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Nevada
tradução
Nevada
Para Pam,
apesar de este não ser um livro feliz
Sometimes saying goodbye could be so easy
So come on, come on, come on, leave this city
Parte I
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Parte II
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Posfácio
Fictionmania
Camp Trans
Outras figuras queer dos anos 2000
This Bridge Called My Back
Outros livros também
Prettyqueer
Agradecimentos
Autora
Créditos
Parte I
Fim de outubro
1
As mulheres trans da vida real não são iguais às mulheres trans da TV.
Em primeiro lugar, depois que se tira a mistificação, os mal-
entendidos e o mistério, elas são pelo menos tão chatas quanto as
outras pessoas. Ah, as minhas neuroses! Ah, os meus traumas! Ah,
olha só pra mim, meu passado me traumatizou e eu ainda estou
resolvendo isso! Apesar da impressão que se pode ter com base nos
programas de televisão e filmes idiotas, não há nada de
particularmente interessante nisso. Embora talvez Maria esteja sendo
parcial, claro.
Ela queria que as outras pessoas entendessem isso sem ela precisar
dizer nada. É sempre impossível saber as suposições das pessoas. Elas
tendem a pensar que mulheres trans são drag queens louconas e
superengraçadas, ou então homens héteros tristes, patéticos,
pervertidos e iludidos, pelo menos até juntarem dinheiro para fazer
suas Cirurgias de Mudança de Sexo, quando então passam a ser
exatamente iguais a qualquer outra mulher. Ou algo assim? Mas Maria
pensa: cara, oi? Ninguém mais me lê como trans. Tiozões héteros
flertam comigo quando estou no trabalho, e em todos os meus anos de
transição eu não consegui juntar dinheiro nem para comprar um par
de botas decente.
Ser uma mulher trans é assim: Maria trabalha num sebo imenso no
sul de Manhattan. O lugar é um horror. A dona é uma mulher muito
rica e muito má que vive ou ausente ou microgerenciando os
funcionários. As pessoas da gerência que trabalham para ela levam
todas uma vida miserável sob seu comando há vinte ou trinta (ou
quarenta ou cinquenta) anos, ou seja, são todas babacas com Maria ou
É
com qualquer outra pessoa que trabalha abaixo delas. É tipo um sebo
famoso das antigas que existe há séculos.
Maria trabalha lá tem uns seis anos. As pessoas vivem pedindo as
contas, porque nem todo mundo consegue aguentar o abuso inerente
ao emprego. Mas Maria é tão emocionalmente fechada e tem tanta
dificuldade de sentir qualquer coisa que pensa: bom, o emprego é
sindicalizado, estou ganhando o suficiente pra pagar meu apê, e
consigo me safar de quase qualquer situação da qual queira me safar.
Só vou embora daqui se me demitirem. Só que quando ela começou a
trabalhar lá era tipo: oi, eu sou um cara, e meu nome é o mesmo que
consta na minha certidão de nascimento. Então, quando já tinha um
ou dois anos de casa, teve a intensa e assustadora revelação de que por
muito, muito tempo — por mais que dizer isso seja batido e clichê —,
até onde sua memória alcançava, ela estava bem fodida da cabeça.
Então começou a escrever sobre isso. Pôs tudo no papel e foi
ligando todos os pontos: o ponto eu às vezes quero usar vestidos, o
ponto sou viciada em masturbação, o ponto tenho a sensação de levar
um soco no estômago toda vez que vejo uma menina
despretensiosamente bonita, o ponto eu chorava muito quando
pequena e acho que não chorei nenhuma vez desde a puberdade. Um
monte de outros pontos. Uma constelação inteira de pontos. O ponto
ai, cara, eu sempre fico mais doida do que pretendia quando começo a
beber. O ponto talvez eu odeie transar. Então acabou entendendo que
era trans, disse a todo mundo que iria mudar de nome, começou a
tomar hormônios, e foi muito difícil e recompensador e doloroso.
Enfim. Foi um Episódio Muito Especial.
A questão é que tem pessoas no trabalho que se lembram de
quando ela era supostamente um menino, que se lembram de quando
ela transicionou, e que podem a qualquer momento contar para
qualquer uma das pessoas novas que entrarem no trabalho que ela é
trans, e aí ela vai ser obrigada a entrar num modo contenção de danos
porque, lembrem-se, como ela pode saber que ideias bizarras essas
pessoas têm em relação às mulheres trans?
Tipo, e se a pessoa for liberal e quiser demonstrar sua
solidariedade? “Eu tenho uma amiga trans”, em vez de: “Ei, amiga
trans, gostei de você, bora ter uma relação humana tridimensional?”.
Ser uma mulher trans é assim: nunca ter certeza de quem sabe que
você é trans, nem do que essa informação poderia significar para a
pessoa. Viver pisando num terreno social movediço e esquisito. E o
problema não é que importa alguém saber que você é trans. Dane-se.
Você só não quer que a sua personalidade engraçada, encantadora,
complicada e esquisitona seja apagada pelas ideias que as pessoas têm
na própria cabeça e que foram criadas por roteiristas de TV picaretas,
por exemplo, ou então por roteiristas de filmes pornô mais picaretas
ainda. Mas é bem uó ter que educar as pessoas. Soa familiar? As
mulheres trans precisam lidar exatamente com a mesma merdalhada
que todas as outras pessoas do mundo que não são brancas, héteros,
machos, com plenas capacidades físicas ou detentoras de algum outro
tipo de privilégio. Não tem glamour nem mistério. É um puta saco.
Maria está completamente exausta e de saco cheio disso, e se você
não está, ela lamenta muito. Lamenta de um jeito profundo,
consternado, sarcástico, impotente e inútil.
3
Steph deve ter ido embora uns vinte minutos depois, mas Maria não
sabe porque não estava mais lá. Está pedalando. O cara do Bouncing
Souls escreveu uma música para a própria bicicleta, e ela a está
cantarolando: I'll sing this song to my bike, and everything else that I like.
O Brooklyn no outono está entre as coisas de que ela mais gosta.
Talvez já tenha decidido que está tudo acabado com Steph, então
esteja se sentindo muito livre e empolgada. Ou talvez seja só por estar
pedalando, e por estar frio o suficiente para usar cachecol e luvas, mas
não tanto para precisar de um casacão e um gorro grande e ridículo.
Seja como for, ela está bem empolgada. O Brooklyn é lindo. Maria é
apaixonada pelo Brooklyn. Quando Steph está ocupada, ela às vezes só
pega a bicicleta e sai para explorar o bairro inteiro, que é maior do que
a cidade de São Francisco. Tem um jardim zoológico, um parque,
muita, muita pizza, tem a Rocketship em Cobble Hill, tem tipo uns
quatro bares que servem pizza de graça para quem compra uma
cerveja. Tem árvores, bebês, prédios caindo aos pedaços, e tem
pessoas.
Agora está super na moda gente rica, jovem e branca como Maria
colonizar a história do Brooklyn, porque nesta nossa época fodida e
pós-moderna todo mundo vive desesperado por algo que seja real, e
não existe nada mais real do que os Dodgers, o judaísmo nova-
iorquino e, tipo, rap. O problema é que quando eles dizem “pessoas
reais”, na verdade estão se referindo a pessoas que não carregam o
fardo de um senso de humor repleto de ironia, de formações
universitárias que as ajudam a erguer uma barreira analítica entre si e
o mundo real, e da pressão de assumir a realidade de terem todas
crescido na classe média, optado por um estilo de vida liso e boêmio,
e agora serem obrigadas a lidar com o fato de não poderem pagar pelos
confortos com os quais foram criadas. Então colonizam esses bairros
de gente normal, colonizando suas experiências. É bem horrível.
Maria sabe que tem culpa no cartório.
Além do mais, o hip-hop nasceu no Bronx.
Você pode ou não pensar sobre essas coisas enquanto dribla os
ônibus perto do Prospect Park, ou atravessa toda nervosa o Bed-Stuy,
ou ri com desdém da garotada idiota e rica de Williamsburg quando
para, prende a corrente da bicicleta, e vai pagar cinco dólares por um
latte vegano num café totalmente independente em que acabou de
entrar por puro acaso.
Como é domingo, Maria precisa trabalhar. O brunch aconteceu, e
embora ela seja uma funcionária bem antiga, ainda não consegue
folgar nos fins de semana. Suas folgas são às quartas e quintas. Mas aos
domingos não tem muitos adultos por perto, então todo mundo bebe
bastante durante o expediente. Maria acha isso bom. Ela gosta de
beber, apesar de não beber tanto quanto quando era uma adolescente
toda fodida e cheia de problemas.
Ela atravessa a ponte Williamsburg, que nunca vai ser sem graça,
por mais acostumada que ela fique com o lugar. Da ponte dá para ver
Manhattan inteira. Suas pernas doem. Tem sempre pedestres no
caminho, e quando você chega lá embaixo é uma oportunidade para se
enfiar de modo nada seguro no trânsito, costurar entre vans e táxis,
quase morrer atropelada, pular um meio-fio e subir a Terceira
Avenida. Ciclistas mensageiros não devem mais existir agora que
temos internet, mas Maria tem certeza de que seria boa nisso. É algo
em que pensa bastante.
Ela prende a bicicleta num parquímetro, bate o ponto (na verdade,
um cartão magnético, não tem nada para bater) e larga a bolsa carteiro
gigante e a jaqueta jeans na sala dos funcionários. Sua jaqueta é uma
obra de arte. Tem um esquete de The Kids in the Hall no qual Satã dá a
um maconheiro o dom de fazer brotar maconha da própria cabeça em
troca de sua jaqueta jeans perfeita: esse é o tipo de jaqueta que Maria
usa. Satã seria capaz de matar por sua jaqueta. Eis os patches dela:
Bouncing Souls, White Zombie, a expressão FODA-SE, uma menininha
segurando tesouras enormes (sobre fundo xadrez), Oi, Meu Nome é
SAPATÃO e, na parte de trás, o golpe de misericórdia: as costas inteiras
são ocupadas pela capa do primeiro álbum do Poison. Não é nenhuma
ironia. Poison é irado.
O sebo só instalou ar-condicionado poucos anos antes, um ou dois
depois de ela ter começado a trabalhar lá, ou seja, metade das vezes,
ao entrar, ela se prepara para recuar diante de uma onda de umidade
pegajosa e mau cheiro. Era forte assim: no verão, as pessoas
costumavam entrar, sentir aquele bafo quente e repulsivo, virar as
costas e ir embora. A vibe ainda é bem parecida, embora o ar em si
tenha melhorado.
Maria tem um trabalho específico, mas chato, e de qualquer forma
não é o que ela faz de fato. Depois de passado um tempinho num
emprego, você entende o que tem de fazer; depois de um tempo
maior, você domina o trabalho e consegue fazer o mínimo necessário
sem pensar muito no assunto; é a primeira vez que ela passa tanto
tempo num emprego, e tem percebido que anda forçando os limites
do mínimo necessário, tentando descobrir onde exatamente termina o
“preguiçosa” e começa o “você vai levar uma advertência”.
Ela diz oi para umas pessoas e volta a sair pela porta lateral. Está a
fim de um bagel.
5
Ela volta para o trabalho. Ninguém reparou que ela tinha saído, mas
ninguém nunca repara. Ela traça um plano: construir um ninho perto
dos terminais de atendimento nos fundos do andar térreo, comer
metade do bagel, ajudar qualquer pessoa que vier pedir ajuda,
embrulhar o bagel, depois ir ver se chegou algum livro de resenhas
interessante. Devem ter saído umas coisas legais desde a última vez
que ela olhou, há uma semana talvez. Putz, como ela tem livros.
Então Maria monta acampamento diante de um terminal. Na meia
hora seguinte, acontece ali exatamente tudo de que todo mundo que
trabalha no varejo reclama. Pessoas são grossas, pessoas ficam
confusas, pessoas querem que ela decida o que elas querem. Que se
dane. Continua comendo. Essas coisas na verdade não a incomodam.
A persona varejista de Maria é impressionantemente desprovida de
amargura. Há muito tempo ela vê gente traumatizada pelo varejo
tratar mal os clientes naquela loja, e é bem nojento. Além do mais, é
Manhattan, todo mundo é babaca. Durante algum tempo, Maria
recorreu ao extraordinário potencial de ser simpática, mas agora meio
que superou isso também, e encara a coisa toda de um jeito zen.
Consciente. Ser babaca com gente que não foi babaca antes só faz
Maria se sentir babaca, o que é uma sensação bem ruim. Então ela até
que é bem simpática.
Mas, como se trata de uma livraria, ouve muitas coisas do tipo:
estou procurando um livro, a capa é azul. Supostamente essa é a coisa
mais irritante que se pode perguntar para uma livreira, mas ela curte.
As pessoas sempre pensam saber menos do que de fato sabem sobre
um livro. Ela em geral consegue extrair essas informações e entender
do que se trata. Quando você viu esse livro? Onde você ouviu falar
nele? É um livro feliz? Essas conversas podem ser quase um instante
de conexão humana genuína, só que é basicamente uma conexão de
mão única. Quem sabe em outra vida Maria possa ser terapeuta,
assistente social ou algo assim.
Quando está ajudando uma cliente a entender que está procurando
Amy Hempel, que é o máximo, Maria se dá conta de que não sabe se
vai dormir em casa hoje, ou se Steph vai dormir em casa, ou qual vai
ser. Faz uma anotação mental para ligar para Steph.
Só que ela passa o dia inteiro esquecendo de ligar. No fim da noite,
tudo o que quer é ir para casa, só que não sabe muito bem se pode.
Todo mundo está saindo para ir encher a cara no boteco copo sujo na
St. Mark's, o que é sempre uma opção, mas Maria está exausta e não
fica muito a fim. Está na calçada em frente à livraria fechada tirando
enfim o celular da bolsa quando Kieran esbarra nela.
Meus olhos são bocetas em brasa, ele quase grita. Minha boceta é
um olho furioso.
É uma piada recorrente e idiota: Kieran descobriu que Maria
gostava de Kathy Acker, então começou a fazer imitações péssimas de
Kathy Acker, em geral respondidas por ela com imitações péssimas de
James Joyce, que Kieran curte bastante. Ela devia responder: Sim eu
digo Talvez Sei lá Sim Claro Tudo bem Sei lá Claro, mas no presente
momento não quer nem falar com ele. Enfim, tudo aquilo é uma
bobagem. Ele supostamente se acha um punk genderqueer radical
fodão “fim do gênero”, mas James Joyce não exatamente se esforçou
para boicotar o patriarcado. Kieran fica falando sobre todos os motivos
pelos quais sim, Joyce se esforçou para boicotar o patriarcado, mas a
resposta na verdade era não, James Joyce era um escroto patriarcal e o
culto aos homens brancos mortos é uma função do patriarcado. Mas
que se foda esse papo agora. Maria ignora Kieran. Vai ver ele nem sabe
que Steph contou que ela e Kieran treparam? Ela passa a corrente
pesada da bicicleta em volta da cintura, fecha a tranca, sobe na bike e
sai pedalando. Pega o sentido contrário ao de casa, na direção do
centro.
Obviamente não dá para passar a noite inteira andando de bicicleta
em vez de ir para casa, a pessoa ficaria cansada, entediada, e
obviamente tem trabalho amanhã, mas ela decide passar um tempo
pedalando. Uma coisa boa é que seu celular está na bolsa, então se
Steph ligar ela não vai ouvir. Maria meio que tem noção de estar
transformando a si mesma na parte desprovida de razão, de estar meio
que se comportando feito uma babaca. Sei lá sim claro tá sim sei lá tá
claro e daí.
