do verso se har-
de a condemnar ou julgar manchada, pelo facto monisam delicadamente com a alacre vibração da
de labios avinhados de rameiras e boccas descó- guitarra! E, n’essa toada poetica, há beijos d’amor,
radas de maltrapilhos a haverem enthusiastica- ha augurios de felicidade, ha o tremeluzir brilhan-
mente entoado! te d’um porvir luminoso atravez [d]a treva densa
Todos eram portuguezes para cantar a Por- e emocionante da Vida! Depois, é a festa do bap-
tugueza! Todos são portuguezes para cantar o tisado d’esse «pedacinho de carne nascido entre
Fado! Não há gerarchia onde ha sentimento! E, dois beijos» e que representa o fructo da união e
para soffer e sentir, toda a humanidade tem um do amor dos paes. Aqui, a trova é marchetada das
coração. perolas delicadas e rutilas que nascem no mais re-
O dr. Felix sabe lá o que é o fado!... condito do coração das mães!
Ah! Mas hei de eu ensinar-lh’o, pouco a pouco,
e em dozes semanaes, para que mais facilmente «Ha lagrimas a rir, e risos a chorar»
o possa digerir.
mas que, a par da sentimentalidade natural, dei-
II xem vibrar a musica dentro d’alma, em tom
— Vamos á liçãosinha, doutor? maior, de onde se filtra a alegria esfusiante, en-
Vejamos: O que é o fado? É a palavra canta- ternecedora, perfumada!
da, ou seja, a poesia alliada á musica. Essa musi- Mais tarde, vem o humilde filho do povo, o
ca é, talvez, uma melopêa sentimental — no seu desherdado da blusa — como eu, doutor — e
inicio — e por essa razão é que o doutor e o Al- esse quer trovas energicas, dramatisadas, onde
bino Forjaz lhe chamam uma coisa amollenga- se concretise toda a sua discrepancia por tudo
da, triste. enfadonha, sensual! É que v. ex.ª — o que é iniquo e revoltante, a dentro de uma so-
Albino fica para mais tarde — desconhece as in- ciedade infame e polluida, e de cujos poderosos
numeras variantes do Fado!... detentores do Capital só o operario é victima!
Eu, que á minha humilde mesa de trabalho N’estas trovas faz-se propaganda contra a Re-
tantas trovas, mais ou menos incorrectas, tenho acção, stygmatisa-se o roubo legal commettido
produzido, é que posso, indubitavelmente, ex- pelo honrado commerciante, disseca-se o ventre
plicar-lhe todas as diversas cambiantes porque da Abundancia, cheio á custa do suor do pobre,
passa, á luz cerebrina da inspiração, a mimosa da eterna besta de carga, jungida ao carro trium-
trova. O fado percorre toda a gamma social! phal do Rei-Milhão! Estas são as canções socia-
Hoje, é o trovador humilde, que não escreve, es, em redondilha ou em alexandrino, — que
e me pede para fazer-lhe uma canção, que elle para tudo o Fado tem variantes que o doutor
cantará na festa a favor de uma viuva cheia de desconhece — onde ha brados de revolta, gritos
filhos; e, n’este caso, a música é o Fado propria- de desespero, clamores d’alma, sobreexcitações
mente dito, dedilhado em tom menor, acompa- de espirito em que o protesto resalta forte, viril,
nhando o verso apropriado, que é um mixto de austero e justo, contra as torpezas, mais do que
revolta e amargura pelas desegualdades sociaes. muito condemnaveis, do Existente!
Ámanhã, é outro que deseja cantar as delicias do Ao Fado tudo se canta e tudo se diz! Ha no
hymineu e brindar os noivos, seu amago: Alma, Sentimento, Energia, Cora-
ção! (É bom não confundir este coração com ou-
Um parsinho que ajoelha e que se vae casar tras miudezas que abundam no fado-alcouce...).
Mas... não fujamos á guitarra.
como diz Julio Dantas na Ceia dos Cardeaes. En- Diz v. ex.ª., n’um artigo em que chama idiotas,
tão, a musica é um mixto de amor e alegria, e já admiradores da amenia e das olheiras, etc., aos po-
póde cantar-se n’um lindo fado-marcha, saltitante etas amadores do Fado — como um provinciano
279
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
que lhe escreveu — que um poeta não deve servir ca, de todas as canções do mundo, talvez a uni-
para chorar, mas sim para cantar; e, n’outro pon- ca arte em que conservamos a nossa originali-
to do mesmo artigo: a elegia, a lacrimosa dôr, essa dade. Teem um cunho especial, inconfundivel,
humilde tristeza com que se pretende estofar a al- e foram fonte purissima, luminosa, em que be-
ma nacional, é uma pustula a desinfectar, uma es- beram grandes lyricos, desde Bernardim a João
coria a varrer. de Deus.
Percebo: o dr. Felix queria que os poetas can- Lindo titulo este: A canção da minha terra! O
tassem a Dôr e a Amargura... á gargalhada! Que- auctor é de Lisboa; creio que d’aqui não cos-
ria v. ex.ª que se cantasse o Amor com um cace- tuma sahir. Não o terão commovido as alvora-
te na mão! Que prosaismo, doutor! E, todavia, das no campo, quando os melros saudam o sol,
v. ex.ª sabe que a Poesia sem sentimento, sem al- nem as melancholias do entardecer, quando so-
ma, sem doçura, sem todo aquelle bem mansinhas para o céo colummas de fumo
em cada lar; mas, á esquina d’uma rua, encon-
«Delicioso pungir do acerbo espinho» tram-se uns olhos bonitos que sorriem, ou uma
mãe que, chorando, aperta um filho aos peitos
— de que nos falla Almeida Garrett — não é Po- esvasiados. E onde há risos e lagrimas, póde vi-
esia, não é Arte, não é nada! ver a poesia!
Ah! Mas como para v. ex.ª o Fado é cousa lym- E onde há risos e lagrimas, póde viver a poe-
phatica e piegas, permitta que eu transcreva do sia! Vê, doutor? Cá temos o illustre auctor da
livrinho A canção da minha terra, do meu amigo Meia Noite de accordo com a pieguice, ainda que
e confrade Arthur Arriegas, um trecho do prefa- a v. ex.ª peze! E pena é que esse grande poeta
cio escripto por outro grande amigo, o immor- — Gomes Leal — seja hoje um espirito doente e
tal auctor do Alcacer-Kibir. Diz D. João da Ca- para sempre inutilisado; aliás, ninguem melhor
mara: que elle poderia rispostar ao dr. Felix. Melhor
ainda que D. João da Camara, elle sabe o que é
Ouve-se uma guitarra. Ergue-se uma voz can- a trova popular: — a conglobação de risos e la-
tando um mote. A guitarra é desafinada, avi- grimas, de desfallecimentos e energias, de pro-
nhada a voz, mote obsceno. Logo lhe faz a testos e amarguras!
glosa uma estupidez hypocrita, condemnando V. ex.ª sabe lá o que é o Fado! Quanta propa-
o fado e a poesia popular. ganda, nos saraus das associações, na rua, na sa-
la, na taberna, fez o humilde trovador em prol
V. ex.ª comprehende: todo este periodo em que da Republica que hoje nos rege! E o povo rude,
a ironia resalta — incluindo a estupidez hypocri- o povo operario, quedava-se recolhido a ouvil-o,
ta — é dedicado aos censores do Fado... entendendo talvez melhor esses pobres versos —
Continua, porém, o ilustre auctor d’Os Velhos muitas vezes sem metrica — do que os mirabo-
e da Rosa Engeitada: lantes discursos dos oradores de comicios!
É que, talvez valha mais a palavra cantada, su-
... E porque n’uma toada de piegueira em tom ggestiva e simples, afflorando aos labios rudes
menor ou em quatro versos de pé quebrado, do rude productor, do que a palavra vibrante do
um dia coube uma desvergonha, o juiz Acca- historico Mirabeau!... Este, vendeu o talento e
cio, com o falso pudor de acceso nas boche- a loquella por um milhão de francos á vicillante
chas, condemna musica e redondilhas ás tre- monarchia dos Capetos; e aquelle — o produc-
vas dos beccos mal afamados! Ora a verdade tor rude e simples — aluga o braço, mas não ven-
é que as canções populares portuguezas se dis- de a consciencia!
tinguem pelo sentimento, na poesia e na musi- E porquê? Porque os humildes filhos do povo,
280
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
após terem transitado do azul e branco para o Diz, porém, o dr. Felix que «nós devemos can-
verde e vermelho, retemperaram o espirito, abri- tar coisas alegres», e, a proposito, cita a Canni-
ram os olhos — os que os tinham fechados, que nha Verde, etc., etc. Mas, isso é illogico, doutor!
não todos — e já hoje cantam ao som do Fado: Não se aplica assim, tão facilmente, a therapeu-
tica do Riso, só porque os francezes dizem que
Bravos heroes do Progresso, les portugais sont toujour gais!...
ávante p’lo grande Ideal! Pois, nem sempre, doutor, nem sempre! Este
— A republica não basta povo, que moureja de sol a sol e passa a vida sob
P’ra esmagar o Capital! a canga, como um boi á nora; este povo, que ga-
nha de dia para comer á noite, mal remunerado,
O dlim, dlim, fica a cargo do Albino Forjaz mal alimentado, mal vestido, não póde tomar
que deve estar por ahi perto a afinar a guitarra a Vida a rir, pela simples rasão de que só é ale-
da sua mordacidade, e á escuta da nossa conver- gre quem póde e não é alegre quem quer. E on-
sa... — Até á semana, doutor. de predomina o soffrimento, a alegria não appa-
rece de quando em vez, mas de longe a longe!...
III É um pallido reflexo de alacridade, um fugitivo
Creio ter demonstrado sobejamente a v. ex.ª relampago de alegria que raras vezes brinca nos
o que é o Fado: o rythmo cadencioso do verso, labios do povo e que difficilmente consegue de-
conjugando-se com a harmonia dulcissima da sanuviar-lhe a peculiar tristeza!
musica. Sem embargo, diz o cidadão Felix que A Canninha Verde!!!... — Ora que desacato,
«o Fado é triste e faz mal ao figado»! doutor! V. ex.ª sabe que as canções teem, em
É curioso, doutor! E v. ex.ª vae, por certo, ex- geral, como os individuos, as sua physionomia
plicar-me na sua Hygiene Pratica a origem d’este propria, a sua côr local. Logo, a Canninha Ver-
phenomeno extremamente engraçado: durante 15 de fica fica muito bem nos labios rubros das mu-
annos, interruptos, eu cantei o Fado em toda a lheres do Minho, mas nunca na bocca mimosa
parte: no palco, na associação, nas hortas, na ta- da gentil costureirita de lisboa, a quem 12 horas
berna, na rua, no lar das familias — operarias ou consecutivas de atelier roubam o vigor para sa-
burguezas — no restaurant, no mar e... até em patear o Fandango, no 4.º andar da sua pobre
caminho de ferro! É bom accrescentar que, ape- mansarda — nem a visinhança lh’o consentia! —
sar d’esta effervescencia da mocidade, que me ou para estropiar a Canninha Verde, para o que,
impellia á propaganda pela trova, eu não fui nun- decididamente, lhe faltariam o gajé, a desenvol-
ca souteneur, nem vadio, nem desordeiro, nem tura, e até a maneira de pronunciar, caracteristi-
bebedo, nem, syphilitico — sou um Fadista com cas das filhas do Minho!
sorte, não acha? — e, a não ser bexigas doidas Não acha que tenho rasão, cidadão Felix?
e sarampo, que tive quando era «menino e mo- O Minho, o Alentejo, o Algarve, etc.; teem as
ço», nunca fui, felizmente, atacado de qualquer suas canções proprias, locaes, o que não obsta a
doença. Todavia — e aqui é que está o engraça- que o Fado se cante do sul para o norte do paiz,
do phenomeno — casei há tres annos e... minha por isso que é, e será sempre, a canção nacional.
mulher é que sofre de figado!... No emtanto, é em Lisboa que elle tem mais vo-
É o caso de se dizer: d’um lado está o ramo e ga, porque não ha meio de nos habituarmos á
do outro é que se vende o vinho... sanfona horripilante do harmonium, nem ao Vi-
Eu, que abusei da triste canção, nada padeço; ra, que, sem duvida, é muito agradavel cantado
minha mulher, sem que a cantasse, soffre do fi- e dançado por uma bonita ovarina, bem forni-
gado! Esta só pelo diabo!... Será contagio, dou- da de carnes e de largas ancas. Na capital, ápar-
tor?... V. ex.ª explicará, pelo que lhe fico immen- te uma ou outra trova usada nos bailaricos de
samente reconhecido... roda — mais proprios de creanças — ou esta ou
281
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
aquella copla de operetta ou de revista, o que Pela minha parte está desculpado o distincto
prevalece é o Fado. medico. Resta-me, porém, pedir ao dr. Felix que
Mas — diz v. ex.ª — o Fado é a canção do vi- perdôe ao seu collega Samuel Maia tão grande
nho! Como se, para a gente se embebedar, fosse e horrivel crime... Seja indulgente, doutor, sim?
preciso sobraçar uma guitarra! Admittamos, po- Aquilo creio eu, foi pinguinha a mais... e um des-
rém, que é assim. E, n’esse caso, queira v. ex.ª to- cuido qualquer tem!
mar nota d’esta pleiade de bebedos illustres, que Ai! Doutor, depois d’essa historia, valha-nos o
teem contribuido com o seu altissimo talento pa- santo umbigo do Menino Jesus... e mais partes
ra que o Fado mais e mais se alastre e enraize na adjacentes da immaculada creança!
alma popular: — Bocage, João de Deus, Bulhão E até domingo.
Pato, Guerra Junqueiro, Antonio Nobre, João Pe- *
nha, Gomes Leal, D. João da Camara, Antonio Post-scriptum. — Depois de composto o que aca-
Correia de Oliveira, Hylario, Augusto Gil, Faus- ba de lér-se, vejo na secção Hygiene Pratica, d’O
to Guedes Teixeira, Affonso Lopes Vieira, Julio Seculo, sob o titulo O choradinho, mais umas
Dantas e tantos outros novos e velhos! palavras do dr. Felix condemnando o Fado. Sua
Que sucia de alcoolicos, hein, doutor?... Quan- excelencia, porém, não diz nada, ou antes, diz
tos cifões de soda não seriam precisos para fa- sempre a mesma coisa. Como defeza, é tão fraca
zer com que elles vomitassem as centenas de for- e triste, que lembra a agonia de um tuberculoso...
mosissimas quadras que o povo estuda, apren- Nada d’aquillo deita abaixo a exposição clara e
de e canta, e que, como é obvio, tiveram a sua precisa que eu tenho feito em tres numeros d’A
origem no portentoso alambique de tão excelsas Voz do Operario. E basta só a citação de hoje so-
intelligencias! bre a inauguração da casa da Nutricia, para que
E o maestro Fillipe Duarte?! Que grande bebe- a defesa do dr. Felix fique reduzida á condição
deira elle tinha quando escreveu aquella mimosa de um papel amarrotado, que jamais poderá vol-
e linda partitura da peça O Fado, representada tar á fórma primitiva, por muito que o engom-
no theatro Apollo! mem ou mettam na prensa.
