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CASA PORTUGUESA

uma peça em cinco partes


de Pedro Penim

“Tudo acaba, tudo.”

Personagens e atores:

A Mulher – Carla Maciel


O Homem – João Lagarto
O Rapaz – Sandro Feliciano

E a participação das Fado Bicha (Lila Tiago e João Caçador)

o sinal / indica interrupção nesse mesmo sítio pela deixa seguinte.

“As imagens antropomorfizadas que veiculam a morte da casa portuguesa encontram o seu espelho
metafórico nos corpos desfeitos na guerra [de África] – as mesmas pupilas fundidas, os mesmos
hálitos de morte, a mesma cessassão intranquila de respiração, o mesmo esfacelamento físico que
visualizamos na descrição de um suicídio.”

RIBEIRO, Margarida Calafate. “As ruínas da casa portuguesa em Os Cus de Judas e em O Esplendor de Portugal, de
António Lobo Antunes”. In: Manuela Ribeiro Sanches (org.). Portugal não é um país pequeno – contar o “império” na
pós-colonialidade. Lisboa: Livros Cotovia, pp. 43-62, 2010.

Teatro Nacional Dona Maria II

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PARTE 1 – Uma Casa Portuguesa

(Abre-se a cortina. Vemos uma casa em ruínas e nela coisas velhas: um sofá, uma mesa e cadeiras,
uma arca, um lustre, um bar em madeira… pelo chão despojos e vários objetos. Estão no palco as
Fado Bicha, Lila Fadista e João Caçador, frente a frente. É a “abertura”, mas é também como se
fosse um teste. Tocam / ensaiam Uma Casa Portuguesa, música de Artur Fonseca e letra de Reinaldo
Ferreira e Vasco Matos Sequeira.
LILA canta como se estivesse a avaliar as palavras. Algumas nem sequer chega a pronunciar. Muitas
vezes comenta o que acaba de cantar. Outras vezes LILA e JOÃO interrompem a canção para se
rirem. E logo retomam. Em certas passagens a prática de poeta de LILA dá-lhe ânimo para mudar
uma ou outra palavra, como se fizesse um teste à resistência dos versos. É claramente um ensaio.
Um ensaio que é uma inspeção, uma pesagem e um varejo.)

Numa casa portuguesa fica bem / Pão e vinho sobre a mesa / E se à porta humildemente bate alguém
/ Senta-se à mesa com a gente / Fica bem essa franqueza fica bem / Que o povo nunca desmente / A
alegria da pobreza / Está nesta grande riqueza / De dar e ficar contente

Quatro paredes caiadas / Um cheirinho a alecrim / Um cacho de uvas doiradas / Duas rosas num
jardim / Um São José de azulejo / Mais o sol da primavera / Uma promessa de beijos / Dois braços à
minha espera / É uma casa portuguesa com certeza / É com certeza uma casa portuguesa

No conforto pobrezinho do meu lar / Há fartura de carinho / A cortina da janela é o luar / Mais o sol
que bate nela / Basta pouco poucochinho pra alegrar / Uma existência singela / É só amor pão e vinho
/ E um caldo verde, verdinho / A fumegar na tigela

(Acabando a canção falam entre si. A conversa é descontraída. Está quase perto do Mumblecore1.
João toca ainda. O ambiente que a música cria é bastante tenso, ameaçador até. O tom da conversa,
veremos de seguida, nem por isso. E elas conversam por cima desse “tapete”.)

LILA – Esta história começa lá atrás, numa cidade que mudou de nome.

JOÃO – Sim, porque as cidades mudam de nome.

LILA – Sim, as cidades mudam de nome. Esta cidade mudou de nome porque se libertou de um
império colonial.

JOÃO – É comum as cidades mudarem de nome... Havia uma cidade rural da Áustria que se chamava
Fucking e que no ano passado mudou de nome.

LILA – Hã? Fucking?

1Sub-género de cinema alternativo caracterizado pela atuação naturalista, diálogos na sua maioria improvisados, ênfase
no diálogo em vez da trama e na maior parte das vezes focado nas relações pessoais. No Mumblecore praticamente, não
há script: as falas fluem no improviso, de forma totalmente solta.

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JOÃO – Fucking.

LILA – Onde? Na Áustria?

JOÃO – Sim, imagina!

LILA – Em Portugal há uma terra chamada Pila.

JOÃO – Acho que é Picha. Mas nunca mudou de nome. Mas Fucking, sim. No ano passado mudou
de nome.

LILA – E mudou para que nome? Frickin? Ou Effing? Ou… espera, já sei… Sexual Intercourse!

JOÃO – Mudou para Fugging. Com dois gg.

LILA – (Ri-se.) Fugging... ridículo. (Corrigindo-se.) Quer dizer, ridículo, nada! Todo o direito! Ou...
espera... Áustria? Foi uma manobra conservadora? (Saboreia a palavra exagerando na letra g.)
Fugging!

JOÃO – Que lá no dialeto local se lê exatamente da mesma maneira: Fucking. No início eles não
queriam, mudar, diziam: "Oh, everyone here knows what it means in English, but for us Fucking is
Fucking, it’s the name of our town, and it's going to stay Fucking, because it’s been Fucking for 800
years!” Mas depois fartaram-se e mudaram mesmo.

LILA – Mas então?

JOÃO – Pá, as pessoas ligavam do estrangeiro e faziam aquelas partidas estúpidas: “Hello? Is this
fucking?” E apareciam Youtubers e Tik Tokers para fazer vídeos, imagina. E outros iam lá e roubavam
a placa com o nome da cidade. Cada vez que tinham de substituí-la eram mais 300 paus pagos pelos
locais. E depois o Pornhub desbloqueou o sinal para as pessoas de Fucking, como manobra de
publicidade. “Pornhub is free in Fucking” era o mote. (LILA atira uma farpa ao Pornhub, “Esses
chupistas!”.) E Fucking sort of viralizou e o pessoal de Fucking começou a ficar farto e finalmente,
no ano passado, Fucking fez a transição para Fugging.

LILA – Mas “fucking” nem sequer é uma palavra… assim tão… Acho fofa até! Preferia que a história
tivesse sido ao contrário, mais punk, que o nome antigo fosse “fugging” e que eles tivessem decidido
mudar para “fucking”.

JOÃO – Sim, “fucking” é tão soft… Até o Shakespeare usou.

LILA – “What’s in a fucking name?”, right? “A Lot”, responderia eu.

JOÃO – (Brinca com os nomes, arranjando uma batida.) Fucking / Fugging / Fucking / Fugging…

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LILA – Tu já pensaste em mudar de nome?

JOÃO – Eu? (Responde com verdade.) Sim, em 2018, quando foi aprovada a lei de autodeterminação
de género... Mas acho que ainda não pensei o suficiente sobre o assunto. (Muda.) Mas olha, quando
eu nasci os meus pais estavam indecisos e pensaram chamar-me Hélder. Ou então Júlia, se...

LILA – É bonito!

JOÃO – E tu...

LILA – Eu já mudei de nome. (Ela responde com verdade.) Já pensaste que a palavra que tu usas mais
vezes durante a tua vida, que as outras pessoas usam para te nomear, é uma palavra que tu não
escolheste, que escolheram por ti? Eu fui sentindo progressivamente que essa palavra já não me
representava, que dava uma ideia errada, às outras pessoas, de quem eu era. Uma questão de género,
claro. Entendendo-me como não-homem precisei de tirar o marcador de género do meu nome. (Volta
ao tema das cidades que mudam de nome.) Lembras-te de Varna, na Bulgária? Que já foi Varna,
depois foi Estaline, depois voltou a Varna…? Não é bem a mesma coisa. Mas na verdade não vejo
porque é que os nomes têm de ser tão definitivos. Não há razão para não se aplicar a mesma lógica
aos nomes das pessoas, das coisas, dos lugares...

JOÃO – Há muitas cidades que já mudaram de nome. Constantinopla virou Istambul, New
Amsterdam virou New York, Lutetia para Paris, ou Lisboa que já foi Al Usbuna…

LILA – Ela hoje está tão sabichona! Como são todas praticamente cidades ocidentais, perdoo-te o uso
dos nomes antigos. Mas com África não se pode. Por exemplo, a cidade onde esta história começa
chama-se Maputo, mas à altura tinha outro nome... que no fundo é parecido com aquilo que nós,
pessoas trans, designamos por “nome morto”. (“Dead name”, diz o JOÃO.) Há muitos Portugueses
que ainda hoje usam esse nome, esse “nome morto”. Deviam ter vergonha. (Pausa, respira, pensa e
continua, categórica, parecendo pela primeira vez dirigir-se diretamente ao público. Não é evidente.)
Usar o “nome morto” significa o uso de um nome pelo qual uma pessoa foi em tempos conhecida,
mas sem o consentimento da pessoa interessada. É o caso. Usar o “nome morto” para designar esta
cidade rima com Colonialismo. (Batida forte. Talvez uma variação de Uma Casa Portuguesa. LILA
dirige-se ao bar e serve-se de um trago. Pausa.) Esta história começa numa cidade que mudou de
nome, e que agora se chama Maputo, a capital de Moçambique. Fim dos anos 40.

(JOÃO começa a tocar a mesma canção, mas de uma forma mais tradicional. LILA passeia-se pelo
cenário. O que está a acontecer só não é uma recriação de uma cena de uma casa de fados porque
ninguém está a comer pataniscas. E porque não há Guitarra Portuguesa.)

LILA - (Pigarreia. A atitude já não tem nada a ver com o Mumblecore, está agora mais a atirar à
Dona Hermínia.) E começa como costumam começar estas anedotas: (Pigarreia mais.) Dois
Portugueses entram num bar… do Hotel Girassol. O conjunto musical já está a arrumar os
instrumentos, acabou a exibição, a boate terminou e já quase não há clientes. O maestro organiza as

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pautas e os dois tipos, o Reinaldo Ferreira e o Vasco Matos Sequeira, rapazes sensíveis, porém
discretos, entretêm-se num canto a escrever versos… pornográficos, pois está claro, já que ainda
faltavam 70 anos para se inventar o Grindr2. Chega o maestro, o Artur Fonseca e, dando conta da
paneleirice que para ali ia, dá um aviso aos meninos: “Ó pshtó, filhinhos! Respeitinho, que isto é uma
casa portuguesa!” E vira-se o bom do Reinaldo, apanhado de calças na mão, e diz, disfarçando: “Ó
tio, essa é que é essa. Ouça, aí está um bom título para uma canção: uma casa portuguesa”, ao que o
maestro retruca, firmemente, ao figurão: “Uma casa portuguesa, com certeza!” Da rima espontânea e
fácil, faz-se luz na cabeça dos boys, que se metem logo a escrever, em devaneios popularuchos. O
maestro acha graça, musica os gatafunhos, e da letargia da vida portuguesa plantada em África, nasce
este autocolante mental. (Canta.)

Quatro paredes caiadas / Um cheirinho a alecrim / Um cacho de uvas doiradas / Duas rosas num
jardim / Um São José de azulejo / Mais o sol da primavera / Uma promessa de beijos / Dois braços
à minha espera / É uma casa portuguesa com certeza / É com certeza uma casa portuguesa

(Mudança rápida. Voltam ao Mumblecore e ao ambiente musical tenso. Parece que saboreiam a
canção.)

JOÃO – Eu diria que é… musicalmente agradável.

LILA – Eu diria que… tem definitivamente um piquinho a azedo.

JOÃO – Eu diria que é... flamboyant. (Querendo traduzir.) Ajuda-me…

LILA – Bicha?

JOÃO – Bicha, sim, diria que, de certo modo, é bastante bicha.

LILA – Eu diria que é… miserabilista.

JOÃO – Mas diria que não é “emo”, não dá vontade de chorar...

LILA – Dar até dá, mas é claramente um fado alegre. Diria que é assim… alegre, gay. Sim, diria que,
de certo modo, é gay, é alegre. (Ri-se.) Vá: diria que é alegrete.

JOÃO – Diria que é pobrete.

LILA – Diria que é fascista. É um fado dos anos 40/50, é um fado da ditadura, é um fado fascista!
«Alegria da pobreza»? Mas que alegria pode haver na pobreza?! E não era só pobreza económica!

JOÃO – Então, era a defesa de um espírito conformista face à pobreza. Ao gosto do ditador! "Prefiro
ver Portugal pobre a ver Portugal diferente", dizia ele.

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Aplicação de encontros para homens homossexuais, bissexuais, pessoas trans e comunidade queer em geral.

5
LILA – May he rest in pieces.

JOÃO – (Tocando.) Mas gostas?

LILA – Pode-se gostar de uma mentira? Esta canção é uma mentira.

JOÃO – Tem este movimento saudosista, bucólico, MUITO exagerado na exaltação das qualidades
do país… e que país!

LILA – Portugal anos 40: miséria generalizada, uma ditadura repressiva, uma sociedade parada no
tempo… E vêm as manas dizer: que linda é a “nossa alegre casinha, tão modesta quanto eu3”. Que
lindo que é o nosso Portugal: a nossa arquiteturazinha, os nossos costumezinhos, a nossa comidinha,
a nossa gentinha… Toda uma triste vida em diminutivo.

