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ARTES

Os portugueses já têm corpo e os


criadores encontraram-no
Raquel Ribeiro
17 de Março de 2010, 0:00 (actualizado a 19 de Agosto de 2010, 0:00)

O corpo de Portugal mudou. Tornou-se mais andrógino, mais ambíguo. É nesse


estado de incertezas que os artistas contemporâneos portugueses exploram o
corpo como instrumento e veículo de identidade. Identidade de género,
identidade sexual. O que é o masculino, o que é feminino. O corpo é "o espaço
onde tudo se altera", explica António Fernando Cascais, professor na
Universidade Nova.

Em 1993, Alexandre Melo, sociólogo e crítico de arte, escreveu: "os portugueses


não têm corpo". Quase vinte anos depois assiste-se a uma mudança de paradigma.
Hoje há, em Portugal, identidades questionadas, sexualidades expostas, e
subversões de géneros em palco, diante da câmara, em romances, e na tela.
Como diz Cascais: hoje "há homens e mulheres de outra maneira". E tudo isso se
faz através de uma nova linguagem, porque, "ela não existia". Só a partir do final
dos 90 é que passou a existir. Eis a verdadeira mudança.

Rupturas em palco

O palco é um dos espaços primordiais da emergência do corpo. Há uma


"transgressão sexual" no teatro, porque o "palco é um contexto para se
questionarem as coisas, mas um contexto seguro, e que não implica
necessariamente o eu social do actor", diz Francesca Rayner, professora na
Universidade do Minho.

Rayner explica que "a partir dos anos 90 houve uma maior atenção sobre
questões de género e de sexualidade no teatro e na performance" em Portugal. A
sua tese de doutoramento, de 2006, explica que esse questionamento se verifica,
por exemplo, através da inversão de papéis normalmente escritos para homens
mas interpretados por mulheres. E houve uma ruptura de paradigma em relação
ao papel do texto. Este "deixou de ser central, e podem explorar-se outras
maneiras de contar": elementos técnicos como a luz, e sobretudo "a exploração
do movimento, da dança e do corpo" surgem centrais em palco.

Mónica Guerreiro, doutoranda em dança contemporânea portuguesa, corrobora.


Com exemplos: a peça "Antonio Miguel" (2000), de Miguel Pereira, foi "um
marco", uma "bandeira ao homoerotismo na dança". Até então, o erotismo era
heterossexual e estava associado à mulher: a peça de Pereira foi "singularmente
importante porque trouxe imagens que não tínhamos". Outros exemplos:
Francisco Camacho, Olga Roriz...
Guerreiro é biógrafa de Roriz e está a realizar um doutoramento sobre a
possibilidade de uma leitura "queer" nas composições coreográficas em Portugal.
Explica que Roriz "propõe claramente uma indistinção das performatividades de
género que questionam noções de conformidade com a heterossexualidade, com
o modelo patriarcal, e o predomínio do masculino". São rupturas óbvias nos seus
espectáculos. Assim, "o homem pode ser elevado pela bailarina mulher e isso
propõe uma subversão do cânone da dança". E os pares não têm de ser
heterossexuais: "Podemos assistir a pares constituídos por dois homens ou por
duas mulheres", explica.

Esta leitura "queer" da dança sublinha a ruptura com a heteronormatividade. "É


dizer não ao binarismo, é dizer não à remissão directa a um género. Os géneros
são mais do que os sexos. O sexo é biológico, o género, não", diz Guerreiro.

Cascais afirma que antes "os portugueses não conheciam uma linguagem para
exprimir o corpo e a sexualidade." Simultaneamente, na academia nos anos 90,
"começou-se a disseminar uma linguagem que permite falar da sexualidade de
forma erudita, e elaborada, sem as categorias tradicionais que vêm da linguagem
popular, da medicina".

Passam a existir instrumentos que permitem separar a sexualidade, enquanto


intimidade, da sua representação artística. "As obras de arte não se referem a
uma biografia dos autores, mas àquilo que o autor faz com a sua biografia. É uma
vida tornada obra, que não tem a ver com o privado. Não é uma questão
biográfica, mas de construção social e artística. Isto foi difícil de perceber para a
teoria e crítica literária e de arte em Portugal."