Ora esta gente sempre faz cada uma com a ce- No proximo numero falaremos.
gonha!... E para isto não há policia!... Maro-
tos!... IV
Antes que me esqueça, como estou com a mão Palavra de honra que cheguei a suppôr que v.
na massa, vou acrescentar a lista dos bebedos ex.ª tinha perdido a falla por completo! Enganei-me,
com mais um nome de destaque na Sciencia. Este porém, e, com tristeza o digo, melhor seria que v.
caso que vou narrar e que recommendo á acui- ex.ª não tornasse a fallar sobre o choradinho...
dade de espirito de v. ex.ª , e á sua extraordina- Ha um proverbio que diz: o calado é o melhor,
ria subtileza de observação, foi-me contado e ga- e o dr. Felix faria excellente figura se não se tem
rantido como authentico, por um amigo meu e fallado. É certo que não se me dirige directamen-
do Fado — porque o certo é que cada vez há mais te, talvez receoso de me fazer réclamo, bem co-
bebedos — que me auctorisou a dal-o a publico: mo á Voz do Operario. Pelo que me diz respeito,
Quando se inaugurou a primeira casa da Nutri- dispenso o réclamo, não só porque não pretendo
cia de lisboa, houve uma festa para os lados da es- evidenciar-me, — se bem que vivamos n’uma ter-
trada de Malpique, onde se comeu, bebeu e cantou ra em que a empenhoca faz subir muitas mullida-
o Fado. V. ex.ª deve saber d’isto... porque assistiu á des eguaes a mim... — como tambem não tenho a
festa. Pois n’esse alegre convivio de pessoas de re- pretenção de arranjar emprego chorudo... Já ago-
presentação, o ilustre collega de v. ex.ª, dr. Samuel ra serei typographo toda a vida. Quanto á Voz do
Maia, não resistiu... e tambem cantou umas qua- Operario, vae vivendo com os seus 52:000 leito-
dras ao som do Fado! E esta?!... res, e muito bem!
282
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Posto que v. ex.ª não se me dirija directamen- Isto é a prova provada — se me é permitido o
te, desde que na sua pallida e apagada defeza pleonasmo — de que o suicidio não tem discus-
se refere aos fadistas sem navalha e ás alforre- são, e que tanto póde ser um gesto de coragem
cas magras, ipso facto se refere á minha humil- como um acto de cobardia, sendo, aliás, sem-
de pessoa. pre, uma manifestação de desespero! Ninguem
Alforreca magra, é commigo! Mas esteja o dr. se mata por ter cantado o Amor — com ou sem
Felix descançado, que eu espero engordar dentro guitarra — mas todos podem matar-se saturados
em pouco por meio das «farinhas e mais produc- de soffrer! Assim é que é.
tos ultra-superiores da Nutricia». Antes, porém, E, de resto, o segredo do suicida parte com elle
engordarão as algibeiras de v. ex.ª, em conse- para o tumulo, e a ninguem é dado — por maior
quencia da sua dualidade de medico e commer- medico ou sabio que seja — desvendal-o ou cri-
ciante da citada Nutricia de Lisboa. tical-o, em nome da «salubridade mental»!
Na sua pallida defeza não fez o cidadão Felix Em contraposição á opinião do sr. Antonio Ar-
mais do que repetir o que o Fado já tem dito: «que royo, que sente um grande desgosto quando ou-
cheira a vinho, que sabe a aguardente, que pede ve uma senhora de fina educação cantar o Fa-
Limoeiro», e tutti quanti... Tem o dr. Felix, ao do, eu acho preferivel que as senhoras educadas
que parece, a mania de bisar, no que está em de- cantem sempre essa trova tão singellamente por-
saccordo com o sr. Lambertini — outro que não tugueza, a ouvil-as estropiar Chopin ou Beetho-
gosta de Fado — que já em tempos condemnou ven... ao piano. Além de que, opiniões sobre o
o Bis na sua revista Arte Musical. Quanto á opi- Fado — depois da morte do inspirado Cyriaco
nião do sr. António Arroyo, ella não me espanta, de Cardoso — deve o dr. Felix pedil-as aos ma-
por dois motivos: Primeiro, porque o illustre mu- estros que mais de perto vivem com o povo: Fi-
sico é um aristrocrata, e conhece tanto a vida do lippe Duarte, Del-Negro, Calderon, Luz Junior
povo — junto do qual nunca desceu, como Zola Luiz Filgueiras e outros que, tão fundo, conhe-
desceu á mina para fazer o seu Germinal — como cem a deliciosa melodia, não esquecendo es-
eu posso conhecer a côr do estofo do rico edre- sa impagavel figura de bohemio que é o distinc-
don que, certamente, deve adornar o thalamo de to professor de guitarra, Reynaldo Varella. Por-
s. ex.ª. Segundo, porque para o distincto musico que, assentemos n’isto, doutor, e fica dito tudo:
— que se fartou de achar defeitos n’A Portugueza Quem da leis na sciencia são os medicos e sa-
— supponho que não há nada nacional, a não ser bios, e quem manda no fado são os trovadores,
a sua partitura do Amor de Perdição... E — ca- os poetas e os artistas!
so extranho! — muito me admira que s. ex.ª, de Póde v. ex.ª deitar abaixo a pratelleira da te-
accordo com o dr. Felix, não visse uma «piegui- chnologia medicinal e mancommunar-se com os
ce amorosa e alambicada» n’esse soberbo traba- srs. Arroyo e Lambertini, que não conseguirá
lho de Camillo! Sim, é bom notar que a base da matar o Fado! Tem v. ex.ª tanto poder para is-
obra é o Amor, e o seu auctor, por via d’essa pie- so, como eu — pobre pygmeu — posso ter poder
guice, mata uma mulher e dois homens, e, ainda para demolir a Sciencia!
por cima, enlouquece provisoriamente a filha do Mas, diz v. ex.ª com a sua systematica teimo-
João da Cruz! Não irá isto contra a «salubridade sia, que o Fado é o causador de todos as desgra-
mental» que v. ex,ª preconisa, chegando a censu- ças, de todos os males e de todas as desventuras
rar os suicidas?... do povo... Tem razão, doutor. Formulemos já o
Parece que sim, tanto mais que, Camillo como nosso libello accusatorio contra esse enjeitado
Anthero, ambos se suicidaram, embora depois rescendente a tabaco reles e a vinho barato:
de corajosamente luctarem até á velhice com to- — Quem foi, que no tempo da extincta monar-
das as vicissitudes crudelissimas de uma existen- chia, depauperou o thesouro publico, alienou as
cia ulcerada de desgostos lancinantes e tragicos! colonias, accumulou empregos para os afilha-
283
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
dos, esbanjando criminosamente os dinheiros da pela ultima vez lh’o repito, cidadão Felix.
nação? Foi o Fado. (As más linguas é que deitam Se o fado não é nacional, por não ter origens
as culpas aos ministros...) celtas, tambem A Portugueza não é nacional,
— Quem estabeleceu este formidavel desequi- por isso que é mais nova! Mas, segundo se de-
librio social em que o maior numero trabalha prehende da leitura das mais novas! Mas, segun-
noite e dia, soffrendo todas as agruras da mise- do se deprehende da leitura das Poesias Selectas,
ria, e o numero menor tem palacios, sedas, au- do ilustre bibliographo dr. Henrique Midosi, pa-
tomoveis e todas as demais commodidades? Foi rece que o Fado deve ter nascido de uma can-
o Fado. ção que os ciganos chamavam Xacara — canta-
— Quem prostitue mulheres frageis e atira pa- da em tom plagente — e que foi imitada no se-
ra a valha purulenta da degradação e do vicio culo XVII. A ser assim — sem que eu pretenda
centenas de crenças debeis e famintas? O Fado. affirmal-o cathegoricamente — sempre o fado é
(Fica absolvida a D. Encarnação e quejandas pro- mais velhinho do que os outeiros de Odivellas e
xenetas similares...) a marmellada da amante de D. João V...
E, por este caminhar, podemos desassombrada- Seja porém, como fôr, o dr. Felix foi pouco fe-
mente attribuir ao Fado o terremoto de 1755, o liz em mexer no Fado. E, como até agora ainda
ultimatum inglez, a monomania traiçoeira e cons- não teve argumentos para rebater o que lhe te-
piratoria do Paiva Couceiro, a infame moda das nho dito, fica reptado a fazel-o quando quiser,
saias travadinhas, o ultimo eclipse do sol e... — is- fallando ou escrevendo.
to é que está certo — as asneiras do dr. Felix! O que deseja v. ex.ª? Sanear? Então deixe o Fa-
Ora, pois... paciencia, doutor! Só por chucha- do, doutor! Stymatise a porca Politica, essa ra-
deira!... meira que sustenta rufiões encasacados e promp-
Mas, pergunta v. ex.ª: «o Fado é nacional, por- tos a embebedar o povo com o champagne da
quê? Por ter nascido dentro da nação? N’esse ca- Patria... d’elles..., e que atirou com o grande her-
so teremos de erigir uma estatua ao primeiro pe- culano, enojado d’ella, para a solidão de Valle
gador de touros, como symbolo da energia na- de Lobos! Castigue com o latego da sua critica
cional!» os ricos proprietarios, os exploradores do povo
E eu respondo: — O Fado é nacional, porque faminto, á custa de quem medram! Condemne
nasceu dentro da nação, em primeiro logar; já o os jornalistas indignos que mentem ao povo, que
amigo Banana sabia que se o Fado nascesse no insultam, que mexericam na vida alheia, n’uma
estrangeiro, não era portuguez! Todavia, a prin- promiscuidade de pateo, com a mira nos dezrei-
cipal razão porque o Fado é coisa nossa, está sinhos do Zé que os sustente! Suba ás mansar-
n’esta affirmativa simples e irrefutavel: É nacio- das, aos tugurios sem ar e sem luz, ás desgraça-
nal, porque todos o cantam do norte ao sul do das e insalubres habitações de operarios, onde
paiz! E, como todos o cantam — e v. ex.ª tam- fenecem creanças, onde agonisam velhos, onde
bem, embora use da doutrina do Frei Thomaz campeia a tuberculose em toda a sua hediondez,
— é por isso que o Fado é, inquestionavelmente, com o seu tragico cortejo de fome, de lagrimas,
a canção nacional! Quanto á imagem do pega- de gritos de revolta e de desespero!
dor de touros, é tão pobresinha e descabida, que Assim, será v. ex.ª, simultaneamente, medico
quasi se torna superfluo mexer-lhe... No entan- do corpo e medico da alma! Irá depois, peran-
to sempre affirmarei que, quando muito, o pega- te os poderes publicos, erguer alto o seu protes-
dor de touros e tudo que com as touradas se re- to, em nome da Moralidade, da Civilisação e
lacione, só póde symmbolisar a brutalidade e a da Hygiene, contra a desegualdade, a torpeza e
estupidez indigenas. Eu não celebriso o fado que as infamias das classes dominantes. Esta é a sua
canta toureiros, nem o fado sujo do vicio e da missão. E deixe lá o Fado!...
lascivia. Celebriso o Fado que educa pela trova, Ah! mas eu estou plenamente convicto de que
284
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
o dr. Felix não fará isto, não só porque é apolo- E passe v. ex.ª muito bem, que eu tenho ali o
gista do muito riso pouco sizo, mas ainda por- sr. Albino Forjaz de Sampaio há quatro semanas
que não há de querer ir contra a opinião do seu á minha espera.
ilustre collega Samuel Maia. Este disse uma vez
n’O Seculo — burgueza e arrojadamente «que ALBINO FORJAZ DE SAMPAIO
os operarios deviam lançar mão de qualquer ou-
tro trabalho quando não tivessem que fazer pelo V
seu officio», e que, «quando não pudessem ga- Depois do dr. Felix ter levado o seu barril cheio
nhar vinte, se sujeitassem a ganhar dez». É es- — em sentido figurado, já se vê — seguindo a or-
pantoso, mas é assim! Eu, porém, desejava ouvir dem chronologica, está consequentemente á bica
o que me diria a Associação dos Medicos Portu- o auctor da Prosa vil.
guezes, se ámanhã, faltando-me o trabalho pela Eu conheço o sr. Albino Forjaz de Sampaio ha
minha arte, me mettesse furiosamente a curan- longos annos; ainda do tempo em que s. ex.ª usa-
deiro, concertando pernas, grudando braços, co- va uma grande cabelleira, que é, na nossa terra
sendo cabeças e receitando sinapismos a toda pelo menos, um authentico signal de talento, e
gente!... Passava á cathegoria de chineza dos bi- muitas vezes... de piolhos. Já uma vez a illustre
chos, pela certa. Eu queria vêr a carinha do dr. escriptora D. Olga Moraes Sarmento da Silveira
Samuel Maia, se, pela noite alta, eu o chamas- me perguntou, referindo-se á capillaridade sebá-
se para acudir a qualquer doença de pessoa de cea de muita gente boa, se seria preciso possuir-
familia e depois lhe désse — em vez dos 2$000 se uma grande trunfa abastecida de muita caspa
réis da tabella — porque os medicos não se con- e oleoso cosmetico, para se provar á humanida-
tentam com menos — cinco ou seis tostões, di- de que somos intelligentes!
zendo-lhe: tenha paciencia, sujeite-se... não pó- Não sei se será assim. O que sei, porém, é que
de ganhar vinte, ganhe cinco ou seis!... D’esta o sr. Albino Forjaz de Sampaio tem talento in-
vez, creio que ia para o Limoeiro, accusado de contestavel.
um crime maior do que o de cantar o Fado... No emtanto, precisamente porque
Ou s. ex.ª não fôsse o dr. Samuel Maia, por
alcunha o dr. Felix, medico e merceeiro da Nu- «Quando o fado é rigoroso,
tricia de Lisboa, para identificação do publico nada vale ao infeliz…»
que me lê!
V. ex.ª, há mezes, escreveu n’O Seculo uma tambem o talento de s. ex.ª de nada lhe valerá
Carta ao Sol, realmente bem escripta e extrema- para o caso de que venho tratando — ou seja a
mente espirituosa! Gostei tanto d’ella, que me defeza da canção nacional.
atrevo a aconselhal-o a escrever agora uma Car- Sobre este assumpto, o auctor das Palavras
ta á Lua. Fará v. ex.ª uma bella figura, como ho- cynicas apenas soube escrever cynicas palavras,
mem de espirito, e, sobretudo, deixará o Fado que eu diligenciarei contestar, embora n’uma
em descanço! Porque a questão é esta: emquanto prosa vil, por isso que não tenho tempo — co-
o dr. Felix escrever á Lua... a serenata passa: mo o sr. Forjaz — para andar de alcôfa e gan-
cho nas mãos, em guisa de trapeiro, buscando
Dlin, dlin, termos exquisitos nos diccionarios... Escreverei
Dr. Felix já não canta, o mais correntemente possivel, para que todos
dlin, dlin, me entendam, diligenciando não ferir a gram-
Está do peito arruinado... matica.