JOÃO – “É como se o mundo decadente do interior da “casa portuguesa” se projetasse para o exterior
e revelasse um país igualmente gasto4.”

LILA – Claro, a casa portuguesa era muito lindinha porque eles estavam lá longe, em Moçambique,
a escravizar pessoas. Eu acho que só pode ser gozo.

JOÃO – Ah sim, pode ser sarcasmo! Imagina que, no fundo, eles até eram críticos do regime e
queriam era compor um Metal ou um Hard Core, uma cena Gótica a partir tudo! (Tenta improvisar
uma versão.) Quatro paredes cagadas! Um cheirinho a... javali! Ou: um cheirinho a… neonazi.

LILA – (Entusiasmada.) Desatar ao pontapé àquela porra toda: vai o caldo verde, vai as uvas, vai as
rosas, partir o São José de azulejo à pázada, e ainda mandar o vizinho, que bate à porta
“humildemente”, pr’ó…!

JOÃO – ‘bora pensar mais? (LILA concorda.) Então… pensar na tradição, antes da chegada da
democracia... implica pensar no “mundo que essa tradição não só espelhava como propunha como
“ideal de felicidade”. “Ideal de felicidade” entre aspas muito carregadas!”5.

LILA – E esse mundo era um mundo de famílias tradicionais e de crucifixos pregados às paredes das
casas, pronto!

JOÃO – Fazer gala da escassez, da pobreza, da humildade... Não admira que a canção tenha acabado
por se tornar num autêntico cartaz musical de propaganda fascista.

3
in A Minha Casinha, uma canção de Milu
4 RIBEIRO, Margarida Calafate. “As ruínas da casa portuguesa em Os Cus de Judas e em O Esplendor de Portugal, de
António Lobo Antunes”. In: Manuela Ribeiro Sanches (org.). Portugal não é um país pequeno – contar o “império” na
pós-colonialidade. Lisboa: Livros Cotovia, pp. 43-62, 2010.
5 MOURA, Vasco Graça. “Amália: dos poetas populares aos poetas cultivados,” Lisboa: Tugaland, 2010.

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LILA – E não tardou muito para que uma canção escrita em Moçambique se tornasse num dos maiores
sucessos da música portuguesa, ouvida em muitas vozes de muitos países. (Ouvimos pequenos
excertos de várias versões estrangeiras da canção.)

JOÃO – Os regimes tentam sempre usar a música para fazer uma lavagem básica aos seus aspetos
mais problemáticos. Por falar nisso: tenho muita curiosidade sobre a arte que se produz na Rússia
neste momento, por exemplo. A arte que simpatiza com o regime. A ver se não me esqueço de procurar
no Google um destes dias: as canções patrióticas russas pro-Putin.

LILA – Credo!

JOÃO – É que alguém neste momento, na Rússia, deve estar a compor qualquer coisa parecida com:
“Numa Casa Russa Fica Bem / Pão e vodka sobre a mesa…”

LILA – O que é certo é que a Amália grava esta cançoneta nos anos 50 e nos anos 60 não há uma
alma penada em Portugal que não a saiba cantar.

JOÃO – Não, esta cançoneta chega a 2022, o ano em que a democracia tem finalmente mais tempo
do que a ditadura a que o país esteve sujeito durante 48 anos, e em Portugal não há uma alma que não
a saiba cantar. (Testa.) Agora, isso quer dizer que a canção é fascista?

LILA – Quer dizer que somos todes fascistas? (Pausa. Riem-se. Depois já não riem.)

JOÃO – Não, porque pelo menos um dos poetas, o Reinaldo, não era salazarista. O Zeca Afonso até
musicou um poema dele. Aquele do “o soldadinho não volta, do outro lado do mar” (Trauteia a
Menina dos Olhos Tristes.)

LILA – “Do outro lado do mar”. Do “Ultramar”. De África. Duma cidade que mudou de nome. E que
é onde começou esta história.

JOÃO – O soldadinho, quase sempre forçado, tem de defender a “integridade nacional da “casa
portuguesa” salazarista. E não é só a “casa portuguesa”, na sua dimensão social, moral e política, mas
também a “grande casa portuguesa”, o triste império, que se dizia ia do “Minho a Timor”.6”

LILA – “Praia e Bissau, Angola, Moçambique, Goa e Macau7”.

JOÃO – Bem vindes à Casa Portuguesa!

LILA – Fogo na casa! (Música. Fumo.)

6 RIBEIRO, Margarida Calafate. “As ruínas da casa portuguesa em Os Cus de Judas e em O Esplendor de Portugal, de
António Lobo Antunes”. In: Manuela Ribeiro Sanches (org.). Portugal não é um país pequeno – contar o “império” na
pós-colonialidade. Lisboa: Livros Cotovia, pp. 43-62, 2010.
7 in Conquistador, uma canção dos Da Vinci.

7
PARTE 2 – Dia do Pai

(O RAPAZ aparece na entrada do fundo. Vai caminhando, fleumático, por entre as ruínas. Demora-
se no espaço. Sente-se que está ali pouco à vontade. O RAPAZ avalia o cenário.)

RAPAZ – Entro no cenário da casa. É um décor. Que pretende que me imagine num outro lugar. Que
me esqueça do lugar onde realmente me encontro. (Goza.) ‘bora fingir que não sabemos realmente
onde estamos... Façam de conta que estão em vossa casa... (Pausa. Caminha mais.) Isto sou eu a
movimentar-me no décor, a “habitar” a casa. (Olha em volta, desolado.) Já se imaginou tanta coisa,
tanto cenário futurista, mas pelos vistos essa imaginação nunca tocou com um dedinho que fosse
nestas construções obsoletas. Tudo igual: portas, paredes, cadeiras, mesas… São espaços construídos
à medida de ambições bastante quadradas. Parecem máquinas do tempo! Esdrúxulas! Abrir estas
portas, sentar-me à mesa, habitar estas paredes, é como girar os ponteiros do relógio e ver-me
catapultado para... o século XIX, diria. É grave. A imaginação é estreita, é repetitiva. Em vez de
experimentar uma fruição contemporânea, excitante, libertadora, mais consequente com o tempo que
vivemos, não! Podemos apenas experimentar um bocejo, uma geometria tosca, uma caixa, que por
razões inexplicáveis foi considerada a única chave para uma existência feliz. Quartos, salas, paredes,
portas, soalhos… Ou seja: entro na casa e não me encontro. Sei lê-la, claro, porque me é familiar.
Mas não sei bem onde me colocar. Sinto-me deslocado. Não me divirto. It doesn’t spark joy8. Nada.
Niente. Nuffin. Sou eu e a casa, as duas: bored, podres, muertas... Desse ponto de vista esta casa-caixa
é um deserto. É um jazigo. (De forma desinteressada dirige-se a uma arca que está num canto.)
Descubro... uma “arma de Tchekov”. Explico: a “arma de Techekov” é um mecanismo dramático
segundo o qual todos os elementos presentes no cenário devem ser fundamentais para a história. Passo
a citar: “Se no primeiro ato há uma arma pendurada na parede, no último ato ela tem de disparar.”
Tchekov. A “arma de Tchekov” é uma velha arca de umbila. Por mim, disparamo-la já. (Abre-a.) Lá
dentro está uma velha pasta de cabedal, um diário que dá conta da passagem de um jovem soldado
português pela Guerra da Libertação de Moçambique. (Como se ouvisse um comentário vindo da
plateia.) Não, eu disse bem: Guerra da Libertação de Moçambique... (Retira o diário. Senta-se em
cima da arca.) Este baú, que provavelmente já conteve enxovais, fatos de noiva, fraldas e cueiros de
várias gerações, é hoje, o repositório de centenas de páginas de diário, de cartas e aerogramas, que
constituem memória factual de um período que marcou (e ainda marca!) a vida de quem o viveu. E
quantos milhares de baús como este, repetidos por outras tantas casas/jazigos? Passo 20 minutos a
decifrar as páginas do diário e a viver uma vida que não é minha. (Lê.) 18 de dezembro de 1968. “O
ataque era de ali tão perto que os invólucros do fogo inimigo caíam junto de nós, enquanto se ouviam
frases e palavrões em português vindos do lado moçambicano: _ Vão para casa!… Filhos da puta!…
Cabrões! .9” (Avança. Lê.) 2 de abril de 1969. “Medo? Temos. Mas a África envolve-nos na sua
multifacetada beleza, no seu grito constante de vida que nos prende, a nós, simples mortais de um
continente distante e envelhecido. A nós, que matamos para viver.10” (Avança. Lê.) “5 de julho de
1970. Há seis dias que me perguntam pelo Kafka…” (Pára. Incrédulo.) Kafka?! Não acredito!
(Retoma.) “Há seis dias que me perguntam pelo Kafka e eu não consigo responder, não sei o que lhes

8 Marie Kondo.
9 PENIM, Joaquim. No Planalto dos Macondes. C. Caç. 2448. Ed. Os Crocodilos. Maio de 2004.
10 Ibidem.

8
dizer.” (O RAPAZ está surpreendido com o que lê.) “Estou decidido a não falar sobre o que lhe
aconteceu de forma a manter o meu equilíbrio mental e a salvaguardar a minha vida. O Kafka nunca
mais vai voltar.” Passo cinco minutos a reler esta passagem até perceber que este Kafka não é o
escritor. “O Kafka nunca mais vai voltar. E não há nada que eu possa fazer para trazê-lo de volta.”

(Entra um HOMEM, empunhando um pau. O RAPAZ não parece surpreendido.)

HOMEM – ‘tas aqui a fazer?!

RAPAZ – Uau, belíssima entrada! Um homem armado com um pau!

(O HOMEM fica confuso, por um lado pensa que apanhou um intruso, por outro dá-se conta que
talvez conheça o rapaz.)

HOMEM – ‘tás aqui a fazer, pá?

RAPAZ – Vim com a minha mãe.

HOMEM – (Ameaçador.) Hã? Quem é a tua mãe?

RAPAZ – (Suspira e revira os olhos.)

HOMEM – (Mais ameaçador.) Hã?!

RAPAZ – Baixa o pau, faz favor.

HOMEM – ‘tás aqui a fazer?!

RAPAZ – Baixas o pau? (Grita.) Ó mãe!

HOMEM – (Pausa. Acalmando-se e parecendo cair finalmente em si.) Onde é que está a tua mãe?

RAPAZ – (Grita.) Ele está aqui!

HOMEM – Parabéns, encontraste-me. Podes-te ir embora.

RAPAZ – (Para o HOMEM.) Quem era, o Kafka?

HOMEM – Hã? Xô.

RAPAZ – (Insiste.) Quem era o Kafka?

9
HOMEM – (Baixando finalmente o pau. Vai se sentar no sofá.) O Kafka? Era um gajo que dizia que
precisava de passar muito tempo sozinho, porque tudo o que tinha conseguido na vida tinha sido
mérito apenas e só dessa solidão. Agora pensa!

RAPAZ – Caranguejo?

HOMEM – O Kakfa? Por acaso.

RAPAZ – Tu.

HOMEM – Também.

RAPAZ – Típico.

HOMEM – Pronto, agora podes-te ir embora.

RAPAZ – Não queres companhia? Estás sempre aqui sozinho.

HOMEM – Solidão é criatividade. Podes-te ir embora.

RAPAZ – Achas que estou aqui por minha vontade? Achas mal. (Volta a chamar.) Ó mãe! Ele afinal
está aqui! (Para o HOMEM.) O que é que fizeste ao Kafka?

HOMEM – O que é que eu fiz?! Li! Merda de pergunta. Com a tua idade já tinha lido quase tudo.

RAPAZ – Granda homem!

HOMEM – Granda besta! Mas tu não sabes quem é o Kafka?! Eh pá, vai ler!

RAPAZ – Sei. Muito bem até. Não era desse Kafka que eu estava a falar. (Mostra-lhe o diário.) É
deste. O que é que lhe fizeste? (Pausa.)

HOMEM – Onde é que tu foste desencantar essa merda? Dá cá já isso! (Tira-lhe o diário da mão.
Enfia-o na arca.) Não mexes mais nas minhas coisas, estás a ouvir?

RAPAZ – (Rindo-se.) Chora!

HOMEM – Vens para aqui chatear-me os cornos e ainda andas a meter o nariz onde não és chamado!

RAPAZ – Chora mais.

(Entra a MULHER.)

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MULHER – (Aliviada e irritada.) Ah estás aqui! Onde é que tu te meteste? Já estava farta de te
chamar! Estavas onde? Esta casa está um caos. (Para o RAPAZ.) Já deste um beijinho ao teu avô?

HOMEM – Vê lá se lhe dizes, mas é, para não mexer nas coisas do avô!

MULHER – O que é que tu fizeste? Vai dar um beijinho ao avô, se faz favor. (Ele cumpre a ordem.)

RAPAZ – Nada, fogo! Estava só a fazer uma pergunta.

MULHER – Qual pergunta?

HOMEM – Sobre o Kafka.

MULHER – Hã?

HOMEM – O Kafka! O Franz Kafka!

MULHER – Aaaaah! Isso é por causa da audição!

HOMEM – Qual audição?

MULHER – Para a escola de teatro. Ele vai fazer uma audição.

HOMEM – Escola de teatro? Ai agora vais para ator? / Vocês matam-me.

