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Imogen Binnie

Nevada
tradução
Nevada
Para Pam,
apesar de este não ser um livro feliz
Sometimes saying goodbye could be so easy
So come on, come on, come on, leave this city

Die! Die! Die!, “155”


Capa
Folha de Rosto

Parte I
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Parte II
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Posfácio
Fictionmania
Camp Trans
Outras figuras queer dos anos 2000
This Bridge Called My Back
Outros livros também
Prettyqueer
Agradecimentos

Autora
Créditos
Parte I

Fim de outubro
1

Ela está me enforcando. Está indo com tudo, os dedos enterrados na


cartilagem, apertando minha traqueia, e eu não consigo respirar, pensa
Maria. De fato não está conseguindo respirar, mas não consegue se
forçar a ligar para isso. Houve uma época em sua vida quando isso era
algo novo, quando pelo menos sentia tanto tesão em ser enforcada
quanto Steph em enforcá-la, mas agora as duas moram juntas, têm um
gato e uma iluminação bacana, e Maria não consegue forçar sequer um
arrepio.
Ela age como se estivesse curtindo. Contorce o corpo inteiro,
segurando e puxando os pulsos de Steph. Não com tanta força, se bem
que Steph provavelmente fosse mais forte que ela, então Maria, na
verdade, não teria força para deter Steph se aquilo fosse real. E Steph
está com tesão. Está se esfregando com força na perna de Maria. Aí
uma das mãos dela solta o pescoço de Maria, vai na direção da virilha e
Steph começa a se masturbar.
É claro que fingir é toda uma arte. Qualquer pessoa é capaz de ver
quando os guinchos e arquejos de uma estrela pornô são pura
encenação, mas, para convencer alguém que ama você, e que você
com certeza no mínimo já amou, de que você está presente, sendo
enforcada e sentindo um puta tesão, meio que é preciso se forçar a
acreditar nisso. Então Maria se força.
Sua atenção está concentrada nos dedos de Steph em seu pescoço,
nas ancas generosas de Steph sobre seu quadril ossudo. Na expressão
no rosto de Steph.
Steph agora está com os olhos fechados, mas isto com certeza ainda
pode dar merda. Você pode até tentar fingir, mas, se não convencer
ninguém, ninguém goza, e aí é DR a tarde inteira. A parte final é
superlegal, o vinho, o chamego e tal, mas as horas de insegurança,
choro e sentimentos que antecedem a reconciliação não valem nem
um pouco a pena.
Steph está gozando. Na verdade ela não diz nada quando goza, não
grita, não faz barulho nem nada do tipo, mas dá pra sentir seus
ombros se tensionando e relaxando logo depois. Eles se tensionam
com muita força. Na primeira vez que as duas treparam, Maria ficou
com medo de Steph distender algum músculo do ombro.
Aí chega a vez de Maria. Ela já sabe que vai fingir. A relação de
Maria com o próprio corpo é péssima, mal consegue reunir coragem
para ficar pelada na frente de qualquer pessoa, quanto mais para gozar
com outra no mesmo recinto. Seria de pensar que fingir é impossível
com as partes que Maria tem, mas dá para fazer, sim. Maria tem
alguma experiência em fingimento. Uma vez alguém lhe disse que,
quando ela gozava na boca, dava para sentir que tinha gozado porque
quando o líquido pré-ejaculação se transformava em sêmen de verdade
ficava mais salgado. Mas ninguém disse isso a Steph, porque assim
que ela está chupando Maria há tempo suficiente para tornar um
orgasmo plausível, Maria tensiona os próprios ombros por um
segundo e logo em seguida os relaxa.
Pois é, péssimo. E imaturo. Maria disse a Steph que é mais fácil
para ela gozar com oral, mas o principal motivo pelo qual disse isso é
porque quando Steph está chupando, ela não tem como contar aquelas
historinhas safadas e constrangedoras de que acha que Maria gosta. E
que também meio que são culpa de Maria.
Isso meio que faz Maria parecer uma escrota, uma controladora
mentirosa e manipuladora que precisa estar no comando de tudo, não
tem um pingo de sentimento e odeia a própria namorada. Mas é só
honestidade. Você finge que goza porque quer que a sua parceira sinta
que está fazendo um bom trabalho quando trepa com você, porque
tem vergonha da sua falta de sintonia com o próprio corpo e do
quanto é difícil para você ter um orgasmo de verdade. Você finge que
curte ser enforcada porque ela curte isso e, além do mais, quatro anos
antes, você abriu um precedente. E pelo visto Steph segue curtindo.
Mas, claro, vai saber.
Resumindo: Maria se sente péssima em relação a si mesma e está
tentando proteger Steph disso. Não consegue gozar com outra pessoa.
Assim que tira a roupa, sai do próprio corpo e vai para as nuvens,
tentando desesperadamente travar uma paz emergencial com as
próprias partes, tentando não pensar no quanto elas foderam com um
pedaço tão grande da sua vida e no que ela pode fazer em relação a
isso. Além do mais, Maria curte as partes de Steph, mas em certo
sentido meio que odeia Steph por ela automaticamente ter aquelas
partes assim de graça. Como dizer uma coisa dessas para a própria
namorada? Como ficar tranquila com isso? Mais especificamente,
como ficar tranquila o suficiente com isso para se acalmar e gozar?
Maria não sabe, então finge. Desaba na cama, faz uma cara de
alívio. Diz: Ai, baby, caramba.
Steph sorri. Se arrasta pela cama e descansa a cabeça no ombro de
Maria.
Que tesão você, diz Steph.
Peraí, diz Maria, tentando dar a impressão de estar tomada por um
êxtase tão sublime que não consegue nem falar.
Até parece.
2

As mulheres trans da vida real não são iguais às mulheres trans da TV.
Em primeiro lugar, depois que se tira a mistificação, os mal-
entendidos e o mistério, elas são pelo menos tão chatas quanto as
outras pessoas. Ah, as minhas neuroses! Ah, os meus traumas! Ah,
olha só pra mim, meu passado me traumatizou e eu ainda estou
resolvendo isso! Apesar da impressão que se pode ter com base nos
programas de televisão e filmes idiotas, não há nada de
particularmente interessante nisso. Embora talvez Maria esteja sendo
parcial, claro.
Ela queria que as outras pessoas entendessem isso sem ela precisar
dizer nada. É sempre impossível saber as suposições das pessoas. Elas
tendem a pensar que mulheres trans são drag queens louconas e
superengraçadas, ou então homens héteros tristes, patéticos,
pervertidos e iludidos, pelo menos até juntarem dinheiro para fazer
suas Cirurgias de Mudança de Sexo, quando então passam a ser
exatamente iguais a qualquer outra mulher. Ou algo assim? Mas Maria
pensa: cara, oi? Ninguém mais me lê como trans. Tiozões héteros
flertam comigo quando estou no trabalho, e em todos os meus anos de
transição eu não consegui juntar dinheiro nem para comprar um par
de botas decente.
Ser uma mulher trans é assim: Maria trabalha num sebo imenso no
sul de Manhattan. O lugar é um horror. A dona é uma mulher muito
rica e muito má que vive ou ausente ou microgerenciando os
funcionários. As pessoas da gerência que trabalham para ela levam
todas uma vida miserável sob seu comando há vinte ou trinta (ou
quarenta ou cinquenta) anos, ou seja, são todas babacas com Maria ou

É
com qualquer outra pessoa que trabalha abaixo delas. É tipo um sebo
famoso das antigas que existe há séculos.
Maria trabalha lá tem uns seis anos. As pessoas vivem pedindo as
contas, porque nem todo mundo consegue aguentar o abuso inerente
ao emprego. Mas Maria é tão emocionalmente fechada e tem tanta
dificuldade de sentir qualquer coisa que pensa: bom, o emprego é
sindicalizado, estou ganhando o suficiente pra pagar meu apê, e
consigo me safar de quase qualquer situação da qual queira me safar.
Só vou embora daqui se me demitirem. Só que quando ela começou a
trabalhar lá era tipo: oi, eu sou um cara, e meu nome é o mesmo que
consta na minha certidão de nascimento. Então, quando já tinha um
ou dois anos de casa, teve a intensa e assustadora revelação de que por
muito, muito tempo — por mais que dizer isso seja batido e clichê —,
até onde sua memória alcançava, ela estava bem fodida da cabeça.
Então começou a escrever sobre isso. Pôs tudo no papel e foi
ligando todos os pontos: o ponto eu às vezes quero usar vestidos, o
ponto sou viciada em masturbação, o ponto tenho a sensação de levar
um soco no estômago toda vez que vejo uma menina
despretensiosamente bonita, o ponto eu chorava muito quando
pequena e acho que não chorei nenhuma vez desde a puberdade. Um
monte de outros pontos. Uma constelação inteira de pontos. O ponto
ai, cara, eu sempre fico mais doida do que pretendia quando começo a
beber. O ponto talvez eu odeie transar. Então acabou entendendo que
era trans, disse a todo mundo que iria mudar de nome, começou a
tomar hormônios, e foi muito difícil e recompensador e doloroso.
Enfim. Foi um Episódio Muito Especial.
A questão é que tem pessoas no trabalho que se lembram de
quando ela era supostamente um menino, que se lembram de quando
ela transicionou, e que podem a qualquer momento contar para
qualquer uma das pessoas novas que entrarem no trabalho que ela é
trans, e aí ela vai ser obrigada a entrar num modo contenção de danos
porque, lembrem-se, como ela pode saber que ideias bizarras essas
pessoas têm em relação às mulheres trans?
Tipo, e se a pessoa for liberal e quiser demonstrar sua
solidariedade? “Eu tenho uma amiga trans”, em vez de: “Ei, amiga
trans, gostei de você, bora ter uma relação humana tridimensional?”.
Ser uma mulher trans é assim: nunca ter certeza de quem sabe que
você é trans, nem do que essa informação poderia significar para a
pessoa. Viver pisando num terreno social movediço e esquisito. E o
problema não é que importa alguém saber que você é trans. Dane-se.
Você só não quer que a sua personalidade engraçada, encantadora,
complicada e esquisitona seja apagada pelas ideias que as pessoas têm
na própria cabeça e que foram criadas por roteiristas de TV picaretas,
por exemplo, ou então por roteiristas de filmes pornô mais picaretas
ainda. Mas é bem uó ter que educar as pessoas. Soa familiar? As
mulheres trans precisam lidar exatamente com a mesma merdalhada
que todas as outras pessoas do mundo que não são brancas, héteros,
machos, com plenas capacidades físicas ou detentoras de algum outro
tipo de privilégio. Não tem glamour nem mistério. É um puta saco.
Maria está completamente exausta e de saco cheio disso, e se você
não está, ela lamenta muito. Lamenta de um jeito profundo,
consternado, sarcástico, impotente e inútil.
3

Maria e Steph saem para tomar um brunch. É domingo de manhã, e


elas com certeza não têm grana pra isso. Embora esteja se
hormonizando há quatro anos, Maria ainda, no melhor dos casos, se
retrai e, no pior, dissocia completamente toda vez que alguém a toca
abaixo da cintura, e ainda precisa se barbear todo dia de manhã. Mas o
que são vinte dólares por uns huevos rancheros veganos e uma
mimosa?
Steph está meio de mau humor. Nervosa com alguma coisa, ou
triste. Maria se esforça para dar atenção, mas está cansada. Ela não
consegue dormir a noite toda. Acorda rangendo os dentes, ou então
preocupada com coisas bem produtivas, perguntando-se, por
exemplo, se não seria uma garota hétero que deveria namorar garotos
héteros, ou então acorda simplesmente porque tem um gato
encostado na sua cara ronronando. Enfim. Existem fotos dela aos
cinco anos de idade com umas olheiras enormes.
Tem um garçom do outro lado do restaurante. Não é o garçom que
costuma atender Maria e Steph, mas ele não é estranho. Maria está
tentando situá-lo. O único lugar de onde poderia conhecê-lo é o sebo,
mas não está encaixando.
O tom da voz de Steph muda, e Maria volta a prestar atenção nela.
Eu fiz uma cagada, ela está dizendo.
Uma cagada, Maria pergunta.
É, diz Steph. Lembra do Kieran?
Maria se lembra do Kieran. Com frequência.
Lembro, diz ela, lembro do Kieran, sim.
Lembrar é uma palavra meio estranha, já que ele trabalha no sebo e
Maria o vê quase todo dia.
Steph respira fundo, tipo querendo dizer “vou falar tudo logo de
uma vez”, e diz: Eu trepei com o Kieran há três noites dentro do
armário de limpeza do Centro de Acolhimento Gay.
Há três noites, repete Maria.
É, diz Steph.
Mesmo assim Maria não sente nada, a não ser quem sabe uma
luzinha no fundo da mente, tipo: taí um motivo pra você terminar o
namoro. Ela não dá atenção à luzinha. O que faz é entrar no piloto
automático. Ela consegue fingir. Está tentando lembrar o que aquele
garçom comprou. Será que ele estava na seção de história? Ou de
artes?
Ela pergunta: você trepou com ele três noites atrás, mas voltou pra
casa e passou três noites sem dizer nada, e inclusive trepou comigo
hoje de manhã sem nem pensar duas vezes?
Olha, Steph diz, mas não fala mais nada.
Então o cérebro de Maria se fecha totalmente, mas ela continua
presente, continua observando e querendo ter algo a dizer, mas na
verdade tudo em que consegue pensar é tá, que se dane. História da
Irlanda, talvez? Talvez eu precise ir embora, pensa. Mas não consegue;
não se pode simplesmente largar a namorada no meio de um brunch.
Maria meio que queria estar em cima da sua bicicleta, prestes a ser
atingida por um ônibus, desviando heroicamente no último segundo
para sair do caminho. Mas sabe que deveria estar pensando em Kieran
e Steph dentro de um armário de material de limpeza.
Um armário de material de limpeza, ela diz.
Você está bem, pergunta Steph. Tá só calada, não tá nem fazendo
cara feia.
O cérebro de Maria está fechado porque ela sabe que existem
coisas que deveria estar pensando e sentindo: traição, raiva, tristeza;
mas é como se estivesse apenas observando a si mesma e pensando:
ei, sua menina idiota com cara de menino, por que você não está
sentindo nada?
É uma sensação familiar de distanciamento que já incomodou pra
caramba todas as parceiras que teve. Sinto muito, ela sempre pensa,
aprendi a me policiar bem intensamente desde novinha, aprendi a
internalizar as normas sociais e ao mesmo tempo tentar me proteger
delas. Sei me proteger muito bem.
Steph está encarando Maria, Maria está encarando o próprio prato,
Steph toma um gole da mimosa dela, Maria toma um gole da sua, e
então fica com os olhos marejados, o que é uma novidade. Só que tem
a ver com autopiedade, não com estar abalada por Steph a ter traído.
Não está nem aí para com quem a namorada trepa ou deixa de trepar.
Está triste consigo mesma. A velha Maria chorona e sozinha, a
criancinha com olheiras enormes, a romântica solitária apaixonada por
bicicletas, a menina que gosta mais de livros do que de gente. É uma
fuga fácil e automática dizer que as coisas são chatas, mas é chato ver
as mesmas coisas surgirem toda vez que algo acontece: coitadinha de
mim. Se ela fosse gótica, poderia falar sobre os seus problemas, mas,
como é uma indie-punk autodidata esnobe que gosta de livros, bom,
aqui estamos.
Uma lágrima escorre pelo nariz dela, e é isso. Ela enxuga o olho
junto ao canal lacrimal, onde não passou rímel, e pergunta, Beleza, o
que a gente vai fazer?
Como assim, pergunta Steph.
Ué, você fodeu com o Kieran, diz Maria, apreciando o modo como
Steph se encolhe ao ouvir a palavra.
É, diz Steph.
Bom, e você quer sair com o Kieran? Quer ficar comigo? É pra
gente resolver isso?
Você é tão estranha, resmunga Steph, alto o suficiente para que
pareça ser sua intenção que Maria ouvisse.
Eu sou tão estranha?
Você é tão estranha!, repete Steph, dessa vez mais alto. Está
chateada? Ah, eu sei, você não acessa os próprios sentimentos, você é
total fechada, se fosse gótica, falaria dos seus problemas… eu te
conheço, Maria, mas mesmo assim acho bizarro o seu jeito de lidar
com as coisas.
Quer dizer que você está brava comigo, pergunta Maria.
Estou! Sinto muito por ter trepado com o Kieran, mas seria bacana
ver alguma reação sua. Seria bacana sentir que você dá a mínima.
Legal, diz Maria. Você trepa com o Kieran e depois fica brava
comigo por causa disso.
Ela enfileira cinco feijões pretos no garfo e os põe na boca. Aquele
garçom estava na seção de história da Irlanda, certeza. Sentado em
frente a uma mesa do outro lado do restaurante, ele embrulha garfos e
facas em guardanapos de papel.
Steph está chorando e Maria, comendo. Com toda calma.
4

Steph deve ter ido embora uns vinte minutos depois, mas Maria não
sabe porque não estava mais lá. Está pedalando. O cara do Bouncing
Souls escreveu uma música para a própria bicicleta, e ela a está
cantarolando: I'll sing this song to my bike, and everything else that I like.
O Brooklyn no outono está entre as coisas de que ela mais gosta.
Talvez já tenha decidido que está tudo acabado com Steph, então
esteja se sentindo muito livre e empolgada. Ou talvez seja só por estar
pedalando, e por estar frio o suficiente para usar cachecol e luvas, mas
não tanto para precisar de um casacão e um gorro grande e ridículo.
Seja como for, ela está bem empolgada. O Brooklyn é lindo. Maria é
apaixonada pelo Brooklyn. Quando Steph está ocupada, ela às vezes só
pega a bicicleta e sai para explorar o bairro inteiro, que é maior do que
a cidade de São Francisco. Tem um jardim zoológico, um parque,
muita, muita pizza, tem a Rocketship em Cobble Hill, tem tipo uns
quatro bares que servem pizza de graça para quem compra uma
cerveja. Tem árvores, bebês, prédios caindo aos pedaços, e tem
pessoas.
Agora está super na moda gente rica, jovem e branca como Maria
colonizar a história do Brooklyn, porque nesta nossa época fodida e
pós-moderna todo mundo vive desesperado por algo que seja real, e
não existe nada mais real do que os Dodgers, o judaísmo nova-
iorquino e, tipo, rap. O problema é que quando eles dizem “pessoas
reais”, na verdade estão se referindo a pessoas que não carregam o
fardo de um senso de humor repleto de ironia, de formações
universitárias que as ajudam a erguer uma barreira analítica entre si e
o mundo real, e da pressão de assumir a realidade de terem todas
crescido na classe média, optado por um estilo de vida liso e boêmio,
e agora serem obrigadas a lidar com o fato de não poderem pagar pelos
confortos com os quais foram criadas. Então colonizam esses bairros
de gente normal, colonizando suas experiências. É bem horrível.
Maria sabe que tem culpa no cartório.
Além do mais, o hip-hop nasceu no Bronx.
Você pode ou não pensar sobre essas coisas enquanto dribla os
ônibus perto do Prospect Park, ou atravessa toda nervosa o Bed-Stuy,
ou ri com desdém da garotada idiota e rica de Williamsburg quando
para, prende a corrente da bicicleta, e vai pagar cinco dólares por um
latte vegano num café totalmente independente em que acabou de
entrar por puro acaso.
Como é domingo, Maria precisa trabalhar. O brunch aconteceu, e
embora ela seja uma funcionária bem antiga, ainda não consegue
folgar nos fins de semana. Suas folgas são às quartas e quintas. Mas aos
domingos não tem muitos adultos por perto, então todo mundo bebe
bastante durante o expediente. Maria acha isso bom. Ela gosta de
beber, apesar de não beber tanto quanto quando era uma adolescente
toda fodida e cheia de problemas.
Ela atravessa a ponte Williamsburg, que nunca vai ser sem graça,
por mais acostumada que ela fique com o lugar. Da ponte dá para ver
Manhattan inteira. Suas pernas doem. Tem sempre pedestres no
caminho, e quando você chega lá embaixo é uma oportunidade para se
enfiar de modo nada seguro no trânsito, costurar entre vans e táxis,
quase morrer atropelada, pular um meio-fio e subir a Terceira
Avenida. Ciclistas mensageiros não devem mais existir agora que
temos internet, mas Maria tem certeza de que seria boa nisso. É algo
em que pensa bastante.
Ela prende a bicicleta num parquímetro, bate o ponto (na verdade,
um cartão magnético, não tem nada para bater) e larga a bolsa carteiro
gigante e a jaqueta jeans na sala dos funcionários. Sua jaqueta é uma
obra de arte. Tem um esquete de The Kids in the Hall no qual Satã dá a
um maconheiro o dom de fazer brotar maconha da própria cabeça em
troca de sua jaqueta jeans perfeita: esse é o tipo de jaqueta que Maria
usa. Satã seria capaz de matar por sua jaqueta. Eis os patches dela:
Bouncing Souls, White Zombie, a expressão FODA-SE, uma menininha
segurando tesouras enormes (sobre fundo xadrez), Oi, Meu Nome é
SAPATÃO e, na parte de trás, o golpe de misericórdia: as costas inteiras
são ocupadas pela capa do primeiro álbum do Poison. Não é nenhuma
ironia. Poison é irado.
O sebo só instalou ar-condicionado poucos anos antes, um ou dois
depois de ela ter começado a trabalhar lá, ou seja, metade das vezes,
ao entrar, ela se prepara para recuar diante de uma onda de umidade
pegajosa e mau cheiro. Era forte assim: no verão, as pessoas
costumavam entrar, sentir aquele bafo quente e repulsivo, virar as
costas e ir embora. A vibe ainda é bem parecida, embora o ar em si
tenha melhorado.
Maria tem um trabalho específico, mas chato, e de qualquer forma
não é o que ela faz de fato. Depois de passado um tempinho num
emprego, você entende o que tem de fazer; depois de um tempo
maior, você domina o trabalho e consegue fazer o mínimo necessário
sem pensar muito no assunto; é a primeira vez que ela passa tanto
tempo num emprego, e tem percebido que anda forçando os limites
do mínimo necessário, tentando descobrir onde exatamente termina o
“preguiçosa” e começa o “você vai levar uma advertência”.
Ela diz oi para umas pessoas e volta a sair pela porta lateral. Está a
fim de um bagel.
5

Quando começaram a namorar, Maria e Steph eram umas fofas. O


namoro começou com tipo dois meses de Natal Punk Rock em Nova
York, mas, sinceramente, a essa altura Maria já nem se lembra muito
bem. Elas se curtiam bastante. Steph ensinou sexo kinky para Maria;
Maria ensinou culinária vegetariana para Steph. O quase rompimento
esquisito durante um brunch vegano naquela manhã faz Maria ficar
pensando nisso, e recordar sempre leva a recordar com força. A
caminho da loja de bagels, Maria já está lembrando como era ser
adolescente na Pensilvânia.
Em primeiro lugar, era para ela ser um menino. Ela ainda não tinha
entendido que não era. Sabia que havia alguma coisa estranha. Tinha
um cabelo comprido, escorrido e horrível que não deixava ninguém
cortar, e indícios de um distúrbio alimentar. Mas, até onde entendia,
ela era um menino quase totalmente hétero que só não queria comer
de vez em quando. Com um estômago sem fundo para drogas. Ou
pelo menos um interesse por drogas, se não uma aptidão. Gostava de
se drogar, mas não tinha talento nenhum para isso. Vomitava muito. O
pessoal em Nova York toma bala ou cheira pó em imensos lo s
reformados e falsamente sórdidos a uma dúzia de estações nas linhas L
ou M, mas lá onde foi criada as pessoas se drogavam nas noites em
que iam acampar, nos pastos das fazendas dos parentes de amigos.
Usavam heroína também, que cheiravam, mas ninguém em Nova York
parece fazer isso. Vai ver heroína é meio anos 1990. Mas ela ainda
sente falta. Para Maria, cheirar heroína e depois passar quarenta e
cinco minutos deitada de bruços no chão define o auge da
irresponsabilidade adolescente.
Até onde consegue lembrar, nunca usou heroína sem vomitar
depois.
Mas enfim, ela ainda não tinha sacado que era trans. Tudo o que
sabia sobre pessoas trans era o que qualquer pessoa sabe antes de
começar a pesquisar: que são todas umas perturbadas de cabelão que
enganam caras héteros para fazê-los transar com elas. Na televisão.
Um nojo. Ela só sabia que se sentia esquisita, mas literalmente todo
adolescente se sente assim. Quem não se sente esquisito? Todas as
músicas que escutava falavam sobre esse sentimento. Todos os livros
que lia falavam sobre esse sentimento. Então, aos dezessete anos, não
parecia estranho, tipo, dar rolê com um cara que curtia muito racismo
e com um futuro mecânico de parada de caminhões dentro de uma
barraca, todos de camisa de flanela e com uma garrafa de aguardente
Everclear ou dez ácidos. No meio de um pasto de vacas.
Tipo, era isso que se fazia. Por um lado, você simplesmente seguia
o fluxo do que estava acontecendo, mas por outro, as elaborava um
mito de como era descolada e legal, então internalizava uma
percepção da própria estranheza como um troféu, ao mesmo tempo
que se dissociava emocionalmente dela. Todas as pessoas legais são
esquisitas. E foi assim que ela mitificou sua noção de ser trans sem
entender que era trans.
Gadolândia, Pensilvânia, é um cu de mundo no meio do nada, mas
fica na interseção de duas estradas que levam a Nova York ou ao oeste
do país. Não tem nada lá. Tem tipo um centrinho, na verdade um
único quarteirão, com um punhado de comércios à moda antiga, uma
loja de 1,99, talvez uns quinhentos antiquários. A joia da coroa de
Gadolândia é um moinho construído em mil oitocentos e sei lá quanto
que foi transformado em museu. Jovens com as calças cheias de
patches ficam sentados em frente ao café da rua principal, conversando
sobre sair dali, montar uma banda ou escrever como o Kerouac, partir
em uma turnê e se mudar para a cidade grande. Ficam jogando altinho
com um saco cheio de feijão. É o tipo de lugar onde se espera
encontrar metanfetamina, mas Maria nunca viu muito disso lá. Às
vezes ela ficava de bobeira no centro antigo, tomando café e falando
merda também, mas sobretudo depois que aquele colecionador velho
e esquisito parou de vender discos na sala da casa dele, ela quase
sempre ia chapar de bruços no milharal. Os discos do cara eram caídos
mesmo. Ele curtia Grateful Dead.
Na real, se drogar numa fazenda provavelmente não lhe pareceria
nada estranho até hoje, apesar de agora ela ter peitos, mas só porque
carregava tudo isso para onde ia. E quem não carrega? Todas as
músicas que ouvimos falam sobre carregar o passado conosco. Enfim.
Era boa aluna, mesmo isso não sendo uma prioridade. A internet só
chegou em Gadolândia depois que ela já tinha terminado o ensino
médio, então mesmo com aqueles amigos babacas ela se sentia bem
sozinha. Tinha uma Borders a uma hora de lá, e às vezes alguém
conseguia pôr um zine na seção de revistas, então ela sabia que tinha
mais coisa rolando além de rádios de rock das antigas e se drogar. Ela
colecionava zines de desconhecidos. E se agarrava a tudo o que
encontrava e que lhe mostrasse que havia coisas acontecendo fora da
sua própria realidade: a Igreja do Subgênio, os quadrinhos do
Sandman, o zine punk Maximum Rocknroll, “rock alternativo”,
esquetes de comédias canadenses bizarras.
Acabou indo para a faculdade, passou cinco anos bêbada e
hibernando, mal conseguiu se formar, e então se mudou para Nova
York, onde agora o cara da loja de bagels está falando com ela.
Diga, moça, ele diz.
Ela responde no automático: um bagel de cebola tostado com
cream cheese de tofu e tomate seco, alface, tomate, cebola, sal e
pimenta. Ela não é vegana, mas é quase.
Seis anos e ainda é esquisito ser chamada de moça. Não ruim, só
tipo: ah é, eu fiz isso. Vai saber se essa parte de ser trans um dia passa.
Provavelmente não. Ou, falando de forma mais específica,
provavelmente não quando você ainda precisa fazer a barba, quando
suas partes ainda atrapalham e estragam o caimento da sua roupa todo
dia de manhã. Provavelmente só passa quando você fica rica.
Para não ter de fazer a barba todo dia, você tem que gastar litros
com um profissional especializado que enfia agulhas na sua cara para
matar os pelos. Dói pra caramba. Também é bem mais caro fazer uma
cirurgia de redesignação do que todos aqueles roteiros de série policial
do tipo “Liguem para os jornais! A assassina é um cara!” poderiam
levar a crer.
Isso deixa Maria amargurada.
6

Ela volta para o trabalho. Ninguém reparou que ela tinha saído, mas
ninguém nunca repara. Ela traça um plano: construir um ninho perto
dos terminais de atendimento nos fundos do andar térreo, comer
metade do bagel, ajudar qualquer pessoa que vier pedir ajuda,
embrulhar o bagel, depois ir ver se chegou algum livro de resenhas
interessante. Devem ter saído umas coisas legais desde a última vez
que ela olhou, há uma semana talvez. Putz, como ela tem livros.
Então Maria monta acampamento diante de um terminal. Na meia
hora seguinte, acontece ali exatamente tudo de que todo mundo que
trabalha no varejo reclama. Pessoas são grossas, pessoas ficam
confusas, pessoas querem que ela decida o que elas querem. Que se
dane. Continua comendo. Essas coisas na verdade não a incomodam.
A persona varejista de Maria é impressionantemente desprovida de
amargura. Há muito tempo ela vê gente traumatizada pelo varejo
tratar mal os clientes naquela loja, e é bem nojento. Além do mais, é
Manhattan, todo mundo é babaca. Durante algum tempo, Maria
recorreu ao extraordinário potencial de ser simpática, mas agora meio
que superou isso também, e encara a coisa toda de um jeito zen.
Consciente. Ser babaca com gente que não foi babaca antes só faz
Maria se sentir babaca, o que é uma sensação bem ruim. Então ela até
que é bem simpática.
Mas, como se trata de uma livraria, ouve muitas coisas do tipo:
estou procurando um livro, a capa é azul. Supostamente essa é a coisa
mais irritante que se pode perguntar para uma livreira, mas ela curte.
As pessoas sempre pensam saber menos do que de fato sabem sobre
um livro. Ela em geral consegue extrair essas informações e entender
do que se trata. Quando você viu esse livro? Onde você ouviu falar
nele? É um livro feliz? Essas conversas podem ser quase um instante
de conexão humana genuína, só que é basicamente uma conexão de
mão única. Quem sabe em outra vida Maria possa ser terapeuta,
assistente social ou algo assim.
Quando está ajudando uma cliente a entender que está procurando
Amy Hempel, que é o máximo, Maria se dá conta de que não sabe se
vai dormir em casa hoje, ou se Steph vai dormir em casa, ou qual vai
ser. Faz uma anotação mental para ligar para Steph.
Só que ela passa o dia inteiro esquecendo de ligar. No fim da noite,
tudo o que quer é ir para casa, só que não sabe muito bem se pode.
Todo mundo está saindo para ir encher a cara no boteco copo sujo na
St. Mark's, o que é sempre uma opção, mas Maria está exausta e não
fica muito a fim. Está na calçada em frente à livraria fechada tirando
enfim o celular da bolsa quando Kieran esbarra nela.
Meus olhos são bocetas em brasa, ele quase grita. Minha boceta é
um olho furioso.
É uma piada recorrente e idiota: Kieran descobriu que Maria
gostava de Kathy Acker, então começou a fazer imitações péssimas de
Kathy Acker, em geral respondidas por ela com imitações péssimas de
James Joyce, que Kieran curte bastante. Ela devia responder: Sim eu
digo Talvez Sei lá Sim Claro Tudo bem Sei lá Claro, mas no presente
momento não quer nem falar com ele. Enfim, tudo aquilo é uma
bobagem. Ele supostamente se acha um punk genderqueer radical
fodão “fim do gênero”, mas James Joyce não exatamente se esforçou
para boicotar o patriarcado. Kieran fica falando sobre todos os motivos
pelos quais sim, Joyce se esforçou para boicotar o patriarcado, mas a
resposta na verdade era não, James Joyce era um escroto patriarcal e o
culto aos homens brancos mortos é uma função do patriarcado. Mas
que se foda esse papo agora. Maria ignora Kieran. Vai ver ele nem sabe
que Steph contou que ela e Kieran treparam? Ela passa a corrente
pesada da bicicleta em volta da cintura, fecha a tranca, sobe na bike e
sai pedalando. Pega o sentido contrário ao de casa, na direção do
centro.
Obviamente não dá para passar a noite inteira andando de bicicleta
em vez de ir para casa, a pessoa ficaria cansada, entediada, e
obviamente tem trabalho amanhã, mas ela decide passar um tempo
pedalando. Uma coisa boa é que seu celular está na bolsa, então se
Steph ligar ela não vai ouvir. Maria meio que tem noção de estar
transformando a si mesma na parte desprovida de razão, de estar meio
que se comportando feito uma babaca. Sei lá sim claro tá sim sei lá tá
claro e daí.
Vai seguindo para o norte. É o máximo andar de bicicleta à noite
em grande parte de Manhattan, mas pedalar no centro é um horror
vinte e quatro horas por dia. É praticamente impossível, a não ser que
você esteja tentando arrumar um hematoma num para-choque, coisa
que ela às vezes fica a fim de fazer. E que talvez queira fazer agora.
Mesmo num domingo à noite como aquele, pedalar no centro é
sempre uma grande aventura. O lugar é cheio de subidas e caminhões
de nove eixos, ônibus e táxis engarrafados, o que obriga a pessoa a
costurar entre os veículos. Ela se esforça para vencer uma subida e
começa a sentir dor nas pernas; estende uma mão e esbarra no
retrovisor de um táxi. Aquilo poderia ser o início de uma odisseia que
duraria a noite inteira, um clima De olhos bem fechados ou coisa assim,
mas ela vence uma subida, a bicicleta começa a descer, e depois
começa a subir outra. Com as pernas protestando, ela encosta numa
calçada. Na real, um filme seria uma boa ideia.
É animador decidir de antemão não dormir quando você está tão
acostumada a não conseguir dormir. Tipo: vai ser bem ruim quando
você ficar realmente exausta, o que acontece de modo nem um pouco
romântico e bem rápido, mas no presente momento Maria está
superpilhada. Anda dois quarteirões empurrando a bicicleta bem rente
à calçada, no asfalto, só para poder ter o direito de ocupar meia pista e
atrapalhar os carros, até chegar num cinema onde está passando um
filme de monstro. Compra um ingresso, quase entra, tem outra ideia
melhor, dá meia-volta, entra num mercadinho, compra um litrão,
enfia na bolsa e entra no cinema.
Na real, ela não consegue mais beber uma garrafa daquelas inteira.
Sua barriga lamentável de velha senhora de vinte e nove anos de idade
não dá conta. Mas a questão é entrar no cinema levando a cerveja
escondida, não de fato beber.
Maria se senta no meio, na quarta fileira. Tem tipo mais duas
pessoas no cinema, porque ninguém vai assistir a filmes de monstro
no domingo à noite. Ela já esteve naquele cinema. Viu algum outro
filme idiota, com algum outro monstro idiota, em algum outro
momento em que estava toda abalada emocionalmente e meio que
dando um tempo da vida normal. Era uma matinê da outra vez e
quando o filme acabou, ela decidiu entrar em outro cinema e ver outro
filme, mas aí amarelou totalmente quando viu que a sala só tinha um
lanterninha. Aquele estereótipo de que pessoas transexuais são todas
umas delinquentes descontroladas, atrevidas e fora das normas, e que
tipo instilam no cidadão comum a coragem de se libertar dos grilhões
sufocantes da conformidade? Esse estereótipo se aplica às drag
queens. Maria é transexual e poderia desaparecer de tão tímida.
Mas ainda assim ela entra no cinema com um litrão de cerveja.
O filme acaba se revelando meio idiota, mas quando se vai assistir a
um filme de monstro a ideia é que ele seja idiota mesmo. Tem várias
explosões, o monstro é asqueroso e o roteiro é tipo assim: você passa
quinze minutos sendo apresentada aos personagens e pensa nossa,
como eu odeio essa gente playboyzinha! Queria que um monstro
aparecesse e matasse todo mundo.
E aí, por mais uma hora e quinze minutos, o monstro se demora
matando todos eles.
É irritante, um clichê previsível, mas Maria sempre toma o partido
do monstro. Só que se você fosse conversar com ela e desse a
entender que existem motivos bem óbvios para isso, ela surtaria com
você. Não é o tipo de sacada que a interessa.
Enfim, está tarde; já é quase uma da manhã quando ela sai do
cinema. Os bares fecham às quatro, e o pessoal da livraria com certeza
ainda deve estar bebendo, mas Maria está começando a sentir nos
músculos do ombro um prenúncio de como vai ser o dia seguinte se
não dormir pelo menos um pouco. Sendo assim, um meio-termo: ela
entra na lojinha de bebidas minúscula que parece um buraco na
parede e compra uma garrafa de cinco dólares de um uísque venenoso.
Volta para casa bebendo: de luvas com os dedos cortados, passando
pelo bar xexelento na St. Mark's, pelo caos eterno que é o tráfego no
cruzamento da Bowery com a Delancey e pela ponte Williamsburg,
sob um céu azul-marinho sem nem uma estrela e já meio altinha de
cerveja antes mesmo de começar a beber o uísque.
Ela não liga para Steph. Nem sequer olha o celular. Tipo, se você
não abre o envelope com pinta de oficial, ele não pode causar mal
nenhum. Além do mais, vai saber onde está o telefone dentro da sua
bolsa, e está frio, e no presente momento ela está ocupadíssima
fazendo pose, parecendo o Batman dentro de uma pequena alcova
bem no meio do alto da ponte Williamsburg, bebendo seu uísque e
olhando os prédios que ficam no lado Manhattan, no lado Brooklyn,
no lado Manhattan. Qual dos dois é pior? Não consegue decidir. Mas
gosta do metal de que a ponte é feita: uns rebites imensos e aparentes,
a grade que parece uma rede para as pessoas não poderem se atirar no
rio.
Então lhe ocorre que ela provavelmente meio que odeia tudo. Puxa
uma briga consigo mesma. Coisas que não odeia: mulheres trans que
acabaram de se dar conta de que vão ter de transicionar, mas como
não sabem o que fazer em relação a isso ficam supernervosas mas
também meio que aliviadas.
Não odeia caras trans conscientes do fato de terem conquistado um
privilégio masculino fora da comunidade queer, mas também, de um
jeito estranho, dentro da própria comunidade queer, em especial no
modo como a sua presença tende a eclipsar, eliminar ou invalidar a
presença das mulheres trans, e que têm consciência disso e falam
sobre o assunto, admitindo o fato para essas mulheres.
Não odeia filhotinhos de cachorro.
Na real, quase todo o site cuteoverload.com também é bem legal.
Um aperto na garganta lhe diz para deixar de ser tão romântica e
esquisita e parar de encher a cara, Batman, então ela volta a pedalar, e
meio que despenca em queda livre pelo outro lado da ponte pensando
no cuteoverload.com. Aquele vídeo do bebê panda espirrando.
Provavelmente existem outras coisas que ela não odeia.
Teoria feminista, ela propõe. Acho que não odeio teoria feminista.
Ela não odeia ter uma banda preferida que ninguém conhece e que
ela mantém em segredo, pois compartilhar essa informação estragaria
tudo. Isso até que é legal.
Com certeza não odeia Piranha, sua única amiga trans que não a faz
subir pela porra das paredes. Caralho, tem tipo uns três dias que
deveria ter ligado pra Piranha.
Provavelmente ela nem odeie Steph. Tipo, como casal elas estão
fodidas, e obviamente Maria é péssima em mudar as coisas na sua vida
que realmente precisa mudar. Por exemplo: ela com certeza precisa
terminar com Steph. Mas, falando sério, Steph é demais. Ela e Kieran,
bom, esse tipo de coisa meio que às vezes acontece, principalmente
num relacionamento queer, né? E não é como se Maria nunca tivesse
trepado com Kieran enquanto namorava Steph.
Ela esqueceu que estava fazendo uma lista. Tira a garrafinha da
bolsa e a segura contra a luz. Só sobrou um quarto, mais ou menos.
Pensa nossa, estou bem sóbria pra quem tomou um litrão de cerveja e
seiscentos mililitros de uísque, e aí pensa: no que eu estava pensando
mesmo? Numa lista? E então ela está no fim da ponte, parada perto de
um poste de luz curvado e esquisito.
Ah, Williamsburg. Houve um tempo em que você parecia um
bairro assustador e marrento, mas hoje é óbvio que os grafites em seus
muros são feitos por estudantes de artes.
7

Maria meio que trepou com Kieran primeiro. Steph sabe disso. Foi
toda uma grande questão quando aconteceu, e desde então Maria
esporadicamente se lembra, torce o nariz e tenta não se sentir uma
escrota. O que rolou foi que ele começou a trabalhar na livraria pouco
mais de um ano depois de Maria começar a tomar as injeções de
estrogênio, quando pessoas que ela não conhecia estavam começando
na maior parte das vezes a lê-la como mulher.
Ele também é trans. E curte muito isso: para Maria, ser trans é
tipo, olha essa situação de merda com a qual sou obrigada a lidar, mas
para Kieran é tipo uhu! Ser trans é maneiríssimo! Os caras trans
parecem ter essa relação com a transgeneridade mais do que as
mulheres. É compreensível. Às vezes os caras trans vêm de
comunidades sapatões ativistas e revolucionárias em que ter um
gênero contestador é tipo chique ou sei lá. Enquanto para as mulheres
trans geralmente não é assim. Quando saem do armário, as mulheres
trans tendem a não ter a capacidade analítica advinda de existir em
uma comunidade queer em que se fala sobre gênero; o erro que
algumas pessoas cometem é pressupor que isso significa que as
mulheres trans nunca chegam a formular uma análise.
Tem também a questão das normas culturais sobre masculino e
feminino que todo mundo internaliza, e o tipo de luz que isso lança
nas diferentes direções da transição, mas enfim. Que se dane tudo
isso. É difícil de explicar. Maria anda rascunhando mentalmente um
zine sobre o tema que vai expor a questão de forma clara e resolver
tudo, tipo, desde antes de ela começar a transicionar.
Então Kieran começou a trabalhar na livraria, leu Maria como trans
e decidiu virar amigo dela. Foi ótimo, porque Steph conhece algumas
pessoas queer mas tende a ficar nervosa, e Maria fica sempre muda
nas festas, de modo que nenhuma das duas nunca esteve
particularmente envolvida numa comunidade. Mas Kieran sim. O
puto conhece todo mundo. Você diz ah, Judith Butler escreveu um
livro novo, e ele: uma vez joguei Butler em cima de uma mesa e comi
ali mesmo, num brunch.
E você fica tipo: Sério?
E ele: Não, mas Butler fez uma leitura na minha faculdade quando
eu estudava lá.
Então Maria e Kieran fizeram amizade, saíam para almoçar, era
uma relação nova, muito embora não devesse ser uma relação que
envolvia se pegar. Maria e Kieran conversavam sobre as coisas, ele lhe
explicava coisas — ele adora explicar coisas — e ela tipo, ai meu deus,
o cara conhece todas as verdades inteligentes sobre transição! O
gênero é mesmo um construto!
No fim, não há como não perceber que, se o gênero é um
construto, os sinais de trânsito também são, e se você ignorar
qualquer um dos dois, os carros vão te atropelar. Carros esses que
também são construtos.
Os dois treparam num banheiro da Burritoville.
Ele meio que conseguiu comer a bunda dela com um packer num
banheiro minúsculo, imundo e amarelo no subsolo da Burritoville na
esquina da Segunda Avenida com a rua 6. Ela conseguiu não tirar a
saia e não deixar ele encostar nas partes dela. Com certeza não gozou.
Ele talvez sim. Havia manchas engorduradas no espelho, e como o
banheiro era muito pequeno, ela ficou com a cara prensada contra
aquilo enquanto ele meio que a comia, e quando saíram, Maria estava
com a bochecha toda suja de gordura. Foi difícil de tirar. E ela pensou
legal, punk rock, degradação, sexo safado, tudo muito queer,
excelente. Pareceu que dali em diante Maria iria construir toda uma
obra sobre suas experiências sexuais interessantes, só que essas
histórias, na real, nunca se materializaram. Aquele foi seu momento
mais sarjeta. Essa vez na Burritoville foi praticamente a única.
Ela pensa: acho que eu simplesmente não entendo sexo, enquanto
apoia a bicicleta no ombro, subindo a escada. Talvez um dia, quando
meus setecentos dólares da poupança virarem vinte mil e eu puder
pagar por uma cirurgia de redesignação, talvez então eu consiga
ultrapassar o ponto inevitável em que me fecho e passe a curtir de
verdade. Mal posso esperar.
Ela abre a porta e o gato não está na cozinha, ou seja,
provavelmente está no quarto com Steph. Kieran provavelmente não
está lá. O gato odeia todo mundo com exceção de Maria e Steph.
O gato aparece e esfrega a cabecinha preta na perna de Maria. Oi,
gato, ela diz.
Ela abre a geladeira, que está vazia, prolongando sua ansiedade de
um jeito bem familiar. Tipo, se Kieran estivesse na cama de Maria com
a namorada dela, não que Maria seja dona da sexualidade de Steph
nem nada do tipo, mas seria bem ridículo ela estar na cozinha, de
cachecol, com uma luva calçada e a outra não, pensando em fazer uma
comida no meio da noite enquanto ele está lá dentro de conchinha
com Steph. Sujando os cobertores de Maria todinhos de suor, gozo e
lubrificante.
Eca.
Steph tem o sono bem pesado, então Maria vai até o fim do
corredor, um metro de corredor, pois estamos em um apartamento
em Nova York, e abre uma fresta na porta. Ela está dormindo sozinha.
Maria volta para a cozinha, termina sua garrafinha de uísque, esquece
a luz acesa e a porta da geladeira aberta e apaga no sofá.
Umas quatro da manhã ou algo assim, ela acorda morrendo de dor
de cabeça, programa o despertador do celular — Steph tinha ligado,
tipo várias vezes —, apaga a luz, fecha a porta da geladeira e volta a
dormir no sofá da cozinha. Quanta boemia.
8

Maria não cruza com Steph de manhã. Steph tem um emprego de


adulta, então antes de Maria acordar ela já levantou e saiu, o que é
esquisito, porque em geral a luz do sol, a buzina de um carro ou sua
própria respiração, qualquer coisa acorda Maria. Bom trabalho na
noite de ontem, uísque. Uma pena que seu sono, além de profundo,
não tenha sido reparador.
No fim das contas Piranha também mandou mensagem para Maria
na noite anterior. Merda. A maioria das mensagens é só um monte de
palavrões porque Piranha sabe que Maria curte um palavrão. Ela é uma
boa amiga. Mas ontem à noite escreveu, tipo, Cara, cadê você? Maria
responde: Foi mal, cara. Vamos se ver?
Maria está exausta e se sentindo uma morta-viva, mas isso, na real,
não é nenhuma novidade. O despertador dá tempo suficiente para
fazer a barba, se maquiar e sair. Ela se apressa. Há um jeito de dormir
até o mais tarde possível, contanto que você economize bem seu
tempo de manhã.
Ela dormiu de roupa, o que lhe poupa os quase quatro minutos que
levaria para se vestir.
Uma noite ela ficou com muito frio no Camp Trans, no ano em que
foi, e vestiu todas as suas roupas: um vestido, uma saia comprida, uma
calça jeans, um moletom de capuz, uma jaqueta jeans. Acabou que a
produção ficou ótima. Além do mais, calça jeans e várias saias
significam tipo zero estresse anatômico. O traje virou basicamente seu
uniforme. Tipo, ela troca a roupa íntima. É difícil admitir, mas ela tem
exatamente um sutiã que lhe agrada e um monte que não, então usa o
mesmo sutiã todos os dias, mas em teoria daria para trocar o sutiã

