Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
ARTES
Rupturas em palco
Rayner explica que "a partir dos anos 90 houve uma maior atenção sobre
questões de género e de sexualidade no teatro e na performance" em Portugal. A
sua tese de doutoramento, de 2006, explica que esse questionamento se verifica,
por exemplo, através da inversão de papéis normalmente escritos para homens
mas interpretados por mulheres. E houve uma ruptura de paradigma em relação
ao papel do texto. Este "deixou de ser central, e podem explorar-se outras
maneiras de contar": elementos técnicos como a luz, e sobretudo "a exploração
do movimento, da dança e do corpo" surgem centrais em palco.
Cascais afirma que antes "os portugueses não conheciam uma linguagem para
exprimir o corpo e a sexualidade." Simultaneamente, na academia nos anos 90,
"começou-se a disseminar uma linguagem que permite falar da sexualidade de
forma erudita, e elaborada, sem as categorias tradicionais que vêm da linguagem
popular, da medicina".
valter hugo mãe, 39 anos, abre as pulsões a infinitas possibilidades: "A maneira de
ver o mundo é condicionada pelo sexo, mas estou convencido de que escrever
ficção tem que ver com essa capacidade de imaginar o que não somos. O livro
poderá passar, inclusive, muito longe do que são as nossas sensibilidades,
experiências ou atenuantes sexuais", explica.
Poeta e ficcionista, joga com os dois géneros (literários) para poder revelar e
esconder onde se encontra o valter verdadeiro: "A minha poesia caminha para a
confessionalidade, parece vir ao encontro da minha vida. Entre amores e
amizades, tornou-se sensibilizada pelas minhas pulsões afectivas. É um qualquer
diário que as pessoas podem coscuvilhar." A prosa, pelo contrário, é
verdadeiramente ficção: "É muito mais sub-reptícia. A ficção é a capacidade de
desdobramento."
São as pessoas que lhe interessam. Isso reflecte-se no olhar da câmara: "Gosto de
filmar as pessoas nos olhos, olhos nos olhos, porque é uma posição de igual entre
mim e a personagem. Essa igualdade gera sensualidade." Isso está em "Rasganço",
mas também no próximo filme, "As Leis do Corpo", sobre um casal homossexual
ao qual se junta uma mulher. "A criação artística passa por criar um mundo como
eu gostava que ele fosse."
A dissolução do binarismo de género transforma a noção de família. Primeiro
inconscientemente, depois como afirmação de identidade, a família (ou a sua
desconstrução) é o centro do trabalho do performer Miguel Bonneville, 25 anos.
Pais, mães, papéis masculinos e femininos povoam o seu trabalho. Na primeira
performance, era despido pelo público e, depois, aparecia travestido numa figura
de mulher: "Peito com pelos, soutien e mamas falsas. Essa transformação era
assustadora." Um monstro temido, porque é o desconhecido: "Esse monstro que
as pessoas viam em mim é a mulher quando se afirma e quando não está a ser
submissa. A minha mulher-monstro não é feminina. Não é uma mulher, porque
eu sou um homem. E, ao mesmo tempo, posso ser uma mulher."
Miguel Loureiro, 39 anos, actor, diz que a função do teatro é questionar o modelo
"boy meets girl" e a tradição. "Há uma tentativa de padronizar os actores. Isso é
profundamente errado. Os modelos de ensino no teatro e no cinema devem ser
espaços de aceitação das quebras da heteronormatividade." É a noção de tradição
que estes criadores querem subverter. "Nenhuma palavra é tão violenta como
esta: tradição. sempre que me falam nisso pergunto-me: quantos medos são
necessários para criá-la? E para mantê-la?", pergunta Freire.
Machos em crise
Esse é também o "chão" do artista plástico João Pedro Vale, 33 anos. Contudo,
mais do que questionar o género, o objectivo é desconstruir um imaginário
colectivo, cânones e conceitos que fazem parte de nós enquanto seres culturais e
sociais. "A sexualidade é importante, a minha orientação sexual, não. A
sexualidade é tão importante como ser português e não ser espanhol, é a minha
cultura. É isso que me interessa", explica. O filme porno "Hero, Captain and
Stranger" e a exposição "Moby Dick" têm esse objectivo: ambos partem da leitura
de estudos "queer" sobre a obra de Herman Melville. Isto mostra que o livro "na
realidade, não é gay, é outra coisa: é sobre a relação entre pessoas que têm de
conviver durante anos no mesmo espaço. Desenvolvem-se relações impossíveis de
categorizar. É como nas prisões, é uma contingência homossocial", explica.