MULHER – (Confirma.) Sim, para a semana ele vai fazer uma audiç… (Duvida.) Para a semana?

RAPAZ – Duas semanas.

MULHER – Daqui a duas semanas tem uma audição para a escola de teatro. E escolheu fazer um
excerto de uma coisa do Kafka…

RAPAZ – Kafka. Não conheces? “Vai ler!”

MULHER – A Carta ao Pai.

HOMEM – A Carta ao Pai.

MULHER – Sim, “daddy issues”! (Pausa. Suspira.) Enfim… fica a raiva mais real! (O RAPAZ
protesta. Ela pisca-lhe o olho.) Por falar nisso: feliz Dia do Pai!

(A MULHER faz rebentar uma quantidade totalmente injustificada de confettis que acertam mesmo
na cara do pai. Ficam parados por momentos. Ela começa a preparar a mesa. O RAPAZ decide
afundar-se no telemóvel.)

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MULHER – Feliz Dia do Pai.

HOMEM – Ah, é Dia do Pai?! Olha, nem tinha dado por isso.

MULHER – Então? É dia de São José!

HOMEM – Ah, é dia de São José?

MULHER – Sim!

HOMEM – Mas qual dia?

MULHER – Qual dia? Hoje! (Ele parece ficar confuso. A cena pára durante alguns segundos.)

HOMEM – Hoje o quê?

MULHER – É Dia do Pai, pai. Então?! É dia de São José!

HOMEM – (Como que acordando.) Então, o quê? Desculpa se não estou a controlar o Calendário da
Liturgia Católica, sim? Pensei que fosse outro dia. Não? Não sei, sei lá eu. Se é Dia de São José, se é
Dia de Santa Cona do Assobio... (A MULHER reprova a linguagem. O HOMEM muda de assunto.)
Para a semana faz 10 anos que a tua mãe morreu. Espero que não te tenhas esquecido.

MULHER – Anda cá. (Dá-lhe um longo abraço.) Como estás?

HOMEM – “Estou muito mal. Estou muito bem. É como preferires.” Kafka. (Referindo-se à comida.)
Foste tu que fizeste?

MULHER – Sim.

HOMEM – No outro dia fiz um Caldo Verde, “verdinho”.

MULHER – “A fumegar na tigela”? Fizeste?

HOMEM – Estava mesmo bom. Com couve-galega e chouriço. Mesmo bom. A meio da refeição
desatei a chorar porque queria muito partilhá-lo, o Caldo Verde, com ela. Porque sei que ela teria
gostado muito… (Chora. Ela vai consolá-lo. Ficam assim um bocadinho, “no abraço dos mortais”.)

MULHER – Pronto… tens cozinhado? É bom! E tens arrumado a casa? Não tens. A casa está de
pernas para o ar, pai. Nem parece a mesma. Olha lá, têm vindo cá limpar?

HOMEM – Têm.

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MULHER – Mas tu também tens de limpar! Tiras uma meia hora por dia, não te custa nada.

HOMEM – Porquê, cheira mal?

MULHER – Já teve melhores dias. Olha, a casa-de-banho precisa de obras, cheira a mofo e as louças
precisam de ser substituídas, que estão amareladas e uma vergonha. (Muda.) Temos de começar a
pensar muito bem na nossa vida…

HOMEM – Ah é? E que vida é a nossa?

MULHER – Era melhor teres aqui alguém, que pudesse cá estar com frequência, que te pudesse
ajudar. Um enfermeiro ou assim. Ou então pensarmos noutras soluções. Também há outras soluções.

HOMEM – Sim, há várias soluções. As da matemática, as da química…

MULHER – Quando viviam aqui os dois, estavam os dois aqui bem, mas agora…

HOMEM – A Solução Final…

MULHER – Não digas disparates! A casa está a cair.

HOMEM – O que não tem solução, solucionado está.

MULHER – As casas precisam de obras, de reforma, de novas visões, é normal, são muitos anos.
Mas a questão é: vale a pena?

HOMEM – A casa está ótima. / Eu estou ótimo.

MULHER – Não, não está. Não, não estás.

HOMEM – Não são necessárias “soluções”.

MULHER – (Começa a falar sobre a casa do pai, acaba a falar sobre outra coisa.) Não podes viver
sozinho nesta casa, pai! Quando viviam aqui os dois… era ok. Mas... e se acontece alguma coisa?
Imagina que precisas de alguma coisa urgente… é óbvio que não podes viver aqui sozinho. E sim, a
casa é espaçosa, mas já não nos serve. Estamos todos muito apegados à casa. Sempre! Todos apegados
às casas! Não acho normal! E esta nova situação pede outro género de funcionamento. Por isso chegou
a altura de pensarmos noutro enquadramento. Noutra visão. Noutra solução, sim. Menos solitária.
É que passamos a vida a falar da casa como o espaço privado, o espaço da individualidade, o refúgio,
o santuário, todas essas tretas que ajudam a indústria do incenso… mas as casas não são nossas. As
casas deviam servir “para entrelaçar a nossa vida com a dos outros11”. Não estás aqui sozinho. Estou
eu, está ele, está aquela planta, está esta mosca, está este molho de cabelos sabe-se lá de quem, estão

11 COCCIA, Emanuele. Filosofia Della Casa. Einaudi editore s.p.a, Torino 2021

13
todas as histórias de todas as pessoas que por aqui passaram, todas as conversas que já se tiveram
entre estas paredes. “A casa não é só arquitetura. A casa é sobretudo moral. E esta casa já não serve
a nossa moral! Se a nossa existência mudou, a nossa casa também tem de mudar12.” Tu herdaste esta
casa, do teu passado, e eu, um dia, esperemos que daqui a muitos anos, vou herdá-la de ti. Mas nós
“não somos o que herdamos (nem uma casa, nem uma nacionalidade, nem uma cultura, nem uma
língua)13.” Nós somos o que decidirmos ser e o que podemos deixar de ser a qualquer momento.
Temos de aprender a separar-nos. Das coisas, das ideias, das pessoas, das casas. A deixar para trás a
casa. Temos de aprender a deixar para trás. Porque tudo acaba, tudo! (Chega ao fim cansada,
vagamente irritada. Claramente a cena descarrilou. Ela menciona-o, até. Pausa. Sentam-se à mesa.)

HOMEM – (Para a MULHER.) Mas o que é que se passa contigo?

MULHER – (Faz-lhe um sinal de desaprovação.)

HOMEM – Deixa-me adivinhar, é por causa de um homem.

MULHER – (Ofendida. Recuperando a irritação do monólogo anterior.) Sim, óbvio! De facto,


quando uma mulher está mal… normalmente é por causa de um homem! Mas não é porque vale a
pena, não, é porque “os homens são lixo”. (Pausa.)

HOMEM – Hã?

MULHER – É um hashtag. Nunca ouviste falar? “Os homens são lixo”.

HOMEM – Hã? Mas então isso diz-se? / Que os homens são lixo?

MULHER – Se se diz? Acho que sim, que se diz! Ou pelo menos alguém tem de dizê-lo!

HOMEM – Espera aí! Isto é por causa daquele tipo que trouxeste cá no outro dia? O…

RAPAZ – (Ainda no telemóvel.) Nelson.

MULHER – Cala-te! (O HOMEM vai para continuar.) Espera! Ok, então: estatisticamente os homens
têm sido lixo.

HOMEM – Ah sim? Leste onde? Na net?

MULHER – Mas o quê, queres números? Acho que não vale a pena, não é? Há séculos que os homens
são lixo e que lixam a vida das outras pessoas. Verdade! Desde a Idade Média! “Aquela gaja é uma
bruxa!” “Ela é bruxa!” Séculos! Milénios! Desde as cavernas, mas é! Há milénios que os homens só

12 COCCIA, Emanuele. Filosofia Della Casa. Einaudi editore s.p.a, Torino 2021
13 Ibidem.

14
fazem merda. Por isso sim, os homens são lixo, diz-se! Aceita! (Bate-lhe nas costas.) Mas tens de
relativizar, amigo, ter humor também!

HOMEM – Ah tu dizes que eu sou lixo e agora queres que eu tenha sentido de humor?

MULHER – Eu não estou a dizer: tu és lixo, (aponta para o RAPAZ) ou ele é lixo...

(O HOMEM ri-se. Aliás, ao contrário do que se possa pensar, a conversa que se segue é, a espaços,
bastante bem-humorada, ainda que frequentemente se entorne o caldo.)

HOMEM – Mas queres acabar com os homens, é isso? (Provando a comida.) Hmmmm… está mesmo
bom, este genocídiozinho à portuguesa, mesmo bom! Pá, vocês matam-me.

MULHER – Se são lixo… o que é que se faz com o lixo, diz-me lá.

HOMEM – Mas são lixo porquê, vamos lá a saber.

MULHER – Alguém, alguma vez, associa masculinidade a… bondade, cuidado, respeito, apoio,
honestidade…?

HOMEM – Se não fazes isso, devias.

MULHER – Deixa ver mais: dormir em conchinha, alimentação equilibrada, reciclagem... Se ouves
a palavra masculinidade pensas é em: guerra, competição, homofobia, medição de pilas...

HOMEM – Não sejas básica. Não sejas redutora. Não sejas preguiçosa.

MULHER – Não admira que a palavra “masculinidade”, hoje em dia, raramente seja vista sem os
seus melhores amigos, os adjetivos: tóxica e frágil. Os homens estão neste momento a espancar e a
matar mulheres, outras pessoas e até a si mesmos. Parece-me bastante razoável concluir que os
homens são lixo.

HOMEM – Isso é uma generalização. E discurso de ódio.

RAPAZ – Chora.

MULHER – Ó marialva das dúzias, mas tu já viste_

HOMEM – Ó Padeira de Aljubarrota da treta…

MULHER – Tu já viste alguma vez uma frase como "os homens são lixo" ser usada num contexto
que incita ativamente à violência contra os homens? Poupa-me!

15
HOMEM – Muito lindo. Uma frase abstrata, cheia de ódio, inventada por um movimento que afirma
combater o ódio e a intolerância.

MULHER – (Para o RAPAZ.) Movimento? Qual movimento? Ele está a falar de quê? / Feminismo?

RAPAZ – Não sei, não falo básico.

HOMEM – E se os homens disserem que as mulheres são umas putas? (Ela tem uma reação negativa.)
Mas com humor, amiga!

MULHER – (Zanga-se.) Não! Isso não te admito! Não, não, não. Não podes dizer isso! / Não podes!
Não vou tolerar. Estou a falar a sério! (Continua.)

RAPAZ – (Tenta falar.) Eu acho que… Espera, deixa-me falar.

HOMEM – Mas é com humor. Tipo piada. Não era isso que tu querias?

MULHER – Entra na mesma categoria? É isso? / É isso que tu achas?

HOMEM – Então não é igual? Tu dizeres “os homens são lixo” e eu dizer “as mulheres são / umas
putas”?

MULHER – (Agressiva.) Não vais mais repetir isso, ouviste? Não admito!

HOMEM – (Para o RAPAZ.) Pronto, ela diz que não admite! Então onde é que está a igualdade?

MULHER – Surpresa: não existe.

HOMEM – Mas porquê?

MULHER – Por causa do desequilíbrio fundamental de poder entre os dois géneros, ora essa!

HOMEM – Viver em sociedade é um desequilíbrio fundamental.

RAPAZ – Então ‘bora lá lutar para que melhore! (Para a MULHER.) Dude, isto não é só sobre os
dois géneros, abre a mente, é tudo mais complexo, mais multiforme. Por exemplo: eu sou feminista
e chamo “putas” às minhas amigas.

MULHER – (Zangada.) Ai, és? Ai, chamas? Pois, mas não podes!

RAPAZ – Mas não posso, o quê?! É na brincadeira! (Para o HOMEM.) Pá, se alguém, tipo ela, disser
“os homens são lixo” eu… (Aplaude.) Agora, se tu me disseres “as mulheres são umas putas” eu
fico… (Reação negativa.) Não podes dizer. Porque és um homem. E és hetero.

16
HOMEM – E tu és o quê?

MULHER – (Ainda incrédula.) Tu chamas isso às tuas amigas? / Mas tu serás parvo?!

RAPAZ – Às vezes. Mas é com consentimento! Calma, padeira! Mas aos gajos também. É tipo…
citação… é tipo... (Desiste. Vai colocar o telemóvel num determinado sítio com o objetivo de fazer
um vídeo.)

HOMEM – (Zangado.) Não percebo é porque é que todos os homens têm de pagar as favas só porque
há por aí umas quantas bestas que andam a_

MULHER – Olha, o macho machucado! Que acha que os homens não são lixo.

HOMEM – Eu acho que toda a gente é lixo.

(A cena suspende-se. Dir-se-ia que se trata de um pequeno interlúdio. O RAPAZ começa a fazer um
vídeo para o Tik Tok ou outra plataforma parecida, dançando ao som de Wasting My Time, de Klaus
Nomi.)

HOMEM – (Retomando.) Mas isso é para quê? É para provocar?