Só nos receita Nutricia O sr. Albino Forjaz de Sampaio escreve n’A
dlin, dlin, Lucta, onde costuma assignar uma chronica, ás
Para nos curar do Fado! quintas-feiras. (O réclamo é de borla). Ora, co-
285
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
mo o talentoso escriptor é muito capaz de cha- paio — que, certamente, como eu, daria tudo pa-
mar-me poeta de latão ou relles fazedor de cé- ra arrancar aos livreiros os versos errados que
gadas — do alto da sua tribuna de chronista — lá tem — foi sempre um pessimo poeta, embora
torna-se emprescindivel remontar a tempos idos, seja um prosador distincto. Mas, não se descon-
não só para avivar a memoria de s. ex.ª, mas, sole s. ex.ª: a culpa é mais dos editores — com
principalmente, para identificação do publico. raras excepções, manteigueiros que tudo com-
Há uns doze annos, se não estou em erro, um pram e vendem — do que nossa!
amigo meu — actualmente residente fóra de Recorda-me, tambem, que no dia da inaugura-
metropole — pediu-me para fazer-lhe um sone- ção das salas da redacção da revista theatral Fer-
to dedicado a uma festa de sport. Alinhavei os ros Curtos, de que fui o mais humilde dos colla-
mal amanhados versos como pude; receoso, to- boradores, s. ex.ª, sentado n’um divan, ao pé de
davia, de que estivessem mal metrificados, mos- mim, me pediu para que o levasse uma noite a
trei-os ao sr. Forjaz, que então frequentava a li- vêr ensaios de cégadas, porque tinha muito gosto
vraria Guimarães & C.ª, onde eu era caixeiro. em fazer um estudo sobre o assumpto. É possivel
S. ex.ª levou o pobre soneto para concertar, e que o sr. Forjaz, se não recorde d’isto, porque o
eu, no dia seguinte, fui buscal-o, já correcto, a dia era de festa e s. ex.ª estava um poucochinho
uma companhia de seguros da Baixa, onde o sr. entrado... — o champagne correra a expensas do
Forjaz estava collocado, e, muito grato pela sua distincto escriptor sr. Leandro Navarro, director
solicitude em servir-me, vim todo inchado com da referida folha — e não havia lá guitarra, diga-
a minha obra e conscio de que a sua correcção se de passagem...
era inexcedivel. Mais tarde, o sr. Albino Forjaz N’essa occasião disse eu ao sr. Forjaz, e de no-
fez publicar um soneto seu, dedicado á memo- vo lh’o repito, que os meus humildes trabalhos
ria de sua ex.ª mãe, e tendo na mesma plaquet- de carnaval eram despretenciosos versos para o
te — um mimo typographico impresso em bom povo, mas que encerravam uma certa critica e
papel — a traducção, creio que em quatro idio- um grande fundo de moralidade. Orgulho-me
mas. Qual não é, porém, o meu espanto, quan- d’elles, como me orgulho do Fado, e não me sen-
do ouço um poeta illustre dizer, ao lêr o traba- tirei offendido, absolutamente nada, se s. ex.ª,
lho do sr. Forjaz: E fez homem tanto réclamo a na sua chronica d’A Lucta, me alcunhar de ra-
esta coisa, para afinal lançar no mercado um so- biscador de cégadas.
neto errado! Como fadista, nunca usei outra arma que não
Fiquei com uma enormissima cara de parvo — fosse a penna humilde, mas honesta — e repare s.
maior do que a que já tinha e tenho — por per- ex.ª que nem todas as pennas o são! — com que
ceber que o sr. Forjaz, que, aliás, muito solicita- escrevo o melhor que posso e sei. E, fóra d’isto,
mente me concertára os versos, percebia tanto prezo-me de ser um operario laborioso e honra-
de metrica como eu! do, a quem toda a gente, e de todas as classes,
Vem isto a talhe de foice, para prevenir o ca- póde apertar a mão sem escrupulo. Eu é que não
so de s. ex.ª se lembrar — e é muito capaz dis- sei se a todos a apertaria... — permitta-se-me es-
so — de me chamar poeta de pechisbeque, pe- te orgulho, que é a minha única riqueza.
lo facto de eu ter no mercado livros com versos E agora vamos ao Fado.
errados. Tem v. ex.ª a monomania de desenterrar os mor-
O que succede commigo, succede com o sr. tos. Ha mezes, assim procedeu para com o fal-
Forjaz; e quem tem telhados de vidro... lecido escriptor Silva Pinto, o que levou o sr. dr.
Há, porém, uma differença: é que eu estudei a Carlos Amaro a dizer-lhe palavras asperas — que
metrica o mais que pude — e estou sempre es- não desejo recordar — nas columnas d’A Capi-
tudando — e hoje já deito tombas nos versos de tal. Agora, lembra-se v. ex.ª de desenterrar o ca-
quem menos sabe; e o sr. Albino Forjaz de Sam- daver da pobre Candida, camareira, com o fim
286
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
de embebedar meia Lisboa por meio do absyn- da a escala social, emfim! — porque aquella car-
tho estonteante do seu prodigioso espirito! ne tudo consente e para tudo serve!
Ora o extracto da Prosa vil, referente ao Fa- «Mas — dir-me-há v. ex.ª — ellas são desgra-
do, é tanto mais desprovido de senso e de ver- çadas porque querem; porquanto, não é raro
dade, quanto é certo que a pobre Candida nun- vêrmos bellas mulheres espadaúdas e fortes ás
ca cantou o Fado! portas dos prostibulos. Porque não vão traba-
Repugna-me, sobremaneira, bulir na carcassa lhar?»
da infeliz rapariga, cujos formosos olhos são, de Porque é tanto mais facil descer, quanto é diffi-
há muito, pasto dos vermes da terra. É, todavia, cil subir? Uma vez cahidas n’aquelle abysmo pu-
necessario que o faça, para que não passe sem rulento, prende-as lá o meio ambiente, a pro-
réplica o descabellado artigo de v. ex.ª. pria degradação, o proprio vicio. Raras são as
Se a Candida não cantava o Fado, o que tem a que, mais corajosas, conseguem escapulir-se; e,
canção com a Candida, ou esta com a canção? essas mesmas, são a cada passo apontadas a de-
Em face do confusionismo estabelecido no ar- do com desdem, tal como succede a algum raro
tigo de v. ex.ª — em que adrede se mistura o homem que se lembre de erguel-as até si e resti-
Fado-Canção, com o fado-meia-porta, já ago- tuil-as á honestidade!
ra mania dos moralistas... — uma pergunta se E quem prostitue a Mulher?
me offerece: V. ex.ª o sabe, tão bem como eu. Somos to-
O que pretende v. ex.ª criticar? A prostituição dos nós, os homens, os moralistas, os conscien-
ou o Fado que se canta? tes, os reis da creação! Saciada a nossa sensua-
Nada tem que vêr uma coisa com a outra. Va- lidade, desprezamol-as, damos-lhe um pontapé,
mos por partes. Visto tratar-se da Candida, im- e — como v. ex.ª faz á pobre Candida — falla-
plicitamente se trata de prostituição. Queira, mos desdenhosamente d’esses farrapos da mise-
pois, v. ex.ª depôr a guitarra e calar o dlin, dlin, ria humana, d’esses trapos sujos de que a cada
que eu no proximo domingo fallarei do que res- passo nos servimos, e que são — nem mais nem
peita ao prostibulo. menos — o producto directo da nossa infamia,
da nossa baixeza, da nossa indignidade!
VI Para mim, aquella corriqueira phrase expelli-
Ninguem ignora que a prostituta nasce tão vir- da por boccas conspurcadas e atirada á via pu-
gem e tão casta como as nossas filhas, as nossas blica através de verdes taboinhas: Adeus, ó sym-
esposas, as nossas mães e as nossas irmãs. Em- pathico! — não é a phrase banal que a v. ex.ª
purradas um dia para o tremedal do vicio, eil-as parece. É um grito de dôr, um poema de ago-
perdidas para sempre, chafurdando no oppro- nia acerba, uma lagrima de amargura, em que,
brio, na ignominia, na mais degradante das ab- n’um momento de uma rapidez célere, a infeliz
jecções: — Vender o corpo. photográpha toda a magua do presente e quan-
Então, a multidão ignára, chasqueia-as, dirige- ta saudade revivida de uma infancia longinqua
lhes vaias, insultos, imprecações, e os homens — e serena!
os homens! — transpôem o limiar do alcouce e Isto é a prostituição! O miseravel exercito em
lá vão, a troco d’uns miseraveis vintens, saciar, que serviu a pobre Candida!
n’um corpo insensivel, toda a sua lascivia, toda É muito facil ser critico, sr. Albino Forjaz de
a sua animalidade bestial e nojenta! E a desgra- Sampaio! E é exactamente por isso que v. ex.ª
çada — perfeito vasadouro publico — esconde, diz, com emphase desprezativa, ao referir-se á
debaixo da mascara de tinta que lhe cobre o ros- infeliz mulher, no extracto da sua Prosa vil:
to, toda a sua magua, toda a sua dôr, afivelando
um sorriso pallido, para agradar ao dandy, ao Morreu a Candida, camareira...
vadio, ao faquista, ao operario, ao rufião, a to- ... E tão convincente era o elogio jornalisti-
287
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
co, que mais parece que a Candida era cá da ga morreu, e das quaes a imprensa se serve para
classe. armar aos lepes do Zé papalvo. Segunda, porque
Põe a gente a lama a meia haste, não há re- o sr. Albino Forjaz de Sampaio não tem auctori-
medio! dade moral para condemnar o Fado.
E vou provar-lh’o.
Não era, não senhor, ilustre critico. A Candi- V. ex.ª deve lembrar-se — a não ser que o bar-
da não pertencia lá á classe dos jornalistas, fe- beiro, ao cortar-lhe a emmaranhada, cabelleira
lizmente para ella! Será facil, talvez, polluir o de outros tempos, lhe cortasse tambem a memo-
corpo de uma mulher, mas prostituir-lhe a al- ria... — de quando frequentava a taberna do Al-
ma custa mais! Eis porque a Candida não era faya, ali ao Bairro Alto, e mostrava uns versi-
lá da classe. No triste commercio d’essa indito- nhos de pé quebrado, que então rabiscava, a um
sa rapariga aluga-se o corpo, vendem-se os bei- amigo commum de nós ambos. N’essa epocha
jos. Ao balcão da imprensa, porém, mercadeja- dizia v. ex.ª que o fado muito lhe agradava e que
se a consciencia, prostitue-se a alma, vende-se a era a melodia que melhor se coadunava com o
penna, ignobilmente, a quem mais dá, n’um lei- seu temperamento de neurasthenico!
lão ignominioso e tristissimo! E, com esses versinhos e outros que fez, canta-
É claro que, d’estas porcarias vis, affasto eu, va o sr. Forjaz furiosamente o Fado, no convivio
com o devido respeito, os jornalistas dignos, intimo de amigos. Ainda está vivo, felizmente, o
honrados e sérios, que ainda os ha. Parece-me meu amigo João David — excellente guitarrista
ouvir agora o illustre Silva Pinto, referindo-se a e um dos melhores dedilhadores do dlin, dlin —
um dos taes, com aquella simplicidade orgulho- que se fartou de tocar para v. ex.ª cantar, em lan-
sa que o caracterisava: — Eu, que apertei a mão guidos fados balladas, os seus versos de neuras-
a Camillo Castello Branco, chego a envergonhar- thenico fadista! Possue elle uma photographia
me de ser jornalista, por ser forçado a chamar — que não dou a publico, por não estar em esta-
collegas a pulhas d’este quilate! do de ser produzida em gravura — tirada á me-
De resto, não seria preciso que Silva Pinto as- sa d’um parente de um solicitador conhecido em
sim falasse. Já Balzac, na sua Comedia humana, Lisboa, onde figuram a guitarra, v. ex.ª e a sua
traçou com mão de mestre o perfil dos taes! cabelleira, depois de ter passado horas agrada-
* veis, de livro espetado na dextra, a cantar o ri-
Ora a destrambelhada creatura — como v. ex.ª goroso que hoje pretende condemnar!
torpemente chama á Candida — nunca cantou o Que auctoridade moral tem, pois, v. ex.ª para
Fado. Logo, o sr. Albino Forjaz de Sampaio sal- dizer mal do Fado?!
tou por cima da verdade, como rolha de cortiça Oh! Albino!
por sobre a crista das vagas. Oh! Forjaz!
Feia coisa é a mentira, sr. Forjaz. E v. ex.ª men- Oh! Sampaio!
tiu com inandito descaro, talvez pelo simples Oh! Albino Forjaz de Sampaio! Em que becco
prazer de botar figura e alcançar novo trium- sem sahida, se metteu!
pho no cultivo das lettras patrias! Ephemera glo- Desejará v. ex.ª agora fazer acto de contricção,
ria essa! Se v. ex.ª conta entretecer a sua corôa á laia de Magdalena arrependida? É possivel.
de louros com esse pedaço de vil prosa, já mais Ah! Mas eu é que não serei Christo complacen-
se guindará á posteridade! te que lhe perdôe o arrojo de condemnar a can-
O sr. Forjaz forjou muito mal o seu artigo, por ção nacional, depois de se desunhar a cantal-a
duas rasões: Primeira, porque a Candida não furiosamente!
cantava o Fado, e a celebridade quer os collegas Tenha o meu fadistal collega paciencia, mas
de v. ex.ª, na imprensa, lhe deram á hora da mor- há de ouvir-me! Ou, então, não afinasse a gui-
te, foi devida ás circumstancias em que a rapari- tarra...
288
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
que se deve á penna do immortal poeta Manuel pretende affirmar o snob sr. Paulo Osorio, que,
Maria Barbosa du Bocage. E não vale a pena n’uma carta de Paris para O seculo, referindo-se
transcrever tambem as glosas do sublime Elmano, á apresentação do quadro de Malhôa no Salon,
porque a quadra chega para desmentir a nescia diz que os estrangeiros não gostam do fado, nem
affirmativa de v. ex.ª. — Mais aladroada, forte, mesmo do de luva branca cantado por estudan-
batalhadora e féra, não póde ser! tes! O sr. Paulo Osorio — especie de dandy das let-
Quanto á phrase sentimentalidade canalha, tras, doido por luvas e talvez por espartilhos — é
que o sr. forjaz attribue a Camillo, resta-me sa- claro que prefere ao Fado — e supponho que ao
ber se ella não seria arrancada ad hoc de qual- trabalho que é bom para pretos — quedar-se enlu-
quer livro do Mestre, para ser encaixada no ar- vado, espartilhado e embevecido a olhar as ele-
tigo de v. ex.ª. O que sei, porém, é que o notá- gantes da Rue de la Paix, ou a binocular aphro-
vel auctor da Mulher fatal tocava guitarra e can- disiacamente as formosas parisienses na Come-
tava os seus versos, segundo o affirma o sr. Al- die ou no Vaudeville!
berto Pimentel no seu livro Amores de Camillo. E para comprovar a falta de senso do sr. Paulo
É, por consequencia, incontestavel que Camillo Osorio e dos demais detractores do Fado, bas-
Castello Branco tambem foi vadio! ta recordar os applausos recebidos pela illustre
Vou pôr ainda deante dos olhos de v. ex.ª uma divette — velha, mas sempre rapariga — Mer-
carta há dias recebida, escripta pelo distincto cedes Blasco, em Hespanha, em frança e na In-
guitarrista sr. Diamantino Mourão, que, sentin- glaterra!
do-se justamente melindrado nos seus pruridos Obtempera v. ex.ª, porém, que o Fado subiu
de artista de merito, m’a enviou para esta redac- até aos fidalgos, quando os fidalgos desceram
ção. Eil-a na integra: até aos fadistas.