Por isso, Carla Cruz, 32 anos, artista plástica, acredita que o feminismo de hoje
não é o dos anos 70. A palavra "feminista"' perdeu a sua ligação ao género: "É uma
metolodogia, uma forma de questionar." Em trabalhos como
"Transvestite/feminine - women go out in disguise" (2002) ou "The Inauthentic
Male" (2003), Cruz questionava noções de feminilidade e de masculinidade, para
confrontar modelos transmitidos "pelos media, pelas convenções, pela moral".
Para Cruz, faltam modelos sociais que "se apresentem fora das categorias
normativas", personagens públicas "que assumam uma ambiguidade".
Carla "Suspiria Franklin" Branco, 31 anos, é há mais de dez anos vocalista dos
Baton Rouge, mas, há quase vinte, mulher no rock, um mundo de homens. Em
1994, quando tinha 15 anos e liderava a única banda feminina do país sentia-se
"um alien". Chamavam-se Eva Braun e tocavam punk rock. "As pessoas iam ver-
nos não por causa da música, mas porque éramos uma banda de raparigas." A
verdade, diz, é que a diferença no rock entre homens e mulheres "é gritante
relativamente a outras áreas". Não encontra explicação, mas fala de "falta de
confiança das mulheres na exteriorização. "Muitas ainda me dizem: 'Não teria
coragem de me expor assim'." Novamente, há falta de modelos: "Como há poucas
mulheres no rock, há poucas referências. As pessoas têm tendência para se
tornarem umas iguais às outras, têm medo de sobressair."
A ideia de que o rock é viril é "idiota e machista", afirma Paulo Furtado, aka
Legendary Tigerman. É uma questão de igualdade. O seu último álbum, "Femina",
parte desses pressupostos. Primeiro: "Já que não posso falar por uma mulher, vou
trazê-la para o álbum, para que ela própria possa falar por si." Dar voz aos que
não têm voz. Segundo: "No meu universo, durante anos, projectei a imagem de
uma mulher. Aqui decidi passar a mulher para dentro, para haver uma primeira
pessoa e não uma imagem projectada." Terceiro, a mulher enquanto objecto de
desejo: "Para mim, o desejo tem claramente género. Mas nem tudo tem a ver com
um desejo claro e concreto. Há uma tensão no ar em todo o álbum que se
estabelece pelo simples facto de eu ser homem e elas serem mulheres. Porque
sou heterosexual. Isto não poderia existir desta maneira se eu gravasse um álbum
só com homens."
É isso que faz Tigerman: pôr-se na linha da frente, a nu, como na capa de
"Femina". "A minha ideia era a de um homem a tentar abarcar a mulher
mantendo a minha masculinidade e heterosexualidade. Abarcar um sentir no
feminino", explica. Isso teria de ser dado trabalhando a "posição do cigarro, do
olhar que aliados à maquilhagem conseguissem manter essa masculinidade, ao
mesmo tempo, piscando os olhos a um lado mais feminino". Esse piscar de olhos
é notório: só um olho tem rímel, o outro é o olho masculino de Tigerman.
Diante desta imagem, não se pode deixar de colocar a questão: isto é "queer"? A
androginia de Tigerman abre o conceito de "queer" para um espaço longe da
dicotomia homem/mulher. Surge um corpo ambíguo, que abole as categorias de
género: onde está o homem? No corpo nu de Tigerman? E a mulher? Na
maquilhagem? O músico responde: "Se suscita essa ideia de androginia, sim, e
discussão sobre ela. Mas 'queer', não. Não concordo."
Comunidade de múltiplos
Miguel Pereira concorda: "Ao usar o nu, posso cair no estereótipo do erótico. Mas
interessa-me saber que estou a produzir esse estereótipo." Primeiro há a
exposição do corpo nu: "Tem de haver esse embate, até porque as pessoas têm as
suas referências." É uma relação de desejo que se estabelece com o público:
"Quando nos expomos, cria-se uma certa forma de desejo, recíproco até, com a
audiência. Porque queremos, no fundo, ser amados." À medida que a peça
avança, o corpo "esvazia-se", os estereótipos "eliminam-se pela persistência, e o
corpo nu torna-se banal, perde as conotações." Deixa de causar impacto. "Passa a
instrumento, a veículo de informação e esvazia-se da sua condição social."
Vasco Araújo quer poder dizer "hoje sou isto, amanhã sou outro", e viver nessa
possibilidade múltipla.
No fundo, "o corpo somos sempre nós, é sempre o nosso corpo que lá está, mas
está lá com tudo", diz Teodósio. Com as contingências sociais, culturais, nesse
eterno desdobramento de eus, na construção de uma comunidade. Teodósio: "É
já outro corpo que é afirmado. É a lógica perversa da arte de quebrar a pergunta
colocando uma nova. O objectivo é continuar a criar um organismo vivo. Daqui a
uns anos seremos todos uma comunidade de múltiplos."