MULHER – Às vezes é preciso provocar, para as pessoas ouvirem mesmo. Não podemos passar o
tempo a dizer: “ah, a violência contra as mulheres, contra as pessoas trans, contra os negros, tem de
parar!” etc. etc. Porque as pessoas, depois, concordam: “Sim, claro! Não pode ser, tem de parar!” Mas
isso não basta. Não basta, percebes? Mas se disseres “os homens são lixo” estás a forçar as pessoas a
agir. Tipo tu: “eu não sou lixo!” Só que és.

RAPAZ – Porque és um homem.

MULHER – “Os homens são lixo” é, aliás, a frase exata para definir a maneira como eu passo os
meus dias lá no trabalho.

HOMEM – Mas fizeram-te alguma coisa? Foi aquele palhaço que cá trouxeste no Natal?

RAPAZ – Foi.

HOMEM – Como é que ele se chamava?

RAPAZ – Nelson.

MULHER – Cala-te!

RAPAZ – (Confirmando.) Nelson. Acabaram anteontem.

17
HOMEM – Pronto, já vi que foi esse palhaço.

MULHER – Não foi nada. Damo-nos muito bem. Gosto muito dele. Sempre foi muito bom para mim,
muito meu amigo. Até me ofereceu este relógio e tudo! (Aponta, ironicamente, para o pulso vazio.
Muda.) Eu digo “os homens são lixo” e dizem logo: “Ai, isso é porque os homens com quem tu andas
são lixo.” Ou seja, a culpa é minha, claro. “Não podes dizer isso! Nem todos os homens são misóginos!
Tens de ter noção e tentar compreender os homens que não são uns não sei quê…” E eu estou-me nas
tintas para essa merda dessa conversa. É conversa só para distrair dos dados sobre a violência
masculina. Decidem falar dos homens que não são agressores, em vez de amplificar as vozes das
pessoas que tentam expressar a sua dor. (Pausa.)

HOMEM – (Faz-lhe um OK.)

MULHER – Esclarecido?

HOMEM – Eu? Eu estou a analgésicos, mal te consigo ouvir… quanto mais perceber o que estás a
dizer… (Muda.) Vamos lá mas é a saber o que é que aquele palhaço te fez!

MULHER – Ó homem, caga nisso! Quando eu digo que os homens são lixo, não estou a falar da
minha história, só. Estou a falar de privilégio.

HOMEM – Privilégio? Mas qual é o meu privilégio?

MULHER – O teu?

RAPAZ – Eish! Not esta conversa… (Finge que recebe uma chamada. Passa ao HOMEM um telefone
imaginário.) Alô! Sim. É 2022, quer falar contigo.

MULHER – O teu? É o privilégio dos homens, o privilégio dos heterossexuais e da violência de


género que continuam a_

RAPAZ – Eish! Not esta conversa de 2002… (Afunda-se outra vez no seu telemóvel. Vai murmurando
coisas do género: “Estamos em 2002, fixe, ainda nem sequer nasci”.)

MULHER – É sobre ti, mas não é sobre ti! Credo, é só ego. Gente: acalmar esse ego! Your ego is not
your amigo! Os egos das pessoas ficam afetados! A violência acontece em todo o lado só que “ai, eu
não tenho nada a ver com isso, porque eu não sou violento.” As pessoas pensam que estão fora do
sistema, que continua a promover a violência. E não podes estar fora, lamento, ninguém pode estar
fora desse sistema.

RAPAZ – Por isso baixa o ego!

MULHER – Foi o que eu disse! Pára de repetir o que eu digo, homem!

18
RAPAZ – Eu não sou um homem! (Os outros mal ouvem. Para o HOMEM.) Agora... tu, que és um
homem, tens de reconhecer que sim, és um lixo: és homem, és branco, és lixo. Ponto. E acaba a
comida que eu tenho de me ir embora.

HOMEM – Branco, eu? Eu sou praticamente turco! Já olhaste bem para mim?

RAPAZ – Cala-te, meu!

HOMEM – Sou mais do Magrebe que do Cáucaso.

RAPAZ – Cala-te! Tens sido um privilegiado toda a tua vida.

HOMEM – Eu um dia conto-te da minha experiência “privilegiada” na Guerra do Ultramar.

RAPAZ – Estás protegido pelo sistema vigente, é o que interessa. E chama-se Guerra da
Independência.

HOMEM – Vocês chamam-lhe o que bem entendem, mas quem andou lá a bater com os cornos fui
eu.

RAPAZ – Chora! (Picando-o.) Olha… quem era o Kafka? (O HOMEM estende-lhe o dedo do meio.
O RAPAZ responde na mesma moeda, eventualmente balbucia um insulto.)

MULHER – (Reprovadora.) Então?! Bom, moral da história... (Para o pai.) Tu és um homem, e por
isso tens um problema. (Para o filho, que se ri.) E tu também és um homem, e também tens um
problema! E tens de ter tento nessa língua.

RAPAZ – Eu?! (Rindo-se.) Ele é que me fez um... (Estica o dedo do meio.)! Tu é que tens de ter tento
na língua. Não sei se sabes, mas o #menaretrash nasceu em África, por isso cuidadinho com a
apropriação.

MULHER – Não te rias! (Respondendo ao reparo.) Viralizou na África do Sul, eu sei. Olha… onde
uma mulher é morta por um homem a cada quatro horas! Por isso vejam só, vocês são homens, têm
aí um grande problema, meus senhores! E agora?

RAPAZ – (Ele ainda ri.) Não, eu não sou um homem.

MULHER – Oh, não me interessa! ‘Migas, “putas”, homens: resolvam essa merda desse problema!
O problema é vosso! Eu estarei aqui para, no fim, vos dar um abraço e perdoar-vos. Mas até lá não
há aliança, não há diálogo, não há conciliação. (Para o filho.) E tu não me venhas dizer que és
feminista, e que percebes, e que estás em contacto com o teu lado feminino, porque eu não acredito
em nada disso, ouviste?! É tudo performance! É só espetáculo! É só para assinalares virtude e para
não perderes privilégio. Porque tu és um homem! (Para o pai.) E tu, estás-te a ver a perder privilégio,
todos os dias, e estás com medo. A História está a bater à tua porta! A bater, a bater, a bater. E tu estás

19
a fingir que não ouves! Só que o barulho é cada vez mais ensurdecedor e o relógio está em contagem
decrescente. Vocês são homens, o problema é vosso! Resolvam! Trabalhem!

RAPAZ – (Ele já não ri.) Não! Eu não sou um homem!

MULHER – Ai, tu não és um homem?

HOMEM – Olha ele a fugir com o rabo à seringa! Ah agora não és um homem? Não te dá jeito, é? /
Vocês matam-me.

RAPAZ – (Irritando-se.) Pá, não! Vai chatear o Camões!

MULHER – Ai, não és um homem? Conta lá!

RAPAZ – Oh páaaa! Not tu a assumir coisas só por estares a olhar para mim! Corta com essa merda
dessa tirania do olhar! E de assumir cenas a partir do que tu vês!

HOMEM – Dá-lhe jeito agora.

RAPAZ – Eu até respondo a pronomes masculinos, até aí ok. (Por agora! Do futuro, não sei.) Mas
não me venham dizer que eu sou um homem. Não me venham dizer essa merda, porque eu não quero
essa merda colada a mim. Não quero vestir essa cena, esse blazerzinho cinzentinho escuro, com essa
camisinha azul às risquinhas e esse sapatinho engraxado, essa cena chamada “homem”.

MULHER – (Para o HOMEM.) Estás a ver? Isto é que é fixe. Dizes “os homens são lixo” e a frase
provoca as pessoas, enceta um diálogo. Facilita o diálogo, até.

HOMEM – Facilita a gritaria, diria eu.

MULHER – Tu não queres fazer parte do diálogo?

HOMEM – Eu tenho 75 anos e já não quero fazer parte de nada. E não sou lixo! Não. Sou. Lixo!

MULHER – És sim. Aguenta, septuagenário ermita!

HOMEM – A tua dor é a tua verdade. (Pausa.)

MULHER – (Verdadeiramente irritada.) Não! Não insinues que o meu ativismo é ressabiamento!
Agora sim! Acabaste de provar que és mesmo um lixo. (Pausa. Toca o telemóvel dela. Ela vai atender.)
Olha lá, eu não disse para não me ligares?! (Sai, ainda a falar.)

HOMEM – É o palhaço.

RAPAZ – O único palhaço aqui és tu. (Sai também.)

20
(A MULHER volta, com outra roupa. Conversa ainda ao telefone. Não necessariamente com a mesma
pessoa. Fala como se estivesse sozinha na casa.)

MULHER – Vim cá dormir, sim. É estranho. Estar aqui sozinha. É estranho. Tenho a sensação de que
está tudo no mesmo sítio. Que nada se alterou nesta casa. Que passei a noite num museu. E que agora
é a mim que cabe desmantelar o espólio. (Pausa. Brinca.) Tens um martelo pneumático que me
emprestes? (Pausa.) Sozinha, sim. Não. Está fora. Não me podia ajudar.

HOMEM – Estás a falar com quem? (Ela não responde. É como se ele ali não estivesse.)

MULHER – Está fora. Foi com uns amigos da escola de teatro. Viagem de fim de curso. A Mérida.
(Pausa.) Vim meter coisas em caixas. Então, tudo o que aqui está, o que é que queres que te diga?
Lixo, sim. Praticamente só lixo.

HOMEM – Oi?! Estás a falar com quem?

MULHER – (Continua.) Sim, não faz mal, não te preocupes. Eu consigo sozinha. (Pausa.) Custa,
claro! Achas que é fácil, deixar assim uma casa? Mas tudo acaba. Tudo. É que é mesmo assim!
(Pausa.) Tem os seus momentos. Momentos de grande lucidez… em que tudo parece fazer sentido.
Mas depois há dias em que nem sequer sabe quem eu sou. Há dias em que pensa que eu sou a minha
mãe. É muito triste. (Pausa.) Ela? Há 15 anos, já. (Suspira.) Parece que foi ontem.

HOMEM – Estás a falar com quem?!!

MULHER – Esta semana tem estado muito chochinho… e um bocado disparatado. No Sábado, por
exemplo, passou o dia a perguntar-me pelo Kakfa. Sim, o escritor, imagina. (Ri-se.) Ó pá, não sei. Eu
sei lá! (Pausa.) Tinha de ser, pois. Ele não queria, mas tinha de ser. E fica lá muito bem, sim. Está lá
há um mês já. (Pausa.) Casa Oitenta Primaveras. Foi o Hélder que me falou. O sítio é fantástico.
Seguríssimo. Com condições ótimas. (Pausa.) Não, é perto. Fica a uma hora de carro.

HOMEM – Alô?!

MULHER – Qual casa? Esta? Era. Era uma casa imponente. O meu pai dizia sempre “a casa não é
pequena”. Mas tudo acaba. Tudo. E esta tem os dias contados. “Não podemos construir futuro sobre
os escombros de uma casa morta14”. (Sai ainda a falar ao telefone.)

HOMEM – Estão a matar-me. (Rabujento.) As minhas costas estão a matar-me. As minhas pernas
estão a matar-me. Os meus pés estão a matar-me. As minhas articulações estão a matar-me. Os meus

14RIBEIRO, Margarida Calafate. “As ruínas da casa portuguesa em Os Cus de Judas e em O Esplendor de Portugal, de
António Lobo Antunes”. In: Manuela Ribeiro Sanches (org.). Portugal não é um país pequeno – contar o “império” na
pós-colonialidade. Lisboa: Livros Cotovia, pp. 43-62, 2010.

21
músculos estão a matar-me. A minha coluna está a matar-me. A minha cabeça está a matar-me. Estão
a matar-me. Estão a matar-me. Estão a matar-me...

(A MULHER volta com outra roupa, a mesma que estava a usar no início. O RAPAZ também regressa.
A conversa está acesa.)

MULHER – É para matar mesmo! É que são justamente os que ficam na defensiva, como tu, que são
mesmo lixo! Agora: se não te metes com queixinhas, se até ajudas a gritar “os homens são lixo” aí é
quando começas realmente a trabalhar! Vai, trabalha: “os homens são lixo”. Vá, repete lá! Trabalha!
(Pausa. Ele está ainda absorto, perplexo com a cena anterior.) O que é que se passa?

HOMEM – (Agressivo. Voltando subitamente à consciência.) Trabalhem vocês! Para me pagar a


reforma! Isso é conversa só para chocar as pessoas. É só teoria. Até tu acreditas que há homens que
não são lixo. (Referindo-se ao RAPAZ.) Por exemplo: no fundo, no fundo, achas que ele não é lixo.
Falas sobre ele e vêem-se os poros encharcados de orgulho maternal. És uma hipócrita.

MULHER – Quero trazer as pessoas para a conversa! E estou a educá-lo.

HOMEM – Essa educação é que é um lixo! Tivemos todos uma educação de merda, porque o mundo
é uma merda e por isso somos todos lixo. Pronto, fim de conversa.

RAPAZ – Sim, e “all lives matter”! Meu, aceita! Não venhas com desculpas, todos os homens são
lixo. Quando uma parte considerável de um grupo (ou de uma espécie, ou qualquer merda, não
interessa) apresenta um determinado comportamento, entram na categoria “todos”, é simples. Talvez
nem todas as cobras mordam, mas não vou ficar à espera de que a cobra que me calhou na sorte seja
uma cobra que não morde. As cobras mordem, os homens são lixo. Aceita, meu!