É
também. É só ir revezando os vestidos ou escolher outro moletom e
pronto, visual novo. As mesmas roupas todos os dias! É como um
mantra não apropriador. Ela aprendeu até a andar de bicicleta de saia
comprida.
Como fazer a barba e encher a cara de base diariamente são
lembretes exaustivos do fato de ser trans, ela se distancia um pouco
dessa rotina recitando um monólogo como se estivesse explicando
essa rotina para alguém. O primeiro segredinho é ferver água numa
chaleira enquanto você se veste e escova os dentes, depois tampar o
ralo da pia e fazer tipo um lago de água fervente. Se a água estiver tão
quente a ponto de machucar os dedos quando você molhar o rosto, e
você meio que ficar com medo de estar danificando permanentemente
a própria pele, então você está fazendo tudo certo. Água superquente
faz o barbear ficar mais rente, sabe-se lá por quê. Talvez pelo mesmo
motivo que faz ser preciso esquentar uma tortilla antes de conseguir
transformá-la em qualquer coisa? Enfim, aí você passa creme de
barbear na cara toda. Use o creme mais vagabundo que conseguir; às
vezes dá pra encontrar um da Barbasol escrito Homem de Verdade na
lateral, esse é o melhor de todos. Raspe o rosto com uma daquelas
giletes de lâmina tripla. São caras, mas dá para usar por tipo uns
quinze dias. Você saberá a hora de comprar uma nova quando todo dia
depois de fazer a barba seu rosto ficar uma massa sanguinolenta e você
não conseguir parar de pensar: quer fazer magia com sangue
menstrual, mas só sangra um ou dois dias por mês? Eu sangro todo
dia.
Pelo rosto.
Qualquer coisa além de três lâminas é para gente rica.
O segredinho número dois é comprar uma loção pós-barba
daquelas com cheiro de senhora. Depois de se barbear e enxaguar o
rosto, passe isso na pele inteira e dê um tempo para a pele absorver. A
loção deixa a pele mais macia, o que ajuda os tiozões executivos
nojentos que ficam de bobeira na sua livraria a saber que é em você
que devem chegar.
Agora vamos à maquiagem. Se você ainda precisa fazer a barba,
então deve ter, tipo, uma sombra de barba no rosto. Muita gente vai
dizer para você passar toneladas e mais toneladas de base, ou então
para fazer aquele truque de passar batom na cara inteira e depois
cobrir de base, mas essas pessoas são burras. A verdade é que
ninguém vai examinar seu queixo tão de perto, então você só precisa
de uma base normal que dá para comprar na Sephora. A mais barata
que tiver. Compacta, líquida, tanto faz. Passe no rosto inteiro, no
nariz, e no pescoço até onde a barba desce. Às vezes você consegue
dar sorte na farmácia, mas na maioria das vezes o melhor é escolher o
produto mais barato na loja chique. Se tudo o mais estiver
funcionando direitinho, grossas camadas de maquiagem são mais um
sinal de que Essa Pessoa é Trans do que a insinuação de um bigode
hibernando embaixo da base.
O segredinho número três é maquiar os olhos o máximo que você
puder. As pessoas vão discordar dessa parte, mas elas que se fodam.
Foram necessários anos de pesquisa, mas a teoria atual que explica o
motivo pelo qual isso funciona, que anda de mãos dadas com a ideia
de que o batom faz você parecer maluca, é que assim você desvia o
olhar das pessoas para os seus olhos, afastando-o da área de sombra da
sua barba. O batom atrai o olhar para a parte inferior do seu rosto,
onde moram os pelos que estão hibernando. E isso nem pensar, porra.
Então passe muita maquiagem preta em volta dos olhos, tipo a Ally
Sheedy em O clube dos cinco. Você vai ficar com uma cara meio gótica.
Tudo bem ficar com uma cara meio gótica? Você quer ficar assim? Se
não quiser, eis o segredo número quatro: brilho. Aparentemente,
brilho numa mulher trans é meio que um clichê, mas o lance é o
seguinte, a verdade que perpassa todos esses conselhos sobre
maquiagem: ninguém espera ver uma pessoa trans. Meninas podem
usar brilho nos olhos. Se você usar bastante brilho e tipo um batom
vermelho-sangue, sem base, e uma camiseta decotada que deixe à
mostra um peito liso, então sim: as pessoas vão importunar e tentar
intimidar você. Mas ninguém espera que mulheres trans usem brilho,
nem que andem com a raiz dos cabelos aparecendo, nem que usem
uma tonelada de porcaria punk sapatão cobrindo cada centímetro da
cara. Então pronto.
Só que Maria é alta e magra. Ela de toda forma já tem o benefício da
dúvida. Talvez para você nada disso funcione.
Esse ritual leva cinco minutos a partir do momento em que a
chaleira começa a apitar.
Umas duas semanas antes, Maria comprou por quinze dólares de
um maluco na St. Mark's uma reprodução barata com quase um metro
e meio de altura de Piss Christ, a foto daquele crucifixo de urina que
fez todo mundo surtar no início dos anos 1990. Achou que Piranha
fosse curtir. E curtiu mesmo. Literalmente ficou com os olhos
marejados quando Maria apareceu na porta da casa dela com uma obra
de arte imensa e mal-emoldurada. Mas não chegou a chorar, ficou bem
num segundo, então insistiu em dar um saquinho de comprimidos de
presente para Maria. Maria ficou tipo tá, maneiro, obrigada, enquanto
Piranha ia explicando que comprimido era o quê: estes aqui são
Percocets, estes são morfina, estes são Adderall, estes são Vicodin,
cuidado com esses. Maria nem se droga mais tanto assim. Hoje em
dia, usar drogas parece simplesmente exaustivo: quatro horas de oba
oba e depois tipo três dias de putz. Sem falar nos vômitos. A pior parte
é quando você está pondo as tripas para fora e não consegue respirar, e
parece que quanto mais envelhece mais isso é o que resta para ela.
Comprimidos são ok. Sei lá. Heroína é muito deprê; cocaína é
muito acelerado e depois muito deprê. As drogas psicodélicas
simplesmente duram tempo demais, e depois você passa uma semana
se sentindo esquisita. Fumar maconha deixa você inteiramente
idiotizada, e Maria já é bem idiota. Ou melhor, sendo mais específica:
fumar maconha a deixa inutilizada e incapaz de fazer qualquer coisa, e
ela já tem bem pouco talento para se obrigar a fazer qualquer coisa
além de se recriminar por não fazer nada.
Depois de se maquiar, ela toma dois Adderall tirados do saquinho
de sanduíche todo amassado e cheio de farelo, pensando que eles já
vão ter batido no fim da meia hora de bike que ela leva para chegar no
trabalho, e que depois ela vai passar o dia inteiro superprodutiva. Ou
pelo menos as seis primeiras horas. Um fator complicador é que ela na
real nunca tem certeza de qual comprimido é qual, então esses dois
que acaba de tomar devem ser Adderall, mas podem ser qualquer
coisa. Tomara que não sejam morfina. Morfina é o pior de todos. Um
comprimido de morfina deixa você meio flutuando, mas dois
comprimidos de morfina são tipo cinco horas de dor de barriga e
depois três vomitadas.
Segredo de maquiagem número cinco para mulheres trans: tome
comprimidos.
Ela antes tinha um corpo bem forte, na época em que era uma
jovem universitária enérgica que parecia um cara e passava o dia
inteiro, todos os dias, escrevendo obsessivamente sobre gênero em
cadernos ultrassecretos. Mas agora ela está velha, tem quase trinta
anos, e já faz tanto tempo que vive insone, deprimida e bêbada que
seu corpo começa a parecer que vai entrar em colapso pelo mínimo
pretexto. Sério: o sol fere seus olhos, a barriga parece feita de folhas
velhas e secas que vão umedecendo conforme apodrecem, e os
ombros latejam só por causa de um litrão e um pouco de uísque. Só
que ela precisa chegar no trabalho. Sendo assim: Adderall.
A pedalada até Manhattan demora mais do que de costume, porque
geralmente ela toma uma ou duas cervejas ou um copo de uísque
antes de dormir, não um litrão mais uma garrafinha inteira. Ela chega
atrasada no trabalho. Ops. Já devem mesmo estar atrás de um motivo
para mandá-la embora, porque já faz um tempão que ela trabalha ali e
já recebeu tantos aumentos compulsórios exigidos pelo sindicato que
quase consegue bancar sua alimentação e o aluguel, de modo que
chegar atrasada é meio que um lance sério. Tipo, eles não podem
simplesmente mandar você embora se você for do sindicato.
Os três planos de carreira na livraria são: ser demitida antes mesmo
de conseguir entrar para o sindicato, ou entrar para o sindicato e ir
acumulando infrações legítimas como atrasos até ser demitida, ou
então ser promovida a um cargo de gerência, sair do sindicato, e aí ser
demitida por qualquer motivo. Então que se foda a promoção e que se
fodam os planos de carreira. É só passar um número suficiente de anos
pondo livros nas prateleiras e juntando aumentos anuais de um dólar
até morrer rica.
Ela passa a manhã esperando a hora da verdade. Tipo, não vai ser
demitida à queima-roupa, mas pode ser que seja chamada para uma
conversa. As pessoas aqui têm uma coisa de mostrar uma captura de
tela do computador com os horários de ponto. Fica o maior climão.
Mas tudo bem! Acaba que ela estava certa e tomou o Adderall mesmo,
o que significa que está superfocada e consegue trabalhar à beça. Ela
tira o pó e reorganiza vários displays, põe um milhão de livros nas
prateleiras, ajuda senhorinhas minúsculas a encontrar livros antigos
minúsculos, e quase não sai de fininho pela porta lateral para
intervalos suplementares, só uma ou duas vezes. Por volta do meio-
dia, já está pensando: Sou a funcionária do mês desta merda, quando
tromba com Kieran, que está de saída para fumar um cigarro.
Cara, diz ele.
Está usando uma camiseta branca velha, surrada e disforme,
suspensórios, uma calça de veludo cotelê de velho e uma gravata
frouxa em volta do pescoço. Parece a roupa de um palhaço, mas é
frustrante ver o quanto lhe cai bem.
Cara, diz ela.
Me acompanha num cigarro?
Parei de fumar, diz ela.
Tá, diz ele, a que horas é seu intervalo de almoço?
Jesus, pensa ela. Ele vai fazer questão de ter uma conversa.
Às duas, diz ela, quer ir junto?
Quero, diz ele, quero sim.
É legal ela estar ligadona de Adderall e tipo pilhada de tão
produtiva, porque na real sente mesmo uma certa vontade de resolver
aquela história.
Passa um tempo recolocando livros nas prateleiras. Quer dizer,
médio. Praticamente só faz passar os olhos pelos caixotes de livros que
precisam ser guardados e praticamente só faz folhear as obras de
autores dos quais já sabe que gosta: Dennis Cooper, Robert Glück,
uma primeira edição de um livro de Joe Meno para a qual ninguém
mais parece ter dado valor. Fica sendo sugada pelos textos e precisa se
forçar para não ficar só ali de bobeira lendo.
Ela está folheando furtivamente um livro de Ali Smith e ficando um
pouco triste quando Kieran faz aquilo de bater duas vezes atrás de um
dos seus ombros quando na verdade está em pé do outro lado, então
ela se vira para o lado errado à procura dele. Que irritante.
Vamos?
Sim, diz ela.
Eles batem o ponto, saem e começam a andar. Ela percebe que
estão andando na direção da lanchonete de burritos onde fizeram
aquilo. Que constrangedor, pensa ela, e então: não, é só de mau gosto.
A Steph disse que você falou com ela, diz ele.
É, mais ou menos.
Ela disse que te contou que a gente tá transando, diz ele.
É, diz Maria. Ela não olha para ele nem coloca entonação em
palavra nenhuma.
Ela disse que você, na real, não queria conversar com ela sobre
nada e que…
Desde quando você fala tanto com a minha namorada, pergunta
ela, interrompendo-o. Eu nem sabia que vocês dois se conheciam.
Pois é, diz ele, é meio esquisito. Ele dá um passo meio saltitante.
Maria ainda está doidona de Adderall. De onde esse cara tira tanta
energia?
Pode crer que é esquisito, resmunga ela.
Você conhece o Myspace né, pergunta ele.
Sim, eu conheço o Myspace, diz ela. Você e eu somos amigos lá.
Faz-se um segundo de silêncio.
Peraí, diz ela, o lance agora não é o Facebook? O Myspace não já
era?
Não, o Myspace voltou a ser legal, diz ele. O Facebook mudou e
ficou todo estranho.
Ah.
Enfim, olha só, diz ele, a Steph e eu ficamos amigos no Myspace
porque eu vi que ela era uma das suas amigas mais próximas, achei ela
gata e fiquei amigo dela.
Jesus Cristo, sério? Ela está pensando: é esse o aspecto que a
minha vida de fato tem? É claro que a vida de todo mundo é assim, as
crianças pequenas têm conta no Flickr e os tiozões no Match.com, e
se você não tem perfil em lugar nenhum você está tentando passar
uma mensagem, mas porra, por favor. Ele viu a Steph no Myspace?
Que surreal. Isso é meio que constrangedor para todo mundo.
É, então, diz ele, mas ela o interrompe outra vez.
Olha, eu não ligo.
Você não liga, repete ele.
Kieran, eu tomei dois Adderall hoje de manhã antes de vir
trabalhar, e agora a onda está baixando. Tipo, eu tomei pra adiar uma
ressaca, mas na real não rolou, porque passei a manhã inteira me
sentindo pilhada e péssima. Eu realmente não quero conversar com
você sobre os altos e baixos da minha relação com a Steph, e com
certeza não quero conversar com você sobre os altos e baixos da sua
relação com a Steph. Acho que eu devia conversar sobre isso com ela,
e não com você, mais oui non?
Ela disse que você não quer falar com ela, diz ele.
Os dois estão em frente ao restaurante e Kieran para, mas Maria
continua andando. Tanto faz. Por acaso aquilo agora é um tema na vida
dela? Percorrer a cidade indo a lugares para os quais não liga e aos
quais não tem tempo de ir? Obviamente em algum nível ela está
tentando se dar espaço para entender o que fazer em relação ao
namoro com Steph, mas obviamente ela já sabe o que fazer. Está na

É
hora de terminar o namoro. É óbvio, não é? A gente já esteve aqui
antes.
O céu está cinza daquele jeito perfeito típico de Nova York, e Maria
está andando em direção ao sul da cidade, descendo a Segunda
Avenida na direção de onde provavelmente o Lower East Side
costumava ficar, mas o lugar agora era só uma penca de franquias tipo
Subway. E tem o Moby's. Ela pensa em Kieran sentado na lanchonete
de burritos, se remexendo e comendo, totalmente impassível. Aquele
filho da puta não consegue ficar parado.
Ela percebe que está propositalmente tentando não pensar em
Steph, então tenta propositalmente pensar nela. No que sente por ela
agora, no que sentia por ela antes. Quando as duas se conheceram,
Steph era uma femme gata e gorda que tirava afetuosamente com a cara
das pessoas e as chamava de sapatinhas e veados de um jeito
carinhoso. Agora seus cabelos vermelhos cor de fogo estão pretos. As
roupas vermelhas cor de fogo ficaram pretas. Ela cresceu. Seu
emprego a deixa exausta e sua namorada a irrita.
Maria pensa, mas que porra isso tem a ver comigo? Eu não fiz nada.
Tipo, acho que fiquei à vontade, e quando fico à vontade tudo que eu
quero fazer é ler. Eu fico calada. Não que estejamos numa fase de sair
para bares e tal, mas a gente nunca fez isso na real.
Quanto mais ela tenta pensar no assunto e reduzi-lo a como se
sente em relação ao namoro, mais escorregadio ele fica. Pensar em
Steph é como tentar agarrar um peixe. Maria está começando a se
sentir confusa e perdida, então percebe que havia se enfiado mesmo
na parte sul da cidade, indo parar em Chinatown, e precisa voltar para
o trabalho. Oportunidade número dois para uma odisseia de
exploração da cidade como uma metáfora da autoexploração: puf,
direto pelo ralo. Que se dane. Por um instante, ela tem a sensação de
como seria não estar vinculada a Steph, ao seu apartamento, ao seu
emprego, mas então pensa: isso é papo de homem hétero, o solitário
autossuficiente. Mesmo assim, por um segundo, ela se sentiu livre.
9

No metrô que pega para voltar, ela vai pensando em como na real
poderia simplesmente seguir viagem rumo ao norte da cidade, tipo ir
ao Central Park ou algo assim. Suas mãos já estão meio dormentes e
todas as suas coisas ficaram na livraria, mas as pessoas às vezes saem
para almoçar e não voltam. Alguns anos antes, ela trabalhava com um
menino que devia ser legal, mas os dois costumavam ter uns bate-
bocas intensos e nada a ver. Ela o provocava com algo, tipo, cara, você
não curte Hole? Será que é porque você é misógino?
O cara ficava puto, perdia a linha, e tentava explicar que ele, na
real, não era misógino, que o que ele realmente curtia era hip-hop.
Mas, cara, dizia Maria, você já confessou que não gosta da Sylvia
Plath, e agora diz que a Courtney Love é uma guitarrista de merda.
Coisas assim. Vai saber. A questão é que, quando entra numa
discussão, Maria vai ficando cada vez mais tranquila, principalmente
se a outra pessoa começa a falar mais alto e se exaltar. Então o cara
ficava chateado, ela seguia provocando, provocando, até ele acabar
dando na sua cabeça com um exemplar do Código Da Vinci e se retirar
bufando para nunca mais voltar, pelo menos até o dia seguinte. Todo
mundo passava a tarde inteira falando porra, Maria. E tipo cara, será
que ele volta hoje? Ele nunca voltava.
No dia seguinte ela dizia Foi mal, e ele dizia É, foi mal também, e
depois disso nunca mais tocavam no assunto.
Ela está pensando Eu podia fazer isso, mas então o trem para na
estação mais próxima da livraria e ela salta. É uma bela fantasia
romântica, mas Maria já está a ponto de levar uma advertência por
atraso e, na real, quem sabe quais são as possibilidades de se arrumar
um emprego com uma transição de gênero no histórico. Ela tenta não
pensar se isso significa que vai ficar na livraria até morrer.
10

Steph está esperando por ela na livraria.


Putz, diz Maria. Não posso falar com você agora, Steph.
Você não precisa falar comigo agora, diz Steph. Só queria que você
soubesse que eu vou passar uma ou duas noites na casa de um amigo,
que, só pra você saber, não é o Kieran. Quero que você resolva o que
quer da Gente, se é que você quer alguma coisa da Gente.
O Adderall está deixando a cabeça dela, que começou a latejar, e
Maria não quer bater boca com a namorada na livraria, mesmo sendo
do sindicato, então diz tá, tudo bem, claro. Steph vai embora pisando
firme e Maria pensa: graças a deus. Vou ter o apartamento só para
mim hoje à noite. Que cochilo da porra eu vou dar.
O restante do dia é brutal, daquele tipo em que o cansaço é tanto
que vai além do cansaço, o tempo simplesmente se arrasta, e se você
consegue arrumar algum projeto com o qual se ocupar isso passa, mas
é o cansaço é tanto que você não consegue pensar num projeto que
não demande energia demais. Ela sai de fininho pela porta lateral, mas
está sem a menor vontade de caminhar; então vai se esconder no
banheiro com um livro antigo de Rebecca Solnit, mas não para de
pegar no sono. Cogita tomar outro Adderall, mas aí não conseguiria
dormir quando chegasse em casa.
O outro plano de carreira que as pessoas têm naquela livraria é
trabalhar lá por seis meses ou um ano e depois sair para um cargo de
iniciante na HarperCollins, mas sempre ficou claro que essa pessoa
não era Maria. Ela está pensando nisso, rearrumando livros num
carrinho e sem olhar para ninguém, quando uma peça se encaixa no
lugar. Ela pensa: todo mundo de quem eu gosto acaba indo embora
desse emprego de merda, por que é que eu sempre fico? E pensa: sou
o tipo de pessoa que também tem autoestima demais para ficar nesse
emprego, só que eu acho que sou toda errada.
Quer dizer: eu sou trans. Não no sentido tipo, “eu não deveria ter
transicionado”. Mais no sentido de tá, eu sou trans desde que era um
bebezinho minúsculo. Seja por causa de alguma coisa no meu cérebro
antes de eu nascer, como as pessoas às vezes argumentam, seja por
causa de algum aspecto do meu desenvolvimento depois que nasci,
como outras pessoas às vezes argumentam, ou por alguém ter abusado
sexualmente de mim e aí eu ter reprimido isso e aí essa repressão ter
se transformado em transexualidade, como algumas outras pessoas
poderão argumentar, que se foda. Vai ver é um gene, vai ver vão
descobrir que Freud não era um viciado em cocaína que gostava mais
de jogos de lógica do que de seres humanos, vai ver minha mãe era
opressiva e meu pai, distante. Pouco importa, seja como for, eu sou
trans. Sou trans desde pequena. Tem essa coisa imbecil de as
mulheres trans sentirem que precisam todas provar que são
totalmente trans e que não têm nenhuma dúvida de que são
Realmente, Verdadeiramente Trans. E isso acontece porque
precisamos provar que somos trans para psicólogos e médicos; cabe
inteiramente a você provar que é Realmente Trans para poder
conseguir qualquer tipo de tratamento. Ou seja, hormônios. Isso é
uma idiotice, e precisamos vencer vários obstáculos, precisamos ticar
muitas caixinhas: em toda a minha vida eu só senti atração por
homens, nunca tive fetiche em roupas de mulher nem fiz nada sequer
remotamente transgressivo do ponto de vista sexual, nunca expressei
minha sexualidade com as partes com as quais nasci. Você
praticamente precisa provar que é totalmente normal e hétero e nem
um pouco queer, de tal modo que, se deixarem você transicionar, vai
ser uma mulher hétero normal que não faz ninguém surtar, e assim
muitas vezes nós, enquanto indivíduos, internalizamos essas coisas, e
aí nós, enquanto comunidade, muitas vezes as reforçamos. E tudo isso
é muito relevante porque você supostamente devia saber que era trans
desde que era um bebezinho minúsculo.
Só que Maria não sabia.
Ela se sentia esquisita quando era pequena, mas pensava que todas
as outras pessoas também se sentiam assim. Só foi sacar o tipo de
esquisitice quando tinha tipo uns vinte anos. Sabia que tinha alguma
coisa fora do lugar, que ela era distante de tudo. Sabia que Aquele
Tipo de Gente existia em algum lugar lá fora, mas ali só parecia existir
pessoas normais. É isso o que todo mundo pensa. Aos vinte anos ela
se tocou que se sentia mal daquele jeito não por ser trans, mas porque
ser trans carregava tamanho estigma; se você pudesse abandonar a
civilização durante um ano, tipo ir morar num shopping center
abandonado no deserto e tomar injeções de estrogênio, exercitar a
voz, reaprender do zero a se vestir e meditar oito horas por dia sobre
socialização de gênero, e então ganhar como recompensa uma cirurgia
de redesignação, fazer a transição seria bem fácil.
Ela pensa na cirurgia de redesignação, imagina se outras mulheres
trans que estão fazendo ou já fizeram a transição ou o que seja há tanto
tempo quanto ela ainda pensam nisso, ou se a questão só surge nas
raras ocasiões em que ela tira a calça, de forma que não consegue
ignorar, e então Kieran aparece todo saltitante a tipo quinze
centímetros da sua cara.
Jesus, Kieran, diz ela.
Perdida em pensamentos? pergunta ele.
Acho que sim.
Quer tomar uma cerveja? Precisamos conversar.
Não, diz Maria. Vou pra casa.
Que péssimo, diz ele.
Que péssimo, repete ela.
Tá, mas eu quero mesmo conversar com você logo, diz ele.
Tá, diz ela.
Então o turno termina e ela pode ir para casa.
11

O que ela deveria fazer é comprar uns legumes, ir para casa, fazer uma
comida e passar o resto da noite mastigando, com um caderno na mão
ou em frente ao computador. Relaxar, mas também, em vez de ver
algum filme ou sair para alguma aventura romântica e solitária, ficar
em casa, se centrar — sapatão — e entender exatamente o que ela
precisa de Steph, e onde ambas estão em relação uma à outra. E não
tomar uma garrafa de vinho.
Mas em pouco tempo essa ideia já caiu por terra. Uma garrafa de
vinho ajuda você a superar as próprias inibições mentais para entender
como realmente está se sentindo. O vinho reduz suas defesas
automáticas. Tem um Trader Joe's no caminho do trabalho para casa,
algo totalmente esquisito em Nova York, e lá provavelmente vendem
garrafas de vinho baratas e não intragáveis, mas para quem
desenvolveu um sistema moral punk rock arbitrário sobre cadeias de
lojas aos dezesseis anos de idade, essa é uma decisão difícil de tomar.
Ela compra uma garrafa na lojinha de esquina do próprio quarteirão. A
lojinha de esquina é reconfortante por ser empoeirada e ter um clima
nova-iorquino antigo, e também porque quando você compra na
lojinha da esquina não está pondo dinheiro no bolso da bermuda
havaiana do Trader Joe's. Orgulhosa de si mesma, ela carrega a
bicicleta escada acima, prende a tranca em frente à sua porta, entra,
serve uma taça de vinho e liga o computador.
Aí toma outra taça de vinho. Aí dorme.
Acorda e olha para o relógio. São dez e meia da noite e ela ainda
está exausta. Ocorre-lhe então, meio grogue de sono e sem enxergar
direito, que ela na verdade talvez consiga dormir aquela noite inteira;
não lhe ocorre acordar a si mesma com um tapa, pôr uma música para
tocar e dar início ao trabalho de resolver a própria vida. Ela se sente
tão grata com a possibilidade de ter um verdadeiro sono com ciclo
MRO que rola para o outro lado, para evitar que qualquer luz atravesse
suas pálpebras.
12

Acorda por volta das quatro e meia e se sente descansada. Será que as
outras pessoas se sentem assim o tempo inteiro? Que viagem. Seus
pensamentos estão totalmente conscientes, e por um segundo ela
cogita se servir uma taça de vinho de café da manhã, mas depois
pensa: não, assim está perfeito! Ainda tenho quatro horas antes de
precisar chegar no trabalho, ou seja, posso fazer a barba, me maquiar,
depois ir para o Kellogg's e passar duas horas e meia escrevendo. E
ainda por cima o sol está nascendo.
E é o que ela faz. Barbear-se às cinco da manhã significa que ela
estará visivelmente barbada tipo às três, o que vai ser uma droga para
as últimas duas horas de trabalho, mas pelo visto ela só fica
visivelmente barbada para si mesma. Ninguém nunca parece reparar.
Mas ninguém realmente chega a quinze centímetros do seu rosto e
fica procurando algum pelo, e muitas garotas têm pelos no rosto, e a
base meio que esconde um pouco a barba, e o gênero é totalmente,
cem por cento performático, certo? Que se dane! Tudo o que você
precisa fazer é performar uma Dama, personificar isso por completo, e
aí ninguém vai se importar com nada.
Na real, ela está ficando um pouco acelerada. Vai ficar cansada mais
cedo, mas não tem problema nenhum porque aí quem sabe ela pode
entrar numa rotina de sono normal, na qual toda noite às onze horas
ela esteja exausta demais para se mexer e acorde às sete totalmente
renovada todo dia de manhã. Às sete não, às cinco! E resolva a própria
vida no Kellogg's! Todo dia de manhã, para sempre!
Aí ela fica cansada e entediada de tanta animação. Por excesso de
zelo, põe brilho demais ao redor dos olhos. As outras pessoas
costumam mesmo se sentir assim?
13

O Kellogg's é um restaurante xexelento no meio de Williamsburg.


Williamsburg é um bairrozinho esquisito no Brooklyn, bem ao lado de
Manhattan, onde milhares de artistas e queers passaram a morar uns
vinte anos atrás, quando Manhattan começou a encarecer demais,
expulsando famílias judias hassídicas inteiras, o que é um horror,
principalmente porque agora o bairro está tomado por gente que
parece fazer parte de bandas experimentais de disco punk porque
realmente fazem parte de bandas experimentais de disco punk. É bem
sinistro.
O Kellogg's na verdade antes era um restaurante xexelento bem no
meio disso tudo, mas o lugar passou por uma reforma um tempinho
atrás e agora estava bem menos xexelento, embora os anéis de cebola
ainda fossem gordurosos, o café ainda fosse queimado e todo mundo
que trabalha lá ainda parecesse odiar os clientes. Em sua busca banal
de uma vida inteira por autenticidade, o Kellogg's ainda tem seu lugar
de destaque. O céu está apenas começando a clarear quando Maria
prende a corrente da bicicleta do lado de fora do restaurante.
Os bares em Nova York fecham às quatro da manhã. O que significa
que o Barcade, que fica do outro lado da rua, um pouco depois do
Kellogg's, jogou o último bando de gente bêbada na rua cerca de uma
hora atrás e, uma vez bêbadas, essas pessoas sairam em busca de
coisas gordurosas. Então estão todas dentro do Kellogg's às cinco e
quinze da manhã de uma terça. Parecem trabalhar com design gráfico
ou algo assim? Adeptas do trabalho em casa e com cortes de cabelo
caros imitando cortes caseiros, e bêbadas.
Essas são situações nas quais, se você é trans, vai ser lida como
trans e vai ficar um climão. Faz tempo que isso não acontece com
Maria, mas costumava acontecer, e como esse tipo de experiência
deixa marcas ela torce para a mesinha de canto embaixo da árvore de
mentira estar vazia, para ela poder se esconder ali com a cara
enterrada no caderno e ser ignorada pelas pessoas bêbadas.
Ela entra, e o lugar está lotado de penteados e jaquetas vintage. E
daí, que se fodam. Seu verniz de monstruosidade hostil vem à tona, e
ela atravessa o salão pisando firme até a mesa do fundo, que está vazia,
como se estivesse atravessando um rio, com a cabeça baixa, sem
motivo nenhum para parar. Ninguém repara nela. Que engraçado.
Ninguém mais repara nela. Mas é que, quando reparavam, as pessoas
vocalizavam isso de tal maneira que até hoje ela se preocupa. Uma
merda. Que se dane.
É impossível não pensar no que as outras pessoas veem quando
olham para você. Um veado andrógino? Na real, esse foi um look que
ela tentou assim que começou a transição, um look que não perturba
muito a visão de mundo de gente desconhecida e que em teoria faz as
pessoas ignorarem você. Mas não: dá para ver que Maria tem peito, dá
para ver pelo decote que ela está dividindo com o mundo inteiro que
seus peitos são de verdade. Ela usa uns tops bem pequenos. Vai ver
aquelas pessoas simplesmente sabem o que é uma pessoa transexual e
respeitam isso?
Ah, tá. Com certeza. Claro.
Na experiência dela, se as pessoas olham para você e percebem que
você é trans, elas ficam bem ansiosas para dizer isso na sua cara,
independentemente da sua idade ou classe social. Meninos
adolescentes gostam de falar coisas em voz alta para os amigos
poderem sacar também, mulheres mais velhas gostam de dar uma
piscadela ou um sorrisinho dissimulado, homens héteros que sabem
que são malas fazem cara de bravos, homens héteros que se acham
legais dão um sorriso amarelo, mulheres héteros se comunicam
discretamente pra dar a entender que sacaram tudo, meninos gays
querem ser sua melhor amiga (com exceção dos militantes da causa
gay, que acham que você está tentando roubar os direitos deles), e tem
as sapatonas.
As sapatonas são difíceis de decifrar. Expectativa demais e estresse
demais.
Então, enquanto aquelas pessoas deixam de apresentar todas essas
reações a ela, ao fato de ela existir, Maria tenta beber o máximo de
café possível. E tenta resolver a situação do seu namoro. Ela pensa:
Caramba, será que daria por favor para eu ter vinte minutos sem
pensar sobre ser trans?
Então percebe que já está em sua mesa faz dez minutos, ninguém
tomou conhecimento de sua presença, e está bem na metade dos vinte
minutos nos quais não precisa pensar sobre ser trans. Faz contato
visual com um garçom, ele traz um cardápio, ela pede ovos, batatas
fritas, torrada e café. Lá onde foi criada essa comida costumava custar
dois dólares e cinco centavos; ali custa oito e noventa e cinco.
Ela pega o caderno. Mesmo assim, não consegue desligar seu radar
de hétero. Por algum motivo, está convencida de que o grupo de
designers vai ser babaca com ela. Mas quando o garçom traz o café, ela
toma um gole, sente os ombros e as costas se tensionarem e depois
relaxarem, relaxarem mesmo, e esquece aquelas pessoas. Toma outro
gole e abre o caderno, um Moleskine daqueles chiques nos quais
Hemingway costumava escrever, apesar de Hemingway e seu tipão
forte, calado e patriarcal poderem ir chupar uma rola.
Na real ela não escreve, nem faz nenhum diagrama, uma lista nem
nada do tipo. Fica só rabiscando. Desde o ensino fundamental, ela
sempre conseguiu prestar muito mais atenção com as mãos ocupadas,
fosse num professor, num filme ou nos próprios pensamentos. Então
desenha guitarras, meninas com franjas pretas pesadonas, porquinhos,
saquinhos de papel com um pó dentro, seringas, um calendário.
Seringas e um calendário porque ela está atrasada para a injeção de
estrogênio. Atrasada tipo uma semana.
Puta que pariu, é isso. Maria precisa tomar uma injeção de
estrogênio a cada quinze dias; tem gente que toma um comprimido ou
dois por dia, mas, como ela nunca se lembra, injeta direto na coxa. E,
cara, se você não mantém seus níveis de estrogênio regulados, você
vira uma zona imprestável e toda fodida. Tipo nem sequer lhe ocorreu
que ela estava saindo para aventuras românticas tarde da noite e
bebendo até cair porque estava precisando da injeção. É bom se
lembrar disso. Priorizar a injeção hoje à noite, pensa. Houve um
tempo em que ela estava tão focada em ser trans e tomar as injeções e
tudo o mais que andava para todo lado com sua caixinha de papelão
cheia de agulhas, frascos, lencinhos umedecidos com álcool e tal. Ela
simplesmente colocava as seringas velhas em cima da mesa no Veselka
enquanto todo mundo comia só para chocar. Mas não fazia muito isso
agora.
Isso também explica por que ela tem se sentido tão mal em relação
a ser trans. Seu corpo está dizendo: ei, pessoa, eu sou um corpo trans,
você tem que fazer as coisas que se faz para cuidar de um corpo trans.
Em geral, ela não fica totalmente confortável com o fato de ser trans,
mas costuma se sentir mais tranquila do que no momento.
Então tá. Visto. Anotado.
Ela ainda tem mais duas horas pra pensar em Steph, em si mesma,
no Brooklyn e em Kieran, mas o homenzinho curvado que serve as
mesas às seis da manhã traz sua comida, e ela deixa de lado o caderno
e enche tudo de ketchup.
14

Quando Maria a conheceu, Steph era uma femme punk baixinha de


cabelos descoloridos, pintados de várias cores e espetados, que usava
uma tonelada de maquiagem nos olhos. Foi por causa da sua filosofia
de quanto mais maquiagem nos olhos melhor que Maria desenvolveu
autoconfiança suficiente para passar o máximo de maquiagem possível
no rosto todo dia de manhã. Mas Steph era também uma pessoa
inteligente, raivosa, absolutamente desprovida de senso de humor, de
um jeito que Maria na época lia como supersapatão. Maria era aquela
menina trans cujos amigos eram todos caras héteros que tinha
conhecido na época em que dizia a todo mundo que ela também era
hétero, ou seja, no seu círculo social ela era uma espécie de anomalia
que as outras pessoas toleravam sem realmente entender nem
respeitar. Já tinha saído do armário e já tomava hormônios havia algum
tempo, mas, quando conheceu Steph, Maria ainda estava no meio
daquela etapa da transição em que a pessoa é importunada por
desconhecidos.
Foi numa festa de Natal que alguém da livraria estava dando, mas
uma festa interessante, porque em geral as festas da livraria
praticamente só tinham gente hétero. Tipo as pessoas queer da livraria
iam à festa para encher a cara com as pessoas hétero porque na
neoboemia todo mundo fica de boa com gente queer. Mas as festas em
geral eram na casa de pessoas hétero, e as amizades heterossexuais
dessas pessoas que não eram da livraria em geral estavam lá. Na noite
em que Maria conheceu Steph foi diferente: uma menina queer do
departamento de arte, que ia sair em março para trabalhar na Random
House, estava dando uma festa de Natal no seu imenso lo , um
coletivo de artistas sapatonas, bem depois do fim de Bushwick. Isso
queria dizer gente queer que Maria ainda não conhecia, decorações
natalinas kitsch, e uma vibe totalmente diferente daquela com a qual
ela estava acostumada. Uma vibe que ela sabia que existia, mas sem
saber como acessá-la. Como um suposto cara supostamente hétero,
ela provavelmente já tinha convivido com mais sapatões do que um
cara hétero padrão, mas mesmo assim não era o tipo de ambiente no
qual se sentisse bem-vinda ou ao qual sentisse ter acesso, ou mesmo
ao qual sentisse realmente pertencer. Na real, era meio aterrorizante
não saber quais seriam as regras implícitas de um espaço como aquele,
ou se alguma das pessoas queers da festa seria o tipo que tinha
ressalvas esquisitas contra mulheres trans.
Então Maria passou a noite inteira com a sensação de estar pisando
em ovos, querendo passar boa impressão e não dizer a coisa errada
para ninguém, isso sem saber ao certo nem sequer o que seria a coisa
errada, então ela ficou meio parada encostada na parede com uma
garrafa de vinho na mão, tentando dar a impressão de não estar se
esforçando para parecer cool. Um lance bem difícil de fazer. Ela não
estava indo muito bem. Pessoas surgiam e ficavam alguns minutos ao
seu lado, ela dava uma volta ocasional pela festa, mas, cara, como era
difícil: naquele ponto da transição, ser trans se caracterizava por um
forte sentimento de inferioridade em relação a quase todo mundo.
Olha aquelas meninas ali, elas sabem se vestir, sabem que postura
adotar, sabem quando falar e quando ficar caladas. Maria sentia que
não sabia. Tinha internalizado uma ideia de que mulheres trans
sempre ocupam espaço demais, então se esforçava muito para sumir.
Ela praticamente havia parado de fumar, porque não é bom fumar
quando se está tomando estrogênio, mas em situações de
constrangimento extremo como aquela, com tanta autoinvalidação e
tanta depressão/ansiedade, abre-se uma exceção. Subiu na laje, onde
todo mundo tinha passado a noite inteira fumando. Estava um gelo.
Tipo um gelo mesmo, o tipo de frio em que dava para sentir os
degraus da escada através das luvas, mas era gostoso. Seu rosto estava
todo corado por causa do vinho.
Acendeu um cigarro e olhou em volta. A cidade se estendia em
todas as direções, reiterando seu clássico autorretrato mental
turbulento, trágico e melodramático. A autopiedade como alívio da
ansiedade! Santa classe, Batman. Então Steph subiu a escada usando
um gorro de crochê imenso e ridículo, e foi total tipo um primeiro
encontro de filme do Hugh Grant, daqueles em que a Keira Knightley
no começo não gosta dele. Só que na sua lembrança Maria não era
interpretada por Hugh Grant, mas pela Milla Jovovich ou alguém
desse tipo.
Mas Milla é meio baixinha, né? Talvez Maria seja Keira Knightley e
Steph seja interpretada pela Milla Jovovich.
Steph não quis nem falar com Maria. Estava bêbada e não tinha
isqueiro, mas Maria não quis acender seu cigarro porque achou que
isso seria, tipo, patriarcal por algum motivo. Tipo isso era o que um
cara faria, e as mulheres não fazem isso umas para as outras. Vai saber,
porra, mas na hora fez sentido. Maria passou o isqueiro para Steph, de
modo que Steph teve de tirar a luva sem dedos e a outra luva que
estava usando por baixo para poder acender seu cigarro. Até hoje
Steph cobra isso de Maria.
Não! Steph não é Milla Jovovich; ela parece a Ally Sheedy em O
clube dos cinco, quando Emilio Estevez pergunta: Qual é a sua bebida, e
ela responde: Vodca, e ele pergunta: Quanto?, e ela responde: Muita.
Maria ficou totalmente na sua fumando o tal cigarro, ao mesmo tempo
flertando, tentando chocar e sendo um pouco má.
Depois de acabar o cigarro, Maria tornou a descer para o
apartamento e deixou Steph sozinha na laje terminando de fumar, e aí
as duas não se falaram mais pelo resto da noite. Bem inauspicioso.
Além do mais, se Steph era Ally Sheedy, isso fazia Maria ser a única
outra personagem feminina do Clube dos cinco: Molly Ringwald, a
princesinha mimada. O quanto isso é verdade chega a ser meio
desconfortável para Maria.
15

Em um dos livros de Michelle Tea (The Chelsea Whistle, talvez?), ela


escreve algo sobre como o café é a melhor coisa do mundo: deixa a
pessoa com os olhos esbugalhados, faz ela querer escrever, produzir e
criar, e parece metanfetamina a não ser por sei lá o quê, mas quem é
que se lembra das citações inteiras? Maria pensa: vou tatuar no braço
para conseguir lembrar. A questão é que Michelle Tea acertou na
mosca, como acertou a maioria das outras coisas: Maria está na
terceira xícara de café e está vendo algum Progresso agora.
Ela precisa ficar solteira. Isso está bem óbvio, né? Se está sentindo
emoções batidas, românticas e previsíveis de adolescente enquanto
anda de bicicleta pela cidade em vez de estar em casa com Steph, o
motivo pelo qual isso lhe agrada tanto é por ela estar curtindo um
tiquinho que seja de liberdade. O motivo de estar apaixonada pela
bicicleta não é o vento na cara que deixa seus lábios rachados, nem o
fato de ela conseguir encarar sem dificuldade o desafio de atravessar
pontes e andar no meio dos carros usando uma saia comprida. Ela é
apaixonada pela bicicleta porque, quando está pedalando, não está
vinculada a ninguém.
Além do mais, ela estava namorando quando saiu do armário como
trans. O namoro terminou e depois disso ela namorou outra pessoa, e
aí a relação havia terminado fazia uma semana quando ela começou a
ficar com Steph. Maria nunca foi uma mulher solteira, só foi mulher
no contexto de uma relação. Essas relações vêm funcionando como
amortecedores, redes de segurança que lhe permitem não precisar
entender quem é, ou o que precisa da vida. Nada.
E Steph nem está mais tão animada assim com o namoro. Elas
ainda trepam, o que é legal, mas fora isso fazem o quê? Gastam um
dinheiro que não têm com brunches para poder sentir que são um
casal; dormem na mesma cama na maioria das noites. Esses são
literalmente os únicos itens em que Maria consegue pensar para
anotar no diário.
Tudo isso dá medo, tristeza e um alívio imenso.
De repente ela não se sente mais toda exultante por causa do café;
sente-se meio cansada e pode ver com clareza que, ei, sua idiota, você
acordou às cinco da manhã, vai passar o dia inteiro cansada. Os
designers gráficos foram embora. Ela não quer mais ficar no Kellogg's.
E só precisa estar no trabalho dali a uma hora e meia.
Tem um café perto da livraria. Não é um Starbucks, mas e daí se
fosse. Se importar com o fato de a rede Starbucks monopolizar a
cultura do café é para quem não tem problemas mais urgentes.
Bom. É meio deprimente tentar fazer hora no Starbucks por tanto
tempo. Difícil não escutar as pessoas berrando no celular, não ficar
deprimida toda vez que alguém paga seis dólares por uma bebida.
Maria arruma suas coisas, paga a conta e atravessa a ponte
pedalando até Manhattan.
Depois de o sol nascer, o céu do início da manhã dá mais uma
sensação de pele arrepiada do que de dia raiando, e ela se anima
quando prende a bicicleta e entra no pequeno café independente
perto da livraria. Só que o lugar não é um pequeno café: é um lance
imenso e cheio de terminais de internet, suportes de revista e, tipo,
coisas de hortifruti. Hortifruti! Sabe-se lá como funciona a
taumaturgia da locação de espaços comerciais em Manhattan, mas
parece improvável que um café, computadores e hortifruti tenham
alguma chance de pagar o aluguel daquele lugar cavernoso.
Mas quando você meio que sente não saber nada sobre nada, que
diferença isso faz? Que se dane. Que zen. É isto a iluminação: uma
chatice.
Resolve tomar café e blogar. Por que não torrar dez dólares em uma
hora de acesso à internet que você poderia estar roubando de um
vizinho em casa agora mesmo? Entender a própria vida é mais
importante do que o dinheiro do aluguel.
Ela compra um café pequeno e entrega a carteira de motorista à
atendente para conseguir um computador. É estranho, mas ninguém
nunca, nem uma vez sequer encheu o saco de Maria por causa do
gênero na sua carteira, não durante os cinco anos em que ela vem se
apresentando como F mas ainda continua M aos olhos da lei. Retificar
a documentação custa caro, e além disso você tem que ir à prefeitura e
dizer tipo: eu sou trans, por favor, anotem isso num registro qualquer,
o que vai ficando cada vez mais difícil a cada minuto em que as
pessoas não leem você como trans.
Então é isso.
Ela é direcionada para o computador número 27. O monitor fica de
frente para umas mesas, mas bisbilhotar o que alguém está escrevendo
na internet só é interessante por um segundo, principalmente se
houver grandes blocos de texto que você precise ler. Ninguém gosta
de ler nada, mesmo que seja alguém escrevendo tipo: ai ai, quando eu
me olho no espelho pelada, eu vejo peitos e um pau e isso me deixa
tão, tão triste. O que é engraçado. Seria de pensar que gente
desconhecida pudesse se interessar por esse tipo de coisa.
Maria, é claro, jamais usaria a palavra pau para escrever sobre o
próprio corpo. É bem menos traumático não usar palavra nenhuma.
Ou usar um termo neutro como partes.
Não é por nada, mas Maria é meio que popular e conhecida na
internet, só que, como todo mundo também é, isso não é muito
interessante. Ela bloga desde que era uma bebezinha, tipo dezoito ou
dezenove anos, quando ficar online estava apenas começando a ser
naturalizado como algo com que Rupert Murdoch podia ganhar
dinheiro; ela entendeu que era trans blogando. Estranho.
A internet na época era um lugar grande e empolgante, onde você
podia abrir o coração anonimamente sobre gênero, desconforto e
heteronormatividade, sobre a estranheza do privilégio masculino e
várias outras coisas, só que, como na época ela não tinha as palavras
para dizer essas coisas, o que escrevia era: está tudo uma merda e eu
estou muito triste. Várias e várias e várias vezes, com pequenas
variações e palavrões ocasionais. Não tinha como ser muito
interessante de ler, mas escrever sobre aquilo acabou fazendo com que
ela começasse a prestar atenção nos padrões e tal, e a apresentou às
primeiras pessoas trans da vida real que ela conheceu, mesmo que
tenha sido pela internet e ela não soubesse que aparência elas tinham.
Ela passava a noite em claro, noites e mais noites, despejando seus
sentimentos pela internet inteira até entender que era trans,
transicionar, e acabar tendo os mesmos problemas de todas as outras
pessoas fodidas e emocionalmente travadas de Nova York. Maria não
posta tanto quanto antes, mas ainda tem o blog. As pessoas leem.
Jovens que estão sacando que são trans a admiram. É bem bacana, mas
por haver tão poucos recursos para mulheres trans que não sejam
voltados para trans ricas ou chatas, às vezes ser a irmã mais velha é
exaustivo.
O computador é ligado, e ela está logando quando um homem de
sobretudo azul-marinho estilo jaquetão se senta diante do computador
ao seu lado. Ele está com a barba por fazer.
Olá, diz ele.
Ai, que droga, pensa ela.
Homens héteros são muito estranhos. Muito estranhos. Tipo, já
deu para notar que ele quer sair com ela. Ele está sentado ao seu lado e
sorrindo como se soubesse alguma coisa, ou como se estivesse
intencionalmente tentando não parecer intimidador. Que ótimo.
Oi, diz ela.
Está fazendo o que hoje, pergunta ele com um sotaque russo ou
algo assim.
Vou ler meu e-mail, diz ela, querendo ter coragem de dizer: Sai
daqui, eu não quero falar com você. Mas isso poderia atrair a atenção
para ela de um jeito esquisito por ser direto demais, e se ela atrair uma
atenção indesejada o cara talvez se toque de que ela é trans e aí haveria
uma cena, mas provavelmente uma cena pequena porque pessoas cuja
primeira língua não é o inglês tendem a ter mais com que se
preocupar e também a não querer atrair qualquer tipo atenção
complicada. Considerando que ninguém mais agora a lê como trans,
ela pensa: o que Courtney Love faria agora? Como Courtney Love
afasta a atenção de homens desconhecidos que lhe desagradam?
Então: não, melhor ainda, o que Steph faria?
Steph faria o seguinte.
Estou postando um anúncio no Craigslist procurando pessoas pra
sair que também tenham clamídia, diz Maria.
Você é engraçada, diz ele.
Pois é, diz ela, dando as costas para o homem e voltando ao
computador. Dá certo: ele não continua tentando conversar com ela.
E que bom, porque está cedo demais e ela está cansada demais para
lidar com um cara que acha que revelar uma infecção por clamídia
equivale a uma paquera.
Mesmo assim se sente mal por um segundo. Ela nunca teve, mas
deve ser horrível ter clamídia. E se alguma garota no café tivesse
clamídia e tivesse escutado? Maria faz um lembrete mental para não
fazer piadas com clamídia e para nunca mais repelir abordagens
heteronormativas com manobras normativas relacionadas à saúde
sexual. Sério.
Ela lê uns blogs e escreve no seu. Conta à internet como foi dormir
cedo, como acordou cedo, fala dos cortes de cabelo no restaurante e
de como está tentando entender a própria vida. Costumava postar
quase todos os dias, mas agora tem sorte quando consegue atualizar o
blog uma vez por semana. Embora provavelmente seja melhor não
ficar o tempo inteiro olhando para um computador.
Ela escreve.

Ai, cara. Será que dá pra gente falar sobre estereótipos e sobre ficar
na frente de um computador? Então tá. Imagino que vocês
conheçam os estereótipos relacionados às mulheres trans: que
somos todas profissionais do sexo, que somos todas uns velhos
cabeludos e barrigudos, que somos todas damas da noite de voz
grave, que somos todas drag queens, que somos todas reprimidas,
que somos todas umas machonas cheias de tesão com picas de
trinta centímetros. Às vezes estereótipos são contraditórios. Esses
que eu citei são estranhos. Vamos falar sobre aqueles que deveriam
ser os verdadeiros estereótipos relacionados às mulheres
transexuais? Aqueles que se aproximam um pouco demais da
verdade para serem engraçados.
1. Nós não somos maníacas sexuais, somos maníacas pela
internet. Essa é fácil de entender. Quando você sai do armário
como uma pessoa trans, é difícil contar para a sua mulher, ou para
os seus brothers héteros, ou para o seu pai, ou sei lá, para colegas
da livraria. Seja pelo motivo que for, porém, é bem fácil contar para
alguém do Alasca ou da Califórnia ou, quem sabe, da Inglaterra.
Por mais estranho que pareça, os fóruns de internet, o LiveJournal
e tudo o mais parecem ser lugares seguros para se falar sobre ser
trans — uma forma de existir sem esse corpo problemático que
você é obrigada a carregar quando está o ine no espaço da carne,
como se costumava dizer nos anos 1980 nos romances de William
Gibson. O que é o máximo.
Mas então existe toda uma comunidade na internet, o que faz
sentido. E talvez seja o que a internet tem de melhor, a forma como
se pode acessar informações necessárias com segurança e
anonimato, só que, como qualquer outra comunidade, ela se
tornou uma coisa fechada, com assuntos sobre os quais é tudo bem
falar e outros sobre os quais não é tudo bem falar, opiniões que se
pode ter e outras que não, e com uma santa padroeira própria.
O nome dela é Julia Serano e, como muitas figuras
representativas, ela é superinteligente, doce, precisa e quase
totalmente desprovida de problemas, mas as pessoas que são suas
discípulas se tornam detestáveis e começam a considerar seus
escritos como uma doutrina.
Isso sem falar que, se você for um bebê pandinha em
comunidades na internet, perguntando, tipo, como posso
conseguir hormônios, as mulheres trans são superlegais: elas vão
dizer como. Mas quando você faz uma pergunta mais complexa,
tipo, como conciliar uma identidade de gênero queer com uma
identidade feminina quando parece que reconhecer as limitações
da identidade feminina e explodi-las não faz com que você não seja
mais mulher, só empoderada, e, portanto, será que a identidade de
gênero queer não é uma identidade privilegiada que, em geral, está
disponível apenas para pessoas definidas como mulheres
universitárias e com cortes de cabelo radicais, todo mundo fica
magoadinho e você acaba em maus lençóis.
Enfim, sei lá. Estereótipo: apaixonada pela internet.
2. Existe um estereótipo de que as mulheres trans passam a vida
inteira tendo todo um privilégio masculino, e aí transicionam e
passam a ocupar espaço demais e a ser excessivamente assertivas e,
sabe, coisas assim. E é verdade: às vezes as pessoas transicionam e
são babacas; o outro lado da moeda é que existe uma porção de
mulheres cis que também são babacas, e essas mulheres trans
apenas passam a integrar a população geral de mulheres babacas.
O que é bem mais comum, um milhão de vezes mais comum, e
sobre o que ninguém nunca parece querer falar, é a questão de as
mulheres trans terem privilégios masculinos durante a vida inteira
antes da transição, mas não saberem o que fazer com eles, de modo
que seu único efeito é meio que limitá-las socialmente.
Tipo, tá. Vocês conhecem algum homem hétero identificado
como pertencente ao gênero masculino que tipo entenda isso? Eles
meio que tentam ser feministas, mas reconhecem que é
complicado, quiçá impossível um homem ser feminista, então
respeitam as mulheres, dão espaço, recuam, o que seja. O que seria
maravilhoso, não fosse o fato de que isso os leva a nunca fazer nada.
Tipo eles só recuam e pronto, e dizem tem uns livros que precisam
ser postos na prateleira, as janelas estão sujas, tem umas caixas
precisando ser levadas para fora e algum adolescente vomitou em
algum lugar. Você começa, digamos, a levar as caixas para fora, e
uma vez isso feito começa a limpar o vômito, e eles simplesmente
ficam ali parados e você pensa: Que porra é essa? Será que dá pra
levar essas caixas ou limpar uma janela? E eles: Ah, tá, claro, de um
jeito muito esclarecido que abre espaço para você fazer a porra
toda, só que eles precisam que você mostre como se limpa uma
janela porque eles não querem limpar errado?
Esse tipo de cara. Eu reconheço: é mais complicado do que isso,
sim, eu não deveria ser cruel. É bem difícil para os caras héteros
quando eles não querem espalhar seu privilégio masculino. Mas
sério? Você não sabe arrumar uma cama? Não sabe refogar a porra
da cebola e do alho antes de juntar todos os outros legumes?
Enfim, sei lá. Eu tenho amigos homens. Eu fui um desses
homens! Aquele carinha calado que fica parado ali tentando ser
útil, mas que na verdade está só ocupando espaço inutilmente.
Enfim, é isso o que acontece quando você tenta não usar seu
privilégio masculino, mas não tem outras alternativas. Você se
retrai. O estereótipo ao qual estou querendo chegar é o seguinte: as
mulheres trans tentam se afastar do seu privilégio masculino antes
de fazer a transição, tentam sumir dentro de si mesmas, e depois
nunca mais conseguem realmente sair outra vez e se tornar
mulheres assertivas, presentes e feministas.
E é por isso que todo mundo nos acha esquisitas.
Afirmação pesada, né? É totalmente injusta e errada, e por esse
motivo é um estereótipo que eu estou inventando, mas existe um
quê de verdade aí. Eu não acho que já tenha conhecido uma mulher
trans em processo de transição que se sentisse à vontade tipo,
ocupando qualquer porcaria de espaço, entende? Precisamos olhar
as mulheres à nossa volta com atenção, se tivermos a sorte de estar
perto de alguma mulher, para entender que elas ocupam um espaço
enorme, todo o espaço que quiserem, o tempo todo — só que elas
tendem a fazer isso de um jeito diferente dos homens.
Embora nem sempre, e eu certamente não vou detalhar os
aspectos que nos diferenciam. E existem homens que ocupam
espaço de um jeito que é lido como feminino e gênero-normativo,
e mulheres que ocupam espaço de jeitos que são lidos como
masculinos e gênero-normativos. Dã, sei lá. Estou só tentando
dizer por que é fodido existir um estereótipo de que as mulheres
trans são todas masculinas.
3. Quando somos recusadas no programa transgênero do Johns
Hopkins e não somos autorizadas a fazer cirurgia de redesignação,
todas nós cavamos um poço dentro das nossas casas de subúrbio
imundas, fazemos piercings nos mamilos, deixamos mulheres cis
dentro desse poço por semanas a fio e depois as esfolamos.
Esse é real mesmo. Temos também dezoito tattoos e cachorros
de madame peludinhos. A comunidade trans declarou oficialmente
uma fatwa a Thomas Harris quando O silêncio dos inocentes foi
lançado, porque teríamos preferido guardar segredo em relação a
essa pequena tendência e ele foi lá e contou para todo mundo. Não
à apropriação cultural.
4. Talvez exista algum outro. Eu não sei. Somos todas boas de
informática, somos todas extremamente tímidas, somos todas
assassinas. Eu aviso se pensar em outros.

