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Ambigüidades de segmentação

Objetivo

Chamar a atenção para casos em que a cadeia falada é passível de segmen-


tações alternativas, orientando para a segmentação relevante em função do contexto.

Caracterização geral

Excetuadas algumas poucas situações (por exemplo, quando se dita um tex-


to, ou quando se confere se foi esquecida alguma palavra numa cópia), as pessoas
não costumam separar palavras, na fala. Separar palavras de um mesmo texto é um
hábito que adquirimos com a escrita. Nesse caso, a escrita funciona como uma
análise da fala, e facilita nossa leitura. Compare-se, por exemplo, a dificuldade
com que lemos a mesma frase em (1), onde não foi feita a separação de palavras, e
em (2) onde as palavras foram separadas, como é habitual: em (2) é imediato
reconhecer a letra de uma das mais célebres (e mais bonitas) canções brasileiras.
(1) Meucoraçãonãoseiporquêbatefelizquandotevêeosmeusolhosficamsorrindo...
(2) Meu coração, não sei por quê, bate feliz quando te vê e os meus olhos
ficam sorrindo...

Material lingüístico

Há falas que se prestam a duas segmentações diferentes, resultando em sen-


tidos diferentes:
Deu uma surra na mulher que a deixou bastante machucada. Bateu com as
mãos e com a pá nela
Deu uma surra na mulher que a deixou bastante machucada. Bateu com as
mãos e com a panela

Há falas que, mal segmentadas, deixam sobrar “restos” impossíveis de ana-


lisar. As primeiras palavras do Hino Nacional “ouviram” e “do” são às vezes ana-
lisadas como “O Virundum”, uma palavra que pegou, como nome jocoso do Hino
Nacional, mas que não faz o menor sentido.
14 Introdução à semântica – brincando com a gramática

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas


De um povo heróico o brado retumbante

Atividades

• Jogo: é proibido, por exemplo, pronunciar a seqüência “mão”. O jogo consiste


em ver quem escapa mais vezes de pronunciar essa seqüência “mão” quando
lhe são feitas perguntas como “Como se chama o fruto do mamoeiro?” ou “Ma-
ria é minha irmã, o que sou dela?” etc. Pode-se combinar que as pessoas têm o
direito de “passar”, ou que podem dar respostas diferentes, por exemplo,
“papaia”, ou “filho dos mesmos pais”.
• Veja esta história de má segmentação: a criação da palavra busilis por Felipe
Segundo da Espanha. Conta-se que, ao deparar-se com a expressão “in die
busillis” (naqueles dias), no meio de uma tradução latina, o futuro rei separou
“in die busillis”. A partir dessa separação, ele conseguiu traduzir “in die” (no
dia) mas ficou com o problema de traduzir “busillis” (que não significa nada).
Até hoje, quando se quer apontar uma dificuldade, pode-se dizer, em espa-
nhol: “aquí está el busílis”, “aqui está o nó da questão”.

Exercícios
1. Comece um levantamento de jogos de palavras baseados em segmentações
alternativas. Eis alguns exemplos:
a) Há uma conhecida letra de forró que fala do gato Tico. Ou será que fala de
outra coisa?
Tico mia na cama,
Tico mia no quarto
b) Há uma história sobre herança que é contada assim:
Eles morreram, e eu fiquei como herdeiro.
Por que será que esta não foi uma boa herança?
c) A dirige a B o cumprimento que segue. B se irrita. Por quê?
Meus respeitos ao senhô e a quem lhe fô da família.
2. Qual é o nome do filme?
a) O chefe da obra esbarra com o traseiro num dos serventes que estão cami-
nhando no andaime, 60 metros acima do nível do chão. O servente cai e morre.
Qual o nome do filme? (A acusada de morte/A cuzada de morte).
b) Uma chapa solta-se de um caminhão em alta velocidade e atinge um homem
de cor, cortando-lhe as nádegas. Era uma vez o traseiro de um crioulo. Qual o
nome do filme? (O escudo preto/O ex-cu do preto).
Ambigüidades de segmentação 15

3. O que há de singular com estes concursos de miss?


Miss Java, Miss Japão
Miss Gana, Miss Garça,
Miss Malta, Miss Capa,
Miss Angra, Miss Obra,
Miss Pinho, Miss Pano,
Miss Barra, Miss Torno

4. Descubra mais algumas adivinhas como as que seguem:


“Quais são as gatas que andam debaixo dos pés?” – As alpargatas.
“Qual o pedaço da sacola que gruda? – A cola

5. Algumas marcas de pinga ainda trazem uma etiqueta em que se dá a idade da


pessoa a partir de um jogo de palavras criado a partir de um nome e um sobreno-
me:
Primeiro dia — Inácio Pinto
Cinco anos — Jacinto Pinto
Cinqüenta anos — Décio Pinto
Sessenta anos — Caio Pinto
etc.
Você conhece mais alguma dessas “idades”?

6. Construa um diálogo imaginário, em que uma das personagens ouve mal, e


portanto processa apenas parte das palavras que ouve.