HOMEM – Essa tua teoria é que é lixo! Lixo generalista! Hashtag generalixo.

MULHER – Ó, filho…

HOMEM – Ó, pai...

MULHER – Olha à tua volta! A masculinidade está a ser redefinida, filho!

HOMEM – (Cantando.) “Afasta de mim esse cálice, pai!15”

MULHER – Finge que não vês, finge! Está aqui! Está em todo o lado! Pode ser uma resposta aos
abusos, aos movimentos de mulheres que têm denunciado os milhares de abusos. Ou então uma
reação a um tipo de poder machista e fascista, tipo Bolsonaro, ou Putin, ou o Orban, ou o Erdoğan,
ou o gajo da Polónia… o... aquele, que tem um nome bastante gender neutral por acaso… o...

15 in Cálice, uma canção de Chico Buarque.

22
RAPAZ – Duda.

MULHER – Duda! Representantes máximos que são o aval para os macho-fascistas fazerem e
dizerem merda. Ou talvez seja apenas porque a geração Z não quer ser como os pais deles, nem como
os avós. E adivinha quem vai tomar conta do mundo?

HOMEM – Não queres ser como o teu pai?

RAPAZ – Não.

HOMEM – Não queres ser como o teu avô?

RAPAZ – Não.

HOMEM – Queres ser como a tua mãe? Por isso é que pintas as unhas?

MULHER – Não, pai. O que estamos a assistir agora é muito mais profundo do que gajos que pintam
as unhas ou que gastam rios de dinheiro em skincare, ou que dizem “vou-me hidratar” em vez de
dizer “vou beber um copo de água”.

HOMEM – Queres ser como a tua mãe? Ó homem, responde!

RAPAZ – Eu não sou um homem! Já disse.

HOMEM – Eu acho que ele está a sair do armário e tu não estás a prestar atenção.

RAPAZ – (Decidido.) Já fui para a cama com homens, se é o que estás a insinuar. (Ela ri-se. O RAPAZ
mostra ao HOMEM o seu telemóvel.) Olha aqui, eu a mamar na boca de 2 gajos. (O HOMEM não
acredita no que vê.)

HOMEM – Tira-me isso da frente! Isto és tu? Vocês querem matar-me?

RAPAZ – É para matar mesmo! Há coisas que têm de ser destruídas para que outras, melhores,
possam aparecer. Não se fazem omeletes sem ovos, nem revoluções sem sangue, lamento. Há coisas
que têm mesmo de acabar e pronto! (RAPAZ faz um gesto de “cortar o mal pela raiz”. Sai de vez. O
HOMEM parece perdido e irritado. De repente parece ter perdido o fio à meada.)

HOMEM – Mas o que é isso, ser homem? (Pausa.) Hã?! O que é isso? “O que é ser homem?16” O
que é ser homem? O que é ser homem? O que é ser homem? (Vai entrando numa espécie de transe,
com a repetição tornando-se cada vez mais intensa, até que às tantas parece que ele está a dizer “Eu
quero ser homem”. A MULHER tenta perceber o que se passa. Em vão. Fica paralisada por esta

16 in Masculinidades, uma canção de Tiago Iorc

23
explosão repentina do seu pai.) O que é ser homem? O que é ser homem? O que é ser homem? (A
MULHER sai, como se fosse procurar ajuda. Ele continua. O RAPAZ entra. Com outro figurino.)

RAPAZ – Ser homem é uma charada. E esta charada da masculinidade é para matar!

MULHER – (De fora de cena.) Ui, para matar! É isso que a vossa geração quer fazer?

RAPAZ – A masculinidade é uma identidade que é construída a partir da opressão. Por exemplo, as
crianças que são registadas à nascença como sendo do sexo masculino aprendem logo a ver o mundo
dividido entre vencedores e vencidos. E fazem-no à porrada! Sempre à porrada! Bulhas, brigas, rixas,
pegas, lutas, guerras. “Quem ganha é quem sai com a masculinidade intacta e quem perde é quem
fica invisível. E feminizado! Ser um homem não viril é um ato revolucionário17!”

MULHER – Está no ar! Essa luta! Eu, pelo menos, sinto.

RAPAZ – Também! Nas conversas de café, nos debates políticos, nas caixas de comentários… pronto,
caixas de comentários são um degredo, mas também há conversas sérias, sobre o que significa, hoje
em dia, ser homem – ética e moralmente – e como as pessoas com consciência política e social (e
ambiental!) se podem (se devem!) desfazer da masculinidade. (O RAPAZ parece dar-se conta de que
o HOMEM possa estar incomodado com a conversa, dado que ele parece de facto incomodado com
a conversa. Para a MULHER.) Tem a certeza que ele não ouve? (Ela entra e encolhe os ombros.)
Posso mudar-me ali dentro? (Sai.)

MULHER – (Começa a dar comida à boca do HOMEM.) Mas quais aspetos da masculinidade? Tudo,
não é? O conceito.

RAPAZ – (De fora.) “A” masculinidade!

MULHER – A tóxica. Ou a frágil.

RAPAZ – Você esqueça essa conversa! “A” masculinidade. A que tem sido citada como a razão de
tudo o que é nocivo, desde tiroteios em escolas, violações, assassinatos, online trolling, mudanças
climáticas, racismo, bullying, transfobia, o Brexit, tudo!

MULHER – Tudo! Mas olha que é esse “tudo” que é difícil de engolir. “Tudo”! As pessoas
simplesmente não ouvem, porque acham que é uma generalização estúpida. E não ouvindo não
aprendem.

RAPAZ – (Entrando, já com vestuário de trabalho de auxiliar médico.) Mas “Se é sobre doutrinação,
eu cheguei para doutrinar!18” Disse “tóxica”? Então: “Masculinidade Tóxica”, não uso. Não uso o
termo. Porque o problema é que implica que há uma masculinidade melhor por aí, que existe uma

17 STOLTENBERG, John. The End of Manhood: Parables on Sex and Selfhood. Routledge. December 3, 1999.
18 in Instagram de Bia Ferreira @lesbiterianaigreja

24
masculinidade boa e uma masculinidade má. Que existem formas de masculinidade que não são
tóxicas. Que há uma “masculinidade saudável”. O que é exatamente a mesma coisa que dizer que há
“cancro saudável”19.

HOMEM – (Inesperadamente.) ‘tás aqui a fazer? (O RAPAZ e a MULHER entreolham-se.)

RAPAZ – Então: estou aqui para dar uma ajudinha, só isso.

HOMEM – Quem és tu?

MULHER – Então, pai? Sabes perfeitamente quem é.

RAPAZ – Sim! Somos velhos amigos...

(Separador. Há música intensa. O RAPAZ vai aplicando ao HOMEM alguns procedimentos básicos
de enfermagem. No fim do separador o RAPAZ sai.)

MULHER – (Ao telefone, olhando para o espaço.) …pronto, é bastante grande. Mas parece maior do
que é na realidade. É bonita. Mas é antiquada. (Repara na reação do pai.) Vá, clássica. É… olha, é
uma casa portuguesa. Isso! “Com certeza”. (Pausa.) Não. Sendo muito honesta, não. Está velha.
(Pausa.) Tem bolor. Cheiro a mofo. Falhas. Infiltrações. Corrosões. Irregularidades. Inadequações.
Obstáculos. Desleixo. Pó. Fantasmas. (Pausa.) Tens de vir cá ver. Exato. (Pausa.) Estou a ser honesta.
Não vou estar aqui a dourar a pílula. (Pausa.) Pronto, dizes-lhe que se ela estiver interessada, se quiser
fazer uma visita, que ligue diretamente para mim. (Pausa.) Até logo. Beijo. Eu também.

HOMEM – Estavas a falar com quem?

MULHER – Com o Hélder.

HOMEM – Quem é o Hélder?

MULHER – O meu namorado.

HOMEM – O informático?

MULHER – Ui! Não. Esse era o Nelson. Credo!

HOMEM – Esse palhaço. O que é que ele te fez?

MULHER – O Nelson?! Nada! Já não sei nada dele há mais de dez anos.

HOMEM – Mas não acabaste de falar com ele ao telefone?

19 STOLTENBERG, John. The End of Manhood: Parables on Sex and Selfhood. Routledge. December 3, 1999.

25
MULHER – Não. Estava a falar com o Hélder. O meu namorado.

HOMEM – Então quem é o Hélder?

MULHER – Mas tu não ouves? O meu namorado!

HOMEM – Hélder? É Mórmon?

MULHER – Hã? Já te falei dele mil vezes. Ele quer muito conhecer-te. Foi ele que me falou da Casa
Oitenta Primaveras. (Pausa.)

HOMEM – O que é isso, a Casa das Sessenta Primaveras? (Pausa. Ela não responde. Batem à porta.)
Podes ir abrir? (Ela não se mexe. Batem mais.) Não queres ir abrir? (Ela não diz nada. O som é cada
vez mais forte.) Vai abrir por favor. Deve ser o teu filho.

MULHER – (Espantada.) Deve ser quem?

HOMEM – O teu filho.

MULHER – O meu filho?

HOMEM – Sim, o teu filho, o meu neto. (Batem mais.)

MULHER – Qual filho? Estás a falar de quê?

HOMEM – Do meu neto.

MULHER – Mas qual neto? Tu não estás a dizer coisa com coisa, pai...

HOMEM – Do teu filho! O teu filho! (Pausa.)

MULHER – Mas qual filho? (Ela sai, desesperada. Batem cada vez mais à porta. Com força.)

HOMEM – Quem é? (Batem.) Quem é?!!

RAPAZ – Sou eu!

HOMEM – Eu quem? (Batem.) És tu? (Batem.)

RAPAZ – Sou eu!

HOMEM – Eu quem, porra?

26
RAPAZ – A História. (Bate mais ainda. Diverte-se a bater à porta. Canta, até. Mas o canto é sinistro.)
“E se à porta humildemente bate alguém! Senta-se à mesa com a gente!”

(Aterrorizado, o homem recusa-se a abrir a porta. Fica ali, em tensão, bastante tempo, a olhar para
a porta. O barulho não diminui. A MULHER aparece ao fundo.)

MULHER – (Muito excitada.) A casa é fantástica!

HOMEM – (Tentando compreender o que se passa. Tentando falar.)

MULHER – Xiu! Deixa-me aproveitar o momento. A primeira vez que entramos na casa. De todas
as formas de relacionamento que se pode ter com uma casa, esta é talvez a mais hipnótica. (Numa
velha telefonia que por ali anda perdida ouve-se uma velha canção, talvez o Frente a Frente da
Jeanette. Ela beija-o e depois abraça-o. Fica a sentir as vibrações da casa.) O encontro com a casa.
Imaginar que a casa estava à nossa espera. Imaginar o que ela foi antes de nós. O que foi ficando de
quem nela morou. As vidas passadas que ocuparam este espaço.

HOMEM – Espectrologia.

MULHER – Tentar ver para além da mera estrutura. Traduzir a arquitetura. Interpretar os sinais, os
sintomas, os indícios. Divisar. Para além do que é opaco. Profetizar. Decifrar a promessa de felicidade.
Antecipar o futuro. (Muda.) A casa-de-banho precisa de obras. Cheira a mofo e as louças precisam
de ser substituídas, que estão amareladas e uma vergonha.

HOMEM – Já tinhas dito.

MULHER – Gostaste da cozinha?

HOMEM – Não desgostei. (Ela ri-se.) Estás a rir de quê?

MULHER – Imaginar-te na cozinha.

HOMEM – (Rindo.) Sou um lixo.

MULHER – Pá, faz-te um homem! Ou seja: toma conta da cozinha! Não foi para isso que se fez o 25
de abril?

HOMEM – (Abraçando-a. Muito cúmplice.) Vá, vá! Não queiras, também tu, “moldar o mundo a
uma obsessão identitária, que não “inclui”, mas exclui20.”

MULHER – Ai, homem! Tu matas-me. (Beijam-se. Voltam a bater à porta.)

20 PACHECO PEREIRA, José. Porque é que “todes” não é todos, nem todas? In Jornal Público. 9 de Julho de 2022.

27
HOMEM – Eu? Que disparate.

MULHER – Matas-me.

HOMEM – Não. O que seria de mim sem ti? Onde é que vais? (Ela vai saindo em silêncio. O HOMEM
fica ali, a olhar para o vazio.) Fica aqui. Onde é que vais? (Voltam a bater.) Quem é? Quem é?!
(Batem mais.)

LILA – Pai!

HOMEM – Quem é?

LILA – Sou eu! Abre a porta.

HOMEM – Eu quem?

LILA – Pai! Abre! (Ele vai abrir. Aparece LILA. Dá um beijinho ao HOMEM.) Feliz Dia do Pai!

HOMEM – Hm? (Confuso.) Mas qual dia?

LILA – Qual dia? Hoje! (Ele parece ficar confuso. A cena pára durante alguns segundos.)

HOMEM – Hoje o quê?

LILA – É Dia do Pai, pai. Então?! É dia de São José!

JOÃO – Eu sei lá se é Dia do Pai, se é dia… (Indo sentar-se. Para LILA.) Entra filha, senta-te aqui
com o pai, não fiques aí especada!