Vai seguindo para o norte. É o máximo andar de bicicleta à noite
em grande parte de Manhattan, mas pedalar no centro é um horror
vinte e quatro horas por dia. É praticamente impossível, a não ser que
você esteja tentando arrumar um hematoma num para-choque, coisa
que ela às vezes fica a fim de fazer. E que talvez queira fazer agora.
Mesmo num domingo à noite como aquele, pedalar no centro é
sempre uma grande aventura. O lugar é cheio de subidas e caminhões
de nove eixos, ônibus e táxis engarrafados, o que obriga a pessoa a
costurar entre os veículos. Ela se esforça para vencer uma subida e
começa a sentir dor nas pernas; estende uma mão e esbarra no
retrovisor de um táxi. Aquilo poderia ser o início de uma odisseia que
duraria a noite inteira, um clima De olhos bem fechados ou coisa assim,
mas ela vence uma subida, a bicicleta começa a descer, e depois
começa a subir outra. Com as pernas protestando, ela encosta numa
calçada. Na real, um filme seria uma boa ideia.
É animador decidir de antemão não dormir quando você está tão
acostumada a não conseguir dormir. Tipo: vai ser bem ruim quando
você ficar realmente exausta, o que acontece de modo nem um pouco
romântico e bem rápido, mas no presente momento Maria está
superpilhada. Anda dois quarteirões empurrando a bicicleta bem rente
à calçada, no asfalto, só para poder ter o direito de ocupar meia pista e
atrapalhar os carros, até chegar num cinema onde está passando um
filme de monstro. Compra um ingresso, quase entra, tem outra ideia
melhor, dá meia-volta, entra num mercadinho, compra um litrão,
enfia na bolsa e entra no cinema.
Na real, ela não consegue mais beber uma garrafa daquelas inteira.
Sua barriga lamentável de velha senhora de vinte e nove anos de idade
não dá conta. Mas a questão é entrar no cinema levando a cerveja
escondida, não de fato beber.
Maria se senta no meio, na quarta fileira. Tem tipo mais duas
pessoas no cinema, porque ninguém vai assistir a filmes de monstro
no domingo à noite. Ela já esteve naquele cinema. Viu algum outro
filme idiota, com algum outro monstro idiota, em algum outro
momento em que estava toda abalada emocionalmente e meio que
dando um tempo da vida normal. Era uma matinê da outra vez e
quando o filme acabou, ela decidiu entrar em outro cinema e ver outro
filme, mas aí amarelou totalmente quando viu que a sala só tinha um
lanterninha. Aquele estereótipo de que pessoas transexuais são todas
umas delinquentes descontroladas, atrevidas e fora das normas, e que
tipo instilam no cidadão comum a coragem de se libertar dos grilhões
sufocantes da conformidade? Esse estereótipo se aplica às drag
queens. Maria é transexual e poderia desaparecer de tão tímida.
Mas ainda assim ela entra no cinema com um litrão de cerveja.
O filme acaba se revelando meio idiota, mas quando se vai assistir a
um filme de monstro a ideia é que ele seja idiota mesmo. Tem várias
explosões, o monstro é asqueroso e o roteiro é tipo assim: você passa
quinze minutos sendo apresentada aos personagens e pensa nossa,
como eu odeio essa gente playboyzinha! Queria que um monstro
aparecesse e matasse todo mundo.
E aí, por mais uma hora e quinze minutos, o monstro se demora
matando todos eles.
É irritante, um clichê previsível, mas Maria sempre toma o partido
do monstro. Só que se você fosse conversar com ela e desse a
entender que existem motivos bem óbvios para isso, ela surtaria com
você. Não é o tipo de sacada que a interessa.
Enfim, está tarde; já é quase uma da manhã quando ela sai do
cinema. Os bares fecham às quatro, e o pessoal da livraria com certeza
ainda deve estar bebendo, mas Maria está começando a sentir nos
músculos do ombro um prenúncio de como vai ser o dia seguinte se
não dormir pelo menos um pouco. Sendo assim, um meio-termo: ela
entra na lojinha de bebidas minúscula que parece um buraco na
parede e compra uma garrafa de cinco dólares de um uísque venenoso.
Volta para casa bebendo: de luvas com os dedos cortados, passando
pelo bar xexelento na St. Mark's, pelo caos eterno que é o tráfego no
cruzamento da Bowery com a Delancey e pela ponte Williamsburg,
sob um céu azul-marinho sem nem uma estrela e já meio altinha de
cerveja antes mesmo de começar a beber o uísque.
Ela não liga para Steph. Nem sequer olha o celular. Tipo, se você
não abre o envelope com pinta de oficial, ele não pode causar mal
nenhum. Além do mais, vai saber onde está o telefone dentro da sua
bolsa, e está frio, e no presente momento ela está ocupadíssima
fazendo pose, parecendo o Batman dentro de uma pequena alcova
bem no meio do alto da ponte Williamsburg, bebendo seu uísque e
olhando os prédios que ficam no lado Manhattan, no lado Brooklyn,
no lado Manhattan. Qual dos dois é pior? Não consegue decidir. Mas
gosta do metal de que a ponte é feita: uns rebites imensos e aparentes,
a grade que parece uma rede para as pessoas não poderem se atirar no
rio.
Então lhe ocorre que ela provavelmente meio que odeia tudo. Puxa
uma briga consigo mesma. Coisas que não odeia: mulheres trans que
acabaram de se dar conta de que vão ter de transicionar, mas como
não sabem o que fazer em relação a isso ficam supernervosas mas
também meio que aliviadas.
Não odeia caras trans conscientes do fato de terem conquistado um
privilégio masculino fora da comunidade queer, mas também, de um
jeito estranho, dentro da própria comunidade queer, em especial no
modo como a sua presença tende a eclipsar, eliminar ou invalidar a
presença das mulheres trans, e que têm consciência disso e falam
sobre o assunto, admitindo o fato para essas mulheres.
Não odeia filhotinhos de cachorro.
Na real, quase todo o site cuteoverload.com também é bem legal.
Um aperto na garganta lhe diz para deixar de ser tão romântica e
esquisita e parar de encher a cara, Batman, então ela volta a pedalar, e
meio que despenca em queda livre pelo outro lado da ponte pensando
no cuteoverload.com. Aquele vídeo do bebê panda espirrando.
Provavelmente existem outras coisas que ela não odeia.
Teoria feminista, ela propõe. Acho que não odeio teoria feminista.
Ela não odeia ter uma banda preferida que ninguém conhece e que
ela mantém em segredo, pois compartilhar essa informação estragaria
tudo. Isso até que é legal.
Com certeza não odeia Piranha, sua única amiga trans que não a faz
subir pela porra das paredes. Caralho, tem tipo uns três dias que
deveria ter ligado pra Piranha.
Provavelmente ela nem odeie Steph. Tipo, como casal elas estão
fodidas, e obviamente Maria é péssima em mudar as coisas na sua vida
que realmente precisa mudar. Por exemplo: ela com certeza precisa
terminar com Steph. Mas, falando sério, Steph é demais. Ela e Kieran,
bom, esse tipo de coisa meio que às vezes acontece, principalmente
num relacionamento queer, né? E não é como se Maria nunca tivesse
trepado com Kieran enquanto namorava Steph.
Ela esqueceu que estava fazendo uma lista. Tira a garrafinha da
bolsa e a segura contra a luz. Só sobrou um quarto, mais ou menos.
Pensa nossa, estou bem sóbria pra quem tomou um litrão de cerveja e
seiscentos mililitros de uísque, e aí pensa: no que eu estava pensando
mesmo? Numa lista? E então ela está no fim da ponte, parada perto de
um poste de luz curvado e esquisito.
Ah, Williamsburg. Houve um tempo em que você parecia um
bairro assustador e marrento, mas hoje é óbvio que os grafites em seus
muros são feitos por estudantes de artes.
7
Maria meio que trepou com Kieran primeiro. Steph sabe disso. Foi
toda uma grande questão quando aconteceu, e desde então Maria
esporadicamente se lembra, torce o nariz e tenta não se sentir uma
escrota. O que rolou foi que ele começou a trabalhar na livraria pouco
mais de um ano depois de Maria começar a tomar as injeções de
estrogênio, quando pessoas que ela não conhecia estavam começando
na maior parte das vezes a lê-la como mulher.
Ele também é trans. E curte muito isso: para Maria, ser trans é
tipo, olha essa situação de merda com a qual sou obrigada a lidar, mas
para Kieran é tipo uhu! Ser trans é maneiríssimo! Os caras trans
parecem ter essa relação com a transgeneridade mais do que as
mulheres. É compreensível. Às vezes os caras trans vêm de
comunidades sapatões ativistas e revolucionárias em que ter um
gênero contestador é tipo chique ou sei lá. Enquanto para as mulheres
trans geralmente não é assim. Quando saem do armário, as mulheres
trans tendem a não ter a capacidade analítica advinda de existir em
uma comunidade queer em que se fala sobre gênero; o erro que
algumas pessoas cometem é pressupor que isso significa que as
mulheres trans nunca chegam a formular uma análise.
Tem também a questão das normas culturais sobre masculino e
feminino que todo mundo internaliza, e o tipo de luz que isso lança
nas diferentes direções da transição, mas enfim. Que se dane tudo
isso. É difícil de explicar. Maria anda rascunhando mentalmente um
zine sobre o tema que vai expor a questão de forma clara e resolver
tudo, tipo, desde antes de ela começar a transicionar.
Então Kieran começou a trabalhar na livraria, leu Maria como trans
e decidiu virar amigo dela. Foi ótimo, porque Steph conhece algumas
pessoas queer mas tende a ficar nervosa, e Maria fica sempre muda
nas festas, de modo que nenhuma das duas nunca esteve
particularmente envolvida numa comunidade. Mas Kieran sim. O
puto conhece todo mundo. Você diz ah, Judith Butler escreveu um
livro novo, e ele: uma vez joguei Butler em cima de uma mesa e comi
ali mesmo, num brunch.
E você fica tipo: Sério?
E ele: Não, mas Butler fez uma leitura na minha faculdade quando
eu estudava lá.
Então Maria e Kieran fizeram amizade, saíam para almoçar, era
uma relação nova, muito embora não devesse ser uma relação que
envolvia se pegar. Maria e Kieran conversavam sobre as coisas, ele lhe
explicava coisas — ele adora explicar coisas — e ela tipo, ai meu deus,
o cara conhece todas as verdades inteligentes sobre transição! O
gênero é mesmo um construto!
No fim, não há como não perceber que, se o gênero é um
construto, os sinais de trânsito também são, e se você ignorar
qualquer um dos dois, os carros vão te atropelar. Carros esses que
também são construtos.
Os dois treparam num banheiro da Burritoville.
Ele meio que conseguiu comer a bunda dela com um packer num
banheiro minúsculo, imundo e amarelo no subsolo da Burritoville na
esquina da Segunda Avenida com a rua 6. Ela conseguiu não tirar a
saia e não deixar ele encostar nas partes dela. Com certeza não gozou.
Ele talvez sim. Havia manchas engorduradas no espelho, e como o
banheiro era muito pequeno, ela ficou com a cara prensada contra
aquilo enquanto ele meio que a comia, e quando saíram, Maria estava
com a bochecha toda suja de gordura. Foi difícil de tirar. E ela pensou
legal, punk rock, degradação, sexo safado, tudo muito queer,
excelente. Pareceu que dali em diante Maria iria construir toda uma
obra sobre suas experiências sexuais interessantes, só que essas
histórias, na real, nunca se materializaram. Aquele foi seu momento
mais sarjeta. Essa vez na Burritoville foi praticamente a única.
Ela pensa: acho que eu simplesmente não entendo sexo, enquanto
apoia a bicicleta no ombro, subindo a escada. Talvez um dia, quando
meus setecentos dólares da poupança virarem vinte mil e eu puder
pagar por uma cirurgia de redesignação, talvez então eu consiga
ultrapassar o ponto inevitável em que me fecho e passe a curtir de
verdade. Mal posso esperar.
Ela abre a porta e o gato não está na cozinha, ou seja,
provavelmente está no quarto com Steph. Kieran provavelmente não
está lá. O gato odeia todo mundo com exceção de Maria e Steph.
O gato aparece e esfrega a cabecinha preta na perna de Maria. Oi,
gato, ela diz.
Ela abre a geladeira, que está vazia, prolongando sua ansiedade de
um jeito bem familiar. Tipo, se Kieran estivesse na cama de Maria com
a namorada dela, não que Maria seja dona da sexualidade de Steph
nem nada do tipo, mas seria bem ridículo ela estar na cozinha, de
cachecol, com uma luva calçada e a outra não, pensando em fazer uma
comida no meio da noite enquanto ele está lá dentro de conchinha
com Steph. Sujando os cobertores de Maria todinhos de suor, gozo e
lubrificante.
Eca.
Steph tem o sono bem pesado, então Maria vai até o fim do
corredor, um metro de corredor, pois estamos em um apartamento
em Nova York, e abre uma fresta na porta. Ela está dormindo sozinha.
Maria volta para a cozinha, termina sua garrafinha de uísque, esquece
a luz acesa e a porta da geladeira aberta e apaga no sofá.
Umas quatro da manhã ou algo assim, ela acorda morrendo de dor
de cabeça, programa o despertador do celular — Steph tinha ligado,
tipo várias vezes —, apaga a luz, fecha a porta da geladeira e volta a
dormir no sofá da cozinha. Quanta boemia.
8
É
também. É só ir revezando os vestidos ou escolher outro moletom e
pronto, visual novo. As mesmas roupas todos os dias! É como um
mantra não apropriador. Ela aprendeu até a andar de bicicleta de saia
comprida.
Como fazer a barba e encher a cara de base diariamente são
lembretes exaustivos do fato de ser trans, ela se distancia um pouco
dessa rotina recitando um monólogo como se estivesse explicando
essa rotina para alguém. O primeiro segredinho é ferver água numa
chaleira enquanto você se veste e escova os dentes, depois tampar o
ralo da pia e fazer tipo um lago de água fervente. Se a água estiver tão
quente a ponto de machucar os dedos quando você molhar o rosto, e
você meio que ficar com medo de estar danificando permanentemente
a própria pele, então você está fazendo tudo certo. Água superquente
faz o barbear ficar mais rente, sabe-se lá por quê. Talvez pelo mesmo
motivo que faz ser preciso esquentar uma tortilla antes de conseguir
transformá-la em qualquer coisa? Enfim, aí você passa creme de
barbear na cara toda. Use o creme mais vagabundo que conseguir; às
vezes dá pra encontrar um da Barbasol escrito Homem de Verdade na
lateral, esse é o melhor de todos. Raspe o rosto com uma daquelas
giletes de lâmina tripla. São caras, mas dá para usar por tipo uns
quinze dias. Você saberá a hora de comprar uma nova quando todo dia
depois de fazer a barba seu rosto ficar uma massa sanguinolenta e você
não conseguir parar de pensar: quer fazer magia com sangue
menstrual, mas só sangra um ou dois dias por mês? Eu sangro todo
dia.
Pelo rosto.
Qualquer coisa além de três lâminas é para gente rica.
O segredinho número dois é comprar uma loção pós-barba
daquelas com cheiro de senhora. Depois de se barbear e enxaguar o
rosto, passe isso na pele inteira e dê um tempo para a pele absorver. A
loção deixa a pele mais macia, o que ajuda os tiozões executivos
nojentos que ficam de bobeira na sua livraria a saber que é em você
que devem chegar.