Maria precisa estar no trabalho dali a dois minutos, então checa o e-


mail pela última vez, pega de volta seu documento de identidade e vai
para a livraria. Hoje vai chegar na hora.
16

Ela chega no trabalho com o pensamento organizado, mas já está


começando a se sentir cansada. Está animada por ter decidido
terminar com Steph: é como se a sua cabeça tivesse ficado entupida
por tanto tempo que ela nem sequer percebia que estava assim, e
então deu uma tossida bem forte, ou então entrou um pouco de
wasabi no seu nariz, e de repente ela conseguiu escutar. Meio que
quer ligar para Steph agora mesmo, mas é uma ideia ruim.
Está prendendo a corrente da bike quando Kieran inevitavelmente
aparece.
Eu matei o meu pai, diz ele com a voz sem entonação e o olhar
morto que significa que está imitando Kathy Arcker.
Sim Claro Sei lá Tudo bem Claro Sei lá, responde Maria. Ela nem
sente vontade de desconversar.
E aí, pergunta ele.
Vou terminar com a Steph, diz ela antes de perceber que está
dizendo. Ops.
Cara, diz Kieran. Então ele para de se remexer.
Maria não sabe direito o que dizer.
Hm, diz ela.
Cara, a gente estava de sacanagem com você, diz ele. Eu não trepei
com a sua namorada.
Oi?
A Steph estava puta com você, diz ele, porque segundo ela toda vez
que tenta conversar com você… ah, puta que pariu. Ele volta a se
remexer. Cara, você precisa conversar com a sua namorada, não sou
eu que tenho que ter essa conversa com você. Puta merda, terminar
com ela. Liga pra sua namorada.
Mas são nove da manhã. Maria já está acordada há várias horas,
teve umas quatro epifanias e tomou dois cafés da manhã e precisa
entrar no trabalho. Não vai poder ligar para Steph por pelo menos
uma hora, uma hora e meia. Kieran saiu saltitando, e ela ficou
pensando em que porra ia fazer. Ainda vai terminar com Steph? Ela
não resolveu terminar com Steph porque Steph trepou com Kieran.
Percebeu que precisava ficar solteira por motivos totalmente outros.
Mas o sentimento inebriante de alívio que teve duas horas antes
desapareceu. Agora é uma sensação abrasiva. Péssimo.
Ela bate seu ponto e entra. Acena com a cabeça para o gerente
perto da porta. Ela se pega ajudando um velho à procura de um livro
sobre algum tipo de pilotagem de avião, só que ele mal consegue
andar ou falar com clareza suficiente para ela escutar. Ele
provavelmente não deveria pilotar aviões, então é uma sorte não haver
hipótese alguma de a livraria ter esse livro. Mais do que tudo ele com
certeza precisa de alguém com quem conversar, e Maria precisa de
algo com que ocupar a mente, então eles percorrem a livraria inteira,
sobem e descem escadas, bem devagar porque ele anda de bengala, à
procura do tal livro que não está ali. Parece uma peça de Beckett ou
algo assim. Seria ótimo se aquilo fosse um conto de Hans Christian
Andersen e ele um vovô mágico de conto de fadas que bateria no rosto
dela com a bengala no fim da aventura e plim, ela saberia que porra
está rolando com Steph, mas isso não acontece.
Ele aparece a cada dois meses mais ou menos. Maria meio que o
ama, na real, embora ninguém mais na livraria queira ter qualquer
contato com ele. Ele está sempre procurando algum livro do qual
ninguém nunca ouviu falar, que não tem ISBN e não consta nem nos
sites de livros raros na internet. Maria passa quarenta e cinco minutos
fazendo o que ele quer, e ele então lhe dá uma bala italiana esquisita
qualquer, ou por algum motivo um biscotto velho e esfarelado. Os dois
fazem isso desde que ela começou a trabalhar na livraria, o que é
esquisito porque o velho não parece ter reparado que ela transicionou.
Ainda a chama por um nome que ninguém mais no mundo tem
permissão para usar. Ele chega na livraria com seus passos ruidosos,
ela está de vestido decotado e ele grita: sr. Gri ths! Vai saber o que
torna isso encantador em vez de irritante, mas é bem legal.
Então Maria e ele ficam andando pela livraria. É bom ter um padrão
a seguir quando você acaba de descobrir que a sua namorada, que não
é uma pessoa dada a brincadeiras, acabou de inventar o maior caô
sobre ter transado com seu colega metade irritante, metade
maravilhoso.
Depois de o amigo idoso de Maria ir embora, o tempo para e ela
não consegue pensar em nada para fazer com as mãos. Manda uma
mensagem de texto para Steph: Almoço?
Steph responde bem depressa: Total. Burritos?
Claro.
17

Logo depois da faculdade, Maria tentou ser adulta. Caiu de


paraquedas num emprego numa seguradora. Na época ela não se
apresentava nem um pouco como queer. Não teria nem sabido como
fazer isso. Só pintava as unhas às vezes, um cara totalmente normal,
de cabelo desgrenhado e unha rosa. Na real, as pessoas também
perguntavam qual era o problema dela. Por que você faz isso,
perguntavam, e ela então tentava dar a entender que era porque curtia
rock‘n'roll ou algo assim.
Então, quando ela chega no Burritoville, Steph já está lá, com seus
cabelos espetados e sua calça risca de giz. É uma combinação meio
engraçada: de uma hora para a outra ela vira uma lésbica poderosa. Já
faz um tempo que Steph se veste assim, mas só agora Maria deu um
passo atrás e reparou. Steph parece uma desconhecida, como alguém
de outro departamento naquela distante empresa de seguros na
Pensilvânia.
Maria se senta diante dela. O rosto de Steph não revela nada, mas o
fato de nenhuma das duas se mostrar afetuosa certamente o faz. Elas
namoram há anos. Já faz muito tempo que se cumprimentam com
beijos.
Oi, diz Maria.
Oi, responde Steph.
Ninguém diz nada por um minuto, e então Steph diz: Eu não
trepei com o Kieran.
Fiquei sabendo, diz Maria.
Aquele babaca, diz Steph.
Maria diz: Eu nem sabia que você conhecia ele, e tipo, você sabe,
ah eu te conheço, enfim.
Pois é, diz Steph. A gente se conheceu no Myspace e começou a
sair. Você e eu não conversamos, Maria, então eu não tive como te
contar que a gente estava saindo.
Ela aponta o garfo para Maria, mas não de um jeito agressivo.
Seria muito estranho Maria se levantar agora para pedir comida.
Ela pode sentir que está se fechando. Já. Porra, mecanismos de
defesa, só dessa vez seria legal poder estar presente quando alguma
coisa acontece, mas não. É como se Maria estivesse vendo Steph de
longe. De cima. Corpos astrais.
A gente saiu umas vezes, diz Steph. A gente nem se beijou, mas eu
falei de você, e de como é difícil me comunicar com você, chegar
perto de você, entender o que você está sentindo, mas agora o único
jeito que eu tenho de fazer isso é esperar você escrever sobre a gente
naquela sua porcaria de blog.
Steph sempre detestou o blog de Maria.
Maria então se desconecta completamente e sai da conversa. Foi a
palavra blog. Talvez Maria não saiba lidar com críticas, ou talvez,
quando Steph ataca, Maria fique na defensiva, quer dizer, ela se fecha.
Vai saber. Steph está explicando como ela e Kieran ficaram amigos
online, como trocaram algumas mensagens no Myspace, como ela
acabou se abrindo e dizendo que estava se sentindo sufocada no
namoro, que não sabia mais como se comunicar com Maria. Isso tudo
é verdade, Maria está vendo Steph dizer todas essas coisas, mas nada
parece entrar na cabeça dela: é como estar presa num estado
permanente de meta-análise. Maria meio que deseja poder filmar o
que Steph está dizendo para assistir depois, uma frase de cada vez,
pausando toda vez que começar a dissociar.
Steph explica que Kieran achou que ela devia fazer algo radical,
provocar uma reação, obrigar Maria a estar presente e aí conversar
sobre a relação e sobre como, depois que a fase de sedução terminou,
Maria vivia mais tempo com a cara metida num livro do que na boceta
de Steph, mas Maria está pensando: bom, viver num espaço meta-
analítico é um mecanismo adaptativo, não? Quando eu era pequena,
eu internalizava que não era menina, que não podia ser menina. Não é
nem que meus pais tenham martelado a normatividade de gênero em
mim, do jeito que os terapeutas da repressão recomendam que se faça
com crianças trans hoje em dia. É mais tipo, sabe, você aprende na
tevê que um homem de vestido é uma coisa hilária e engraçada, e que
ele continua sendo homem mesmo de vestido e nada pode mudar
isso, e nada pode mudar o fato de ser engraçado. Ou então você tem
um tio que vê você usando pulseirinhas coloridas de elástico aos seis
ou sete anos e diz: Nossa, meu sobrinho usando bijuteria de menina,
num tom quase imperceptivelmente zombeteiro que você internaliza
que significa: Não Legal. Estar presente no próprio corpo significava
sentir coisas como “meu gênero está errado”, “meu corpo é esquisito”
e “minha mente parece estar sendo arremessada no concreto de tanto
que eu preciso dar um jeito nisso”.
Ela está viajando tanto dentro da própria mente que mal percebe
quando Steph pergunta: Você ao menos está aqui agora?
Estou, diz Maria. Mais ou menos. Tem muita coisa acontecendo na
minha cabeça e eu não consigo processar tudo ao mesmo tempo.
Estou só dizendo, Steph suspira, que eu não queria nem fingir que
tinha trepado com o Kieran. Ele estava só falando merda na internet,
ocupando espaço demais e exigindo atenção demais até por e-mail,
dizendo coisas tipo: Diz pra ela que você trepou comigo! Isso vai fazer
ela acordar! Mas aí a gente estava no meio do brunch e os seus olhos
estavam tão distantes, e eu comecei a pensar em como eles sempre
estão tão distantes ultimamente, no quanto sinto a sua falta… em
como mal consigo fazer você voltar nem quando a gente tá trepando…
e eu fiquei com raiva e decidi te provocar. Desculpa ter mentido, mas
realmente não sei o que fazer.
Sua voz falha e seus olhos ficam marejados.
Ela pergunta: Você acha que dá pra salvar alguma coisa?
Não sei, responde Maria, tentando desesperadamente pensar em
mais alguma coisa para dizer. Sua mente parece o quarto vazio daquele
clipe do Metallica. Alguma coisa clica. Seja sincera e pronto.
Eu não sei, ela repete, mas vou te dizer o que eu sinto em relação a
isso. Naquele dia fui de bike para o trabalho pensando nisso. Voltei pra
casa pensando nisso. Não consigo parar de pensar no que a gente vai
fazer — Steph relaxa visivelmente, aliviada com o fato de Maria estar
pensando no assunto —, mas fiquei pensando na minha bike. Você
sabe que eu amo a minha bike. Eu só andei pensando. Não acho que a
minha bike seja só uma coisa que fica parada juntando ferrugem em
frente à livraria, ou então juntando ferrugem na cozinha de casa. A
bike é tipo a única forma que eu conheço de realmente estar em
contato com a minha vida, com o mundo exterior. Parece um papo
totalmente hippie, mas, Steph, a única coisa que eu quero fazer é
andar de bicicleta, e isso tem um motivo. Eu acho que só fico feliz
quando estou sozinha.
O que foi a coisa errada a dizer, ou pelo menos o jeito errado de
formular a frase. Embora talvez não exista nenhum jeito bom de dizer
eu só fico feliz quando estou sozinha. Os olhos marejados de Steph
transbordam.
Não foi isso que eu quis dizer, diz Maria. Só estou querendo dizer
que eu mal estou presente na minha própria vida e preciso entender o
que não tá funcionando.
Todo mundo se sente assim!, grita Steph. Então ela passa os
indicadores por baixo dos olhos, assoa o nariz, chupa ruidosamente o
canudo de seu refrigerante vazio.
Todo mundo, não é só você, diz ela.
Eu sei, diz Maria. É só que… eu tenho pensado nas paradas trans
tipo o tempo todo e não sinto que posso conversar com ninguém
sobre isso porque eu absolutamente detesto todas as outras pessoas
que são trans e não quero lidar com isso. Steph, você conhece essa
história, eu já te disse que não consigo encontrar um modelo pra
minha vida, pro meu corpo, nada.
Maria está falando alto sobre ser trans numa lanchonete de
burritos, o que não acontece há algum tempo. Sua energia diminui e
ela afunda na cadeira.
Caramba, eu não sei o que te dizer, diz ela. Talvez eu precise fazer
terapia, ou voltar a frequentar aquele grupo de apoio.
Terapia talvez, diz Steph. Aquele grupo de apoio nunca ajudou. E
eu, o que eu faço? Fico aqui esperando você ficar bem? Você agora
está me dizendo as coisas, mas certamente não de um jeito que me
deixa entrar. Enfim.
Maria suspira. Tá bom. A gente conversa sobre isso hoje à noite em
casa, tá?
Tá bom, diz Steph.
Maria já deveria ter voltado para o trabalho quinze minutos atrás,
mas que se dane. Pelo visto ela pode fazer qualquer porra que quiser e
nada de realmente ruim nunca vai acontecer.
Steph entra no carro e vai embora; Maria não acredita que Steph
simplesmente consiga encontrar vagas e parquímetros ali em
Manhattan todo santo dia. Ela não abraça, nem beija, nem sequer
olhar para Maria. Elas estão no limbo.
Maria não chegou a comer nada no tempo todo que elas passaram
no Burritoville e também não está com fome, mas se não comer nada
sua glicose vai despencar e ela vai ficar em pânico, deprimida e
ansiosa. Compra um bagel no caminho de volta. Gergelim, cream
cheese de tofu e tomate seco, alface, tomate, cebola, sal e pimenta.
18

Suas mãos passam a tarde inteira tremendo. Seu peito pesa, e ela meio
que sente que poderia irromper em soluços a qualquer momento. Que
merda. Ela fica pensando, tipo, por que é que eu não tenho essas
reações quando estou cara a cara com ela? Quer dizer, eu meio que sei
qual é o problema comigo, mas, sério, qual é o problema comigo? É
muito fácil simplesmente se fechar e sair do próprio corpo. É tipo o
que acontece em casos de abuso, não é? As pessoas que sobrevivem a
abusos não têm esse tipo de dissociação? Até onde Maria sabe ela
nunca sofreu abuso, mas talvez se reprimir e se policiar tão
intensamente por tanto tempo antes de fazer a transição pode parecer
um abuso, pode funcionar como um abuso. Aquilo tudo soa muito
dramático, mas o engraçado é o quão pouco dramático é quando você
está fazendo isso consigo mesma. É só uma coisa que você faz. Ela
pensa em pesquisar o que as pessoas que sobreviveram a abusos
podem fazer para dissociar menos de modo a talvez conseguir adaptar
isso à própria vida, mas passa praticamente a tarde inteira repassando
a conversa que vai ter com Steph à noite.
Vai ser sincera independentemente do fato de alguém se magoar, o
que é difícil para uma pessoa que passou a vida inteira pensando, tipo,
eu não ligo se eu me machucar, se essa repressão me machucar… eu
simplesmente não posso transicionar e magoar minha mãe desse jeito;
ou então: eu não posso manchar a imagem do meu pai na nossa
pequena e pacata comunidade. É como uma segunda natureza para
Maria, ou talvez seja apenas a sua natureza: pôr os outros antes dela
mesma. Assumir sua transgeneridade foi a primeira mudança que ela
de fato fez na própria vida que lhe fez sentir que estava saindo da rota
que fora traçada para ela desde o nascimento, e ela só seguiu essa
direção contrária por sentir que iria morrer se não fizesse isso.
Entendeu que precisava transicionar porque estava indo para o
trabalho, voltando para casa, bebendo uísque e lendo, diariamente,
por semanas a fio, até que num começo de noite viu o sol se pôr atrás
da Estátua da Liberdade da sua janela no quinto andar em Sunset Park
e se deu conta de que tinha passado o dia inteiro sem sair de casa. Ato
contínuo, estava na cama chorando e obcecada pela ideia de que
aquilo nem sequer era vida, de que estava gastando mais energia para
se esconder do fato de ser trans do que seria preciso para de fato
transicionar. Chorou tudo que tinha para chorar, serviu-se de mais um
copo de uísque barato puro — não dá para simplesmente parar — e
descobriu como entrar num grupo de apoio. Pensou: aqui é Nova
York, porra, deve ter suporte a rodo para mulheres trans. Se isso existe
em algum lugar, esse lugar é aqui.
Acabou que, sim, o lugar era meio que lá, mas só até a página dez,
pelo menos no sentido de você conseguir acessar sem sujar as mãos. A
internet de fato é muito mais segura do que qualquer outro lugar. Só
havia uma única reunião: todas as quartas-feiras no Centro de
Acolhimento Gay da rua 13, em Manhattan. Ela se arrastou até lá, e
acabou indo semanalmente durante nove meses. O Centro Gay é um
prédio bem chique situado num bairro bem chique, então ela pensou:
vou tentar passar despercebida e pronto. Na época ainda fumava, o
que foi bom: ter algo para fazer com as mãos e em que se concentrar
quando você aparece em sua primeira reunião de grupo de apoio para
transexuais e sente que vai dar meia-volta e voltar para casa e morrer
se não conseguir parar de pensar na humilhação pública de fazer a
transição, de bisturis cortando a carne do seu corpo, dos seus pais
dizendo na sua cara que nunca mais querem te ver.
A reunião em si também era aterrorizante porque não tinha como
fingir que era desimportante. É uma cena que já foi encenada
comicamente várias vezes, mas não é uma cena engraçada. Ela
também já foi encenada como drama algumas vezes, mas isso
tampouco corresponde à realidade. Tipo assim: uma vez por semana,
durante uma hora e meia, talvez meia dúzia de pessoas a quem
originalmente se atribuiu o gênero masculino se reuniam numa sala e
debatiam um tema específico, como autoestima, sexualidade, opressão
ou algo do tipo. Sei lá. Só que era estranho, porque existem muitos
tipos de pessoas a quem se atribuiu o gênero masculino, mas que não
se identificam como pertencentes ao gênero masculino.
Havia uma mulher bem mais velha que parecia já ter transicionado
há milênios e que acabou explicando que era homem noventa por
cento do tempo. Aquele seu aspecto de prostituta velha era por causa
da voz rouca e do corpo magro. Uma pessoa corpulenta de Nova
Jersey com uma aura de frustração e resignação contou histórias sobre
pequenas vitórias: pintar as unhas com base para ir trabalhar, deixar o
rímel nos olhos de um dia para o outro. Muito digna, na verdade. De
um modo totalmente inesperado.
Havia mais gente de Nova Jersey do que se poderia esperar, e todo
mundo parecia ter no mínimo quinze anos a mais do que ela. A roda ia
correndo e as pessoas falavam. A maioria falava sobre como era difícil
ser trans, ou sobre problemas com a família ou no emprego, e sobre
como a transição parecia impossível. Maria acabou entendendo que
metade do pessoal que ia àquela reunião vinha de um contexto
crossdresser, e não de um contexto transexual, que aquelas pessoas não
estavam transicionando, tinham se convencido a não fazer isso, e
traziam bolsas com roupas e maquiagem e se montavam no centro
antes da reunião.
Não demorou muito para ela se sentir distante daquela gente. Ela ia
às reuniões usando os mesmos jeans femininos e os mesmos moletons
pretos de capuz que vinha usando há anos e continuaria a usar pelos
próximos, bem depois de começar a tomar hormônios e pedir para as
pessoas a chamarem de Maria. Ainda morria de medo de maquiagem,
e mais ainda de ficar com o aspecto de um cara maquiado. Também
era aterrorizante perguntar para alguém do grupo algo do tipo: Ei,
como você faz isso? O que era uma coisa engraçada. Seria preciso pelo
menos seis meses depois de ter assumido sua transgeneridade para
Maria ficar tão boa em se maquiar quanto as pessoas do grupo que não
estavam transicionando. Ela ficava sentada nas reuniões sem dizer
nada e tentava experimentar alguma sensação de comunidade, mas
quando todas iam comer juntas num restaurante ali na esquina, em
grupo para ter mais segurança, ela sempre recusava o convite.
Trabalhava a cinco quarteirões do centro. Alguém poderia vê-la com
aquelas pessoas antes de ela se assumir e aí o mundo implodiria.
Então ela ficava calada no trabalho. Calada no grupo de apoio. Foi
ficando óbvio que aquilo era um padrão em todos os setores da sua
vida: ela se recostava, fazia companhia a si mesma dentro da própria
cabeça, e na verdade não interagia diretamente com nada. Bom, só
com a internet, onde era possível simplesmente destilar seu veneno,
ou às vezes o que quer que seja o contrário de veneno. Açúcar?
Antídoto? Será que existe um antiveneno? Ela podia simplesmente
despejar tudo no computador, num blog que não estava associado ao
seu nome, e aí era quase como uma conversa. As pessoas respondiam
coisas, reconheciam que a sua experiência era real. A internet a
ajudava bem mais do que a interação humana de verdade.
Ela está praticamente meditando sobre tudo isso no corredor de
história da Irlanda quando se dá conta de que deveria ter batido o
ponto e ido embora tipo quinze minutos atrás. Pensa: eu não converso
com a minha namorada, mas ainda converso com a internet. O velho
padrão nunca mudou. Total e inevitavelmente fodida da cabeça.
Fodida de cima a baixo. Mas ela continua tão profundamente entretida
dentro da própria cabeça que só se dá conta de estar pedalando
quando já está de capacete, com a corrente da bicicleta ao redor da
cintura, a saia arregaçada e o sinalizador aceso. Na real, ela só se dá
conta disso quando bate na traseira de um táxi num sinal. Ela pensa:
tá, meu bem, sossega; você está superinternalizada e se sentindo
traumatizada agora porque ainda não tomou aquela injeção; está
acordada há catorze horas depois de uma noite de sono mais ou
menos. Se não tomar cuidado, vai ser atropelada por um caminhão ou
cair da ponte.
Mas é difícil. Ela está indo para casa terminar com a namorada de
quatro anos. Maria pensa em mandar uma mensagem para Piranha
com algum comentário irônico sobre isso, mas está pedalando e
decidida a prestar atenção.
Graças a deus existem as ciclovias. Uma vez, Piranha resolveu que
ia ser uma ciclista da pesada como Maria… bom, na verdade ela
decidiu andar mais de bicicleta, não disse nada sobre ser qualquer
coisa parecida com Maria, então foi de bicicleta do Brooklyn até
Manhattan. Só que ela não sabia que tinha uma ciclovia, pensou que
só dava para pedalar na pista dos carros, ficando bem na beiradinha e
prestes a despencar um milhão de metros até o rio, que é cheio de
tubarões, com os carros quase derrubando você vezes sem conta
sempre que passam. Além do mais, como o sol ainda não tinha
nascido, os faróis a desorientavam, passando zunindo rente à sua
cabeça. Além do mais, chovia a cântaros. É por isso que Piranha só vai
para Manhattan de metrô quando precisa. E leva um livro para ler.
Agora que está prestes a acontecer, Maria está pensando em tudo
exceto na conversa com Steph. Deveria estar pensando em planos de
contingência e essas coisas para o caso de alguma coisa horrível
acontecer. Será que ela deveria levar uma comida tailandesa? Que
exagero.
Vai aparecer no apartamento e o que tiver que acontecer vai
acontecer. É frustrante porque não dá pra dizer, tipo: cérebro, pensa.
Porque o seu cérebro diz: eu estou pensando! Estou pensando, e aí
você manda: nossa, cérebro, relaxa, só quero dizer que a gente precisa
pensar nessa conversa. A gente vai e termina com ela logo de cara?
Deixa ela abordar o assunto, conversa um pouco e deixa a coisa fluir
como uma conversa de verdade, no momento presente? O problema,
obviamente, é que se for uma conversa em vez de uma simples
afirmação, por exemplo, eu quero terminar com você, então a coisa
pode tomar qualquer rumo. No fim das contas, elas podem acabar não
terminando.
Mas, por outro lado, se ela já for terminando de cara, vai ser tipo,
bom, puta que pariu, que conversa horrível vão ter depois, e ninguém
vai conseguir nenhum alívio nem conclusão nem nada. Como resolver
qualquer coisa pulando direto para o fim? Ela pergunta: cérebro, você
está me ouvindo? O que eu devo fazer?
Esse papo todo está meta-analítico demais, responde seu cérebro.
Que jeito mais idiota de tentar entender como poupar o máximo
possível os sentimentos da sua namorada enquanto você termina com
ela.
Quando sai da ponte o sinal está verde, e ela decide limpar
totalmente o próprio cérebro e entrar numa meditaçãozinha ciclística
do tipo que Bob Pirsig provavelmente faz naquele livro idiota dele, só
que ela acaba batendo na traseira de outro táxi.
19

Steph está esperando em casa, o que é estranho porque ela vai


trabalhar de carro, e com o trânsito de Nova York andar de bicicleta
em geral é bem mais rápido do que dirigir. Mas ela está no sofá, de
roupa de trabalho, com uma garrafa de vinho tinto orgânico porque
sabe que estradiol e vinho tinto não orgânico não combinam. O fato
de ela estar com a garrafa inteira em cima da mesa, com a própria taça
cheia e a de Maria vazia, à espera, dá a entender que a conversa vai ter
a duração de uma garrafa de vinho. Uma longa conversa.
Oi, diz ela, se levantando para abraçar Maria.
Saí mais cedo do trabalho, diz ela. Quer um vinho?
Quero, obrigada.
Ela serve a taça. Maria pensa em comida: mal almoçou e
provavelmente deveria comer alguma coisa. Mas como Steph está ali
no sofá, pronta para começar, sua alimentação perde prioridade. Maria
pensa: talvez eu deva tomar a injeção primeiro? Mas na real isso não a
faria se sentir mais lúcida antes do dia seguinte, de modo que a injeção
também perde prioridade. Ela se senta no sofá a uma coxa de distância
de Steph.
Olha, diz Steph, eu quero terminar com você.
20

Dez minutos depois, Maria está pedalando outra vez. Nesta noite não
vai haver conclusão, nem conversa, nem ela vai entender que porra
está acontecendo. Ela virou aquela taça de vinho sem comer nada e
agora está de bicicleta, voando pela Jamaica Avenue. Piranha não mora
perto, e vai saber em que bairro ela mora, Maria só sabe que o lugar
fica ao sul para caralho, ao sul e a oeste, na direção de onde todas as
placas são escritas em russo e as avenidas têm nome de letra. Maria
ainda não ligou para ela, e também não decidiu se vai parar em algum
bar para tomar mais uma ou duas doses. Provavelmente não. O desejo
de se autoaniquilar não é tão intenso quanto o medo de lidar com
gente. E Piranha deve ser a maior gênia que já existiu na arte de não
lidar com gente.
Então Maria passa um tempo pedalando, rápido, até sentir as
pernas doerem e os pulmões pararem de respirar direito, só que ela
não sabe muito bem para que lado fica o sul ou o oeste. Pensou que
estivesse indo na direção certa, mas vai ver nunca pedalou da sua casa
até a de Piranha, vai ver sempre foi para lá do trabalho ou de metrô.
Estranho. Ela está numa espécie de bairro muito limpinho cheio de
prédios de dois andares e estacionamentos. Pensa: aposto que estou
ou perto do mar ou então no Queens.
Ela encontra uma estação de metrô, desce com a bicicleta, consulta
um mapa com o peito arfando e o rosto molhado por causa da noite
úmida: está no Queens. Perto do mar. Pedalou quase na direção
exatamente oposta, o que se deve mais à sua forma de andar de
bicicleta do que ao seu estado emocional. Ela tende a simplesmente
apontar numa direção e confiar que vai chegar aonde quer; quase
sempre funciona. Vai saber como acabou errando tão feio, mas que se
dane, pedalar é bom, então ela não pega o metrô, carrega a bike até a
rua e recomeça a pedalar.
Assim que ganha velocidade, Maria leva uma portada. Que sorte de
merda. Ela meio que é derrubada do selim, cai no chão, se levanta
num pulo e olha furiosa para o motorista. Ela não diz nada para o
sujeito branco com cara de chato que abriu a porta, só faz cara feia,
torna a subir na bicicleta e se manda. Quase na mesma hora já está
ganhando velocidade novamente e atravessa um cruzamento meio
movimentado bem na hora em que o sinal está ficando amarelo.
Não demora a reconhecer o próprio bairro, depois o bairro vizinho,
depois o seguinte. A essa altura já escureceu, e o ar ao redor dos
postes está todo enevoado. Parece a imagem do encarte de um disco
punk de Nova Jersey dos anos 1990: serena, solitária e bela. Seu rosto
está meio molhado e ela começa a recear que chova de verdade e
então ela vai ter de aparecer na casa de Piranha com a roupa toda suja
atrás. Mas não chove. O tempo está só enevoado.
Acaba que o bairro de Piranha fica longe mesmo. Inevitavelmente,
a adrenalina de Maria acaba. Ela para num sinal vermelho, embora,
quando não tem nenhum carro, espera-se que você fure as paradas
obrigatórias para mostrar o quanto é anarquista. Meio que começa a
processar a conversa que teve com Steph meia hora antes. Que cilada!
Enquanto Maria estava toda nervosa pensando em como ter aquela
conversa, Steph deu um jeito de se comunicar de uma forma mais
direta do que elas jamais tinham se comunicado.
Depois do que Steph falou, não houve mais muita coisa a dizer.
Maria falou, tipo: Eu ia terminar com você também, e depois as duas
meio que só ficaram se olhando. Steph chorou, e por um minuto
Maria pensou que talvez não fosse chorar e se sentiu insensível e cruel
até o fundo dos pulmões, mas depois chorou também. Só um pouco.
As duas se abraçaram, e Maria disse alguma coisa sobre combinar as
questões práticas no dia seguinte, mas que agora ela precisava encher
a cara. Steph riu, o que fez Maria sentir que as duas provavelmente
um dia seriam amigas.
Sapatonas.
Parece uma merda não ter chegado a dizer tudo aquilo que Maria
só agora está se dando conta de que precisava dizer, sobre um padrão
que ela tinha de fugir das coisas e tal, mas “eu não sou mais sua
namorada” é bem próximo de “eu não preciso mais escutar suas
merdas”, e até parece que alguém realmente quer dizer essas coisas
em voz alta. Por mais que precise dizê-las.
O sinal abre e Maria percebe: peraí, caramba, espera um pouco, eu
estou muito animada. É a mesma sensação de quando se acaba de
começar uma viagem de carro para o Arizona, para o Michigan ou algo
assim, e a gente não tem que se preocupar com o aluguel, nem com o
trabalho, nem com a comida do gato, nem com nada mais por uma
semana inteirinha. Só que sem limite de tempo. Eu não preciso cuidar
de mim mesma. Nem dormir. Nem tomar banho! Talvez essa seja uma
linha de raciocínio meio ruim.
Depois desse sinal a pista desce por um tempão, e sua bicicleta
parece o Pégaso ou algo assim. É clichê dizer que se tem a sensação de
estar voando, mas é como se ela estivesse voando, de fato. Abre os
braços que nem a Kate Winslet na proa do Titanic.
No fim da descida fica o limite de Park Slope. Ainda faltam tipo
quilômetros até a casa de Piranha, e, embora não esteja chovendo, a
névoa está encharcando suas roupas, então Maria decide pegar o
metrô. Esse é o verdadeiro motivo pelo qual ela não sabe o caminho
de bicicleta. É um caminho inutilmente longo. Ela se dá conta de que
já tinha perdido a paciência mais ou menos naquele mesmo ponto.
Maria é uma ciclista da catarse, não de longas distâncias.
Além disso, no metrô dá pra ler livros e tomar uísque, então ela
para numa loja de bebidas e compra uma garrafinha. Não quer ficar de
porre, mas quer beber. Então ela pensa em mandar uma mensagem
para Piranha.
Oi, a Steph terminou comigo. Tô indo praí.
Ela embarca no metrô sem esperar resposta, porque o que Piranha
vai dizer? Que não? Além do mais, Piranha não vai estar fazendo nada,
ela odeia demais todo mundo para sair sem necessidade.
O trem da linha Q está razoavelmente cheio, porque é terça-feira à
noite e as pessoas que trabalham em Manhattan e moram em casas
chiques de dois andares perto da casa de Piranha estão voltando do
trabalho agora. Maria assume o papel de punk sujinha com os cabelos
tingidos de uma cor berrante, que ocupa espaço demais, cheira mal e
bebe uísque. Já conheceu gente assim de verdade e na real ela não é
assim, mas comparada com aquele pessoal de bancos de investimentos
ela é tipo a Bertha em Sexy e marginal.
Também está animada por estar lendo um livro chamado Big Black
Penis, que fala sobre masculinidade e homens negros. Ela ergue o livro
bem alto para todo mundo poder ler o título. É uma sorte ela
raramente sentir uma animação tão grande, pois, quando está assim,
Maria meio que fica com vontade de chocar as pessoas.
O trem segue em frente, as pessoas vão saltando, e então ela chega
à estação da avenida Z, guarda o livro na bolsa e carrega a bicicleta até
lá fora. Piranha respondeu com outra mensagem: Que merda, tá. Quer
uma cerveja?
Piranha é demais.
21

Piranha aparentemente frequentou o grupo de apoio para mulheres


trans mais ou menos na mesma época que Maria, mas Maria não se
lembra de tê-la visto lá. Piranha diz se lembrar de Maria, porque Maria
parecia tão apavorada e tímida quanto ela própria. Piranha fez a
transição bem antes de Maria. As duas se conheceram porque, no ano
em que Maria resolveu ir ao Camp Trans, Piranha respondeu ao
mesmo post de carona compartilhada no Craigslist que ela, e as duas
acabaram indo juntas no carro de outra pessoa. Maria no começo
achou Piranha uma vaca, mas tudo bem, porque Piranha pensou a
mesma coisa dela. Nenhuma das duas nunca deixa ninguém entrar: é
como se elas usassem uma armadura do mesmo modelo. Ou de um
modelo complementar. Piranha passou a viagem inteira fazendo
piadas maldosas, enquanto Maria dormia. Nenhuma das duas tinha
habilitação. Maria é uma ciclista punk sujinha tão radical que deixou
sua habilitação expirar. Anarquia.
Elas acabaram se entrosando por causa de uma banda ou algo
assim, depois ficaram amigas. Maria é a única que a chama de Piranha.
Todos as outras pessoas a chamam de Melissa. Naquela semana no
Camp Trans, as pessoas não paravam de confundir as duas, então uma
noite Maria tomou um porre e decidiu que um apelido ajudaria as
pessoas a diferenciá-las, e que Piranha era um bom apelido para um
ex-menino hardcore transformado em uma senhora encantadora,
porém nervosa, que no fundo ainda era uma espécie de adolescente
hardcore.
Piranha usa a palavra agorafobia em referência a si mesma, mas não
fica claro o quão literalmente está falando. Ela trabalha numa farmácia
da rede Rite Aid ali mesmo no seu bairro, e não num sebo chique de
Manhattan como todos os outros babacas pretensiosos. Piranha não
gosta de ficar muito longe de casa. A história dela é longa e
complicada, mas, resumindo, existe uma lenda de que as mulheres
trans são criaturas frágeis que passam o tempo inteiro sendo mortas.
Que são fáceis de matar. Só que, se Piranha é um exemplo, as
mulheres trans na verdade estão entre as filhas da puta mais difíceis de
matar do mundo. Ela é uma daquelas pessoas boas de quem a gente
ouve falar, com quem coisas ruins acontecem. Sua saúde tende a não
ser lá essas coisas. Ela toma muitos remédios. É generosa com eles.
Uma vez, ela explicou que em geral é bem mais barato comprar
analgésicos, ou antibióticos, ou antidepressivos, ou tipo hormônios ou
qualquer outra coisa de alguém no Craigslist do que usando o plano
de saúde mequetrefe de funcionária da farmácia. Além do mais,
ninguém no Craigslist quer fazer uma análise psicanalítica completa
só para permitir que você continue tomando os hormônios que você já
toma há sete anos.
É o tipo de coisa que uma irmã mais velha e experiente poderia te
contar. Em determinado momento, a amizade entre Maria e Piranha
se acomodou nessa espécie de dinâmica de irmã mais velha/irmã mais
nova, na qual Piranha é a irmã inteligente, experiente e contida, e
Maria a irmã mais nova e mais extrovertida que vive em eterno surto.
Maria pedala da estação de metrô até o apartamento de Piranha,
que é um pequeno quarto com uma cozinha americana menor ainda e
o menor banheiro de todo o Brooklyn. Na real, suas pernas ficam para
fora da porta quando você faz xixi, e depois você lava as mãos na pia da
cozinha. O apartamento fica embaixo da cozinha fedida de um casal
idoso polonês e enxerido, mas Piranha é uma das únicas pessoas duras
de Nova York que consegue morar sozinha, e, na real, o apartamento é
bem legal. Piranha cuida da casa dela: há vasos de plantas, tapeçarias,
um violão e um computador das antigas que ainda lê DVDs. Quando
Maria a visita, o que as duas mais fazem é ver filmes.
Piranha abre a porta depois de uma só batida. Está usando uma saia
comprida meio indiana e uma jaqueta marrom largona que escondem
suas curvas. Ela abraça Maria e diz: Sinto muito, meu bem.
Maria diz: Pois é, valeu, tá tudo bem.
Piranha vai pôr uma cerveja na mão de Maria, mas a garrafa bate na
de uísque que já está na mão dela. Piranha ri.
Maria entra, fecha a porta, e Piranha diz: Tá, pode começar.
Como assim?, pergunta Maria. O ar no apartamento de Piranha
parece meio denso, como se lá em cima os vizinhos tivessem passado
o dia inteiro assando pierogis ou algo assim, e naquela noite, com a
estranha umidade do outono, é um baita alívio para Maria tirar a
jaqueta, o moletom de capuz, o cachecol e então a saia comprida.
Maria Gri ths, diz Piranha, uma vez você veio aqui na minha casa
e na mesma hora começou a dissertar por meia hora sobre um casaco
novo que tinha acabado de comprar. Eu ficaria bem impressionada se
você não estivesse quase explodindo de tantas revelações que tem pra
me fazer.
Que engraçado você começar assim, diz Maria, porque isso é meio
o oposto do que eu venho pensando. Eu sou uma pessoa falante. Falo
demais, né?
É, diz Piranha. Na internet.
Tanto faz, diz Maria. Mas eu não tenho falado com a Steph, tipo
nada. Passei dois anos sem conseguir pensar em nada pra dizer, mas
eu tinha me fechado tanto que nem percebi.
É, diz Piranha.
Tipo, puta que pariu, eu não consigo silenciar meu monólogo
interior nem com álcool, nem com remédios, o que parece meio fodão
e meio ensino médio ao mesmo tempo, né?
É, diz Piranha. Ela faz uma pausa de alguns segundos, então diz:
Mas fodão e ensino médio são meio que a mesma coisa.
Total, diz Maria, sentindo a tensão se esvair de suas costas. Ela se
deixa cair na cama de Piranha. Obrigada por me deixar vir.
Bom, na real, você não perguntou se podia, diz ela.
E Maria responde: Puta merda, haha.
Vai, continua, diz Piranha.
Tá, diz Maria. O negócio é o seguinte: eu ainda tenho um milhão,
um zilhão de coisas trans que preciso entender. Eu sou igualzinha a
uma monja budista que acha que alcançou a iluminação! Tipo, no dia
em que a gente acha que chegou lá, é quando o monge mais velho
precisa dar um peteleco na nossa cabeça e dizer que a gente não passa
de um bebê idiota. E eu não conseguir de forma alguma falar sobre os
meus problemas é esse peteleco na cabeça.
Piranha sorri com ironia, mas não diz nada. É legal ela
simplesmente deixar Maria performar.
Eu estou num ponto em que ando por aí como se soubesse tudo
sobre tudo, só porque transicionei e agora uns homens nojentos na
rua flertam comigo, quando, na real, eu congelei tipo nos treze anos,
nos cinco, no zero, quando comecei a reprimir coisas que sabia que
não podia dizer em público. Tipo, sabe, aquela sensação sem palavras
que eu tive a vida inteira, tipo, ai meu deus tem um lance muito
errado com o meu corpo e no jeito como todo mundo lê o meu corpo.
É, diz Piranha.
Só pensei, tipo: preciso ficar um tempo solteira! Preciso muito! Eu
nunca fui solteira e transicionei ao mesmo tempo, tipo nunca na vida,
e como é que vou conseguir ter uma relação com as pessoas que não
seja cagada se nunca tiver feito isso? Então com isso eu estou
animada. Pedalando pra cá hoje, eu tive a sensação de estar voando.
Com os pulmões cheios, sentindo que consigo respirar… todos
aqueles lances de fim de filme brega.
Então você tá enchendo a cara pra comemorar.
Não, eu estou enchendo a cara porque ela terminou comigo
primeiro! Eu entendi tudo isso, decidi terminar com ela, marquei uma
hora, e aí ela apareceu e disse: eu quero terminar com você. Que porra
é essa?
Ah, é, diz Piranha com um sorriso irônico, você decidiu tudo isso
sozinha e marcou uma hora pra encontrar com ela? Você se impôs
assim desse jeito?
Sei lá. Mais ou menos. Não sei. Quer um gole?
Não, responde ela, eu não consigo mais beber destilado. Mas fica à
vontade. Quer um copinho de shot?
O ritual lhe agrada e Maria aceita. Então pensa: ritual, shot, puta
que pariu! Estou me atrasando ainda mais para tomar minha injeção a
cada segundo que passa, e isso explica as oscilações de humor.
Ai, Piranha, putz, diz ela, estou atrasada com a minha injeção.
Atrasada quanto, pergunta ela.
Hm, tipo uma semana e meia?
Puta que pariu, diz ela, rindo alto e passando o copinho para Maria.
Então se prepara para as oscilações de humor hoje, diz Maria. Ela
enche o copinho e bebe.
Ah, jura, diz Piranha.
Uma hora mais tarde, Piranha provavelmente disse umas dez
palavras, e Maria mil vezes mais. Piranha fica balançando a cabeça e
escutando, fazendo perguntas abertas para incentivar Maria a
prosseguir, mas depois de um tempo ela fica só se repetindo.
Então, diz Piranha, resumindo, o seu desenvolvimento está
totalmente atrofiado, e você precisa do tipo de aventura adolescente
que não teve quando era mais nova.
É, acho que sim.
Tá. Você está solteira agora. Quer transar muito com muita gente?
Putz, não, diz Maria. Tá brincando? Como é que eu vou fazer isso,
e como é que vou fazer isso com as minhas partes atrapalhando, e de
toda forma: o biopau.
Como Piranha passa muito tempo lendo coisas na internet, ela está
por dentro de quase tudo. Ela provavelmente não frequenta festas de
sexo, embora Maria não tenha perguntado. Mas já falou bastante sobre
umas festas de sexo lésbicas que acontecem em Manhattan e como
essas festas muitas vezes têm regras proibindo os biopaus, ou seja:
proibindo mulheres trans. Ou, então, sendo mais otimista: as
mulheres trans precisam ficar de roupa. Enquanto isso, os caras trans
ficam à vontade para exibir qualquer pau que quiserem. O que é meio
frustrante, meio problemático e profundamente representativo das
neuras da própria Maria em relação às partes dela, embora ela nunca
tenha se relacionado com alguém que tivesse problemas com isso. A
palavra biopau se tornou um código para o fato de as mulheres trans
não serem sexualmente bem-vindas em nenhuma comunidade em
lugar nenhum.
É, diz Piranha. O biopau.
Faz uma hora ou mais que as duas estão em cima da cama
praticamente sem se mexer. Maria se levanta. Esticar os músculos é
gostoso, e ela de repente fica feliz por simplesmente não ter se
detonado assim que chegou.
O que você planejou pra noite de hoje, Piranha, pergunta Maria.
Heroína, responde ela.
Sério?
Sério.
Quer falar sobre isso?
Obviamente é um assunto importante, mas não chega a ser um
furo de reportagem. Piranha sempre tem comprimidos. Ela está
sempre usando alguma coisa, sempre praticando algum tipo de
automedicação ilegal à la Robin Hood. Mas isso com certeza é sério.
Heroína é o beco sem saída no fim da Rua das Drogas.
Não é só você que tem problemas, Maria, diz Piranha.
O subtexto é: olha, Maria, o mundo vive me fodendo o tempo todo
e você nem perguntou como eu estou.
Putz, querida, foi mal, diz ela. O que tá rolando?
Piranha, que em algum momento deve ter se levantado, torna a se
deixar cair pesadamente na cama e solta um suspiro. Você sabe que eu
estou juntando dinheiro pra cirurgia de redesignação há tipo uma
década, não sabe?
Sei.
E sabe que eu tenho uma porra de uma dor crônica, uma porra de
um problema de saúde ou sei lá o quê?
Sei.
Bom, só essa semana me ocorreu pesquisar se uma coisa poderia
complicar a outra, diz ela. E acontece que pode. E muito. O cirurgião
com quem eu queria me consultar não quer nem encostar em alguém
com um corpo fraco desse jeito. Minha segunda escolha também não.
O único que eu consegui encontrar disposto a me operar é caro pra
caralho, na Tailândia, e não tem uma reputação muito boa.
Putz, Piranha, sinto muito.
Pois é, diz ela. Então é tipo: eu meio que duvido que vou ter uma
vagina um dia. E isso é uó. Então, eu estou me permitindo.
Eu nem sabia que você tinha um contato de… meu deus do céu, de
heroína.
Craigslist, diz ela, encolhendo os ombros.
E você faz o que, se pica?
Não, responde ela. Uma agulha na perna semana sim, semana não,
já é agulha demais pra mim. Eu cheiro.
Tá, diz Maria. Ela volta a se sentar na cama de Piranha, mas com
cuidado. Uma das primeiras coisas que aproximaram as duas, no carro
a caminho de Michigan, foi um medo sério de injeções e o estranho
fato de que o desejo de pôr estrogênio no corpo pode superar esse
pavor. Mas ambas toda vez passam horas encarando a própria perna,
escutando vários álbuns em sequência, antes de conseguir de fato
enfiar a agulha e injetar.
Injetar heroína, claro, faz Maria pensar no ensino médio. Mas não
faz todo mundo pensar no ensino médio? Em Gadolândia ela tinha um
amigo que odiava tudo. Ele era tipo racista, misógino, odiava gente
queer, odiava a mãe e o pai, odiava a escola, odiava cinema e música e
hippies e atletas. Obviamente, mais do que tudo ele odiava apenas a si
mesmo. Trabalhava no estoque de um Wal-Mart carregando caixas
pesadas, e a cada duas semanas levava todo o dinheiro que ganhava
nesse emprego para a Filadélfia, gastava tudo em heroína, trazia para
casa e se picava duas ou três vezes por dia até acabar.
Estilo total.
Mas Maria e ele tinham uma amizade. Maria acabou se dando conta
na terapia de que essa amizade funcionava porque ela era
emocionalmente fechada de tanto tentar não ser trans e porque ele era
emocionalmente fechado por ser viciado, de modo que podiam se
fazer companhia e se fechar emocionalmente em conjunto. Ele vivia
tentando fazer ela se picar também. Mas ela nunca topou. Cheirou
umas carreiras dos papelotes dele, e uma ou duas vezes deu vinte
dólares para ele comprar um ou dois papelotes para ela. Mas Maria
nunca se viciou. Ela dava um ou dois tiros e depois esperava uma
semana, com muito medo de perder o controle, mas um pouco
fascinada com o glamour da coisa. A era do heroin chic.
Então Maria sabe que heroína é demais. Tipo como dormir é
demais, e estar doidona de heroína é como estar dormindo vezes
vinte. Você simplesmente sente que está descansando. Em geral, ela
cheirava o equivalente a uns cinco ou seis dólares de heroína e ficava
deitada de bruços num tapete qualquer, torcendo para ninguém
incomodá-la, e depois de um tempo ia vomitar em algum lugar.
Parou de usar quando saiu de casa e foi para a faculdade, parou de
falar com as pessoas de sua cidade e parou de ter qualquer conexão.
Piranha está explicando as justificativas dos cirurgiões para não
operar pessoas com problemas endócrinos e imunológicos como ela.
Mas Maria está apenas olhando para o seu rosto. Piranha é linda, mas
não o tipo de linda que faz você querer enfiar a mão dentro da calcinha
e a língua dentro da boca dela e, sim o tipo de linda com quem você
quer casar e ficar junto o tempo todo. As bochechas ocupam a maior
parte do rosto dela; seus olhos e cabelos têm o mesmo tom de
castanho, dois acima da pele; a boca é carnuda o suficiente para
combinar com as bochechas. Algumas mulheres trans quase só
namoram outras mulheres trans, mas Maria provavelmente não está
forte o bastante para lidar com um trauma compartilhado desses. Mas
por um segundo Maria deseja poder namorar Piranha.
Putz, querida, ela torna a dizer. Eu queria poder fazer alguma coisa.
Pois é. Eu queria que as pessoas viessem se eu fizesse um evento
pra arrecadar dinheiro. Tipo os caras trans fazem pra tirar os peitos,
sabe? Filhos da puta.
Haha, Maria ri e diz: é, somos meio que você e eu contra o mundo
todo.
Você e eu contra o resto da comunidade queer toda, rebate
Piranha, mas, na real, ela não está brincando.
22

Elas ficam assistindo a filmes. Heroína não é igual a cocaína: Piranha


só cheira mais uma ou duas carreiras durante o resto da noite e não
conversa muito. Na real, ela parece bem menos estressada do que de
costume, e meio que fica só deitada, vendo zumbis devorarem rostos e
monstros destruírem Nova York, mas sem realmente reagir a nada.
Maria pega no sono. Piranha provavelmente também.
Então o sol começa a nascer do outro lado da única janelinha
semiopaca do apartamento. Maria acorda no susto e se dá conta de
que precisa ir trabalhar. Ela sempre carrega giletes e maquiagem; abre
a torneira até a água sair quente, faz a barba de um jeito apresentável,
maquia os olhos e vai ver como Piranha está. Está dormindo
tranquilamente, o peito subindo e descendo, com a mesma roupa da
noite anterior. É incrível ela ter conseguido aquele momento de paz.
Piranha realmente tem mais problemas do que merece para
administrar.
Maria, por sua vez, tem uma vida superprivilegiada. Steph
terminou com ela, ela foi para a casa da amiga e encheu a cara, e agora
de manhã não está sentindo nada pior do que a mesma dor de cabeça
que sente todo dia de manhã. Merda. Cogita ir pedalando para o
trabalho, mas dali vai levar uma eternidade, então compra um café e
um bagel e pega o metrô. Meio que acha ruim ter gastado dois dólares
num bilhete.
A coisa mais importante que tirou da conversa com Piranha na
noite anterior é que, de agora em diante, ela precisa ser extremamente
irresponsável na vida.
Ela tem um diário! Um diário num caderno de verdade, de papel,
como nossos antepassados costumavam ter. Totalmente consciente de
que vai se sujar toda de café, ela ajeita a bicicleta, a bolsa, o café e o
bagel de forma a conseguir escrever no diário. Acaba se queimando e
tal, mas que se dane, faz uns dois anos que não escreve de verdade
naquele diário, tirando os rabiscos que fez no Kellogg's na outra noite.
Maria lê tanto que imagina que um dia vá ter uma ideia e escrever um
ou dois Grandes Romances Antiamericanos, então carrega sempre o
caderno com ela. Mas quase tudo que tem nele são telefones,
endereços e rabiscos.

15 DE OUTUBRO
Piranha está usando heroína.

Mas ela não consegue pensar em mais nada para escrever, e depois de
quatro palavras e meia começa a sentir uma cãibra na mão. Consegue
passar a noite inteira digitando, mas usando uma caneta, nem tanto.
Talvez devesse fazer um diário de haicais, de um jeito não apropriador.
Não seria apropriador escrever igual ao Hemingway.

15 DE OUTUBRO, PARTE 2.
Sou um soldado na Primeira Guerra Mundial. Não tenho muitos
sentimentos. Bebo muito e as garotas gostam de mim. Tivemos
uma longa conversa sobre a possibilidade de um aborto, mas não
usamos a palavra aborto. Era tudo um sonho e eu já morri.