Surge, então, o "queer". O antropólogo Miguel Vale de Almeida explica que o


termo "nasceu de um gesto de apropriação daquilo que era um insulto e que foi
transformado em algo positivo". Partiu "de um universo gay, mas expandiu-se e
ganhou outro sentido: o da teoria 'queer', que surgiu nos estudos de género e de
sexualidade". Hoje o "queer" é uma "atitude" que pretende ultrapassar o
"binarismo de género e a ideia de uma identidade de género e sexual sólidas". E
também uma teoria "que ajuda a questionar a validade das categorias binárias".

Ser homem (e) mulher


Para Miguel Pereira (http://www.youtube.com/watch?v=ThBp8dphHwk), 46
anos, bailarino e performer, a liberdade do corpo permite-lhe pôr em causa
categorias. O corpo trabalha a ambiguidade e isso é um "estímulo criativo". O
objectivo é "tentar perceber o que não é claro", diz. Interessa-lhe "trabalhar o
olhar sobre as convenções, os códigos sociais, políticos e culturais, questionando
sempre os limites, a identidade de um corpo, o que é o masculino e o que é o
feminino".

O corpo é o instrumento de Pereira. "Nunca trabalhei directamente com a


sexualidade, mas ela está lá porque faz parte de um interior que se revela. A
sexualidade é uma tempestade interior que tem a ver com o desconhecido que
revelamos através do instinto, do selvagem e do animal que está dentro de nós e
se confronta com a questão do binómio, da natureza, da cultura." Isto está em
"Antonio Miguel".

Na dança, explica Mónica Guerreiro, há uma possibilidade maior de exploração


da ambiguidade e de ruptura com o "primarismo binário, que é redutor." Pereira
propõe essa ruptura: "Eu não sou só homem, também posso ser mulher. Essa
ambiguidade revela-se em todo o meu trabalho", explica.

Não é só em palco que o binarismo é questionado. Raquel Freire, 39 anos,


cineasta, também o convoca, procurando "uma ruptura com a normatividade" e,
através da câmara, um olhar que apresente uma subversão da imagem típica da
feminilidade: "O primeiro plano que filmei é uma mulher grávida de nove meses,
nua, de lábios vermelhos, a dançar de forma sensual e sexual. Isto choca porque,
durante séculos, as mulheres ou eram Virgem Maria ou Maria Madalena."

Vasco Araújo, 34 anos, artista plástico, rompe com o binarismo, também na


língua, como quando fala em "vestir-se de mulher" em "Diva" (2000): "Essa
expressão tem uma carga simbólica grande, de género e sexual. Quando me vesti
de mulher não era um travesti, era um encarnar numa personagem feminina. Nós
somos mais do que um, nessa construção pessoana do ser." No grande teatro do
mundo, "tudo é uma encenação para podermos viver neste colectivo". Então,
podemos ser "várias personagens, vamos construindo o nosso género e a nossa
sexualidade", diz.
A literatura usa explicitamente estes desdobramentos, num jogo entre o autor (a
sua biografia e o seu género) e as personagens. Dulce Maria Cardoso, 45 anos,
escritora, afirma que a "escrita serve bem a ideia da sexualidade por causa das
fantasias e das nossas pulsões corpóreas." Escrever não é mais do que uma
possibilidade de desdobramento. "As fantasias sexuais são experiências que
nunca são cumpridas. Ao criar personagens estás a fantasiar que tens aquela vida.
Estamos a criar 'realidades' não-corpóreas."

valter hugo mãe, 39 anos, abre as pulsões a infinitas possibilidades: "A maneira de
ver o mundo é condicionada pelo sexo, mas estou convencido de que escrever
ficção tem que ver com essa capacidade de imaginar o que não somos. O livro
poderá passar, inclusive, muito longe do que são as nossas sensibilidades,
experiências ou atenuantes sexuais", explica.