Agora vamos à maquiagem. Se você ainda precisa fazer a barba,
então deve ter, tipo, uma sombra de barba no rosto. Muita gente vai
dizer para você passar toneladas e mais toneladas de base, ou então
para fazer aquele truque de passar batom na cara inteira e depois
cobrir de base, mas essas pessoas são burras. A verdade é que
ninguém vai examinar seu queixo tão de perto, então você só precisa
de uma base normal que dá para comprar na Sephora. A mais barata
que tiver. Compacta, líquida, tanto faz. Passe no rosto inteiro, no
nariz, e no pescoço até onde a barba desce. Às vezes você consegue
dar sorte na farmácia, mas na maioria das vezes o melhor é escolher o
produto mais barato na loja chique. Se tudo o mais estiver
funcionando direitinho, grossas camadas de maquiagem são mais um
sinal de que Essa Pessoa é Trans do que a insinuação de um bigode
hibernando embaixo da base.
O segredinho número três é maquiar os olhos o máximo que você
puder. As pessoas vão discordar dessa parte, mas elas que se fodam.
Foram necessários anos de pesquisa, mas a teoria atual que explica o
motivo pelo qual isso funciona, que anda de mãos dadas com a ideia
de que o batom faz você parecer maluca, é que assim você desvia o
olhar das pessoas para os seus olhos, afastando-o da área de sombra da
sua barba. O batom atrai o olhar para a parte inferior do seu rosto,
onde moram os pelos que estão hibernando. E isso nem pensar, porra.
Então passe muita maquiagem preta em volta dos olhos, tipo a Ally
Sheedy em O clube dos cinco. Você vai ficar com uma cara meio gótica.
Tudo bem ficar com uma cara meio gótica? Você quer ficar assim? Se
não quiser, eis o segredo número quatro: brilho. Aparentemente,
brilho numa mulher trans é meio que um clichê, mas o lance é o
seguinte, a verdade que perpassa todos esses conselhos sobre
maquiagem: ninguém espera ver uma pessoa trans. Meninas podem
usar brilho nos olhos. Se você usar bastante brilho e tipo um batom
vermelho-sangue, sem base, e uma camiseta decotada que deixe à
mostra um peito liso, então sim: as pessoas vão importunar e tentar
intimidar você. Mas ninguém espera que mulheres trans usem brilho,
nem que andem com a raiz dos cabelos aparecendo, nem que usem
uma tonelada de porcaria punk sapatão cobrindo cada centímetro da
cara. Então pronto.
Só que Maria é alta e magra. Ela de toda forma já tem o benefício da
dúvida. Talvez para você nada disso funcione.
Esse ritual leva cinco minutos a partir do momento em que a
chaleira começa a apitar.
Umas duas semanas antes, Maria comprou por quinze dólares de
um maluco na St. Mark's uma reprodução barata com quase um metro
e meio de altura de Piss Christ, a foto daquele crucifixo de urina que
fez todo mundo surtar no início dos anos 1990. Achou que Piranha
fosse curtir. E curtiu mesmo. Literalmente ficou com os olhos
marejados quando Maria apareceu na porta da casa dela com uma obra
de arte imensa e mal-emoldurada. Mas não chegou a chorar, ficou bem
num segundo, então insistiu em dar um saquinho de comprimidos de
presente para Maria. Maria ficou tipo tá, maneiro, obrigada, enquanto
Piranha ia explicando que comprimido era o quê: estes aqui são
Percocets, estes são morfina, estes são Adderall, estes são Vicodin,
cuidado com esses. Maria nem se droga mais tanto assim. Hoje em
dia, usar drogas parece simplesmente exaustivo: quatro horas de oba
oba e depois tipo três dias de putz. Sem falar nos vômitos. A pior parte
é quando você está pondo as tripas para fora e não consegue respirar, e
parece que quanto mais envelhece mais isso é o que resta para ela.
Comprimidos são ok. Sei lá. Heroína é muito deprê; cocaína é
muito acelerado e depois muito deprê. As drogas psicodélicas
simplesmente duram tempo demais, e depois você passa uma semana
se sentindo esquisita. Fumar maconha deixa você inteiramente
idiotizada, e Maria já é bem idiota. Ou melhor, sendo mais específica:
fumar maconha a deixa inutilizada e incapaz de fazer qualquer coisa, e
ela já tem bem pouco talento para se obrigar a fazer qualquer coisa
além de se recriminar por não fazer nada.
Depois de se maquiar, ela toma dois Adderall tirados do saquinho
de sanduíche todo amassado e cheio de farelo, pensando que eles já
vão ter batido no fim da meia hora de bike que ela leva para chegar no
trabalho, e que depois ela vai passar o dia inteiro superprodutiva. Ou
pelo menos as seis primeiras horas. Um fator complicador é que ela na
real nunca tem certeza de qual comprimido é qual, então esses dois
que acaba de tomar devem ser Adderall, mas podem ser qualquer
coisa. Tomara que não sejam morfina. Morfina é o pior de todos. Um
comprimido de morfina deixa você meio flutuando, mas dois
comprimidos de morfina são tipo cinco horas de dor de barriga e
depois três vomitadas.
Segredo de maquiagem número cinco para mulheres trans: tome
comprimidos.
Ela antes tinha um corpo bem forte, na época em que era uma
jovem universitária enérgica que parecia um cara e passava o dia
inteiro, todos os dias, escrevendo obsessivamente sobre gênero em
cadernos ultrassecretos. Mas agora ela está velha, tem quase trinta
anos, e já faz tanto tempo que vive insone, deprimida e bêbada que
seu corpo começa a parecer que vai entrar em colapso pelo mínimo
pretexto. Sério: o sol fere seus olhos, a barriga parece feita de folhas
velhas e secas que vão umedecendo conforme apodrecem, e os
ombros latejam só por causa de um litrão e um pouco de uísque. Só
que ela precisa chegar no trabalho. Sendo assim: Adderall.
A pedalada até Manhattan demora mais do que de costume, porque
geralmente ela toma uma ou duas cervejas ou um copo de uísque
antes de dormir, não um litrão mais uma garrafinha inteira. Ela chega
atrasada no trabalho. Ops. Já devem mesmo estar atrás de um motivo
para mandá-la embora, porque já faz um tempão que ela trabalha ali e
já recebeu tantos aumentos compulsórios exigidos pelo sindicato que
quase consegue bancar sua alimentação e o aluguel, de modo que
chegar atrasada é meio que um lance sério. Tipo, eles não podem
simplesmente mandar você embora se você for do sindicato.
Os três planos de carreira na livraria são: ser demitida antes mesmo
de conseguir entrar para o sindicato, ou entrar para o sindicato e ir
acumulando infrações legítimas como atrasos até ser demitida, ou
então ser promovida a um cargo de gerência, sair do sindicato, e aí ser
demitida por qualquer motivo. Então que se foda a promoção e que se
fodam os planos de carreira. É só passar um número suficiente de anos
pondo livros nas prateleiras e juntando aumentos anuais de um dólar
até morrer rica.
Ela passa a manhã esperando a hora da verdade. Tipo, não vai ser
demitida à queima-roupa, mas pode ser que seja chamada para uma
conversa. As pessoas aqui têm uma coisa de mostrar uma captura de
tela do computador com os horários de ponto. Fica o maior climão.
Mas tudo bem! Acaba que ela estava certa e tomou o Adderall mesmo,
o que significa que está superfocada e consegue trabalhar à beça. Ela
tira o pó e reorganiza vários displays, põe um milhão de livros nas
prateleiras, ajuda senhorinhas minúsculas a encontrar livros antigos
minúsculos, e quase não sai de fininho pela porta lateral para
intervalos suplementares, só uma ou duas vezes. Por volta do meio-
dia, já está pensando: Sou a funcionária do mês desta merda, quando
tromba com Kieran, que está de saída para fumar um cigarro.
Cara, diz ele.
Está usando uma camiseta branca velha, surrada e disforme,
suspensórios, uma calça de veludo cotelê de velho e uma gravata
frouxa em volta do pescoço. Parece a roupa de um palhaço, mas é
frustrante ver o quanto lhe cai bem.
Cara, diz ela.
Me acompanha num cigarro?
Parei de fumar, diz ela.
Tá, diz ele, a que horas é seu intervalo de almoço?
Jesus, pensa ela. Ele vai fazer questão de ter uma conversa.
Às duas, diz ela, quer ir junto?
Quero, diz ele, quero sim.
É legal ela estar ligadona de Adderall e tipo pilhada de tão
produtiva, porque na real sente mesmo uma certa vontade de resolver
aquela história.
Passa um tempo recolocando livros nas prateleiras. Quer dizer,
médio. Praticamente só faz passar os olhos pelos caixotes de livros que
precisam ser guardados e praticamente só faz folhear as obras de
autores dos quais já sabe que gosta: Dennis Cooper, Robert Glück,
uma primeira edição de um livro de Joe Meno para a qual ninguém
mais parece ter dado valor. Fica sendo sugada pelos textos e precisa se
forçar para não ficar só ali de bobeira lendo.
Ela está folheando furtivamente um livro de Ali Smith e ficando um
pouco triste quando Kieran faz aquilo de bater duas vezes atrás de um
dos seus ombros quando na verdade está em pé do outro lado, então
ela se vira para o lado errado à procura dele. Que irritante.
Vamos?
Sim, diz ela.
Eles batem o ponto, saem e começam a andar. Ela percebe que
estão andando na direção da lanchonete de burritos onde fizeram
aquilo. Que constrangedor, pensa ela, e então: não, é só de mau gosto.
A Steph disse que você falou com ela, diz ele.
É, mais ou menos.
Ela disse que te contou que a gente tá transando, diz ele.
É, diz Maria. Ela não olha para ele nem coloca entonação em
palavra nenhuma.
Ela disse que você, na real, não queria conversar com ela sobre
nada e que…
Desde quando você fala tanto com a minha namorada, pergunta
ela, interrompendo-o. Eu nem sabia que vocês dois se conheciam.
Pois é, diz ele, é meio esquisito. Ele dá um passo meio saltitante.
Maria ainda está doidona de Adderall. De onde esse cara tira tanta
energia?
Pode crer que é esquisito, resmunga ela.
Você conhece o Myspace né, pergunta ele.
Sim, eu conheço o Myspace, diz ela. Você e eu somos amigos lá.
Faz-se um segundo de silêncio.
Peraí, diz ela, o lance agora não é o Facebook? O Myspace não já
era?
Não, o Myspace voltou a ser legal, diz ele. O Facebook mudou e
ficou todo estranho.
Ah.
Enfim, olha só, diz ele, a Steph e eu ficamos amigos no Myspace
porque eu vi que ela era uma das suas amigas mais próximas, achei ela
gata e fiquei amigo dela.
Jesus Cristo, sério? Ela está pensando: é esse o aspecto que a
minha vida de fato tem? É claro que a vida de todo mundo é assim, as
crianças pequenas têm conta no Flickr e os tiozões no Match.com, e
se você não tem perfil em lugar nenhum você está tentando passar
uma mensagem, mas porra, por favor. Ele viu a Steph no Myspace?
Que surreal. Isso é meio que constrangedor para todo mundo.
É, então, diz ele, mas ela o interrompe outra vez.
Olha, eu não ligo.
Você não liga, repete ele.
Kieran, eu tomei dois Adderall hoje de manhã antes de vir
trabalhar, e agora a onda está baixando. Tipo, eu tomei pra adiar uma
ressaca, mas na real não rolou, porque passei a manhã inteira me
sentindo pilhada e péssima. Eu realmente não quero conversar com
você sobre os altos e baixos da minha relação com a Steph, e com
certeza não quero conversar com você sobre os altos e baixos da sua
relação com a Steph. Acho que eu devia conversar sobre isso com ela,
e não com você, mais oui non?
Ela disse que você não quer falar com ela, diz ele.
Os dois estão em frente ao restaurante e Kieran para, mas Maria
continua andando. Tanto faz. Por acaso aquilo agora é um tema na vida
dela? Percorrer a cidade indo a lugares para os quais não liga e aos
quais não tem tempo de ir? Obviamente em algum nível ela está
tentando se dar espaço para entender o que fazer em relação ao
namoro com Steph, mas obviamente ela já sabe o que fazer. Está na
É
hora de terminar o namoro. É óbvio, não é? A gente já esteve aqui
antes.
O céu está cinza daquele jeito perfeito típico de Nova York, e Maria
está andando em direção ao sul da cidade, descendo a Segunda
Avenida na direção de onde provavelmente o Lower East Side
costumava ficar, mas o lugar agora era só uma penca de franquias tipo
Subway. E tem o Moby's. Ela pensa em Kieran sentado na lanchonete
de burritos, se remexendo e comendo, totalmente impassível. Aquele
filho da puta não consegue ficar parado.
Ela percebe que está propositalmente tentando não pensar em
Steph, então tenta propositalmente pensar nela. No que sente por ela
agora, no que sentia por ela antes. Quando as duas se conheceram,
Steph era uma femme gata e gorda que tirava afetuosamente com a cara
das pessoas e as chamava de sapatinhas e veados de um jeito
carinhoso. Agora seus cabelos vermelhos cor de fogo estão pretos. As
roupas vermelhas cor de fogo ficaram pretas. Ela cresceu. Seu
emprego a deixa exausta e sua namorada a irrita.
Maria pensa, mas que porra isso tem a ver comigo? Eu não fiz nada.
Tipo, acho que fiquei à vontade, e quando fico à vontade tudo que eu
quero fazer é ler. Eu fico calada. Não que estejamos numa fase de sair
para bares e tal, mas a gente nunca fez isso na real.
Quanto mais ela tenta pensar no assunto e reduzi-lo a como se
sente em relação ao namoro, mais escorregadio ele fica. Pensar em
Steph é como tentar agarrar um peixe. Maria está começando a se
sentir confusa e perdida, então percebe que havia se enfiado mesmo
na parte sul da cidade, indo parar em Chinatown, e precisa voltar para
o trabalho. Oportunidade número dois para uma odisseia de
exploração da cidade como uma metáfora da autoexploração: puf,
direto pelo ralo. Que se dane. Por um instante, ela tem a sensação de
como seria não estar vinculada a Steph, ao seu apartamento, ao seu
emprego, mas então pensa: isso é papo de homem hétero, o solitário
autossuficiente. Mesmo assim, por um segundo, ela se sentiu livre.
9
No metrô que pega para voltar, ela vai pensando em como na real
poderia simplesmente seguir viagem rumo ao norte da cidade, tipo ir
ao Central Park ou algo assim. Suas mãos já estão meio dormentes e
todas as suas coisas ficaram na livraria, mas as pessoas às vezes saem
para almoçar e não voltam. Alguns anos antes, ela trabalhava com um
menino que devia ser legal, mas os dois costumavam ter uns bate-
bocas intensos e nada a ver. Ela o provocava com algo, tipo, cara, você
não curte Hole? Será que é porque você é misógino?
O cara ficava puto, perdia a linha, e tentava explicar que ele, na
real, não era misógino, que o que ele realmente curtia era hip-hop.
Mas, cara, dizia Maria, você já confessou que não gosta da Sylvia
Plath, e agora diz que a Courtney Love é uma guitarrista de merda.
Coisas assim. Vai saber. A questão é que, quando entra numa
discussão, Maria vai ficando cada vez mais tranquila, principalmente
se a outra pessoa começa a falar mais alto e se exaltar. Então o cara
ficava chateado, ela seguia provocando, provocando, até ele acabar
dando na sua cabeça com um exemplar do Código Da Vinci e se retirar
bufando para nunca mais voltar, pelo menos até o dia seguinte. Todo
mundo passava a tarde inteira falando porra, Maria. E tipo cara, será
que ele volta hoje? Ele nunca voltava.
No dia seguinte ela dizia Foi mal, e ele dizia É, foi mal também, e
depois disso nunca mais tocavam no assunto.
Ela está pensando Eu podia fazer isso, mas então o trem para na
estação mais próxima da livraria e ela salta. É uma bela fantasia
romântica, mas Maria já está a ponto de levar uma advertência por
atraso e, na real, quem sabe quais são as possibilidades de se arrumar
um emprego com uma transição de gênero no histórico. Ela tenta não
pensar se isso significa que vai ficar na livraria até morrer.