É uma grande phrase e de seguro effeito para fi-
... Sr. — há vinte e tres annos que eu, no nosso paiz nal de acto!... Olvidou-se, no emtanto, o sr. Forjaz
e no estrangeiro, tenho sido um incançavel propa- de accrescentar que os fidalgos, descendo até ao
gandista da bella musica o Fado, executando-o no povo, honram-se! É o povo, com o seu braço pro-
instrumento a que elle é mais adequado — a gui- ductor, que lhes pinta os brazões, que lhes construe
tarra. os palacios, que lhes manufactura os automoveis
Pois, em toda a parte onde me fiz ouvir, fui sem- e lhes prepara o bem-estar, em que vivem parasita-
pre victoriado com enthusiasticas manifestações riamente. E os fidalgos, levando o Fado para os sa-
de applauso, conforme posso provar com os jor- lões, depois de confraternisarem com os filhos do
naes que ainda conservo e nos quaes se fazem as povo, levaram implicitamente o mais bello pedaço
mais bellas referencias ao Choradinho e Corri- da alma popular! Fundiram no mesmo amplexo a
dinho. alma plebêa e a aristocratica! Eis porque o Fado
Esta minha carta tem unicamente o fim de lhe di- se nacionalisou. Fidalgo foi D. João da Camara e
zer que, não tenho a honra de conhecel-o, o feli- tantos outros artistas da penna! E nenhum d’elles
cito pela sua campanha levantada, em favor do se envergonhou do Fado nem do Povo! Pouco im-
Fado, n’A Voz do Operario. Os seus artigos, que porta, pois, que o sr. Forjaz se enjoe agora... á laia
tenho lido com todo o interesse, são a verdadeira de fadista arrependido!
execução do sr. dr. Felix. Descendente de reis e imperadores, é Kropo-
Nunca as mãos lhe dôam! tkine; e, todavia, abandonou um throno e to-
das as grandezas para descer até ao povo, a en-
Esta carta, como se vê, não só valorisa o Fado, sinar-lhe a sublime sciencia da perfectibilidade
como serve para mostrar aos seus detractores humana!
que, em toda a parte, elle é apreciado — no nos- Matar o Fado, seria matar a Arte! Seria me-
so paiz e no estrangeiro — ao contrario do que nosprezar a melodia, menoscabar tudo que de
290
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
mais artistico e sensibilisador ha na musica: — Albino Forjaz de Sampaio critica o Fado, como
a Harmonia! Destruil-a, é destruir Bach, é des- criticou o grande Silva Pinto depois de morto!
truir Wagner, é amesquinhar Beethoven, é truci- Está peor da pinha!
dar Chopin!
Morta a Harmonia, morrem inevitavelmen- Não será, portanto, á falta de guardanapos que
te a Walkyria, a Avé-Maria de Gounod, a Ca- v. ex.ª deixará de se assoar...
valleria Rusticana.
Deixe-se d’isso, sr. forjaz! Que quer v. ex.ª que VIII
ensinemos ás nossas costureiritas, — que, aliás, Estou archi-espantado do silencio de v. ex.ª!
nada teem com bailhões, como o sr. Forjaz pre- Nem sei mesmo como interpretal-o!
tende — ás nossas mulheres, ás nossas filhas? V. ex.ª, que tão facilmente sahiu á estacada
Havemos de ensinal-as a fazer... cançonetas? Es- condemnando o Fado, fazendo d’elle uma coisa
tá n’isso a Moralidade? Lá me parece estar ven- horrorosa e tragica, e analysando-o, por assim
do v. ex,ª, com dois centimetros de lingua fóra dizer, com a sobranceira philosophia de Schope-
da bocca e azuladas olheiras de onanista insatis- nhauer, embora com uns laivos do humorismo
feito, assoberbado por um lampejo de esperança de Democrito calar-se agora, que mais precisava
de posse, n’um espasmo de goso, fitando os re- defender-se e á sua prosa, é caso para perguntar-
quebros canalhas e a beleza plastica de qualquer lhe: Que fez o sr. Forjaz á phosphorescencia bri-
chanteuse de contrabando, em theatro barato! lhante e pérfida da sua critica? Porque não abre
Oh! O maillot, o maillot!... Que tentação! v. ex.ª a valvula do seu espirito scintillante e stoi-
E, terminando por hoje, recommendo ao sr. co, com que costuma deliciar as turbas maravi-
Forjaz a leitura do jornalsinho O Fado — por- lhadas dos requintes deliciosos da sua prosa? Te-
que os fadistas tambem teem o seu orgão na im- rei eu de me rir de v. ex.ª, como Moliére se ria
prensa! — para que possa apreciar as verdades dos pedantes literarios?
que lhe diz o meu presado amigo Luiz de Athay- O dr. Felix atacou o Fado e retrahiu-se cobar-
de. demente, fugindo á discussão. V. ex.ª, pelo que
E já agora, como todos lhe chegam, transcrevo vejo, usa da mesma pusillanimidade. Curioso
do jornal A Lanterna, dirigido pelo meu amigo e paradoxo: o homem que cantou o Fado e muito
popular escriptor Arthur Arriegas, e por elle es- gostava d’elle, não sabe o que é o Fado!
cripto, este trecho: Tinha rasão Voltaire, quando disse: — A peor
das ignorancias, é a ignorancia dos criticos. E v.
A guitarra, na bocca de certa gente, é um ins- ex.ª prova a sua ignorancia sobre o assumpto,
trumento bandalho, porque nasceu na taberna. fugindo ao criterio positivista da analyse pela
O piano é filho da élite, mas tambem entra nos polemica, que tinha o dever inadiavel de estaba-
cafés de camareiras e nas salas das meretrizes; lecer. Diz Goethe que quem não tem o seu boca-
como outr’ora houve um na rua do Crucifixo, dinho de vaidade, póde ir enforcar-se; e o sr. For-
em casa da celeberrima Lavradeira... jaz, respondendo-me, teria occasião de envaide-
O piano desceu ao lupanar. cer-se com o brilho irradiante da sua prosa, ao
pé da qual a minha fica a perder de vista!... A
A guitarra elevou-se aos salões da aristocracia- minha prosa é humilde e desataviada; veste mui-
fadista... to á portugueza, de chale e lenço; pouca figura
A critica do dr. Felix, ao Choradinho, só póde faria, pois, junto da de v. ex.ª, que traja sáia tra-
ser tomada como réclame á sua Nutricia, ás fa- vadinha e chapeu de plumas...
rinhas que eu não tomo, apesar do meu pade- De há muito que o sr. Forjaz é para mim um ar-
cimento intestinal, porque já as experimentei tista de molduras reluzentes e vistosas, mas um
sem resultados satisfatórios... fraco pintor de télas, onde a nudez forte da Ver-
291
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
dade se case e harmonise com o manto diaphano que fosse, pelo menos, trabalhador honrado co-
da phantasia. E v. ex.ª sabe que um Rubens ou um mo elle. Sem embargo, se não teve um pantheon,
Rembrandt, mesmo encaixilhados em tosca mol- gosou a felicidade suprema de ouvir da bocca
dura de pinho, são sempre télas de valor incontes- de Guerra Junqueiro palavras de infinita doçu-
tavel; ao passo que uma moldura, artisticamente ra, elogios de requintada sinceridade, á sua obra,
feita, bem dourada e cheia de rendinhados formo- á sua intelligencia de analphabeto, que, n’um es-
sos, não póde valorisar uma oleographia mediocre forço supremo de cerebrisação inculta, soube ar-
que lhe sirva de recheio! Eis o que se dá com as rancar da Iyra d’alma — a mais honesta e rica de
criticas de v. ex.ª, — principalmente com a que se todas — maviosissimos sons, a que a prosa vil de
refere ao Fado — a moldura é bonita, mas a téla v. ex.ª não chegará nunca! Guerra Junqueiro ou-
não vale nada. Ou, n’uma imagem mais chã: tudo viu o pobre Calafate, com aquelle recolhimento
côdea e nada de miolo, que é como quem diz: por proprio do seu altissimo espirito. Mas creio que
fóra cordas de viola... se conserva surdo ante os guinchos gutturaes de
Supponho, todavia, que o sr. Forjaz ainda me criticos paranoicos, e cego para as cabriolices e
ha de responder. E, se o não faz agora, é sem cambalhotas obscenas de certos palhaços da lit-
duvida, para não falsear o seu programa. V. ex.ª teratura indigena!
habituou-se a desenterrar os mortos, e, por es- Assim é que está certo.
ta rasão, estou plenamente convencido do que o Quanto a vivermos n’um paiz de correcciona-
sr. Forjaz está á espera que eu morra para então es, parece-me exaggero. Se assim fosse, não an-
dizer de sua justiça e atacar-me criteriosa e va- dava v. ex.ª á solta, pelo menos depois das lindas
lentemente... mentiras que disse sobre o Fado...
Atinei?... Então lá espero na valla commum e Tolstoi disse que a disciplina é a Morte da Ra-
no silencio sepulchral da campa fria... — até dá são e da Liberdade. E eu, como sou um indis-
vontade de dizer isto a cantar! — que o ilustre ciplinado, atrevo-me a dizer que os portugue-
ex-cabelludo fadista vá exhumar-me, para então zes, chorando por Miguel Bombarda, pranteiam
me fazer a autopsia!... menos o patriota e o tribuno, do que o alienista
Antes d’isso, porém, como a morte está certa, insigne. Tenho todas as rasões para julgar que
vamos á vida, isto é, ao resto do extracto da sua todos nós choramos, n’essa perda irreparavel, o
Prosa vil: grande psychiatra, o medico illustre, o eminente
director do hospital de Rilhafolles!
Está-se a vêr pedir um logar no pantheon para o Fez muita falta, fez! O desequilibrio mental da
Calafate. maioria dos criticos da nossa terra perdeu, com
a sua morte, a esperança da cura...
Assim diz, desdenhosamente, o sr. Forjaz. E Refere-se o sr. Forjaz ao poeta francez Bruant,
accrescenta: em cujas canções, diz, se faz a apotheose do Cri-
me. E — comparando-as ao Fado — accrescenta
Esta apotheose não admira n’um paiz de correc- v. ex.ª que ninguem chamará nacionnaes a essas
cionaes. canções, porque, quando muito, canção nacio-
nal é a Marselheza!
Não está certo. Ora eu não conheço o livro Dans le Rue do po-
O velho respeitavel que se chamou Calafate, eta Bruant. Isso, porém, não obsta a que eu affir-
foi toda a vida um famelico, um operario ho- me cathegoricamente que tambem não conheço o
nesto, um fautor da riqueza publica, um escravo Crime!
preso á gleba, como eu. Nunca aspirou a ter um Que vem a ser o Crime, sr. Forjaz de Sam-
pantheon que lhe guardasse os ossos, aliás, tão paio?
veneraveis como os de qualquer outro mortal É Bonnot? É Garnier? É o roubo de uns tos-
292
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
tões, o furto de um pão, o estado morbido d’um Mas o sr. Albino Forjaz diz, com aristocrati-
cerebro obtuso, impulsionado pelo desespero da co desdem, terminando o seu mentiroso e balo-
miseria, que mata, allucinado? fo artigo:
É isto o crime? Será para v. ex.ª. Para mim, o
Crime está do lado opposto. Está na organiza- O Fado, canção nacional? Que o fado seja da
ção social, em que o Luxo insulta impunemente canção da minha rua, se eu morasse na traves-
a Miseria. O Crime está precisamente no casti- sa da Agua de flôr, vá; mas que elle seja a canção
go e na repressão! da minha patria!?...
O crime, é Montjuich em Hespanha; é Toulon Só agora reparo que ia tomando isto a sério. Vá,
e a guilhtina em França; é a guerra italo-turca; é continuem, meus senhores. Iamos nós...
o ataque á Casa Syndical de Lisboa; é o encerra-
mento na Penitenciaria, de operarios indefezos; Quando o fado é rigoroso
é o decreto das gréves do sr. Brito Camacho — nada vale ao infeliz...
protector, amigo e patrão de v. ex.ª — é a explo-
ração do homem pelo homem; é a tremenda de- A Candida, a Candida, é que cantava isto na per-
segualdade social que gera todas estas iniquida- feição.
des inqualificaveis e dissolventes! Isto é que é o
Crime. Mas, ao lado d’este crime, está v. ex.ª na Eu estou mesmo a vêr d’aqui que o sr. Albi-
Lucta muito democratica e camachianamente! E, no Forjaz de Sampaio — enojado da travessa da
tanto assim, que applaudiu essa infame cobar- Agua da Flôr — habita, por certo, n’algum ri-
dia praticada em Paris, onde 2:000 homens ar- co palacete de architectura bysantina, em bair-
mados não duvidaram ir contra dois, dando ao ro aristocratico! É muito possivel que assim seja,
mundo o espectaculo mais anti-civilisador, igno- desde que o Senhor do Calhariz o transformou,
bil e nojento que um cerebro de criminoso po- de simples fazedor de sommas por escriptorios
deria idealisar! da Baixa, em chefe archivista do ministerio do
Pelo que respeita á Marselheza, é simplesmente fomento!... Todavia, nos bairros aristocraticos
irrisoria a opinião do sr. Forjaz, acoimando-a de tambem ha prostitutas, com a aggravante de se
canção nacional. A affirmativa é tão pueril, que confudirem com as senhoras sérias, por isso que
cae pela base, ao menor sopro! O Calafate ou a umas e outras se vestem pelo ultimo figurino e
Candida, camareira, eram incapazes de conhecer todas arrastam sedas ao rigor da Moda... Ao
tão asnatica banalidade! Basta saber-se que a Mar- passo que na travessa da Agua de Flôr mais fa-
selheza é um hymno nacional, e os hymnos nacio- cilmente se distinguem as rascôas de sapato de
nais teem, em geral, a vida ephemera das institui- verniz e saia vermelha da muita gente séria que
ções. O hymno da carta cahiu com a monarquia; a lá móra. Parece-me, portanto, mais perniciosa a
Marselheza há de cahir com a republica, para dar promiscuidade dos bairros ricos... A gente não
logar á Internacional, certamente a sua sucesso- as conhece!...
ra! Ao passo que as canções nacionaes vivem sem- Há tanto ladrão de casaca e chapeu alto, tan-
pre! E, por viver ha seculos, transmigrando de ge- ta rameira emplumada e bem vestida!... Vá lá a
ração em geração, sempre arreigado — com mais gente adivinhar!... De resto, as heroinas de Al-
ou menos variantes — na alma popular, é que o phonse Daudet e de Alexandre Dumas, são per-
Fado é a canção nacional. Percebeu, sr. Forjaz? O feitamente eguaes, em mercantilismo de caricias,
Fado vive — pelo menos emquanto viver Portu- a todas as meretrizes da terra. Tanto faz chama-
gal, vá lá esta affirmativa patriotica de quem não rem-se Margarida Gauthier, como Severa; Sa-
é patriota — como canção nacional, e nem v. ex.ª pho, como Candida. A prostituição não deve
nem o dr. Felix, nem que seja quem fôr, serão ca- ter gerarchia, creio eu! É uniforme, homogenea,
pazes de matal-o! egual. Infamissima rameira foi Leonor Telles e,
293
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
no emtanto, sentou-se no throno de Portugal! Is- E os pequenos entendem tão bem o Fado, que
to prova — sem contestação possivel — que, se o tomaram como canção nacional, presentean-
as casas da travessa da Agua de flôr, ou de qual- do os grandes com elle. É assim que hoje todos
quer bairro pobre, teem abrigado corpos pollui- o cantam. E eu, que sei que dentro d’elle cabem
dos de mulheres perdidas, os palacetes dos bair- todas as imagens poeticas, todas as cavatinas
ros ricos e os alcaçares reaes tambem teem sido melodiosas da alma popular, lagrimas e sorri-
moradia de prostitutas doiradas! Tão ladrão e sos, dôres e alegrias, apezar de ha muito o não
assassino foi Carlos IX, de França, como o Dio- cantar, quando v. ex.ª quizer certificar-se melhor
go Alves. O caso é o mesmo. do que elle é, mande-me dizer, que eu prometto-
Mas, voltemos ao dlin, dlin. Fique o sr. Forjaz lhe uma sessão de Fado, em que mais uma vez o
sabendo que a canção nacional é a trova de pro- desafie a combatel-o, cantando, já que v. ex.ª se
paganda social, que não canta só o amor e a sau- não defende escrevendo. Em querendo, dê-se ao
dade; é, tambem e primordialmente, o escalpello trabalho de ir até á rua General Taborda, 35, r/c.,
com que se dissecam as imfamias da vida; o la- D. — uma casita pobre cheia de ar e luz, acolá a
tego com que se castiga o Rei Milhão; o chicote Campolide. O passeio é hygienico — mórmen-
com que os poetas populares fustigam a mentira te quando não há um pataco para o carro — e o
do patriotismo, o embuste da religião, a selvage- sr. Forjaz poderá fazer uma perninha cantando
ria das touradas, as incoherencias mercantis do uma das suas trovas de in illo tempore... E não
jornalismo, e todas as orthodoxias archaicas e fique descontente por eu não morar na rua dos
sensualidades dissolventes! Porque o Fado, não Vinagres... Era o seu desejo, confesse!