LILA – (Para o JOÃO, que não tinha ainda entrado e tinha ficado à porta.) Entra!

HOMEM – (Perdido.) Mas quem é este?

LILA – “Este” (Pausa.) …é o Hélder. (Pisca o olho ao JOÃO. Riem-se.) Hélder, “este” é o meu pai.
(Riem-se mais. Depois já não se riem. Música.)

28
PARTE 3 – Carta ao Pai

(O RAPAZ entra, pelo fundo e avança para a boca de cena. Desta vez o figurino faz dele uma figura
assombrosa, Kafkiana. Desce também um telão onde figura um “São José de azulejo”. O RAPAZ
coloca-se à frente do telão. Vai interpretar um excerto - na verdade uma adaptação bastante livre -
de Carta ao Pai de Franz Kafka, de 1919. O HOMEM assiste. Por vezes comenta. A violência do
discurso vai em crescendo.)

RAPAZ – Querido Pai,


perguntaste-me recentemente porque é que eu digo que tenho medo de ti. Como de costume, não
soube responder. Por um lado, justamente, por causa desse medo que tenho de ti, por outro porque os
motivos por detrás desse medo são tantos que não poderia condensá-los assim, só numa fala.
E se agora tento responder, com esta carta, será de uma forma muito incompleta, porque também ao
escrever, o medo e as suas consequências me inibem, diante de ti.
Para ti o problema foi sempre muito simples: tu trabalhaste muito, a vida toda, sacrificaste-te sempre
e em troca nunca exigiste nada. Mas esperavas ao menos algum sinal de empatia.
Em vez disso, sempre me escondi de ti, no meu quarto, com os meus desenhos, os meus livros, os
meus amigos esquisitos, as minhas ideias extravagantes.
Se tivesses de fazer um resumo do que pensas de mim, seria que na verdade não me acusas de ser
mau ou indecente, mas de ser frio, ausente e ingrato. E ainda por cima achas que é tudo culpa minha.
E eu, até certo ponto, concordo contigo. Que tu não tens culpa, da distância que tem aumentado entre
nós os dois. Mas eu também não tenho culpa.
Sem culpas! Sem culpas!
E é bem possível que, mesmo que eu tivesse crescido totalmente livre da tua influência, eu tivesse
sido à mesma, um ser humano sem vigor, medroso, hesitante, inquieto, alguém que não é movido pela
vontade de viver, de fazer negócios, de conquistar. Que age de forma mais secreta, mais tímida, mais
sonsa, numa outra direção e que, muitas vezes até, desiste por completo.
Tu, pelo contrário, és força, apetite, sabes falar, falas alto. Sempre um teatro de altíssima qualidade!
Tens auto-satisfação, superioridade diante do mundo, perseverança, presença de espírito,
conhecimento dos homens, tens prémios… Compara-nos! Kafka contra Kafka!
Somos tão diferentes um do outro. Tu elogiavas-me quando comia à bruta, ou quando bebia cerveja
como um alarve, ou quando papagueava as tuas expressões favoritas, mas nenhuma dessas coisas
pertenciam ao meu futuro. Ali estava eu, nas tuas mãos, um esqueleto vaidoso, com medo da água, e
incapaz de nadar como tu. E embora as tuas intenções fossem boas, incutiste em mim uma profunda
vergonha porque me mostraste uma e outra vez como é que se nada e mesmo assim eu não conseguia
aprender.
E tudo isto corresponde exatamente ao teu espírito senhoril. Tu puseste-te tão lá no alto que ganhaste
uma fé sem limites no teu próprio julgamento.
Sentado na tua poltrona, governas o mundo. E tornaste-te para mim no paradigma em que se tornam
todos os tiranos: a tua opinião é que está certa, todas as outras opiniões são desvairadas, extremas,
esquisitas, não normais. Tão grande é a tua autoconfiança que podes contradizer-te e ainda assim dar-
te razão, e rebater todas as opiniões até que o único homem que fica de pé, és tu mesmo. No fim só
sobras tu. Não há contraditório.

29
Por isso decidi calar-me, primeiro talvez por rebeldia, e depois porque perto de ti não conseguia
pensar nem falar. Eras extremamente eficaz. Pelo menos no que diz respeito a mim, os teus métodos
educacionais nunca falharam: abusos, ameaças, ironia. Sempre a ironia! E no fim um riso sarcástico.
Noutras alturas, em que te deixavas levar pelo... amor, suponho, e pela bondade, superavas as
barreiras e eras... simpático. Era raro, mas... era maravilhoso. Também tens um sorriso especial, que
poucas vezes vi. É assim muito calminho e afável, é lindo quando aparece, e sempre me fez sentir
contente. Mas mesmo estas impressões agradáveis acabam por confirmar o meu sentimento de culpa
e deixam-me ainda mais perdido no mundo. E por isso, tentei fugir de tudo o que me lembrava de ti.
Menos na escrita. És o assunto principal daquilo que eu escrevo. E é na escrita que eu me lamento do
que não me posso lamentar sentado no teu colo.

Mas mesmo depois de tudo isto, ainda me respondes: “Apesar do enorme esforço que estás a fazer,
para que as coisas pareçam ter sido muito difíceis para ti, na verdade elas são até bastante
compensadoras. Para começar, atiras para cima de mim todas as culpas e responsabilidades. Mas
depois és muito esperto, porque também dizes que estou inocente. E, nas entrelinhas, a minha culpa
vai aparecendo. Em argumentos como o meu carácter, a minha natureza, o conteúdo do meu discurso.
Tudo isso para deixar claro que fui eu que te ataquei e que tu só reagiste em legítima defesa. E através
desses teus métodos criativos e fantasiosos, queres dar como provadas três coisas. Primeira que és
inocente, segunda que eu sou culpado, e terceira que és magnânimo. Porque não só estás totalmente
preparado para me perdoar, como estás mais ou menos preparado para ignorar a verdade e acreditar
que sou inocente. Oh, sim, pois claro! TUDO ÀS MINHAS CUSTAS! E esta carta, é mais uma prova
da tua atitude vampiresca para comigo.”

E como é que eu respondo ao meu pai? Dizendo: mesmo estas palavras, que poderiam ser usadas
contra mim, vêm de mim. De facto, as dúvidas que tenho de mim mesmo, fomentadas pela tua
educação, são maiores que as dúvidas que tenho sobre ti.
Mas mesmo depois de permitir essa tua resposta, continuo a acreditar que a carta contém alguma
verdade. Aproxima-nos da verdade. E, portanto, permite-nos viver e morrer com um espírito mais
leve. (Pausa. Ele começa a arrumar as suas coisas, acabada que está a prova.)

HOMEM – E se isso de ser ator não der em nada, o que é que queres ser?

RAPAZ – Diretor de um teatro.

HOMEM – Ah é? (Ri-se.) E depois, fazias o quê nesse teatro?

RAPAZ – (Pensa.) Alternava. ““Teatro-como-deve-ser” com teatro “como-nunca-se-viu”. Comédias


com peças para chorar. Teatro de verão com teatro de inverno.”21

HOMEM – Diretor... vês? Até tu, queres ser um paizinho para os outros.

RAPAZ – Ninguém precisa de pai.

21 in Facebook de Jorge Silva Melo

30
PARTE 4 - Espectrologia

(Sobe o telão. JOÃO toca uma espécie de marcha fúnebre. LILA está sentada à mesa, junta-se a ela
o HOMEM, que parece expectante.)

HOMEM – Então, o que vieram cá fazer? (LILA faz-lhe sinal para ele se calar e desfrutar do momento.
Deixa passar uns segundos e depois responde-lhe.)

LILA – Viemos pôr um filtro Queer nesta peça. Deixa baixar!

HOMEM – Ah! Muito bem! Fantástico! Fizeram vocês muito bem! (Fica a olhar para o espaço,
como que esperando vislumbrar, algures, um filtro.)

LILA – Ah! E viemos para te matar.

HOMEM – Ah! Muito bem! Agradeço-vos imenso. (Reparando no JOÃO.) Toca bem, o Hélder. (O
HOMEM dirige-se ao JOÃO.) Hélder, esteja à sua vontade. Faça como se estivesse em sua casa.

LILA – Então...

HOMEM – Então?! Que mais?

LILA – Como é Dia do Pai...

HOMEM – Ah é?

LILA – É. Trouxe-te uma prenda. (Entrega-lhe uma prenda.) Feliz Dia do Pai.

HOMEM – (Ele hesita.) Então?! Não precisavas de te teres incomodado. (Brincando, só que não.) É
uma bomba?!

LILA – É só uma lembrança.

HOMEM – Ah, sim? (Citando as coisas que se dizem nestas alturas.) “Então, mas para quê é que
foste estar a gastar dinheiro?”, “Ah, não é nada, é só uma coisa sem importância”

LILA – Não, isso não é. (O HOMEM começa a abrir a prenda.)

HOMEM – (Ainda em citação.) “Já não sou menino de prendas!”

LILA – É uma coisa que estás mesmo a precisar.

HOMEM – (Ainda em citação.) “Um embrulho tão bonito, até dá pena abrir!” (Enquanto desfaz o
embrulho, dirigindo-se ao JOÃO.) Ó Hélder, não sabe tocar mais nada? É Dia do Pai! Toque aí uma

31
coisa mais alegre! Olhe, toque o “Ó tempo, volta para trás”. É a minha canção preferida. Pode ser que
funcione.

LILA – Estamos mais numa de “O vento mudou.”

HOMEM – “E ela não voltou.” Estou a perceber...

LILA – Mudança de perspetiva.

HOMEM – Já percebi! (Ele abre finalmente a prenda. Lá dentro está uma placa de acrílico presa por
um fio e com a palavra “CIRCLUSÃO” pintada. Ele reage.) Ah! Que giro! (Não faz ideia do que
seja.) Cir-quê?

LILA – Circlusão.

HOMEM – Ah! Era realmente mesmo o que eu estava a precisar! É para pendurar na parede?

LILA – Gostas?

HOMEM – (Entre o fingido e o sarcástico.) Sim. Muito giro. Obrigado, filha.

LILA – Sabes o que significa?

HOMEM – (Tenta ler.)

LILA – Circlusão. É o antónimo de penetração.

HOMEM – Ah! Ah é? Sim, senhora. Boa ideia! Bela prenda!

LILA – É um termo que foi cunhado por uma autora alemã Queer e comunista, a Bini Adamczak.

HOMEM – Ah, sim? Olha, não conhecia!

LILA – Tens aí a minha dedicatória.

HOMEM – Ora deixa cá ver… (Ele lê.) “Querido pai.” (Suspira.) Mais uma carta. (Volta à leitura.)
“Fico sempre muito indecisa em relação ao que te oferecer nestas ocasiões. Costuma-se dizer que é
muito difícil comprar prendas para os homens. Não podia estar mais de acordo. No fundo, o que é
que se pode oferecer a quem já tem TUDO” Com maiúsculas! “Por isso pensei voltar aos tempos da
infância, lembras-te, quando neste dia te oferecia uma pedra da calçada pintada a guache, ou um
cinzeiro de barro, um boneco de plasticina, ou um desenho da nossa casa, colorido a canetas de feltro?”

LILA – É um “Faça Você Mesma”.

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HOMEM – Eu percebi. (Continua a ler a dedicatória.) "Pensei em oferecer-te outra pedra, porque
andar à pedrada contigo é sempre uma opção. Mas depois lembrei-me que gosto da luta, mas que
dispenso o confronto físico. E por isso decidi oferecer-te uma palavra. Que é uma arma.”

LILA – Dá cá isso, que eu leio. (Interrompendo-o. Tira-lhe o papel da mão) Aqui está a definição da
autora. Circlusão. (Lê.) “Proponho uma nova palavra que há muito tempo está em falta. Chama-se
circlusão. A noção de circlusão é oposta à de penetração. Ambas as palavras descrevem mais ou
menos o mesmo processo material. Mas, de uma perspetiva oposta. Penetração significa introduzir
ou enfiar ou meter. Circlusão significa envolver, circundar, cercar. Ao utilizar o termo circlusão, a
relação de atividade e passividade é invertida. Penetrar significa: introduzir algo - um pau, uma vara
ou um parafuso - noutra coisa – num anel, num tubo, ou numa porca. Nesta perspetiva, é o pau, a vara
e o parafuso que são considerados ativos. Circlusão significa colocar o anel ou o tubo, no pau ou na
vara. O anel e o tubo é que são ativos.22”
No fundo não são necessariamente opostos. Acontecem ao mesmo tempo, mas o que muda é o ponto
de vista. O termo é usado transgressivamente para atos de poder pessoal e político, para levantar
questões sobre privilégios e estruturas de poder. A circlusão começa no ato sexual, mas faz-te ver a
política e o mundo, da perspetiva do O, do anel, do tubo, da concavidade, da greta. Das cavidades da
boca e da garganta, das vulvas, das virilhas, do ânus e do reto.
Imagina o parafuso e a porca. A perspetiva hegemónica leva-nos a pensar que é o parafuso que penetra
a porca. A circlusão, pelo contrário, faz-te ver a perspetiva da porca. E eu ponho-me sempre do lado
das porcas.

HOMEM – (Faz-lhe um OK.)

LILA – Feliz Dia do Pai.

HOMEM – (Faz-lhe outro OK.)