7. A ambigüidade de segmentação é um dos recursos de construção da poesia


contemporânea. Transcreva as passagens em que a ambigüidade de segmentação
foi usada como um recurso, neste poema de José Paulo Paes:

Adivinha dos peixes

Quem tem cama no mar? O camarão.


Quem é sardenta? Adivinha. A sardinha.
Quem não paga o robalo? Quem roubá-lo.
Quem é barão no mar? Só tubarão.

Gosta a lagosta do lago? Ela gosta.


Quantos pés cada pescada tem, hem?
Quem pesca alegria? O pescador.
Quem pôs o polvo em polvorosa? A rosa.
16 Introdução à semântica – brincando com a gramática

8. Resolva este caça-palavra.

Caça-palavras, nº 50. Ediouro.


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9. Nem todas as definições desta lista são igualmente bem-sucedidas. Por quê?

Abreviatura – ato de abrir um carro da polícia


Açucareiro – revendedor de açúcar que vende acima da tabela
Alopatia – dar um telefonema para a tia
Amador – o mesmo que masoquista
Armarinho – vento proveniente do mar
Aspirado – carta de baralho completamente maluca
Assaltante – um “A” que salta
Barbicha – boteco para gays
Barganhar – receber um botequim como herança
Barracão – proíbe a entrada de caninos
Bimestre – mestre em duas artes marciais
Biscoito – fazer sexo duas vezes
Ministério – aparelho de som de dimensões muito reduzidas
Novamente – diz-se de indivíduos que renovam sua maneira de pensar
Obscuro – OB na cor preta
Pornográfico – o mesmo que colocar no desenho
Presidiário – aquele que é preso diariamente
Pressupor – colocar preço em alguma coisa
Ratificar – transformar em rato
Razão – lago muito extenso, porém pouco profundo
Sexólogo – sexo apressado
Simpatia – concordância com a irmã da mãe
Sossega – mulher que tem os outros sentidos, mas é desprovida de visão
Talento – anda devagar
Tipica – o que o mosquito nos faz
Trigal – cantora baiana elevada ao cubo
Tripulante – especialista em salto triplo
Unção – erro de concordância verbal. O certo seria “um é”
Vatapá – ordem dada por prefeito de cidade esburacada
Viaduto – local por onde circulam homossexuais
Vidente – dentista falando sobre seu trabalho
Violentamente – viu com lentidão
Volátil – sobrinho avisando ao tio aonde vai
Caçador – indivíduo que procura sentir dor
Cálice – ordem para ficar calado
Canguru – líder espiritual dos cachorros
Catálogo – ato de apanhar as coisas rapidamente
Cerveja – é o sonho de toda revista
Cleptomaníaco – mania por Eric Clapton
Compulsão – qualquer animal com pulso grande
18 Introdução à semântica – brincando com a gramática

Contribuir – ir para algum lugar com vários índios


Coordenada – que não tem cor nenhuma
Democracia – sistema de governo do inferno
Depressão – espécie de panela angustiante
Destilado – aquilo que está do lado de cá
Desviado – uma dezena de homossexuais
Detergente – ato de prender indivíduos suspeitos
Determina – prender uma moça
Determine – prender a namorada de Mickey Mouse
Diabetes – as dançarinas do diabo
Edifício – antônimo de “é fácil”
Eficiência – estudo das propriedades da letra “F”
Entreguei – estar cercado de homossexuais
Esfera – animal feroz que foi amansado
Estouro – bovino que sofreu operação de mudança de sexo
Evento – constatação de que realmente é vento, e não furacão.
Exótico – algo que deixou de ser ótico, passou a ser olfativo ou auditivo
Expedidor – mendigo que mudou de classe social
Fluxograma – direção em que cresce o capim
Fornecedor – empresário dedicado ao ramo de atender os masoquistas
Genitália – órgão reprodutor dos italianos
Halogênio – forma de cumprimentar as pessoas muito inteligentes
Homossexual – sabão utilizado para lavar as partes íntimas
Leilão – leila com mais de dois metros de altura.
Zoológico – reunião de animais racionais
(“Acabaram com o Prof. Pasquale” – mensagem recebida pela Internet)

10. Reflita sobre esta história: o que é que ela ensina sobre a importância da pontua-
ção?

Quando quiseram escolher o nome do filho, a mãe queria que se cha-


masse “Paulo”; o pai preferia “Barnabé”. Discutiram muito. No fim, o
pai resolveu ceder. Só pediu que a esposa refletisse algumas horas e
lhe mandasse um recado por escrito. Assim ele, ao sair da fábrica, pas-
saria no cartório para registrar o filho.
O bilhete chegou, alegrando muito o pai, pois trazia o seguinte:
“Barnabé”, de maneira alguma será chamado “Paulo”.
Qual não foi a decepção da esposa quando percebeu que havia errado a
colocação da vírgula... Pensava ter escrito: “Barnabé” de maneira al-
guma, será chamado “Paulo”.
(Madre Olívia, Prática de Português 3. Pontuação: uso da vírgula. São Paulo, Ozón, s.d.)

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