é sensual como v. ex.ª affirma. Sensual é a dança Em face da cobardia do silencio, vou termi-
— desde o fado que se bate e com o que a can- nar, mas não sem que me dê ao trabalho de pa-
ção nada tem, até ao maxixe pinoteado nos bai- raphrasear o seu artigo:
les campestres. Isso é que v. ex.ª deve condem- .........
nar como immoral e pervertedor! O baile é a an- Só agora reparo que ia tomando a sério o dr. Fe-
te-camara do Vicio; porque ninguem dança pelo lix e o auctor da Prosa vil... Vá, continuem,
prazer de cultivar a arte de Terpsychore. Dan- meus senhores! Iamos nós...
ça-se mais pela calorimetria resultante do roça-
dilho dos corpos... Nos salões, no turbilhão das Allons les enfants de la Patrie
valsas, mergulham-se os olhos ávidos de luxu- Qui le jour de gloire est arrivée
ria nos decotes dos vestidos, que deixam vêr tú- .........
midos seios, estuando do goso sensual e rescen- Aux armes, citoynes!
dentes a peau d’Espagne! Trocam-se beijos es- .........
tonteantes, no meio das piruetas choregraphicas,
marcam-se entrevistas adulterinas, conspurca-se o Albino, o Albino é que canta isto na perfeição!...
a honra, suja-se a honestidade, macula-se a in- *
nocencia! Nos bailes de mais baixa esphera, aca- P. S. — Tencionava pôr termo a este assumpto no
ba-se quasi sempre em hospedaria barata. proximo numero, fazendo umas considerações
Escalpellise v. ex.ª esse cancro e deixe lá o Fa- para o publico. Não o posso fazer, porém, pe-
do! la razão de na ultima terça-feira ter lido na Hy-
Diz o primoso poeta Julio Dantas: giene Pratica de O Seculo — escondido, em typo
meudo, entre as perguntas e respostas do dr. Fe-
Ande a imaginativa por onde ande, lix — umas linhas em que um homemsinho diz
ser humilde, ser claro, pelo menos: que o Fado não é musica! O citado homemsinho
— Porque a melhor maneira de ser grande, apresenta-se mascarado com um pseudonymo. E
é fazer-se entender pelos pequenos. não julguem os leitores que se contentou em as-
294
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
signar a coisa com o nome de qualquer simples lix, mastiguei em secco todas as farinhas e mais
tocador de realejo. Não, senhores! O homem as- drogas da Nutricia, ingeri o réclamo ao livro Por
signa Schumann, um dos nomes mais illustres Terras estranhas, do sr. Samuel Maia, sorri pe-
dos maestros mundiaes! Até dá vontade de lhe rante as gentis dentadinhas que o mimoso dr. Fe-
dizer: — Sempre ‘stás c’uma vaidade, ó coiso!... lix, aqui e além, dá no Choradinho... mas, com
— E o dr. Felix, sentindo-se naufragado e sem ar- respeito a Schumann... nem a sombra! Quando
gumentos para responder-me, a par d’umas den- supponha que poderia hoje exclamar: ecce ho-
tadinhas mimosas que dá no Fado, convida o tal mo! e dar a mão á palmatoria, derrotado pe-
Schumann de contrabando a provar que o fado los conhecimentos transcedentes da Divina Arte,
não é musica, mas sim um batuque! que o citado Schumann deve possuir,(?) soffro a
Pois que venham todos os Schumann, Wagner, cruel desillusão de ter esperado debalde!
Mozart ou Rossini, da lavra do dr. Felix, batucar Sou, pois, obrigado a cantar sem a musica de
á vontade, que eu cá os espero serenamente sem Schumann, isto é, terei de limitar-me a transplan-
o mais pequeno vislumbre de receio. tar para aqui a ferroada musical do cavalheiro
Não soffre contestação que o dr. Felix arranjou em questão, e que reza assim:
uma corda tão grande, que chega para o enfor-
car a elle, ao Albino, ao Schumann e a todos os 521.ª P — Se voltar a fallar do Choradinho, e
detractores do Fado havidos e por haver. Primei- sendo um benemerito com os seus conselhos so-
ro que morra o fado, ha de morrer a Nutricia... bre hygiene, seja-o tambem publicando o seguin-
e eu cá estou para cantar-lhe o requiescat in pa- te: O fado não é musica e ninguem deve vulgari-
ce, á guitarra. sar as más composições; ao contrario, ajudar a
supprimil-as e com energia. (Schumann).
“SCHUMANN”
A isto responde o dr. Felix que Schumann tem
IX razão, que o fado é uma aria cafreal e que não é
Decididamente, os detractores da canção na- musica, mas sim um batuque. E o dr. Felix açu-
cional são systematicamente poltrões! Apresen- la Schumann, para que prove a sua affirmativa.
tam-se de cota de malha, de elmo luzidio e de Todavia, como Schumann, ao que parece, nunca
lança em riste, á semelhança de Albuquerque, o mais toca, resolvo-me eu a cantar:
Terribil, parecendo que, na bellica furia guerrei- Não sou musico, mas tenho, felizmente, a in-
ra, vão varar de lado a lado a infeliz trova e con- tuição musical. E mal de mim se não a tivesse!
quistar este mundo e o outro, o diabo e sua mãe Considerar-me-hia abaixo do dr. Felix 40 graus...
— como diria o sr. Forjaz. Mas, qual!... Assim É, mercê d’essa intuição, que eu sinto bem den-
que defrontam o inimigo, fogem tão corajosa- tro d’alma as vibrações melodicas do Fado, co-
mente, que não há pernas que os agarrem!... Em mo sinto e comprehendo tudo que na musica é
fanfarronadas quixotescas sobrelevam em extre- harmonia. Ora, como desde o inicio d’esta cam-
mo o heroe de Cervantes! panha, nem o dr. Felix nem o sr. Forjaz foram
São d’um comico irresistivel os censores do fa- capazes de me contradictar — porque não te-
do! De D’Artagnan só teem os impetos gascões, em argumentos para isso; se os tivessem já me
e mais nada! tinham machucado, a mim e ao Fado — eu vou
Esperei, pacientemente, até á ultima quarta-fei- provar com factos ao invisivel Schumann que a
ra — dia em que era forçado a mandar o original canção nacional é musica. E, para o fazer basta
para A Voz — ancioso por vêr na Hygiene Pra- citar o seguinte:
tica d’O Seculo a confirmação da opinião musi- A antiga banda da guarda municipal tocou du-
cal do mascarado Schumann. Li a coisa d’alto a rante annos, sob a regencia dos saudosos maes-
baixo, ri com as gracinhas esfusiantes do dr. Fe- tros Manuel Gaspar e Antonio Taborda, uma
295
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
selecção de fados, de Moraes, cujo motivo era tabilissimo auctor, para ralar os microscopicos e
o fado corrido. Seguidamente, todas as bandas rachiticos detractores do Fado:
portuguezas regimentaes e particulares, tocaram
a mesma peça. Logo, se o Fado não é musica, Por baixo das janellas, occupadas pelas fidal-
faça o sr. Schumann a fineza de me responder: gas, fez-se um grande circulo. Vieira ao meio e
Que especie de artistas eram Gaspar e Tabor- os dois rapazes Falcões aos lados, empunharam
da para fazerem executar pela primeira banda com arreganho as banzas de Braga, e, de pé cru-
do paiz uma coisa que não é musica!? — (Creio zado, desempenados, virados para as senhoras,
que Schumann não responderá, porque podem começaram de concerto a arranhar os accordes
saltar-lhe em cima todos os artistas da banda da lacrimosos e dulcissimos de um fado. Logo de-
guarda republicana, incluindo o maestro Fão.) pois, no meio do silencio geral, entrou Vieira a
O illustre musico que se chamou Alfredo Keil, cantar, com a sua voz fresca e cheia de côr, algu-
na sua opera Serrana, tem um lindissimo fado, mas das nossas trovas nacionaes, tão singelas e
porque muito naturalmente entendeu que aquel- sempre tão bemvindas!
le seu trabalho — cuja acção decorre entre gente Eu não sei o que teem aquellas musicas de qua-
do campo — não devia passar sem uma referen- tro notas; poderão não valer um ceitil na cotação
cia á canção nacional, a portuguezissima melo- dos maestros; mas sei que muita vez me deixa
dia do povo lusitano. Portanto, se o Fado não frio uma opera, e nunca deixou de me enthusias-
é musica, tambem Alfredo Keil não foi artista, mar uma Mariannita ou uma Merciana canta-
nem maestro! É logico. da de ronda, ao luar, por esses casaes da serra de
E o Fado da Anadia? Monsanto, ou por essas quintas dos Olivaes.
E o Fado Liró — essa soberba orchestração do Muita vez não attendo ás prodigiosas habilida-
maestro Nicolino Milano? des de um equilibrista e prestidigitador do piano,
E os trabalhos, no genero, de Fillipe Duarte, mas páro sempre de ouvido álerta, para escutar
de Luz Junior, de Hugo Vidal, de Alfrado Man- uma guitarra solitaria, que vae passando no Tejo,
tua, de Manuel Benjamim e tantos outros maes- á noite, ao longo do Aterro.
tros portuguezes, aos quaes a musica nacional Que é aquillo? é arte? não sei: é sentimento e
tanto deve? basta.
Nada d’isto é musica? Que são os pyrilampos? são fogo? não; mas são
Estou a vêr que para o sr. Schumann a Maria luz, isso são; e bastam para enfeitar com estrelli-
Cachucha é que é musica. Bem avisado andou s. nhas, a seu modo, a abobada das noites.
ex.ª em não dizer mais nada. Aquellas quadras são pobrissimas; nenhum po-
Pela minha parte, resta-me appellar para todos eta de cunho se dignaria de assignal-as; mas,
os maestros cujos nomes cito, pedindo-lhes que n’aquellas obras minimas da arte dos pobres e
agradeçam ao sr. Schumann o bom conceito que dos ignorantes, há uma suavidade de côr e um
faz dos seus incontestaveis meritos de artistas vago de contornos, que é uma delicia. O pensa-
musicaes conscientes e applaudissimos. mento é singelo; a fórma é vulgar; mas esse pen-
* samento é verdadeiro e essa fórma é musical.
Convém ainda transcrever um trecho dos Amo- Aquillo não cança, e commove por si e pelas re-
res de Viera Lusitano, que trata da poesia e da cordações.
musica popular, e que se deve á penna de um dos Quem disser que não temos musica e poesia po-
mais eminentes luminares de litteratura portu- pular, defrauda-nos do que é muito nosso.
gueza. Ha, todavia, a accrescentar que, n’esse Quando nas Matinas ou na Missa de Natal se
tempo, ainda o Fado não era, como hoje, uma ouvem no orgão, em registo de clarinete, algu-
trova de educação e propaganda social. mas das nossas melopêas populares, ha um fré-
Eis a preciosa filigrana, assignada pelo seu no- mito de alegria no povo. Quando Taborda can-
296
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
tava na comediasita, Ditoso Fado, algumas qua- fado e os seus censores. Tem-me agradado a ma-
dras á viola, o publico em altos gritos pedia mais, neira habil como v. tem fustigado esses moralis-
e mais, e mais, e o grande imcomparavel, enfiava tas de meia tijella, mórmente o Forjaz, o auctor
centenares de quadras entre applausos. das Palavras cynicas, esse repositorio de maledi-
.......... cencia, em cujas paginas ha mais veneno que em
N’aquella noite de S. João, na quinta da Boa Vis- todas as glosas que conheço.
ta, n’aquella disposição de todos, expansiva e No ultimo artigo, o VII, ha uma falta de verdade
alegre, calculemos, portanto, o que seria de com- historica que julgo conveniente aclarar, antes de
movente a voz do Estrangeiro, entoando, respon- refutada pelo aggressor d’um morto illustre.
dido pelos córos, algumas quadras portuguezas, Diz v. que esta quadra:
muito amorosas, n’aquelle pateo senhoril e al-
deão, entre o rumorejar d’aquellas arvores portu- Defender os patrios lares,
guezas, entre gente portugueza de lei, que o en- dar a vida pelo rei,
tendia e o amava! é dos lusos valorosos
caracter, costume e lei.
Visconde de Castilho.
se deve á penna do sublime Elmano, quando da
Nada mais é preciso para enforcar Schumann com sua lavra apenas são as soberbas glosas que to-
a mesmo corda que serviu ao dr. Felix e ao sr. For- dos conhecemos e apreciamos. A quadra é da
jaz. condessa de Oyenhauseu, poetisa da epocha.
Quanto ao batuque — como o dr. Felix chama Eu vou trasladar o que encontrei sobre o as-
ao Fado — parecem-me mais dignos d’este ca- sumpto:
freal epitheto o Fandango, o Vira e os outros mi- «Em casa do conde de Camaride, ás Picôas, jun-
mos musicaes alegres, de que o mesmissimo dr. tavam-se os poetas da epocha João Xavier de
Felix gosta tanto... para salvação do figado! Mattos, Nicolau Tolentino, Francisco Manuel do
O dr. Felix nem parece ter andado por terras es- Nascimento, Barbosa Caldas, Bocage e a poetisa
tranhas, aliás devia notar que melancholica e tris- condessa Oyenhauseu. Uma noite, depois de um
tonha é toda a musica allemã; melancholica e tris- tiroteiro de ditos do mais fino sal todos os poe-
tonha é toda a musica ingleza, a começar pelo fu- tas glosaram motes que lhes davam as senhoras.
nebre God save the King! E não consta que as sum- A Bocage deu a condessa de Oyenhauseu o se-
midades medicas d’estes dois paizes se lembrassem guinte mote...»
de condemnar a musica para salvar a fressura dos E segue a quadra.
subditos do Kaiser ou dos filhos da grande Al- Desculpe v. esta caturrice, mas talvez o homemsi-
bion! É que esses colossos da Sciencia teem mais nho lhe pegasse na coisa e a mordesse de raiva.
que fazer do que vender manteiga ou toccar har-
monium... Creia-me sincero admirador.
O Fado, batuque? Jedac.