LILA – Não era o que querias, mas era o que precisavas. Enfim, não deixa de ser uma pedra. No
charco. Do Marialvismo.

HOMEM – (Faz-lhe outro OK.)

LILA – Do Marialva, o Don Juan Lusitano, o homem nobre, corajoso, racional, forte, honrado, líder
e ativo. Onde a masculinidade surge justamente associada à dicotomia ativo-passivo. Está aí, em todo
o lado, do Fado à Tourada, nos discursos de mitologia política sobre a "alma nacional", até na merda
da Saudade… (Vai pendurar o objeto na parede.) Aqui está! “Numa Casa Portuguesa fica bem” novas
mitologias!

HOMEM – (Faz-lhe um último OK.) Agora podes pedir ao Hélder para tocar o “Ó Tempo Volta Para
Trás”?

22Bini Adamczak, « Come on. Discussion sur un nouveau mot qui émerge et qui va révolutionner notre manière de
parler de sexe », GLAD! URL: http://journals.openedition.org/glad/1401.

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JOÃO – Não, não pode. Porque “a pedra atirada e a palavra proferida, já não voltam atrás.23” (Saem.)

HOMEM – (Vai até ao prato de bateria e bate com violência, enquanto canta.) Oh, tempo volta pra
trás / Traz-me tudo o que eu perdi / Tem pena e dá-me a vida / A vida que eu já vivi.

(Ouve-se um som vindo da arca. Alguém, que está lá dentro, bate como se estivesse a bater à porta.)

HOMEM – Quem é? (Batem mais.) Quem é?!!

RAPAZ – (Dentro da arca.) Sou eu!

HOMEM – Eu quem? (Batem mais.) És tu? (Batem.)

RAPAZ – Sou eu.

HOMEM – Eu quem, porra?

RAPAZ – A História. (Bate mais ainda.) Com H grande. (O HOMEM abre a arca. Lá dentro está o
RAPAZ.) Com licença. (Saindo.) Boa tarde.

HOMEM – Boa tarde. Diga.

RAPAZ – Diz tu.

HOMEM – Digo eu? Olá.

RAPAZ – Olá.

HOMEM – ‘tás aqui a fazer?

RAPAZ – Vim para te matar.

HOMEM – Ah! Então, nesse caso, fica à vontade. Entra. Queres beber alguma coisa? (Vai até ao bar.)
Então: o que é que vai ser? Uma morte natural, lenta, certa, súbita, morte da bezerra, macaca, do
artista…? (Serve-lhe qualquer coisa. Brindam.) Saúde!

RAPAZ – À falta de. (Muda.) Quem era? O Kafka?

HOMEM – (Sem paciência.) Ó caraças… era um puto, da tua idade, que eu conheci em Moçambique.

RAPAZ – Moçambicano?

23 Provérbio Popular

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HOMEM – Sim.

RAPAZ – O que é que lhe fizeste?

HOMEM – O que é que eu lhe fiz? Nada, ora essa!

RAPAZ – Eu li no teu diário.

HOMEM – Leste o quê?

RAPAZ – Que lhe aconteceu alguma coisa. Foste tu?

HOMEM – (Mentindo.) Se aconteceu não me lembro. E se aconteceu não fui eu.

RAPAZ – Porquê? Não mataste ninguém? (Pausa.)

HOMEM – Eu estive na guerra para matar e ser morto.

RAPAZ – Eras o quê? Soldado? Capitão? Eras o quê?

HOMEM – Era furriel miliciano. Especialista. Responsável pela desativação de minas e armadilhas.

RAPAZ – Pesado.

HOMEM – Era.

RAPAZ – Como era?

HOMEM – Lembro-me como se fosse hoje, mas não sei se consigo descrever o que aquilo realmente
era. (O RAPAZ incita-o a continuar.) Tenho medo de nem sequer saber descrever o que senti. (O
RAPAZ insiste. Ele sobe a um pequeno palanque que existe no cenário e fala como se estivesse
sozinho.) “Era mais uma operação que tínhamos pela frente. O mato não era muito denso e nós íamos
progredindo com o máximo de cautelas, antecedidos pelo Raio e pelo Panzer, os cães que nos
acompanhavam nesta operação. Subitamente… tau! E como que impulsionados por uma mola
atiramo-nos todos para o chão. E durante segundos não se ouviu mais nada. Lentamente fomo-nos
levantando. A mim aquilo pareceu-me ter sido o som característico do acionamento duma granada,
após se ter soltado a respetiva alavanca. Duas hipóteses se colocavam, ou tinha sido lançada uma
granada que não detonara, ou tinha sido acionada uma mina, que por qualquer motivo não detonara
também. Palmo a palmo seguiu-se o trilho até à posição onde encontrámos o cão. E lá estava, numa
zona de terra mexida, uma pequena cratera onde mal cabia uma mão. Eu era o homem das minas e
armadilhas que estava mais perto, portanto coube-me tomar conta da ocorrência.
Senti o coração a bater aceleradamente, quando comecei a afastar a terra solta que cobria algo que eu
não divisara de imediato. Lentamente, sem pressionar, fui afastando a terra, deixando a descoberto

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um enorme pedaço de uma bilha de barro, ou coisa parecida. A bilha tinha-se partido pela pressão da
pata do cão e tudo indicava que estávamos na presença de uma mina artesanal. Deitado no chão,
estiquei o braço direito e meti a mão no buraco e, tateando, encontrei duas granadas, com as alavancas
pressionadas contra a bilha. Uma delas ainda tinha a cavilha de segurança colocada, a outra não. Tinha
de ter a certeza absoluta disto para depois tentar agarrar a granada que estava descavilhada. Não sei
quantas vezes introduzi e tirei a mão daquele buraco, como se a minha vista enxergasse para lá do
pouco que era visível. Até que, num movimento rápido, segurei a granada e a alavanca ao mesmo
tempo, enquanto rebolava no capim, afastando-me daquele lugar o mais possível. Passaram-se
segundos, minutos, e mais nenhum som se ouviu. Levantei-me… O buraco ficara a descoberto
deixando visível a outra granada, que apenas estava ali para rebentar por simpatia. Agarrei-a com a
mão esquerda e esperei que o Capitão colocasse uma cavilha de segurança naquela que eu segurava
com a mão direita. Ele pediu-me as granadas, mas eu continuava ali, de braços esticados, como que
alucinado, não conseguia abrir as mãos. Todo eu tremia. Ao fim de algum tempo, abri as mãos e ouvi
o Capitão dizer:
- Furriel, vá para trás. Vamos voltar para trás.
Naquela mesma noite chorei, chorei de raiva, porque se aquilo que eu previra não tivesse acontecido,
eu hoje não estaria vivo24.”

RAPAZ – (Olhando para a casa.) Mas se isto é um jazigo, como é que estás vivo? (Ri-se.)

(Ouve-se alguém a bater. O barulho parece vir do chão, debaixo do palanque onde o HOMEM se
encontra. O som torna-se mais intenso e finalmente conseguimos ver a MULHER. Ela está como se
estivesse dentro de um jazigo, que até este momento esteve invisível no cenário da casa. É uma
espécie de cova, onde apenas cabe uma pessoa.)

HOMEM – Quem é?

MULHER – Sou eu.

HOMEM – ‘tás aqui a fazer?

MULHER – Deita-te aqui ao pé de mim. (Ele deita-se.) Fala comigo. (Ele não responde.) Homem,
tu matas-me! Fala! Tenho a sensação que disse adeus a um homem quando te vi partir para África e
que depois, no fim da guerra, me casei com um outro. Escangalhado. E que desde então vivemos na
La-la-lândia! Fala! O filme de terror a preto e branco que lá viveste, para o poderes contar,
converteste-o num filme de aventuras em Technicolor, carregado de episódios românticos de “capa e
espada” à Errol Flynn, de proezas atléticas em cenários exóticos à Johnny Weissmuller, de peripécias
cómicas à Louis de Funès… Fala! Onde é que estão as narrativas más? As verdadeiramente más!
Onde estão os enredos sinistros à Bela Lugosi? Esses não os partilham com ninguém, nem com as
mulheres nem com os filhos nem com ninguém. Só entre vocês! Com o Travassos e o Formiga e o
Parracho e o Vitorino... só com os companheiros, nos almoços terapêuticos. Porque aqui em casa a
Guerra d’África está só nas anedotas, nas bebedeiras, nas cantorias, não é verdade? Está só nas

24 PENIM, Joaquim. No Planalto dos Macondes. C. Caç. 2448. Ed. Os Crocodilos. Maio de 2004.

36
cadeiras de verga onde nos sentamos, nas peles coloridas de pobres animais que nos enfeitam as
paredes, nos cornos de marfim, nas colchas e nas estatuetas. Disso temos a casa cheia. Fala!

HOMEM – Mas tu não percebes que não é possível verdadeiramente contar como foi a quem não
viveu?

MULHER – Pode parecer estranho que quem não esteve na guerra possa ter dela memórias, mas
acontece. (Pausa.) Eu sei que não querias ter estado lá, que se pudesses nunca terias ido, mas...
Desculpa! Eu amo-te, mas tudo isto dá-me vergonha, desculpa. Muita vergonha. E tenho vergonha de
ter vergonha de ti.

HOMEM – Mas o que é que queres saber? Diz-me! Eu conto-te!

MULHER – Violaste alguma mulher? (Pausa. Ele abana a cabeça, não se percebe se a resposta é
positiva ou negativa. Ela desaparece.)

RAPAZ – (Retomando.) E mataste alguém ou não? (Pausa.) Porque é que não respondes? Mataste
algum negro?

HOMEM – É só isso que te interessa?

RAPAZ – “Só”?

HOMEM – Que diferença faz?

RAPAZ – Porque tu és tu. E eu quero saber se mataste alguém.

HOMEM – (Pausa. Decidido.) Olha, uma vez, andava eu no mato, já tínhamos andado alguns
quilómetros, deparou-se-nos uma enorme clareira que parecia estar a ser cultivada, uma machamba.
Havia ali muita terra tratada, o que queria dizer que havia um movimento frequente de pessoas.

RAPAZ – O que é isso?

HOMEM – A machamba? Eram as culturas de milho, feijão e assim.

RAPAZ – Que vocês andavam a destruir?

HOMEM – Muitas vezes andávamos. À patada. Ao que eles plantavam. Parecia um jogo de futebol,
aos pontapés às melancias e assim, uma coisa sem qualquer regra lógica de comportamento. Risos e
empurrões, gritos, uma enorme algazarra. Pilhávamos, matávamos galos, galinhas, deitávamos fogo
aos povoados, indiferentes ao mal que fazíamos, apenas porque estávamos em guerra. Sim, havia
missões só de destruição.

RAPAZ – A missão de destruição começou ainda aqui, em Sagres, com o Infante Dom Henrique!

37
HOMEM – Éramos obrigados! (Justificando-se.) Os altos comandos queriam que destruíssemos as
machambas para provocar a escassez dos produtos que eram a base da alimentação dos
Moçambicanos.

RAPAZ – Era o que o Putin andava a fazer! Escassez de alimentos como tática de guerra25, para matar
de fome grande parte das pessoas dos países mais pobres, dependentes dos cereais ucranianos. Não
ouviste falar? Mais uma etapa no colonialismo e o mais recente capítulo da política da fome. É o que
fazem os invasores. (Muda. Agressivo.) Mas então: estavas a dizer que vocês, invasores, destruíram
uma…?

HOMEM – Machamba.

RAPAZ – Machamba. E…? Vais-me contar uma história em que no fim matas um negro, ou não?
(Pausa.)

HOMEM – “Encontrámos essa clareira, percebia-se que trabalhava ali gente. Deitámo-nos em
posição de tiro e lá fomos aguardando. Mas não tivemos de esperar muito! Começamos a ouvir,
primeiro, muito ao longe, e, depois, já distintamente, vozes misturadas com risadas, que a mim me
pareceram de mulheres e crianças.26”

RAPAZ – Mataste uma criança?!

HOMEM – (Ainda na narração.) Xiu! De repente, silêncio. As vozes deixaram de se ouvir, por curtos
momentos. E de repente começa uma enorme gritaria:
- Tropa! Tropa na machamba! E ao mesmo tempo as armas dos homens começaram a vomitar fogo
e, num instante, as armas descarregavam balas e disparava-se sem nexo.
De repente, outra vez silêncio. E, cada vez mais longe, gritos de dor e de pavor daqueles que fugiam.
E eu, de mãos geladas, hirtas, agarradas à G3, não tinha disparado um único tiro. O tiroteio provocou-
me um bloqueio tal que se me gelaram as mãos e o espírito.”27

RAPAZ – Ah! Contaste-me essa história para me provares que não mataste ninguém?

HOMEM – Estive na guerra para matar e ser morto, já te disse!

RAPAZ – Mataste algum negro?

25 in Twitter de Timothy Snyder.


26 PENIM, Joaquim. No Planalto dos Macondes. C. Caç. 2448. Ed. Os Crocodilos. Maio de 2004.
27 Ibidem.

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HOMEM – Deixa-me em paz, caraças! Mas porque é que estás a querer remexer no meu passado?
Eu não cometi nenhum crime. “Eu já me acusei e já me condenei, e já me destruí sem remédio28”.