10
O que ela deveria fazer é comprar uns legumes, ir para casa, fazer uma
comida e passar o resto da noite mastigando, com um caderno na mão
ou em frente ao computador. Relaxar, mas também, em vez de ver
algum filme ou sair para alguma aventura romântica e solitária, ficar
em casa, se centrar — sapatão — e entender exatamente o que ela
precisa de Steph, e onde ambas estão em relação uma à outra. E não
tomar uma garrafa de vinho.
Mas em pouco tempo essa ideia já caiu por terra. Uma garrafa de
vinho ajuda você a superar as próprias inibições mentais para entender
como realmente está se sentindo. O vinho reduz suas defesas
automáticas. Tem um Trader Joe's no caminho do trabalho para casa,
algo totalmente esquisito em Nova York, e lá provavelmente vendem
garrafas de vinho baratas e não intragáveis, mas para quem
desenvolveu um sistema moral punk rock arbitrário sobre cadeias de
lojas aos dezesseis anos de idade, essa é uma decisão difícil de tomar.
Ela compra uma garrafa na lojinha de esquina do próprio quarteirão. A
lojinha de esquina é reconfortante por ser empoeirada e ter um clima
nova-iorquino antigo, e também porque quando você compra na
lojinha da esquina não está pondo dinheiro no bolso da bermuda
havaiana do Trader Joe's. Orgulhosa de si mesma, ela carrega a
bicicleta escada acima, prende a tranca em frente à sua porta, entra,
serve uma taça de vinho e liga o computador.
Aí toma outra taça de vinho. Aí dorme.
Acorda e olha para o relógio. São dez e meia da noite e ela ainda
está exausta. Ocorre-lhe então, meio grogue de sono e sem enxergar
direito, que ela na verdade talvez consiga dormir aquela noite inteira;
não lhe ocorre acordar a si mesma com um tapa, pôr uma música para
tocar e dar início ao trabalho de resolver a própria vida. Ela se sente
tão grata com a possibilidade de ter um verdadeiro sono com ciclo
MRO que rola para o outro lado, para evitar que qualquer luz atravesse
suas pálpebras.
12
Acorda por volta das quatro e meia e se sente descansada. Será que as
outras pessoas se sentem assim o tempo inteiro? Que viagem. Seus
pensamentos estão totalmente conscientes, e por um segundo ela
cogita se servir uma taça de vinho de café da manhã, mas depois
pensa: não, assim está perfeito! Ainda tenho quatro horas antes de
precisar chegar no trabalho, ou seja, posso fazer a barba, me maquiar,
depois ir para o Kellogg's e passar duas horas e meia escrevendo. E
ainda por cima o sol está nascendo.
E é o que ela faz. Barbear-se às cinco da manhã significa que ela
estará visivelmente barbada tipo às três, o que vai ser uma droga para
as últimas duas horas de trabalho, mas pelo visto ela só fica
visivelmente barbada para si mesma. Ninguém nunca parece reparar.
Mas ninguém realmente chega a quinze centímetros do seu rosto e
fica procurando algum pelo, e muitas garotas têm pelos no rosto, e a
base meio que esconde um pouco a barba, e o gênero é totalmente,
cem por cento performático, certo? Que se dane! Tudo o que você
precisa fazer é performar uma Dama, personificar isso por completo, e
aí ninguém vai se importar com nada.
Na real, ela está ficando um pouco acelerada. Vai ficar cansada mais
cedo, mas não tem problema nenhum porque aí quem sabe ela pode
entrar numa rotina de sono normal, na qual toda noite às onze horas
ela esteja exausta demais para se mexer e acorde às sete totalmente
renovada todo dia de manhã. Às sete não, às cinco! E resolva a própria
vida no Kellogg's! Todo dia de manhã, para sempre!
Aí ela fica cansada e entediada de tanta animação. Por excesso de
zelo, põe brilho demais ao redor dos olhos. As outras pessoas
costumam mesmo se sentir assim?
13
Ai, cara. Será que dá pra gente falar sobre estereótipos e sobre ficar
na frente de um computador? Então tá. Imagino que vocês
conheçam os estereótipos relacionados às mulheres trans: que
somos todas profissionais do sexo, que somos todas uns velhos
cabeludos e barrigudos, que somos todas damas da noite de voz
grave, que somos todas drag queens, que somos todas reprimidas,
que somos todas umas machonas cheias de tesão com picas de
trinta centímetros. Às vezes estereótipos são contraditórios. Esses
que eu citei são estranhos. Vamos falar sobre aqueles que deveriam
ser os verdadeiros estereótipos relacionados às mulheres
transexuais? Aqueles que se aproximam um pouco demais da
verdade para serem engraçados.
1. Nós não somos maníacas sexuais, somos maníacas pela
internet. Essa é fácil de entender. Quando você sai do armário
como uma pessoa trans, é difícil contar para a sua mulher, ou para
os seus brothers héteros, ou para o seu pai, ou sei lá, para colegas
da livraria. Seja pelo motivo que for, porém, é bem fácil contar para
alguém do Alasca ou da Califórnia ou, quem sabe, da Inglaterra.
Por mais estranho que pareça, os fóruns de internet, o LiveJournal
e tudo o mais parecem ser lugares seguros para se falar sobre ser
trans — uma forma de existir sem esse corpo problemático que
você é obrigada a carregar quando está o ine no espaço da carne,
como se costumava dizer nos anos 1980 nos romances de William
Gibson. O que é o máximo.
Mas então existe toda uma comunidade na internet, o que faz
sentido. E talvez seja o que a internet tem de melhor, a forma como
se pode acessar informações necessárias com segurança e
anonimato, só que, como qualquer outra comunidade, ela se
tornou uma coisa fechada, com assuntos sobre os quais é tudo bem
falar e outros sobre os quais não é tudo bem falar, opiniões que se
pode ter e outras que não, e com uma santa padroeira própria.
O nome dela é Julia Serano e, como muitas figuras
representativas, ela é superinteligente, doce, precisa e quase
totalmente desprovida de problemas, mas as pessoas que são suas
discípulas se tornam detestáveis e começam a considerar seus
escritos como uma doutrina.
Isso sem falar que, se você for um bebê pandinha em
comunidades na internet, perguntando, tipo, como posso
conseguir hormônios, as mulheres trans são superlegais: elas vão
dizer como. Mas quando você faz uma pergunta mais complexa,
tipo, como conciliar uma identidade de gênero queer com uma
identidade feminina quando parece que reconhecer as limitações
da identidade feminina e explodi-las não faz com que você não seja
mais mulher, só empoderada, e, portanto, será que a identidade de
gênero queer não é uma identidade privilegiada que, em geral, está
disponível apenas para pessoas definidas como mulheres
universitárias e com cortes de cabelo radicais, todo mundo fica
magoadinho e você acaba em maus lençóis.
Enfim, sei lá. Estereótipo: apaixonada pela internet.
2. Existe um estereótipo de que as mulheres trans passam a vida
inteira tendo todo um privilégio masculino, e aí transicionam e
passam a ocupar espaço demais e a ser excessivamente assertivas e,
sabe, coisas assim. E é verdade: às vezes as pessoas transicionam e
são babacas; o outro lado da moeda é que existe uma porção de
mulheres cis que também são babacas, e essas mulheres trans
apenas passam a integrar a população geral de mulheres babacas.
O que é bem mais comum, um milhão de vezes mais comum, e
sobre o que ninguém nunca parece querer falar, é a questão de as
mulheres trans terem privilégios masculinos durante a vida inteira
antes da transição, mas não saberem o que fazer com eles, de modo
que seu único efeito é meio que limitá-las socialmente.
Tipo, tá. Vocês conhecem algum homem hétero identificado
como pertencente ao gênero masculino que tipo entenda isso? Eles
meio que tentam ser feministas, mas reconhecem que é
complicado, quiçá impossível um homem ser feminista, então
respeitam as mulheres, dão espaço, recuam, o que seja. O que seria
maravilhoso, não fosse o fato de que isso os leva a nunca fazer nada.
Tipo eles só recuam e pronto, e dizem tem uns livros que precisam
ser postos na prateleira, as janelas estão sujas, tem umas caixas
precisando ser levadas para fora e algum adolescente vomitou em
algum lugar. Você começa, digamos, a levar as caixas para fora, e
uma vez isso feito começa a limpar o vômito, e eles simplesmente
ficam ali parados e você pensa: Que porra é essa? Será que dá pra
levar essas caixas ou limpar uma janela? E eles: Ah, tá, claro, de um
jeito muito esclarecido que abre espaço para você fazer a porra
toda, só que eles precisam que você mostre como se limpa uma
janela porque eles não querem limpar errado?
Esse tipo de cara. Eu reconheço: é mais complicado do que isso,
sim, eu não deveria ser cruel. É bem difícil para os caras héteros
quando eles não querem espalhar seu privilégio masculino. Mas
sério? Você não sabe arrumar uma cama? Não sabe refogar a porra
da cebola e do alho antes de juntar todos os outros legumes?
Enfim, sei lá. Eu tenho amigos homens. Eu fui um desses
homens! Aquele carinha calado que fica parado ali tentando ser
útil, mas que na verdade está só ocupando espaço inutilmente.
Enfim, é isso o que acontece quando você tenta não usar seu
privilégio masculino, mas não tem outras alternativas. Você se
retrai. O estereótipo ao qual estou querendo chegar é o seguinte: as
mulheres trans tentam se afastar do seu privilégio masculino antes
de fazer a transição, tentam sumir dentro de si mesmas, e depois
nunca mais conseguem realmente sair outra vez e se tornar
mulheres assertivas, presentes e feministas.
E é por isso que todo mundo nos acha esquisitas.
Afirmação pesada, né? É totalmente injusta e errada, e por esse
motivo é um estereótipo que eu estou inventando, mas existe um
quê de verdade aí. Eu não acho que já tenha conhecido uma mulher
trans em processo de transição que se sentisse à vontade tipo,
ocupando qualquer porcaria de espaço, entende? Precisamos olhar
as mulheres à nossa volta com atenção, se tivermos a sorte de estar
perto de alguma mulher, para entender que elas ocupam um espaço
enorme, todo o espaço que quiserem, o tempo todo — só que elas
tendem a fazer isso de um jeito diferente dos homens.
Embora nem sempre, e eu certamente não vou detalhar os
aspectos que nos diferenciam. E existem homens que ocupam
espaço de um jeito que é lido como feminino e gênero-normativo,
e mulheres que ocupam espaço de jeitos que são lidos como
masculinos e gênero-normativos. Dã, sei lá. Estou só tentando
dizer por que é fodido existir um estereótipo de que as mulheres
trans são todas masculinas.
3. Quando somos recusadas no programa transgênero do Johns
Hopkins e não somos autorizadas a fazer cirurgia de redesignação,
todas nós cavamos um poço dentro das nossas casas de subúrbio
imundas, fazemos piercings nos mamilos, deixamos mulheres cis
dentro desse poço por semanas a fio e depois as esfolamos.
Esse é real mesmo. Temos também dezoito tattoos e cachorros
de madame peludinhos. A comunidade trans declarou oficialmente
uma fatwa a Thomas Harris quando O silêncio dos inocentes foi
lançado, porque teríamos preferido guardar segredo em relação a
essa pequena tendência e ele foi lá e contou para todo mundo. Não
à apropriação cultural.
4. Talvez exista algum outro. Eu não sei. Somos todas boas de
informática, somos todas extremamente tímidas, somos todas
assassinas. Eu aviso se pensar em outros.
Suas mãos passam a tarde inteira tremendo. Seu peito pesa, e ela meio
que sente que poderia irromper em soluços a qualquer momento. Que
merda. Ela fica pensando, tipo, por que é que eu não tenho essas
reações quando estou cara a cara com ela? Quer dizer, eu meio que sei
qual é o problema comigo, mas, sério, qual é o problema comigo? É
muito fácil simplesmente se fechar e sair do próprio corpo. É tipo o
que acontece em casos de abuso, não é? As pessoas que sobrevivem a
abusos não têm esse tipo de dissociação? Até onde Maria sabe ela
nunca sofreu abuso, mas talvez se reprimir e se policiar tão
intensamente por tanto tempo antes de fazer a transição pode parecer
um abuso, pode funcionar como um abuso. Aquilo tudo soa muito
dramático, mas o engraçado é o quão pouco dramático é quando você
está fazendo isso consigo mesma. É só uma coisa que você faz. Ela
pensa em pesquisar o que as pessoas que sobreviveram a abusos
podem fazer para dissociar menos de modo a talvez conseguir adaptar
isso à própria vida, mas passa praticamente a tarde inteira repassando
a conversa que vai ter com Steph à noite.
Vai ser sincera independentemente do fato de alguém se magoar, o
que é difícil para uma pessoa que passou a vida inteira pensando, tipo,
eu não ligo se eu me machucar, se essa repressão me machucar… eu
simplesmente não posso transicionar e magoar minha mãe desse jeito;
ou então: eu não posso manchar a imagem do meu pai na nossa
pequena e pacata comunidade. É como uma segunda natureza para
Maria, ou talvez seja apenas a sua natureza: pôr os outros antes dela
mesma. Assumir sua transgeneridade foi a primeira mudança que ela
de fato fez na própria vida que lhe fez sentir que estava saindo da rota
que fora traçada para ela desde o nascimento, e ela só seguiu essa
direção contrária por sentir que iria morrer se não fizesse isso.
Entendeu que precisava transicionar porque estava indo para o
trabalho, voltando para casa, bebendo uísque e lendo, diariamente,
por semanas a fio, até que num começo de noite viu o sol se pôr atrás
da Estátua da Liberdade da sua janela no quinto andar em Sunset Park
e se deu conta de que tinha passado o dia inteiro sem sair de casa. Ato
contínuo, estava na cama chorando e obcecada pela ideia de que
aquilo nem sequer era vida, de que estava gastando mais energia para
se esconder do fato de ser trans do que seria preciso para de fato
transicionar. Chorou tudo que tinha para chorar, serviu-se de mais um
copo de uísque barato puro — não dá para simplesmente parar — e
descobriu como entrar num grupo de apoio. Pensou: aqui é Nova
York, porra, deve ter suporte a rodo para mulheres trans. Se isso existe
em algum lugar, esse lugar é aqui.
Acabou que, sim, o lugar era meio que lá, mas só até a página dez,
pelo menos no sentido de você conseguir acessar sem sujar as mãos. A
internet de fato é muito mais segura do que qualquer outro lugar. Só
havia uma única reunião: todas as quartas-feiras no Centro de
Acolhimento Gay da rua 13, em Manhattan. Ela se arrastou até lá, e
acabou indo semanalmente durante nove meses. O Centro Gay é um
prédio bem chique situado num bairro bem chique, então ela pensou:
vou tentar passar despercebida e pronto. Na época ainda fumava, o
que foi bom: ter algo para fazer com as mãos e em que se concentrar
quando você aparece em sua primeira reunião de grupo de apoio para
transexuais e sente que vai dar meia-volta e voltar para casa e morrer
se não conseguir parar de pensar na humilhação pública de fazer a
transição, de bisturis cortando a carne do seu corpo, dos seus pais
dizendo na sua cara que nunca mais querem te ver.
A reunião em si também era aterrorizante porque não tinha como
fingir que era desimportante. É uma cena que já foi encenada
comicamente várias vezes, mas não é uma cena engraçada. Ela
também já foi encenada como drama algumas vezes, mas isso
tampouco corresponde à realidade. Tipo assim: uma vez por semana,
durante uma hora e meia, talvez meia dúzia de pessoas a quem
originalmente se atribuiu o gênero masculino se reuniam numa sala e
debatiam um tema específico, como autoestima, sexualidade, opressão
ou algo do tipo. Sei lá. Só que era estranho, porque existem muitos
tipos de pessoas a quem se atribuiu o gênero masculino, mas que não
se identificam como pertencentes ao gênero masculino.