É o tipo de coisa idiota e pretensiosa que ela costumava escrever


quando era mais nova e nada realmente importava. Costumava se
drogar e ficar escrevendo sobre dinossauros vampiros, ou então
escrevia uma crítica de um show de rock para o jornal da escola sem
citar o nome da banda a não ser no título. Faz doze horas que está
solteira e já está regredindo para os dezesseis anos.
Pensa no que vai fazer mais tarde depois do trabalho. E fica
animada.
23

Ela quase mata todo mundo tirando a bicicleta e suas coisas do trem
no meio do rush matinal, mas que se dane. Não dá para não parecer
cool subindo a escada do metrô carregando uma bicicleta no braço, e
ela então chega na rua e está chovendo a cântaros. Perto da casa de
Piranha fazia um tempo lindo. Ela está sem guarda-chuva, mas cobre a
cabeça com seu moletom de capuz e diz que se foda. Chuva é demais.
Está toda animada, e estranhamente mal pode esperar a hora do
almoço para voltar a escrever no diário.
Em todo lugar de Manhattan sempre tem alguma obra, o que
significa que é fácil encontrar um lugarzinho debaixo de uma
marquise de tapume para prender a bicicleta para não deixar molhar
tanto. Ela chega no trabalho um pouco arrependida por estar tão
molhada, mas que se dane. Bate o ponto, encontra um aquecedor lá na
seção de história da Irlanda e joga o moletom por cima: risco de
incêndio o escambau. A seção de história da Irlanda é demais porque
quase todas as lombadas dos livros são verdes e porque fica mais
afastada das outras, ou seja, o pessoal da gerência nunca vai lá. E se
alguém aparecer, vão flagrar você se arrastando para ler a história da
Irlanda de John O'Driscol com a testa franzida, mas ninguém quase
nunca vai lá. Em geral, tem só gente perdida perambulando pela
livraria. Ou alguma pessoa da Irlanda.
Quando o ar está úmido de chuva como agora, a umidade se
mistura com o pó que cobre literalmente tudo na livraria e mal dá para
respirar. Isso quer dizer que você precisa fazer vários intervalos, dar
umas saídas, sabe? Maria sai para dar sua primeira volta às 9h45.
Pensa: pizza de café da manhã, será?
Estamos em Manhattan, e um monte de pizzarias já estão abertas.
Comer pizza no café da manhã é uma irresponsabilidade com o
estômago que ela tem, e Maria não pode se dar ao luxo de comer um
bagel de manhã, pizza em seguida, mais um café e então o almoço,
mas que se dane.
Irresponsabilidade. Maria nunca foi irresponsável. Quando
pequena, era responsável por proteger todas as outras pessoas dos
seus próprios problemas em relação ao seu gênero, era responsável
por garantir que sua mãe e seu pai não precisassem criar uma criança
esquisita. É claro que, no caso, sua mãe e seu pai acabaram tendo uma
criança esquisita e triste, não é? Enfim. Foi nessa época que a
responsabilidade em detrimento de si mesma se tornou um hábito: ela
não ligava para a escola, mas sabia que sua mãe e seu pai ficariam
tristes se não entrasse para a faculdade, uma vez que se espera
determinadas coisas de você quando você se dá bem em testes
padronizados, então ia se virando e prestava atenção. Depois, no
quesito drogas, usou todas, mas sempre com tanta moderação que não
chegou a ser perigoso. Mesmo quando vomitava ou ficava alterada, era
sempre numa situação controlada, nunca foi presa, nunca precisou
que a polícia a levasse para casa, nunca foi pega chegando mais tarde
do que o combinado nem foi parar no hospital nem nada disso. Aí ela
foi para Nova York, bancou o próprio aluguel, arrumou um emprego,
se manteve discreta, teve relações com pessoas nas quais fazer a
relação correr bem era mais importante do que estar presente. O que
não deu certo. Está claro que ser responsável não foi uma força
positiva em sua vida. Ser responsável tem cagado tudo.
Ela compra uma fatia de pizza de legumes e volta para o trabalho
debaixo de chuva. Além do mais, ser irresponsável funciona bem para
ela. O único jeito de ela ter conseguido manter aquele emprego e não
surtar completamente foi dar várias voltas na rua, passar muito tempo
lendo em vez de trabalhar, ajudar clientes velhos e doidinhos por
horas a fio que não compram nada. Ou andar de bicicleta
perigosamente: ela levou uma portada ontem, seu quadril ainda está
dolorido, e sabem do que mais? Essa é uma história bem boa. Ou até
naquela manhã, no metrô! Ela derramou café na roupa toda, ocupou
um montão de espaço e acabou se lembrando do quanto gosta de
escrever totais absurdos em seu diário.
Ela é como Sigmund Freud: capaz de pensar num milhão de
exemplos para justificar qualquer teoria de merda que quiser
sustentar. E ser totalmente irresponsável pela primeira vez na vida é
tão intrigante que ela está inteiramente disposta a defender isso.
Ela é o Sigmund Freud da história da Irlanda.
Quando você é trans, supõe-se que saiba tudo sobre os homens e
tudo sobre as mulheres e seus modos de interação e as diferenças
importantes que influenciam o mercado amoroso, e sobre como em
última instância todo mundo é fundamentalmente igual, mas ao
mesmo tempo fundamentalmente diferente. E quando você começa a
transição? Nos primeiros um ou dois anos, você acredita totalmente
que sabe. Passou a vida inteira namorando meninas, só que como
menino, então tem a experiência de saber como é ser um menino
hétero, só que agora você é menina, e cada vez mais o mundo enxerga
você como uma menina, e além disso as meninas que você namora
agora têm com você uma relação diferente daquela que outras
meninas que você namorou antes tinham. Além do mais, agora você já
saiu uma ou duas vezes com meninos, então se sente uma grande
autoridade sobre o que é ser uma menina hétero. E tudo que você
quer é falar no assunto, o tempo inteiro, porque isso parece ser uma
senhora revelação: ah, agora eu posso agir de tal maneira num
encontro, e ah, agora eu entendo tão bem por que meus antigos
relacionamentos sempre davam errado, eu sou a porra da supermulher
do Nietzsche, e ah, cara, eu sou tão inteligente o tempo todo que tudo
que eu quero é explicar pra todo mundo como o mundo é.
Aí, depois de passar um tempão se sentindo superinteligente e
superperspicaz, você começa a se dar conta de que todas as suas
sacadas são meio idiotas. Para começo de conversa, quando
supostamente era menino, na real, você não era. Você aprendeu a
representar esse papel da forma como sua cultura ensinou, o que era
bem fácil, mas não acreditava naquilo. Havia um desânimo subjacente
na sua interpretação e na sua experiência de ser menino que não
existe para a maioria dos meninos que não são trans. Aí se dá conta de
que, assim que começou a passar mais tempo na companhia de
mulheres de um jeito não sexual, elas passaram a não tratar você como
um menino, e se abriam para você mais ou menos do mesmo jeito que
se abrem para outras mulheres, só que você era uma pessoa efusiva,
bagunçada e insegura, de gênero indeterminado, dada a surtos e crises
por coisas como, digamos, meninos darem flores para as suas amigas,
mas não para você.
E aí, quando você saiu aquelas duas vezes desastrosas com aquele
menino, ele sabia que você era trans, e você jamais saberá se isso
influenciou a maneira como ele a tratou, ou seja, com certeza você
estava bem mais perto do que jamais tinha estado de um
relacionamento heteronormativo menina-menino, mas como
relacionar isso com a experiência de qualquer outra pessoa?
Aí você começou a sair com sapatonas e descobriu como era
diferente ser uma menina que sai com meninas em comparação com
ser um menino que sai com meninas, mas nunca chegou de fato a
conseguir entender se era assim porque as meninas com quem estava
saindo agora eram diferentes das meninas com quem tinha saído antes
ou se era porque sair com sapatões era por algum motivo
fundamentalmente diferente de sair com meninas héteros, e além
disso: jura? Você saiu com um único menino e acha que pode falar
sobre como é sair com todos os meninos? Além do mais, você deve ter
saído com quantas meninas antes de fazer a transição, três, quatro? E
elas eram todas bem diferentes umas das outras, tinham questões
diferentes, jeitos diferentes de lidar com o estresse de uma relação, e
agora você vai generalizar sobre todas as mulheres?
Além de tudo, o sexo sempre foi superproblemático para você.
Mesmo antes de saber que era trans, você ficava estressadíssima com
sexo. Você achava que gostava. Com certeza gostava dos orgasmos, e
até onde sabia não tinha motivo nenhum para ter raiva das suas partes,
mas a masturbação era sempre mais fácil e bem menos estressante do
que de fato ter e manter uma ereção na presença de outra pessoa.
Além do mais, você nem sequer sabia que dissociava durante o sexo
até estar fazendo isso por tipo uma década, e já tinha ouvido falar em
dissociação várias vezes, e aí finalmente percebeu que, na verdade, era
isso que acontecia quando você precisava parar de prestar atenção na
pessoa com quem estava trepando de modo a poder fantasiar sobre
uma porção de situações que nada tinham a ver com ter um pênis e
comer alguém com ele. Então você não faz ideia do que significa ter
um relacionamento amoroso que contenha sexo divertido, algo que
você supõe que todo mundo tenha, mas, sério, como você pode saber?
E esses são só os aspectos do gênero que têm a ver com
relacionamentos. E o jeito como você é tratada por homens mais
velhos que trabalham em lojas? Por mulheres jovens? Você acha que
ser alta, magra e branca tem alguma coisa a ver com o jeito como você
é tratada hoje em dia? Acha que ser uma pessoa magra, branca e que
se vestia razoavelmente tinha alguma coisa a ver com o tratamento
que você recebia antes de transicionar? São tantas variáveis que você
tipo consegue ver todas as construções, todas as conexões e meio que
as entende, mas se algum dia pretende entendê-las de verdade é
melhor fazer isso numa caverna ou numa montanha em algum lugar
bem longe das outras pessoas, onde possa viver de líquens, bebendo a
água de uma nascente rasa e meditando oito horas por dia, porque é
muito complicado.
Mas mesmo assim Maria pensa: será que eu deveria estar tendo
algum tipo de estalo? Meu estalo é o seguinte: gênero é uma coisa
idiota e chata, e eu não quero falar sobre isso nunca mais. E se alguém
estiver super a fim de me usar como exemplo de como o gênero não é
real, ou se alguém algum dia quiser me falar sobre como o meu corpo
é um exemplo de gênero queer na sua forma mais integral e
fundamental, ou se alguém quiser me dizer que acabou de cursar seu
primeiro ano numa faculdade para mulheres e que representa o Fim
do Gênero, essa pessoa pode ir se foder. Kate Bornstein tinha razão
quando disse que nenhuma dessas paradas que se diz sobre gênero é
real, só que ela não foi longe o suficiente. Todas essas paradas que se
diz sobre gênero são uma imbecilidade e são impossíveis de entender
de tão complicadas.
Um senhor alto de cinquenta e poucos anos entra calmamente na
seção de história da Irlanda, quase tromba com ela, então tira o
chapéu e faz uma mesura sutil, porém dramática. Ele está usando
roupas evidentemente caras.
Me perdoe, senhorita, diz ele com um sotaque do Upper East Side
ou coisa assim.
Tudo bem, diz Maria.
Ele passa alguns segundos olhando as prateleiras, depois parece se
lembrar de alguma coisa. O homem se vira para ela e diz: Me desculpe
dizer isso, mas você é linda.
Ah, obrigada, diz ela, fazendo subitamente o papel de menina
hétero fofa.
Você já leu todos esses livros?
Ele está sendo engraçadinho. Eca. Ela balbucia um não e vira as
costas, ainda sorrindo, porque o que mais se pode fazer, explicar o
patriarcado para aquela porra de cara aleatório?
Ele se vira outra vez para olhar os livros e ela começa a contornar a
estante só para não ter de interagir constrangedoramente com aquele
galã de meia-idade, mas ele a detém com a voz.
Desculpe, mas posso fazer uma pergunta?
Claro, diz ela.
Você aceitaria almoçar comigo hoje à tarde?
Obrigada, mas não, diz ela. Eu tenho namorado.
E depois disso ela praticamente foge.
Obviamente Maria deveria ter dito ao homem que ela é lésbica. E
que ele era velho demais para ela. Deveria ter dito uma porção de
coisas, mas um: ela internalizou de um jeito frustrante o código social
que diz que mulheres mais novas não devem ser grosseiras com
homens mais velhos, e dois: revelar que ela é lésbica sempre parece
que vai necessariamente levar a pessoa a entender que ela é trans, e
isso não só parece assustador e meio perigoso, mas é como se nesse
caso as pessoas também pudessem querer perguntar se ela é lésbica de
verdade, se alguém que Na Realidade É Homem e namora mulheres
não é só um cara pervertido para caralho. Parte da transição tem a ver
com a tentativa e erro de navegar pelas interações sociais que a
maioria das mulheres navega por tentativa e erro mais ou menos na
época da puberdade e aprender a dispensar um cara aleatório que está
flertando com você sem que ele fique com raiva. Mas quando você
tem vinte e nove anos e não aprendeu essas coisas, o sentimento de
humilhação é indescritível.
De modo que, na real, é bem mais fácil entrar na onda desses
homens que foram criados assistindo a filmes nos quais a mocinha só
gosta do herói depois de ele ter sido insistente o bastante para fazê-la
gostar dele. É essa a graxa que faz girar as engrenagens da máquina da
heteronormatividade, claro, mas é simplesmente mais fácil se esquivar
de uma situação constrangedora com um cara estranho do que
denunciar a misoginia inerente do que ele está fazendo. É uma
posição difícil de ocupar, mas ainda por cima quem está nela é uma
sapatão nervosa que também é trans e que, em determinado
momento, a sociedade tentou usar como receptáculo para esse tipo de
misoginia. Então.
Simplesmente propagar isso é uma irresponsabilidade, mas de que
outras ferramentas você dispõe para desfazer tudo isso? O privilégio
masculino é um saco e é estranho, e o fato de ele existir, de as pessoas
terem tentando usá-lo com você, e o fato você internalizá-lo em
alguma medida, complica a decisão de ser totalmente irresponsável.
Tipo, se você não se responsabilizar, isso não dá algum tipo de
vantagem para as outras pessoas, como aquele mané do Upper East
Side? Ou você só se mostra irresponsável dentro de determinados
limites, para os filhos da puta não acabarem sacando que você é trans?
E isso já não parece mais irresponsabilidade, parece uma rebelião
contida, o que é tão produtivo quanto levar um skate para o shopping
ou ir à igreja com um All Star de cano alto ou uma camiseta com
estampa de palavrão.
Do outro lado da livraria, Maria começa a calcular mentalmente
como encaixar uma tatuagem da palavra Irresponsável nas articulações
dos dedos. IRSP NSVL? Pode ser. Mas parece meio bobo.
Agora que está sem graça e com medo de ir se esconder na caverna
da história da Irlanda, Maria decide sair outra vez da livraria. Começa
a andar, sei lá, para algum lugar, e como está chovendo forte tenta se
manter quase sempre debaixo das marquises. Mesmo assim fica
ensopada, mas e daí?
Na real, não tem problema se a sua irresponsabilidade não afetar
mais ninguém. Contanto que essa recém-encontrada liberdade se
expresse através de coisas que não machuquem, não causem
constrangimentos nem oprimam mais ninguém, deve ficar tudo bem.
Tem uns comprimidos de Adderall na bolsa dela. Debaixo da marquise
da loja de Halloween, ela toma dois.
NOFU TURE caberia nas articulações dos seus dedos. É meio que a
ideia certa, mas Sex Pistols? De novo uma rebelião adolescente
totalmente improdutiva, a camiseta com estampa de palavrão outra
vez. O problema é: como ter algum tipo de catarse emocional quando
se está velha demais para isso? O segredo, claro, é rejeitar a ideia
venenosa e normativa de que existe um Velha Demais para ter
Catarse. Ou, na verdade, um Velha Demais para Qualquer Coisa. Mas
rejeitar ideias normativas sobre idade é tão difícil quanto rejeitar ideias
normativas sobre gênero.
Ela agora está a seis quarteirões da livraria, e como está só dando
uma volta para arejar a cabeça, ela dobra a esquina, anda mais um
quarteirão, depois começa a voltar.
Está ensopada quando entra, e Thomas McNealy, o gerente, está à
sua espera. Ele é um babaca. Deve ter uns cinquenta e poucos anos, é
casado e tem um filho, e trabalha naquela livraria desde sempre. Ele é
o adulto enfezado, aquele que avisa que você está demitida ou que
levou uma advertência ou sei lá o quê. E além disso parece gostar
desse trabalho, como se tivesse ficado preso ali enquanto seus sonhos
boêmios da juventude viravam fumaça e se transformavam num
emprego das nove às cinco num sebo de merda e quisesse descontar
em alguém.
Onde você estava, pergunta ele.
Fui comprar um bagel, diz ela com cara de bunda.
E cadê o bagel?
Já comi.
Já comeu o bagel inteiro, diz ele. Alguém autorizou a sua saída?
Ela pensa em mentir, então confessa que não.
Maria, diz ele, fazendo questão de pronunciar o nome dela de
forma a deixar claro que se lembra de que esse nem sempre foi seu
nome, faz meses que você está chegando atrasada quase todo dia e
agora sai sem autorização. Por favor, vai bater seu ponto.
24

E é isso. Daria para fazer melodrama e dizer: e assim, num segundo,


Maria Gri ths fica sem teto e sem emprego em Nova York. A
realidade, porém, é que ela tem um monte de lugares nos quais pode
dormir, então seria uma apropriação chamá-la de sem-teto.
Tá, diz ela, show! Vou só pegar minhas coisas lá nos fundos e sair!
Toda feliz.
Alguém vai trazer suas coisas, diz McNealy.
Haha, sério que você não vai me deixar ir lá atrás pegar minha
bolsa?
Você não trabalha mais aqui, diz ele, desviando o olhar, já sem saco
para aquela conversa.
Uma pessoa nova ali traz sua bolsa. Devem ter visto Maria sair e já
haviam se preparado para isso. Estranho, mas que se dane. Mais uma
vez sua reação a surpreende: ela fica meio que animada. Ri na cara do
velho escroto, pega sua bolsa e volta a sair na chuva. Ela praticamente
derruba a aterrorizante dona do sebo que acabou de chegar de táxi, ou
de motorista ou sei lá. Bem a tempo de começar a trabalhar ao meio-
dia.
Ah, diz ela, encarando Maria com o mais completo desdém. A
mulher odeia todas as pessoas que trabalham para ela. Parece um
comentário petulante, mas, sério, seria difícil encontrar alguém na
livraria capaz de lembrar de algum dia ela ter dito alguma coisa
agradável. Ela com certeza não parece ligar para livros. Vai saber por
que continua envolvida com aquele sebo, a menos que isso seja tipo
um nível superior de apropriação capitalista e de capitalização do
trabalho feito pelas pessoas oprimidas, da mesma forma que gente
jovem se apropria da história do Brooklyn, da mesma forma que gente
jovem com seus Macbooks nos cafés do Lower East Side absorve e
apaga Keith Haring e os Ramones. E aquela mulher parece sempre
infeliz. Quando Maria tinha aparência de menino, ela se mostrava de
indiferente a cruel; aí, quando começou a ter uma aparência mais
queer, Maria virou um alvo. A dona da livraria mirava nela toda vez
que as duas estavam no campo de visão uma da outra: Você não tem
mais nada pra fazer?, perguntava, ou: Será que você poderia arrumar
aqueles livros que não precisam ser arrumados por nenhum motivo a
não ser eu querer te dizer o que fazer? Era quase como, tipo, uma
espécie de sadismo à la Mary Gaitskill, só que Maria não a via com
frequência suficiente para uma narrativa propriamente dita poder
existir. Além do mais, ela nunca usava os pronomes certos. Maria já foi
até a sala dela falar sobre isso, mas a coisa sempre acabava num
impasse esquisito. O que é melhor do que deixar passar, mas a
verdade é que aquela mulher é rica demais e importante demais para
precisar reconhecer seja lá de que maneira for alguém que trabalhe
para ela.
Maria grita: Uhul! Ah!
Você não deveria estar lá dentro trabalhando?, pergunta a dona para
Maria com uma voz arrastada, inteiramente incrédula.
Acabei de ser demitida, diz Maria. Ocorre-lhe que deveria
continuar, dizer para a mulher que pessoa horrível ela é e que todo
mundo ali a odeia — este é exatamente o momento que todo membro
do sindicato almeja, uma chance de dizer poucas e boas para aquela
mulher —, mas não é como se ela não soubesse que ninguém gosta
dela. Maria encara aqueles olhos mortos por um segundo além do que
seria confortável, então se esquiva dela e segue adiante.
A mulher mais velha não diz nada, apenas entra.
Maria na mesma hora começa a se arrepender de não ter dado uma
alfinetada, mas que se dane. Está na rua, debaixo de chuva, e tem a
tarde inteira para fazer o que quiser. A semana inteira, na real.
Torna a lhe ocorrer que ela está bastante animada por não ter mais
emprego, embora isso signifique não ter mais dinheiro até conseguir
arrumar outro, e não ter mais seguro saúde. Que se dane. Nunca mais
vai ter que voltar para aquele emprego que acha tão sem graça há tanto
tempo porque, definitivamente, absolutamente, Maria odeia sua vida
em Nova York.
Uau. Às vezes nosso monólogo interior nos surpreende.
Ela pensa em voltar para o apartamento que provavelmente ainda
divide com Steph, mas ver todas as coisas de Steph seria meio dureza
neste exato momento. Então pensa em ir ficar com Piranha, mas
provavelmente muito em breve ela vai começar a pedir bastante para
dormir na casa dela, então seria melhor não começar a ocupar espaço
lá desde já. Poderia ir assistir a um filme, mas de repente estar dura se
torna bem mais real do que duas horas antes, e dez dólares por uma
distração de duas horas parece um tanto irresponsável.
Tipo, muito irresponsável.
Decide ir ao Alt.Co ee. É um café meio grande na avenida A que
tem computadores e tal, mas também sofás, cafés caros e um clima
requintado. É mais cool do que o café perto da livraria. Tipo, numa
escala de gentrificação.
Como um derradeiro ato de rebeldia punk rock, ela volta a entrar
na livraria e pega um guarda-chuva no cesto. Ha! Deixa sua bicicleta
presa em frente à livraria, embaixo da marquise para mantê-la seca, e
caminha os seis longos quarteirões até a avenida A.
O dia está bem nublado. Que demais. Aquele é seu tipo preferido
de clima desde criança: ela adora entrar em algum lugar depois de ter
pegado chuva, quando você está meio molhada e com frio, mas
começa na mesma hora a se esquentar, e finalmente começa a sentir
exatamente o quão molhada está assim que começa a secar. E aí pode
olhar para fora e ver a chuva, observar as gotas escorrendo pelas
janelas, e ninguém pode realmente convidar você para ir brincar lá
fora.
Nova-iorquinos passam e a ignoram; táxis espalham a água das
poças para todo lado; ninguém espera o sinal abrir para atravessar a
rua; a chuva parece congelar nos galhos frágeis das árvores urbanas.
Talvez a chuva comece mesmo a congelar, deixando as calçadas
cobertas de gelo. Como é outono, isso poderia acontecer, mas é só o
começo do outono, então talvez não aconteça.
O guarda-chuva é imenso e tem um logo da Nike. Santo punk rock,
Batman, diz ela para si mesma enquanto fecha o guarda-chuva e entra
no café descolado. Lá tem um cesto de guarda-chuvas, e ela por um
segundo fica com medo de alguém roubar o seu, mas então ri de si
mesma. E daí se roubarem? Provavelmente seria bom para ela alguém
roubar seu guarda-chuva roubado e ela ter de voltar debaixo de chuva
para pegar a bicicleta. Ela pensa em como é bom um banho quente de
chuveiro quando se está encharcada de chuva fria.
GRDA CHVA, pensa.
Não trouxe nenhum livro e, na real, não sabe o que vai fazer
naquele café. Gastar dinheiro acessando a internet para olhar os
anúncios de emprego no Craigslist? Seu currículo de anos atrás deve
estar em algum lugar no seu e-mail; ela poderia atualizá-lo para incluir
seu último emprego, fingir que foi embora sem ser demitida, mentir e
dizer que tem uma amiga gerente que a considerava uma ótima
funcionária. Pode usar seu nome de verdade, não seu nome legal, e
simplesmente não surtar se alguém perguntar, simplesmente dizer na
entrevista que é trans. Se conseguir uma entrevista. Assim tudo vai
estar às claras no seu emprego novo, pelo menos com a gerência. No
seu emprego novo de assistente de alguém numa editora ou algo
assim. Quem sabe?
Ela compra um café coado de três dólares e mostra a carteira de
motorista para a barista. A moça nem sequer olha o documento, mas
ela tem cabelo de sapatão, então provavelmente não ligaria se visse o
M. Maria é direcionada para o terminal 23, mas depois de quinze
minutos olhando o Craigslist seus olhos começam a embaçar e ela
quase pega no sono sentada. Não está a fim de procurar emprego. Está
pensando: será que eu quero mesmo ficar em Nova York?
Na real, ela não precisa ficar.
Vai de novo até o balcão, diz à moça que acabou de usar o
computador e pega seu documento de volta. Cinco dólares por quinze
minutos. Ela leva seu café até um sofá, senta e pega o caderno na
bolsa.

15 DE OUTUBRO, PARTE 3.
Odeio Nova York, mas adoro a chuva de Nova York no outono.
Tipo a chuva de novembro? Só que estamos em outubro, e eu
acabei de ser demitida da droga da livraria. E nem falei umas
verdades para a megera da dona. Agora preciso resolver que porra
eu vou fazer: será que arrumo um emprego no Brooklyn, perto de
casa? Só que eu também vou ter que arrumar outra casa.
Estou exausta de tanto pensar em ser trans o tempo todo e
queria conseguir parar com isso. Caro diário, sabia que, se você
trabalhar para a prefeitura da cidade de São Francisco, a prefeitura
paga a sua cirurgia de redesignação? Talvez seja uma lenda urbana.
Talvez eu pesquise melhor.
Não me ocorreu sair e encher a cara depois de ser demitida, o
que é interessante. É quase como se eu enchesse a cara o tempo
inteiro quando namorava Steph e tinha um emprego de merda não
por eu ser uma alcoólatra consumada, mas porque beber era um
mecanismo de adaptação para lidar com o fato de estar infeliz.

Sua mão já está doendo. Que merda o fato de pertencer à geração


digital significar que a pessoa não consegue escrever tipo nada à mão.
Ela manda uma mensagem de texto para Piranha: Posso dormir aí
de novo? Meio que fui demitida.
Maria devolve o telefone para o bolso, mas na mesma hora ele toca.
É Piranha. Ela se levanta para sair porque pouco importa o que todo
mundo faz e pouco importa ter só três outras pessoas no café às duas
da tarde numa quarta-feira: é falta de educação falar no celular
enquanto tem gente tentando se concentrar.
Cara, diz Piranha.
Oi, diz Maria, talvez mais alegre do que está na realidade.
Vou trabalhar de noite, mas pega a chave comigo no trabalho e fica
lá em casa, toma um banho, sei lá.
Obrigada, diz Maria.
Mas, olha, não dá pra você ficar lá em casa o tempo todo, tá?
Pois é. Eu estava…
Piranha a interrompe: Eu sei que você sabe, mas, Maria, cara, fora
uma mensagem de vez em quando, eu só tenho notícias suas a cada
dois ou três meses, porque você passa o tempo todo ocupada com a
sua namorada, e agora de repente quer ficar comigo o dia inteiro
porque não precisa mais se preocupar com ela? Meio mancada isso.
Putz, pois é, eu…
Não, escuta, diz Piranha. Eu não vou deixar você na rua, ainda mais
porque você acabou de ser demitida. E quero que você me fale sobre
isso. Não estou superputa com você nem nada, só preciso que você
entenda que eu meio que fico sentida com o fato de você ter me
ignorado tanto, e agora, porque aconteceram uns lances e porque você
tá toda animada pra ficar comigo, de repente nós viramos melhores
amigas ou sei lá o quê.
Tá bom, diz Maria, talvez mais profundamente magoada do que em
qualquer outro momento nos últimos dias.
Estou com saudades, diz Piranha, e feliz que vou te ver de novo,
mas preciso que as coisas fiquem entendidas. Saio pra trabalhar às
nove, me encontra a essa hora, tá?
Tá, diz Maria, tá bom. Elas desligam.
Ela agora voltou à Terra e está se sentindo péssima. Talvez devesse
tomar uma cerveja.
Por acaso vendem duas cervejas pelo preço de uma a partir das
quatro no HiFi, a um quarteirão dali, só que Maria não espera até dar
quatro horas. Então, às quatro, ela toma sua terceira e quarta cervejas,
depois passa umas duas horas dormindo no bar. Vai saber por que a
bartender magra e bonita a deixa dormir lá. A maioria dos bares não
deixa. Talvez deixar uma transexual apagar no seu bar por uma ou
duas horas seja justamente o tipo de autenticidade de que um bar no
Lower East Side de Manhattan precisa agora que todo mundo se
mudou para o Brooklyn.
25

Maria acorda e tem uma ideia. Uma ideia bêbada e ruim, mas ela nem
para um tempo para pensar a respeito. Como Steph terminou com
Maria, talvez esteja com algum grau de boa vontade em relação a ela
no presente momento. Talvez ela deixe Maria pegar o carro
emprestado. Quando chegar no Brooklyn, ela já vai estar sóbria o
suficiente para dirigir, e a verdade é que Maria não quer ser um peso
para Piranha. Vai pedir o carro de Steph emprestado hoje à noite e sair
da cidade por alguns dias. É tipo uma jogada babaca, mas que se dane,
o sistema de transporte público de Nova York é o melhor do mundo, e
seria bom para Steph aproveitar esse fato por uns dias.
Pouco importa para onde ela vai. Para o norte do estado de Nova
York? Uma parada para descansar na Jersey Turnpike? O céu é o
limite. Talvez caracterizar seu novo estilo de vida como irresponsável
não seja exatamente correto, mas em vez disso ela deveria estar
justificando o fato de seguir todas as ideias idiotas que tem como uma
forma muito iluminada e muito budista de viver o momento.
Como ela meio que não está a fim de ter qualquer conversa com
Steph, nem de ver como cada uma está se sentindo ou algo assim,
Maria manda uma mensagem de texto: Posso pegar seu carro
emprestado hoje à noite?
Maria desperta um pouco mais. Deve ter umas dez pessoas no bar
agora, bem mais do que quando ela chegou.
Steph responde: Claro, a chave extra está na cozinha. Como você
está?
Maria entra no assunto do jeito mais raso possível: Tudo bem.
Desopilando um pouco. Sabe como é.
Steph não escreve mais nada.
O guarda-chuva continua no Alt.Co ee — ela já estava meio
dormindo quando cambaleou até o HiFi. Ninguém o roubou! Ela o
abre e anda as dezessete porras de avenidas ou sei lá quantas para
pegar a bicicleta, então desce as escadas do metrô com ela e volta para
Bushwick. Mais uma vez acha ruim ser obrigada pela chuva a pagar
dois dólares para andar de metrô: o principal motivo pelo qual Maria
começou a pedalar foi porque o metrô custa caro.
No trem da linha L, ela encontra um lugar vazio, senta com a
bicicleta ao seu lado e sente nas costas, nos ombros, no pescoço e até
naqueles musculozinhos esquisitos na parte de trás da cabeça que são
incompreensivelmente interligados com seu maxilar ou algo assim: ela
vem adiando a exaustão por causa das boas coisas ruins que têm
acontecido, mas, na real, tudo o que quer é um lugar para descansar,
para simplesmente apagar por algumas horas. Seu apartamento não é
esse lugar; Steph deve estar lá agora, talvez não. Se ela for para a casa
de Piranha, talvez não consiga relaxar antes de começarem a conversar
sobre a amiga relapsa que tem sido, embora Maria conheça Piranha
bem o suficiente para saber que ela já disse o que queria e é isso, elas
não precisam falar mais no assunto a menos que Maria queira. Só que
Piranha tem que trabalhar à noite. Às nove, ou seja, só vai voltar para
casa quando o sol nascer. Se Maria pegar o carro, o estrogênio, o
suporte da bicicleta e talvez algumas roupas para sair da cidade numa
viagenzinha, pode perfeitamente ir dormir algumas horas na casa de
Piranha. Eu tenho alternativas, é o que está pensando quando pega no
sono dentro do metrô.
Por nunca ter um sono realmente profundo, estar sempre cansada
e morar em Nova York há muito tempo, Maria tem um sexto sentido
nova-iorquino em relação às paradas do metrô. Ela acorda quando o
trem está desacelerando para parar na sua estação, sentindo-se até que
descansada.
Lá fora não está mais chovendo de verdade. Ou, para ser mais
precisa, está só meio que chuviscando. É mais uma bruma, tipo a
É
névoa que rodeava os postes na noite anterior. É lindo. Vou sentir
saudades, Brooklyn, pensa ela, permitindo-se compreender que está
de fato indo embora, tipo indo embora mesmo.
Permitindo-se compreender é uma forma interessante de formular
a questão: ela meio que já está enganando a si mesma outra vez.
Automaticamente. Se eu algum dia quiser não ser mais fodida da
cabeça, ela pensa, preciso ser sincera e aberta comigo mesma. Sendo
assim: vou subir e mentir para Steph, dizer que quero pegar o carro
dela emprestado hoje à noite, quando na verdade vou ficar com o
carro por alguns dias, talvez uma semana. Aí vou de carro até o
trabalho de Piranha, pegar a chave da casa dela e dormir lá por
algumas horas. E, além disso, Maria entende quando tenta sondar o
que está escondendo de si mesma: conseguir o contato da pessoa de
quem ela conseguiu a heroína. Eu gosto de heroína, gosto e sinto falta,
e não vou me picar, então vou arrumar um pouco e levar comigo
quando sair da cidade, me enfiar num hotel por um tempo e me
detonar. Não quero morrer nem nada, mas preciso romper de verdade
com a vida que levei nos últimos quatro, seis, vinte e nove anos. Isso
com certeza.
Além do mais, o que poderia ser mais irresponsável do que um
pequeno ritual de renascimento regado a uma farrinha de heroína?
Ela prende a corrente da bicicleta na grade da frente da entrada do
pequeno prédio. Não precisa subir com a bicicleta pela escada estreita
porque vai levá-la consigo na traseira do carro. A noite anterior foi
provavelmente a última vez que ela subiu aquela escada carregando a
bicicleta.
Steph não está em casa. Maria olha em volta, mais uma vez de um
jeito meio melodramático, tipo: é a última vez. Como Steph não está,
ela poderia se demorar um pouco juntando algumas coisas para levar,
mas o que poderia levar… o computador? O gato? Enfia umas
calcinhas, um segundo sutiã, giletes, creme de barbear e suas coisas
de injetar (merda) dentro de uma bolsa de lona gigante, pega a chave
do carro na bancada e sai. Não precisa levar comida nem nada porque,
tá.
Mais sinceridade? Seu fundo para a cirurgia de redesignação não é
suficiente para uma cirurgia de redesignação. Tipo, dezenas de
milhares de dólares não são suficientes. E ela vai precisar viver com
esse dinheiro até arrumar outro emprego, o que significa, depois de
um tempo, recomeçar a juntar do zero. Então melhor aproveitar
enquanto estiver gastando. Com heroína. E com gasolina, quem sabe,
talvez até para sair da Costa Leste. Talvez dirigindo o mais longe
possível de Nova York.
O Bouncing Souls tem uma música chamada “Lean on Sheena”,
que fala sobre uma garota que larga o namorado abusivo e sobre como
ninguém nunca mais vai voltar a vê-la porque ela vai embora mesmo.
Maria se sente igual a Sheena. Sua vida inteira é o namorado abusivo,
ela finalmente está indo embora, e todo mundo está torcendo por ela.
26

Steph está no bar um pouco mais adiante na rua, um buraquinho na


parede sem o menor charme, tão descolado ou tão não descolado que
por dentro chega a ser meio tedioso: o balcão ocupa todo o
comprimento estreito do único recinto, um rock óbvio toca no
jukebox, as paredes são cobertas por cartazes de cerveja batidos e
obras de artistas locais ruins. Ela está bebendo um uísque escocês da
prateleira mais cara porque é dureza terminar com a namorada,
mesmo sabendo que a relação acabou. E é a primeira vez na vida que
ela pode pagar por aquele uísque, mesmo tendo meia garrafa de vinho
em casa.
Ela pegou um dos livros velhos de Maria numa das prateleiras que
cobrem as paredes do apartamento porque percebeu, logo depois de
Maria escrever, que mais cedo ou mais tarde não teria mais acesso a
todos os livros dela. Está tentando se concentrar no texto, mas não
consegue manter o foco. A história é sobre uma menina em Nova York
que é uma cavaleira e tem amizade com um cachorro ou algo assim.
Uma coisa estranha. Ela sente que poderia abrir em qualquer página e
começar a ler. O livro não tem uma trama.
Talvez fosse uma boa ideia mandar uma mensagem para Kieran e
pedir para ele a encontrar ali, mas, na real, essa é obviamente uma
ideia bem idiota. Só que ela não sabe quem mais poderia procurar. Ela
e Maria construíram juntas uma vida meio hermética, e não dá para
simplesmente ligar para as pessoas que você dispensou por causa de
um namoro e esperar que elas venham correndo. Ou dá? Talvez seja
isso que os amigos fazem: dão a real sobre você não ligar para eles há
dois anos, depois pagam um shot e te abraçam enquanto você passa a
noite inteira chorando e falando palavrão. Ela provavelmente nunca
teve amizades assim. Mas agora tem colegas que até que são legais, e
talvez devesse ligar para Karen, para Sonya ou sei lá, só que esse
parece um jeito ruim de começar uma amizade. Ou vai ver é um jeito
bom? A esta altura, quem sabe? Quem consegue saber a diferença? A
pessoa perde a visão do todo quando some numa relação. Ela precisa
se lembrar dessas merdas dali em diante.
O principal, com certeza, é que Maria ter pedido o carro
emprestado por uma noite vai virar pedir o carro emprestado por tipo
uma semana, para ir viver algum tipo de aventura estranha e épica que
na verdade não faz sentido para ninguém a não ser ela mesma. No fim
de tudo, Maria vai ter a sensação de ter realmente chegado a algum
lugar e de que tudo está diferente, como se tivesse entendido as suas
questões. Só que nada vai mudar. Alguma versão disso aconteceu em
todos os outonos nos últimos três anos, e Maria, é claro, não tem a
menor ideia de que é um padrão.
Mas dessa vez elas se separaram, e essa parte não vai mudar. É
evidente que nem uma nem outra está crescendo mais naquela
relação; na verdade isso já estava bem óbvio há um tempão, e foi por
esse motivo que Steph resolveu começar a ter uma carreira, uma vida
— um guarda-roupa que lhe agrada, em vez de um guarda-roupa que
fosse uma arma. Maria não segurou a barra. Ela fala muito em punk
rock isso, punk rock aquilo, mas nunca fez parte de uma banda, nunca
colecionou vinis, nunca foi a uma manifestação, nunca fez uma
porcaria de um corte de cabelo. Sua ética punk rock, entre aspas, é um
resquício vago e privilegiado da postura de cara branco hétero
outsider que ela adotou na primeira fase da vida e nunca foi
confrontada nem submetida a nenhum tipo de teste.
O mesmo vale para sua sexualidade. Embora fosse óbvio há anos
que seus orgasmos eram fingidos, nunca foi óbvio como fazê-la parar
com isso, ceder e ficar vulnerável e presente para o sexo no aqui e
agora. Parte disso, claro, é que quando você é uma mulher cis, você
não pode simplesmente exigir que a sua parceira trans se sinta à
vontade com o próprio corpo, com a própria e frustrante anatomia.
Mas outra parte é que, depois que a sua parceira passa um tempo
fingindo gozar, você para de ligar. Por um minuto você pensa: talvez
eu também devesse começar a fingir que estou gozando, mas isso já
seria deprimente por si só porque significaria que você só conseguiria
gozar sozinha. Mas, na real, usar sua parceira basicamente como um
brinquedo sexual para gozar, deixar de lado a descrença e se
convencer de que ela sente tesão por você, de que está curtindo, é
ainda mais solitário do que não gozar nunca.
Então o que fazer?
Vai saber em que Maria sente tesão, que tipo de fetiche ela tem.
Provavelmente a própria Maria não sabe. Por mais que Steph tenha
deixado claro que nenhum fetiche poderia ser vergonhoso demais
para ser confessado, ainda que fosse um lance assustador que você
nunca faria na vida real, Maria nunca revelava nada. É difícil, porque
Steph já entendeu há muito tempo que fetiches não são coisas
arbitrárias que o cérebro inventa. Não são coincidências da infância
que você fetichiza. Ou até poderiam ser. Mas fetiches são setas que
apontam direções. Se você tem tesão em ser chicoteada, isso
provavelmente diz algo sobre a sua relação com a culpa e a punição, ou
com a dor, ou sei lá o quê. Se quer que alguém bata em você e a chame
de menininha burra, isso provavelmente diz algo sobre a sua relação
com o fato de algum dia ter sido uma menininha e se sentido burra. É
sempre complicado e emocionalmente volátil, mas também não há
motivo algum para se envergonhar. Maria diz que é pervertida e tal,
mas Steph não conseguiu arrancar muitos detalhes dela desde que as
duas começaram a namorar. Só coisas do tipo ser dominada, ou
praticar bondage, pistas vagas e sucintas desse tipo. Vai ver ela curte
caras, vai ver só consegue gozar literalmente sendo morta. Vai saber.
Steph foi afastada dessa questão há tanto tempo que com certeza não é
hoje que vai descobrir.
É esse o problema com ela, claro. Agarrar-se a um relacionamento e
tentar fazer dar certo. Como aconteceu com Rae, com Leah, com LL.
É
É a quarta relação seguida na qual ela se toca e percebe que vem
mentindo e fingindo há três meses, seis meses, dois anos e meio. Na
próxima não vai ter essa, Steph promete a si mesma. Nada de cuidar.
Nenhum autossacrifício. Na próxima, ela vai namorar alguém que
esteja com as paranoias totalmente em dia, que seja capaz de
comunicar com clareza onde está e do que precisa.
Steph pensa: eu preciso reler A ética do amor livre e passar cinco
anos sem namorar ninguém.
Tipo, é claro que transicionar é difícil e ser trans é difícil, difícil de
formas que Steph jamais será capaz de entender. Talvez ser trans
signifique apenas que Maria não consegue gozar. Mas essa
autoproteção em relação ao sexo se estende a literalmente todas as
outras áreas da vida dela: Maria só olha o saldo da conta quando o
caixa eletrônico não a deixa mais sacar; passa meses obcecada com a
possibilidade de seu colchão estar com piolhos antes de levantá-lo e
procurar as lêndeas. Está trabalhando há mais de meia década no
mesmo emprego que odeia porque tem medo de procurar outro.
Às vezes parece que ser trans é a única coisa ruim que de fato
aconteceu com Maria. Como se ela tivesse um casco de tartaruga para
impedir que qualquer coisa ruim aconteça com ela e esse casco a
impedisse de se mover. Provavelmente o que Maria mais precisa é que
alguma coisa bem ruim aconteça com ela, sem chegar a ser uma
catástrofe. Talvez o fim do namoro possa ser essa coisa, mas
provavelmente não. Pelo visto Maria já está transformando o término
em uma oportunidade para criar uma mitologia pessoal, em vez de
aprender ou crescer ou o que seja. E Maria vai falar sobre isso quando
conhecer sua próxima namorada: foi isso o que eu descobri sobre mim
mesma, olha como sou emocionalmente honesta, olha como sou
vulnerável. Com bastante palavrão. Maria vai ser engraçada, gentil,
gata e tudo aquilo que faz você se apaixonar por ela, e quem sabe a
nova namorada vá sacar a real na hora em que ela começar a se retrair
para dentro de si mesma e a desaparecer, na hora em que ela começar
a fingir. A próxima namorada vai ser bem clara: ou você fica presente
ou cai fora.
Maria, é claro, vai cair fora.
Mas enfim, sei lá, é fácil e óbvio ficar sentada desejando que algo de
ruim aconteça com a menina com quem você acabou de terminar.
Uma pergunta mais produtiva provavelmente seria: bom, Steph, e
você, o que você vai fazer agora? Você não tem nada engatilhado,
nenhum desejo de entrar numa relação agora, nenhum objetivo e um
apartamento que de repente ficou duas vezes mais caro que ontem,
porque não há dúvida de que Maria vai querer sair do apartamento,
nem que seja pelo fato de com certeza não ter como bancar o aluguel
sozinha. Ainda faltam cinco meses para o fim do contrato, e pela
primeira vez na vida Steph provavelmente poderia se dar ao luxo de
morar sozinha num apartamento no Brooklyn.
Ela visualiza a palavra SOZINHA em neon por trás das pálpebras
quando pisca os olhos, e depois disso não consegue mais se livrar dela.
Mas não vai chorar. Pede outro Laphroaig. Do outro lado da janela na
fachada do bar, é difícil dizer se está chovendo ou é só uma névoa, e
Steph tem certeza de que a idiota da namorada dela, a idiota da sua ex-
namorada, está ficando encharcada e achando isso solitário e
romântico.
27

A garoa já voltou a virar chuva de verdade na hora em que Maria está


prendendo a bicicleta no suporte do porta-malas do carro. Ela fica
ensopada. Sua jaqueta jeans já estava ensopada, mas ela não tem uma
jaqueta mais grossa. Ninguém precisa de uma jaqueta mais grossa se
usar várias camadas: regata, camisa de gola, moletom de capuz,
jaqueta, cachecol. É claro que estão todas ensopadas. Ela consegue
prender e travar a bicicleta, e tenta resolver se deveria pôr sacos
plásticos, uma lona, um cobertor ou algo assim por cima, mas que se
dane. Não importa. É uma bike durona, ela aguenta um pouco de
chuva.
O carro de Steph é um Civic verde de uns doze anos.
Relativamente chique. Limpo. Tem toca-CD, rádio, um cobertor, um
cantil com água. Elas às vezes faziam viagens de carro. Já tem um
tempo que não fazem.
Maria prende o cinto de segurança, solta o freio de mão e se toca:
cara, pura que pariu, como é mesmo que eu chego no bairro da
Piranha?
Uma vez Steph comentou que Maria tendia a não ser muito
performática, e que, quando performava, era quase sempre para si
mesma e para mais ninguém. Ela pensa nisso enquanto finge apertar
os botões de um GPS imaginário no painel do carro. Isto é uma
questão: você cresce lendo sobre punk rock, grunge e rock sincerão
nas revistas e internalizando a ideia de que o artifício não serve para
nada, cara, e a gente usa essas roupas porque são confortáveis, não
para fazer nenhum tipo de afirmação de moda, e estamos só tentando
nos comunicar, não ser cool, e aí você transiciona e saca que, ai, putz,
vou precisar botar alguma intenção na forma como apresento o meu
corpo e as minhas ações. Vou ter de romper os padrões de roupa, de
voz e de cabelo que mantive a vida inteira se quiser ser lida do modo
como quero ser. Tipo, seria legal acreditar que se pode simplesmente
existir, simplesmente ser uma pessoa verdadeira, sincera e essencial.
Mas você na verdade só tem o direito de ser uma pessoa verdadeira,
sincera e essencial se for um cara branco e hétero sem nenhuma
incapacitação física. Do contrário, seu corpo tem um monte de
conotações e você não tem direito ao benefício da dúvida.
É como aquela história budista do mestre zen que diz: Me mostre o
seu verdadeiro rosto, e o discípulo responde: Claro, aqui está! E o
mestre zen diz: Não, me mostre o seu verdadeiro rosto, e o discípulo
diz: É sério, estou mostrando, este é o meu verdadeiro rosto, e o
mestre zen então diz: Saia da porra da minha casa, você não está me
mostrando o seu verdadeiro rosto, e aí o discípulo: AAAH EU ESTOU
MOSTRANDO MEU VERDADEIRO ROSTO DE QUE VERDADEIRO ROSTO VOCÊ
ESTÁ FALANDO ALIÁS NINGUÉM TEM UM ROSTO VERDADEIRO, e tenta dar
um soco no mestre zen, e o mestre zen se esquiva com toda facilidade,
torna a se sentar e diz: Ah, pronto, aí está, não precisa mais sair da
minha casa.
Provavelmente há mais coisa nessa história que ela leu, mas o que
Maria guardou foi: o rosto frustrado e com raiva é o verdadeiro rosto.
Então ela está dirigindo até o trabalho da amiga, para colar na casa
dela com tipo uma autorização parcial, num carro parcialmente
roubado, e além disso com planos de comprar um monte de heroína e
sair da cidade. É bom pensar nisso; pensar nisso a faz rir alto. Ela tem
dois CDs ali no carro. Um é do Fugazi. Ela liga o som. Tem dezesseis
anos, mas agora é do sexo certo, e a sensação é no geral libertadora e
empolgante, mas também um pouco triste. Não tem como não sentir
tristeza pela pequena Maria de dezesseis anos, toda grilada, confusa,
que não entendia nada do que estava acontecendo dentro da sua
cabeça. Não só tristeza, mas tipo uma gigantesca empatia: eu sei como
você está se sentindo, garota, mas, juro por deus, sua vida vai ficar
melhor do que você consegue imaginar agora.
Quarenta segundos depois de ficar toda animada, ela está com os
olhos um pouco marejados. Enquanto começa a chorar, Ian MacKaye
se esgoela e guitarras arranham nas caixas de som. Maria está
apaixonada pela própria vida, pelas próprias más intenções, e meio
que empolgada por ter ido embora e mais do que tudo animada para
enfiar uma agulha no próprio corpo. Não vai esquecer de tomar a
injeção quando chegar na casa de Piranha, vai se forçar a lembrar para
que suas sensações possam voltar ao normal, seus peitos possam parar
de doer, seus pensamentos possam clarear.
Ela acaba encontrando o caminho para a casa de Piranha. Mantém-
se próxima à via expressa Brooklyn-Queens sem chegar a pegá-la,
porque aquilo ali é uma morte horrível. Também prefere atravessar os
bairros, esperar nos sinais, olhar as coisas e ouvir música do que
chegar rápido ao seu destino. Enfim. Primeiro vem Bushwick, depois
ela meio que entra em Williamsburg, depois Bed-Stuy, depois do
outro lado de Bed-Stuy fica tipo Park Slope, onde moram as lésbicas
ricas e os casais brancos com bebezinhos que usam suéteres de
quarenta dólares, e depois vem… vai saber, Cobble Hill talvez? Algum
outro bairro, e depois mais algum outro bairro, os prédios começam a
ficar mais baixos e mais espaçados, e ela então chega no bairro de
Piranha.
A área a faz pensar em Gadolândia, Pensilvânia, de um jeito surreal.
Tipo, ali naturalmente não é quase tudo mato, fazendas e rodovias
esparsas, mas tem um restaurante imponente onde pessoas mais
velhas tomam café da manhã vinte e quatro horas por dia, e gente
usando roupas impecáveis da Gap ou da Aéropostale ou sei lá, da loja
da Nike, e outros tipos de loja que só tem no shopping, e carros que
parecem meio novos, mas que não são muito novos, e lojas de 1,99
iluminadas por lâmpadas fluorescentes. Enfim. Só parece um lugar
menos urbano do que o resto da cidade. E tudo bem, só é meio
esquisito. No Brooklyn também tem praia. O Brooklyn é uma cidade
em si, imensa e variada, que passou a fazer parte de Nova York no
Grande Erro de 1898; Maria aprendeu um monte de coisas sobre o
Brooklyn quando chegou lá, porque o Brooklyn não era Gadolândia e
foi amor à primeira vista.
Piranha trabalha de caixa em uma farmácia. Ela gosta, poque não
precisa ser responsável por muita coisa, ganha o suficiente para o
aluguel e a comida, e não precisa sair do bairro. Uma vez disse a Maria
que se o emprego não a fizesse interagir com pessoas que não
conhecia, ela nunca falaria com ninguém. A farmácia fica num prédio
independente, com estacionamento próprio, numa rua comprida e
larga de prédios baixos e estacionamentos.
Maria para o carro na rua bem em frente à loja e entra. O coração
acelera por um segundo por causa das muitas vezes que foi a farmácias
no início da transição para tentar comprar maquiagem escondida, sem
ninguém saber, convencida de que todo mundo encarava a pessoa
trans, sabendo que ela era trans, que todo mundo a julgava e estalava
os dedos, prestes a espancá-la. Mas ninguém olha para ela. Piranha é a
única caixa atrás do balcão e a fila está grande, então Maria vai fazer
hora dando uma olhada pela loja.
Sabe aqueles bonequinhos Precious Moments de porcelana, umas
criancinhas com olhos gigantes entregando umas para as outras um
coração escrito AMOR, ou então rolando no chão com um filhote de
cachorro? Maria dá de cara com um corredor inteiro deles. Lágrimas
começam a brotar de seus olhos outra vez, algo nem um pouco durão
e nem um pouco punk, mas que não dá pra esconder. Tipo: aqueles
bonecos são representações de uma inocência infantil idealizada,
certo? Da ideia de que as criancinhas têm potencial para a tristeza
naqueles olhos gigantes, mas que, na real, elas só conhecem as
emoções mais puras: amor, felicidade, sei lá mais o quê. É total cafona,
idiota e obviamente uma construção. Criancinhas de verdade são tão
sujas, impuras e complicadas quanto os adultos que serão quando
crescerem. Mas esse tipo de coisa a deixa total melodramática e
emocionada especificamente porque ela foi muito convencida de ser
errada quando pequena. Não sabia que era trans, não era capaz de
articular em palavras o fato de ser uma menininha, mas sabia que
havia alguma coisa terrivelmente errada e culpava a si mesma por
causa disso. As outras crianças podiam correr para lá e para cá, trocar
socos e dormir à noite, mas ela era uma pobre coisinha toda grilada e
tímida, que gostava muito de livros porque às vezes as pessoas nos
livros pareciam tão perplexas com o mundo e consigo mesmas quanto
ela. Nunca foi uma criancinha capaz de ganhar um filhote de cachorro
e ficar feliz. Se alguém lhe desse um filhote, ela teria imediatamente
começado a se preocupar: e se eu não o treinar direito, e se ele fugir?
Já teria ficado triste porque ele iria morrer.
Ela passa alguns segundos olhando os bonequinhos de porcelana.
Na sua cidade as mães das crianças guardavam esses bonecos em
cristaleiras na sala, de modo que eles são também uma lembrança
meio triste da cultura cristã na qual ela foi criada e que rejeitou. Ela se
obriga a parar de pensar isso. Enxuga as lágrimas, uma de cada lado, e
vai ver se ainda tem fila no caixa de Piranha. Tem. Ela está registrando
as compras de uma cliente, mas vê os olhos inchados de Maria e diz:
Maria, você não está permitida no corredor dos Precious Moments.
Então joga as chaves para ela. Vai saber por que Piranha tem tantas
chaves naquele chaveiro: o controle da garagem, uma coisa peluda,
outra coisa de borracha cheia de espinhos. Parece mais um grande nó
de coisas do que um chaveiro.
Você vai fazer uma pausa por agora? pergunta Maria.
Não, responde ela, só daqui a algumas horas. Tá tudo bem?
Sim. Acho que eu vou sair da cidade por alguns dias.
Você precisa comprar um iPhone, diz Piranha enquanto registra
uma caixa de lenços de papel. Manter seu fã clube da internet
atualizado.
Foda-se o meu fã clube da internet, diz Maria. O problema é
justamente tipo, sentir que eu devo a essas pessoas alguma porra de…
Piranha revira os olhos enfaticamente na direção da mulher que
está atendendo. Certo: ela está trabalhando.
Desculpa, diz Maria. Mas me ouve. Eu estava só pensando. Lembra
aquilo do Craigslist sobre o que a gente conversou ontem?
Os olhos de Piranha se arregalam por um segundo e voltam ao
normal em seguida.
Quarenta e nove e noventa, diz ela para a mulher que está
atendendo, e então, para Maria: Sei, o que tem?
Eu estava pensando se você poderia me passar o número, diz ela.
É um e-mail, responde Piranha. Ela passa o cartão da cliente na
leitora, então rabisca um endereço de e-mail num pedaço de nota
fiscal. O endereço termina em 420.
Tá, obrigada, diz Maria. Vejo você de manhã?
Claro, diz Piranha, já chamando a próxima pessoa da fila. Maria
tinha esquecido que elas meio que tinham brigado.
28