Poeta e ficcionista, joga com os dois géneros (literários) para poder revelar e
esconder onde se encontra o valter verdadeiro: "A minha poesia caminha para a
confessionalidade, parece vir ao encontro da minha vida. Entre amores e
amizades, tornou-se sensibilizada pelas minhas pulsões afectivas. É um qualquer
diário que as pessoas podem coscuvilhar." A prosa, pelo contrário, é
verdadeiramente ficção: "É muito mais sub-reptícia. A ficção é a capacidade de
desdobramento."

Há quem se abra para além do binarismo de género (homem e mulher) ponto em


causa a heteronormatividade (o hetero e o homo). É isso que Vasco Araújo quer
dizer: "Não amamos géneros, amamos pessoas." No caso de Raquel Freire, isso é a
pan-sexualidade: "Ser pansexual começou como posição ideológica, e tornou-se
uma praxis. Sou intimamente contra o binarismo de género, porque nos impede
de nos vermos uns aos outros como pessoas."

São as pessoas que lhe interessam. Isso reflecte-se no olhar da câmara: "Gosto de
filmar as pessoas nos olhos, olhos nos olhos, porque é uma posição de igual entre
mim e a personagem. Essa igualdade gera sensualidade." Isso está em "Rasganço",
mas também no próximo filme, "As Leis do Corpo", sobre um casal homossexual
ao qual se junta uma mulher. "A criação artística passa por criar um mundo como
eu gostava que ele fosse."
A dissolução do binarismo de género transforma a noção de família. Primeiro
inconscientemente, depois como afirmação de identidade, a família (ou a sua
desconstrução) é o centro do trabalho do performer Miguel Bonneville, 25 anos.
Pais, mães, papéis masculinos e femininos povoam o seu trabalho. Na primeira
performance, era despido pelo público e, depois, aparecia travestido numa figura
de mulher: "Peito com pelos, soutien e mamas falsas. Essa transformação era
assustadora." Um monstro temido, porque é o desconhecido: "Esse monstro que
as pessoas viam em mim é a mulher quando se afirma e quando não está a ser
submissa. A minha mulher-monstro não é feminina. Não é uma mulher, porque
eu sou um homem. E, ao mesmo tempo, posso ser uma mulher."

Miguel Loureiro, 39 anos, actor, diz que a função do teatro é questionar o modelo
"boy meets girl" e a tradição. "Há uma tentativa de padronizar os actores. Isso é
profundamente errado. Os modelos de ensino no teatro e no cinema devem ser
espaços de aceitação das quebras da heteronormatividade." É a noção de tradição
que estes criadores querem subverter. "Nenhuma palavra é tão violenta como
esta: tradição. sempre que me falam nisso pergunto-me: quantos medos são
necessários para criá-la? E para mantê-la?", pergunta Freire.

Machos em crise

A partir do momento em que o binarismo cai, uma série de dúvidas sobre


masculinidade e família se levantam. E o corpo é "a matéria-prima das alterações
da identidade masculina", explica Cascais. Socialmente, "o corpo masculino é
cada vez mais objecto público erótico e de desejo." Ao produzir-se enquanto tal,
"o homem está a alterar a sua relação com a mulher mas também com outros
homens. Assume a sua passividade. Isso reflecte-se na nova masculinidade, que
tem a ver com a alteração da relação dos homens com as mulheres e da relação
consigo próprio."

Loureiro diz que não se identifica com a noção tradicional de masculinidade.


Assume a homossexualidade como "o chão" onde se move, mas não é sua política
fazer da orientação sexual um "discurso de afirmação". Nesse sentido, diz, "sou
pós-gender". Sente não pertencer "à masculinidade vigente": "Tenho uma relação
de alteridade em relação a essa masculinidade. Não tenho nada a ver como
feminino. E sempre me senti um passo ao lado do masculino que me foi dado
como modelo, como se caminhássemos em paralelo."