Havia uma mulher bem mais velha que parecia já ter transicionado
há milênios e que acabou explicando que era homem noventa por
cento do tempo. Aquele seu aspecto de prostituta velha era por causa
da voz rouca e do corpo magro. Uma pessoa corpulenta de Nova
Jersey com uma aura de frustração e resignação contou histórias sobre
pequenas vitórias: pintar as unhas com base para ir trabalhar, deixar o
rímel nos olhos de um dia para o outro. Muito digna, na verdade. De
um modo totalmente inesperado.
Havia mais gente de Nova Jersey do que se poderia esperar, e todo
mundo parecia ter no mínimo quinze anos a mais do que ela. A roda ia
correndo e as pessoas falavam. A maioria falava sobre como era difícil
ser trans, ou sobre problemas com a família ou no emprego, e sobre
como a transição parecia impossível. Maria acabou entendendo que
metade do pessoal que ia àquela reunião vinha de um contexto
crossdresser, e não de um contexto transexual, que aquelas pessoas não
estavam transicionando, tinham se convencido a não fazer isso, e
traziam bolsas com roupas e maquiagem e se montavam no centro
antes da reunião.
Não demorou muito para ela se sentir distante daquela gente. Ela ia
às reuniões usando os mesmos jeans femininos e os mesmos moletons
pretos de capuz que vinha usando há anos e continuaria a usar pelos
próximos, bem depois de começar a tomar hormônios e pedir para as
pessoas a chamarem de Maria. Ainda morria de medo de maquiagem,
e mais ainda de ficar com o aspecto de um cara maquiado. Também
era aterrorizante perguntar para alguém do grupo algo do tipo: Ei,
como você faz isso? O que era uma coisa engraçada. Seria preciso pelo
menos seis meses depois de ter assumido sua transgeneridade para
Maria ficar tão boa em se maquiar quanto as pessoas do grupo que não
estavam transicionando. Ela ficava sentada nas reuniões sem dizer
nada e tentava experimentar alguma sensação de comunidade, mas
quando todas iam comer juntas num restaurante ali na esquina, em
grupo para ter mais segurança, ela sempre recusava o convite.
Trabalhava a cinco quarteirões do centro. Alguém poderia vê-la com
aquelas pessoas antes de ela se assumir e aí o mundo implodiria.
Então ela ficava calada no trabalho. Calada no grupo de apoio. Foi
ficando óbvio que aquilo era um padrão em todos os setores da sua
vida: ela se recostava, fazia companhia a si mesma dentro da própria
cabeça, e na verdade não interagia diretamente com nada. Bom, só
com a internet, onde era possível simplesmente destilar seu veneno,
ou às vezes o que quer que seja o contrário de veneno. Açúcar?
Antídoto? Será que existe um antiveneno? Ela podia simplesmente
despejar tudo no computador, num blog que não estava associado ao
seu nome, e aí era quase como uma conversa. As pessoas respondiam
coisas, reconheciam que a sua experiência era real. A internet a
ajudava bem mais do que a interação humana de verdade.
Ela está praticamente meditando sobre tudo isso no corredor de
história da Irlanda quando se dá conta de que deveria ter batido o
ponto e ido embora tipo quinze minutos atrás. Pensa: eu não converso
com a minha namorada, mas ainda converso com a internet. O velho
padrão nunca mudou. Total e inevitavelmente fodida da cabeça.
Fodida de cima a baixo. Mas ela continua tão profundamente entretida
dentro da própria cabeça que só se dá conta de estar pedalando
quando já está de capacete, com a corrente da bicicleta ao redor da
cintura, a saia arregaçada e o sinalizador aceso. Na real, ela só se dá
conta disso quando bate na traseira de um táxi num sinal. Ela pensa:
tá, meu bem, sossega; você está superinternalizada e se sentindo
traumatizada agora porque ainda não tomou aquela injeção; está
acordada há catorze horas depois de uma noite de sono mais ou
menos. Se não tomar cuidado, vai ser atropelada por um caminhão ou
cair da ponte.
Mas é difícil. Ela está indo para casa terminar com a namorada de
quatro anos. Maria pensa em mandar uma mensagem para Piranha
com algum comentário irônico sobre isso, mas está pedalando e
decidida a prestar atenção.
Graças a deus existem as ciclovias. Uma vez, Piranha resolveu que
ia ser uma ciclista da pesada como Maria… bom, na verdade ela
decidiu andar mais de bicicleta, não disse nada sobre ser qualquer
coisa parecida com Maria, então foi de bicicleta do Brooklyn até
Manhattan. Só que ela não sabia que tinha uma ciclovia, pensou que
só dava para pedalar na pista dos carros, ficando bem na beiradinha e
prestes a despencar um milhão de metros até o rio, que é cheio de
tubarões, com os carros quase derrubando você vezes sem conta
sempre que passam. Além do mais, como o sol ainda não tinha
nascido, os faróis a desorientavam, passando zunindo rente à sua
cabeça. Além do mais, chovia a cântaros. É por isso que Piranha só vai
para Manhattan de metrô quando precisa. E leva um livro para ler.
Agora que está prestes a acontecer, Maria está pensando em tudo
exceto na conversa com Steph. Deveria estar pensando em planos de
contingência e essas coisas para o caso de alguma coisa horrível
acontecer. Será que ela deveria levar uma comida tailandesa? Que
exagero.
Vai aparecer no apartamento e o que tiver que acontecer vai
acontecer. É frustrante porque não dá pra dizer, tipo: cérebro, pensa.
Porque o seu cérebro diz: eu estou pensando! Estou pensando, e aí
você manda: nossa, cérebro, relaxa, só quero dizer que a gente precisa
pensar nessa conversa. A gente vai e termina com ela logo de cara?
Deixa ela abordar o assunto, conversa um pouco e deixa a coisa fluir
como uma conversa de verdade, no momento presente? O problema,
obviamente, é que se for uma conversa em vez de uma simples
afirmação, por exemplo, eu quero terminar com você, então a coisa
pode tomar qualquer rumo. No fim das contas, elas podem acabar não
terminando.
Mas, por outro lado, se ela já for terminando de cara, vai ser tipo,
bom, puta que pariu, que conversa horrível vão ter depois, e ninguém
vai conseguir nenhum alívio nem conclusão nem nada. Como resolver
qualquer coisa pulando direto para o fim? Ela pergunta: cérebro, você
está me ouvindo? O que eu devo fazer?
Esse papo todo está meta-analítico demais, responde seu cérebro.
Que jeito mais idiota de tentar entender como poupar o máximo
possível os sentimentos da sua namorada enquanto você termina com
ela.
Quando sai da ponte o sinal está verde, e ela decide limpar
totalmente o próprio cérebro e entrar numa meditaçãozinha ciclística
do tipo que Bob Pirsig provavelmente faz naquele livro idiota dele, só
que ela acaba batendo na traseira de outro táxi.
19
Dez minutos depois, Maria está pedalando outra vez. Nesta noite não
vai haver conclusão, nem conversa, nem ela vai entender que porra
está acontecendo. Ela virou aquela taça de vinho sem comer nada e
agora está de bicicleta, voando pela Jamaica Avenue. Piranha não mora
perto, e vai saber em que bairro ela mora, Maria só sabe que o lugar
fica ao sul para caralho, ao sul e a oeste, na direção de onde todas as
placas são escritas em russo e as avenidas têm nome de letra. Maria
ainda não ligou para ela, e também não decidiu se vai parar em algum
bar para tomar mais uma ou duas doses. Provavelmente não. O desejo
de se autoaniquilar não é tão intenso quanto o medo de lidar com
gente. E Piranha deve ser a maior gênia que já existiu na arte de não
lidar com gente.
Então Maria passa um tempo pedalando, rápido, até sentir as
pernas doerem e os pulmões pararem de respirar direito, só que ela
não sabe muito bem para que lado fica o sul ou o oeste. Pensou que
estivesse indo na direção certa, mas vai ver nunca pedalou da sua casa
até a de Piranha, vai ver sempre foi para lá do trabalho ou de metrô.
Estranho. Ela está numa espécie de bairro muito limpinho cheio de
prédios de dois andares e estacionamentos. Pensa: aposto que estou
ou perto do mar ou então no Queens.
Ela encontra uma estação de metrô, desce com a bicicleta, consulta
um mapa com o peito arfando e o rosto molhado por causa da noite
úmida: está no Queens. Perto do mar. Pedalou quase na direção
exatamente oposta, o que se deve mais à sua forma de andar de
bicicleta do que ao seu estado emocional. Ela tende a simplesmente
apontar numa direção e confiar que vai chegar aonde quer; quase
sempre funciona. Vai saber como acabou errando tão feio, mas que se
dane, pedalar é bom, então ela não pega o metrô, carrega a bike até a
rua e recomeça a pedalar.
Assim que ganha velocidade, Maria leva uma portada. Que sorte de
merda. Ela meio que é derrubada do selim, cai no chão, se levanta
num pulo e olha furiosa para o motorista. Ela não diz nada para o
sujeito branco com cara de chato que abriu a porta, só faz cara feia,
torna a subir na bicicleta e se manda. Quase na mesma hora já está
ganhando velocidade novamente e atravessa um cruzamento meio
movimentado bem na hora em que o sinal está ficando amarelo.
Não demora a reconhecer o próprio bairro, depois o bairro vizinho,
depois o seguinte. A essa altura já escureceu, e o ar ao redor dos
postes está todo enevoado. Parece a imagem do encarte de um disco
punk de Nova Jersey dos anos 1990: serena, solitária e bela. Seu rosto
está meio molhado e ela começa a recear que chova de verdade e
então ela vai ter de aparecer na casa de Piranha com a roupa toda suja
atrás. Mas não chove. O tempo está só enevoado.
Acaba que o bairro de Piranha fica longe mesmo. Inevitavelmente,
a adrenalina de Maria acaba. Ela para num sinal vermelho, embora,
quando não tem nenhum carro, espera-se que você fure as paradas
obrigatórias para mostrar o quanto é anarquista. Meio que começa a
processar a conversa que teve com Steph meia hora antes. Que cilada!
Enquanto Maria estava toda nervosa pensando em como ter aquela
conversa, Steph deu um jeito de se comunicar de uma forma mais
direta do que elas jamais tinham se comunicado.
Depois do que Steph falou, não houve mais muita coisa a dizer.
Maria falou, tipo: Eu ia terminar com você também, e depois as duas
meio que só ficaram se olhando. Steph chorou, e por um minuto
Maria pensou que talvez não fosse chorar e se sentiu insensível e cruel
até o fundo dos pulmões, mas depois chorou também. Só um pouco.
As duas se abraçaram, e Maria disse alguma coisa sobre combinar as
questões práticas no dia seguinte, mas que agora ela precisava encher
a cara. Steph riu, o que fez Maria sentir que as duas provavelmente
um dia seriam amigas.
Sapatonas.
Parece uma merda não ter chegado a dizer tudo aquilo que Maria
só agora está se dando conta de que precisava dizer, sobre um padrão
que ela tinha de fugir das coisas e tal, mas “eu não sou mais sua
namorada” é bem próximo de “eu não preciso mais escutar suas
merdas”, e até parece que alguém realmente quer dizer essas coisas
em voz alta. Por mais que precise dizê-las.
O sinal abre e Maria percebe: peraí, caramba, espera um pouco, eu
estou muito animada. É a mesma sensação de quando se acaba de
começar uma viagem de carro para o Arizona, para o Michigan ou algo
assim, e a gente não tem que se preocupar com o aluguel, nem com o
trabalho, nem com a comida do gato, nem com nada mais por uma
semana inteirinha. Só que sem limite de tempo. Eu não preciso cuidar
de mim mesma. Nem dormir. Nem tomar banho! Talvez essa seja uma
linha de raciocínio meio ruim.
Depois desse sinal a pista desce por um tempão, e sua bicicleta
parece o Pégaso ou algo assim. É clichê dizer que se tem a sensação de
estar voando, mas é como se ela estivesse voando, de fato. Abre os
braços que nem a Kate Winslet na proa do Titanic.
No fim da descida fica o limite de Park Slope. Ainda faltam tipo
quilômetros até a casa de Piranha, e, embora não esteja chovendo, a
névoa está encharcando suas roupas, então Maria decide pegar o
metrô. Esse é o verdadeiro motivo pelo qual ela não sabe o caminho
de bicicleta. É um caminho inutilmente longo. Ela se dá conta de que
já tinha perdido a paciência mais ou menos naquele mesmo ponto.
Maria é uma ciclista da catarse, não de longas distâncias.
Além disso, no metrô dá pra ler livros e tomar uísque, então ela
para numa loja de bebidas e compra uma garrafinha. Não quer ficar de
porre, mas quer beber. Então ela pensa em mandar uma mensagem
para Piranha.
Oi, a Steph terminou comigo. Tô indo praí.
Ela embarca no metrô sem esperar resposta, porque o que Piranha
vai dizer? Que não? Além do mais, Piranha não vai estar fazendo nada,
ela odeia demais todo mundo para sair sem necessidade.
O trem da linha Q está razoavelmente cheio, porque é terça-feira à
noite e as pessoas que trabalham em Manhattan e moram em casas
chiques de dois andares perto da casa de Piranha estão voltando do
trabalho agora. Maria assume o papel de punk sujinha com os cabelos
tingidos de uma cor berrante, que ocupa espaço demais, cheira mal e
bebe uísque. Já conheceu gente assim de verdade e na real ela não é
assim, mas comparada com aquele pessoal de bancos de investimentos
ela é tipo a Bertha em Sexy e marginal.
Também está animada por estar lendo um livro chamado Big Black
Penis, que fala sobre masculinidade e homens negros. Ela ergue o livro
bem alto para todo mundo poder ler o título. É uma sorte ela
raramente sentir uma animação tão grande, pois, quando está assim,
Maria meio que fica com vontade de chocar as pessoas.
O trem segue em frente, as pessoas vão saltando, e então ela chega
à estação da avenida Z, guarda o livro na bolsa e carrega a bicicleta até
lá fora. Piranha respondeu com outra mensagem: Que merda, tá. Quer
uma cerveja?
Piranha é demais.
21
15 DE OUTUBRO
Piranha está usando heroína.
Mas ela não consegue pensar em mais nada para escrever, e depois de
quatro palavras e meia começa a sentir uma cãibra na mão. Consegue
passar a noite inteira digitando, mas usando uma caneta, nem tanto.
Talvez devesse fazer um diário de haicais, de um jeito não apropriador.
Não seria apropriador escrever igual ao Hemingway.
15 DE OUTUBRO, PARTE 2.
Sou um soldado na Primeira Guerra Mundial. Não tenho muitos
sentimentos. Bebo muito e as garotas gostam de mim. Tivemos
uma longa conversa sobre a possibilidade de um aborto, mas não
usamos a palavra aborto. Era tudo um sonho e eu já morri.
Ela quase mata todo mundo tirando a bicicleta e suas coisas do trem
no meio do rush matinal, mas que se dane. Não dá para não parecer
cool subindo a escada do metrô carregando uma bicicleta no braço, e
ela então chega na rua e está chovendo a cântaros. Perto da casa de
Piranha fazia um tempo lindo. Ela está sem guarda-chuva, mas cobre a
cabeça com seu moletom de capuz e diz que se foda. Chuva é demais.
Está toda animada, e estranhamente mal pode esperar a hora do
almoço para voltar a escrever no diário.