Na casa de Piranha, ela manda um e-mail para o sujeito. Escrever um


e-mail pedindo drogas é complicado, porque você não quer falar que
está tentando comprar um monte de drogas, entende, mas também
não quer usar uma porção de termos bobos e vagos: Oi, eu queria um
pouco da Parada que minha amiga comprou de você, posso passar aí?
Depois de estacionar em frente ao prédio de Piranha, jogar a bolsa e o
casaco no chão da cozinha e pensar um pouco, porém, é mais ou
menos esse o e-mail que Maria manda. Fica com medo de o cara não
responder naquele mesmo dia, o que meio que arruinaria seus planos
de ir embora de vez de manhã, mas ele responde imediatamente ao e-
mail dela.
Como vou saber que você não é cana, escreve ele.
Ela responde: Não sei. Eu não sou cana. Sou uma garota triste que
vai embora de Nova York pra sempre e quer levar um pouco de. Ahn.
De parada.
Quanto, ele responde. Maria e o cara estão basicamente trocando
mensagens instantâneas por e-mail como faziam nossos antepassados,
mas talvez um comportamento estranho em traficantes seja meio
previsível. Já faz um tempo que ela não fala com um. Talvez agora seja
assim.
Sei lá, escreve ela. Tipo quatrocentos dólares?
Passa aqui amanhã de manhã. A gente ainda vai estar acordado.
Ele manda o endereço, que fica em Williamsburg. Provavelmente é
algum universitário branco que nasceu em berço de ouro e se acha
intocável. Maria não pensou em perguntar a Piranha como ele era.
Show, ela escreve de volta. Programa o alarme do celular para
acordá-la um pouco antes de Piranha chegar em casa, só percebendo
bem mais tarde que evitar Piranha é condizente com a crise social e
emocional pela qual ela vem passando, e se recosta, animada por ainda
não serem nem dez horas e com o fato de que vai dormir. Põe um
filme sobre um monstro que mora num rio e de vez em quando surta e
tipo ataca, matando ou raptando pessoas. É um monstro bem legal. Ela
não chega ao fim, mas tudo bem: ela já viu aquele filme antes.
29

Acorda com o alarme de manhã com um único pensamento gigante na


cabeça: não tomei minha injeção ontem. Cogita sair do apartamento,
quem sabe tomar a injeção de estrogênio no banheiro do traficante de
heroína, quem sabe tomá-la dentro do carro numa área de descanso
em Nova Jersey. Então conclui que não, isso não é a
irresponsabilidade empolgante que ela tinha em mente na véspera.
Não tomar a injeção é como fechar a porta do carro nos próprios
dedos várias vezes, ou se obrigar todo dia de manhã a afogar um
filhote de gato ou algo assim. Totalmente improdutivo.
Ela guarda suas coisas de injeção na caixa de papelão na qual as
recebe. Na real, com receita, dá para conseguir bem barato; tirando as
cirurgias que ela não tem dinheiro para fazer, ser trans é mais ou
menos viável financeiramente. Talvez custe uns cinquenta dólares por
mês, incluindo os bloqueadores de testosterona que ela toma duas
vezes ao dia e o estrogênio que ela se injeta de quinze em quinze dias.
Em teoria.
Ela põe sua água de barbear para ferver e se senta na cama de
Piranha. Limpa o frasco com um lencinho, aspira o estrogênio para
dentro da seringa com uma agulha 1,20, dá petelecos para retirar as
bolhas, troca a agulha 1,20 por uma 0,60. Então limpa uma área da
coxa com outro lencinho, torna a limpar, pega a agulha e passa um
minuto inteiro respirando pesado.
É muito, muito difícil se injetar com uma agulha. Ela detesta isso e
nunca vai se acostumar. Aquele exato instante é o motivo pelo qual ela
está tão atrasada para tomar sua injeção. A empolgação do início da
transição já diminuiu, e aquilo agora é só uma coisa chata que ela
precisa fazer em si mesma de vez em quando. Imagina Piranha
entrando em casa depois do trabalho, depois de ter dado a Maria o
endereço de e-mail do seu dealer de heroína, e vendo Maria tomar
uma injeção na cama dela. Ela saberia que é estrogênio, nem que fosse
pelo fato de Maria estar se injetando num músculo e não numa veia,
mas mesmo assim diria algo sarcástico, cruel e hilário. Ela então crava
a agulha dois centímetros e meio na carne da coxa, pressiona o
êmbolo e se injeta. Nem dói na real.
A água ferve. Ela faz a barba, se maquia e tira da bolsa uma calça
jeans, não por não querer mais usar saia, mas só porque se sente mais
durona de calça jeans e em breve ela vai cair na estrada.
A compra da droga em Williamsburg corre totalmente sem
incidentes. O cara mora bem ao lado da porra da Bedford Avenue,
num edifício imenso e chique de lo s retrofitados onde o aluguel deve
estar custando uns mil e quinhentos dólares a mais do que quinze
anos antes. Ele tem costeletas e está usando uma camiseta rasgada
bem estilosa, conta quarenta papelotes, pega os quatrocentos dólares e
é isso. Maria e ele até se agradecem.
Seu quadril reclama quando ela entra no carro, e Maria se dá conta
de que nem sequer olhou para o belo hematoma que a portada deve
ter rendido.
Enfia a droga dentro de uma meia, enfia essa meia dentro de outra,
enfia as duas no fundo da mala e a mala no bagageiro do carro. Então
manda uma mensagem para Steph: Por favor não me mata, mas posso
ficar com seu carro uns dias? Fico te devendo pra sempre.
Steph responde: Tá.
Maria tomou sua injeção e pegou sua droga. Vai de carro até
Manhattan dirigindo pela ponte que passou seis anos atravessando de
bicicleta. Aumenta o volume do mesmo CD do Fugazi que escuta
desde os dezesseis anos e segue até o Holland Tunnel. A placa diz
HOLLAND TUNNEL: MANTENHA-SE NA FAIXA.
Que se foda tudo isso, pensa ela. Que se foda essa cidade. Que se
foda a Costa Leste. E se eu fosse, sei lá, pra Califórnia?
Parte II

Fim de novembro
1

Star City, Nevada, é uma merda. James foi criado na pior cidade do
mundo, continua morando lá e provavelmente vai morrer lá. Que
saco. No fim do século XIX a cidade era bem agitada, cheia de caubóis
fortões e damas da noite e sei lá mais o quê, mas depois todo mundo
se tocou que ali não tinha ouro nenhum e foi embora para a Califórnia.
Aí durante cem anos nada aconteceu, e o lugar foi só um riachinho de
merda escorrendo entre duas montanhazinhas de merda até algum
momento por volta de quando ele nasceu, em meados dos anos 1990,
quando o conglomerado Wal-Mart viu uma oportunidade de infiltrar
sua marca, explodiu um rombo no flanco de uma das montanhas e
construiu uma pontezinha no meio do estacionamento para o riacho
poder correr por baixo dela e diferenciar o Wal-Mart de Star City de
qualquer outro Wal-Mart do país que não tenha uma porra de um
riachozinho idiota passando no meio da porra do estacionamento.
Na real, ele até que gosta do riacho.
Assim que o Wal-Mart de Star City abriu, as pessoas que
trabalhavam no Wal-Mart precisavam ter onde morar, então foram
construídos vários condomínios xexelentos margeando o riacho, e
depois de todos os terrenos das margens terem sido ocupados
começaram a asfaltar as ruas mais afastadas do riacho até construírem
praticamente uma porra de uma cidade. Quase uma cidade média.
Com certeza não uma cidade grande.
Tem um posto de parada de caminhões perto da rota 80, e uma ou
duas lojas que não são Wal-Marts (uma floriculturazinha xexelenta,
uma espécie de grande oficina xexelenta), mas em grande medida,
uma vez que o Wal-Mart no fim das contas vende tudo o que todas as
outras lojinhas xexelentas venderiam, a cidade é tipo uma montanha
com um Wal-Mart em cima. Aí tem uma porção de prédios idiotas no
morro espalhado em volta. Aí mais umas casas lá para os lados onde o
terreno fica plano. Tem uma estrada íngreme que desce o morro
direto, e outra menos íngreme que dá a volta inteira e faz o caminho
mais longo para descer, e no ano passado abriram uma GameStop, um
Subway e seis lojas vazias num centro comercial entre a autoestrada e
o Wal-Mart, mas lá praticamente só tem sujeira, e poeira, e nada, e
visuais majestosos chatões, e adolescentes babacas entediados, e
estrelas. O nome da cidadezinha xexelenta soa como se tipo
celebridades fossem querer passar as férias ali, tipo num seriado
policial bobo dos anos 1970 ou no cenário bidimensional de um filme
velho em preto e branco, mas na verdade o único motivo pelo qual a
cidade se chama Star City, “cidade estrela”, é porque à noite tem uma
porrada de estrelas no céu.
Contanto que você fique de costas para o Wal-Mart.
2

Esse é o contexto geral. Isso é Star City vista de cima, o plano de


ambientação, o modo como ela aparece para quem está de fora… não
que James tenha como saber isso. O mais longe que ele já foi de Star
City foi Reno, tipo umas quatro vezes. Para quem é de Reno, Star City
deve parecer um monte de entulho e um grande nada ao lado de uma
montanha. Mas se você cresceu lá deve ter sido porque sua família se
mudou para a cidade para trabalhar no Wal-Mart novo, porque não
tinha uma porra de um emprego em lugar nenhum de Nevada nos
anos 1990. Tipo isso? A não ser que você quisesse ser crupiê em Reno.
Mas nem o pai nem a mãe de James queriam trabalhar num cassino.
Que se dane. Quem se importa com isso? James cresceu ali e é uma
merda. Star City que se foda.
O contexto específico, o plano fechado, o close, é que James está
doidaço, reclinado na banheira de plástico vagabundo com o rejunte
preto ou sei lá que porra, aquele treco mofado que sela a banheira no
piso e na parede. Está fazendo uma sauna de maconha no banheiro do
apartamento onde mora, no meio da descida do Wal-Mart. No
presente momento está doidão demais para dizer se a água está
quente ou fria; deve estar morna. Vai saber. Ele se senta, se olha no
espelho e não consegue ver nada por causa da fumaça e também
porque o espelho está todo embaçado por causa da água antes quente
do banho, quanto tempo antes é impossível saber. Está pensando o
quanto odeia Star City e por que a cidade produz uns coitados tão
lamentáveis e inúteis: em primeiro lugar James, em segundo lugar
Nicole. Mas James, sobretudo, está só doidão e viajando mesmo.
Não para de pensar no quanto aquele banheiro parece vagabundo.
A cidade brotou do nada, e aqueles apartamentos xexelentos foram
construídos com materiais de merda, mas é estranho como mesmo
sendo insensível a praticamente tudo o mais em sua vida ele não
consegue se acostumar por completo com aquele apartamento
xexelento. Pelo contato do material da banheira com a sua bunda
magra, dá pra sacar que ele podia se levantar e abrir um rombo nela
com um soco. Plástico frágil, ossos frágeis.
James está fumando maconha especificamente para poder pensar
na própria bunda encostada na banheira, e não no fato de a sua
namorada Nicole ter ido embora uma hora atrás, batendo a porta e
bufando de raiva. Ele está na banheira porque em algum nível sabia
que, se não tivesse encontrado imediatamente alguma coisa para fazer,
teria ido atrás dela até o estacionamento para fazer as pazes. Teria se
desculpado, teria consertado as coisas. Mas ela tem razão de estar
brava: tem alguma coisa errada com ele. Ele não faz ideia de que porra
possa ser, mas precisa entender se algum dia quiser ter uma porra de
um relacionamento humano normal. Então pensou: bom, vou fazer
uma sauna de maconha no banheiro e pensar. Está se esforçando.
Arrumou uma coisa para fazer.
James deixou o celular em cima da cama, entrou no banheiro e
tapou a fresta debaixo da porta com uma toalha, um hábito antigo de
quando fumava um na casa da mãe aos catorze anos que ele nem
sequer percebia não ser mais necessário. Certificou-se de não ter
recolocado por engano as pilhas do detetor de incêndio, encheu a
banheira, e queimou uns dez ou vinte dólares de maconha. Com o
bong, e não com um dos cachimbos. E fumou os camarões, não a
poeira. O plano era fumar até não restar mais ar nenhum dentro do
banheiro. Fumar até conseguir ver através do tempo. Fumar até
entender a própria vida.
E ele está entendendo a própria vida. Todo mundo sabe que fumar
maconha não chega a ser um caminho para o autoconhecimento nem
nada do tipo. Provavelmente é um caminho para longe do
autoconhecimento, a menos que o autoconhecimento seja tipo ficar
pensando nos planos de ambientação dos filmes do Stanley Kubrick.
Só que não é. Mas aquilo funciona muito melhor para entender sua
vida do que ficar sentado no sofá com Nicole, assistindo a algum filme
idiota que ela quer assistir porque todos os filmes dos quais James
gosta são “sinistros”, ou então “nojentos”, ou então “herméticos” ou
sei lá o quê.
Ele deveria ter levado os alto-falantes do iPod para dentro do
banheiro, sei lá. Mesmo com o ambiente cheio de fumaça em vez de
ar, ficar pensando nessas coisas é muito deprê. Fodam-se os
sentimentos.
3

Alguma hora você vai ter que sair do banheiro. Alguma hora a água vai
ficar fria de novo, e ele já completou a banheira com água quente duas
vezes. A água quente está incluída no aluguel, então não há motivo
algum para simplesmente não continuar fazendo isso até ele pegar no
sono ou morrer, mas além disso James está ficando oficialmente
entediado e com a pele toda enrugada, e se imagina saindo da
banheira, animado para abrir a porta, saindo apressado do banheiro e
vendo toda a fumaça sair lá de dentro como a van de Picardias
estudantis ou um filme de Cheech e Chong. Mas fica sentado na
banheira enquanto a água escorre pelo ralo. Agora está oficialmente
com frio. Levanta-se, enrola-se numa toalha surrada, abre a porta e sai
depressa.
A fumaça que sai do banheiro é decepcionante. Tem fumaça, sim, e
ela meio que sai flutuando do banheiro, mas não é muito densa e na
real não parece estar com a menor pressa. É como quando você está
fumando e imagina que está num clipe de rap e que uma fumaça
superdensa está saindo da sua boca em câmera lenta, mas quando olha
no espelho você vê que está só fazendo uma cara estúpida e parece um
idiota que não consegue nem fumar direito. Esse tipo de fumaça. Esse
tipo de sensação. De repente o assunto mudou daquela cidade
xexelenta e suas montanhas para aquele menino magrelo e pelado com
uma toalha em volta dos ombros num apartamento xexelento cheio de
luzes frias no teto.
O tempo está meio engasgado, o que é bacana, mas é uma
diferença brutal sair do banheiro úmido e esfumaçado para o ar limpo
do quarto seco e frio. Tipo seus pulmões sentem um alívio e tal, mas
seu cérebro e seus olhos ficam meio mal.
James provavelmente odeia aquele apartamento. Como se a
banheira fosse um útero seguro e quentinho e agora ele estivesse
naquele mundo horrível e ofuscante. Só que ele não grita feito um
bebê que respira pela primeira vez. Fica vagando como o adolescente
que era até três meses antes. Os pratos com restos de pizza e migalhas
de pão ao lado do seu computador são deprimentes. As paredes
brancas sem nada pendurado também, e o futon azul com uma roupa
de cama azul-escura embolada por cima num canto. Ele não faz a
cama. Na real, nem chega a desembolar os lençóis direito antes de
dormir neles. Mora num apartamento de quarto e sala onde o canto da
cozinha é tão pequeno que na pia não cabe nem um prato para deixar
de molho. Nem uma luminária ele tem. O lugar todo parece um
cubículo, e só tem a luminária de teto idiota com uma lâmpada
ecológica metida a besta que já estava ali quando ele se mudou.
Na real, James nunca viu um cubículo a não ser nos filmes.
Ele pega uma cueca samba-canção da mesma cômoda que tem
desde criança, um troço pesadão de madeira que ele levou da casa da
mãe quando foi morar sozinho depois de se formar no ensino médio.
O móvel parece incongruente encostado na parede do canto. Está
todo marcado de queimaduras nos lugares onde ele largou os
cachimbos ou esqueceu baseados e deixou queimar. Depois da
primeira ou da segunda queimadura, James decidiu que se foda, parte
da minha infância ou não este móvel não vai ter nenhum valor real de
revenda, e se eu começar a pensar em valor sentimental o que vai
acontecer é que eu vou surtar em relação a tudo em todos os lugares
mesmo, então o melhor é simplesmente cagar para isso e continuar
queimando. E cagar tanto que simplesmente põe o beque aceso em
cima da cômoda sem cinzeiro nem nada. O que é mais uma marca de
queimadura. Até parece que aquele bloco gigante de madeira vai pegar
fogo.
Ele pensa em escovar o cabelo. Pensa em Marcia Brady, na Rachel
de Friends, e em Zooey Deschanel, mas não sabe nem onde está a
escova e provavelmente nem lavou o cabelo.
Dave Grohl. Robert Plant.
Não precisa se vestir. Está tarde, e faz calor suficiente para poder
ficar sem camisa. Ele se vê de relance no espelho meio pequeno da
parede e tenta imaginar que tem um abdome tanquinho em vez de
uma porra de um não abdome magrelo de maconheiro que parece a
barriga do Salsicha do Scooby-Doo, mas não dá certo. Não faz a menor
ideia da própria aparência.
Se for dormir agora, com o cabelo molhado, vai acordar com um
ninho de cobras todo escroto cheio de nós e ondas esquisitas. Além do
mais, ainda nem deu meia-noite. Pouco importa ter de ir trabalhar às
oito da manhã, ele nunca consegue dormir antes da uma ou das duas,
então empurra a caixa da pizza que jantou com Nicole e se senta na
cadeira do computador, outra herança da casa da mãe. É uma cadeira
legal, de madeira, encosto redondo, com toda pinta de que deveria
estar diante de uma mesa numa cozinha respeitável, toda de madeira
trabalhada ou coisa que o valha, e parece bem fora de lugar naquele
apartamento de solteiro xexelento mobiliado de forma tão espartana
para um computador, filmes e uma cama.
Ele desiberna o computador e digita a senha. Como se aquela noite
de merda tivesse alguma possibilidade de terminar de alguma outra
forma.
4

Nicole tem consciência de que o seu namorado é meio estranho. Ou


melhor, não estranho propriamente, mas distante, não de todo
presente, ou algo do tipo. Com certeza parte disso é o tanto de
maconha que ele fuma: James literalmente assina a High Times. Mas
parece ser algo mais profundo, como se ele fosse simplesmente assim
por baixo da fachada enevoada de maconheiro.
Ele sempre foi meio doidinho, mesmo quando eram pequenos.
Nicole já namora James tem bastante tempo, mas eles com certeza
não têm uma história de amor desde a infância. Ela teve uns crushes
quando pequena, sinais de que ao crescer se tornaria a louca por sexo
que de fato se tornou, mas nunca, nunca no pequeno James Hanson.
Ele era aquele menino sujinho e esquisito, que vivia brincando
sozinho no canto do parquinho enquanto as outras crianças
praticavam esportes e brincavam de casinha. A piada com James no
terceiro ano era que ele comia meleca. Pensando bem, a piada meio
estranha no quinto ano era que ele dormia numa cama feita das
próprias melecas.
Ela não o chamou para sair por ele ter mudado. Ele continua sendo
exatamente o mesmo menininho de sempre, que bebe sozinho nas
festas e inspira boatos de que é gay. Nicole começou a namorar com
ele porque ela mudou. Aos catorze ou quinze anos, comprou um
número da revista Bitch na Thanks Books, no pé da montanha do lado
leste, e aí foi ladeira abaixo: tipo aqueles textos clássicos feministas
que fazem você acordar. Você começa a ligar os pontos: a fúria
justificada por ser obrigada a ir à igreja de vestido quando pequena e
não poder subir em árvores com os meninos retorna com a fúria de
mil sóis. No fim das contas ela estava certa por sentir raiva do jeito
como todos os homens adultos da cidade olhavam para ela desde os
seus doze anos.
Ela era a menina de dezesseis anos que falava sobre Andrea
Dworkin na mesa do almoço. De repente começaram a fazer sentido
suas fantasias de ficar com Jason Sanger, o kicker reserva cabeludo do
time de futebol americano, e depois terminar tudo em vez de se casar
com ele. Ela basicamente conseguiu ver a cultura misógina do estupro
e não quis chegar nem perto. Tentou ser lésbica, mas não deu certo.
Ela ficava tentando pensar em Kathleen Hanna, na princesa Leia ou
em Scarlett Johansson enquanto tocava uma, mas não deu. No último
segundo elas se transformavam em Jason Sanger e nos braços dele, nas
pernas dele, no sorriso irônico e na bundinha perfeita dele.
Isso foi um dilema e tanto até que um dia, na mesa do almoço, com
um livro de não ficção feminista sem o menor senso de humor na
mesa à sua frente, ela reparou pela primeira vez em James. Tipo
reparou mesmo: cabelo até os ombros, provavelmente magro demais,
com uma beleza quase feminina mas um porte de menino, sentado na
mesma mesa de Mark Richardson provavelmente falando sobre
maconha. James riu de alguma coisa. A boca dele era meio grande
demais para a cabeça, e de repente a ficha de Nicole caiu: é com esse
tipo de menino que eu preciso namorar. Mais alto do que eu, mas
magro, um menino mas não um homem, um doidão e não um atleta.
Alguém que a escutaria e não tentaria fazê-la calar a boca.
Foram pressuposições bem ousadas, mas Nicole é superinteligente
e tinha toda razão. Ela o chamou para sair dois dias depois. Gravou
uma fita para ele. Não era nem um CD, mas uma fita cassete de
verdade que ela gravou num aparelho de som. Fez uma colagem para o
encarte e prestou muita atenção para não incluir nenhuma música que
fosse de fato de amor nem nada disso, só o tipo de música que
imaginava que um maconheiro gatinho fosse curtir: músicas longas,
músicas com guitarras esquisitas, músicas com solos de guitarra.
Muito suave! Mas ele topou sair, apesar de no início ter parecido
apavorado. Como Nicole tem carro, foram à parada de caminhões na
rota 80.
Ele meio que já chegou desconectado. Parecia simplesmente
atarantado, embora tenha pedido para escutar a fita gravada por ela no
caminho até lá. Mas não tentou lhe dar um beijo nem nada, o que
meio que a fez querer que ele fizesse isso. Ela sabia que era meio nada
a ver, mas foi assim que foi parar no colo dele no banco de carona do
próprio carro às onze da noite do dia 3 de novembro dois anos antes,
no canto escuro mais afastado do estacionamento da parada de
caminhões. Ela é bem miúda, mas mesmo assim foi bastante
desconfortável, e ela conseguiu se segurar e não pediu para ele comê-
la em outro lugar. Feminista sem tabus em relação ao sexo ou não, ela
era uma virgem de dezessete anos e não estava interessada em dar
para alguém antes de saber o sobrenome da pessoa. Então Nicole e
James ficaram se pegando um tempão, mas ela não tirou a meia-calça e
depois o levou de volta para a casa dos pais, e os dois namoram desde
então.
James é esquisito. Ela sabe que é. Praticamente só gosta de ficar
assistindo a filmes e fumando maconha. Ela fuma junto de vez em
quando, mas não é tão fissurada quanto ele. Tomou cogumelo uma
vez. Enfim. Ele gosta de fumar um. Fuma tanto que na verdade nem
dá para ver que está doidão quando fumou. Ele simplesmente age
como se estivesse normal. É claro que talvez ele esteja sempre doidão
e ninguém saiba nem que cara teria a normalidade para James Hanson.
Então ele fuma, e os dois assistem a filmes, comem, vão trabalhar —
ele também trabalha no Wal-Mart — e fazem todas as outras coisas
que adolescentes esquisitos que acabam de completar vinte anos
fazem. Uma vez passaram o fim de semana em Reno.
Às vezes brigam, como nessa noite. Às vezes tudo que ela quer é
dar uma surra nele de tanto que ele fica desconectado, o que a deixa
com vontade de pressioná-lo, de forçá-lo a tomar uma decisão.
Qualquer decisão. Tipo ela sabe que ele tem opiniões bem fortes sobre
cinema, mas não porque ele fala sobre isso com ela. Sabe mais porque
às vezes James escreve sobre cinema no blog dele. Só que naquela
noite ele não quis, falou tipo vamos ver um filme, mas depois não quis
nem votar em nada para escolher. Então ela disse: Tá. Para ser escrota,
ela falou: Vamos ver aquele filme do Drew Carey, aquele que lançou
faz uns dois anos. Ele nem disse nada, então acabaram assistindo ao
filme idiota do Drew Carey. Foi tipo uma queda de braço que tiveram
sem assumir. Quem ficaria com tanta raiva da idiotice do filme a ponto
de desligar e escolher outra coisa? Ela pensou: eu é que não vou ser,
mas, com a capacidade zen que James tem de sumir, também não seria
ele. Como você pode ser tão desinteressado e tão teimoso ao mesmo
tempo? Que surreal, James.
Além do mais, o filme nem era tão ruim assim. O patamar de ruim
para Nicole é bem baixo: não pode ter agressão sexual nem sexismo
explícito, mas não é preciso nem passar no teste de Bechdel. Mesmo
assim, a maioria dos filmes não consegue nem isso. Alguém tem
sempre que fazer uma piada com pessoas gordas ou rir de uma menina
que não seja atraente de acordo com o padrão. Mas essas coisas nem
sequer aconteceram! Não muito. No fim do filme ela pensou pô, eu
acho que nem odeio o Drew Carey. E para ser sincera ficou ainda mais
puta com James do que estava antes de começarem a ver o filme. Ele
pelo menos conseguiu ficar acordado, mas no fim do filme ela
praticamente disparou tipo: Porra, cara, e agora, a gente vai fazer o
quê?
Nicole sabia que estava sendo mimada, mas depois de passar uma
hora e quarenta minutos sentada ali mofando não podia simplesmente
deixar passar. Ela queria transar, e que transar a fizesse se sentir
melhor, e fizesse James se sentir melhor, para ela e ele se
aproximarem e poderem zerar as coisas, como o sexo deve fazer. Tipo
isso. Sabe que foi bobeira, mas tirou a calça jeans e subiu no colo dele.
Ele ficou bravo e a empurrou, então ela vestiu a calça e foi embora sem
dizer nada. Ficou esperando ele dizer alguma coisa enquanto recolhia
sua camisa de flanela, sua bolsa, suas chaves e a garrafa de dois litros
de Coca-Cola pela metade. Retardou o quanto possível sua saída
silenciosa. Que idiotice. Enfim. Tudo bem, eles às vezes brigam por
algumas coisas. Melhor botar para fora, não? Ela prefere brigar do que
ficar remoendo para sempre. Então voltou para casa e ele não ligou.
Ela com certeza não vai ligar para ele hoje. Ele que se foda. Antes do
fim de semana ela vai ter notícias e vai fazer as pazes com James.
Enquanto isso, ela vai trabalhar no zine que vem preparando há
literalmente um ano. Não se deve levar para casa as revistas rasgadas
do Wal-Mart, mas mesmo assim ela leva escondido um saco imenso
quase toda semana. Faz altas colagens com elas. A ideia não era nem
ser um zine muito longo, mas a coisa não para de crescer e crescer e
crescer porque ela não para de ter mais e mais e mais coisas para
colocar nele. O troço vai acabar ficando com tipo sessenta e quatro
páginas.
5

Não que James tenha orgulho dos sites pornôs que visita, mas o que
vai fazer, se obrigar a não ser pervertido? Ele já tentou. Ainda está
tentando. Tenta na maioria das noites.
A única luz no quarto agora é a do monitor do computador, a luz
azul e preta dos corpos nus na tela. Mas ele sabe como vai terminar.
Ele vai tentar passar tipo meia hora vendo homens comendo
mulheres, vai ficar deprimido, não vai nem conseguir ficar de pau
duro, depois vai começar a olhar blogs com imagens de mulheres com
legendas que transformam as imagens em fantasias eróticas
transformistas estranhas e absurdas.
São basicamente três fantasias.
Um dos blogs é dedicado inteiramente a Transformações
Científicas, entre aspas, então tem tipo a imagem de uma garota
bonita numa estação espacial com uma legenda que diz: o professor
MacMillan saiu do regenerador corporal e seu assistente encarou o
erro e deu um sorriso bobo, ou algo assim. Tipo a premissa são
sempre nanorrobôs, ou máquinas de troca corpórea ou sei lá mais o
quê. Pistolas de raio que mudam o gênero da pessoa. Tem várias fotos
de mulheres com legendas dizendo que elas foram homens antes. É
bobo que isso seja apresentado como uma coisa científica porque é
óbvio que uma ciência capaz de transformar você na Pamela Anderson
não é uma ciência praticada por ninguém. Existem arquivos dessas
imagens que remontam aos primórdios da internet, mas não tem nada
de ciência nisso, é pura magia.
Aí tem os blogs explicitamente dedicados à magia: tipo a imagem
de uma garota bonita numa floresta e uma legenda que diz A bruxa má
do gelo transformou o Valente Sansão em uma donzela recatada. Na
mente erótica das pessoas que produzem esse tipo de pornô mais
sinistro, magia e ciência são a mesma coisa, e basicamente o que essas
pessoas fazem é transformar homens em mulheres padrão.
Há também as legendas de namoradas iradas. Essas são as imagens
nas quais as namoradas por algum motivo transformam os namorados
em mulheres. Essas pelo menos acontecem meio que no mundo real,
mas passar batom e pôr um vestido no namorado mediano
maconheiro sem noção não vai deixá-lo igual às lindas mulheres que
são inevitavelmente retratadas.
Que nada a ver.
Tem também os sites hardcore que mal têm legendas, tipo a foto de
uma garota bonita chupando o pau de um cara e a legenda Chupa
garoto, ou algo assim. Não tem como você não se perguntar quem faz
essas imagens. Quem é que senta na frente de um computador
procurando fotos de boquetes para legendar com frases dúbias, de
modo a permitir que legiões de gente pervertida gozem em cima de
seus teclados? Mas essa é uma linha de raciocínio perigosa, pois afinal
quem é que fica vendo essas fotos? É tudo tão esquisito e idiota. E ao
mesmo tempo, depois que você fica de pau duro vendo essas coisas
ridículas, de repente elas não parecem mais tão ridículas, mas
mágicas. Potentes. Fascinantes. Mágicas! Científicas! Tipo a coisa
deixa de ser uma imagem idiota de uma revista de moda ou de um
ensaio pornô ou de um anúncio de fantasia de Halloween legendado
com uma frase idiota. De repente a coisa passa a causar no seu cérebro
reptiliano o mesmo efeito que uma boceta deveria surtir.
James não é gay nem nada disso. Ele não curte tanto os sites que
têm paus. Os de lésbicas sim, claro, mas ele não curte homem nem
nada assim. Tipo ser pervertido provavelmente seria até mais fácil se
ele fosse gay, certo, e não precisasse se preocupar por gostar de
mulheres, mas de um jeito totalmente impossível. Tipo, vários caras
são gays, né? Se você é um cara gay, pode simplesmente ir chupar
uma rola num banheiro de uma parada de caminhões, ou seja lá o que
os caras gays fazem. Se você é um cara hétero que curte a ideia de ser
transformado em mulher, provavelmente não são muitas as mulheres
que têm interesse em se meter com isso. Bom, na internet tem muitas
mulheres imaginárias que curtem essas coisas, mas elas são só a
realização de um desejo, são caras fabricando os mundos nos quais
gostariam de viver e publicando na internet. Tipo RPG.
O lance se chama autoginefilia. Tipo, existe de verdade. É esse o
nome do fetiche. Se é que é mesmo um fetiche. James não sabe o que
é. Ter atração sexual por si mesmo como mulher. Que tesão! Quem
não teria tesão nisso?
Nada a ver.
É o tipo de coisa que você nunca pode contar para ninguém. Um
segredo que carrega consigo como um albatroz pendurado no pescoço
que você leva para o túmulo quando morre.
Tem vários outros fetiches, ou sei lá, que fazem as pessoas
parecerem legais. As pessoas podem parecer legais sendo chicoteadas
e amarradas. Ou mijando umas nas outras. Imaginem se o Nine Inch
Nails pusesse isso num clipe. Seria bem legal. Mas querer ser mulher?
Não é nem aquele papo tipo eu sabia desde sempre, mulher presa
num corpo de homem ou sei lá o quê. Qualquer pessoa pode ver que
James não é mulher. James sabe quem é Jennifer Finney Boylan, e ele
não é nenhuma Jennifer Finney Boylan. Ele é só uma porra de um cara
que gostaria de poder usar vestido.
Agora está vendo a imagem de uma garota fantasiada de criada
francesa.
A namorada do Philip ficou uma fera! Pelo visto ele não se deu ao
trabalho de arrumar uma fantasia para a festona que ela ia dar, então ela
arrumou uma para ele… e era um vestido!
É um absurdo e ele não consegue nem se concentrar direito. Está a
um milhão de quilômetros dali, imaginando como ficaria ridículo
naquele vestido, inventando cenários em que fosse possível interagir
com outro ser humano em relação àquilo. Não existem nem grupos de
apoio para transformistas. Existem clubes, que provavelmente devem
ser cheios de homens peludos de meia-calça. E James tem certeza de
que não existe nem um clube de transformistas perto de Star City.
Além do mais, ele nunca nem usou uma roupa de mulher. O que vai
fazer, aparecer no grupo de apoio de calça e jaqueta jeans e pedir para
pegar uma roupa emprestada de alguém? Também não existem grupos
de apoio para autoginefilia, porque os autoginéfilos são um tipo de
transexuais. Tipo isso. Transexuais fake; transexuais feios. Homens
que decidem virar mulher, muito embora não se pareçam em nada
com mulheres. James já pesquisou. Kenneth Zucker, J. Michael Bailey.
É ciência.
Ele não consegue nem ficar de pau duro. Deveria estar pensando
em si mesmo com Nicole, mas está pensando em si mesmo com seu
pau traidor. Só que nem isso ele consegue fazer direito. Que tipo de
cara tem dificuldade de ficar de pau duro aos vinte e um anos de idade
quando está vendo o tipo de pornografia que curte? Que tipo de cara
de vinte e um anos de idade tem a maior dificuldade para gozar a
menos que a sua namorada esteja chupando o seu pau para ele poder
pensar na bruxa má do gelo transformando o Valente Sansão numa
donzela recatada?
6

Não é cem por cento verdade dizer que ele nunca usou roupa de
mulher.
Durante todo o ensino médio, provavelmente em algum passado
remoto anterior ao ensino médio, deus sabe quando esse pensamento
surgiu, ele teve uma ideia. Sabia que não iria fazer faculdade. Ele é
bem burro e mal conseguiu se formar no ensino médio, de modo que
o seu Futuro, no melhor dos casos, sempre foi ir subindo de cargo no
Wal-Mart até virar gerente e depois morrer aos cinquenta anos de um
infarto corporativo. Ele nunca iria morar em Nova York e virar rapper.
James tem um blog de cinema que levou a sério por um minuto, mas
ninguém está nem aí para o que ele tem a dizer e, na real, tem uns seis
meses que ele não atualiza o blog com nada significativo porque não
para de assistir com Nicole a filmes idiotas para os quais não dá a
mínima. A questão é que durante todo o ensino médio ele mal podia
esperar para se formar e ter o próprio apartamento, onde pudesse ter
um armário cheio de vestidos.
Seja lá qual fosse o problema dele, James não era transformista. Ele
não faz ideia de como usar um vestido. Mas quando tivesse o próprio
apartamento tudo iria mudar. Achava que conseguiria encomendar
pela internet, depois teria seus vestidos em seu apartamento e depois
poderia usá-los quando quisesse. James começou a trabalhar no Wal-
Mart aos dezesseis anos, porque sabia que levaria um tempo para ser
promovido e começar a ganhar mais que um salário mínimo.
Precisaria ter dinheiro suficiente para poder se dar ao luxo de não
morar com ninguém, de modo a não precisar usar seus vestidos só
dentro do quarto. Investiria numas cortinas bem grossas, num montão
de espelhos, e depois num guarda-roupa sensacional: todos os
vestidos mais absurdos, de babados, curtos e sexys. E aí poderia usá-
los o tempo todo e então pensaria no que fazer. Tipo, não transicionar.
Afinal, a maioria das mulheres no mundo real não costuma usar
vestido sempre. Ele não era transexual. Só queria ter uns vestidos.
Era um plano bem vago.
Aí a vida interferiu. Isso não é algo que se diz quando já
envelhecemos bastante, e não aos vinte anos de idade? Mas a vida
interferiu mesmo. Primeiro Nicole o chamou para sair, e ele não teve
um bom motivo para dizer não. Além do mais, ele gosta dela. Além do
mais, ter uma namorada não é tão diferente assim de ter um montão
de vestidos. Na real, Nicole nem costuma mais usar saia, mesmo
quando ele tenta dar a entender que seria legal ela usar. Nicole faz
mais o tipo suéter marrom, jeans justo, óculos hipster e cabelos curtos
do que o tipo pinup dos anos 1950 de vestido e lingerie. E no começo
não foi nada complicado. A bunda dela no seu colo o deixava duraço e
ele pensava tá, vai ver esse papo de autoginefilia era só coisa de
criança e eu agora posso ser um Homem. O que, na real, parecia meio
nada a ver.
Além do mais, como é que se faz para arrumar as porras dos
vestidos? Não dá para simplesmente entrar na internet e encomendar.
É preciso saber o tamanho. É preciso tirar as próprias medidas. Mas
como tirar as próprias medidas? Não dá simplesmente para comprar
uma fita métrica no Wal-Mart onde você trabalha: alguém iria reparar
e perguntar o que você ia fazer com aquilo. E um metro de metal do
departamento de ferramentas não funciona. James já tentou. E depois,
mesmo você chutando que deve vestir tamanho G, pode ser que tenha
a experiência mais deprimente do mundo quando for tentar testar
essa teoria.
Ele encomendou um. No fundo do closet de James tem um vestido
no qual ninguém nunca reparou. Por que alguém iria entrar no seu
closet? Parece inevitável Nicole entrar lá atrás de um cinto para pegar
emprestado ou algo assim e encontrar o vestido, e James não vai ter
como explicar por que tem um vestido, no qual ele não só não cabe
como também teria que ter uns trinta centímetros a mais de
comprimento para cobrir qualquer coisa, pendurado atrás dos seus
dois ternos e de sua única calça social.
Na primeira semana que passou no apartamento, ele encomendou
o vestido pela internet. Pensou, tipo, liberdade! Enfim posso
encomendar Meu Primeiro Vestido! E fez a compra no eBay. Ele
achou que estava sendo responsável: não é vulgar, não é rosa, e
supostamente nem é curto. É azul-marinho debruado de branco, e ele
passou a semana seguinte à encomenda — que fez no meio da noite,
com um clique no botão Comprar Agora enquanto suava frio —
apavorado, imaginando que o vestido seria enviado numa caixa
etiquetada com a palavra “vestido” que seria deixada em frente à sua
porta. Mas não foi assim. Ele só encontrou uma caixa de papelão
normal em frente à sua porta um dia depois do trabalho.
James levou a caixa para dentro com a respiração curta e ofegante e
tentou abrir. Suas mãos não obedeceram. Então um garfo deu conta de
furar a fita adesiva, mas ele teve de encontrar a faca afiada para
conseguir cortar toda a fita. A caixa então foi para a bancada da
cozinha, ao lado dos pratos engordurados e sujos com restos de pizza,
aberta como um presente, e nem era assustadora, já era triste. Em
primeiro lugar, ele deveria ter deixado a caixa escondida até Nicole
aparecer aquele dia e ter ido embora. Ela estava para chegar a qualquer
momento. Em segundo lugar, deu para ver na hora que aquele não era
o vestido que ele pensou ter encomendado. Aquele vestido existia só
na cabeça dele. O vestido em sua cabeça era fofo e fazia parecer que
ele tinha cintura. Era uma coisa hipster meio Jackie O. Mas aquele
vestido, na vida real, era obviamente um vestido de ir à missa da
falecida avó de alguém. Era uma coisa quadrada, sem forma, e o tecido
parecia uma toalha de tão grosso. O debrum era horrível. James nem
tirou o vestido. Ele nem sequer o tirou da caixa, simplesmente a
fechou, enterrou embaixo de duas caixas velhas de All Star no fundo
do closet e foi até o computador. Ele ficou vendo umas coisas de gente
pervertida até Nicole chegar. E ela percebeu que tinha alguma coisa
errada assim que chegou.
Perguntou tipo: Está tudo bem? Você tá ofegante e com cara de
quem vai chorar.
Pois é, disse ele. É que eu acabei de ler uma coisa horrorosa aqui.
Sobre bebês foca.
Porra, que ridículo.
Depois da visita de Nicole, depois de terem transado e ela ter ido
embora, James experimentou o vestido. Parecia uma saia e um blazer,
mas na verdade era uma peça única, um vestido. Talvez por já ter
gozado uma vez naquela noite, ou porque o vestido era tão feio e
estúpido, ou porque suas costelas estavam cheias de decepção e hélio,
seja qual fosse o motivo, James nem se excitou quando pôs o vestido.
Ele achou que ia ficar excitado. O objetivo de ter comprado aquele
primeiro vestido era satisfazer um impulso que, James supôs, era
inteiramente sexual.
Ele não tem espelho de corpo inteiro nem nada disso, mas
conseguiu mal e mal entender como enfiar os ombros no vestido, e aí
a peça ficou embolada na altura das costelas e das axilas e ele teve
medo de deformar o tecido e estragar — que tragédia seria, não?
estragar uma peça tão linda —, mas acabou conseguindo vestir e se
sentiu provavelmente mais bobo do que jamais tinha se sentido na
vida. Havia espaço de sobra e drapeados no quadril, e sua barriga,
embora praticamente nem sequer existisse, ficava realçada na parte da
frente. Ele se deu conta de que não sabia o que estava esperando
sentir ao experimentar aquele vestido, mas com certeza não era
aquele vazio beirando o tédio e algo muito próximo a uma vontade de
morrer.
Mas James estava usando o vestido e era isso o que ele queria,
então foi se certificar de que a porta da frente estava trancada, depois
viu se a porta lateral estava trancada, fechou todas as persianas e
fumou o resto da maconha que tinha, sentado no futon e usando
aquele vestido idiota, sentindo-se um idiota. E aí, mesmo depois de
ficar super, superdoidão, ele ainda assim não parou de se sentir um
idiota. Tentou se masturbar, mas não deu certo.
E foi assim que James soube que é autoginefílico, e não
transformista, que parece uma coisa excitante na teoria, mas na prática
é a coisa mais triste e decepcionante do mundo.
Esse deveria ter sido o fim da sua carreira de transformista, mas
como na noite seguinte Nicole tinha outro compromisso, sabe-se lá
qual, ele passou o dia inteiro sem se masturbar, aí pôs o vestido outra
vez tipo às onze da noite e dessa vez conseguiu gozar, mas foi ainda
pior do que se masturbar lendo umas legendas de pornografia
ridículas na internet. Tipo, James gozou, mas mal chegou a ser um
orgasmo, e não houve euforia nenhuma, e aí ele simplesmente
pensou: como assim? Eu não sou transformista? Não gosto de
vestidos? Será que eu tenho um fetiche que não dá nem para ser
realizado na vida real, como se excitar imaginando que está sendo
devorado por gigantes tarados?
Como não conseguia entender, enterrou o tal vestido no fundo do
closet para sempre. Não jogou fora porque jogar fora teria sido pior
ainda, e talvez de algum modo aquilo ainda tivesse salvação.
Considerando o quanto odeia aquele vestido, ele duvidava que tivesse,
mas não consegue se forçar a se livrar daquilo.
A mesma melancolia e sensação deprimente que caracterizaram
todo o incidente do vestido culminaram numa sensação de que ele
não podia simplesmente embolar o vestido e jogá-lo debaixo de uma
pilha de tralhas no fundo do closet, então James o pendurou. Apesar
de odiar aquele vestido, gostava da ideia de tê-lo ali pendurado no seu
closet. Autoginefilia, cara.
7

James está sentado no escuro tentando ficar o mais doidão possível,


com o pau em uma mão, então o bong nas duas, depois o pau em uma,
depois outra vez o bong, fumando bagulho e pensando naquele vestido
no closet que ele odeia, naquela garota que ele supostamente deveria
amar, mas por quem na real não sente nada. Pensando: cara, qual é a
porra do seu problema? Merdas desse tipo. Se ele estivesse num filme
francês, talvez guardasse o pau e saísse para uma caminhada à meia-
noite onde teria sentimentos, mas cara, uma caminhada à meia-noite
em Star City não faz o menor sentido, ele passaria em frente a umas
casas ou até ao Wal-Mart, ou iria até a rampa da autoestrada, ou até o
deserto, e de toda forma este é um filme americano. Se fosse um filme
do Tarantino, talvez ele matasse todo mundo. Num filme do David
Lynch, não ficaria sequer claro o que acontecia depois, mas você
saberia que alguma coisa ia rolar. Só que obviamente aquilo não era
um filme e ele era só um maconheiro sem noção e pervertido sem a
menor ideia de que porra estava acontecendo na sua vida.
Talvez devesse ligar para Nicole. James nem entende aquela briga
que tiveram. Ele não quis transar, então eles estão brigados, é isso?
Espera-se que a pessoa possa não querer transar. Era disso que se
tratava o feminismo sex positive: escolhas. Consentimento não é
importante? Mas vai ver ele agiu errado, ou talvez isso só se aplique a
mulheres. Tanto faz. Eles já tiveram essa briga antes e não deu em
nada, e ele tem certeza de que vão voltar a ter. Ela vai aparecer
amanhã à noite e ele vai dizer: É, sei lá, e ela vai dizer: Sei lá. E aí
alguém vai pedir desculpas, aí a outra pessoa vai pedir desculpas, e vão
voltar a jogar a vida fora com filmes ruins do Drew Carey até o fim dos
tempos.
Depois de um tempo, ele fica doidão o suficiente para conseguir
tocar punheta, goza dentro de uma meia que já usou duas vezes e
consegue dormir.
8