Ora, quem lhe batucasse na Nutricia até a dei-
tar a baixo!... Póde Jedac estar descançado, que o sr. Forjaz
* não me pega na coisa, porque eu não deixo. E
Recebi a seguinte carta, que gostosamente não deixo, por isso que a quadra, embora não
transcrevo: seja de Bocage, fica de pé do mesmo modo. O
meu erro nasceu do facto de, nas Poesias selec-
... Sr. Avelino de Sousa. — Tenho acompanhado, tas, do dr. Henrique Midosi, estarem mote e glo-
com verdadeiro interesse, os seus artigos publi- sas attribuidos ao genial poeta. Foi certamen-
cados n’A Voz do Operario, sob a epigraphe O te esquecimento do illustre bibliographo, o não
297
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
pôr o nome da poetisa por baixo do referido mo- suadido de que o nosso jornal não foi feito pa-
te. A rectificação, porém, fica feita, e eu agarde- ra atacar pessoas e muito menos para lhes diri-
ço reconhecidamente a Jedac a sua gentileza e gir inconveniencias que é o que v. tem feito uni-
captivante amabilidade. camente.
Resta-me fazer umas considerações para o publico, Porque — e é para lamentar — v. depois de ter
que com tanta indulgencia me tem aturado, e,assim, escripto tantas columnas de prosa, ainda não
no proximo numero finalisarei o assumpto. 66 apresentou um único argumento a favor da utili-
dade do Fado, servindo-se quando muito do que
outros com mais auctoridade do que v. teem es-
UM RETARDATARIO cripto. O que v. ainda não fez foi dizer para que
é que o Fado é bom, emquanto que os seus cri-
X ticados asseveram que o Fado é um mal, porque
Depois de encerrada esta campanha nas co- quem o canta ou o ouve annula em si energias de
lumnas d’A Voz do Operario, recebi a carta que que todo o individuo tem necessidade para ven-
vae lêr-se, assignada pelo sr. José Mourato Ver- cer na lucta pela vida, e para viver feliz.
melho que, premeditadamente, ao que parece, Eu estou certo de que ninguem estando alegre
esperou que eu concluisse os meus artigos para, tem desejos de cantar o Fado e de que, cantando-o,
só então, se arvorar n’uma especie de defensor e sentindo-o, fica mais triste do que estava an-
dos detractores do Fado. Á deslealdade incon- tes de o cantar ou de o ouvir. Se não se pode com
testavel do referido cavalheiro, devia eu respon- acerto chamar triste ao estado de espirito que
der com o meu silencio; como quer, porém, que succede á audição do Fado, é pelo menos uma
a lealdade seja um sentimento innato na minha coisa peor: o adormecimento das faculdades de
pessoa, prefiro dar a carta a publico, commen- trabalho, de iniciativa, uma especie de languidez
tando-a n’este capitulo, como merece. ou abstracção, sentimentalidade doentia que re-
Eil-a: pele absolutamente as idéas viris que conduzem
aos emprehendimentos que ennobrecem.
... Sr. — Que todos os leitores, d’A Voz do Ope- O Fado póde ser, e é sem duvida, uma musica
rario tenham lido com complacencia os artigos agradavel, e a mim, como ao dr. Felix, dil-o elle,
de v. sobre o Fado, é pretenção a que com razão o Fado seduz, mas por isso mesmo não o quero
se chamaria vaidade. ouvir, para que não me embriague com sentimen-
Eu, por exemplo, e um grande numero de lei- tos que me não convém possuir.
tores, com certeza, temo-nos desgostado deve- Diz v. que as sociedades cultas tambem o teem
ras por vermos como, um assumpto que poderia apreciado. As sociedades a que v. chama cultas, es-
ser discutido serenamente, tem sido transforma- tão longe de ser prefeitas e possuem muitos senti-
do n’uma repugnante questão pessoal em que, de mentos maus, sem os quaes se tornariam melhores.
resto, uma única pessoa anda envolvida: V. Por- E não será uma obra digna que todos nos esfor-
que e ainda bem, os seus criticados não lhe teem cemos para repellir as nossas más tendencias, tor-
respondido, pela simples razão de que a grosse- nando-nos assim seres superiores, em quem os ins-
rias se não deve dar resposta, tirando-lhes assim tinctos ou sentimentos bons prevaleçam sobre os
toda a auctoridade. maus?
Mas eu, que não estou mettido na questão, ve- O Fado sendo languidamente sentimental faz-nos
nho no meu legitimo direito de socio, protes- tambem sentimentaes sem energia e por isso eu
tar contra a fórma como v. se tem conduzido no o condemno. Mas v. não pensa assim, e não pen-
nosso jornal, insultando mais do que critican- sando acha-o bom e diz impoperios contra aquel-
do, chegando ao extremo de chamar ao sr. Forjaz les que pensam d’outro modo.
de Sampaio vicioso da especie mais reles, e per- Será isso um resultado da sua educação tristonha
298
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
e sonhadora, tornada pessimista e aggressiva pe- campanha sobre o Fado nas columnas d’A Voz
la cedencia oprimidora do Fado, será... do Operario — para, só passado esse tempo, me
Mas faça um esforço: aborreça-o ou então fuja escrever particularmente pretendendo, mais ver-
d’elle, se póde, e verá que há-de dar-se bem. Verá melho de colera que de nome, falsear a verdade
depois que ha-de lamentar o tempo perdido em a seu bello prazer!
dedilhar a guitarra e como na musica que expri- Se v. ex.ª não me parecesse uma creatura in-
me a alegria, na sciencia, no trabalho productivo, telligente, eu dir-lhe hia com desassombro que
encontrará prazeres desconhecidos... não sabe ler. Porque é realmente preciso não sa-
Que a gente, afinal, não tem o direito de entriste- ber lêr, para ter o arrojo de affirmar que eu «não
cer os outros. apresentei argumentos, que não disse para que
Veiu tudo isto a proposito de eu discordar em abso- o Fado era bom, que insultei escrevendo grosse-
luto da fórma pouco cortez como v. tem discutido rias, que transformei o assumpto n’uma questão
no jornal que, sendo propriedade d’uma Associa- pessoal e que, finalmente, tal não devia ser tra-
ção de Instrução, deveria começar elle próprio, por tados nas columnas d’A Voz, que é um jornal pa-
instruir educando ao mesmo tempo, seguindo sem- ra instruir, etc., etc.»
pre uma conducta moral que a todos o imponha. Vê-se, nitidamente, que v. ex.ª não só não com-
Depois d’isso veiu a minha opinião pessoal sobre a prehendeu o que leu, como ainda provou á sa-
debatida questão do Fado; e com ella é abertamen- ciedade não estar habituado a assistir a pugnas
te desfavoravel a v. não é provavel que seja publi- litterarias, ou polemicas jornalisticas. Aliás, não
cada, como o teem sido outras por motivo contra- teria gasto tanto papel, tinta e tempo, para dizer
rio. Sendo assim só teria que julgar como entendes- o mesmo ou menos ainda, do que os outros de-
se ácerca da imparcialidade com que v. terá tratado tractores doi Fado tinham dito!
esta questão. Anlysemos, porém, a carta. Diz o sr. Verme-
Porque, é preciso que isto se diga, quando se dis- lho que é «pretenção a que com razão se cha-
cute de boa fé, é com o intuito de se chegar ao maria vaidade» o facto de eu agradecer a com-
conhecimento da verdade, esta, esteja de que la- placencia com que os leitores d’A Voz do Ope-
do estiver, por todos deve ser bem recebida. E rario me aturaram! Toda a gente comprehende
parece-me que não é com rancores e indelicade- que eu não poderia ter a pretenção de agradar a
zas que se substituem argumentos, nem que se todos os leitores — embora de 52:000, só v. ex.ª
convence um adversario á força de o ridiculari- se queixasse — por isso que, para agradar a to-
sar. Isso, quando muito, poderá fazer rir o publi- dos seria forçado a consultar a opinião de cada
co imparcial, quando o não ennoja. Mas a ques- um, o que equivaleria a ter de imprimir-se ca-
tão fica de pé... da exemplar do jornal ao gosto de cada leitor!
Ora como isto era inteiramente impossivel fa-
Saudade e Fraternidade, zer-se, eu não tinha que me preocupar se o Fula-
José Mourato Vermelho no gostou ou se o Beltrano deixou de gostar. Eu
Sócio nº 45.748 d’A Voz do Operario. tinha simplesmente o dever moral de agradecer
aos leitores na generalidade — quer gostassem
Fallou o sr. Vermelho. Agora fallo eu: ou não, porque eu não tenho nada com isso — a
É muito extraordinario que v. ex:ª sendo, co- complacencia com que me leram. Foi o que fiz
mo é, um inimigo do Fado, e estando por conse- e creio que todos o comprehenderam, á excep-
quencia ao lado do dr. Felix e do sr. Forjaz, não ção de v. ex.ª.
tivesse enviado a sua carta a qualquer d’esses A cegueira de v. ex.ª, porém, é de tal natureza,
senhores, que, sem duvida lh’a publicariam! Ex- que não haverá por certo ophtalmologista que
tranho é tambem que v. ex.ª estivesse dois me- possa cural-a!
zes e meio á espera — que tanto tempo durou a Publiquei na Voz dez artigos sobre o Fado; e
299
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
não há um só, em que eu não diga muito clara- d’aquelles senhores, mas sim extensiva a todos que
mente, para que o Fado é bom, e com argumen- d’ella queiram usar — mórmente quando lancem
tos incontestaveis! Em todos os artigos me fartei mão d’ella, como eu, para dizer a verdade nua e
de affirmar que o Fado é, não só uma canção di- crua, dôa a quem doer. Não vejo, portanto, a ques-
lecta do povo, como ainda uma trova de propa- tão pessoal!
ganda social. E, precisamente porque é uma tro- Quanto a insultos e grosserias, só os vi nos es-
va de propaganda social, que educa, que instrue, criptos do dr. Felix e do sr. Forjaz. Um e outro
que propaga e diffunde grandes ideaes, é que a chamaram «vadios, bebedos, correccionaes, ma-
questão foi tratada na Voz do Operario! Perce- landros», emfim, aos que cantam o Fado, não
beu, sr. Vermelho? Se não percebeu — como pro- contando esses dois burguezes enfatuados, que
vou não perceber o que leu nos artigos — eu não do meio da plebe ignorada, alguem se levantas-
sei explicar-me melhor. De resto, o que imagina se e os reduzisse ao silencio.
v. ex.ª que é a redacção d’A Voz do Operario? E vem v. ex.ª, chama-me insultador a mim,
Suppõe que ella se compõe de inconscientes ou quando o insultado fui eu, senão um povo intei-
vendidos, de estupidos ou incoherentes? Pois v. ro, porque afinal todos os portuguezes, com ex-
ex.ª não vê que se a questão do Fado não estives- cepção raras, amam o Fado.
se dentro da instrucção e da propaganda, a re- Guarde v. ex.ª o Manuel de Civilidade para si,
dacção do jornal não permittiria que o assump- porque eu prescindo d’elle. E fique sabendo que se
to ali fosse tratado?! os censores do Fado me não responderam, foi sim-
V. ex.ª não sabe que os intellectuaes de todas plesmente porque não tinham que responder. E a
os paizes aproveitam a canção da rua para n’um prova é que já ambos se retrataram particularmen-
verso sugestivo e facil educar o povo, apontando- te. O dr. Felix, dizendo que só pretendia atacar a
lhe as iniquidades sociaes, deitando abaixo dog- musica e não a canção; e o sr. Forjaz, affirmando
mas anachronicos, fazendo a apologia dos idea- que fez aquillo como quem faz uma coisinha litte-
es modernos, de tudo que é bello, grande, huma- raria, mas sem idéa de dizer mal do Fado, do qual
no, racional? sempre gostou!
Se o não sabe, fica-o sabendo agora. O aspec- Esta é a consciencia e a convicção, com que os
to mais belo porque o Fado deve ser encarado, e peralvilhos das lettras fazem affirmações publi-
conservado até, é o que o torna um factor pode- cas! É assim com essas coisinhas litterarias que
rosissimo de propaganda e educação. o sr. Forjaz insultou a memoria de Silva Pinto,
V. ex.ª, porém, tal como os detractores d’essa obrigado o dr. Carlos Amaro a comparal-o a um
canção, só conhece aquelle gatuno de cemiterios, nas columnas d’A Capital,
sem que — diga-se de passagem — o sr. Verme-
Á meia porta encostada lho ou qualquer outro, visse nas palavras do dr.
Estava a infeliz chorando Carlos Amaro, uma grosseira. Com essas coisi-
nhas litterarias é que o sr. Forjaz nas Palavras cy-
e de tal modo tem essa opinião arreigada no ce- nicas chama prostituta a sua propria mãe! Isto é
rebro, que passou por cima de toda a minha ar- que é baixo, grosseiro e repugnante!
gumentação sem a vêr, e vem chamar-lhe ques- Eu não insultei. Ironisei, stygmatisei, ridicula-
tão pessoal e grosseira! risei, fui energico, fui vigoroso — o que demons-
É curioso! Onde está a questão pessoal? tra que o Fado não annulla energias — tanto
Eu, não conheço o dr. Felix pessoalmente, nem quanto devia sel-o, em minha opinião, porque
me dou com o sr. Forjaz a quem apenas fallei algu- não era com sentimentalismos de meridional,
mas vezes ha longos annos. Ataquei ambos usan- nem ferindo a nota poetica, ou de lagrimas nos
do d’um livre direito de critica, que ninguem po- olhos, que eu havia de sahir á estacada, contra
de contestar-me, porque a critica não é apanagio os detractores do Fado, que, arvorando-se criti-
300
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
cos d’um assumpto que desconhecem, pretende- lho, e fazer-me a fineza de reconhecer que deve
ram abandalhar a canção nacional. aproveital-o.