Em todo lugar de Manhattan sempre tem alguma obra, o que
significa que é fácil encontrar um lugarzinho debaixo de uma
marquise de tapume para prender a bicicleta para não deixar molhar
tanto. Ela chega no trabalho um pouco arrependida por estar tão
molhada, mas que se dane. Bate o ponto, encontra um aquecedor lá na
seção de história da Irlanda e joga o moletom por cima: risco de
incêndio o escambau. A seção de história da Irlanda é demais porque
quase todas as lombadas dos livros são verdes e porque fica mais
afastada das outras, ou seja, o pessoal da gerência nunca vai lá. E se
alguém aparecer, vão flagrar você se arrastando para ler a história da
Irlanda de John O'Driscol com a testa franzida, mas ninguém quase
nunca vai lá. Em geral, tem só gente perdida perambulando pela
livraria. Ou alguma pessoa da Irlanda.
Quando o ar está úmido de chuva como agora, a umidade se
mistura com o pó que cobre literalmente tudo na livraria e mal dá para
respirar. Isso quer dizer que você precisa fazer vários intervalos, dar
umas saídas, sabe? Maria sai para dar sua primeira volta às 9h45.
Pensa: pizza de café da manhã, será?
Estamos em Manhattan, e um monte de pizzarias já estão abertas.
Comer pizza no café da manhã é uma irresponsabilidade com o
estômago que ela tem, e Maria não pode se dar ao luxo de comer um
bagel de manhã, pizza em seguida, mais um café e então o almoço,
mas que se dane.
Irresponsabilidade. Maria nunca foi irresponsável. Quando
pequena, era responsável por proteger todas as outras pessoas dos
seus próprios problemas em relação ao seu gênero, era responsável
por garantir que sua mãe e seu pai não precisassem criar uma criança
esquisita. É claro que, no caso, sua mãe e seu pai acabaram tendo uma
criança esquisita e triste, não é? Enfim. Foi nessa época que a
responsabilidade em detrimento de si mesma se tornou um hábito: ela
não ligava para a escola, mas sabia que sua mãe e seu pai ficariam
tristes se não entrasse para a faculdade, uma vez que se espera
determinadas coisas de você quando você se dá bem em testes
padronizados, então ia se virando e prestava atenção. Depois, no
quesito drogas, usou todas, mas sempre com tanta moderação que não
chegou a ser perigoso. Mesmo quando vomitava ou ficava alterada, era
sempre numa situação controlada, nunca foi presa, nunca precisou
que a polícia a levasse para casa, nunca foi pega chegando mais tarde
do que o combinado nem foi parar no hospital nem nada disso. Aí ela
foi para Nova York, bancou o próprio aluguel, arrumou um emprego,
se manteve discreta, teve relações com pessoas nas quais fazer a
relação correr bem era mais importante do que estar presente. O que
não deu certo. Está claro que ser responsável não foi uma força
positiva em sua vida. Ser responsável tem cagado tudo.
Ela compra uma fatia de pizza de legumes e volta para o trabalho
debaixo de chuva. Além do mais, ser irresponsável funciona bem para
ela. O único jeito de ela ter conseguido manter aquele emprego e não
surtar completamente foi dar várias voltas na rua, passar muito tempo
lendo em vez de trabalhar, ajudar clientes velhos e doidinhos por
horas a fio que não compram nada. Ou andar de bicicleta
perigosamente: ela levou uma portada ontem, seu quadril ainda está
dolorido, e sabem do que mais? Essa é uma história bem boa. Ou até
naquela manhã, no metrô! Ela derramou café na roupa toda, ocupou
um montão de espaço e acabou se lembrando do quanto gosta de
escrever totais absurdos em seu diário.
Ela é como Sigmund Freud: capaz de pensar num milhão de
exemplos para justificar qualquer teoria de merda que quiser
sustentar. E ser totalmente irresponsável pela primeira vez na vida é
tão intrigante que ela está inteiramente disposta a defender isso.
Ela é o Sigmund Freud da história da Irlanda.
Quando você é trans, supõe-se que saiba tudo sobre os homens e
tudo sobre as mulheres e seus modos de interação e as diferenças
importantes que influenciam o mercado amoroso, e sobre como em
última instância todo mundo é fundamentalmente igual, mas ao
mesmo tempo fundamentalmente diferente. E quando você começa a
transição? Nos primeiros um ou dois anos, você acredita totalmente
que sabe. Passou a vida inteira namorando meninas, só que como
menino, então tem a experiência de saber como é ser um menino
hétero, só que agora você é menina, e cada vez mais o mundo enxerga
você como uma menina, e além disso as meninas que você namora
agora têm com você uma relação diferente daquela que outras
meninas que você namorou antes tinham. Além do mais, agora você já
saiu uma ou duas vezes com meninos, então se sente uma grande
autoridade sobre o que é ser uma menina hétero. E tudo que você
quer é falar no assunto, o tempo inteiro, porque isso parece ser uma
senhora revelação: ah, agora eu posso agir de tal maneira num
encontro, e ah, agora eu entendo tão bem por que meus antigos
relacionamentos sempre davam errado, eu sou a porra da supermulher
do Nietzsche, e ah, cara, eu sou tão inteligente o tempo todo que tudo
que eu quero é explicar pra todo mundo como o mundo é.
Aí, depois de passar um tempão se sentindo superinteligente e
superperspicaz, você começa a se dar conta de que todas as suas
sacadas são meio idiotas. Para começo de conversa, quando
supostamente era menino, na real, você não era. Você aprendeu a
representar esse papel da forma como sua cultura ensinou, o que era
bem fácil, mas não acreditava naquilo. Havia um desânimo subjacente
na sua interpretação e na sua experiência de ser menino que não
existe para a maioria dos meninos que não são trans. Aí se dá conta de
que, assim que começou a passar mais tempo na companhia de
mulheres de um jeito não sexual, elas passaram a não tratar você como
um menino, e se abriam para você mais ou menos do mesmo jeito que
se abrem para outras mulheres, só que você era uma pessoa efusiva,
bagunçada e insegura, de gênero indeterminado, dada a surtos e crises
por coisas como, digamos, meninos darem flores para as suas amigas,
mas não para você.
E aí, quando você saiu aquelas duas vezes desastrosas com aquele
menino, ele sabia que você era trans, e você jamais saberá se isso
influenciou a maneira como ele a tratou, ou seja, com certeza você
estava bem mais perto do que jamais tinha estado de um
relacionamento heteronormativo menina-menino, mas como
relacionar isso com a experiência de qualquer outra pessoa?
Aí você começou a sair com sapatonas e descobriu como era
diferente ser uma menina que sai com meninas em comparação com
ser um menino que sai com meninas, mas nunca chegou de fato a
conseguir entender se era assim porque as meninas com quem estava
saindo agora eram diferentes das meninas com quem tinha saído antes
ou se era porque sair com sapatões era por algum motivo
fundamentalmente diferente de sair com meninas héteros, e além
disso: jura? Você saiu com um único menino e acha que pode falar
sobre como é sair com todos os meninos? Além do mais, você deve ter
saído com quantas meninas antes de fazer a transição, três, quatro? E
elas eram todas bem diferentes umas das outras, tinham questões
diferentes, jeitos diferentes de lidar com o estresse de uma relação, e
agora você vai generalizar sobre todas as mulheres?
Além de tudo, o sexo sempre foi superproblemático para você.
Mesmo antes de saber que era trans, você ficava estressadíssima com
sexo. Você achava que gostava. Com certeza gostava dos orgasmos, e
até onde sabia não tinha motivo nenhum para ter raiva das suas partes,
mas a masturbação era sempre mais fácil e bem menos estressante do
que de fato ter e manter uma ereção na presença de outra pessoa.
Além do mais, você nem sequer sabia que dissociava durante o sexo
até estar fazendo isso por tipo uma década, e já tinha ouvido falar em
dissociação várias vezes, e aí finalmente percebeu que, na verdade, era
isso que acontecia quando você precisava parar de prestar atenção na
pessoa com quem estava trepando de modo a poder fantasiar sobre
uma porção de situações que nada tinham a ver com ter um pênis e
comer alguém com ele. Então você não faz ideia do que significa ter
um relacionamento amoroso que contenha sexo divertido, algo que
você supõe que todo mundo tenha, mas, sério, como você pode saber?
E esses são só os aspectos do gênero que têm a ver com
relacionamentos. E o jeito como você é tratada por homens mais
velhos que trabalham em lojas? Por mulheres jovens? Você acha que
ser alta, magra e branca tem alguma coisa a ver com o jeito como você
é tratada hoje em dia? Acha que ser uma pessoa magra, branca e que
se vestia razoavelmente tinha alguma coisa a ver com o tratamento
que você recebia antes de transicionar? São tantas variáveis que você
tipo consegue ver todas as construções, todas as conexões e meio que
as entende, mas se algum dia pretende entendê-las de verdade é
melhor fazer isso numa caverna ou numa montanha em algum lugar
bem longe das outras pessoas, onde possa viver de líquens, bebendo a
água de uma nascente rasa e meditando oito horas por dia, porque é
muito complicado.
Mas mesmo assim Maria pensa: será que eu deveria estar tendo
algum tipo de estalo? Meu estalo é o seguinte: gênero é uma coisa
idiota e chata, e eu não quero falar sobre isso nunca mais. E se alguém
estiver super a fim de me usar como exemplo de como o gênero não é
real, ou se alguém algum dia quiser me falar sobre como o meu corpo
é um exemplo de gênero queer na sua forma mais integral e
fundamental, ou se alguém quiser me dizer que acabou de cursar seu
primeiro ano numa faculdade para mulheres e que representa o Fim
do Gênero, essa pessoa pode ir se foder. Kate Bornstein tinha razão
quando disse que nenhuma dessas paradas que se diz sobre gênero é
real, só que ela não foi longe o suficiente. Todas essas paradas que se
diz sobre gênero são uma imbecilidade e são impossíveis de entender
de tão complicadas.
Um senhor alto de cinquenta e poucos anos entra calmamente na
seção de história da Irlanda, quase tromba com ela, então tira o
chapéu e faz uma mesura sutil, porém dramática. Ele está usando
roupas evidentemente caras.
Me perdoe, senhorita, diz ele com um sotaque do Upper East Side
ou coisa assim.
Tudo bem, diz Maria.
Ele passa alguns segundos olhando as prateleiras, depois parece se
lembrar de alguma coisa. O homem se vira para ela e diz: Me desculpe
dizer isso, mas você é linda.
Ah, obrigada, diz ela, fazendo subitamente o papel de menina
hétero fofa.
Você já leu todos esses livros?
Ele está sendo engraçadinho. Eca. Ela balbucia um não e vira as
costas, ainda sorrindo, porque o que mais se pode fazer, explicar o
patriarcado para aquela porra de cara aleatório?
Ele se vira outra vez para olhar os livros e ela começa a contornar a
estante só para não ter de interagir constrangedoramente com aquele
galã de meia-idade, mas ele a detém com a voz.
Desculpe, mas posso fazer uma pergunta?
Claro, diz ela.
Você aceitaria almoçar comigo hoje à tarde?
Obrigada, mas não, diz ela. Eu tenho namorado.
E depois disso ela praticamente foge.
Obviamente Maria deveria ter dito ao homem que ela é lésbica. E
que ele era velho demais para ela. Deveria ter dito uma porção de
coisas, mas um: ela internalizou de um jeito frustrante o código social
que diz que mulheres mais novas não devem ser grosseiras com
homens mais velhos, e dois: revelar que ela é lésbica sempre parece
que vai necessariamente levar a pessoa a entender que ela é trans, e
isso não só parece assustador e meio perigoso, mas é como se nesse
caso as pessoas também pudessem querer perguntar se ela é lésbica de
verdade, se alguém que Na Realidade É Homem e namora mulheres
não é só um cara pervertido para caralho. Parte da transição tem a ver
com a tentativa e erro de navegar pelas interações sociais que a
maioria das mulheres navega por tentativa e erro mais ou menos na
época da puberdade e aprender a dispensar um cara aleatório que está
flertando com você sem que ele fique com raiva. Mas quando você
tem vinte e nove anos e não aprendeu essas coisas, o sentimento de
humilhação é indescritível.
De modo que, na real, é bem mais fácil entrar na onda desses
homens que foram criados assistindo a filmes nos quais a mocinha só
gosta do herói depois de ele ter sido insistente o bastante para fazê-la
gostar dele. É essa a graxa que faz girar as engrenagens da máquina da
heteronormatividade, claro, mas é simplesmente mais fácil se esquivar
de uma situação constrangedora com um cara estranho do que
denunciar a misoginia inerente do que ele está fazendo. É uma
posição difícil de ocupar, mas ainda por cima quem está nela é uma
sapatão nervosa que também é trans e que, em determinado
momento, a sociedade tentou usar como receptáculo para esse tipo de
misoginia. Então.
Simplesmente propagar isso é uma irresponsabilidade, mas de que
outras ferramentas você dispõe para desfazer tudo isso? O privilégio
masculino é um saco e é estranho, e o fato de ele existir, de as pessoas
terem tentando usá-lo com você, e o fato você internalizá-lo em
alguma medida, complica a decisão de ser totalmente irresponsável.
Tipo, se você não se responsabilizar, isso não dá algum tipo de
vantagem para as outras pessoas, como aquele mané do Upper East
Side? Ou você só se mostra irresponsável dentro de determinados
limites, para os filhos da puta não acabarem sacando que você é trans?
E isso já não parece mais irresponsabilidade, parece uma rebelião
contida, o que é tão produtivo quanto levar um skate para o shopping
ou ir à igreja com um All Star de cano alto ou uma camiseta com
estampa de palavrão.
Do outro lado da livraria, Maria começa a calcular mentalmente
como encaixar uma tatuagem da palavra Irresponsável nas articulações
dos dedos. IRSP NSVL? Pode ser. Mas parece meio bobo.
Agora que está sem graça e com medo de ir se esconder na caverna
da história da Irlanda, Maria decide sair outra vez da livraria. Começa
a andar, sei lá, para algum lugar, e como está chovendo forte tenta se
manter quase sempre debaixo das marquises. Mesmo assim fica
ensopada, mas e daí?
Na real, não tem problema se a sua irresponsabilidade não afetar
mais ninguém. Contanto que essa recém-encontrada liberdade se
expresse através de coisas que não machuquem, não causem
constrangimentos nem oprimam mais ninguém, deve ficar tudo bem.
Tem uns comprimidos de Adderall na bolsa dela. Debaixo da marquise
da loja de Halloween, ela toma dois.
NOFU TURE caberia nas articulações dos seus dedos. É meio que a
ideia certa, mas Sex Pistols? De novo uma rebelião adolescente
totalmente improdutiva, a camiseta com estampa de palavrão outra
vez. O problema é: como ter algum tipo de catarse emocional quando
se está velha demais para isso? O segredo, claro, é rejeitar a ideia
venenosa e normativa de que existe um Velha Demais para ter
Catarse. Ou, na verdade, um Velha Demais para Qualquer Coisa. Mas
rejeitar ideias normativas sobre idade é tão difícil quanto rejeitar ideias
normativas sobre gênero.
Ela agora está a seis quarteirões da livraria, e como está só dando
uma volta para arejar a cabeça, ela dobra a esquina, anda mais um
quarteirão, depois começa a voltar.
Está ensopada quando entra, e Thomas McNealy, o gerente, está à
sua espera. Ele é um babaca. Deve ter uns cinquenta e poucos anos, é
casado e tem um filho, e trabalha naquela livraria desde sempre. Ele é
o adulto enfezado, aquele que avisa que você está demitida ou que
levou uma advertência ou sei lá o quê. E além disso parece gostar
desse trabalho, como se tivesse ficado preso ali enquanto seus sonhos
boêmios da juventude viravam fumaça e se transformavam num
emprego das nove às cinco num sebo de merda e quisesse descontar
em alguém.