Quando Maria Gri ths vê James Hanson no Wal-Mart de Star City,


Nevada, ela pensa: esse menino é trans e não sabe.
9

James fuma um antes de ir trabalhar, mas quando chega a quarta hora


ou por aí do turno de nove horas, na real, ele não se sente mais
doidão. Todos os dias nesse mesmo horário o que ele sente
principalmente é cansaço e raiva. Sempre quis ser o transgressor
descolado que fuma um no trabalho, mas não tem como fazer isso sem
alguém descobrir, nem mesmo atrás da loja. Além disso, como a sua
mãe às vezes usa o carro dele, James não pode fazer sauna de maconha
lá dentro nunca. Na real, é muito possível ser por isso que ele odeia
tanto o próprio trabalho. Ele pensa: eu deveria pensar mais nisso.
Todo santo dia eu passo por uma desdoidificação e fico morrendo de
raiva da minha vida, do meu trabalho, da minha casa, da minha
namorada, e de tudo e todo mundo que vejo pela frente. Pelo visto
isso deve afetar minha satisfação profissional. Termino todos os turnos
com dor de cabeça. Preciso me drogar, cara, porque eu sou viciado na
demônia da marijuana.
Seu turno está chegando ao fim, James não está mais doidão e isso
é uma merda. Um velho que aparece uma ou duas vezes por semana
estava procurando uns filmes antigos idiotas que não conseguia
encontrar porque o Wal-Mart não vende filmes antigos idiotas, e
como o cara não escuta nada do que James diz os dois sempre acabam
passando meia hora fingindo procurar aqueles DVDs que não estão ali.
Na real, isso pode ser uma metáfora para a vida em Star City. Uma
ou duas vezes por semana, James pensa muito seriamente em escrever
um bilhete para o cara para a próxima vez que ele aparecer, explicando
que aqueles são filmes muito, muito antigos e cafonas, estrelando
atores com os quais ninguém mais se importa, e que seria melhor ele
ir à Family Dollar de Imlay, onde vendem aqueles DVDs produzidos
em massa de filmes em domínio público que parecem muito leves na
sua mão, como se não houvesse DVD nenhum dentro das caixas.
O Wal-Mart não tem nem como encomendar. As empresas de DVD
têm suas próprias distribuidoras com as quais o Wal-Mart não
trabalha. O que é estranho, pois as distribuidoras que fabricam esses
DVDs caretas têm toda pinta de ser cristãs, e o Wal-Mart não recusa
nada que seja cristão. Mas tanto faz. Quem se importa com isso?
James está com dor de cabeça, precisa fumar um de novo, e o velho
está começando a dar sinais de que já acabou de fazer sua ceninha
quando Maria Gri ths aparece andando pelo corredor do Wal-Mart e
parecendo totalmente fora de lugar, como se fosse feita de longos
cabelos ruivos e várias camadas de roupas.
James faz o que todo mundo faz ao ver alguém que gostaria de
conhecer: ignora Maria por completo. Talvez ele esteja surtando um
pouco. Mas ela veio direto para a seção de música e filmes, então o
que mais ele pode fazer? James diz oi assim que ela entra porque pode
ter problemas se não fizer isso. Segundo a política corporativa do Wal-
Mart, cumprimentos podem transformar ladrões em amigos. Mas
depois ele apenas a ignora. Em algum nível, James percebe que ela
talvez tenha olhado para ele por um segundo a mais do que o
adequado, mas se ele articula parcialmente um pensamento do tipo é
algo como: cara, não viaja, essa menina com certeza não está te dando
mole.
Ela está vestindo mais roupas do que ele jamais viu alguém usando
ao mesmo tempo: umas botas pretas imensas, uma saia preta
comprida ou quem sabe um vestido, o que parece ser uma saia mais
curta laranja escura por cima, um suéter meio bordô comprido por
baixo de uma jaqueta jeans surrada cheia de patches e bótons, um
cachecol preto, e cabelos ondulados com aspecto ressecado logo
abaixo dos ombros. Seus cabelos têm quase exatamente a mesma cor
do suéter, só que um pouco mais escuros. Os dois tons provavelmente
brigam ou algo assim. Parece que ela dormiu com aquelas roupas. Os
cotovelos da jaqueta exibem vincos que parecem permanentes, e os
cabelos parecem capazes de deixar uma marca se ela encostasse a
cabeça numa parede. Ela tem pinta de estrela do rock ou então de
assassina. Uma vez a banda Creed passou por aquele Wal-Mart no
meio de uma turnê para comprar pilhas ou algo assim, e todo mundo
surtou apesar de o Creed ser uma banda idiota, mas James viu um dos
caras da banda e ele andava com uma espécie de magnetismo, de
ginga ou sei lá, como se soubesse que era importante, e Maria tem o
mesmo tipo de postura.
Ela vai até o display de CDs de pop/rock, e James pensa: quem é
que usa uma porra de um cachecol de dia em Star City, ainda mais em
uma onda de calor? Enquanto ele a ignora, fica encarando suas costas.
Steven Tyler? O Quarto Doutor? Na real, James só está sendo sinistro
e encarando a menina daquele jeito porque pessoas com aquele visual
não são dali. E nem param ali quando passam de carro. Existem outros
Wal-Marts mais perto da estrada, tipo, a três saídas de distância em
ambos os sentidos da rota 80. Foi uma burrice da porra o Wal-Mart
abrir um Wal-Mart ali.
Bom. Ninguém para ali a não ser o Creed. E isso só aconteceu uma
vez.
Ela passa alguns segundos vendo os CDs de pop/rock, e James
consegue tirar os olhos do patch do Poison preso com alfinetes nas
suas costas e dos cabelos ondulados bagunçados descendo por elas.
Tipo Poison, sabe, aquela banda de glam rock ridícula com o vocalista
que agora faz reality shows na TV? A dor de cabeça passa, ou então
James simplesmente a esquece, porque quando ela se vira está muito
entretido pondo em ordem alfabética os CDs que acabaram de chegar e
precisam ser postos na prateleira.
Oi, diz ela, olhando-o de cima a baixo.
James responde tipo: Oi.
Vocês têm o álbum da Miranda Lambert?
Ahn, diz ele, acho que sim, mas deve estar na seção de country.
Ela diz: Ah, tem uma seção de country?
E ele: Ué, tem.
E então, porque está se sentindo totalmente esquisito, James não
se contém e dispara: Mas você não parece o tipo de cliente que em
geral compra aqui.
Porque, sendo totalmente sincero consigo mesmo, em algum nível
James já entendeu que aquela menina é trans, e embora ainda não
tenha processado o que isso significa, está sentindo uma atração louca
e magnética por ela. Tipo, não é nem uma atração sexual. É só tipo eu
quero ser seu amigo no Facebook ou algo assim. Preciso agarrar você,
ter você na minha vida. O que seja.
Você não parece o tipo de cliente que em geral compra aqui é uma
coisa bem boba de se dizer, mas ela não discorda.
Maria olha para o crachá dele, abre um sorrisinho irônico e diz:
Talvez eu não seja mesmo, James H., mas então, eu saí de Nova York
tem mais ou menos uma semana, e estou morando no meu carro com
o meu cachorro e o meu gato. Estou dirigindo até a Costa Oeste pelo
único motivo de nunca ter ido pra lá. Em Nova York tem estações de
rádio espanholas, de rap, de rock comercial, e estações pequenas
operadas por universitários muito autocentrados sem a menor noção
do que fazer com todos os seus privilégios a não ser colecionar discos
e gentrificar bairros que estão bem faz gerações. Mas eu não acho que
exista uma estação de country em Nova York. Acho que tem várias
estações de reggaeton, que sob vários aspectos que as pessoas não
costumam notar tem muitas semelhanças com a música country.
Enfim, o fato é que, depois que você sai de Nova York, coisa que
ninguém nunca deveria fazer, hahaha, brincs, as únicas coisas que se
consegue ouvir no rádio de um carro de doze anos são a NPR e as
estações de country. E você já ouviu a NPR? Por um tempo até que
tranquiliza, mas depois acaba fazendo você querer ligar para a rádio e
xingar alguém até chorar. Não iria ao ar porque acho que eles têm
tempo suficiente pra expulsar as pessoas enfurecidas que ligam pra lá
e perdem a linha, mas isso me fez pegar bode da NPR por um tempo.
Ou seja, nos últimos quatro dias foram só estações de country, uma
depois da outra. E eu não sou uma nova-iorquina babaca que acha que
música country é coisa de caipira ou sei lá o quê; eu curto, eu
entendo. Acho até bem legal a galera do country ser tão convencida da
própria sinceridade que nem manda aquele papo de gente artista
atormentada, tipo: eu nem ligo se você gostar do que eu faço, arte é
arte, cara, essa postura que o pessoal indie do rock tem. E a galera do
country não passa o dia inteiro me dizendo o quanto são duronas e
ricas como o pessoal do rap faz no rádio. Só que também tem muita
coisa ruim nas rádios de country. “Eu sou bem mais legal na
internet”? “Ela acha meu trator sexy”? É engraçado na primeira vez,
eu acho. Mas! Mas!
Maria seguiu James até a seção de música country e está movendo
o dedo indicador na direção do peito dele.
Eu acho, ela diz, que Miranda Lambert não deve ser a maior estrela
do country, porque só ouvi as músicas dela no rádio umas duas vezes.
Mas acho que todas as músicas dela são sobre tocar fogo na casa de ex-
namorados galinhas ou tipo, dar um tiro na cara de um ex abusivo,
não? Na primeira vez que ouvi essa música, pensei: até que enfim!
Alguém saiu do armário e está ameaçando matar o babaca do
namorado em plena rádio! Não que eu ache que alguém deva matar
outro alguém nem nada disso, mas depois de cinco dias de rádio
country pode considerar que eu recebi uma lavagem cerebral. Miranda
Lambert, James H., é o lance mais punk do rádio, e eu vou jogar meu
carro do alto de um morro se tiver que escutar mais uma vez a música
que fala do cara que espera ter a chance de viver como se estivesse
morrendo. Mas não é que eu não goste dessa música, é que ela é tão
triste e tão verdadeira que me faz querer viver como se estivesse
morrendo e aí tipo, morrer. Sendo assim, James H., Miranda Lambert
é um plano de contingência para salvar a minha vida.
Ela disse mesmo em voz alta a abreviação da internet para
“brincadeira”.
Faz-se uma pausa, e ela então dá um sorrisinho irônico e diz: Foi
mal, acho que eu não falava de verdade com ninguém faz muito
tempo.
James diz: Tranquilo. Pega o segundo álbum de Miranda Lambert e
entrega para Maria.
Este é o CD que tem aquela música sobre pólvora e chumbo, ele
diz.
Obrigada, James H., diz ela. Você me ajudou muito.
E então começa a sair do departamento de filmes e música.
Espera, diz James. Você tem que comprar aqui, senão vou levar
bronca da segurança.
Isso é meio que verdade. Quase verdade. A instrução é fazer as
pessoas comprarem seus CDs e DVDs na seção de CDs e DVDs, embora
não exista tipo uma regra a esse respeito nem nada assim. É uma
sugestão firme com o objetivo de evitar a perda de uma venda. Mas é
uma coisa idiota de enfatizar no momento. Até parece que ela vai
anotar seu telefone para ele na nota fiscal.
Bom. A nota tem o telefone do Wal-Mart unidade 8304, se ela
quiser telefonar.
Não acho que conseguiriam encarar você, diz ela. Você tem cara de
duro na queda.
Pois é, diz ele. Total. Eu sou um verdadeiro Brad Paisley.
Quem é Brad Paisley mesmo?
Sabe, diz ele, não faço luzes no cabelo e monto cavalo em pelo?
Os olhos de Maria brilham, e ela emenda na letra da música
country boba: Nem a sobrancelha eu faço, e no meu porta-malas tem
aço!
Esse sou eu, diz ele. E ainda sou homem, meu bem. São dez
dólares e noventa centavos.
A estranheza desse diálogo não passa despercebida para Maria e
para James.
Maria paga com cartão de débito. James repara que a senha dela é
6664. Então ela vai embora e ele pensa, bom, que se foda. Então sua
dor de cabeça volta e ele fica bem deprê, aí começa a pensar que daqui
a pouco vai voltar para casa e ficar doidão.
Fumar maconha é o máximo, e o fato de aquela garota ter aparecido
na sua vida e agora ter ido embora para sempre é uma merda absoluta.
Ele está pensando na garota estranha que acabou de sair, cujo nome
ele nem sequer sabe porque ela usou uma senha em vez do cartão de
crédito, e então seu pensamento se volta de modo natural e otimista
para a sua fantasia não sexual padrão: maconha.
Ele está se visualizando deitado nos vastos campos das plantações
de cannabis do norte da Califórnia, mas a garota não para de ressurgir.
Muito embora seja sua fantasia padrão, James tem consciência de que
é bem chata. Coisas mais interessantes tendem a se intrometer. Tipo,
fantasiar sobre estar deitado numa plantação de maconha equivale a
lamber a página do meio da High Times. Ele simplesmente não para de
pensar, tipo: Nova York, ela, um cachorro e um gato dentro de um
carro por semanas, que porra é reggaeton… trans!
Estranho ele ter conseguido notar que ela é trans. Dá para notar.
Mas não de um jeito óbvio, como uma drag queen desfilando pelo
corredor. Na real, não dava para notar pelo visual, nem pelo jeito
como ela falava nem nada assim. Talvez. Mas daí ele tinha que se
perguntar, tipo, ué, como foi que eu notei? Deve ter sido uma espécie
de combinação de coisas. Mas será que as outras pessoas notavam?
Será que ele teria de passar os três meses seguintes tendo conversas
estúpidas com colegas idiotas sobre a aberração queer que tinha
aparecido lá na loja? Nada a ver. Que bizarro.
10

Porque, olha, não é que James não pense se ele é trans ou não, certo?
Para ser totalmente sincero, ele pensa nisso o tempo todo, só não
consegue imaginar ser trans de verdade no mundo real. Será que ele
gostaria de ser uma garota? Puta que… é claro que ele gostaria de ser
uma garota. Ninguém passa vinte e nove horas por semana pensando
em ser uma garota e se masturbando sem pensar, tipo, será que esse
padrão está tentando me dizer alguma coisa. E para ser sincero ele
provavelmente não se comprometeu nem com um sim nem com um
não. Tipo, existem um milhão de motivos pelos quais ele obviamente
não é trans, ou não o tipo de pessoa trans que transiciona. Ele nunca
disse isso em voz alta, nem mesmo pensou explicitamente, mas talvez
ele seja meio gênero queer, então não sabe nem o que pensar a
respeito. Já acessou sites e blogs de muita gente, leu sobre
autoginefilia e sobre o que os hormônios fazem e não fazem, e sabe
que se for transexual ele com certeza não é tipo uma pessoa transexual
normal, as pessoas transexuais normais todas já sabem que são
transexuais desde pequenininhas e contam para a família e levam
esporro por causa disso, ou então começam a tomar hormônios aos
treze anos e não passam todas as noites da porra da vida se
masturbando e vendo uma pornografia constrangedora pra caramba
que é idiota, chata e repetitiva, e tipo, isso é simplesmente todo um
outro mundo de expressão de gênero e de sexualidade, então tanto
faz, quem se importa com isso, a questão é só que, tipo, James sabe
que a transexualidade existe.
Talvez ele saiba muito bem.

É
Então vai ver ele fica buscando isso? É claro que fica buscando,
tipo, coisas esquisitas sobre gênero em todo mundo o tempo todo ou
sei lá, como se fosse hiper-sensível ou algo assim. Mas dessa vez foi
simplesmente tipo: ai meu deus, uma pessoa trans! Só que James
engoliu e não disse nada, porque ele é bom demais em engolir as
coisas e não dizer nada. Tipo, em relação aos sentimentos e tal.
Então vai ver ele vive o tempo inteiro em busca de transexuais e
finalmente viu uma. Cara, sei lá. Vai saber. Quem sabe como falar
dessas coisas sem faltar com o respeito, então sei lá, que se dane, a
questão é que James precisou de um minuto depois de ela ter ido
embora para cair a ficha de que essa era a questão com ela. Só que ela
já tinha ido embora, certo? Ele pensou tipo: eu tenho o comprovante
do cartão, quem sabe poderia fazer alguma parada hacker com isso se
eu fosse um tarado. E se ele tivesse tempo, energia e foco para
aprender a fazer paradas de hacker. Em algum nível, faz tempo que
quer aprender essas paradas. Então.
11

Maria não volta ao Wal-Mart na mesma hora. Vai andando até o carro
de Steph, senta e vira a chave. Não se tocou que teria sido legal
encontrar uma árvore para estacionar embaixo, então o carro está
superquente e ela por um segundo agradece não ter levado seus jeans
cortados para usar, porque se estivesse de shorts teria literalmente
queimado a parte de trás das coxas no banco. Talvez pudesse tirar o
saião que está usando por baixo da saia mais curta, mas nesse caso
ficaria nervosa por causa das partes dela. A saia laranja não é
transparente, mas também não é grossa, e até veludo faz dobras. Então
ela fica sentada dentro do carro, com o pé sobre o pedal do acelerador
e do pedal pegajoso do freio, sem dirigir. Esperando o ar-condicionado
resfriar o carro.
O ar-condicionado do carro de Steph é mais ou menos, mas
funciona. O carro todo parece tipo um sólido de Platão, talvez, se é
que isso existe. Tipo, é meio velho e está meio detonado, mas não
realmente velho nem realmente detonado, e nada nele está realmente
quebrado ou é particularmente eficiente. O ar funciona, mas nunca
chega a esfriar de verdade. Dá para acelerar, mas nem tanto se for na
subida.
Ela está pensando: eu deveria ir, vamos lá. Mas algo está puxando o
fio de telefone que conecta seu coração e seu cérebro. O fio está mais
esticado que de costume. Em algum nível, ela está pensando: Maria, é
isto que está acontecendo, é isto o que você está fazendo, é
justamente este o objetivo dessa viagem. Essa coisa. Bem aí.
Ela quase atravessou o país inteiro tentando entender que porra
está errada com ela: por que não consegue estar presente numa
relação, por que não consegue administrar o próprio dinheiro. Por que
não consegue sequer tomar uma injeção de quinze em quinze dias.
Parece claro que isso tem alguma coisa a ver com ser trans, e
provavelmente com o jeito como ser trans interrompe o
desenvolvimento humano normal, mas em vez de empacar no estágio
anal ou sei lá o quê, você acaba empacando no estágio pré-
adolescente, no estágio Nickelodeon, no estágio eu sei me cuidar mas
me cuido pessimamente. Esse é o motivo óbvio pelo qual ela surtou e
comprou um monte de droga com a qual, na real, ela é cagona demais
para brincar, depois tentou sumir, e é por isso que continua
carregando o celular, lendo as mensagens de Steph, Piranha e Kieran e
pensando é, hoje à noite, vou responder hoje à noite, quando parar
para comer com certeza vou avisar a todo mundo que não morri. Só
que nunca faz isso. Nos últimos dois dias ela vem carregando o celular
no acendedor do carro, mas não o liga mais do que o tempo necessário
para reler as mensagens. Steph declarou o carro roubado para a
polícia. Kieran é desagradável. Piranha está com saudades do blog
dela, o que parece meio sarcástico.
O fato central disso tudo é que Maria é muito boa em ser trans.
Talvez isso seja só relativo a outras pessoas, mas ela se tocou dessa
única coisa e é boa nisso. As cerca de duzentas pessoas que leem seu
LiveJournal concordam. As mulheres trans ficam: Nossa, como você
disse isso bem, e as pessoas cis ficam: Nossa, nunca pensei nisso
assim. Maria é capaz de explicar para você exatamente o que
entendeu, como entendeu, e é capaz de farejar a cisnormatividade
num raio de tipo cem metros. Só que ela é péssima em praticamente
todo o resto.
Sentada ali, num carro quente, no estacionamento de um Wal-
Mart debaixo de um sol escaldante do início da tarde, ela pensa: eu
posso não saber porra nenhuma sobre a minha própria vida; aprendi
muita coisa com Steph sobre sexo, sobre comunidade, sobre ponto de
vista, sobre ser queer e sobre um bando de outras coisas realmente
importantes, mas nada sobre o que fazer quando alguém me olha no
metrô, ou sobre o que fazer quando não tenho como pagar o aluguel e
já é dia 3 e eu só vou receber dali a cinco dias, e tenho medo de ligar
pra minha mãe e sei que em teoria a gente tem uma comunidade que
apoia seus membros, mas na prática o que eu vou fazer, meter um
botão do PayPal no meu blog? Acho que isso nem seria mais cara de
pau do que dar uma festa para operar os peitos, mas agora, neste
momento, neste carro e sem computador, meter um botão do PayPal
no meu blog não vai resolver nada. Até aqui, essa escapada ridícula do
centro do universo não me ensinou nada sobre como viver uma vida
pós-transição, e com certeza não parece que eu vou conseguir chegar
em Oakland ou São Francisco, ou subir até Portland, Seattle ou
Olympia, e encontrar alguém lá que vai sentar comigo e explicar o que
preciso fazer para existir como uma pessoa tridimensional que cuida
do próprio corpo, da própria mente, da própria vida, dos próprios
amigos e dos próprios amores, e que é capaz de existir numa relação
com outra pessoa. Para existir como alguém que sabe o que está
sentindo e consegue expressar isso para uma outra pessoa.
Maria conhece gente que fez a transição anos antes dela, e até
algumas pessoas que começaram a transição tipo uma década antes
dela. Essas pessoas não são todas fodidas da cabeça. Mas tampouco são
budas. Houve épocas na sua vida em que ela pensou nelas como
budas, depois se decepcionou quando elas explicaram que a sua
iluminação consiste nas mesmas banalidades nas quais toda
iluminação consiste: Foda-se o que os outros acham, e sei lá, cara, Não
existe centro no centro das coisas. Tipo tá, que legal, mas depois
como você faz para consertar o estrago que uma porra de uma vida
inteira cagando para si mesma fez com você?
O painel parece ter esfriado o suficiente para ser tocado quando ela
pensa tá, não existe epifania. O único jeito de ser um buda é
simplesmente ser um buda, ignorar as paradas que estão no caminho
para virar um buda. Então ela pensa tá, se a iluminação está
simplesmente sentada aqui, dentro do carro comigo, no meu colo,
sem peso e sem violência, então tudo bem, iluminação. Tudo bem.
Talvez aquilo de que Maria precise não seja ficar olhando para o
próprio umbigo e sentindo raiva de si mesma por ser uma inútil.
Talvez o que ela precise fazer seja tirar as porras dos olhos do espelho
por vinte minutos e prestar atenção em outra pessoa: em alguém que
de fato pudesse usar o pouco que ela de fato entende, a pouca
sabedoria que ela possui. O que ela provavelmente deveria estar
fazendo agora era sair da porra do carro. Ocorre-lhe que, se o cão e o
gato que ela disse para James H. que estavam dentro daquele carro não
fossem embelezamentos retóricos, mas tivessem sido mesmo
companhias imaginárias de sua viagem, talvez ela não estivesse se
sentindo tão incomensuravelmente esquisita e improdutiva agora,
talvez pudesse simplesmente ter passado um tempão debatendo
aquelas paradas com um cão e um gato imaginários, e não com um
dedo indicador muito real, encarquilhado e cansado girando o botão
do rádio até quase cair.
O botão do rádio deve ser a superfície mais limpa do carro, e ela
pensa tá, eu vou lá conversar com aquela menina e dizer para ela que
ela é uma menina, e ela vai dizer Que nada, eu não sou menina, e eu
vou dizer Não, você é menina, e ela vai dizer, Pois é, eu só disse que
não era menina porque eu sou menina, mas parece que seria
impossível sair deste corpo e desta situação social e ir para um corpo
que fosse lido como feminino e ter amigas e amigos que me lessem
como mulher, e eu direi Pois é, vamos conversar sobre isso, eu tenho
várias opiniões sobre o assunto, e ela vai dizer Legal, e eu vou dizer
tipo É, você é jovem e não é tão alta assim, e pelo visto a puberdade
praticamente não passou pela sua casa, vamos começar uma terapia de
reposição hormonal já, e ela vai dizer Cara, sei lá, e a gente vai
conversar, e ela vai chorar, e eu vou criar um LiveJournal para ela
poder processar tudo o que está sentindo e aí vou embora e com
certeza vou aprender alguma coisa sobre mim mesma também.
Ela desliga o motor, mas abre um pouco a janela. Então abre as
outras janelas, tranca a porta e volta a atravessar o estacionamento.
12

Dez minutos depois de Maria ter ido embora, bem quando James
tinha se conformado com o fato de que nunca mais veria aquela
garota, ela reaparece andando pelo corredor na direção dele. Maria
Gri ths, caralho, a Rainha da Porra Toda. Seu rosto exibe uma
expressão que é meio difícil de encarar, como se ela tivesse quase se
convencido de que é uma pessoa cool e está no controle. Mas não cem
por cento. Tipo quase não dá para ver que ela está apavorada.
James H., diz ela quando alcança a seção de música e filmes. Sua
voz não soa apavorada. Eu sei que a gente não se conhece nem nada,
mas estou na estrada faz tempo e na real não tenho conversado com
ninguém sobre nada em lugar nenhum, faz tempo, e agora que parei
numa cidade de verdade estou pensando em ficar um pouco, mas não
conheço ninguém aqui. Só, tipo, você. Eu meio que estava torcendo
pra você poder me mostrar a cidade.
James responde sem pensar: É uma cidade idiota pra ficar. Então
olha em volta. Não é o tipo de coisa que se deva dizer quando se é um
representante público da corporação Wal-Mart.
Quer dizer, diz ele, Ahn, olha, é, pode ser. Na real, não tem muita
coisa pra mostrar, mas não tô fazendo nada mesmo.
Ele pensa muito claramente que, embora seja esquisito uma pessoa
desconhecida simplesmente aparecer e pedir para colar em você,
principalmente uma desconhecida que parece uma assassina, aquela
talvez seja a única chance que ele vai ter de, tipo, conversar com uma
mulher trans de verdade, ainda que ela seja uma assassina mesmo. Seu
pensamento seguinte é um longo uau, mas o que vem em seguida é
uma coisa vaga, tipo é óbvio que ela não sabe sobre ele ou sobre
qualquer questão relacionada ao gênero que ele possa ter, e é óbvio
que ele não pode deixá-la perceber que sacou que ela é trans porque
obviamente isso seria uma baita falta de educação. E isso vai ser um
lance meio complicado de navegar, certo? E aí, depois de pensar essas
coisas todas, ele acaba chegando na primeira coisa em que deveria ter
pensado, que é tipo: o que Nicole ia pensar se ele não pudesse
encontrar com ela hoje? Uma única noite em toda a sua desolada
união ou sei lá, e nesse único dia entre uns setecentos dias, ele meio
que sair com aquela outra garota?
Então ele fala depressa: E eu tenho namorada e tal…
Ela ri.
É, tanto faz, James H., não se preocupa, em primeiro lugar eu nem
saio com caras — James se retrai e tenta disfarçar — e em segundo
devo ter dez anos a mais que você, então a gente tipo nem está na
mesma divisão de namoro. Tecnicamente falando. Eticamente falando.
Tranquilo, diz ele. James sente vontade de pedir isso por escrito
enquanto pensa uau, ela curte garotas! Se você lê algumas coisas na
internet, você sabe que existem mulheres trans que curtem garotas, e
é um pouco aterrorizante pensar nisso porque, se é possível ser trans e
curtir garotas, então tipo, isso torna mais possível ele poder ser trans,
tipo legítima e verdadeiramente trans, coisa em que ele não quer nem
pensar e esse obviamente nem é um argumento muito convincente. É
uma possibilidade. Enfim. Mas ainda assim James pensa: obrigado,
Divina Providência, por jogar no meu colo essa trans gata, esquisita e
sapatona, do nada, de um jeito totalmente não sexual.
Ele pensa: mas vai ver eu a Nicole estamos até terminados. James
só partiu do princípio de que a veria dali a um ou dois dias, de que
nada aconteceu e de que estariam juntos outra vez, como sempre
acontece, mas agora pensa: na real, isso importa. E então se dá conta
de que peraí, putz, eu já disse em voz alta que tenho namorada. Essa
evidentemente é a manobra defensiva clássica quando uma garota
flerta com você: nem pensar, cara, eu tenho uma namorada secreta!
Ela mora em, ahn, em Olympia! Ela faz faculdade. Mas James já estava
pensando em Nicole e ele não queria namorar ninguém nunca mais,
então ela é uma boa desculpa, mas na verdade ele também meio que
tem um relacionamento com ela. Na vida real.
Maria pergunta que horas ele sai, e em vez de responder com uma
piadinha idiota James diz: Acho que daqui a uma meia hora.
Tá, diz ela, estou num carro verde feioso bem no final do
estacionamento, com um monte de adesivos constrangedores colados
e que não é lavado tem um tempo.
E tem um cachorro e um gato.
Haha, é, diz ela. Um cachorro e um gato. Isso.
Meia hora mais tarde, James bate o ponto de saída e encontra o
carro dela na hora. O estacionamento do Wal-Mart de Star City nunca
fica lotado. Ela está sentada debaixo de uma árvore em frente ao carro
verde, toda suada.
Oi, diz ela.
Oi.
Maria e ele passam alguns instantes se entreolhando, a
integralidade do pânico em relação ao que está prestes a acontecer
parecendo uma presença física no ar que os separa, antes de James
quebrar a tensão com um comentário inteiramente amável: Você está
com calor, hein?
Pois é, cara, diz ela. Só que estou num dilema, sabe? Sou feminista
o suficiente pra não raspar as pernas tipo nunca, mas não feminista o
suficiente pra de fato deixar alguém ver.
Mas você está tipo de suéter, de jaqueta e tal.
Ela faz uma pausa e então diz: James H., você já passou umas duas
semanas usando as mesmas roupas?
Ele diz, tipo: Acho que não, e ela diz: Você meio que se acostuma
com elas, e quanto mais tempo passa sem tirar nada menos quer fazer
isso. Tipo o Homem-Aranha e a roupa do Venom, sabe? É a mesma
coisa.
James tenta acompanhar, mas já está começando a se perder.
Precisa fumar um.
Eu sei quem são… o Homem-Aranha e o Venom, diz ele.
Então escuta, o que as pessoas fazem por aqui? Tem um lago onde
a gente possa ir tomar cerveja ou tipo uma ponte onde o pessoal fica
fumando coisas esquisitas e se queimando com cigarros?
Ahn, tem um rio. Mas é uma merda.
Já entendi, James H., diz Maria. Tudo aqui é uma merda. Mas neste
momento eu não estou a fim de dirigir mais nem um metro na direção
do Pacífico, e o que mais a gente pode fazer? Ficar aqui sentado e fazer
uma sauna de maconha dentro do carro?
James diz: Bom. Na real…
13

James cuida da logística: se ele e Maria vão ficar sentados dentro do


carro com os vidros fechados, vão ter de achar um lugar com sombra e
um lugar distante, longe da polícia. E terão de se comprometer com o
plano. Basicamente, isso significa que vão ter de voltar para o prédio
dele e estacionar na sombra da fachada leste do edifício. E tudo bem,
James já ficou doidão lá algumas vezes, ninguém se importa. Mas se
vão de carro até lá, o melhor talvez fosse fazer uma sauna de maconha
na porra do banheiro dele.
Mas Maria topa, James e ela estacionam num trecho de sombra
atrás do prédio e ele faz a cabeça dela. Parece que ela nunca fumou um
antes, fica tossindo e precisa fazer longos intervalos entre os tapas, e
depois que fica doidona não consegue mais se comunicar direito. As
frases se interrompem no meio, ela começa a rir sem motivo. Na real,
é meio irritante. Maria ri quando se lembra daquela banda chamada
Sublime, que na verdade não é ruim. Mas como ela mal consegue dar
conta da sua parte da conversa, James começa um monólogo, e depois
de um tempo ela meio que entra no clima e fica balançando a cabeça
como se estivesse acompanhando o que ele está dizendo e tal. Ele se
pega falando principalmente sobre Nicole. Diz, tipo, o negócio é o
seguinte, eu tenho uma namorada e gosto muito dela, ela é demais,
mas. Mas o simples fato de haver um mas meio que significa alguma
coisa, certo? Ele diz, não é nem que eu não queira ter uma relação
com ela, eu só, eu não quero estar nesse contexto, trabalhando nesse
emprego, morando nesse apartamento, nessa cidade, e ela faz parte
disso. Ele provavelmente não está conseguindo explicar direito, mas
começa a visualizar Minha Vida e Tudo o Mais como uma imensa e
complicada trança, como uma pulseira de linha cujas cores
representam seu emprego, Nicole, seu apartamento, sua mãe, e todas
as coisas que acabam formando a trama da sua vida. A pulseira de linha
da sua vida. Ele sabe que aquilo é uma epifania idiota de maconheiro,
mas mesmo assim a abraça e diz: Nicole é um dos fios dessa trama, ela
está presa nessa cidade, nessa vida, e eu, sabe, eu só penso que não sei
se posso me afastar dessas coisas todas pras quais não ligo e que não
quero e ficar com ela, sabe?
Maria diz: Ela falou isso, e James: Falou o quê, e Maria: Nicole
falou que queria ficar aqui?
James pensa a respeito e é obrigado a admitir que não, não assim
tão explicitamente, talvez não, mas diz: Bom, eu acho que ela nunca
disse nada sobre querer ir embora.
O negócio é o seguinte, James H., diz ela, ainda parecendo bem
doida, mas subitamente lúcida. O que você quer?
Não isso aqui, diz ele.
Não, eu sei, diz Maria, Mas o que você quer? É fácil falar mal do
lugar onde você está e das coisas que você tem, mas é mais difícil e
provavelmente mais produtivo nomear coisas concretas e desejar essas
coisas. Sabe?
Como nunca tinha pensado antes sobre de fato querer alguma
coisa, James diz: Meu Deus, eu não faço a menor ideia do que eu
realmente quero. Me mudar pra perto da baía de São Francisco,
talvez?
Irado, cara, diz ela, pegando o cachimbo de vidro verde todo
grudento, dando um tapa, prendendo a fumaça no peito e depois
soltando. Eu também.
James diz: Hahaha isso aí, e ela diz: Hahaha pois é cara. E dão
risada. A fumaça dentro do carro não está tão densa quanto num filme
de Cheech e Chong nem nada, mas está bem forte, e os olhos de
James e Maria estão começando a lacrimejar e arder.
Mas sério, diz Maria, pensa nos detalhes. Você quer ter uma
banda? Quer fazer faculdade, escrever um romance, sentar numa
árvore pra não deixar ninguém derrubar? Quer fazer muito sexo
bizarro, fazer sexo nenhum, comer muita comida vegana, ter um corte
de cabelo que pareça um código secreto pra identificar você como um
integrante de uma subcultura para outros integrantes dessa mesma
subcultura? Seja específico, James H., porque você está num
momento da vida em que pode fazer qualquer coisa. E qualquer coisa
vai ser demais.
Ela falou esquisito, então James pergunta: Você está citando o que
agora, cara?
O bom e velho Faith No More, responde ela.
James já ouviu falar no Faith No More.
Escuta, quer entrar e achar alguma coisa para comer ou algo assim,
pergunta ele.
Porra, quero muito, diz Maria. Você tem pizza congelada?
Tenho, acho que sim, diz James, pensando com força em pizza
congelada. É isso aí, porra. Até que enfim: alguma coisa incrível.
14

Tá, Maria não tinha a intenção de ficar tão doidona a ponto de não
conseguir ter uma conversa de verdade, mas feito um Maquiavel
chapado conseguiu mesmo assim direcionar a conversa para assuntos
sérios. Mesmo chapadona ela entendeu na hora que a relação daquele
menino com a namorada não era o problema. Nicole devia ter
dezenove anos e ser bem legal e estar muito à frente de James em
matéria de quase tudo. James só não sabe como estar numa relação
porque não sabe ser ele mesmo, e ninguém tem como ser uma das
pessoas numa relação se estiver ocupado se recusando a ser uma
pessoa.
Certo?
E aquele apartamento não parece o apartamento de uma pessoa.
Não que seja o apartamento padrão de um garoto de vinte anos: não
tem uma pia lotada de louça suja, nem cheiro de suor. Parece um não
apartamento, um apartamento fantasma. Tem literalmente uma
luminária no teto, um futon, uma mesa de computador, uma cômoda
de criança bem detonada e um home theater precário com uma
imensa televisão de tubo velha de vinte e sete polegadas. Há indícios
que demonstram que é o apartamento de um Cara Jovem: alto-falantes
tão grandes que parecem fora de lugar, conectados ao aparelho de som
que brilha mais do que qualquer outra coisa na sala. A grande e bem-
organizada coleção de DVDs. E todos Filmes Clássicos, além disso, em
vez de séries completas de anime ou coisa assim: filmes pretensiosos e
totalmente entranhados em construções de valores patriarcais, mas
pelo menos não eram filmes esquisitos e chatos.
Ela leva um segundo para entender como um espaço tão
esparsamente ocupado por coisas pode parecer abrigar qualquer tipo
de vida. Então entende: é porque está tudo saturado de fumaça de
maconha. A poeira na tela da TV e nas prateleiras de DVDs é
obviamente tanto cinza e THC quanto uma pele velha e as traças de
poeira que adoram comê-la. A fumaça se entranhou profundamente
em todas as superfícies.
Não tem pizza.
A gente pode pedir, pergunta Maria.
Sei lá, cara. Acho que sim. Enfim… tem uma Domino's, mas a pizza
de lá é ruim e cara. Tem uma pizzaria do lado do Wal-Mart, mas acho
que eu meio que estou evitando ir lá.
James não menciona que está evitando ir lá porque está evitando a
namorada. Na real, ele não admitiu isso nem para si mesmo.
15

James e Maria comem uns bolinhos de batata congelados, e depois


disso ela só fica ali de bobeira. Essa provavelmente é a primeira pista
que James tem de que aquela garota não vai lhe proporcionar a
aventura de crescimento pessoal, ou pelo menos a história legal pela
qual ele estava torcendo. Na real, James está meio sem graça; Maria
para de fumar, mas James continua e então diz: Vamos ver um filme?
Ela diz: Tá, legal, e pega no sono sentada no futon quase na mesma
hora em que ele põe para passar o que quer que tenha posto. Twin
Peaks ou algo assim. Então ele pensa: Caralho, cara, e agora, o que eu
faço? James vai até o computador e pensa: Queria saber se ela tem um
sono pesado o suficiente pra eu poder tocar uma.
Um pensamento não de todo apropriado.
Mas ele começa a se dar conta de que aquela Garota de Outro
Lugar não vai lhe mostrar o que significa ser cool, nem explicar o
segredo para sair da sua cidade natal de merda, nem fazê-lo participar
de algum misterioso ritual oculto à luz do luar ou algo assim. Ele
provavelmente deveria ter ligado para Nicole e pronto. São tipo oito
da noite e ele não mandou nem uma mensagem para ela, então pega o
celular.
Três mensagens. Caralho.
São todas de Nicole, num tom crescente de casualidade forçada:
e aí james, tá fazendo o quê?
oieeee
tá, tudo bem, vou gravar uma fita
Ele responde: oi, não tô me sentindo muito bem, peguei no sono
depois do trabalho, a gente se vê amanhã?
Ela responde na hora:
tranquilo
Ele sabe em algum nível que está sendo um maconheiro babaca,
mas cada sílaba daquele diálogo lhe deu a sensação de que o mundo
estava acabando. Que ansiedade é essa? Caralho. Ele enche outro
cachimbo e fuma. Fica encarando o computador. Do futon não dá para
ver o monitor e Maria está dormindo como se estivesse morta, mas
com certeza está respirando, então James passa um tempo olhando
legendas pornô ridículas sem se masturbar, passa uma hora espiando
um fórum sem absorver nada, procura um programa da Nickelodeon
do qual se lembra mais ou menos de quando era pequeno, põe um
fone de ouvido e adentra uma espiral de vídeos do YouTube sobre
transição, e quando levanta a cabeça vê que já passa da meia-noite.
Maria não se mexeu; parece um saco de lixo cheio de folhas secas em
cima do seu futon. Então James pensa: ah tá, acho que você vai dormir
aqui, desenterra seu saco de dormir do fundo do closet e vai dormir
no chão, no outro lado do apartamento.
Pega no sono pensando na última coisa que googlou antes de
bloquear o computador: “como perguntar educadamente se uma
pessoa é trans?”.
Praticamente todo mundo concordava que não existe um jeito
educado de perguntar isso. Mas o que mais ele pode fazer? James dá
mais um dois antes de ir dormir, mas não consegue parar de se
preocupar com isso. Meio que precisa falar no assunto com ela.
Não tem coisa pior do que ficar na paranoia depois de fumar um.
Mas na manhã seguinte ele pergunta e pronto. Ela está deitada no
futon de um jeito que dá para perceber que está acordada, só não sabe
como agir, tipo como rolar para o lado e bocejar, e provavelmente
precisa ir ao banheiro, mas não se levanta para não acordá-lo. Um
impasse clássico de boa educação. James tenta rolar de lado fazendo
bastante barulho, mas ela não olha na sua direção. Ele tosse e finge dar
um espirro, vê a hora no celular. Está cedo, mas como ela só faz ficar
deitada ali James pensa: tá, que se foda, e começa a encher o cachimbo
para fumar. Faz isso de um jeito bem silencioso, mas ela
provavelmente decide que o movimento e o barulho são suficientes
porque diz: Ah, oi.
James diz: Ah, oi.
Ele tenta não reparar que o rosto dela está tipo, com a barba por
fazer.
Então, ahn, diz ele, encarando o fundo do cachimbo como se fosse
encontrar alguma coisa ali, dichavando um camarão e tentando dar a
impressão de não estar perguntando nada inadequado. Você é trans,
né?
Puta que pariu, Maria resmunga. Ela levanta do futon, vai até o
banheiro, entra e fecha a porta.
16

No banheiro, Maria está pensando: o cara simplesmente perguntou na


lata se eu sou trans! Acho que isso nunca aconteceu comigo. Assim
que começou a transição, as pessoas a incomodavam no metrô e
ficavam encarando, e ela já tinha escutado muito Aquilo ali é um cara,
e Você é homem porra, mas ali no banheirinho de James H., com uma
torneira que parecia poder ser quebrada sem querer, ela está
pensando: será que foi mesmo uma grosseria?
Tipo, seu plano desde o dia anterior era contar para James que ela é
trans para poderem conversar a respeito e fazê-lo encarar as próprias
questões trans. E essa deveria ser uma pergunta neutra, sem
julgamento de valor, certo? Num mundo menos fodido em relação às
pessoas trans, essa seria uma pergunta perfeitamente legítima: meio
abrupta talvez, tipo você pinta seu cabelo branco ou algo assim. Mas
neste mundo essa pergunta deixava Maria com falta de ar.
Ela inspira vagarosamente algumas vezes com muita intenção, joga
um pouco d'água no rosto, decide que não vai fumar maconha nesse
dia por mais que aquele menino ofereça com toda a educação — por
mais inocente e cansada que seja sua expressão quando ele oferece —
e engole a coisa apavorada, zangada, angustiada e ofendida que tinha
subido pelo peito até a garganta dela. Olha sua cara sonolenta no
espelho, com o rímel da véspera borrado debaixo dos olhos e um
vinco de futon numa das bochechas: James H. tem o direito de
perguntar se você é trans, sua idiota. É justamente essa a questão,
Maria! O fato de não ser você quem está decidindo quando revelar
esse fato provavelmente é até melhor, porque ontem isso ficou na sua
mão e tudo que você conseguiu fazer foi ficar doidona e dormir.
Ela pensa: tá, vou só falar sobre ser trans. Nada demais. Eu falo
sobre ser trans o tempo todo! Só não em voz alta. E ela pensa: acho
que faz um bom tempo desde a última vez que eu precisei falar sobre
isso. Quem sabe essa conversa não precise ser tão apavorada e tão
triste.
Basicamente, ela pensa: tá, eu consigo. Mas acho que já decidi
fazer.
Por um instante pensa em fazer a barba e se maquiar antes de sair
do banheiro. Na real, ela quer muito fazer isso: se você vai falar sobre
ser trans, seria bacana poder demonstrar um pouquinho, tipo, olha só
como você pode ficar com uma aparência razoável, olha como pode
acabar ficando bonita, e tranquila e resolvida. Essa obviamente é uma
regra misógina patriarcal: seja bonita! Mas antes de transicionar,
quantas mulheres trans têm a manha de desconstruir obrigações
patriarcais impostas às mulheres? A síndrome de Estocolmo com o
patriarcado é inevitável. Mesmo quando você resiste e não raspa o
sovaco, é obrigada diariamente a ouvir comentários de qualquer idiota
no metrô. E quando você é uma mulher trans, as obrigações
patriarcais sobre apresentação são ainda mais distorcidas por
narrativas sobre saídas do armário, validações como ser humano,
violência, a possibilidade de algum dia ser considerada atraente e
provavelmente uma porção de outras coisas que você ainda nem
sequer identificou. O que, na real, dificulta muito sua saída do
banheiro. Enfim, tudo isso nem se aplica, porque ela deixou a
nécessaire com a gilete e todo o resto lá no carro, então encontra uma
escova e quase a passa nos cabelos antes de reparar, no espelho, que a
escova está praticamente espetada em todas as direções com cabelos
compridos, lisos e castanho-desbotados que ela não quer que
encostem na sua cabeça. Tanto faz. Ela pousa a escova, corre os dedos
uma ou duas vezes pelos cabelos para desembaraçar os piores nós e
abre a porta.
Maria volta para o futon. Em determinado momento ela tirou a
saiona e seria esquisito vesti-la de novo, então põe uma almofada no
colo e diz: Sim, James H., eu sou trans. Como você sacou isso?
Ela percebe na hora que essa é a pior pergunta possível para
começar aquela conversa.
James diz: Eu não sei.
Ah.
Ele dá uma tragada no cachimbo e segura a fumaça. Maria aguarda.
É, diz ele, quer dizer, não que seja muito óbvio nem nada disso, é
só que, tipo, eu estava meio que, sei lá.
Então Maria pergunta se ele tem café e ele diz que sim, talvez, no
freezer, e ela então se levanta e encontra um saquinho de papel
metalizado jurássico todo grudado de gelo. Faz uma careta: não é
assim que se toma café em Nova York. Lá a gente tem moedores,
rituais, prensas francesas e livros para descrever aromas, sabores e
sensações na boca. O café congelado de James a faz pensar na casa de
sua mãe quando ela era mais nova. Aquele café é meio deprimente,
mas vai acordá-la e manter afastada a dor de cabeça.
O negócio é o seguinte, James H., diz Maria enquanto despeja o
café numa velha cafeteira empoeirada. Vamos recomeçar do zero esta
conversa, com o pé direito, e ficar longe de modelos normativos da
compreensão da transexualidade.
Ela pensa: vamos começar com a compreensão desse menino sobre
si mesmo. Sobre si mesma. Seja o que for. Para onde quer que James
seja levado, não se pode escolher um pronome para o outro, ainda que
você queira atribuir um pronome do qual acha que a pessoa vai gostar.
Ela pensa: a vida dele vai ser perfeita, vai ser demais, mas então se dá
conta de uma coisa.
Peraí, diz ela. James H., você é trans?
Ele literalmente bufa.
Você tá perguntando se eu sou uma garota na real? Não.
Não, diz ela. E começa a se preparar para explicar que o modelo Na
Real O Gênero que Te Atribuíram no Nascimento é cisnormativo e
venenoso, mas se detém. Vão chegar lá. A questão em pauta é mais
importante do que essa. Apesar de ter criado toda uma cosmologia na
qual uma porrada de peças de quebra-cabeça interconectadas de
compreensão sobre opressão, misoginia, transfobia, falso feminismo
transfóbico, e todas as outras coisas que formam o panorama que
explica por que todo mundo sempre acha as mulheres trans loucas e
burras, Maria percebe que talvez ela não consiga juntar todas essas
peças para uma outra pessoa. O que é uó. Mas afasta a questão por um
instante, tipo, não, vamos nos ater ao assunto em questão.
Não, estou perguntando se você alguma vez pensou que poderia
ser trans, não se você é uma pessoa trans.
Ah, diz ele. E deixa Maria esperando enquanto dá mais uma
tragada heroica. Ele prende a fumaça, solta e diz: Não sei.
Mas o modo como ele a encara depois de dizer isso —
amedrontado, talvez um pouquinho agressivo, mas principalmente,
tipo: você acredita em mim? — deixa a resposta clara.
17

Tem uma coisa que Maria está acostumada a fazer na internet. Como
na real ninguém quer ser uma mulher trans, ou seja, ninguém acorda
e pensa: uau, talvez minha vida fique melhor se eu transicionar, assim
vou perder a maior parte dos meus amigos e parentes, e o que será
que vai acontecer no trabalho, eu adoraria gastar todo o meu dinheiro
com hormônios e cirurgias, comprar todo um guarda-roupa novo que
no momento eu nem entendo, provavelmente me tornar impossível
de ser amada e depois pôr fim à minha curta vida com um assassinato
sangrento. Na verdade, se existe uma coisa que se ganha com uma
vida inteira de síndrome de Estocolmo com a hegemonia é uma
compreensão plena dos clichês culturais sobre as mulheres trans.
Esses clichês se originaram na antiga prática de dizer a todas as
pessoas que acham que podem ser trans que deviam ter certeza
absoluta de ser trans antes de sequer cogitar comprarem qualquer
roupa ou começarem a tomar bloqueadores de testosterona. É a velha
narrativa, a narrativa do Johns Hopkins dos anos 1970: as únicas
pessoas realmente trans são aquelas que já sabiam explicitamente
desde a mais tenra idade, que são bonitas sem precisar de hormônios e
que não conseguem sobreviver sem transicionar. As mulheres trans na
internet olhavam em volta e pensavam: bom, talvez sobreviver a
primeira parte da vida no papel de um cara cis seja uma estratégia de
adaptação. Talvez se convencer de que a transição seria uma coisa
impossível seja um mecanismo de defesa que permitiu à pessoa
sobreviver ao ensino médio, à família, ao trabalho, mas assim como a
maioria dos mecanismos de defesa, não era uma coisa consciente, e
assim como a maioria dos mecanismos de defesa, se transformou num
padrão do qual a pessoa não tinha consciência, e então, assim como a
maioria dos mecanismos de defesa, em determinado momento parou
de facilitar e começou a dificultar a vida dessa pessoa.
Além do mais, o mundo já evoluiu desde a narrativa segundo a qual
ser trans é algo a ser evitado a todo custo; o mundo evoluiu desde a
narrativa segundo a qual o único jeito de ser trans é ser jovem,
delicada, bonita e curtir homem, e então transicionar e sumir. Hoje
em dia existe uma compreensão bem melhor do que significa ser
trans: você é trans e pronto. O fato de a sua transição talvez não correr
às mil maravilhas por causa do formato do seu corpo, ou do formato da
sua família, ou do formato da sua personalidade, ou da maneira como a
sua sexualidade se moldou não significa que, portanto, você possa
simplesmente decidir não ser trans. Não é algo que a gente expulsa
com a força do pensamento. Expulsar a transgeneridade com a força
do pensamento é um mecanismo de defesa que inevitavelmente vai
falhar, e você estará de volta ao ponto de partida: sendo trans. Só que
mais velha e mais entranhada numa vida que mal passa de um
mecanismo de defesa destinado a impedir você de ser trans no mundo
real. Se você é trans, você é trans, e se você tiver uma obsessão com o
fato de ser ou não ser trans é porque provavelmente você é trans.
Durante um tempo se dizia que a gente precisava ter certeza
absoluta. Depois começaram a dizer, sei lá, cara, parece provável que
você seja trans, você deveria explorar isso. Aí, depois de algum tempo,
quando Maria e as mulheres trans da internet não puderam mais
deixar de reparar que estavam cem por cento corretas nos seus
diagnósticos dos fóruns online, elas começaram simplesmente a dizer:
Bom, você com certeza é trans. Porque, mesmo na eventualidade
improvável de alguém que procura uma comunidade trans para falar
sobre essas coisas não ser realmente trans — o que quer que
Realmente Trans signifique, aliás —, talvez ouvir alguém dizer, tipo,
você é trans, pudesse estimular alguns pensamentos úteis. Tipo: se
você vai decidir seu gênero para o resto da vida com base no que um
ou dois idiotas te dizem online, é provável que você tenha outros
problemas além de um falso diagnóstico de transexualidade. Além do
mais, ninguém disse que você precisava se comprometer pelo resto da
vida com nada.
Então, quando James diz: Não sei, a resposta imediata de Maria é
algo tipo: Eu sabia. Eu sabia. Porra, como eu sou inteligente. É a
oportunidade perfeita de explicar tudo para ele.
Ela diz algo tipo: Uau, você não sabe?
Eu não sei, diz ele. Quer dizer, eu penso nisso. Mas, tipo, olha pra
mim, saca? Eu tenho um emprego, uma namorada. O que vou fazer,
começar a usar vestidos?
Ele baixa os olhos para as próprias mãos. Está segurando o
cachimbo em uma e o isqueiro na outra. Sem realmente pensar no que
está fazendo, James leva o cachimbo à boca. Seu polegar do isqueiro se
move, mas ele então diz: Peraí, nada a ver, não tem nada a ver fumar
agora, e estende o braço e pousa o cachimbo em cima da mesa. Parece
algo bem maduro de se fazer.
18

O mais idiota é que James agora obviamente sabe que transicionar não
é só, tipo, botar um vestido e ir trabalhar. Ele sabe que pessoas burras
e ridículas pensam assim. E já estava se recriminando por ter dito
“uma garota na real” minutos antes. James sabe que isso não se diz.
Mas é estranho como é difícil falar sobre essas paradas mesmo quando
você quer falar sobre elas. O cérebro dele simplesmente desligou e
ficou burro.
Mas Maria quer muito falar no assunto.
Ela pergunta: Então você já pensou nisso?
E ele diz: Sei lá, acho que sim.
E ela diz: Tipo pensou sério?
E ele diz: Sei lá, acho que sim.
Os olhos de Maria brilham, como se ela estivesse totalmente
chapada por James estar lhe contando isso, mas o cérebro dele está
congelando mais ainda, como se houvesse uns cem milhões de coisas
que ele quisesse dizer, mas quer dizê-las todas ao mesmo tempo,
então tudo que consegue dizer é: Você quer dar um dois, e: Sei lá, e:
Ahn, e: Hmmm. Ele vê embalagens de pizza e poeira nos cantos do
cômodo, uma camada de poeira cobrindo tudo, e não consegue
processar muito bem o fato de aquela pessoa estar ali dentro do seu
apartamento.
Maria diz: Então você sabia que eu era trans?
E James diz: Sei lá, sim.
Porque obviamente você não diz para uma pessoa que dava para
perceber que ela é trans, e como dizer para uma pessoa que você
sacou que ela é trans, e que o motivo pelo qual você sacou não é nada
que a pessoa tenha feito nem nada em relação a ela, mas porque
provavelmente, em algum nível, todos os dias você olha para alguém e
torce para conseguir ver indícios de que a pessoa é trans, para poder
fazer amizade com alguém que seja trans e possa dizer que você
também é trans e, tipo, resolver esse problema por você?
Mesmo assim ela se retrai, mas depois tipo quase se sacode, como
quando um cachorro está totalmente surtado por ter achado um bicho
morto que já foi atropelado algumas vezes, mas sabe que não vai poder
comer o bicho, então recua alguns passos e se sacode como se
estivesse encharcado, como se tivesse acabado de sair de dentro de
um rio, como se estivesse tentando resetar seu sistema nervoso ou
algo assim. Ou seja qual for o contrário desse sentimento, a versão
ruim de encontrar uma carcaça que você tem vontade de lamber. Seja
como for, ela se sacode e diz: É.
James diz: É.
Ela diz: Bom, ahn, acho que se você quiser falar sobre isso, fiz a
transição muito tempo atrás e sei bastante sobre as paradas trans, e o
principal motivo de eu ter voltado ao Wal-Mart foi porque meio que
adivinhei que você era trans, só que não tive certeza, mas você meio
que parecia, ahn, exatamente como eu era aos vinte anos, e pensei: eu
queria ter tido alguém para conversar sobre essas paradas nessa idade,
em vez de só a porcaria da internet de 2002, sabe?
James tem uma sensação esquisita de pontos que se ligam, ou como
se a névoa de ser um maconheiro imbecil do deserto que trabalha no
Wal-Mart tivesse se dissipado por um instante, tipo, talvez um
momento de clareza ou sei lá o quê. Porque sinceramente, desde que
ela perguntou se ele era trans, foi como se uma névoa tivesse baixado,
tipo não uma fumaça de bagulho, mas algo mais denso, e ele viajou
forte. O que lhe dá vontade de fumar ainda mais, muito embora já
tivesse fumado um monte. Mas foi como se por um segundo um raio
de luz tivesse atravessado essa névoa e várias coisas o tivessem
atingido ao mesmo tempo: ela é trans, mas não é tipo aquelas pessoas
trans bizarras da internet. Sem querer ofender. E: eu acho que acabo
de dizer em voz alta para outra pessoa que eu às vezes penso em ser
uma garota, mesmo que não admita o quanto penso nisso ou com que
intensidade. E, tipo, ele sente ao mesmo tempo dois sentimentos
conflitantes: tipo, por um lado que porra é essa garota tentando me
falar sobre coisas das quais eu não quero falar, mas por outro lado
talvez eu possa entrar no carro dela e sair da cidade com ela, e ir morar
com ela e usar as roupas dela e filar seus hormônios, e quem sabe tudo
ficaria totalmente bem para sempre. Então James se sente um pouco
como se os seus pulmões tivessem ficado sem ar, mas também como
se um tipo novo e melhor de ar tivesse sido soprado para dentro dele,
sabe? Ou algo assim, bem estranho.
Mas tudo que ele conseguiu dizer foi: É, a internet. É, tipo, eu às
vezes penso em ser uma garota, mas eu ia querer ser igual à Nicole,
sabe, não igual àquelas mulheres todas maquiadas que fazem aquelas
piadas chatas e idiotas e usam sapato bege ou sei lá que porra.
É, diz Maria, o problema da internet é que a maioria das mulheres
trans que consegue fazer a transição e continuar sendo escrota, ou
punk, ou esquisita, ou sapatão, ou radical ou sei lá o quê, elas também
mantêm distância dessas pessoas, e existe uma narrativa de “segredo
profundo” que faz parecer que a gente talvez não exista ou que a gente
para de ser trans, mas na verdade o que acontece é que a gente segue
vivendo nossas vidas e sendo esquisita e a gente… acho que eu deveria
falar só por mim, mas eu cansei de falar no assunto. Tipo, eu tenho
um LiveJournal, e conheço umas pessoas do Facebook que encontrei
na vida real uma ou duas vezes, mas em grande parte é tipo, o
Advocate quer distância de mulheres trans que não têm como bancar
plásticas na cara e detestam o capitalismo, então pode ser inclusive
muito difícil encontrar alguém.
James diz: Bom, eu não sei nada sobre capitalismo nem nada.
Maria diz: Bom, vamos conversar.
James diz: A gente está conversando.
Maria ri, e James diz: Qual é a graça?
Tá, desculpa, diz Maria. Não vamos falar sobre capitalismo nem
anarquismo nem nada, só que eu quero sim dizer que essas coisas
acabaram se revelando totalmente essenciais pra minha compreensão
de ser trans, e do feminismo, e da minha localização, e das coisas uós
em relação a ser trans. Tudo isso. Então quem sabe a gente possa
deixar isso de lado por enquanto e depois voltar.
James diz: Tá bom.
Maria diz: Bom, e sobre o que você quer falar?
James passa alguns segundos pensando, depois passa mais alguns
segundos pensando, e então, quando se dá conta de que
provavelmente está doidão demais para pensar em qualquer coisa, diz:
Quer tomar café da manhã?
Maria lhe lança um olhar que significa: dá pra ver que esse menino
bobo está com a cabeça cheia, e diz: Tá, claro, pode ser.
19