RAPAZ – A tua história não foi nada esclarecedora. Na imagem que eu tenho de ti só exacerbou uma
mentalidade de superioridade, tipo “eu sou um homem melhor do que esses homens que matavam
indiscriminadamente”. E esse melhor-pior é que é uma verdadeira mina e uma verdadeira armadilha.

HOMEM – (Irritado.) Não fales do que não sabes, fedelho. E não faças joguinhos de palavras com
coisas sobre as quais não percebes nada. O que eu quero esclarecer é que homens há muitos, seu
palerma. Há homens maus e há homens bons. Uns são lixo, outros não.

RAPAZ – Não, isso que tu fizeste não é ser um bom homem. Isso é apenas ser uma boa pessoa.

HOMEM – Não fales do que não sabes!

RAPAZ – No teu discurso há uma “falha enorme de memória coletiva e um excesso de memória
pessoal29”. Esta cena não é para dar visibilidade ao lugar ambíguo do soldadinho da guerra, entre a
vítima e o assassino. Então e as pessoas que foram colonizadas? E os danos emocionais? E, pior, as
atrocidades? Tudo secundarizado, só importam os teus traumas.

HOMEM – Não venhas com esse ar analítico de superioridade, porque não sabes nada do que se
passou!

RAPAZ – O que se passou? O que se passou está nos escritos do Amílcar Cabral! (Pausa.) Está no
Mustafah Dhada, na Denise Ferreira da Silva, na Aida Gomes, na Joacine. Está nos discursos
inflamados do Samora Machel. O que se passou, está na Wikipedia! Abre de vez esse armário! (O
RAPAZ sai.)

HOMEM – Estar ali era esquecer-me de mim! Não percebes? Estar ali era andar triste, cansado,
danado, de nos caber sempre a figura de peão num tabuleiro, no qual dependíamos exclusivamente
da mão de um jogador por quem eu não tinha qualquer respeito nem consideração. Aquilo éramos
nós, militares à força, que mentalmente estávamos num sítio que não aquele! Estar ali era deixar de
ser eu. Por isso, as memórias, eu tenho de as enterrar vivas! Como se fosse possível fazê-las
desacontecer, como se tudo tivesse sido um engano. Porque se não, não morro em paz.

RAPAZ – Isto não é sobre ti! (Regressando, vestido de enfermeiro.) Não são só memórias, são factos.
(É agora o RAPAZ que dá ao HOMEM comida à boca. Fá-lo com violência.) Abre a boca: As cabeças
dos soldados africanos empaladas em árvores à beira da estrada; as centenas de prisioneiros torturados,
mortos e atirados para valas comuns; o napalm lançado nas selvas onde os guerrilheiros se abrigavam;
a violação como arma de guerra; grávidas estripadas para “ver qual era o sexo do feto”; as aldeias de

28 RIBEIRO, Margarida Calafate. “As ruínas da casa portuguesa em Os Cus de Judas e em O Esplendor de Portugal, de
António Lobo Antunes”. In: Manuela Ribeiro Sanches (org.). Portugal não é um país pequeno – contar o “império” na
pós-colonialidade. Lisboa: Livros Cotovia, pp. 43-62, 2010.
29 Ibidem.

39
cabanas de capim incendiadas com isqueiros; mulheres e crianças executadas após serem obrigadas
a cantar e a bater palmas para se despedirem da vida...
“Atos horríveis realizados durante as guerras em África, em nome de Portugal, há apenas 50 anos,
apenas duas gerações. Mas para a maioria dos Portugueses, estes acontecimentos não são história –
são novidades!”30 O que é para matar é a apatia, este apagão generalizado, este black out!

HOMEM – (Mais perdido que nunca.) Quem és tu?

RAPAZ – Ninguém.

HOMEM – Não, isso sou eu. Quem és tu?

RAPAZ – “Por favor, considera-me um sonho.” Kafka.

HOMEM – Diz-me quem és!

RAPAZ – “O amor tem frequentemente o rosto da violência.” Kafka.

HOMEM – (Levantando-se.) “Não consigo fazer-vos compreender. Não consigo fazer com que
ninguém compreenda o que se passa dentro de mim. Não consigo sequer explicá-lo a mim próprio.”
Kafka

RAPAZ – É mesmo assim! “A partir de certo ponto não há retorno. Esse é o ponto que é preciso
alcançar.” Kafka.

HOMEM – Só que eu não aguento! “Ter de suportar e ser a causa de tanto sofrimento!” Kafka. Mas
“Se estou condenado, não estou somente condenado à morte, mas também a defender-me até a morte.”
Kafka.

RAPAZ – “Em tempos de paz não se chega a parte nenhuma, em tempos de guerra sangra-se até à
morte.” Kafka.

HOMEM – “Um primeiro sinal do início do conhecimento é o desejo de morrer.” Kafka.

RAPAZ – Exato, “O Sentido da vida é que ela termina.” Kafka!

HOMEM – E nem sequer “é necessário sair de casa”. Kafka!!!

RAPAZ – (Apontando para si mesmo.) Kafka!!!!!

HOMEM – Kakfa!

30 in Documentary desanitizes Portugal’s past, Barry Hatton. Los Angeles Times, March 9, 2008.

40
RAPAZ – Kafka!

HOMEM – (Gritando-lhe.) KAFKA!

RAPAZ – (Gritando.) KAFKA!

HOMEM – (Tirando uma pistola, escondida algures.) KAFKA! (Pausa prolongada.)

RAPAZ – Pano. Rápido.

(Desce o pano de boca.)

41
PARTE 5 – Novas Casas Portugueses

(Abre-se o pano. Em cena está a MULHER. Parece um funeral. Há uma coroa de flores. O HOMEM
entra na casa.)

HOMEM – Vamos lá ver… quem és tu, agora?

MULHER – Senta-te.

HOMEM – E o que é que estás aqui a fazer? Deixa-me adivinhar: vieste para me matar?

MULHER – Homem, convidaste-me e eu vim. Entra.

HOMEM – Ah, sim? Convidei? Não me recordo... Mas pronto, bem-vinda, não repares na
desarrumação!

MULHER – Cala-te que já temos pouco tempo. Estamos no final, não dá para perceber?

HOMEM – (Sentando-se.) Sim! (Olhando para a coroa de flores.) “É estranho”31. É tudo bastante
estranho.

MULHER – Óbvio! Se chegou o fim, chegou a hora de falar de estranheza, justamente. Podemos
largar a narrativa do ex-combatente e dos seus fantasmas e saltar para uma realidade especulativa,
utópica...

HOMEM – Muito bem! Então e o que é que acontece, neste final especulativo?

MULHER – Não ouviste o que eu disse? Pouco importa a narrativa... saber quem fica com quem,
quem se separa, quem mata quem, quem morre ou quem se salva. Porque chegou o fim e já se
percebeu que nada se salva. Não te salvas tu nem se salva ninguém. E não havendo salvação nem
redenção deste lado, inverte-se a expetativa e coloca-se a atenção daquele lado. (Refere-se à plateia.
O HOMEM olha para os espetadores.)

HOMEM – Ah! Muito bem...

MULHER – Usamos esta última cena para antecipar o futuro e falar do que será a realidade hipotética,
depois de terminado o espetáculo.

HOMEM – O quê? Depois dos aplausos, das conversas no átrio, é isso?

MULHER – Sim, quando as frentes de casa direcionarem o público para a porta da saída dizendo
simpaticamente: “infelizmente temos de fechar”.

31 Erwin Wurm, Am I a house?

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HOMEM – Quando se fecharem as portas do Teatro Nacional32.

MULHER – Quando cada um pegar no seu carro, chamar um táxi, ou apanhar os transportes…

HOMEM – Podem ir a pé.

MULHER – Sim, quando se começar a direcionar os passos rumo a qualquer coisa de muito
específico. E é nessa coisa, em particular, que se coloca a atenção nesta cena final. “É o artefacto mais
importante da nossa vida, aquele com o qual passamos mais tempo, com o qual, no fim de contas,
acabamos por nos confundir. A casa.33”

HOMEM – A casa…

MULHER – A casa.

HOMEM – Acho que estou a perceber...

MULHER – Ótimo! Então e se eu levar a estranheza mais longe ainda e disser que a casa agora sou
eu?

HOMEM – Pá… não faria muito sentido… Mas neste momento já estou por tudo.

MULHER – Transubstanciação. Sabes? Quando o pão e o vinho se transformam na carne e no sangue


de Cristo?

HOMEM – Sei, sei.

MULHER – É tudo performance, é espetáculo. No fundo toda a arte é assim. As pessoas insistem em
ver intenções e ideias em materiais: num bloco de mármore, num pedaço de bronze, em madeiras,
tintas... num décor… e esperam que esses objetos falem com eles, que transmitam coisas.

HOMEM – E tu és a casa e estás a falar comigo.

MULHER – Exato, estou só a personificar. Sou uma peça dentro da peça. E tu és outra peça.

HOMEM – Certo. Somos duas belas peças.

MULHER – Tu és o Homem e eu sou a Casa. (Sentindo que ele reage.) Não estás convencido…

HOMEM – Acho um bocado puxado…

32 Ou qualquer outro teatro em que esta peça for representada.


33 COCCIA, Emanuele. Filosofia Della Casa. Einaudi editore s.p.a, Torino 2021

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MULHER – É o fim do espetáculo. Os finais são sempre assim, um bocado puxados. Acontece sempre
qualquer coisa meia forex. Mas se pensares bem, até faz sentido. Nesta cena eu faço de casa, porque
a casa é um artefacto psíquico. Não é feita de paredes, é feita de vidas.

HOMEM – De famílias.

MULHER – Quais famílias! (Referindo-se a si mesma.) Eu já não sou essa casa. Esse tempo acabou.

HOMEM – Ah sim? Diz quem?

MULHER – A utopia. Ainda agora te falei disso, homem. Se no passado eu era uma “máquina de
criar distinções34”, nesta cena torno-me numa máquina misturadora. Nesta cena pode-se escolher
livremente com quem se faz casa, quer seja família de sangue quer não, quer sejam seres humanos
quer não. Nesta cena eu, a casa, já não conservo, já não protejo o património, já não sirvo de refúgio
do resto do mundo. Pelo contrário, nesta cena a casa é o mundo.

HOMEM – E onde é que foste buscar isso, à net?

MULHER – Sim, justamente. À net. À net, com certeza! Todas as plataformas digitais, as redes
sociais, são espaços virtuais moldados a partir do espaço doméstico. Têm todas salas e corredores
virtuais… “Se o mundo mudou a casa também tem de mudar35.” Mas tudo isto tem um preço, claro!
(Pausa.) E por isso é preciso fazer perguntas difíceis. Preparado? (Ele faz um OK.) Então: que casas,
que vidas, que mundos, devemos destruir, para produzirmos as casas, as vidas e os mundos que
desejamos? Porque… claro! A vida é inseparável do seu oposto, amigo! “A boa vida só é possível, de
facto, se decidirmos liquidar outras formas de vida, contrárias à nossa.36.”

HOMEM – Ah, estou a perceber! Esta é a parte em que dizes que vens para me matar porque eu sou
um lixo.

MULHER – Ó pá, chora! (Muda.) Do que é que estamos dispostos a abdicar? Já que é necessário
fazer uma seleção. Mesmo sabendo que teremos de abdicar de ideias, objetos e pessoas que amamos...

HOMEM – Mas estás a perguntar-me? / Não estou a perceber…

MULHER – É uma pergunta com rasteira.

HOMEM – O que é que eu tenho a ver com isso?

34 COCCIA, Emanuele. Filosofia Della Casa. Einaudi editore s.p.a, Torino 2021
35 https://www.iguzzini.com/lighthinking/there-is-no-life-without-light/
36 in Twitter da Sophie Lewis

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MULHER – Tu? (Ri-se.) Tu és o pai! És um homem! Foste tu que construíste esta coisada toda, filho.
Agora resolve!

HOMEM – ‘Tá! (Faz-lhe um OK.) Já resolvi. Vou sair de cena.

MULHER – (Faz-lhe um OK.) Despede-se o arquiteto, por incompetência. Muito bem! Negócio
fechado. (Estende-lhe a mão. Ele aperta-lhe a mão.)

HOMEM – (Grita.) Ai!

MULHER – Que foi?

HOMEM – Que gelo é esse?

MULHER – (Ela ri-se.) É um truque que vi num filme do Bela Lugosi. Não é genial? Achei que era
o momento certo para experimentar. É o último momento. Acontece sempre qualquer coisa creepy…

HOMEM – Afinal continua a saga do soldado e os seus fantasmas…

MULHER – (Ouve-se música.) Não, o tempo acabou! Já se ouvem os sinos, quer dizer... a música
final. Não ouves? Diz adeus. Vá, diz adeus. “Adeus, casa de meu pai.” “Adeus, também ao meu
pai.”37 Adeus, pai. Adeus e até ao não-regresso. Porque tudo acaba, tudo.

(O HOMEM está atordoado. Os restantes atores foram, entretanto, entrando. As Fado Bicha tocam
uma versão muito sombria de Uma Casa Portuguesa. O pano cai, novamente.)

FIM

Cranbrook, BC, Canadá - Julho de 2022

37 in Valentim, canção de Amália Rodrigues.

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