Onde você estava, pergunta ele.
Fui comprar um bagel, diz ela com cara de bunda.
E cadê o bagel?
Já comi.
Já comeu o bagel inteiro, diz ele. Alguém autorizou a sua saída?
Ela pensa em mentir, então confessa que não.
Maria, diz ele, fazendo questão de pronunciar o nome dela de
forma a deixar claro que se lembra de que esse nem sempre foi seu
nome, faz meses que você está chegando atrasada quase todo dia e
agora sai sem autorização. Por favor, vai bater seu ponto.
24
15 DE OUTUBRO, PARTE 3.
Odeio Nova York, mas adoro a chuva de Nova York no outono.
Tipo a chuva de novembro? Só que estamos em outubro, e eu
acabei de ser demitida da droga da livraria. E nem falei umas
verdades para a megera da dona. Agora preciso resolver que porra
eu vou fazer: será que arrumo um emprego no Brooklyn, perto de
casa? Só que eu também vou ter que arrumar outra casa.
Estou exausta de tanto pensar em ser trans o tempo todo e
queria conseguir parar com isso. Caro diário, sabia que, se você
trabalhar para a prefeitura da cidade de São Francisco, a prefeitura
paga a sua cirurgia de redesignação? Talvez seja uma lenda urbana.
Talvez eu pesquise melhor.
Não me ocorreu sair e encher a cara depois de ser demitida, o
que é interessante. É quase como se eu enchesse a cara o tempo
inteiro quando namorava Steph e tinha um emprego de merda não
por eu ser uma alcoólatra consumada, mas porque beber era um
mecanismo de adaptação para lidar com o fato de estar infeliz.
Maria acorda e tem uma ideia. Uma ideia bêbada e ruim, mas ela nem
para um tempo para pensar a respeito. Como Steph terminou com
Maria, talvez esteja com algum grau de boa vontade em relação a ela
no presente momento. Talvez ela deixe Maria pegar o carro
emprestado. Quando chegar no Brooklyn, ela já vai estar sóbria o
suficiente para dirigir, e a verdade é que Maria não quer ser um peso
para Piranha. Vai pedir o carro de Steph emprestado hoje à noite e sair
da cidade por alguns dias. É tipo uma jogada babaca, mas que se dane,
o sistema de transporte público de Nova York é o melhor do mundo, e
seria bom para Steph aproveitar esse fato por uns dias.
Pouco importa para onde ela vai. Para o norte do estado de Nova
York? Uma parada para descansar na Jersey Turnpike? O céu é o
limite. Talvez caracterizar seu novo estilo de vida como irresponsável
não seja exatamente correto, mas em vez disso ela deveria estar
justificando o fato de seguir todas as ideias idiotas que tem como uma
forma muito iluminada e muito budista de viver o momento.
Como ela meio que não está a fim de ter qualquer conversa com
Steph, nem de ver como cada uma está se sentindo ou algo assim,
Maria manda uma mensagem de texto: Posso pegar seu carro
emprestado hoje à noite?
Maria desperta um pouco mais. Deve ter umas dez pessoas no bar
agora, bem mais do que quando ela chegou.
Steph responde: Claro, a chave extra está na cozinha. Como você
está?
Maria entra no assunto do jeito mais raso possível: Tudo bem.
Desopilando um pouco. Sabe como é.
Steph não escreve mais nada.
O guarda-chuva continua no Alt.Co ee — ela já estava meio
dormindo quando cambaleou até o HiFi. Ninguém o roubou! Ela o
abre e anda as dezessete porras de avenidas ou sei lá quantas para
pegar a bicicleta, então desce as escadas do metrô com ela e volta para
Bushwick. Mais uma vez acha ruim ser obrigada pela chuva a pagar
dois dólares para andar de metrô: o principal motivo pelo qual Maria
começou a pedalar foi porque o metrô custa caro.
No trem da linha L, ela encontra um lugar vazio, senta com a
bicicleta ao seu lado e sente nas costas, nos ombros, no pescoço e até
naqueles musculozinhos esquisitos na parte de trás da cabeça que são
incompreensivelmente interligados com seu maxilar ou algo assim: ela
vem adiando a exaustão por causa das boas coisas ruins que têm
acontecido, mas, na real, tudo o que quer é um lugar para descansar,
para simplesmente apagar por algumas horas. Seu apartamento não é
esse lugar; Steph deve estar lá agora, talvez não. Se ela for para a casa
de Piranha, talvez não consiga relaxar antes de começarem a conversar
sobre a amiga relapsa que tem sido, embora Maria conheça Piranha
bem o suficiente para saber que ela já disse o que queria e é isso, elas
não precisam falar mais no assunto a menos que Maria queira. Só que
Piranha tem que trabalhar à noite. Às nove, ou seja, só vai voltar para
casa quando o sol nascer. Se Maria pegar o carro, o estrogênio, o
suporte da bicicleta e talvez algumas roupas para sair da cidade numa
viagenzinha, pode perfeitamente ir dormir algumas horas na casa de
Piranha. Eu tenho alternativas, é o que está pensando quando pega no
sono dentro do metrô.
Por nunca ter um sono realmente profundo, estar sempre cansada
e morar em Nova York há muito tempo, Maria tem um sexto sentido
nova-iorquino em relação às paradas do metrô. Ela acorda quando o
trem está desacelerando para parar na sua estação, sentindo-se até que
descansada.
Lá fora não está mais chovendo de verdade. Ou, para ser mais
precisa, está só meio que chuviscando. É mais uma bruma, tipo a
É
névoa que rodeava os postes na noite anterior. É lindo. Vou sentir
saudades, Brooklyn, pensa ela, permitindo-se compreender que está
de fato indo embora, tipo indo embora mesmo.
Permitindo-se compreender é uma forma interessante de formular
a questão: ela meio que já está enganando a si mesma outra vez.
Automaticamente. Se eu algum dia quiser não ser mais fodida da
cabeça, ela pensa, preciso ser sincera e aberta comigo mesma. Sendo
assim: vou subir e mentir para Steph, dizer que quero pegar o carro
dela emprestado hoje à noite, quando na verdade vou ficar com o
carro por alguns dias, talvez uma semana. Aí vou de carro até o
trabalho de Piranha, pegar a chave da casa dela e dormir lá por
algumas horas. E, além disso, Maria entende quando tenta sondar o
que está escondendo de si mesma: conseguir o contato da pessoa de
quem ela conseguiu a heroína. Eu gosto de heroína, gosto e sinto falta,
e não vou me picar, então vou arrumar um pouco e levar comigo
quando sair da cidade, me enfiar num hotel por um tempo e me
detonar. Não quero morrer nem nada, mas preciso romper de verdade
com a vida que levei nos últimos quatro, seis, vinte e nove anos. Isso
com certeza.
Além do mais, o que poderia ser mais irresponsável do que um
pequeno ritual de renascimento regado a uma farrinha de heroína?
Ela prende a corrente da bicicleta na grade da frente da entrada do
pequeno prédio. Não precisa subir com a bicicleta pela escada estreita
porque vai levá-la consigo na traseira do carro. A noite anterior foi
provavelmente a última vez que ela subiu aquela escada carregando a
bicicleta.
Steph não está em casa. Maria olha em volta, mais uma vez de um
jeito meio melodramático, tipo: é a última vez. Como Steph não está,
ela poderia se demorar um pouco juntando algumas coisas para levar,
mas o que poderia levar… o computador? O gato? Enfia umas
calcinhas, um segundo sutiã, giletes, creme de barbear e suas coisas
de injetar (merda) dentro de uma bolsa de lona gigante, pega a chave
do carro na bancada e sai. Não precisa levar comida nem nada porque,
tá.
Mais sinceridade? Seu fundo para a cirurgia de redesignação não é
suficiente para uma cirurgia de redesignação. Tipo, dezenas de
milhares de dólares não são suficientes. E ela vai precisar viver com
esse dinheiro até arrumar outro emprego, o que significa, depois de
um tempo, recomeçar a juntar do zero. Então melhor aproveitar
enquanto estiver gastando. Com heroína. E com gasolina, quem sabe,
talvez até para sair da Costa Leste. Talvez dirigindo o mais longe
possível de Nova York.
O Bouncing Souls tem uma música chamada “Lean on Sheena”,
que fala sobre uma garota que larga o namorado abusivo e sobre como
ninguém nunca mais vai voltar a vê-la porque ela vai embora mesmo.
Maria se sente igual a Sheena. Sua vida inteira é o namorado abusivo,
ela finalmente está indo embora, e todo mundo está torcendo por ela.
26
Fim de novembro
1
Star City, Nevada, é uma merda. James foi criado na pior cidade do
mundo, continua morando lá e provavelmente vai morrer lá. Que
saco. No fim do século XIX a cidade era bem agitada, cheia de caubóis
fortões e damas da noite e sei lá mais o quê, mas depois todo mundo
se tocou que ali não tinha ouro nenhum e foi embora para a Califórnia.
Aí durante cem anos nada aconteceu, e o lugar foi só um riachinho de
merda escorrendo entre duas montanhazinhas de merda até algum
momento por volta de quando ele nasceu, em meados dos anos 1990,
quando o conglomerado Wal-Mart viu uma oportunidade de infiltrar
sua marca, explodiu um rombo no flanco de uma das montanhas e
construiu uma pontezinha no meio do estacionamento para o riacho
poder correr por baixo dela e diferenciar o Wal-Mart de Star City de
qualquer outro Wal-Mart do país que não tenha uma porra de um
riachozinho idiota passando no meio da porra do estacionamento.
Na real, ele até que gosta do riacho.
Assim que o Wal-Mart de Star City abriu, as pessoas que
trabalhavam no Wal-Mart precisavam ter onde morar, então foram
construídos vários condomínios xexelentos margeando o riacho, e
depois de todos os terrenos das margens terem sido ocupados
começaram a asfaltar as ruas mais afastadas do riacho até construírem
praticamente uma porra de uma cidade. Quase uma cidade média.
Com certeza não uma cidade grande.
Tem um posto de parada de caminhões perto da rota 80, e uma ou
duas lojas que não são Wal-Marts (uma floriculturazinha xexelenta,
uma espécie de grande oficina xexelenta), mas em grande medida,
uma vez que o Wal-Mart no fim das contas vende tudo o que todas as
outras lojinhas xexelentas venderiam, a cidade é tipo uma montanha
com um Wal-Mart em cima. Aí tem uma porção de prédios idiotas no
morro espalhado em volta. Aí mais umas casas lá para os lados onde o
terreno fica plano. Tem uma estrada íngreme que desce o morro
direto, e outra menos íngreme que dá a volta inteira e faz o caminho
mais longo para descer, e no ano passado abriram uma GameStop, um
Subway e seis lojas vazias num centro comercial entre a autoestrada e
o Wal-Mart, mas lá praticamente só tem sujeira, e poeira, e nada, e
visuais majestosos chatões, e adolescentes babacas entediados, e
estrelas. O nome da cidadezinha xexelenta soa como se tipo
celebridades fossem querer passar as férias ali, tipo num seriado
policial bobo dos anos 1970 ou no cenário bidimensional de um filme
velho em preto e branco, mas na verdade o único motivo pelo qual a
cidade se chama Star City, “cidade estrela”, é porque à noite tem uma
porrada de estrelas no céu.
Contanto que você fique de costas para o Wal-Mart.
2
Alguma hora você vai ter que sair do banheiro. Alguma hora a água vai
ficar fria de novo, e ele já completou a banheira com água quente duas
vezes. A água quente está incluída no aluguel, então não há motivo
algum para simplesmente não continuar fazendo isso até ele pegar no
sono ou morrer, mas além disso James está ficando oficialmente
entediado e com a pele toda enrugada, e se imagina saindo da
banheira, animado para abrir a porta, saindo apressado do banheiro e
vendo toda a fumaça sair lá de dentro como a van de Picardias
estudantis ou um filme de Cheech e Chong. Mas fica sentado na
banheira enquanto a água escorre pelo ralo. Agora está oficialmente
com frio. Levanta-se, enrola-se numa toalha surrada, abre a porta e sai
depressa.
A fumaça que sai do banheiro é decepcionante. Tem fumaça, sim, e
ela meio que sai flutuando do banheiro, mas não é muito densa e na
real não parece estar com a menor pressa. É como quando você está
fumando e imagina que está num clipe de rap e que uma fumaça
superdensa está saindo da sua boca em câmera lenta, mas quando olha
no espelho você vê que está só fazendo uma cara estúpida e parece um
idiota que não consegue nem fumar direito. Esse tipo de fumaça. Esse
tipo de sensação. De repente o assunto mudou daquela cidade
xexelenta e suas montanhas para aquele menino magrelo e pelado com
uma toalha em volta dos ombros num apartamento xexelento cheio de
luzes frias no teto.
O tempo está meio engasgado, o que é bacana, mas é uma
diferença brutal sair do banheiro úmido e esfumaçado para o ar limpo
do quarto seco e frio. Tipo seus pulmões sentem um alívio e tal, mas
seu cérebro e seus olhos ficam meio mal.
James provavelmente odeia aquele apartamento. Como se a
banheira fosse um útero seguro e quentinho e agora ele estivesse
naquele mundo horrível e ofuscante. Só que ele não grita feito um
bebê que respira pela primeira vez. Fica vagando como o adolescente
que era até três meses antes. Os pratos com restos de pizza e migalhas
de pão ao lado do seu computador são deprimentes. As paredes
brancas sem nada pendurado também, e o futon azul com uma roupa
de cama azul-escura embolada por cima num canto. Ele não faz a
cama. Na real, nem chega a desembolar os lençóis direito antes de
dormir neles. Mora num apartamento de quarto e sala onde o canto da
cozinha é tão pequeno que na pia não cabe nem um prato para deixar
de molho. Nem uma luminária ele tem. O lugar todo parece um
cubículo, e só tem a luminária de teto idiota com uma lâmpada
ecológica metida a besta que já estava ali quando ele se mudou.
Na real, James nunca viu um cubículo a não ser nos filmes.
Ele pega uma cueca samba-canção da mesma cômoda que tem
desde criança, um troço pesadão de madeira que ele levou da casa da
mãe quando foi morar sozinho depois de se formar no ensino médio.
O móvel parece incongruente encostado na parede do canto. Está
todo marcado de queimaduras nos lugares onde ele largou os
cachimbos ou esqueceu baseados e deixou queimar. Depois da
primeira ou da segunda queimadura, James decidiu que se foda, parte
da minha infância ou não este móvel não vai ter nenhum valor real de
revenda, e se eu começar a pensar em valor sentimental o que vai
acontecer é que eu vou surtar em relação a tudo em todos os lugares
mesmo, então o melhor é simplesmente cagar para isso e continuar
queimando. E cagar tanto que simplesmente põe o beque aceso em
cima da cômoda sem cinzeiro nem nada. O que é mais uma marca de
queimadura. Até parece que aquele bloco gigante de madeira vai pegar
fogo.
Ele pensa em escovar o cabelo. Pensa em Marcia Brady, na Rachel
de Friends, e em Zooey Deschanel, mas não sabe nem onde está a
escova e provavelmente nem lavou o cabelo.
Dave Grohl. Robert Plant.
Não precisa se vestir. Está tarde, e faz calor suficiente para poder
ficar sem camisa. Ele se vê de relance no espelho meio pequeno da
parede e tenta imaginar que tem um abdome tanquinho em vez de
uma porra de um não abdome magrelo de maconheiro que parece a
barriga do Salsicha do Scooby-Doo, mas não dá certo. Não faz a menor
ideia da própria aparência.