Esse é também o "chão" do artista plástico João Pedro Vale, 33 anos. Contudo,
mais do que questionar o género, o objectivo é desconstruir um imaginário
colectivo, cânones e conceitos que fazem parte de nós enquanto seres culturais e
sociais. "A sexualidade é importante, a minha orientação sexual, não. A
sexualidade é tão importante como ser português e não ser espanhol, é a minha
cultura. É isso que me interessa", explica. O filme porno "Hero, Captain and
Stranger" e a exposição "Moby Dick" têm esse objectivo: ambos partem da leitura
de estudos "queer" sobre a obra de Herman Melville. Isto mostra que o livro "na
realidade, não é gay, é outra coisa: é sobre a relação entre pessoas que têm de
conviver durante anos no mesmo espaço. Desenvolvem-se relações impossíveis de
categorizar. É como nas prisões, é uma contingência homossocial", explica.

Miguel Bonneville e Vasco Araújo, por exemplo, dizem-se feministas. Bonneville:


"Sou feminista e não me sinto diminuído por isso. Sinto que estou a pôr em causa
o outro macho, só por existir, só por não representar um papel dominador, e de
procurar um equilíbrio dentro da possibilidade."

Por isso, Carla Cruz, 32 anos, artista plástica, acredita que o feminismo de hoje
não é o dos anos 70. A palavra "feminista"' perdeu a sua ligação ao género: "É uma
metolodogia, uma forma de questionar." Em trabalhos como
"Transvestite/feminine - women go out in disguise" (2002) ou "The Inauthentic
Male" (2003), Cruz questionava noções de feminilidade e de masculinidade, para
confrontar modelos transmitidos "pelos media, pelas convenções, pela moral".
Para Cruz, faltam modelos sociais que "se apresentem fora das categorias
normativas", personagens públicas "que assumam uma ambiguidade".

Carla "Suspiria Franklin" Branco, 31 anos, é há mais de dez anos vocalista dos
Baton Rouge, mas, há quase vinte, mulher no rock, um mundo de homens. Em
1994, quando tinha 15 anos e liderava a única banda feminina do país sentia-se
"um alien". Chamavam-se Eva Braun e tocavam punk rock. "As pessoas iam ver-
nos não por causa da música, mas porque éramos uma banda de raparigas." A
verdade, diz, é que a diferença no rock entre homens e mulheres "é gritante
relativamente a outras áreas". Não encontra explicação, mas fala de "falta de
confiança das mulheres na exteriorização. "Muitas ainda me dizem: 'Não teria
coragem de me expor assim'." Novamente, há falta de modelos: "Como há poucas
mulheres no rock, há poucas referências. As pessoas têm tendência para se
tornarem umas iguais às outras, têm medo de sobressair."

O alter-ego "Suspiria Franklin" (Suspiria vem do filme de Dario Argento; Franklin


vem de Aretha) é "o eu que precisa de se expressar artisticamente". Em palco,
descreve, passa-se a "outro estado mental que transcende o corpo real", para fugir
dessa "normalidade monótona e quotidiana". O corpo em palco é "isento de sexo,
é o corpo em si, para além do género". O seu universo, contudo, "é muito
feminino e encaixo-me muito bem nele, mesmo que o rock seja tradicionalmente
viril".

A ideia de que o rock é viril é "idiota e machista", afirma Paulo Furtado, aka
Legendary Tigerman. É uma questão de igualdade. O seu último álbum, "Femina",
parte desses pressupostos. Primeiro: "Já que não posso falar por uma mulher, vou
trazê-la para o álbum, para que ela própria possa falar por si." Dar voz aos que
não têm voz. Segundo: "No meu universo, durante anos, projectei a imagem de
uma mulher. Aqui decidi passar a mulher para dentro, para haver uma primeira
pessoa e não uma imagem projectada." Terceiro, a mulher enquanto objecto de
desejo: "Para mim, o desejo tem claramente género. Mas nem tudo tem a ver com
um desejo claro e concreto. Há uma tensão no ar em todo o álbum que se
estabelece pelo simples facto de eu ser homem e elas serem mulheres. Porque
sou heterosexual. Isto não poderia existir desta maneira se eu gravasse um álbum
só com homens."

A mulher é, para Tigerman, "o elemento catalisador" e em "Femina" estamos


"numa relação de igual para igual", em diálogos e cumplicidades, neste caso,
através dos duetos com Maria de Medeiros, Asia Argento, ou Rita Redshoes.