Todos teem o direito de não gostar d’isto ou Aqui tem, pois, o sr. José Mourato Vermelho,
d’aquillo, mas ninguem póde arrogar-se o direi- como eu não deixaria de publicar a sua carta n’A
to de abandalhar aquillo de que não gosta. Voz, por ser abertamente contra mim. Não dei-
Diz o sr. Vermelho, socio n.º 45.748 d’A Voz xaria de o fazer — se me fôsse enviada a tempo
do Operario, que as sociedades a que eu chamo — por dois motivos: 1.º, porque seria desleal se
cultas, estão longe de ser perfeitas e possuem o não fizesse, e v. ex.ª, não tem direito a chamar-
muitos sentimentos maus, sem os quaes se tor- m’o porque não me conhece; só o poderia fazer
nariam melhores. se, tendo-me enviado a carta, durante o lapso de
Será muito judicioso, mas não é novidade! tempo que a campanha durou, eu não a publi-
Toda a gente sabe isso, camarada 45.748! É uma casse. 2.º, porque o medo que eu tive de respon-
affirmativa do amigo Banana, sem tirar nem der ao dr. Felix e ao sr. Forjaz, é o mesmo que
pôr!... Se o que tem defeitos, os não tivesse, cer- hoje tenho de responder a v. ex.ª!
tamente não era defeituoso... O que parece, to- Quanto aos conselhos que v. ex.ª me dá: De
davia, é que v. ex.ª, tem a pretenção de ser pre- que deixe o Fado, que o aborreça, etc., etc., não
feito, bem como todos aquelles que condemnam os acceito, porque não preciso d’elles. O Fado, a
o Fado! Será isto? Parece que sim. Pois, se o Fa- mim, só me tem feito bem. Eu é que tomo a liber-
do é para todos cantado em Portugal, e applau- dade de aconselhar v. ex.ª, a estudar melhor o
dido no estrangeiro, onde foi tocado em todos os que elle é e o que elle vale, e até a adoptal-o co-
paizes, incluindo a Russia, pela troupe Gounod, mo trova de propaganda civilisadora e honesta,
não esquecendo Luiz Petroline, e por outros ar- ou mesmo quando apenas nos falla á alma em
tistas; se até, as grandes cantoras estrangeiras, lindas canções d’amor, emittidas por uma voz
como Rosa de Vila, Maria Galvany e outras, o dulcissima de mulher, como a d’aquella saudosa
teem cantado entre nós — para o que concorre- e gentil Calcida que tanto o cantou, deliciando-
ram maestros illustres como Julio Neuparth e se e deliciando-nos.
vários — com applausos unanimes e estrepito- Mas... Eis a questão, como se diz na tragedia
sos; e se as sociedades cultas mundiaes são defei- shakespereana: As estatisticas sobre analphabe-
tuosas admitindo o Fado, resulta que só v. ex.ª, e tismo em Portugal, estão erradas. Onde dizem
quem d’elle não gosta, é que são perfeitos!!... que existem entre nós 80% de analphabetos, de-
Está direito… viam acrescentar, pelo menos, mais 10% de se-
Allude, porém, v. ex.ª, ao facto de eu me ser- mi-analphabetos — ou sejam os que não com-
vir da opinião de pessoas mais auctorisadas do prehendem o que lêem — e de cujo numero v.
que eu, suppondo que com tal allusão me des- ex.ª faz parte, segundo o demonstra na sua carta.
prestigia! Porque, evidentemente, o sr. Vermelho está ain-
É fóra de duvida que o sr. Vermelho tem lido da muito verde para comprehender e discernir
muito pouco. Se assim não fôsse, saberia que os entre estylo e indelicadeza, o que faz muita di-
maiores sabios fazem citações de quaesquer eru- ferença, porque lá diz Buffon no seu aphorismo:
ditos, para reforçarem a propria opinião. E eu, — O estylo, é o homem. E é assim que pretende
que não sou sabio, fazendo-o, mais razão dei a atirar para a valla das inutillidades os meus po-
mim próprio e melhor provei aos detractores do bres artigos. Pois — permitta-se-me a vaidade,
Fado, a falsidade das suas affirmações. É docu- aliás natural, porque eu não sei alardear modes-
mentando que se provam conhecimentos. tias exaggeradas, nem mentir para ser agradavel
Decididamente, o sr. Vermelho, precisa de lêr seja a quem fôr — dentro d’esses artigos, ha um
muito, para aprender umas coisas rudimenta- pouco de arte, de literatura, de philosophia, de
res que desconhece. Queira perdoar-me o conse- critica real, de observação, e, acima de tudo, ha
301
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
enganei. O Fado está absolvido; e para essa ab- nho o facto, que, quanto a mim, nada tem de sin-
solvição concorreram — muito mais do que eu, gular, porquanto julgo descortinar-lhe a causa.
sem duvida — os seus proprios detractores! Por Portugal é o paiz dos doitores. Um senhor dou-
concomitancia o atacaram Felix & Forjaz, e do tor é tudo cá na terra! Todos se arreceiam d’elles,
mesmo modo fugiram, desordenadamente, em fa- e o que elles dizem é uma escriptura. Supponho
ce da vehemencia com que, supponho, o defendi até que as associações de classe, o partido socia-
em nove numeros d’A Voz do Operario. lista, tudo, emfim, que aspira no nosso acanhado
Á inenarravel cobardia dos seus censores — ba- meio social, a caminhar na vanguarda do Progres-
tendo em retirada — oppuz eu a resistencia in- so, nada d’isso marcha, nada d’isso avança, em-
quebrantavel da Verdade, que a critica venal quanto houver lá dentro, pelo menos, duas duzias
não soube nem poude deitar abaixo. Nem um de doutores!
argumento, nem uma demostração plausivel, É certo que este povo tem sido escandalosamente
nem uma phrase de pezo! Nada! Criticaram o ludibriado, illudido, espesinhado por todos os dou-
Fado, mordiscaram-n’o, tentaram abandalhal-o, tores, a quem serviu de degrau; isso, porém, não obs-
— creio que por falta de genero de sport... — e ta a que este mesmo povo continue a sentir o fetichis-
eu, fazendo-lhe o panegyrico, com argumentos mo do doutorado, dando-lhe vivas, dando-lhe pal-
incontestaveis, tenho hoje a suprema ventura de mas, e recebendo, em troca, desillusões que não o de-
o vêr sahir ileso, sem uma beliscadura e sem que siludem, espadeiradas e tiros, o epitheto de vendido
as ferroadas da critica lhe causassem a mais pe- aos monarchicos, quando faz gréve, o encarceramen-
quena concussão! to na Penitenciaria, além do mais que o esclarecido
Após a victoria, porém, não seria justo nem ac- espirito dos seus adorados doutores porventura pos-
ceitavel querer eu locupletar-me sósinho com os sa inventar! Ah! Mas o povo não tem razão de quei-
louros da mesma, embora aberta e francamente xa, porque as classes pobres já teem no matadouro
confesse o orgulho de que me sinto possuido — municipal, por modico preço, carne pôdre, e caldo
como filho do povo — por tél-a alcançado! Não. da mesma a tres vintens o litro! (Fica por baixo o Jo-
Já antes de mim o defendera Carlos Harrington sé Maria dos Santos!)
no seu jornal. A meu lado, tive Luiz de Athayde, A Democracia caminha...
no jornalsinho O Fado, que brilhantemente to- Quem foi Herculano? Quem foi Garrett? Quem
mou tambem a defeza da querida trova. A meu foi Camillo? Quem foi Anthero? Quem foram
lado, tive Arthur Arriegas, no jornal A Lanter- Victor Hugo, Zola, Balzac, Walter Scott, Tols-
na, que energicamente se arvorou devotado pa- toi, Daudet?... O povo não sabe, não lê, não co-
ladino da canção nacional. E, ultimamente ain- nhece!
da, no semanario A Lyra do Fado, tive o prazer Mas, em compensação, é capaz de lêr todas as
de lêr pequeno artigo, escripto com o mesmo fim columnas dos jornaes burguezes, onde se ban-
altruista. Todavia, pena foi que, havendo tantos deia a porca da Politica: é capaz de gramar uma
rapazes intelligentes que cultivam com raro bri- duzia de discursos por dia — que, já se vê, hão
lhantismo a trova portugueza, não aparecesse de salvar a patria... dos discursadores... — e,
mais algum em defeza da nossa querida canção. n’uma palavra, pôr-se ao lado dos srs. douto-
É claro que não me refiro aos mais distinctos e res contra os seus irmãos de miséria e de traba-
cotados poetas populares, como Antonio Rosa, lho, brincando aos soldados nos batalhões de
João Black, Domingos Serpa e outros cujos no- voluntarios!...
mes é inutil citar, e que, certamente, em mim des- Simplesmente lamentavel!
cançaram, deixando-me á vontade tratar do as- E não julguem, meus senhores, que fugi do as-
sumpto, convictos de que eu, com elles, faço da sumpto. Não. Tudo que vos digo n’esta prosa
poesia popular um sacerdocio. chilra, vol-o tenho dito em trovas para o Fado,
Quanto a outros muitos, porém, eu não extra- algumas das quaes correm impressas. Não é ne-
303
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
cessario ter tido assento nos bancos da Univer- E o Fado ahi fica de pé, echoando por toda a
sidade para se dizer o que se sente! terra lusitana, n’um murmurio de amor, n’um
Felizmente, porém, já se póde discernir entre o lamento de saudade, n’um brado de revolta, vi-
povo que vê e o povo que é cego! Eis porque as brando pelos alcantis das serras, pelas quebra-
canções sociaes são sempre applaudidas por socia- das dos montes, pelos vergeis encantadores, co-
listas e syndicalistas e por todos os espiritos cultos mo que impellido pelo soppro tonificante da bri-
que n’ellas vêem propaganda e ensinamento. sa, afagando as franças das arvores, ou pelo ma-
* rulhar buliçoso das aguas crystalinas, beijando
Não deveria ser eu — pobre João Ninguem, as areias doiradas das praias de Portugal!
sem talento nem engenho — quem se mettes- Cantam-n’o os labios juvenis de creanças mi-
se a defender o Fado. Deviam ser todos os poe- mosas, cantam-n’o as roseas boccas das mães
tas de Portugal, todos os artistas de cunho, to- que as acalentam, e as marfinadas gargantas das
dos os musicos conhecedores da alma popular! virgens castas! A pegureira gentil, o operario ru-
Eu fiz o que pude. Elles fariam muito mais. De- de, o rustico pastor, o crestado marinheiro, o
vo tudo ao Fado, por isso o amo muito, embora triste encarcerado, a rameira impudica, a grisset-
já não o cante como em tempos idos. Mas, não te graciosa, a excelsa fidalga, todos, emfim, ve-
o esqueço! lhos e novos, o cantaram, cantam e hão de can-
Quanto aos que o censuram, visto que tar sempre, emquanto a dôce vibração da guitarra
se repercutir por toda a perfumada, uberrima e
Fallo ninguem me responde; formosissima terra portugueza!67
ólho não vejo ninguem;
NOTAS
1 A. (1942.Abril.14). Os cegos e as 6 De um dos seus folhetos de Canti- pular. Esta é tradicional, muita anti-
notícias. Brados do Alentejo. Estre- gas. Não se menciona nelle o logar ga, e não se lhe conhece auctor; as
moz. [N. e.] de impressão, nem de paginação, décimas, pelo contrário, são relati-
2 Vasconcellos, José Leite de. (1891- nem data. vamente modernas, e muitas vezes
1896). Ensaios Ethnographicos. Vo- 7 Elle dizia sem o; ainda assim fica er- sabe-se ainda o nome de quem as
lume I. Espozende: Colecção Silva rado o verso. Deve lêr-se de modo fez. A poesia popular nunca reveste
Vieira. 27-29, nota 7. [N. e.] que se syllabe com-pe-rar, como no a fórma de décimas, e só a de qua-
3 Vasconcellos, José Leite de. (1891- canto. dras, disticos e poucas mais (e essas
1896). Ensaios Ethnographicos. Vo- 8 Isto é: Não valle nada. muito raro). As décemas constituem
lume I. Espozende: Colecção Silva 9 O Cantador pronunciava galoria, uma especialidade da ethnographia
Vieira. 29-31, nota 7. [N. e.] segundo a phonetica popular. Ad- transtagana. Fóra d’ella encontrar-
4 Vasconcellos, José Leite de. (1903- mittindo-se o hiato entre as duas pri- se-hão apenas esporadicamente.
1904). Poetas populares portugue- meiras syllabas, o verso, que appa- 11 Este artigo sahiu primeiro na Sauda-
ses. I – O Cantador de Setúbal. Re- rentemente está falho, fica certo: de- ção ao Cantador, n.º unico, publicado
vista Lusitana. Volume 8, n.º 1. Lis- u-ma gu ló-ria-vã. No canto, de soa em Setubal (15-XII-902), por Henri-
boa: Antiga Casa Bertrand. 45-48. di. que das Neves, D. Anna Osorio de
[N. e.] 10 Convém não confundir as décimas, Castro e Paulino de Oliveira, e d’elle
5 António Maria Eusebio, vulgo o Ca- ou décemas, como dizem os Transta- se fez separata, em folheto de 8 pag.,
lafate. ganos, com a verdadeira poesia po- ed. de 50 exs., com leves differenças.
304
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
O que reproduzo aqui é o folheto. que havia e ha junto das grades da tremoz. [N. e.]
12 Vasconcellos, José Leite de. (1903- Cadeia. 28 Na valiosíssima obra AMIEIRA, re-
1904). Poetas populares portugue- 25 Fr. Manoel do Cenaculo Vilas Bôas centemente publicada, de que são
ses. II – José dos Reis. Revista Lusi- foi sagrado na Real Capela da Aju- autores os ilustres alentejanos Tude
tana. Volume 8, n.º 1. Lisboa: Anti- da, na presença da familia real dos Martins de Sousa, nosso prezadíssi-
ga Casa Bertrand. 48-49. [N. e.] 28 d’Outubro de 1770 pelo patriar- mo amigo, e o professor Francisco
13 Esta estrofe é dada como se fossem ca Saldanha, sendo consagrantes o Vieira Rasquilho, atribue-se igual
duas quintilhas, mas estamos na pre- Arcebispo da Lacedemonia e o Bis- resposta, e em idênticas circunstân-
sença de uma décima espineliana com po de Macau e chegou a Beja a 22 de cias, a Luiz Felix da Mota, que fora
a partição medieval [Nota do editor]. Abril de 1777 – o ano dos tres mar- interpelado por certo oficial, na sua
[N. e.] telinhos como lhe chamavam... passagem por aquela vila com um
14 Vasconcellos, José Leite de. (1903- Cenaculo regeu o bispado por mais troço de tropas, durante a Guerra
1904). Poetas populares portugueses. de trinta anos, e estabeleceu no paço Civil.
III – Antonio Augusto Monteiro. Re- algumas cadeiras de ciências e belas Sendo assim, quem seria o autor da
vista Lusitana. Volume 8, n.º 1, Lis- artes e uma Academia em que sob a poesia – Luiz Felix ou Ambrósio? Tal-
boa: Antiga Casa Bertrand. 50-51. sua presidencia se ventilavam e re- vez nem um nem outro. Ela seria pos-
[N. e.] solviam diferentes questões religio- sívelmente composta por autor desco-
15 Note-se que na lingoagem do Nor- sas e literarias e fundou o Muzeu Se- nhecido e depois divulgada, aprendi-
te e centro do Reino canalha e cana- zenando Cenaculo Pacence. da sofregamente e apreciada como
lhada querem dizer «criançada», i. Em 1802 foi Cenaculo transferido prudente remédio a aplicar naqueles
é «conjunto de crianças»; canalhices do bispado de Beja para a archidio- difícieis momentos da incómoda pre-
significa pois «criancices». cese d’Évora. gunta – quem viva? a qual poderia ser
16 Vasconcellos, José Leite de. (1906). O Muzeu que ele criou na maior par- formulada em termos opostos – quem
Poetas populares portugueses. I V – te, – diz-nos Gabriel Pereira, com- morra? sem que o perigo deixasse de
O Pôtra. Revista Lusitana. Volume posto de mais de cem objectos – la- ser o mesmo...