A única comida que James tem é um pouco de manteiga de amendoim


velha, um pouco de pão no freezer, e o restinho daquele pacote de
café ruim, então comem torrada com manteiga de amendoim e tomam
mais café aguado. Ter Maria na sua cozinha faz James sentir que sua
cozinha é uma bagunça empoeirada, suja e meio triste, como ter
Nicole ali nunca faz. Ele diz: Eu acho o meu apartamento uma merda.
Estranho a gente não notar essas coisas.
Então preparam a comida, e ele continua meio que sentindo a
cabeça em órbita ou algo assim, mas comer e mudar de assunto o faz
sentir que talvez as coisas intensas tenham sido guardadas, muito
embora em seu corpo e nos seus nervos ele provavelmente ainda as
esteja sentindo. Tipo, ele está se sentindo meio tonto.
Maria e James passam um tempo sem dizer nada, só meio que
preparando a comida e comendo, mas então, do nada, Maria diz: Você
já foi pra Reno, né?
James diz: Já.
Ela diz: Quer ir pra lá? Agora?
Não sei, diz ele, com a boca toda grudenta de manteiga de
amendoim. Eu meio que preciso trabalhar hoje à tarde ou sei lá.
Você que sabe, diz Maria. Mas James meio que precisa perguntar a
si mesmo: será que eu quero ter o tipo de vida em que peço folga do
trabalho para ir pra Reno com uma desconhecida legal e maluca, ou
quero ter o tipo de vida em que trabalho lealmente para o Wal-Mart
até morrer?
É provável que exista um meio-termo entre as duas coisas, e além
do mais foi algo meio estranho e manipulador de se dizer, mas
enquanto pensa e engole a comida James meio que pensa: bom, na
real, eu acho que quero ter o tipo de vida em que mato o trabalho pra
ir pra Reno com uma assassina transgênero que acabei de conhecer,
ou algo assim. E quanto mais ele reflete, mais pensa: uau, na real, é
essa a sensação de ter liberdade. Decidir matar o trabalho para passar
o dia com uma desconhecida não parece algo que as pessoas de Star
City fazem, mas provavelmente é algo que gente legal, com um cabelo
estranho e roupas esquisitas que ele nem sequer saberia como usar,
tipo em Portland ou em Austin ou algo assim, provavelmente é algo
que gente assim faz.
Tá bom, diz ele. Mas, tipo, o que a gente vai fazer em Reno afinal?
Apostar?
Cara, a gente vai se acabar lá, diz ela.
Ah.
É, cara.
Mas você sabe que eu não tenho idade pra beber, né?
Ela faz uma cara de hmmm, então engole em seco.
Bom, ahn, diz ela. Então diz: Não, deixa pra lá.
Ele diz: Que foi?, e ela diz: Ahn, bom, é uma proposta meio
estranha, mas eu meio que tenho um montão de heroína?
20

Nesse ponto James precisa reconhecer a sensação que vem subindo e


descendo pela sua espinha desde a primeira vez em que a viu no Wal-
Mart, mas que até ali conseguiu ignorar. Ele pensa: que porra de
pessoa é essa aqui no meu apartamento?
Maria meio que percebeu que James ficou chocado, então começa a
falar, mas ele meio que fala por cima: Ahnnn, quem é você? Tipo
sério, tudo que eu sei é que você é trans e tem um cachorro e um gato
de mentira, e talvez tenha heroína de mentira também, mas pode ser
que seja de verdade? O que você tá fazendo aqui?
E ela apenas diz: É, tá bom, e depois disso nem James nem Maria
sabem o que dizer, então ele pergunta mais uma vez: Sério, quem é
você?
Maria está sentada no chão, e James no futon. Ela o encara do outro
lado do cômodo com a franja na frente dos olhos, afasta os cabelos da
testa — sua testa meio grande — e dá um suspiro.
Tá, ela diz. Claro. Eu tenho vinte e nove anos. Cresci numa
cidadezinha do interior de merda na Pensilvânia, me mudei pra Nova
York depois da faculdade, transicionei quatro anos atrás e trabalho
numa livraria. Bom. Acho que trabalhava numa livraria. Sei lá. Tipo
um mês atrás eu entendi que estava realmente infeliz com a minha
vida, então peguei emprestado barra roubei o carro da minha
namorada e, tipo, acho que fui só seguindo para o oeste.
James pensa: tipo tá, e também é viciada em heroína? E, tipo, você
estava inevitavelmente infeliz com a própria vida porque é trans,
certo? Ou seja, transicionar não funciona. Mas o que ele diz é: Você
levou um mês pra dirigir três mil quilômetros?
Ela sorri com ironia e torna a pôr os cabelos para trás. Sei lá, diz
ela. Acho que sim. Eu perdi muito tempo fazendo hora em
estacionamentos e tal.
James diz: Tipo… doidona de heroína?
Ela ri meio que alto demais.
Não, diz ela. Essa história toda é uma bobagem. Quando eu tinha
dezesseis anos, um dos meus amigos curtia muito heroína, sabe? Ele
comprava centenas de dólares e usava pra recreação. Um pico na sexta
à noite. Ou na terça à noite, tanto faz. Era tipo uma idiotice de
adolescente. Olha só como a gente é foda. Fui na onda dele. Quando
ele ia pra Filadélfia comprar quatrocentos dólares de heroína, eu dava
uma nota de vinte pra ele me comprar um ou dois papelotes. Enfim.
Nada demais.
Ela para de falar por alguns segundos, então concorda com a
cabeça, como se estivesse decidindo o quanto daquela história contar
para ele, e decide: tudo.
Então é, olha só, Maria diz. Eu meio que acabei de terminar com a
minha namorada. A gente estava junto faz vários anos, e nós duas
criamos toda uma rotina de apartamento e gatos e tal, e a gente
conseguia pagar as contas, ela tinha um emprego de gente grande que
estava transformando ela numa espécie de adulta, e eu me toquei que.
Tipo. Acho que eu simplesmente me toquei que não estava feliz,
entende? Estava culpando ela por tudo e ficando puta por ela estar
virando adulta ou sei lá o quê, mas acima de tudo eu estava
simplesmente tão desconectada que não entendia nem se estava com
raiva, ou triste, ou confusa ou o quê, sabe?
James diz: Sei.
Então umas coisas nada a ver aconteceram, diz Maria, e aí a gente
terminou e eu pensei, merda, o problema é que eu venho tentando ser
responsável, tentando me responsabilizar pelas coisas com todo
mundo pra garantir que ninguém surte por minha causa ou por causa
do que eu sinto ou do que eu desejo ou sei lá o quê. Pensei: a solução é
ser o mais irresponsável que eu conseguir. Só que obviamente isso
acabou se revelando uma teoria totalmente idiota. O negócio é o
seguinte, James H.: enquanto eu estava atravessando o país de carro,
né, e fazendo hora em estacionamentos de cidadezinhas e em rampas
de acesso à rota 80, e tomando café em paradas de caminhões no meio
da noite, o que percebi foi que esse padrão não começou no meu
relacionamento com a Steph. Esse padrão existiu durante toda a porra
da minha vida. No ensino médio eu era totalmente desconectada da
realidade, a ponto de achar uma boa ideia experimentar um pouco de
heroína de vez em quando. No fundamental eu mal tinha expressões
faciais. Aprendi a fingir bem o bastante para as pessoas não acharem
que eu era autista; na verdade é bem louco pensar como ser
totalmente desconectada do ponto de vista emocional pode ser
parecido com a masculinidade estadunidense padrão. Então, em
retrospecto, pensei: puta merda, eu não lembro grande coisa de
quando era criança, mas devo ter me desconectado da minha vida, ou
seja, tipo iniciado o padrão que fez Steph e eu terminarmos o namoro.
Quando eu era criança, comecei a desenvolver uma personalidade e
um gênero e a expressar essa personalidade e esse gênero, um
tiquinho de gente cheia de marra que não sabia nada sobre ser trans
ou como dizer: eu quero ser menina. Ou: eu sou menina. Que só sabia
que queria fazer parte da banda Poison, se vestir e se comportar igual
às estrelas do rock que eram meninos mas podiam usar aquela
maquiagem e aquelas roupas todas. Todo mundo por toda parte
começou a socializar tudo isso fora de mim. Eu era uma criança
observadora, olhava em volta e pensava: bom, caramba, é melhor eu
ouvir essas mensagens que aparecem na TV e que as pessoas adultas
dizem, em vez de sei lá que porra o meu cérebro obviamente errado
está me passando. Sabe como? Sendo total desconectada de mim
mesma, e essa porra começou quando eu era bem pequena.
Comecei a me odiar de verdade quando entendi isso, tipo, a me
odiar de um jeito como nunca tinha me odiado antes. Como se a porra
do meu chacra astral do ódio tivesse sido revitalizado. Eu pensava:
uau, tenho uma vida inteira de emoções sufocadas e não processadas
pra lidar, então que bom que estou sozinha aqui. Fiquei pensando
sobre isso, escrevi sobre isso, e depois de um tempo, quando pensei,
tipo: tá, eu tenho esse monte de heroína, talvez fosse mais fácil ter
uma overdose e morrer do que processar o que, vinte e cinco anos de
um hábito de autoinvalidação? Então eu liguei pra minha amiga
Piranha, que sempre teve a cabeça muito mais no lugar do que eu, e
ela falou, tipo: Ei, sua idiota, você já parou pra pensar que esse padrão,
esse mecanismo de adaptação, na realidade foi uma estratégia
brilhante pra se manter viva? Ela falou, tipo: Escuta aqui, sua tonta,
quando você é uma criancinha nos anos 1980, dizer “eu preciso ser
menina” não é o tipo de coisa que vai ser recebida com amor e
aceitação. É o tipo de coisa que vai ser recebida com: mas você é
menino, é melhor a gente fazer esse moleque ser mais macho, e, poxa,
nosso filho é uma aberração, que chato, e tipo: cala essa boca, menino.
Piranha disse: Maria, sua imbecil, a coisa mais inteligente que você
poderia ter feito nessa situação impossível de vencer foi agir tipo: tá,
eu vou jogar o jogo de vocês até ter idade suficiente pra fugir dele e
entender qual é a minha. Ela disse: E foi o que você fez, não foi? Você
se mudou pra Nova York. Transicionou. Resolveu a porra toda. O
problema não foi o mecanismo de adaptação, o problema é que o
mecanismo de adaptação virou um padrão de comportamento, e na
real é superdifícil simplesmente pegar e acabar com um padrão de
comportamento.
Eu disse: Cara, Piranha, puta que pariu, como é que você não está
milionária, você é uma gênia — falei isso chorando — e ela disse:
Ahn, Maria, eu não estou milionária porque sou trans e porque sou
mulher. E eu disse tipo: Ah, é.
Então, enfim, eu passei as últimas duas semanas pensando nessas
paradas, né, pensando em como resetar esses padrões, e em como,
tipo, ter sentimentos, sabe? E pensei puta que pariu, né, reler um
montão de livros da Pema Chodron e do Thich Nhat Hanh poderia ser
uma coisa bem produtiva de fazer agora; cheirar uma montanha de
heroína provavelmente seria o contrário disso. O que me fez pensar
no papel das drogas, do álcool e dessas paradas todas na minha vida e
me fez querer ficar careta, e aí, quando você fica careta, não custa nada
também virar vegana, e aí eu pensei: na verdade eu estou vivendo das
minhas quase inexistentes economias, não tenho como bancar ser
vegana agora. Sabe? Então eu fiquei micada com essa heroína toda e
não vou tentar virar uma porra de uma traficante.
Então basicamente eu pensei, tipo: que porra de pessoa é você,
Maria Gri ths? Uma porra de uma idiota, é isso que você é.
21

James fica só escutando enquanto Maria fala e se pega meio que


confiando nela. Tipo, não muito; ela claramente tem as próprias
questões e tal, mas se for para inventar uma história que explique por
que você está andando com um monte de heroína, ela tem uma
história bem boa. E ele começa a pensar: bom, talvez valha a pena
fazer uma viagem até Reno com essa pessoa.
Ele sabe que não deve ter entendido, tipo, nem dois terços de tudo
o que ela disse. Oi: ele é uma porra de um maconheiro alienado, certo,
sua vida não é exatamente a vida dela, mas ele sempre foi um menino
esquisito, né, e sempre sentiu inveja das meninas, né, então tipo, vai
ver isso significa alguma coisa? Mas ao mesmo tempo ele pensa: meu
deus, essa menina está muito fodida da cabeça, e quanto mais você
olha, mais meio que dá pra dizer que ela é trans só de olhar. E ele não
para de pensar naquele pedaço de testa. Enfim.
O que acontece se você salpicar heroína num cachimbo de
bagulho?
O cérebro dele está lotado de pensamentos, mas ele se ouve dizer:
É, eu poderia ir pra Reno com você.
Ela diz: É essa a sua resposta? Pra tudo que eu acabei de te contar?
Ele diz: Sei lá.
Maria ri. Tá certo, ela diz. É, total, partiu Reno. Mas, James H., eu
também quero que você me diga quem você é. Sua vez. É o preço da
viagem.
Ela desaparece no banheiro por cinco minutos. Então terminam o
café horroroso e caem fora.
22

A primeira coisa que James e Maria fazem no carro é passar num lugar
que vende café para Maria comprar um café de verdade. É um
quiosque drive-thru na beira da autoestrada, e ela fica um pouco
chateada por não venderem bagels. James não compra nada, e ela diz:
Ah, você prefere alguma coisa que te chape?, estende a mão para abrir
o porta-luvas e faz um gesto para indicar uma meia esportiva listrada
de azul enrolada dentro de outra meia, enfiada debaixo de uns mapas e
de um par de luvas esfiapadas daquelas sem as pontas dos dedos. Ele
diz: Sério, é aí que você guarda sua heroína, dentro de uma meia no
porta-luvas? Então entram na rota 80 e ele ainda está meio que, tipo,
principalmente tentando entender as coisas que Maria contou lá no
apartamento, tentando entender como falar de si mesmo de um jeito
parecido.
Quer dizer, pensa ele, qual é a minha, afinal? Eu sou um
maconheiro idiota que também é péssimo em relacionamentos, só que
não estou terminado com a minha namorada. Mas essa sensação de
não estar entendendo nada também está se dissolvendo tipo numa
sensação de encaretamento e numa espécie de animação. Ele não
fuma um desde antes do café da manhã.
Então, diz Maria alguns minutos depois de entrarem na
autoestrada. Qual é a sua, James H.?
Ha, diz ele. Tá. Eu acabei de fazer vinte anos. Cresci na cidade de
Star City, Nevada, uma porra de uma cidade imbecil que eu detesto, e
trabalho no Wal-Mart desde os dezesseis. Namoro uma menina
chamada Nicole. Ela é legal, mas a gente meio que brigou e eu devia
mandar uma mensagem pra ela. Minha família também mora aqui, eu
vejo a minha mãe meio que bastante. Sei lá.
Ela meio que fica tipo fazendo aquilo de encarar de forma estudada
e intencional a estrada à sua frente, e ele meio que percebe que ela
quer que ele fale sobre alguma parada de gênero ou sei lá o quê, só que
James não faz ideia do que dizer. Toda vez que ele meio que encontra
algo concreto para mencionar — tipo masturbação, ou sexo, ou
fantasias, ou quando ele chorou na fila do banheiro dos meninos na
colônia de férias quando tinha oito anos — parece haver oito ou doze
coisas a dizer a respeito e todas importantes, mas, como não consegue
escolher uma, James não diz nada. O sexo com Nicole? O vestido no
seu closet? A pornografia nada a ver na internet? Será este o momento
de explorar se fumar maconha feito um doido é uma fachada para seja
lá que porra for? Que se foda tudo isso. E tipo… quanto disso tem a
ver com aquilo que Nicole vive falando sobre como ela gostaria que
ele tomasse uma decisão? Está tudo interconectado demais para ele
sequer começar a esmiuçar ou debater. James traça uma linha na
poeira do painel, bem ao lado do duto de ventilação, expira, vê que
seus dedos pálidos e magros estão tremendo, então inspira.
Ele diz: Você sabe o que é autoginefilia?
Maria solta uma mistura de expiração e um Aaaaaah. Tipo ah, que
pena. Mas o que ela diz é: Sim, eu sei o que é isso.
Tá, diz ele. Bom, eu às vezes penso tipo, será que eu tenho
autoginefilia? Ou será que sou autoginefílico, se é que isso existe?
Faz-se um silêncio tenso e prolongado, e James sente vontade de
tirar sua maconha da bolsa e simplesmente fumar ali mesmo, naquele
exato instante, só que não dá para mudar de assunto desse jeito. O
silêncio perdura por um tempão, mas provavelmente nem por tanto
tempo assim, e então Maria ri. Tipo, ri bastante. James pensa: você tá
de sacanagem comigo, mas não diz isso em voz alta.
Maria diz: É, eu sei o que é isso. Eu, ahn. Como assim, você é
autoginéfilo?
Não sei, diz ele, sentindo-se na mesma hora encurralado e bravo, o
que talvez seja meio esquisito. Tipo, ela acabou de corrigi-lo, meio
que de um jeito sutil, mas pouco importa, é mais do que isso. Só que
essa porra na verdade não tem graça nenhuma e está arruinando a sua
vida, então ele diz: Não sei, é tipo, eu curto mulher e tal, mas acho
que tipo, principalmente o que… o que me dá tesão é… ser menina?
Tipo, não só ser menina, mas tipo. Você sabe. Sei lá, é complicado.
Ele se dá conta de que está zangado e olhando com raiva pela
janela, incendiando cactos com a raiva de seus olhos estreitados de
fúria ou algo assim.
Maria diz: James H., vamos falar sobre autoginefilia?
23

Claro, resmunga ele, sem nem sequer saber por que de repente está se
sentindo uma merda tão grande assim.
Escuta só, diz ela. Quando eu era mais nova, era superfácil
simplesmente não entrar em contato comigo mesma ou com o que
estava acontecendo. Eu podia usar roupas sem forma definida, ter
relacionamentos com pessoas nos quais só falava sobre bandas e video
games e, sabe como é, sobre nada, e que nunca iam mais fundo do que
isso. Era tudo superfácil, né? É desse padrão de alienação que eu
estava falando mais cedo. Quando as pessoas acham que você é um
cara, elas meio que esperam essas coisas de você. Mas a única ocasião
em que eu não conseguia mentir pra mim mesma sobre quem eu
queria ser, e como eu queria ser, e tipo a forma na qual eu precisava
existir no mundo se eu quisesse de fato existir nele, era quando eu
estava me masturbando.
Os olhos estreitados de James se arregalam bastante diante do fato
de aquela garota que ele conheceu na véspera estar falando sobre
masturbação, mas não diz nada.
Eu pensava em ser menina quando me masturbava, diz ela. Tipo,
assim que comecei a me masturbar. Durante anos achei que fosse por
ter uma perversão, uma tara que nunca, jamais deveria contar pra
ninguém, certo? O que era triste. Na real, eu não pensava em nada
especificamente misógino nem com qualquer outra conotação escrota;
eu só queria ser mulher, o que a princípio é rotulado como, entre
aspas, uma “perversão”. Certo? Tipo: a única forma de sexo não
pervertido é ser um cara, ficar de pau duro olhando os peitos de uma
garota e depois pôr o pau duro na vagina dela. Mas olha só, essa porra
é toda culturalmente construída e culturalmente conotada… blá blá
blá. O que eu estou querendo dizer é, tipo: daí eu entrei na internet e
comecei a consumir uma pornografia feita por pessoas que
supostamente tinham a mesma tara que eu e pensei, tipo: por que
tudo isso é tão imbecil e misógino e mal escrito, e simplesmente, tipo,
nojento, mas como na verdade não existia muito material erótico de
mudança de gênero que não fosse inteiramente escroto, eu acabei
passando uma porrada de tempo numas paradas totalmente sinistras e
uós. Levei anos pra entender que as coisas que dão tesão nessa
pornografia uó, a troca de poder, os gestos, adereços e paradigmas
específicos, tudo isso pode existir independentemente da forma total
escrota como a coisa toda é posta pelas pessoas que criam essa
pornografia.
E adivinha só, diz ela. Tem um bom motivo pra isso acontecer:
sapatonas legais, e acho que provavelmente caras legais, e
provavelmente meninas héteros legais também, sei lá, tanto faz, já
publicaram um montão de trabalhos sobre ter uma tara e ser
responsável! Mas praticamente todo mundo que produz pornografia
com mulheres trans é homem. Tipo, uma pessoa imbuída dos próprios
privilégios masculinos, e de sistemas de poder reificantes nos quais se
está no topo, e de construções profundamente misóginas do que
significa ser mulher, e portanto do que significa e como seria, entre
aspas, “tornar-se” mulher, e tipo essa coisa toda. É complicado e
nojento, mas o fato é que a pornografia é produzida segundo um
paradigma misógino por pessoas que estão inclusive cagando pra
questionar a misoginia. De certa forma elas estão erotizando a
misoginia, o que, tipo, tudo bem se você estiver fazendo isso de forma
intencional e consciente, mas quando está fazendo isso e, ops,
reforçando a misoginia como uma norma cultural, vai se foder. Tipo,
vai se foder mil vezes.
Deixa isso pra lá um pouco, diz ela. A palavra autoginefilia foi
inventada por um psicólogo; foi popularizada por um cara chamado J.
Michael Bailey, que estuda principalmente os desvios da sexualidade.
Eu sei quem é J. Michael Bailey, diz James.
Tá, diz ela. Então: ele escreveu um livro explicando que existem
dois tipos de mulheres transexuais: as transexuais homossexuais, que
eram homens gays antes de fazerem a transição e depois da transição
se tornam atraentes para homens heterossexuais, e as transexuais
autoginefílicas, que simplesmente têm tanto, mas tanto tesão em ser
mulher que decidem se tornar mulheres apesar de serem feias e
impossíveis de serem amadas.
Eu sei de tudo isso, diz James, ainda meio puto, em parte porque
não sabe como falar do que ele próprio sente e em parte por Maria
estar explicando uma porrada de coisas que ele já sabe.
Tá, mas escuta só, diz ela. Vamos ignorar por um instante essa
assimetria esquisita: se você é trans, então tem tesão ou em homens
ou em você mesma. E vamos ignorar por um instante a total falta de
análise feminista: as “transexuais homossexuais” se tornam mulheres
bonitas não por já estarem familiarizadas e à vontade com o fato de
serem objeto do olhar masculino, mas sim por curtirem homens; e
vamos ignorar, obviamente, o fato gritante de os teóricos queer, e
gerações de feministas que os precederam, mostrarem claramente que
sexo e gênero são coisas distintas, e que a sexualidade está vinculada
mas não é produzida por eles; deixando de lado essas coisas todas,
façamos a pergunta óbvia: qual é o paradigma paralelo nas mulheres?
Cadê as autoandrófilas?
Na real elas existem, diz ela, mas a questão é que esses são de certa
forma rótulos legítimos aplicados de maneira equivocada. É a
estrutura como um todo, o quão inerentemente, ao transformar a
conversa sobre a classificação das mulheres trans numa conversa sobre
a sexualidade das mulheres trans, você já determinou que a
característica que define as mulheres trans é a sua sexualidade. A
suposta “ciência” da autoginefilia consiste em criar categorias para
entender por que J. Michael Bailey tem vontade de comer algumas
mulheres trans, mas outras não. Consiste em apresentar as mulheres
trans como homens para poder entender um desvio de sexualidade
masculino, sem nunca olhar para a sexualidade feminina. Alguém
alguma vez já fez um estudo usando mulheres cis como grupo
controle para comparar mulheres trans? Porra, eu acho que não. Além
do mais: mulheres trans atraídas por mulheres que não sejam elas
mesmas existem?
É tudo uma imbecilidade sem tamanho, conclui ela.
Maria parece meio a ponto de chorar ou algo assim, então James
olha para o lado e vê que ela de fato está prestes a cair no choro.
Então ele diz: Ahn, tá bom, porque, na real, não entende o que ela
acabou de dizer.
É que uma vez que você começa a usar os termos dessas pessoas,
diz ela, você está se colocando dentro de uma caixa restritiva criada
por elas, que não deixa espaço pra entender quem você é ou o que
você quer. É uma caixa com os rótulos Cara e Tarado — Segredo
Ruim e Terrível. Quando na minha experiência não deveria ter de ser
um segredo o fato de, se você é mulher, talvez sentir tesão no fato de
ser mulher quando for o momento adequado de sentir tesão; quando,
na real, se você é mulher, seja trans ou cis, faz sentido curtir a ideia de
ser uma mulher na cama. Não é uma tara isso, de jeito nenhum. É tipo
o oposto de uma tara. É a coisa menos tarada que existe, o fato de a
sua sexualidade corresponder ao seu gênero! Então, tipo, a teoria da
autoginefilia só foi criada basicamente pra reforçar a ideia de que as
mulheres trans são homens, de que as mulheres não têm sexualidade e
de que os caras héteros são as pessoas certas para falar sobre a
sexualidade das mulheres queer.
Tá, mas eu não disse que sou trans, diz James. Eu nem sei o que eu
sou, mas sei que a autoginefilia meio que se encaixa, então sei lá.
Bom, é, mas mesmo assim, diz ela, fazendo uma pausa de alguns
segundos. As nossas taras não são simplesmente coisas aleatórias que
caíram na nossa cabeça. Elas nos revelam coisas: querer ser amarrada
em geral tem a ver com os relacionamentos coercitivos profundos,
escrotos e normativos que a gente tem com os diferentes tipos de
liberdade; querer que alguém te bata em geral tem a ver de alguma
forma com vergonha. Na prática são coisas bem complicadas, e
complicadas por causa de vários outros fatores, mas, sendo sincera,
quando não nos permitem ter uma coisa que a gente quer, a gente fica
esquisita demais em relação a essa coisa. Às vezes essa esquisitice
assume a forma de uma tara. Essa tara é mais forte ainda quando quem
está negando é você. A relação entre fetiche e tabu, entende? Seja
você trans ou não. Ter tesão em ser menina faz sentido se você for
uma menina que não tem permissão pra ser menina. É tipo o oposto
de complicado.
James ouve um engasgo ou uma pausa na voz dela que deixa claro
que Maria o considera uma pessoa burra, que simplesmente não
entende que é transexual, então fica só fazendo cara feia sem dizer
nada e ela desiste do assunto. James e Maria passam um tempo sem
falar nada, e ela então põe para tocar o CD de um cara que solta gritos
meio estridentes e guitarras que parecem estar arranhando as paredes
de metal de uma cabana enferrujada. Um horror. James queria já estar
com um baseado bolado para poder fumar ali mesmo, porque na
verdade não dá para andar na autoestrada com um cachimbo aceso. Só
que ele não previu isso.
James pensa que Maria decidiu que ele precisa fazer a transição,
provavelmente muito em breve, e que deveria terminar com Nicole e
parar de fumar maconha, e provavelmente, tipo, usar uma montanha
de roupas todas ao mesmo tempo, pintar o cabelo de vermelho e falar
em monólogos longos e entediantes. Ele meio que pensa: bom, então
foda-se você, mas mesmo assim não consegue se forçar a
simplesmente dizer foda-se e nunca mais falar com ela. James imagina
Maria e ele brigando como fazemos com pessoas amigas, quando
fazemos as pazes depois, mas faz só um dia que ele a conhece e não
tem a menor ideia de como discutir assim. E provavelmente nunca
teve esse tipo de briga com ninguém. Então fica sentado de cara
amarrada olhando feio para os cactos.
Ficar doidão e olhar feio para os cactos: a história de James Hanson.
Escrito e dirigido por Charlie Kaufman.
Para um pouco, diz ele. Preciso fazer xixi.
Tá bom, tranquilo, eu também, diz ela.
24

A verdade sobre a rota 80 é que não tem nada nela; tem, tipo, paradas
de caminhões em cada saída, e saídas de quinze em quinze
quilômetros ou algo assim, mas James nem precisava fazer xixi. Tipo,
precisar até precisava, mas na real ele queria mesmo era ficar doidão.
Tipo sentiu que precisava ficar doidão. Agora. Deveria ter fumado
antes de ter saído de casa, mas o tempo inteiro ficou pensando: cara,
que papo mais intenso, é melhor eu estar careta pra falar sobre isso, só
que agora as paradas ficaram mais intensas ainda e ele está meio que
sentindo que não tem mais condição. Está na hora de ficar doidão. As
últimas vinte e quatro horas foram bem esquisitas. Enfim. De toda
forma, a maioria das saídas da rota 80 naquele trecho têm aquelas
paradas de caminhões grandes da Flying J ou sei lá o quê, e na verdade
não dá pra fumar num nos banheiros imensos dessas paradas, mas na
saída para Lovelock tem um posto de gasolina detonado, todo velho e
empoeirado, com um banheiro masculino e outro feminino no qual só
cabe uma pessoa por vez e cujas portas trancam. Então foi uma
estratégia brilhante: Ah, ei, preciso fazer xixi, vamos parar na próxima
saída. Pelo visto, James é um estrategista brilhante. Quem imaginaria?
Na real, provavelmente todo mundo sabia que ele era um gênio
quando o assunto era maconha.
James e Maria entram no posto, e o lugar está tão desolado quanto
de costume. Maria estaciona junto à bomba e põe gasolina antes de ir
fazer xixi, o que o deixa se perguntando se ela é secretamente rica ou
coisa assim, mas quem se importa. Ele então se distrai pensando que
seria possível criar uma grande e tediosa metáfora sobre quem entra
em qual banheiro naquele posto de gasolina idiota, mas como James
não quer nem pensar nisso ele se tranca no banheiro masculino,
enche o cachimbo e toca fogo. Que se dane. Ele fuma tudo e enche o
cachimbo de novo, mas quando está enchendo pela segunda vez,
James tem um sentimento de consciência e enche só até a metade.
Um cachimbo e meio deveria bastar para controlar qualquer
sentimento.
James imagina a fumaça saindo atrás dele do banheiro num rastro,
como sempre imagina, só que sair do banheiro não é nada demais.
Mas é bom estar doidão. O sol está forte e quente, embora seja
novembro. Não há nada em volta a não ser o deserto, e uma lojinha de
posto de gasolina toda desbotada que deve vender chocolates e essas
coisas. Ele tem uma sensação desolada de longa distância, como se
fosse o fim do mundo e ele e Maria tivessem ido parar ali. Um filme
idiota da série Resident Evil, ou quem sabe até um faroeste das antigas.
James sempre meio que se sentiu inseguro com o fato de não
conseguir se forçar a dar a mínima para filmes de faroeste, visto que
ele próprio é do oeste, mas não consegue abraçá-los nem descartá-los,
não tem nenhuma sensação forte nem para o bem nem para o mal.
Nem sequer acha muita graça em música country, mas é impossível
não absorvê-la pela pele quando se mora em Star City. Certamente
não tem nenhum mp3 do Brad Paisley nem nada disso. Está
encarando a roda de aspecto chique do pneu dianteiro da bicicleta
chique presa na traseira do carro de Maria quando ela se aproxima,
vinda do nada, estabelece contato visual e começa a rir.
Ah, tá, ela diz. Querendo dizer: Ah, tá, você é um maconheiro loser
incapaz de fazer qualquer coisa sem estar doidão.
Ela provavelmente não quis dizer especificamente isso.
Mas James pode ouvir isso na voz dela, então balbucia alguma coisa
e Maria e ele tornam a entrar no carro. O mesmo CD está tocando,
mas evidentemente a música agora é bem mais interessante, e ele
pode ficar sentado escutando e viajando. Depois de um tempo,
quando já estão de volta à autoestrada e ele já passou um tempinho
sem dizer nada, Maria começa a cantar bem baixinho alguns trechos
da letra junto com a música, meio que para si mesma. Ela canta num
timbre meio grave, mas ele não consegue escutar bem o suficiente
para dizer mais do que isso. Não sabe dizer se é a voz de um cara ou
de uma mina, ela está só cantando baixinho.
Mas principalmente ele está prestando atenção em si mesmo, e no
motivo pelo qual, no presente momento, James odeia Maria e a si
mesmo e tudo o mais na real, porque, tipo, a ideia agora era ele estar
vivendo uma aventura maneira, mas tudo em que consegue pensar é
numas paradas muito nada a ver. Nas coisas em relação àquela garota
que parecem bizarras, na barba por fazer que agora sumiu, na testa
idiota que ela tem, nas coisas em relação a si mesmo que ele detesta,
nas coisas da sua relação com Nicole que são boas e pelas quais ele
deveria sentir gratidão. Provavelmente deveria mandar uma
mensagem para ela, mas o problema das mensagens quando ele está
doidão é que ele nunca conseguiu ficar bom nisso. Como na internet
você fica parecendo um imbecil quando usa emojis, só que ninguém
entende o que você está dizendo, se está sendo sarcástico ou o quê.
Ele é bom em ficar doidão — para falar a verdade, talvez melhor do
que qualquer pessoa —, mas nunca consegue decidir como uma frase
numa mensagem de texto vai ser lida, tipo se vai parecer sarcástica,
cruel ou o que seja. Maria provavelmente acha que ele deveria mandar
uma mensagem tipo: Acho que a gente precisa de um tempo, mas isso
o faz sentir mais ainda que deveria mandar uma mensagem dizendo:
Acho que a gente não deve ficar longe nunca. Só que duas noites antes
ele estava pensando: Acho que a gente deveria passar um tempo
separados.
E, na real, Nicole e ele não se veem há dois dias.
James olha para baixo e seu corpo está todo encolhido, os joelhos
junto ao peito naquele banco de carona pequeno daquele carro
pequeno. Ele é razoavelmente alto, o que é importante por vários
motivos, mas está tentando ficar pequenininho.
Enfim. Ele estica as pernas, recua ao máximo o banco e massageia o
próprio ombro. Seus ombros estão doloridos. Quem se importa com
qualquer coisa. Ele não precisa resolver aquilo agora. O cantor está
berrando, falando de como o merchandising nos mantém na linha, e
James está pensando, tipo: na real, isso não é relevante pra minha vida
no momento, mas como não quer mais pensar nele mesmo e naquelas
paradas, ele não diz nada.
Depois de um tempo, Maria pergunta a James se ele avisou à
namorada que estava indo para Reno.
Ele nem sequer pensou em avisar. Estranho, né? Em geral, James
pergunta para Nicole na hora sobre tudo, mas no momento ele não
pensou em nada muito além de, tipo: eu acho que vou pra Reno com
uma pessoa de quem eu achei que gostasse. Talvez em algum nível ele
tenha imaginado que estaria de volta antes de Nicole sair do trabalho
naquele dia. De toda forma, ele responde: Não, e Maria pergunta
como Nicole é.
Ela é legal, responde James. Sei lá.
Só isso?
Como é a sua namorada?, dispara ele.
Tá, é, justo, diz ela. Só que a gente terminou. Mas ela é legal. Ela é
meio, tipo, sabe quando às vezes você conhece alguém que é punk
quando tem catorze anos, aí encontra dez anos depois e pensa: cara,
você tá totalmente diferente, é como se nunca nem tivesse tido uma
fase punk, com esse seu celular e essa sua camisa social e esse seu
corte de cabelo, sabe? Mas às vezes você reencontra dez anos depois
alguma pessoa conhecida que era punk e pensa uau, a sua punkice
cresceu, amadureceu, se desenvolveu e virou uma visão de mundo
obviamente coerente com aquilo em que você acreditava na
adolescência, sabe como é?
James pensa: não, não sei, mas não diz nada.
Steph é sem dúvida nenhuma o segundo caso, diz Maria, só que,
em vez de punk, na real, é como se os cabelos roxos e os bótons de
triângulo de sapatão novinha tivessem se transformado nessa coisa
não exatamente lésbica poderosa, mas nessa coisa queer adulta.
Ela passa alguns segundos pensando.
Acho que é meio assustador, diz ela. Acho que ver sua namorada se
transformar em outra pessoa, mais adulta, mas mesmo assim
continuar sendo ela mesma, enquanto você segue trabalhando no
mesmo emprego de sempre, no mesmo nível de pindaíba e com as
mesmas pessoas que te conheciam anos atrás e que te conheciam
quando você fez a transição. Quando você vê as mesmas pessoas que
via todos os dias desde antes da transição e já passou por uma
mudança social e física imensa, e tem medo de sequer cogitar mudar
ou evoluir de qualquer forma que seja, porque você meio que teve que
viver toda uma bravata, teve que agir como se realmente acreditasse
em si mesma pra poder transicionar.
Tipo: como se livrar dessa bravata pra poder evoluir como pessoa?
Quer dizer, você perguntou da Steph, e olha eu aqui simplesmente
falando outra vez de mim, mas acho que a questão é, tipo: como
transicionar e depois continuar evoluindo como pessoa, pós-transição,
quando parece que você só conseguiu transicionar afirmando bem
alto, mesmo que só pra você, que você sabia quem era, o que queria e
que confiava em si mesma?
Acho que Steph vem passando pelo processo de entender quem ela
é e do que precisa, enquanto eu estou num processo de, tipo, jurar de
pés juntos pra sempre que eu sabia exatamente quem era, que eu sabia
exatamente do que precisava e que tudo isso era importante pra mim.
Eu acho, James H., que antes de ir embora de Nova York eu estava
jurando pra mim mesma que a coisa mais importante na minha vida
era a irresponsabilidade, mas o que eu queria dizer com isso, o que eu
ainda não tinha entendido, era que eu não preciso ser irresponsável
em todos os quesitos. Acho que a minha ideia era dizer a mim mesma
que eu preciso parar de me sentir responsável por todo mundo o
tempo todo, responsável por apresentar essa fachada consistente e
estática. E eu precisava desencanar da ideia de que ser responsável
numa relação significa ser consistente, estoica, e não lidar com os
próprios sentimentos.
Quanta baboseira de macho internalizada.
Mas, sim, diz ela, Steph é demais, é inteligente e boa no que faz;
com certeza é alguém que se manteve fiel aos próprios princípios. Ela
trabalha numa porra de uma clínica pra pessoas LGBTQ nas horas vagas,
cara! Acho que mesmo assim ela foi meio idiota de ter inventado
histórias mentirosas sobre ter me traído ou sei lá o quê, mas acho que
eu não consegui acompanhar ela porque eu não sabia como estar
numa relação, então simplesmente me agarrei à nossa com todas as
forças e torci pras coisas darem certo, mas acabei inevitavelmente
sugando todo o sangue da relação ou sei lá o quê. Puta que pariu.
Mas por que vocês terminaram?, pergunta James.
Putaquepariiiiiu, diz Maria. Eu… eu não sei.
Ah, você não sabe, diz James, subitamente conseguindo assumir a
ofensiva.
Quer dizer, diz Maria. Ela faz uma careta e um gesto como se
tivesse uma porção de pensamentos e ideias e fosse colocá-los em
ordem, e parece estar apenas organizando os pensamentos, mas
depois o tempo vai passando, passando, e ela eventualmente diz: Eu
não sei.
Ah, você simplesmente não sabe?, repete James. Tipo, ninguém
chifrou ninguém, e vocês não pararam de ter interesses em comum e
continuavam gostando dos mesmos filmes, e você simplesmente se
tocou um belo dia e pensou, tipo, bom, até mais, acho que vou roubar
a porra do seu carro e dirigir milhares de quilômetros até a porra de
Star City, Nevada, sem nenhuma porra de um motivo?
Maria faz uma pausa de um segundo, e então diz: É complicado.
Não me diga, diz James, feliz por estar meio doidão, porque sóbrio
certamente não teria conseguido jogar sal na ferida daquele jeito. Você
só roubou o carro dela e saiu fora.
Eu não sei, tá bom?, diz Maria. Puta merda, eu só… Aconteceram
umas paradas, e aí não foi tipo a gente começou de repente a se odiar
nem nada disso. Eu só falei porra, esse namoro não está mais sendo
bom pra mim, e ela falou é, pra mim também não, e eu falei bom. E ela
falou bom, então tá, e aí, em vez de combinar a logística do término
mais importante das minhas três décadas de vida eu fui e saí fora, tá?
Pois é. Uma hora eu vou ter que voltar pra Nova York e pegar meus
livros, meu gato e minhas paradas, mas não, eu não tenho uma
narrativa organizada sobre como a gente terminou.
Então foi você que terminou com ela, diz James.
Ela faz uma pausa mais longa ainda e diz: Foi mútuo.
James fica encarando os cactos enquanto resmunga é, então tá, foi
mútuo. Eu só namorei uma menina a vida inteira e sei que “foi
mútuo” significa que você levou um puta pé na bunda, sua iludida
idiota, sa… mas ele se interrompe antes de dizer sapatão.
Ele ri. Não tem certeza de ter dito nada disso numa voz
suficientemente alta para ela escutar, mas então Maria ri, uma vez só,
um pouquinho, e diz: Foi ela que terminou comigo.
Enfim, diz James.
E a Nicole sabe sobre a boa e velha autoginefilia?, pergunta Maria.
James congela de pânico e diz: Meu Deus, tomara que não, então
diz: Não que eu saiba.
Por que não?
O que você faria se tivesse um namorado que te contasse uma
parada dessas?
Ele passa alguns segundos pensando, tipo: você sabe exatamente
por que não, porra, pensei que você soubesse tudo dessas paradas e
que fosse por isso que estivesse entrando na jogada e tentando me
fazer terminar com a Nicole e transicionar ou sei lá que porra.
Só que, como ela não disse nada, James diz: Porra cara, eu não sei,
como é que se diz uma coisa dessas pra sua namorada?
Mas o que ele está pensando é que o motivo pelo qual está infeliz
com Nicole é exatamente o mesmo motivo pelo qual Maria disse que
estava infeliz com Steph. Pensando: não é por eu ser transgênero, nem
por eu ser uma porra de um tarado, é por eu não dizer, tipo: eu acho
esse filme uma merda. Ou: eu não quero comer isso. Ou: eu quero
usar sua calcinha, quero ter uma boceta igual à sua.

É
É como se uma coisa levasse a outra. Tipo, se ele dissesse: eu não
quero ver um filme ridículo do Drew Carey, Nicole diria: tá, o que
você quer ver, e ele seria sincero e diria: Paris is Burning, ou Hedwig:
Rock, amor e traição, ou Transamérica, ou algum outro filme sobre
pessoas trans que James mal consegue admitir para si mesmo que quer
assistir. E aí, se ele fosse sincero em relação ao filme que quisesse ver
quando Nicole vai na casa dele, o castelo de cartas inteiro desabaria e
isso o levaria a ser sincero sobre o tipo de roupa que ele quer usar, e
sobre o tipo de corpo que gostaria de ter para poder ficar legal nessas
roupas, e depois viriam perguntas sobre o tipo de sexo que ele quer
fazer, um lance que ele nem sequer sabe responder, e é então que tipo
a ficha toda cai, de que todas as paradas de que Maria estava falando, o
tempo inteiro, resumiam exatamente a forma como ele se sentia.
Tipo, os detalhes eram diferentes. Um pouco. Mas tipo, o que minhas
taras estão me dizendo? Por que sou tão incapaz de conversar com a
Nicole? Ela pergunta com toda clareza, o tempo inteiro, o que eu
estou pensando e o que eu quero, mas eu nem sei como dizer pra ela,
mesmo que as respostas fossem coisas que ela quisesse ouvir.
Mas o que ele diz, meio que por despeito, é: Enfim, Maria. E as
suas taras, quais são? O que elas te dizem sobre você?
25

Ela não diz nada. Por, tipo, uns quarenta minutos ou algo assim.
26

James e Maria estão chegando, ele chapa e é Maria quem vê primeiro.


Ela diz: Olha só. A placa verde da autoestrada diz RENO e tem uma
seta.
Quando saem da autoestrada, ela diz: Olha, e então diz: O que a
gente tá fazendo, afinal? Eu quis me aproximar de você
principalmente porque você é igual a mim quando eu tinha vinte anos,
e eu achei que você pudesse ter alguma questão de gênero, então
pensei: bom, talvez seja uma chance de eu praticar uma boa ação no
mundo e te dar um espaço pra falar sobre isso. Mas eu obviamente
estou fazendo um trabalho de merda. Então vamos recomeçar do zero,
que tal? Essa porra toda ficou intensa pra caramba e você tem toda
razão, eu estou só monologando, então vamos falar de outra coisa, de
um assunto total nada a ver.
É, tá bom, diz James. Claro, tranquilo. Vamos resetar. Sobre o que
você quer falar?
Hahaha, Maria ri. Sei lá, cara, sobre o que você quer falar?
Não sei. Cinema?
Claro!, diz ela, batendo com a mão no volante. Já viu aquele filme
do monstro em Nova York que durante a primeira metade você fica
pensando, queria que um monstro viesse e matasse toda essa gente
almofadinha babaca, e aí o monstro passa o resto do filme tipo
matando todo mundo? Acho que ainda está passando.
James diz: Não vi.
27

Ele não consegue pensar num filme sobre o qual falar: odiou todos os
que assistiu nos últimos um ou dois anos, e aqueles de que gosta de
repente parecem profundamente idiotas. James e Maria ficam em
silêncio e então, quando mal tinham entrado em Reno, Maria para no
estacionamento de uma pequena lanchonete de burritos e diz: A gente
precisa comer alguma coisa. Estou sendo esquisita porque estou com
fome. E você?
Acho que sim, diz James. Ele nem tinha pensado nisso.
Mas ela desce do carro antes de conseguir responder direito e entra
direto no restaurante. Ele a vê pelo janelão que ocupa a fachada do
lugar, olhando o cardápio acima da bancada do caixa, que é tipo um
cardápio de McDonald's só que talvez um pouco mais engordurado,
com a gordura acumulada escurecendo os cantos e aquelas letrinhas
de plástico que se encaixam em fendas horizontais de um lado até o
outro. A gordura escurece o espaço embaixo dos caixas, os cantos das
mesas e sei lá mais o quê. Na real, não dá pra ver, mas é essa a
impressão que se tem olhando pela janela.
Ele leva alguns minutos tentando organizar os pensamentos, mas
quando ergue os olhos Maria está em pé diante do guichê do
restaurante, olhando para ele lá fora, segurando uma nota de vinte
dólares e apontando para o dinheiro. Está comunicando: entra aqui,
porra. Eu vou te pagar o almoço, seu idiota.
Assim que entra, o que ele está pensando é: será que as pessoas que
trabalham aqui sacam que Maria é trans? E tipo, se sacam, o que elas
acham de mim? Parecia quase, tipo: elas com certeza sabem que Maria
é trans, portanto com certeza sabem que eu sou, tipo, seja lá que porra
eu for. Tipo, uma espécie de trans ou sei lá. Tipo, não era só que elas
talvez sacassem que eu curto o tipo de pornografia constrangedora
que eu curto. Era tipo: elas talvez saquem alguma coisa muito mais
constrangedora e fodida sobre o ser humano fake e problemático que
eu sou, ou algo assim. Vai saber? Mas ele não consegue nem se
concentrar no cardápio acima do guichê. Fica pensando, tipo: eu
conheço essas palavras, mas será que estou com fome mesmo?
Maria já está sentada em uma mesa, e quando ele olha na sua
direção ela diz: Pede o que quiser.
Eu nem sei o que pedir, o que eu devo pedir?
E ela diz: Porra, nachos, claro.
Então ele pede nachos. Ela bebe uma Corona, e ele pensa puta que
pariu, como eu queria tomar uma cerveja também, mas ele só tem
idade para entrar para o exército e morrer pelo seu país, não para
consumir álcool. Mas fica feliz por ainda estar razoavelmente doidão, e
feliz por pelo menos ter idade suficiente para apostar. Na mesa em que
Maria está sentada tem uma espécie de videopôquer e ele põe na
máquina uma moeda de vinte e cinco centavos.> E perde na mesma
hora.
Maria e James fazem sua refeição triste em silêncio, mas depois de
uns minutos ela começa a falar.
Então tá, ela diz. Solta o ar por alguns instantes, então recomeça.
Tá bom. O que eu vou dizer é meio sobre as paradas trans, mas é
principalmente sobre eu ser uma porra de uma escrota, tudo bem?
James ri, solta uma risada genuína e legítima, ainda que Maria
esteja falando em voz alta sobre ser trans, e mesmo que ele não
reconheça ninguém no momento e isto seja bem improvável, que
alguém com quem ele estudou no ensino médio possa entrar a
qualquer momento, entreouvir Maria apesar de ela não estar falando
muito alto, e se tocar que ele é autoginefílico. Mas estranhamente ele
meio que pensa: que se dane.
James diz: Tudo, claro.
O negócio é o seguinte, diz Maria. Ninguém mais presta atenção
em J. Michael Bailey. Ele é só um cara que escreveu um livro dizendo
como as mulheres trans são umas pervertidas, o que é algo fácil de
fazer uma editora publicar. Ninguém nunca fica duro vendendo
“senso comum” retrógrado. Mas o camarada dele, Kenneth Zucker,
ainda é bem cotado. Ele tem uma clínica no Canadá e defende, tipo…
Ela faz uma careta e para, consciente de que já começou a fazer um
monólogo.
Olha, você conhece a NPR?, pergunta ela.
Mais ou menos, diz ele.
Umas duas semanas atrás a NPR transmitiu um programa que tinha
uma mulher, médica, que dizia bom, escutem, se a criança de vocês
for trans, vocês deveriam ser legais com ela e apoiar essa criança.
Crianças são espertas. E tinha também um outro médico, Ken Zucker,
que dizia bom, não, na verdade se você tiver uma criança trans o que
você deve fazer é ser bem cruel com ela. Faça a criança chorar o tempo
todo. A gente não tem nenhum indício de que isso funcione, mas você
quer que a sua criança seja uma pessoa pervertida, bizarra e doente
quando ela crescer? Acabar com a criança para ela reprimir tudo e
esquecer como sentir qualquer coisa por décadas até ela se dar conta
de que detestou a própria vida inteira e que precisa transicionar, é isso
o que se recomenda aqui no Canadá.
E a médica e esse cara estavam lá no estúdio da rádio, diz Maria.
Recebendo ligações de ouvintes.
Então eu liguei, né, imaginando que fosse dar a real pra ele, apesar
de a tal outra médica, doutora Ehren-alguma coisa, já estar fazendo
um bom trabalho em matéria de dar a real. Mas eu ia ligar e dizer: oi,
eu sou trans, e você quer mesmo dizer essa porra na minha cara? Quer
mesmo me dizer que a minha vida seria melhor se a minha infância
tivesse sido ainda mais difícil? Apesar de eu saber, por experiência
própria, que as pessoas não escutam o que você diz sobre assuntos
trans pelo simples fato de você ser trans. Ninguém dá a mínima para o
“bem, por experiência própria eu posso dizer que” que antecede o
“aquilo que você pensa saber está errado”. Mas mesmo assim pensei: o
que eu vou fazer, não ligar? Então eu liguei, e o cara, o apresentador
da rádio, me apresentou. Disse assim: estamos com uma ouvinte aqui
na linha, dr. Zucker, que diz ser uma mulher trans da Pensilvância, e
ela discorda totalmente da sua visão. Maria?
E eu pensei: é isso aí! Pronto! Vou resolver essa porra toda de uma
vez por todas! Só que eu abri a boca e não saiu nada, né? Eu tinha
pensado: vou me deixar levar e surtar com esse babaca! E tinha
pensado: quem sabe vou só expor racionalmente a contradição
inerente do argumento dele, né? Só que eu não tinha nem pensado
em uma frase pra começar. Se eu tivesse dito: oi, dr. Zucker,
provavelmente teria conseguido começar. Mas em vez disso eu gelei
diante da misoginia, do etarismo e da transfobia patriarcais e
institucionalizadas e não consegui falar nada. Teve uma pausa
demorada, então Ira Flatow perguntou: Maria, você ainda está aí? Mas
mesmo assim eu não consegui dizer nada, e acho que cortaram a
minha ligação, mas não antes de eu soltar meio que um soluço
patético e triste. Dá pra ouvir online, já fui ver.
Maria se cala, e James meio que deseja que ela continue.
Caralho, diz ele.
Pois é, diz ela.
Ele põe outra moeda na máquina de videopôquer e pergunta: Então
você não conseguiu falar nada?
Nada, diz ela, e então ri e ele se dá conta de que, sei lá, foi legal ter
conhecido Maria, e quem sabe eles vão ficar amigos no Myspace ou
algo assim quando ela for para a baía de São Francisco e ele voltar para
casa. Mas James se dá conta de que não precisa ficar bolado por ela
falar de gênero e opinar, dizendo que acha que ele deveria transicionar
e, tipo, Quem eu Sou, Porra, porque ele não é trans. Tipo pode ser
que sim, vai saber, mas ele certamente não vai fazer transição
nenhuma num futuro próximo. Ele tem uma namorada, tem um
emprego, e apesar de não ser próximo do pai nem nada, como poderia
contar uma porra dessas para ele? Então que se dane. E quando ele se
dá conta disso, de que não precisa ficar todo bolado só porque aquela
garota acha que ele é trans e quer que ele vire mulher ou sei lá o quê, é
como se inspirasse profundamente pela primeira vez em vinte e
quatro horas, e ele então se sente meio que tranquilo ali sentado
naquela mesa. Bolado em algum grau, claro, e com certeza com
vontade de fumar mais um, mas ele vive com vontade de fumar mais
um.
Sentado naquele restaurante xexelento, comendo nachos e pondo
moeda atrás de moeda na máquina de videopôquer, ouvindo o
monólogo de Maria sobre o que ela acha que deveriam fazer em Reno,
ele pensa que se dane. Tudo bem. Está começando a se livrar da
angústia. É bom sentir isso. Ele tomou uma decisão. Recosta-se na
cadeira e torna a perder no videopôquer. Pensa: e daí se metade da
minha turma do último ano do ensino médio se mudou pra Reno, e
provavelmente está me vendo comer nachos com uma transexual
neste exato instante. James começa até a pensar que isso poderia ser
maneiro.
Então tá, diz Maria. Então vamos achar um cassino e dar uma
relaxada, a gente consegue umas bebidas de graça e dá um tempo lá e
pronto, que tal?
Tá, tranquilo, diz ele.
Foi esse o plano todas as vezes em que ele esteve em Reno.
Maria e James jogam fora seu queijo endurecido, o papel manteiga
e o papel alumínio, e James vai na direção da porta do restaurante
quando Maria diz: Peraí, vou fazer uma coisa. Ela atira as chaves do
carro roubado e vai na direção do banheiro, e ele meio que pensa Ué,
mas então sai e se senta no banco de carona. James não se permite
realmente saber o que está acontecendo, mas abre a bolsa que está no
seu colo e tenta fazer parecer que está vasculhando dentro dela, tipo
procurando uma carteira ou algo assim, mas o que está fazendo na
verdade é abrindo o porta-luvas, pegando a meia dela cheia de
heroína, tirando a meia de dentro da meia de fora, desembolando a
meia de dentro, e despejando tipo metade da heroína dentro da bolsa.
Ele não sabe ao certo o que estava esperando. Tipo, só um pó branco
cru embolado numa meia parecia possível, mas improvável. Mas na
real eram só uns daqueles tipos de papelotes de papel encerado muito
bem-feitos e comuns, e talvez ele tenha por acidente pegado mais do
que pretendia, mas que se dane.
Os papelotes se espalham dentro da bolsa dele, e James enrola a
primeira meia outra vez, enrola a segunda meia por cima, estende o
braço para enfiar as duas freneticamente no porta-luvas de novo, fecha
o porta-luvas e fecha o zíper da bolsa. Quando ergue os olhos, tem
certeza de que vai dar com Maria em pé ao lado de sua janela, tipo
com uma arma em punho ou algo assim, mas ela na verdade não está
nem visível. Ele tem tipo cinco minutos, ou talvez mais, para ficar se
perguntando se ela o viu roubar sua droga e está fazendo alguma coisa
horrível. Obviamente alguma coisa sem ser chamar a polícia, embora
talvez alguma outra pessoa tenha chamado a polícia e ela saiba disso e
agora já esteja a três cidades de distância dali. Vai ver a coisa toda foi
uma armação! Mas ela então sai de trás do balcão do restaurante, abre
distraidamente a porta, e tenta abrir a porta do carro. Ele não tinha
destrancado. James aperta o botão para destravar a porta e Maria puxa
a maçaneta ao mesmo tempo.
Isso acontece três vezes até Maria se afastar uns dois passos do
carro, erguer as mãos acima dos ombros, e ele conseguir destravar a
porta.
James escondeu seu rastro de modo magistral, nada está fora do
lugar, ele é o maior criminoso de todos os tempos. Maria vira o carro
na direção dos prédios altos do centro da cidade. Que se dane.
28

É estranho, porque, mesmo que tenha roubado um monte de heroína


de Maria, o que, dito dessa forma, é com certeza a coisa mais hardcore
que James já fez na vida, ele está totalmente de boa. Talvez não
demonstrar o que está sentindo seja tipo o seu superpoder. Não tem
estacionamento no centro e ele ainda não escreveu para Nicole, então
quando não conseguem encontrar uma vaga para estacionar, Maria
diz: Porra, cara, achei que aqui só tivesse caça-níqueis e bebidas grátis
por toda parte, e ele diz: Bom, todos os cassinos maiores com
estacionamentos gigantes ficam um pouco fora da cidade. É meio que
só pegar a direção da rodovia que você vai dar de cara com um. Estão
por toda parte.
Ela diz: Tranquilo, então James e Maria saem da cidade de novo, e
tipo cinco minutos depois estão parando num estacionamento enorme
à sombra de uma montanha que foi detonada para abrir lugar para a
rodovia. Bom, ainda não tem muita sombra ali, mas dá para ver que a
montanha fica a oeste do cassino, então vai ter quando o sol
eventualmente começar a descer. Num dos cantos do estacionamento
tem alguns trailers, e dá para sentir o ar condicionado saindo pelas
portas do cassino, um dodecaedro ou algum formato complexo
imenso e ultramoderno todo feito de um vidro que deve ser limpo
umas duas vezes por dia e cheio de ângulos pontiagudos. O que é
estranho, pois seria de pensar que fossem querer tornar o cassino mais
convidativo, mas vai ver que quando existem vinte e cinco cassinos
enormes na cidade nem todos podem ter carroças cobertas, caubóis e
essas porras todas. Maria para o carro e salta, e dá para ver pela
expressão dela que está totalmente de cara por estar ali, o que é legal,
então por um segundo James meio que fica de cara também, mas
então pensa, tipo: na real, eu não tenho dinheiro nenhum pra apostar,
e é uma depressão da porra ficar jogando com moedas de dez centavos
nem que seja só por meia hora. Então. Caralho.
Além do mais: como é que ele vai voltar para casa? Belo plano de
saída, seu estrategista brilhante. Seu maior criminoso de todos os
tempos.
29

Ela pensa: Tá, tudo bem, bora lá perder uma grana.