O dueto revela a outra voz, e essa revelação serve a satisfação da "curiosidade


natural" sobre o lado delas, uma curiosidade que tem a ver com "perceber a
diferença, perceber o que estão a pensar, a querer, coisas que não são claras para
mim". Chegar à essência do feminino? Carla Cruz responde a Tigerman: "Não sei
bem se há uma essência feminina. Se calhar há coisas que podem ser ditas
femininas, mas que têm de ser postas na linha da frente para serem discutidas."

É isso que faz Tigerman: pôr-se na linha da frente, a nu, como na capa de
"Femina". "A minha ideia era a de um homem a tentar abarcar a mulher
mantendo a minha masculinidade e heterosexualidade. Abarcar um sentir no
feminino", explica. Isso teria de ser dado trabalhando a "posição do cigarro, do
olhar que aliados à maquilhagem conseguissem manter essa masculinidade, ao
mesmo tempo, piscando os olhos a um lado mais feminino". Esse piscar de olhos
é notório: só um olho tem rímel, o outro é o olho masculino de Tigerman.

Diante desta imagem, não se pode deixar de colocar a questão: isto é "queer"? A
androginia de Tigerman abre o conceito de "queer" para um espaço longe da
dicotomia homem/mulher. Surge um corpo ambíguo, que abole as categorias de
género: onde está o homem? No corpo nu de Tigerman? E a mulher? Na
maquilhagem? O músico responde: "Se suscita essa ideia de androginia, sim, e
discussão sobre ela. Mas 'queer', não. Não concordo."

Comunidade de múltiplos

O corpo responde melhor às categorias do que as palavras. Tigerman nu, na capa,


explica muito sobre esse corpo potencialmente andrógino do artista. Responde
que "se a roupa não tem uma função, se não esta lá a dizer nada, é porque não é
importante. Uma roupa não diria nada que, neste caso, a minha pele não diria
melhor."

Exactamente: uma questão de pele. O actor e encenador André Teodósio, 32


anos, admite que o nu lhe permite multiplicações que o corpo vestido não tem,
dominado pelas contingências: "Em palco, eu estou muito mais presente. Os meus
tiques, a maneira como ando, como faço amor, como atraio, com sou: tudo isto
está muito mais lá quando estou vestido do que quando estou nu."

Miguel Pereira concorda: "Ao usar o nu, posso cair no estereótipo do erótico. Mas
interessa-me saber que estou a produzir esse estereótipo." Primeiro há a
exposição do corpo nu: "Tem de haver esse embate, até porque as pessoas têm as
suas referências." É uma relação de desejo que se estabelece com o público:
"Quando nos expomos, cria-se uma certa forma de desejo, recíproco até, com a
audiência. Porque queremos, no fundo, ser amados." À medida que a peça
avança, o corpo "esvazia-se", os estereótipos "eliminam-se pela persistência, e o
corpo nu torna-se banal, perde as conotações." Deixa de causar impacto. "Passa a
instrumento, a veículo de informação e esvazia-se da sua condição social."

O objectivo de Pereira é "ficar nas entrelinhas, na pura expressão do corpo, nas


suas falhas, nos seus não-ditos." Cá está a ambiguidade. O questionar das
categorias é um jogo constante com o "qualquer coisa de intermédio" de Sá-
Carneiro: "Homem e mulher, preto e branco: jogo muito com o que está entre um
e outro. É nessa ambiguidade que está o meu trabalho criativo", diz.

Vasco Araújo quer poder dizer "hoje sou isto, amanhã sou outro", e viver nessa
possibilidade múltipla.

No fundo, "o corpo somos sempre nós, é sempre o nosso corpo que lá está, mas
está lá com tudo", diz Teodósio. Com as contingências sociais, culturais, nesse
eterno desdobramento de eus, na construção de uma comunidade. Teodósio: "É
já outro corpo que é afirmado. É a lógica perversa da arte de quebrar a pergunta
colocando uma nova. O objectivo é continuar a criar um organismo vivo. Daqui a
uns anos seremos todos uma comunidade de múltiplos."

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