9, n.º 1-2. Lisboa: Imprensa Nacio- pides e esculturas antigas que ele, É certíssimo que Ambrósio, ao ser
nal. 139-141. [N. e.] com muito desvelo e proficiencia, interrogado, respondeu recitando os
17 Ha aqui um anachronismo adminis- reuniu. tais versos:
trativo desculpavel. Com a saida do bispo para Evora, Viva o Senhor D. Pedro
18 Palavra que tem essa significação. muitos desses objectos dispersaram- mais o Senhor D. Miguel
19 Sobre o uso das décimas no nosso se. Felizmente mais tarde a Cama- (...). (N. R.)
povo, principalmente no Sul, vid. ra da velha cidade, fundou sob pro- Ocorreu-nos há pouco uma circuns-
Rev. Lusitana, VIII, e Ensaios Eth- posta do distinto bejense e ilustrado tância que não deixa de ser curiosa:
nographicos, III, 337. cidadão Dr. Manuel Duarte Laranjo uma das testemunhas do facto, D. Ca-
20 Carvalho, Ernesto de. (S. d.). De roda Gomes Palma, o Muzeu Municipal, rolina de Matos Oliveira, de Vale do
do lume: coisas do Alentejo. (Dactilo- que é hoje um repositorio curiosissi- Pêso, teve um filho que viveu em Es-
grafado.) [N. e.] mo onde os estudiosos e amigos de tremoz largos anos e do qual as pesso-
21 Os verdadeiros poetas nascem ensi- Portugal poderão passar alguns mo- as de idade ainda talvez se lembrem.
nados – diz Julio Dantas, na «Arte mentos de verdadeiro afago. Chamava-se João de Matos Oliveira e
de Amar». 26 Cenaculo morreu em 1814 e escre- era defeituoso de um dos pés, pelo que
22 Estar sentido da matraca – frase alen- veu Os cuidados literarios do Prela- coxeava um pouco.
tejana, talvez local, pois só a ouvimos do de Beja, Memorias historicas do Esteve numa fábrica de moagem, sal-
em Messejana, e que quer dizer estar ministerio do pulpito. vo êrro, e foi pai de numerosa prole.
ofendido. 27 Subtil, Manuel. (1937.Janeiro.31). Deixou depois a linda povoação
23 Todos cantadores de fama. Um poeta popular alentejano do sé- alentejana e foi fixar residência em
24 Refere-se a um banco de ferrador, culo XVIII. Brados do Alentejo. Es- Portalegre, onde não foi feliz nos ne-
305
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
gócios, o que o levou a abandonar mundo. [N. e.] Que outros amor’s têm deixa-
aquela cidade e a ir residir em Vale 30 A. (1939.Setembro.17). Decimas e do.»
do Pêso, sua terra natal, a que mui- oitavas feitas por José Lucio da Sil- (Ribeira Grande — Açores)
to queria. Próximo da estação de ca- va Cardoso. Brados do Alentejo. Es- Leite de Vasconcelos, Mês de Sonho
minhos de ferro descobriu uma mina tremoz. [N. e.] — 1926 — pág. 210.
de que esperava auferir lucros apre- 31 Vasconcellos, José Leite de. (1916). 39 Note-se o trocadilho. A palavra «cor-
ciáveis. Afinal outros vieram a ex- Cantigas quadradas: nótulas etno- rente» significa no verso 1.º: nascen-
plorá-la, sem que o honesto chefe gráficas. Elvas: Edição de António te de água; no v. 3.º: cadeia de me-
de numerosa família colhesse bene- José Torres de Carvalho. [N. e.] tal. E digo isto, por, em Reguengos
fícios da sua descoberta. 32 Assim ouvi, com oito (nove) sílabas, de Monsaraz a cantarem desta ma-
Desgostoso, partiu com a esposa e fi- em vez de sete (oito); para o verso neira:
lhos para Lisboa onde viveu alguns ficar certo deve ser: Podes ver-te en- «O amor é uma nascente, etc.»
anos. vergonhado. De um verso hipérme- 40 Ocultar.
Um dia foi chamado a Estremoz pa- tro dizem os cantadores que tem um 41 Ditado popular.
ra tomar conta de um serviço remu- ponto a mais. Ponto significa síla- 42 Acontece, por vezes, aparecer a pa-
nerado e temporário. ba. lavra êle empregada expletivamen-
Aceitou com satisfação e partiu pa- 33 Cantiga feita por um cantador da vi- te nas orações impessoais, no falar
ra a linda terra onde passara alguns la do Bogalho (Alandroal). alentejano.
anos felizes. Foi, mas não voltou! 34 Segundo e conforme é expressão alen- Outros exemplos:«Êle ontem choveu».
Faleceu em Estremoz e cremos que tejana (pleonástica). «Êle há pessoas de mau génio».
aí jazem as cinzas do inteligente mas 35 Cante (assim por aqui dizem pelo Ainda acêrca do assunto, veja-se o
infeliz alentejano. Alandroal) é nome verbal de cantar, que se diz nas Ementas gramaticais,
Quantas vezes ouviria ele contar a como descante de descantar. Tam- publicadas na Revista Lusitana, vol.
sua mãe o episódio em que tomou bém em espanhol se diz cante. Cfr. XXXIII — 1935 — pág. 202, o sá-
parte principal o poeta Ambrósio Cantes Flamencos de H. Schuchar- bio Prof. Leite de Vasconcelos: «75.
naquele mau encontro com a guer- dt. Sujeito gramatical de oração impes-
rilha! 36 Pombinho Júnior, José António. (1942). soal.
Ainda como pormenor, queremos acres- Cantigas dobradas. Ethnos. Volume Uma cantiga de Moncôrvo, colhida
centar que a referida senhora D. Caroli- ii. Lisboa: Instituto Português de Ar- pelo Ab.e Tavares diz:
na era irmã do dr. Eusébio Valeriano de queologia, História e Etnografia. 391- O jasmineiro é verde,
Matos, que foi cirurgião militar em El- 409. [N. e.] Que dá suas flores brancas:
vas e figura bem conhecida no Alto-Alen- 37 Nacer, ou narcer, v. i. Formas popu- Êle não pode ser leal
tejo uns quarenta ou mais anos atrás. lares de nascer. Que dá falinhas a tantas!
N. R. – Quando frequentava- 38 É do cancioneiro popular, sòmente Êle é sujeito mèramente gramatical
mos as primeiras letras em Portalegre modificada no verso 1.º: e pleonástico, para introduzir a ora-
ouvimos a uma senhora de idade, atri- «Se desta terra me fôr, etc.» ção de quem. Bastaria dizer-se: não
buir a um espertalhão o seguinte im- Cfr. T. Pires, Cantos Pop. Port., vol. pode ser leal quem dá, etc.
proviso salvador quando surpreendi- III — 1909 — pág.I34; Teófilo Bra- Outros casos:
do com outro companheiro por uma ga, Canc. Pop. Port. — 2.ª ed. — — Choveu muito? Resposta: Êle não.
patrulha ameaçadora: I911 — vol. I — pág. 226 e João do — Vieram todos? Resposta: Êle não.
Viva D. Pedro e D. Miguel Minho, Trovas do Povo — I917 — Aqui o não figura para o espírito co-
Viva toda a reinação pág. 54. mo verbo (predicado) impessoal, e êle
Viva eu, viva aquele Cp. ainda esta quadra: é o respectivo sujeito gramatical.»
Vivam todos q’uaqui’stão! «Se vieres para o meu peito, 43 Cp. estas quadras
29 Ver a intervenção de Marques Pin- Traze faca e machado, Se o meu cantar te dá pena,
tassilgo no c.d. Eu vivo no jardim do Para cortar as raízes O meu chorar alegria,
306
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Chorarei uma ano inteiro, F. Pires de Lima, Cantares do Taméim a minha amizade
Que um ano não é um dia. Minho — 1937 — pág. 69. Ô péi da tua éi dobrada.
(Portel) «Eu já morri uma vez,
Variante: Achei o morrer tão doce!... Quéim a mim me ouvir cantar,
Se o meu cantar te dá pena, Quem me dera morrer mais, Dirá como ‘tá alegre;
O meu chorar alegria, Se o morrer sempre assim fôs- Têinho o coração más negro
Já hoje não canto mais, se...» Cá tinta com que s’escreve.
Quero chorar todo o dia... (Santo Tirso) (a) O sr. dr. Luís Chaves publica na
(Sousel) Revista Lusitana, vol. XVII — 1914 R. L., XIX, p. 300, uma variante re-
44 Vid. nota 52. — pág. 313. colhida em Santa Vitória do Amei-
45 Nas falas populares, por analogia, o 48 «CA, (câ), conj. Ant. Que, porquê. xial — Estremoz.
pretério tem a 2.ª pessoa do singu- Ainda us. No Algarve. (Do ant. fr. 49 O povo emprega faz por faze, diz
lar terminada também em s. Outros ca, hoje car, se não é alter. do port. por dize, etc.
exemplos: que)». C. de F., Novo Dic. — 3.ª ed. — É apócope plebeia.
Trocastes-me a mim por outra, — vol. 1 — pág. 319. (Est. e Alentejo)
Ê béim sê que me trocastes. «a ssy mesmo qua a ninguém.» T. Braga, Canc. Pop. Port., vol. I — 2.ª
Manda-me dizer, amor, (Pág.32). ed. ampliada — 1911 — pág. 255.
Na troca canto ganhastes. «CA (qua), lat. quam: do que.» Cp. Também a cantiga nº 20.
(Reguengos de Monsaraz) (Pág.46) 50 Nota-se idéia parecida nestas duas
Leite Vasconcelos, Farsa do Alfaiate quadras:
Ó morte, cruel morte, — 1924. «Eu casei-me, cativei-me,
Repara prô que fizestes! «CA, porque, do que a. — Cá non, Inda me não arrependi;
Levaste a minha amada porque não.» Quanto mais contigo estou,
Prá sombra dos aceprestes. H. Brunswich, Dic. da Antiga Lin- Menos posso estar sem ti.»
(Montemor-o-Novo) guagem Portugueza — 1910 — pág. (Benavente)
Variante, que faz parte da Cantiga 55. Luís Chaves, O Amor Português,
da pomba sem fel, publicada por M. O falecido Professor e sábio filólogo 1922, pág.100.
Cardoso Marta no seu interessante Júlio Moreira, nos Estudos da Lín- «Quanto mais estou contigo,
livro Folclore do Cadaval — 1934 gua Portugueza — 1.ª série — 2.ª ed. Menos posso estar sem ti;
— pág. 41: — 1922 — pág.65, diz: Que a paixão que nasce d’alma
«Ó morte, que ‘stás vingada «No português popular há ainda ou- Tem princípio e não tem fim.»
Neste golpe que me destes; tra conjunção que serve para intro- 51 Em S. João das Areias — Beira — re-
Roubastes a m’nha amada duzir o segundo têrmo de compara- zam uma oração ao Anjo da Guar-
Prá sombra dos arciprestes.» ção. É a palavra ca, que represen- da, que termina assim:
(Cadaval) ta directamente a conjunção latina «[…]
— As duas quadras do Alentejo já eu quam. Diz-se também do ca. Ouve- Tenho isto encomendado
incluí no vol. I, pág. 111, das minhas se com frequência: é mais alto ca ti: Desde a hora em que nasci.»
Cantigas Populares Alentejanas. é mais velho ca mim ou do ca mim; Idem, ibid. — vol. II — 1913 — pág.
46 Cp. as cantigas: n.º 22 e as da nota etc. na língua arcaica aparece tam- 219.
50. bém esta forma em exemplos como: 52 É vulgar, pelo menos no distrito de
47 Cfr. as variantes: mais quero que mates mim ca o veer Évora, o emprêgo de vás por vais (is-
«Eu já morri uma vez: matar ante mim.» (Santo Graal). to é, o conjuntivo em vez do indica-
Achei o morrer tam doce!… Cfr. Estas cantigas recolhidas em Évo- tivo).
Morreria duas ou três ra: 53 Cfr. a variante:
Se por tua via fôsse...» Dizéim ca fôlha do trigo (a) «Tira-me a seta do peito,
(V. Nova de Famalicão) Êi maior cá da cevada; Deixa o meu sangue correr;
307
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO
Se tu por mim dás a vida, Teófilo Braga, Canc. Pop. Port. — 63 Esfalecer, v. i. Prov. Morrer, (De fa-
Eu por ti quero morrer.» vol. I — pág. 43 lecer). Cândido de Figueiredo, Novo
(***) 59 Cp. esta quadra: Dic., vol. I, pág. 780.
Jaime Cortesão, Canc. Popular — «Daqui donde estou bem vejo 64 Pombinho Júnior, José António. (1962).
1914 — pág. 139. Olhos que me estão matando: O ‘cante’ das ‘gralhas...à solta’. Alma-
54 Cp. estas quadras: Matai-me devagarinho, naque Alentejano. Ano XXIV. Lisboa.
«Meu coração é terra Que eu quero morrer gozando...» 194-195. [N. e.]
Lavrei-o largos anos, (***) 65 Este verso está em falta no texto
Semeei belos carinhos A. de Campos e A. de Oliveira, ob. editado. Mas no espólio encontra-
Colhi largos desenganos.» cit., pág. 224. se corrigido. [N. e.]
(Vinhais) 60 Cfr. as variantes: 66 Avelino de Sousa. (1912). O fado e
P.e Firmino A. Martins, Folclore do «Abre-me a porta, que eu morro, os seus sensores. [N. e.]
concelho de Vinhais — 1928 — p. Não abras, que eu já morri; 67 Em 1917, ainda o caso não estava
263. Não me faças perder a alma, encerrado nem esquecido, no Fa-
«Semeei, não recolhi, Que o corpo já eu perdi.» duncho é publicado o seguinte quar-
Bem pudera recolher: (Beira) teto glosado em quatro décimas da
Semeei os teus carinhos, Teófilo Braga, Canc. Pop. Port. — autoria de José Arriegas, que tam-
Não me quiseram nascer...» vol. I — 1911 — pág. 93. bém o publica no seu livro de 1922,
(***) Abre os teus braços, que eu mor- Trova portugueza
A. de Campos e A. de Oliveira, Mil Tro- ro,
vas — 3.ª ed. — 1917 — pág. 254 Aperta-os, que eu já morri: CARICATURAS DO FADO
55 O povo pronuncia felor. Já que assim o quiseste, Albino Forjaz de Sampaio
56 «Consegrar, v. t. Ant. O mesmo que Fica-te agora sem mi. (O mais grande algôz, o terrôr, o
consagrar. (Lat. consecrare)» C. de (Machede-Évora) espectro, que tanto tem «desfa-
F., Novo Dic. — 3.ª ed. — vol. I — 61 Cfr. A variante: zido» na Cancão Nacional)
pág. 502. «Pus os pés na campa fria,
57 Vid. nota 44. O meu amor me respondeu: Mote
58 Cp. estas quadras: — Tira os pés que estás calcando Quem assim insulta o Fado,
«Santa Eulália, Santa Eulália, Um amor que já foi teu.» Alcunhando-o de indecente,
Terra da minha paixão, (Viana do Castelo) Precisava sêr trincado,
Quem me dera poder dar-lhe Afonso do Paço, Canc. de Viana do Comido por toda a gente!...
Alma, vida e coração. Castelo — 1928 — pág. 217.
(Alentejo) 62 Cp. estas quadras: Glosas
Tomás Pires, Cantos Populares Por- Não se me dava morrer, Depois do que teêm dito
tugueses, vol. IV, pág. 337. Se tu fôsses o caixão: Ao famigerado Albino,
Coração, alma e vida Sepultado queria eu ser De escrinvinhar perco o tino
Tudo está na tua mão: Dentro do teu coração. E não alcanço o meu fito.
Nunca vi alma sem vida (Cano-Sousel) É bastante o que tem ‘scrito
Nem vida sem coração. Avelino, esse inspirado!
(São Manços — Évora) «Menina, tu és a tumba, Eis porque eu, mais ezaltado,
Eu serei o corpo morto, Usarei da acção directa!...
«Alma, vida e coração Não se me dava morrer Matarei com uma séta
Tudo, tudo já te dei; Sendo túmulo o vosso corpo.» Quem assim insulta o Fado!...
Se tendes tudo que anima, (Algarve)
Como sem ti viverei?» Ataíde de Oliveira, Romanc. e Canc. E após seu cadáver morto,
(Beira) do Algarve — 1905 — pág. 201. Chamarei meus camaradas,
308
O FADO OPERÁRIO NO ALENTEJO