O interior do cassino é gelado e desorientador, o que obviamente é
proposital. É uma caverna escura e imensa, onde não dá pra saber o
que é parede e o que é espelho. O teto tem linhas de neon berrantes, e
há centenas de pessoas velhas fumando cigarros e batendo a cinza nas
bandejinhas acopladas aos caça-níqueis, às máquinas de videopôquer e
a outras máquinas de jogos que James nem conhece. Assim que se
entra tem um pequeno restaurante elevado meio na lateral, com um
bufê cheio de comida nojenta que parece de plástico, mas o cardápio
no display em frente deixa bem claro que aquela comida é chique, e
James pensa: será que eu conseguiria na cara de pau fumar maconha
em vez de cigarro enquanto jogo nos caça-níqueis sem falar com
Maria? Então ele pensa: será que eu conseguiria na cara de pau dar um
teco de heroína no banheiro? Duvido. Quanto se coloca para dar um
teco? E se ele vomitar e morrer? Obviamente em algum momento ele
vai googlar o processo e experimentar, mas meio que não quer
experimentar heroína. Enfim.
Maria já sumiu. Vai ver ela já esqueceu que ele existe. Ele foi um
projeto que ela achou que conseguiria concluir, mas como ele não está
fazendo o que quer que ela queira que faça ele já perdeu a graça. Ela
está praticamente dizendo em voz alta: vai se foder, James H., dá logo
o fora daqui. Então ele pensa: tá bom. Tchau.
Não dá para ver o quão profundo o cassino é. Por um tempo parece
que tudo bem, aqui fica a parede do outro lado, e com certeza tem
uma parede ali, mas aí seus olhos começam a seguir a parede por uns
cinco metros e tem uma quina que se abre para toda uma outra série
de mesas de feltro verde e pessoas jogando cartas de verdade. Ela
sumiu, cara, James não faz a menor ideia de onde Maria está, mas
como procurar por ela é uma missão, ele vai tentar encontrar Maria. É
meio que até bacana ficar observando um cassino e as pessoas e tal, e é
mais barato do que comprar bebida ou ficar enfiando moedas de vinte
e cinco centavos nas máquinas. Tem um filme que foi lançado uns dez
anos antes de James nascer chamado O mundo dos jogadores, uma
comédia sexual adolescente idiota dos anos 1980 que praticamente
não dá pra assistir, e na cena de abertura tem uma menina jogando
Frogger, ou Moon Rover ou sei lá que joguinho, usando um short
minúsculo e um top igualmente minúsculo enquanto o vocalista berra
uma música cuja letra diz: “Totalmente demais! Video games!”. James
tem essa música em mp3 porque de tão idiota ela acaba sendo o
máximo, e é nisso que está pensando enquanto anda pelo cassino e
fica olhando as pessoas em suas partidas de videopôquer totalmente
demais e enfiando moedas em máquinas totalmente demais e jogando
sabe-se lá que outros jogos totalmente demais. Tipo loteria.
Ele acaba encontrando Maria. Na real, o cassino tem várias outras
entradas, mas ela não está muito longe da que usaram, está só um
pouco à frente de uma quina. Está jogando num caça-níquel Munsters
com moedas de vinte e cinco centavos.
Ele diz: E aí?, e ela diz: E aí?, e ele diz: Ahn, e ela pergunta: Pegou
uma bebida? Ele diz: A Coca custa um dólar, vai se foder, e ela diz:
Quer que eu te compre uma cerveja? Ele responde: Não, valeu, acho
que vou lá fora dar um dois.
Ela diz: Tá, e a música-tema rockabilly idiota do caça-níqueis fica
tocando por alguns segundos enquanto as engrenagens do jogo
tornam a girar.
James sai para procurar um lugar para fumar.
Será que alguém ligaria se o pegasse fumando maconha? Tipo a
segurança, sei lá. Será que a polícia patrulha cassinos? Deve patrulhar.
Ele dá uma volta inteira no cassino, o que leva um certo tempo
porque a porra do lugar é um mundo, mas não há nada atrás de que se
esconder, a menos que ele queira ou escalar a tal montanha mutilada
ou então tentar arrumar um jeito de contorná-la. Ele pensa: caramba,
que babaquice isso tudo, o que eu estou fazendo em Reno com uma
desconhecida que caga pra mim? Ele fica muito puto por um segundo,
e então, sem nem raciocinar direito, James caminha na direção do
circular que vai até o centro da cidade, vê pessoas embarcando e entra
na fila.
30

Nicole vem pegá-lo umas duas horas depois. Ele mente e não diz nada
sobre Maria, nem sobre a heroína nem nada; diz que esbarrou com
Mark naquela manhã e foi até Reno com ele, depois acabaram se
desencontrando.
Mark não está respondendo as mensagens dele, diz James. Sei lá.
Nicole passa de carro em frente ao posto de gasolina onde ele e
Maria tinham parado para ele dar um dois. O sol já está baixando, mas
não está escuro lá fora nem nada, e James fica pensando se não
poderiam encostar na parada de caminhões antes de Star City onde
Nicole e ele foram em seu primeiro encontro. James pensa se a luz
amarela e a nostalgia poderiam deixar seu corpo inconsequente o
bastante para ficar de pau duro. E se pergunta se tem espaço suficiente
no banco de trás do carro de Nicole para ela pagar um boquete.
Posfácio

Escrever este posfácio foi mais difícil do que eu imaginava. Sinto que
eu deveria ter sacadas geniais não só em relação à literatura trans tanto
anterior quanto posterior à publicação de Nevada, mas também ao que
era ser trans quando escrevi a primeira versão do texto, em 2008, e
como isso evoluiu na última década e meia. Acho que estou me
sentindo meio intimidada; para começar, não existe algo que se possa
denominar uma Experiência Trans homogênea à qual eu pudesse fazer
referência. Nevada foi uma coisa muito específica, num momento
muito específico, e eu me sinto orgulhosa e até meio acanhada pelo
fato de tantas pessoas terem dito que a história as reconfortou, que
clareou seus pensamentos, mudou suas vidas, salvou suas vidas, e de
várias outras formas lhes fez bem.
Já é algo que funciona. Agora a gente vai colar mais uma coisa no
final? Acho que estou com medo de criar uma coisa nova que detone a
coisa original.
Pode soar como uma ironia o tal papo sobre Nevada ter salvado
vidas e feito bem às pessoas. Pode ser que você tenha acabado de ler o
livro pela primeira vez e reparado que o fim não parece resolver
grande coisa. Vou falar mais sobre isso daqui a pouco, mas o que eu
quero dizer é que Nevada sempre teve a intenção de ser mais uma
narrativa do tipo “tá, isso não deu certo” do que uma narrativa que
ensine alguém a viver. Acho que são as especificidades do que Maria
tenta e não consegue fazer — e por que ela não consegue e como não
consegue — que fizeram Nevada bater tão forte em várias pessoas.
Mas como é que eu vou saber? Como na famosa frase de Roland
Barthes escrita em 1967, “Ninguém se importa com o que uma
escritora pensava que estava fazendo”. Seria uma egotrip usar este
posfácio como um espaço para enumerar tudo que eu estava tentando
fazer quando escrevia a primeira versão deste livro em 2008. Além do
mais, eu tenho uma memória péssima e provavelmente teria de
assistir a uma porção de vídeos no YouTube para ver o que eu disse
quando a Topside Press publicou o romance pela primeira vez, em
2013. Então em vez disso quero usar este posfácio para contextualizar
o livro.
As pessoas já chamaram Nevada de “marco zero da literatura trans
moderna”, e embora entenda isso — antes da publicação do livro, acho
que nunca tinha lido um romance com uma personagem trans (muito
menos uma protagonista) que eu no mínimo, tipo, não odiasse —, eu
não me sinto realmente uma visionária genial que inventou uma
literatura centrada em experiências marginais. No melhor dos casos,
essa ideia esconde o trabalho feito por outras pessoas que tornou
Nevada possível. Sendo assim, em vez de pôr o foco na minha própria
genialidade, quero usar este posfácio para nomear e agradecer algumas
das coisas sem as quais Nevada não poderia ter acontecido.

Fictionmania

Em determinado momento do romance, Maria menciona “a porcaria


da internet de 2002”. Numa rodada de perguntas e respostas depois
de uma leitura na turnê de lançamento do livro, em 2013, me
perguntaram o que isso significava. Hoje em dia, as pessoas estão tão
mergulhadas em redes sociais com fins lucrativos que é quase
impossível se lembrar de qualquer outra coisa. Foi só na noite
seguinte a essa leitura, deitada sem conseguir dormir e me
recriminando por não ter tido uma boa resposta para dar, que pensei
numa bastante boa. Era um site chamado Fictionmania, que ainda
existe. E se você tiver fissura por essa estética retrô pós-pós-
vaporwave da “internet de 2002”, trago ótimas notícias: o site não
atualiza o design desde a sua criação, em 1998.
Dizer isso é redutor, claro. O strap-on.org também existia nessa
época, e internautas batendo boca por causa de interseccionalidade no
Strap-on antecede o Tumblr em tipo uma década. Mas para quem
estava tentando entender qual era a sua em matéria de gênero no fim
dos anos 1990 e início dos anos 2000, a tendência era acabar indo
parar no FM, e não no Strap-on. Ou pelo menos foi o que aconteceu
comigo. E com várias outras pessoas.
O Fictionmania é um arquivo gratuito de histórias pessoais sobre o
tema mudança de gênero. Acho que as pessoas devem ler essas
histórias, sobretudo, se masturbando. Tosco? Talvez. O tom e o
conteúdo eram comparáveis às imagens legendadas da segunda parte
de Nevada que James curtia. Mas o site acumulou tipo umas quarenta
mil histórias ao longo dos últimos vinte e cinco anos, de modo que
apresenta um material atraente para muita gente. Sério, quantos sites
da internet existem desde o fim dos anos 1990?
O Fictionmania foi o primeiro lugar onde publiquei, sem levar em
consideração um conto numa revista de literatura do ensino médio
que era tipo uns quarenta por cento letras de música da Tori Amos
sem créditos. Você apenas enviava para a Fictionmania uma história
furtivamente escrita numa noite em claro, o site publicava — e na
internet, pra todo mundo ver! — e aí gente desconhecida ia lá e dizia
que tinha odiado sua história. No fim dos anos 1990, para uma pessoa
que estudava língua inglesa e que Queria Ser Escritora, isso era
motivo de grande emoção.
Mas, além disso, como eu já disse, as histórias publicadas no site
tinham tendência a ser bem sem graça. Como uma pessoa adolescente
desprovida de práxis, mas que se identificava com o movimento punk,
cheia de boas intenções, sem capacidade de análise nenhuma e sem a
menor ideia de como existir dentro de um corpo, contribuir de forma
anônima com histórias cheias de palavrões publicadas no
Fictionmania era um jeito empoderador de dizer: “Eu não tenho a
menor ideia de qual é a minha ou de qual é o meu gênero, mas não
estou nem aí”. Perdi interesse bem depressa e passei a produzir meus
próprios zines e a participar de grupos presenciais de escrita, mas
como essas coisas envolviam informações de identificação, deixei de
lado por alguns anos todo esse papo de O Que É Gênero.
Durante a maior parte dos anos 2010, escrevi uma coluna mensal
para a revista Maximum Rocknroll, que publicava quase tudo o que eu
enviava! Era uma emoção bem parecida, mas acho que provavelmente
menos pessoas se masturbaram lendo minhas colunas na MRR.
Falando em informações de identificação, meu pseudônimo na
Fictionmania era Melissa Virus. Pode se acabar por lá se quiser ler
umas coisas velhas das quais eu, na real, não me orgulho.

Camp Trans

Eu não postava muito no fórum do Strap-on.org. No entanto, à


medida que fui processando o fato de ser trans, principalmente no
LiveJournal, comecei a entrar em contato com uma comunidade de
pessoas trans que pensavam parecido e que também estavam
insatisfeitas com as alternativas de vida que enxergávamos para as
pessoas trans. Brynn Kelly era uma dessas pessoas. Sybil Lamb estava
lá. E várias outras. E as pessoas mais inteligentes, engraçadas e
intimidadoras que estavam no LiveJournal em geral também estavam
no Strap-on.
O Strap-on era assustador.
Quando você passou as primeiras duas décadas da vida dando o
melhor de si para ser um cara branco hétero cis, em geral acabava
tendo que desaprender algumas paradas, e o jeito de desaprendê-las é
ouvir gente desconhecida esbravejando contras elas na internet. O
pessoal do Strap-on mais do que se dispunha a fazer isso. Ou você
aprendia a falar (e pensar) de uma forma que pelo menos tentasse levar
em conta as experiências das pessoas marginalizadas ou expulsavam
você da internet. Era inebriante.
Antigamente tinha um festival de música chamado Michfest, que
começou nos anos 1970. Em 1991, uma mulher trans chamada Nancy
Burkholder foi expulsa do Michfest por ser trans, e a política oficial do
festival passou a ser que as mulheres trans não eram mulheres. Então
algumas pessoas começaram a fazer um protesto de uma semana em
frente ao portão do Michfest chamado Camp Trans, que acabou
ganhando vida própria, com música, comidas, um acampamento e
coisas queer rolando no mato. Em algum momento por volta de 2005,
a liderança do protesto se desintegrou, e algumas pessoas do Strap-on
se dispuseram a assumir a direção do Camp Trans.
Participei em 2006, 2007, 2008 e 2010. Fui organizadora principal
em 2007 ou 2008. Não lembro o ano exato. Fui uma organizadora
horrorosa. Nunca me deixem organizar nada. Mas para mim o Camp
Trans foi onde o Strap-on parou de ser um lugar de postar e se tornou
uma coisa a ser personificada.
Passei a ser uma escrota sem qualquer senso de humor.
Bom, eu não tenho o menor talento para ser alguém sem senso de
humor. As pessoas trans costumam ser engraçadas. As piadas podem
ser um mecanismo de defesa, uma reação ao trauma; se você
conseguir fazer uma pessoa rir antes de ela lembrar que odeia gente
como você, talvez consiga sair de uma loja de conveniência antes de
alguém conseguir te machucar. Mas para ser escrota eu tinha muito
talento. Comecei a usar bandanas no pescoço e a romantizar o fato de
pegar carona em trens sem nunca chegar de fato a praticar isso.
Seria impossível exagerar o quanto a comunidade trans é um
mundo real e valioso. Posso dizer uma coisa? Nós temos corpos. Todas
as pessoas. E as pessoas trans talvez mais do que qualquer outra. E,
quer gostemos disso ou não, o corpo tem memória. (Vocês deveriam
ler O corpo guarda as marcas, de Bessel van der Kolk. Esse livro me fez
ir aos prantos num avião.) Falando de modo um tanto redutor, o
trauma tem um impacto na nossa capacidade de existir dentro de
nossos corpos, o que causa uma sensação ruim.
Sabem o que mais pode tornar difícil existir num corpo?
Ser trans.
Não conseguir ser no próprio corpo causa uma sensação ruim.
É ruim nunca ter tido uma comunidade trans o ine. A internet é
ótima, mas ela não substitui a presença em um espaço físico na
companhia de outras pessoas trans que se importem com pelo menos
algumas das paradas com as quais você se importa, com os sistemas
nervosos em interação direta. Quem nunca teve pode não se dar conta
da importância disso. E eu não tive isso antes do Camp Trans. Quer
dizer, eu tinha amizade com pessoas trans no mundo real, mas nunca
tinha passado uma semana com elas. No mato. Com insetos que
picam. Experimentando como poderia ser legitimamente confiar em
outra pessoa em tempo real.
Quando você aprendeu a dissociar defensivamente na companhia
de pessoas cis, e quando passa todo o seu tempo entre elas, e quando
elas com frequência deixam claro que você tem razão de não se sentir
em segurança com elas, você pode esquecer que é possível baixar a
guarda. Que não precisa necessariamente estar só para se sentir em
segurança. Que nem sequer é possível se sentir assim.
Mesmo com todas as coisas complicadas em relação ao Camp
Trans, com todas as formas pelas quais provavelmente não era um
lugar seguro, o evento era um espaço que centrava os corpos trans. E
até a altura em que cheguei lá, os corpos das mulheres trans em
especial. O Camp Trans me ensinou que é possível me sentir segura
no meu corpo.
Michfest que se foda. O Camp Trans salvou a minha vida.
E, sim, sobre o Michfest e outras coisas regressivas e transfóbicas,
posso dar uma dica? Se vocês se virem interagindo com alguma pessoa
“crítica” ao “movimento transgênero” ou algo assim, perguntem o
que ela acha que as pessoas trans deveriam fazer. Se a única coisa em
que ela conseguir pensar for “não ser trans”, assinale que a grande
maioria das pessoas trans já tentou e que isso tende a nos fazer pensar
em suicídio. Se essa pessoa não conseguir arrumar nada melhor para
dizer do que “não seja trans”, por favor entendam que ela literalmente
quer a minha morte e a de pelo menos 1,4 milhão de outras pessoas
trans nos Estados Unidos, sem falar nas muitas, muitas outras pessoas
fora do país.
Não deixe essa pessoa fugir do assunto. “O que as pessoas trans
devem fazer?”
A única resposta de gente assim é: “morrer”.
É bem intenso.

Outras figuras queer dos anos 2000

Uma grande parte de Nevada teve a ver com processar minha própria
partida de Nova York para ir morar em Oakland em 2007. Oakland
acabou comigo. Quando me mudei para lá, me peguei passando muito
tempo num submundo queer povoado por pessoas formadas em
Smith, que pelo que eu soube era uma instituição péssima com
pessoas transmasculinas na época, mas que ainda demoraria mais sete
ou oito anos para autorizar a matrícula de uma mulher trans assumida.
Não que todas as pessoas queers de Oakland fossem cruéis nem
nada disso. Lá não era o Michfest. Tinha muita linguagem
transinclusiva e muitas gente trans. Mas é que quase não tinha
nenhuma mulher trans além de mim. O que obviamente não quer
dizer que não existissem outras mulheres trans em Oakland. Ou
outras pessoas queer. Só que eu vivia, namorava e socializava numa
comunidade muito limitada, e ninguém mais ali era uma mulher trans.
Eu me culpava por me sentir deslocada. Afinal, tinha encontrado
uma comunidade queer! Eu era uma mulher queer, e aquelas eram
(majoritariamente) mulheres queer! Elas explicitamente aceitavam
pessoas trans! Então por que eu vivia indo embora de festas, reuniões
e espetáculos aos prantos?
Foi só depois de ir embora de lá, depois de dois incidentes com
dois caras trans diferentes que inconscientemente levaram umas
paradas transmisóginas para dentro da minha casa em Portland,
Maine, que precisei reconhecer que a comunidade queer ainda não
tinha chegado lá. Sabem como? Uma penca de boas intenções, mas
nenhuma noção do que fazer com isso. Era, tipo, num dia eu estava
muito empolgada, conversando com amigas trans sobre um livro novo
chamado Whipping Girl (que tem por subtítulo Observações de uma
mulher trans sobre o sexismo e a demonização da feminilidade), e no dia
seguinte estava indo à Marcha das Sapatões, onde umas líderes de
torcida radicais cisgênero ficavam gritando para mim a palavra
“traveco”.
Era exaustivo estar fora de casa como alguém que era lida como
trans. Em retrospecto, eu estava fazendo tudo o que podia para não
admitir que era exaustivo também estar dentro de casa quando
também tinha pessoas queers lá.
Exaustivo e solitário.
Aliás, é esse o contexto de algumas das coisas que Maria diz sobre
caras trans que parecem péssimas uma década e meia depois.
Mas o que isso tudo tem a ver com Nevada?
Nevada faz tanta questão de tratar com honestidade a experiência
trans de uma mulher porque eu estava completamente exausta e triste
com o fato de a minha experiência nunca ser tratada assim. Eu me
sentia invisível para a maior parte do mundo, e invisível também para
o submundo, então o livro foi meio que um grito de que eu, e portanto
nós, existimos.
Por volta dessa época, imprimi alguns exemplares de um zine no
qual reproduzi três ensaios de autorias trans explicando por que nós
queríamos que as pessoas cis parassem de nos chamar de “travecos”.
Fiz o zine para levar na bolsa e dar para as pessoas quando elas
usassem esse termo, de modo a poder entregar um zine em vez de ter
uma conversa emocionalmente exaustiva e muito provavelmente
inútil. Em certo sentido, Nevada foi uma extensão desse zine.
This Bridge Called My Back

Assim que me mudei para Oakland, fui morar numa grande república
chamada Fork in the Rode. Me perdoe, Roland Barthes, por fabricar
um mito, mas éramos tipo onze pessoas numa casa de quatro quartos
na rua 71 Norte. Alguém morava na garagem. E outra pessoa passou
um tempo morando numa cabana de compensado no quintal dos
fundos. Duas pessoas moravam no acesso de carros numa van cujo
motor não ligava. Em determinado momento tivemos um problema
com ratos, mas para fazer isso parecer um problema menos grave
chamamos os ratos de coelhos. Era uma puta de uma zona e era
perfeito. E em determinado momento durante o ano ou algo assim em
que morei na Fork, minha amiga Fischer me emprestou seu exemplar
de uma antologia chamada This Bridge Called My Back, organizada por
Cherríe Moraga e Gloria E. Anzaldúa.
Não terei como fazer justiça a This Bridge Called My Back aqui. Na
data em que escrevo, o livro está de novo em catálogo. Vocês deveriam
ler.
E quero tomar cuidado, porque embora um dos objetivos
declarados de This Bridge Called My Back fosse educar mulheres
brancas de classe média como eu, não se trata de um livro sobre mim.
O que eu quero dizer é: espero ter conseguido aprender com as
autoras que nele contribuíram. O trabalho do antirracismo é um
trabalho que pessoas brancas precisam fazer todos os dias, e This
Bridge Called My Back foi um baque, um chamado à realidade para
meu próprio trabalho antirracista. Sem querer exagerar, o livro segue
sendo uma conquista incrível que todo mundo tem a sorte de poder
ler. Acabei de pegar meu exemplar para folhear um pouco enquanto
escrevo isto, e embora os vários artigos de diferentes autoras (entre
elas, as editoras Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa, e colaboradoras
como Norma Alarcón, Barbara Smith, o Coletivo Combahee River e
Audre Lorde) abordem muitos temas, a obra continua tão vital hoje

É
quanto imagino que fosse em 1981, ano de sua primeira publicação. É
um clássico absoluto. Ponto, parágrafo.
Agora me imaginem em Oakland, em 2007. Um metro e oitenta e
três de altura, tomando hormônios só há uns dois anos. Meu cabelo
era metade louro, metade rosa-choque com as raízes pretas. Lembro
de muita sombra de olho rosa-choque. Eu não era sutil. Mas ao
mesmo tempo queria muito me passar por cis. Ou, mais
especificamente, eu queria ser cis. E o fato de eu não ser doía. Eu era
ofendida por ser trans em público com bastante regularidade e ficava
estraçalhada toda vez.
Então por que não aprendi a me maquiar de modo menos
chamativo, por que não parei de tingir o cabelo? Se ser lida como
trans doía tanto, por que eu não estava me esforçando mais para me
passar por cis? Por alguns motivos. Em primeiro lugar, eu não sabia
como fazer, e admitir essa vulnerabilidade teria sido bem assustador.
Em segundo lugar, e se eu super me esforçasse para ser lida como cis
e fracassasse? Essa parecia ser uma possibilidade mais dolorosa ainda.
Além do mais, eu não acho que já era capaz de articular a armadilha
representada por “eu deveria poder fazer o que quisesse com meu
corpo, mas também não deveria ter de encarar consequências injustas
por causa disso”. Em outras palavras, era aquela coisa da transição de
ter uma localização nova e mais vulnerável sob o patriarcado, mas não
ter ainda realmente aceitado as ramificações dessa localização.
Um fator complicador nisso tudo era o fato de eu ter passado anos
devorando narrativas de liberação queer escritas por pessoas cis. Já
escrevi sobre a forma como muitas ideias conceitualizadas por pessoas
cis para descrever coisas vivenciadas por pessoas cis não se transferem
de forma perfeita para as experiências trans, como o privilégio
masculino. (Mulheres trans têm privilégio masculino antes da
transição? Meio que sim. Caras trans têm privilégio masculino depois
da transição? Independentemente do que Maria Gri ths possa lhes
dizer, a resposta também é: meio que sim.) Uma coisa que eu
aprendia, e para a qual eu não conseguia encontrar linguagem, era que
as regras da liberação para queers cis são diferentes das regras para
pessoas trans.
Por isso eu me sentia tão sozinha na minha comunidade queer de
Oakland.
Continue me vendo. Agora estou lendo a capa bordô desbotada de
uma antologia escrita por várias autoras que na época se identificavam
como mulheres (um salve para Max Wolf Valerio, por ter
transicionado alguns anos após colaborar no livro) e que falam sobre
viver na convergência impossível da vulnerabilidade pública, como
mulheres de cor sob a supremacia branca, e da vulnerabilidade
privada, como mulheres de cor marginalizadas dentro de
comunidades predominantemente brancas de lésbicas, feministas e
outros grupos progressistas/radicais.
A forma como essa experiência era paralela à minha — com
especificidades distintas, claro — foi uma revelação. A dor de se sentir
marginal onde quer que se esteja, e o poder correspondente de
compartilhar espaço com pessoas que entendiam isso. Que entendiam
você.
This Bridge Called My Back é dividido em seis partes principais. A
primeira fala sobre “de que forma a visibilidade/invisibilidade como
mulheres de cor constrói nosso radicalismo”; a terceira fala sobre “os
efeitos destruidores e desmoralizantes do racismo no movimento das
mulheres”. Essas partes, em especial, me proporcionaram uma
linguagem com a qual pensar tanto na minha própria
visibilidade/invisibilidade quanto nos efeitos
destrutivos/desmoralizantes da transmisoginia nas comunidades de
mulheres queer ou coisa que o valha. TBCMB não era sobre mim, mas
estava falando comigo. Em mais de um nível. Estava tanto
aprofundando minha própria noção (e trabalho) de solidariedade
quanto me proporcionando uma estrutura para compreender melhor
minha própria localização.
This Bridge Called My Back me levou a Audre Lorde, bell hooks e
outras pensadoras feministas/mulheristas marginalizadas. Até hoje me
ocorre sentir que, se eu tenho alguma coisa inteligente a dizer sobre
ser trans, essa coisa provavelmente pode ser relacionada de forma
direta ao trabalho delas. E eu sou imensamente grata por isso.

Outros livros também

Li o primeiro livro de Junot Díaz, Afogado, na única matéria de escrita


que fiz na faculdade. Não me orgulho disso, mas a primeira coisa que
me chamou atenção foi que Díaz escreveu sobre New Brunswick,
Nova Jersey — onde eu morava! — e sobre Nova York, onde eu
passava muito tempo e para onde pretendia me mudar quando me
formasse. Mas eu reli o livro depois. Muitas vezes. Não sou uma
grande releitora, mas a voz de Díaz teve um impacto gigantesco em
mim. Era tão claramente pessoal. Ele não tinha medo de escrever em
espanhol às vezes, não tinha medo de falar um pouco de bobagem, não
se esquivava de um pouco de masculinidade tóxica autocentrada, e
também não tinha medo de ser engraçado.
Isso tudo foi recontextualizado, é claro, em 2018, quando veio à
tona que Díaz tinha praticado abuso verbal e sexual com diversas
mulheres. Mas ainda faltava uma década para isso acontecer.
Eu trabalhava na livraria Pegasus Books, em Berkeley, quando
recebemos um exemplar antecipado do livro seguinte de Díaz, A
fantástica vida breve de Oscar Wao, antes de seu lançamento em 2007.
Levei para casa e li na mesma hora.
Não sei o que dizer sobre Oscar Wao. No que me dizia respeito, o
livro era o Grande Romance Estadunidense. Era uma história imensa,
mas que não parecia avassaladora por se manter muito próxima de
seus personagens; o retrato de Díaz como imigrante dominicano era
indissociável da trama e da linguagem; você se sentia inteligente ao ler
aquilo, mas ainda assim é um livro engraçado e leve que não foge de
algumas questões bem pesadas. Eu ainda estava embriagada de Oscar
Wao quando escrevi Nevada.
Acabei de ler a página de Oscar Wao na Wikipedia. Tinha
esquecido que Díaz dedica um capítulo a Lola. Acho que peguei isso
diretamente dele quando dei a Steph e Nicole seus próprios capítulos.
Aquilo era puro destemor. A linguagem, a trama, a estrutura, a
escala. Ler A fantástica vida breve de Oscar Wao não me fez pensar que
eu pudesse escrever um livro assim, mas me deu permissão para
tentar algo que parecia bem assustador: ser real no papel.
Eu não tinha me dado conta de que o destemor fosse um tema nos
livros que inspiraram Nevada, mas acho que é, porque sabe quem
mais escreve de forma destemida? Dennis Cooper.
Acho que li Cooper pela primeira vez quando trabalhava num sebo
grande e sem nome na parte sul de Manhattan. Eu passava muito
tempo arrumando os livros de ficção nas estantes e lembro que a
fotografia na capa de um dos livros dele tinha sido usada em algum
outro lugar como uma foto de J. T. LeRoy, fato tão estranho e
inexplicável que me fez pegar o livro para ler.
Era um dos livros do seu ciclo George Miles, série de cinco
romances parcialmente interligados que abordam vários temas, mas
que tendiam a incluir jovens homens gays, uma obsessão por seus cus,
corpos sendo mutilados, drogas e morte. Dito assim parece tosco, mas
os livros me afetaram num nível mais emocional que sexual. O que me
deixou de cara, e continua a me deixar de cara nesses livros, é o quão
próximos e verdadeiros eles são em relação à experiência emocional
crua, visceral, vulgar e intensa de ser uma pessoa jovem, atordoada e
meio desarticulada cuja sexualidade parece ser um problema.
Li todos os cinco algumas vezes. Eles melhoram a cada leitura, mas
passam num borrão de pânico e suor, e eu nunca me lembro
realmente de muitos detalhes: tem coisas sobre o Hüsker Dü, sobre
ficar obcecado pelo seu amigo viciado em heroína que talvez nem seja
queer, sobre bandas de black metal, sobre um carro batendo numa
garagem cheia de adolescentes, e muitos desmembramentos
consensuais. Eu não necessariamente recomendo esses livros para
todo mundo, mas se essas coisas não parecerem intragáveis para você,
são obras bem bonitas, na real.
Cooper foi outro autor que me fez pensar: uau, dá pra fazer isso?
E também Joanna Russ.
Fiz uma busca no DuckDuckGo para ver se o ensaio dela chamado
“What Can a Heroine Do? Or Why Women Can't Write” [O que uma
heroína pode fazer? Ou por que mulheres não podem escrever] estava
online em algum lugar, e na verdade enquanto escrevo este posfácio
ainda existe uma versão escaneada do texto no Tumblr da Topside
Press, porque vai ver eu falei tanto sobre o artigo na época que o
pessoal da editora achou e compartilhou, será? O que é foda. Esse
ensaio, especificamente, pareceu me dar permissão para estruturar
Nevada como eu fiz.
Nele, Russ esmiuça todas as maneiras pelas quais a narrativa
ocidental da jornada do herói não se aplica às mulheres. É incisivo e
engraçado de um jeito como eu gostaria de conseguir escrever:
“Quando as pessoas da crítica não encontram o que esperam
encontrar, elas não podem imaginar que o erro talvez esteja nas suas
expectativas”.
Ela começa com várias premissas conhecidas, só que com os
gêneros trocados: “Duas mulheres fortes lutam por supremacia no
antigo Oeste”; “Uma poeta esfuziantemente maldita mata o marido e
bebe até morrer, afastando assim a comunidade de filistinas e
executivas que teriam continuado a chamá-la para dar palestras”; “Um
garoto lindo e sedutor, cujo narcisismo e astúcia instintiva escondem
o fato de ele não ter mente (e, na realidade, praticamente nenhuma
consciência dotada de sentidos), enlouquece de desejo uma sucessão
de atrizes, produtoras, cowgirls e diretoras de cinema de sucesso”. Ela
então escreve sobre patriarcado e gênero, sublinhando as formas como
aquilo que é codificado como sucesso para os homens tende a ser
codificado como fracasso para as mulheres. É fascinante. Vocês
deveriam ler.
O fantasma de Roland Barthes está me olhando de esguelha,
porque ele pode ver onde estou querendo chegar, mas aguentem aí.
Eu vou usar a palavra “transição”, mas entre aspas porque acho que
esse é meio que um arcabouço ridículo, um jeito cisnormativo de
entender o que as pessoas trans fazem. Acho que uma forma mais
precisa de descrever o processo, ou jornada ou o que seja de ser trans,
começa com um arcabouço cisnormativo para compreender o que é
ser trans, e chega a um lugar que abarca de modo mais realista as
complexidades das experiências vividas pelas pessoas trans. Isso
significa que a “transição” não começa com hormônios nem com uma
saída do armário. Ela começa muito antes, com o sentimento que
muitas pessoas entre nós têm bem cedo de que alguma coisa está
errada. Ou talvez comece com o trabalho precoce e inicial de tentar
entender o que exatamente está errado. (Ela começa no
Fictionmania!)
Não acho que vivamos numa cultura na qual essa transição
específica tenha um fim.
Uma das coisas que eu queria confrontar em Nevada era a ideia
cisnormativa de que, para as pessoas trans, primeiro você é uma
pessoa de um dos Dois Gêneros, depois você se encontra num
fascinante lugar intermediário em que transiciona, e então, de uma
forma mais ou menos descomplicada, você se torna o outro dos Dois
Gêneros. E como essa misteriosa fase intermediária é uma coisa
superempolgante e interessante para pessoas que não precisam passar
por ela, decidi deixá-la de fora. Minha ideia era examinar todas as
formas pelas quais a parte “pré-transição” e a parte “pós-transição” na
verdade não se caracterizam como uma versão cisgênero de um ou
outro dos Dois Gêneros. Então, eu criei uma personagem que estava
em sua “pós-transição”, seja lá o que isso significa, que ainda vivia
com as consequências de uma vida inteira de repressão e também do
trauma dessa fase de transição, e outra personagem “pré-transição”,
seja lá o que isso significa, porque uma cabeça confusa com toda a
merda que a gente não pode evitar carregar por aí não encontra uma
experiência cisgênero correspondente. Entendem? A abordagem
cisnormativa para honrar essa diferença seria prestar atenção na
diferença durante esse período intermediário, de “transição”; a
abordagem que respeita a complexidade da experiência vivida pelas
pessoas trans diz, bom, na verdade não, as pessoas trans são trans
antes e depois da “transição”.
E eu deveria deixar claro que esse modelo não descreve todas as
vidas trans, nem mesmo a maioria delas. Muitas experiências não
binárias não seguem esse modelo, e mesmo as pessoas trans que se
identificam com o binarismo de gênero ainda assim têm experiências
muito distintas. É quase como se a construção pelo colono branco dos
Dois Gêneros fosse violentamente inadequada.
A questão, portanto, era: como encaixar tudo isso numa história
com um chamado à aventura, uma estrada de desafios, a busca de uma
visão e et cetera?
Bom, você não faz isso, diz Joanna Russ. Não precisa fazer.
A primeira metade de Nevada fala sobre Maria, e a segunda metade
é quase toda sobre James, porque eu queria examinar as histórias tanto
“antes da transição” quanto “depois da transição”.
Então por que Maria aparece na metade de James? Bom, isso já é
uma outra coisa, mas isso se deu porque uma das formas mais comuns
de as mulheres trans se autoflagelarem é com um chicote rotulado de
“eu deveria ter saído do armário antes”. Isso não é justo com a gente.
Leva-se o tempo que for para entender o que é preciso entender, e
para entender o que é preciso fazer em relação a isso. Mas mesmo
assim nós nos autoflagelamos. Pensei que seria engraçado explicitar
isto: e se, enquanto você ainda estivesse inconsciente/em negação
sobre o fato de ser trans, uma fada madrinha trans tivesse aparecido e
não apenas lhe dito na sua cara que você era trans, mas tentado
convencer você disso?
Será que isso teria feito você sair do armário antes?
Tem gente que odeia o fim. Para mim, ele resolve a história de
Maria — dar uma de mandona para fazer outra pessoa virar trans do
mesmo jeito que você é não dá certo, e portanto não faz você se sentir
menos fodida — e a história de James se resolve quando ele decide
que não, ele não vai dar ouvidos a Maria e foge. Entendo que não seja
satisfatório num sentido tradicional, mas acho que funciona.
E Joanna Russ me deu permissão para fazer isso.
Tá bom, Roland, acabei. Já pode parar com os gestos de “chega
disso” e voltar para suas fichas de anotações espectrais.

Prettyqueer

O prettyqueer.com foi um site metido a inteligente criado por volta de


2011 pelo pessoal que pouco depois fundaria a editora Topside Press:
Julie Blair, Red Durkin, Riley MacLeod e Tom Léger.
Àquela altura, eu tinha desistido de Nevada. Já tinha trabalhado
bastante no livro, mas a segunda metade simplesmente não se
materializava. Eu sabia o que queria que o livro causasse, mas não
sabia como fazer isso acontecer. Tinha mandado o manuscrito para a
So Skull — a editora dos meus sonhos, que publicava Daphne
Gottlieb, minha amiga desde os tempos de LiveJournal —, mas não
houve interesse.
Que se foda, pensei. Vou aproveitar o que eu aprendi e escrever
outro livro.
Guardem esse pensamento.
Não sei quanto impacto o site teve na vida de outras pessoas, mas
para mim o Pretty Queer foi uma coisa imensa. O conselho editorial
era formado por quatro pessoas trans descoladas de quem eu queria
ser amiga. Eu conhecia Julie e Red do Camp Trans! E Julie e Red
entendiam tudo. A gente podia escrever coisas que não se curvassem à
visão cis, e as pessoas de fato liam. O pessoal do Pretty Queer
publicava pessoas amigas. Você publicava alguma coisa no site e as
pessoas comentavam que tinham odiado, o que significava que tinham
lido! Se bem me lembro — tenho medo de pesquisar no Wayback
Machine —, eu contribuí principalmente com entrevistas fake de
celebridades trans nas quais elas diziam as coisas bacanas que eu
gostaria que dissessem, em vez das coisas decepcionantes que na
realidade tendiam a dizer. E o Pretty Queer me pagava por isso! Na
real, relendo e-mails antigos enquanto escrevia este posfácio, eu achei
um em que escrevi: “Gente, estou trabalhando o máximo de horas
que consigo, mas não está dando para pagar os hormônios nem o
aluguel… vocês teriam como me adiantar a grana das próximas
matérias?”. E eu recebi o adiantamento. Duvido que eu algum dia
tenha chegado de fato a entregar aquelas três matérias.
Acho que ninguém nunca tinha me pagado por nada que eu jamais
tivesse escrito.
Depois do Pretty Queer, veio a fase da Topside Press. Eu morava
em Portland e a editora ficava em Nova York, então, em seu primeiro
lançamento, The Collection: Short Fiction from the Transgender Vanguard
[A coleção: Ficções curtas da vanguarda transgênero], foi fácil pegar
um ônibus e ir lá participar das leituras. Além do mais, a editora
escolheu um conto meu para abrir a coletânea. Fiquei me sentindo
uma estrela do rock.
Foram três anos embriagantes. No começo, a sede da Topside
ficava no apartamento de Tom e Julie. Dormi muito no sofá de lá.
Lembro-me de muitas, muitas margaritas em latinha Lime-A-Rita com
cerveja Bud Light no que parecia um verão sem fim,
interminavelmente quente e úmido no Brooklyn, virando a noite em
papos polêmicos sobre representação, literatura, literatura trans,
como ser trans no mundo, corpos, interseccionalidade e o que podia
ser salvo dos feminismos transfóbicos dos anos 1970 e 1980.
Red e Julie eram um pouco mais radicais do que Riley e Tom,
embora Riley provavelmente fosse a única pessoa punk de verdade.
Ele usava um daqueles colares que parecem uma coleira, com um
cadeado pendurado e uma plaquinha em forma de osso daquelas que
se coloca em cachorros, e em determinado momento acho que morou
numa casa-barco que afundou. Tom tinha vínculos com o que parecia
ser um mundo gay inteiramente diferente: sabia um monte sobre o
ACT UP e quais homens gays das últimas duas gerações de ativistas
eram babacas. Acho também que ele tinha feito um mestrado. Julie era
uma esquisitinha hilária e superinteligente, dona de um
conhecimento enciclopédico sobre coisas trash dos anos 1990 — “eu
só por acaso gosto de trabalhar com composição porque sou
pervertida”, disse ela à Lambda Literary — e Red é a pessoa mais
engraçada do mundo. Além disso, tenho quase certeza de que foi ela
quem disse aquilo de “se o gênero é uma construção, os sinais de
trânsito também são” uma noite numa conversa, o que eu total roubei
e citei em Nevada.
Outras figuras geniais passavam o tempo todo pela editora: Annie
Danger, a artista maluca de São Francisco; Ryka Aoki, cujos livros são
hoje publicados pela Tor; Brynn Kelly, escritora e gênia da qual todos
sentimos saudades; uma porção de gente que colaborou com The
Collection; e tantos outros seres humanos incríveis que nem dá para
citar aqui. Às vezes Sarah Schulman dava pinta por lá. Casey Plett e
Sybil Lamb viviam lá; as duas publicariam romances pela Topside em
breve. E uma penca de outras pessoas.
Em poucos anos, é claro, a coisa toda perdeu o rumo, a Topside
acabou e virou outra coisa, depois acabou de novo, umas pessoas
tomaram decisões ruins, algumas se magoaram, outras sumiram. A
Topside não existe mais, nem o Pretty Queer, mas durante um ou dois
anos a editora foi uma coisa linda de verdade pela qual eu sempre serei
grata.
Quando mandei o manuscrito pela primeira vez, Nevada não rolou.
Mas depois do sucesso de The Collection a Topside começou a
procurar romances de pessoas trans. Tom me incentivou a mandar.
E eu mandei.
Ele concordou comigo: é, a segunda metade não funciona.
Mas ele mostrou o texto para Red, Julie e Riley, que viram alguma
coisa ali e trabalharam duro comigo para conseguir que o livro fizesse
o que eu queria que fizesse.
Eu nunca tinha passado por um processo de edição tão intenso.
Red e Julie participaram, mas o processo editorial em si foi conduzido
sobretudo por Tom e Riley. Resisti bastante ao que me parecia ser
uma baboseira acadêmica, que em retrospecto provavelmente não era
(“Na real, essa personagem não quer nada da vida” — Imogen Binnie,
2012). O processo de edição de um primeiro romance deve sempre ser
uma espécie de difícil despertar, e eu tive a sorte de passar por isso
com essas pessoas. Então eu queria agradecer a Red, Julie, Tom e
Riley mais uma vez. Mais do que quaisquer outras pessoas, nada disso
poderia ter acontecido sem vocês quatro. Então, obrigada.

Nevada me abriu várias portas. Me fez entrar em salas de roteiro para


a televisão. Vendi um filme. As pessoas de fato ouviram um podcast
que eu gravei dentro de um carro, sozinha. Fui jurada tanto do
Lambda Literary Awards quanto do Outfest L.A. Fiz turnês pelos
Estados Unidos, Canadá, Reino Unido e Irlanda, dormindo de favor
no sofá e no chão de pessoas queer desconhecidas, muitas das quais
eu antes sabia quem eram pelos apelidos do Strap-on. E hoje durmo
numa cama, e não num futon velho jogado no chão de numa série de
closets de repúblicas em Oakland. A cama fica numa casa que divido
com minha esposa lésbica e duas crianças pequenas e incontroláveis.
Praticamente não uso mais redes sociais. Quando não estou sendo
uma roteirista de tevê fodona em Los Angeles, eu sou assistente social
e terapeuta.
E eu até tive uns poucos meses aqui e ali em que a grana não foi um
problema, acreditem se quiser.
Ter crianças meio que transforma você em uma pessoa reclusa, as
mulheres trans já têm mesmo uma tendência a ser eremitas e nossa
casa fica na zona rural de Vermont, então eu na verdade não faço
coisas nem vejo pessoas como fazia antes. Não que eu agora seja outra
pessoa, mas talvez seja menos fodida da cabeça. Aliás, não era isso o
que Maria queria? Ser menos fodida da cabeça?
Eu fico um pouco envergonhada por estar escrevendo um posfácio
tão autobiográfico. Ou quem sabe vulnerável, para ser mais precisa.
Acho que grande parte da dificuldade de escrever este posfácio tem a
ver com isso, e também por isso eu incluí aqui uma piada recorrente
autorreferente e sem graça nenhuma baseada numa leitura gozadora
de “A morte do autor”. Na época da Topside Press, nós
reivindicávamos muito o fato de o livro de memórias transgênero ser
um gênero literário, porque muitas vezes era como se estivéssemos
suplicando pela validação das pessoas cis: “Talvez você não fosse tão
cruel comigo se soubesse quanta dor eu suportei!”. Mas isso já faz uma
década. Talvez tenhamos aberto algumas portas para os tipos de
espaço que as histórias trans podem ocupar, sejam elas fictícias ou
não. Sem falar que Janet Mock basicamente transformou sozinha o
livro de memórias trans numa coisa incisiva, progressiva e descolada.
Duas vezes. De modo que a esta altura provavelmente existe lugar
para um pouco de autobiografia transgênero. A paisagem cultural com
certeza se abriu. Vocês já leram Janet, Ryka, Torrey Peters, Casey
Plett, Vivek Shraya, Jackie Ess ou Charlie Jane Anders? Já assistiram a
Pose, ou a Euphoria, ou escutaram G.L.O.S.S. ou 100 Gecs? Eu mesma
participei do roteiro de uma série de televisão em que Laverne Cox
interpretava uma advogada que tinha uma temporada inteira de altos e
baixos com um namorado gostoso, além de amigas trans com nomes e
falas. Ainda há muito trabalho a ser feito, mas as coisas estão bem
diferentes. Eu não acho que Nevada tenha sido o marco zero da
literatura trans moderna, mas me sinto uma pessoa de sorte por este
livrinho engraçado ter podido contribuir com ela.
Então, Roland, vê se sai da minha cola, cara.
Agradecimentos

Obrigada a mamãe, papai, Eric e Leslie; a Liam, Aidy, Sylvie, Mark,


Jay, Marla, Larry e Phineas; a Julie, Tom, Riley, Red e Vani, da
Topside; à Nine, pela edição e revisão; e em especial a Alex, por ter
editado uma nova revisão deste livro no mínimo uma vez por ano
durante cinco anos e por ter ficado toda mexida a cada vez. Nenhuma
personagem deste livro foi inspirada nela.
Imogen Binnie nasceu em Nova Jersey, nos Estados Unidos. É
escritora e roteirista. Nevada, seu livro de estreia, foi finalista do
prêmio Lambda para literatura trans em 2014. Ela vive em Vermont
com a esposa e os filhos.
Nevada © Imogen Binnie, 2013
Posfácio © Imogen Binnie, 2022
Publicado mediante acordo com MCD x FSG Originals, um selo da
Farrar, Straus and Giroux, Nova York.

Todos os direitos desta edição reservados à Todavia.

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa


de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

capa
Bianca Baderna
composição
Jussara Fino
preparação e leitura sensível
floresta
revisão
Gabriela Rocha
Paula Queiroz
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Binnie, Imogen (1979-)


Nevada / Imogen Binnie ; tradução Fernanda Abreu. — 1. ed. — São Paulo : Todavia, 2024.
Dados eletrônicos (1 ePub).

ISBN978-65-5692-572-1
Acesso eletrônico: 1 arquivo de ePub

1. Literatura norte-americana. 2. Romance. 3. Ficção contemporânea. 4. Literatura trans


(LGBTQIA+). I. Abreu, Fernanda. II. Título.

CDD 813

Índices para catálogo sistemático:


1. Literatura norte-americana : Romance 813

Bruna Heller — Bibliotecária — CRB-10/2348


todavia
Rua Luís Anhaia, 44
05433.020 São Paulo SP
T. 55 11. 3094 0500
www.todavialivros.com.br

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