Se for dormir agora, com o cabelo molhado, vai acordar com um
ninho de cobras todo escroto cheio de nós e ondas esquisitas. Além do
mais, ainda nem deu meia-noite. Pouco importa ter de ir trabalhar às
oito da manhã, ele nunca consegue dormir antes da uma ou das duas,
então empurra a caixa da pizza que jantou com Nicole e se senta na
cadeira do computador, outra herança da casa da mãe. É uma cadeira
legal, de madeira, encosto redondo, com toda pinta de que deveria
estar diante de uma mesa numa cozinha respeitável, toda de madeira
trabalhada ou coisa que o valha, e parece bem fora de lugar naquele
apartamento de solteiro xexelento mobiliado de forma tão espartana
para um computador, filmes e uma cama.
Ele desiberna o computador e digita a senha. Como se aquela noite
de merda tivesse alguma possibilidade de terminar de alguma outra
forma.
4
Não que James tenha orgulho dos sites pornôs que visita, mas o que
vai fazer, se obrigar a não ser pervertido? Ele já tentou. Ainda está
tentando. Tenta na maioria das noites.
A única luz no quarto agora é a do monitor do computador, a luz
azul e preta dos corpos nus na tela. Mas ele sabe como vai terminar.
Ele vai tentar passar tipo meia hora vendo homens comendo
mulheres, vai ficar deprimido, não vai nem conseguir ficar de pau
duro, depois vai começar a olhar blogs com imagens de mulheres com
legendas que transformam as imagens em fantasias eróticas
transformistas estranhas e absurdas.
São basicamente três fantasias.
Um dos blogs é dedicado inteiramente a Transformações
Científicas, entre aspas, então tem tipo a imagem de uma garota
bonita numa estação espacial com uma legenda que diz: o professor
MacMillan saiu do regenerador corporal e seu assistente encarou o
erro e deu um sorriso bobo, ou algo assim. Tipo a premissa são
sempre nanorrobôs, ou máquinas de troca corpórea ou sei lá mais o
quê. Pistolas de raio que mudam o gênero da pessoa. Tem várias fotos
de mulheres com legendas dizendo que elas foram homens antes. É
bobo que isso seja apresentado como uma coisa científica porque é
óbvio que uma ciência capaz de transformar você na Pamela Anderson
não é uma ciência praticada por ninguém. Existem arquivos dessas
imagens que remontam aos primórdios da internet, mas não tem nada
de ciência nisso, é pura magia.
Aí tem os blogs explicitamente dedicados à magia: tipo a imagem
de uma garota bonita numa floresta e uma legenda que diz A bruxa má
do gelo transformou o Valente Sansão em uma donzela recatada. Na
mente erótica das pessoas que produzem esse tipo de pornô mais
sinistro, magia e ciência são a mesma coisa, e basicamente o que essas
pessoas fazem é transformar homens em mulheres padrão.
Há também as legendas de namoradas iradas. Essas são as imagens
nas quais as namoradas por algum motivo transformam os namorados
em mulheres. Essas pelo menos acontecem meio que no mundo real,
mas passar batom e pôr um vestido no namorado mediano
maconheiro sem noção não vai deixá-lo igual às lindas mulheres que
são inevitavelmente retratadas.
Que nada a ver.
Tem também os sites hardcore que mal têm legendas, tipo a foto de
uma garota bonita chupando o pau de um cara e a legenda Chupa
garoto, ou algo assim. Não tem como você não se perguntar quem faz
essas imagens. Quem é que senta na frente de um computador
procurando fotos de boquetes para legendar com frases dúbias, de
modo a permitir que legiões de gente pervertida gozem em cima de
seus teclados? Mas essa é uma linha de raciocínio perigosa, pois afinal
quem é que fica vendo essas fotos? É tudo tão esquisito e idiota. E ao
mesmo tempo, depois que você fica de pau duro vendo essas coisas
ridículas, de repente elas não parecem mais tão ridículas, mas
mágicas. Potentes. Fascinantes. Mágicas! Científicas! Tipo a coisa
deixa de ser uma imagem idiota de uma revista de moda ou de um
ensaio pornô ou de um anúncio de fantasia de Halloween legendado
com uma frase idiota. De repente a coisa passa a causar no seu cérebro
reptiliano o mesmo efeito que uma boceta deveria surtir.
James não é gay nem nada disso. Ele não curte tanto os sites que
têm paus. Os de lésbicas sim, claro, mas ele não curte homem nem
nada assim. Tipo ser pervertido provavelmente seria até mais fácil se
ele fosse gay, certo, e não precisasse se preocupar por gostar de
mulheres, mas de um jeito totalmente impossível. Tipo, vários caras
são gays, né? Se você é um cara gay, pode simplesmente ir chupar
uma rola num banheiro de uma parada de caminhões, ou seja lá o que
os caras gays fazem. Se você é um cara hétero que curte a ideia de ser
transformado em mulher, provavelmente não são muitas as mulheres
que têm interesse em se meter com isso. Bom, na internet tem muitas
mulheres imaginárias que curtem essas coisas, mas elas são só a
realização de um desejo, são caras fabricando os mundos nos quais
gostariam de viver e publicando na internet. Tipo RPG.
O lance se chama autoginefilia. Tipo, existe de verdade. É esse o
nome do fetiche. Se é que é mesmo um fetiche. James não sabe o que
é. Ter atração sexual por si mesmo como mulher. Que tesão! Quem
não teria tesão nisso?
Nada a ver.
É o tipo de coisa que você nunca pode contar para ninguém. Um
segredo que carrega consigo como um albatroz pendurado no pescoço
que você leva para o túmulo quando morre.
Tem vários outros fetiches, ou sei lá, que fazem as pessoas
parecerem legais. As pessoas podem parecer legais sendo chicoteadas
e amarradas. Ou mijando umas nas outras. Imaginem se o Nine Inch
Nails pusesse isso num clipe. Seria bem legal. Mas querer ser mulher?
Não é nem aquele papo tipo eu sabia desde sempre, mulher presa
num corpo de homem ou sei lá o quê. Qualquer pessoa pode ver que
James não é mulher. James sabe quem é Jennifer Finney Boylan, e ele
não é nenhuma Jennifer Finney Boylan. Ele é só uma porra de um cara
que gostaria de poder usar vestido.
Agora está vendo a imagem de uma garota fantasiada de criada
francesa.
A namorada do Philip ficou uma fera! Pelo visto ele não se deu ao
trabalho de arrumar uma fantasia para a festona que ela ia dar, então ela
arrumou uma para ele… e era um vestido!
É um absurdo e ele não consegue nem se concentrar direito. Está a
um milhão de quilômetros dali, imaginando como ficaria ridículo
naquele vestido, inventando cenários em que fosse possível interagir
com outro ser humano em relação àquilo. Não existem nem grupos de
apoio para transformistas. Existem clubes, que provavelmente devem
ser cheios de homens peludos de meia-calça. E James tem certeza de
que não existe nem um clube de transformistas perto de Star City.
Além do mais, ele nunca nem usou uma roupa de mulher. O que vai
fazer, aparecer no grupo de apoio de calça e jaqueta jeans e pedir para
pegar uma roupa emprestada de alguém? Também não existem grupos
de apoio para autoginefilia, porque os autoginéfilos são um tipo de
transexuais. Tipo isso. Transexuais fake; transexuais feios. Homens
que decidem virar mulher, muito embora não se pareçam em nada
com mulheres. James já pesquisou. Kenneth Zucker, J. Michael Bailey.
É ciência.
Ele não consegue nem ficar de pau duro. Deveria estar pensando
em si mesmo com Nicole, mas está pensando em si mesmo com seu
pau traidor. Só que nem isso ele consegue fazer direito. Que tipo de
cara tem dificuldade de ficar de pau duro aos vinte e um anos de idade
quando está vendo o tipo de pornografia que curte? Que tipo de cara
de vinte e um anos de idade tem a maior dificuldade para gozar a
menos que a sua namorada esteja chupando o seu pau para ele poder
pensar na bruxa má do gelo transformando o Valente Sansão numa
donzela recatada?
6
Não é cem por cento verdade dizer que ele nunca usou roupa de
mulher.
Durante todo o ensino médio, provavelmente em algum passado
remoto anterior ao ensino médio, deus sabe quando esse pensamento
surgiu, ele teve uma ideia. Sabia que não iria fazer faculdade. Ele é
bem burro e mal conseguiu se formar no ensino médio, de modo que
o seu Futuro, no melhor dos casos, sempre foi ir subindo de cargo no
Wal-Mart até virar gerente e depois morrer aos cinquenta anos de um
infarto corporativo. Ele nunca iria morar em Nova York e virar rapper.
James tem um blog de cinema que levou a sério por um minuto, mas
ninguém está nem aí para o que ele tem a dizer e, na real, tem uns seis
meses que ele não atualiza o blog com nada significativo porque não
para de assistir com Nicole a filmes idiotas para os quais não dá a
mínima. A questão é que durante todo o ensino médio ele mal podia
esperar para se formar e ter o próprio apartamento, onde pudesse ter
um armário cheio de vestidos.
Seja lá qual fosse o problema dele, James não era transformista. Ele
não faz ideia de como usar um vestido. Mas quando tivesse o próprio
apartamento tudo iria mudar. Achava que conseguiria encomendar
pela internet, depois teria seus vestidos em seu apartamento e depois
poderia usá-los quando quisesse. James começou a trabalhar no Wal-
Mart aos dezesseis anos, porque sabia que levaria um tempo para ser
promovido e começar a ganhar mais que um salário mínimo.
Precisaria ter dinheiro suficiente para poder se dar ao luxo de não
morar com ninguém, de modo a não precisar usar seus vestidos só
dentro do quarto. Investiria numas cortinas bem grossas, num montão
de espelhos, e depois num guarda-roupa sensacional: todos os
vestidos mais absurdos, de babados, curtos e sexys. E aí poderia usá-
los o tempo todo e então pensaria no que fazer. Tipo, não transicionar.
Afinal, a maioria das mulheres no mundo real não costuma usar
vestido sempre. Ele não era transexual. Só queria ter uns vestidos.
Era um plano bem vago.
Aí a vida interferiu. Isso não é algo que se diz quando já
envelhecemos bastante, e não aos vinte anos de idade? Mas a vida
interferiu mesmo. Primeiro Nicole o chamou para sair, e ele não teve
um bom motivo para dizer não. Além do mais, ele gosta dela. Além do
mais, ter uma namorada não é tão diferente assim de ter um montão
de vestidos. Na real, Nicole nem costuma mais usar saia, mesmo
quando ele tenta dar a entender que seria legal ela usar. Nicole faz
mais o tipo suéter marrom, jeans justo, óculos hipster e cabelos curtos
do que o tipo pinup dos anos 1950 de vestido e lingerie. E no começo
não foi nada complicado. A bunda dela no seu colo o deixava duraço e
ele pensava tá, vai ver esse papo de autoginefilia era só coisa de
criança e eu agora posso ser um Homem. O que, na real, parecia meio
nada a ver.
Além do mais, como é que se faz para arrumar as porras dos
vestidos? Não dá para simplesmente entrar na internet e encomendar.
É preciso saber o tamanho. É preciso tirar as próprias medidas. Mas
como tirar as próprias medidas? Não dá simplesmente para comprar
uma fita métrica no Wal-Mart onde você trabalha: alguém iria reparar
e perguntar o que você ia fazer com aquilo. E um metro de metal do
departamento de ferramentas não funciona. James já tentou. E depois,
mesmo você chutando que deve vestir tamanho G, pode ser que tenha
a experiência mais deprimente do mundo quando for tentar testar
essa teoria.
Ele encomendou um. No fundo do closet de James tem um vestido
no qual ninguém nunca reparou. Por que alguém iria entrar no seu
closet? Parece inevitável Nicole entrar lá atrás de um cinto para pegar
emprestado ou algo assim e encontrar o vestido, e James não vai ter
como explicar por que tem um vestido, no qual ele não só não cabe
como também teria que ter uns trinta centímetros a mais de
comprimento para cobrir qualquer coisa, pendurado atrás dos seus
dois ternos e de sua única calça social.
Na primeira semana que passou no apartamento, ele encomendou
o vestido pela internet. Pensou, tipo, liberdade! Enfim posso
encomendar Meu Primeiro Vestido! E fez a compra no eBay. Ele
achou que estava sendo responsável: não é vulgar, não é rosa, e
supostamente nem é curto. É azul-marinho debruado de branco, e ele
passou a semana seguinte à encomenda — que fez no meio da noite,
com um clique no botão Comprar Agora enquanto suava frio —
apavorado, imaginando que o vestido seria enviado numa caixa
etiquetada com a palavra “vestido” que seria deixada em frente à sua
porta. Mas não foi assim. Ele só encontrou uma caixa de papelão
normal em frente à sua porta um dia depois do trabalho.
James levou a caixa para dentro com a respiração curta e ofegante e
tentou abrir. Suas mãos não obedeceram. Então um garfo deu conta de
furar a fita adesiva, mas ele teve de encontrar a faca afiada para
conseguir cortar toda a fita. A caixa então foi para a bancada da
cozinha, ao lado dos pratos engordurados e sujos com restos de pizza,
aberta como um presente, e nem era assustadora, já era triste. Em
primeiro lugar, ele deveria ter deixado a caixa escondida até Nicole
aparecer aquele dia e ter ido embora. Ela estava para chegar a qualquer
momento. Em segundo lugar, deu para ver na hora que aquele não era
o vestido que ele pensou ter encomendado. Aquele vestido existia só
na cabeça dele. O vestido em sua cabeça era fofo e fazia parecer que
ele tinha cintura. Era uma coisa hipster meio Jackie O. Mas aquele
vestido, na vida real, era obviamente um vestido de ir à missa da
falecida avó de alguém. Era uma coisa quadrada, sem forma, e o tecido
parecia uma toalha de tão grosso. O debrum era horrível. James nem
tirou o vestido. Ele nem sequer o tirou da caixa, simplesmente a
fechou, enterrou embaixo de duas caixas velhas de All Star no fundo
do closet e foi até o computador. Ele ficou vendo umas coisas de gente
pervertida até Nicole chegar. E ela percebeu que tinha alguma coisa
errada assim que chegou.
Perguntou tipo: Está tudo bem? Você tá ofegante e com cara de
quem vai chorar.
Pois é, disse ele. É que eu acabei de ler uma coisa horrorosa aqui.
Sobre bebês foca.
Porra, que ridículo.
Depois da visita de Nicole, depois de terem transado e ela ter ido
embora, James experimentou o vestido. Parecia uma saia e um blazer,
mas na verdade era uma peça única, um vestido. Talvez por já ter
gozado uma vez naquela noite, ou porque o vestido era tão feio e
estúpido, ou porque suas costelas estavam cheias de decepção e hélio,
seja qual fosse o motivo, James nem se excitou quando pôs o vestido.
Ele achou que ia ficar excitado. O objetivo de ter comprado aquele
primeiro vestido era satisfazer um impulso que, James supôs, era
inteiramente sexual.
Ele não tem espelho de corpo inteiro nem nada disso, mas
conseguiu mal e mal entender como enfiar os ombros no vestido, e aí
a peça ficou embolada na altura das costelas e das axilas e ele teve
medo de deformar o tecido e estragar — que tragédia seria, não?
estragar uma peça tão linda —, mas acabou conseguindo vestir e se
sentiu provavelmente mais bobo do que jamais tinha se sentido na
vida. Havia espaço de sobra e drapeados no quadril, e sua barriga,
embora praticamente nem sequer existisse, ficava realçada na parte da
frente. Ele se deu conta de que não sabia o que estava esperando
sentir ao experimentar aquele vestido, mas com certeza não era
aquele vazio beirando o tédio e algo muito próximo a uma vontade de
morrer.
Mas James estava usando o vestido e era isso o que ele queria,
então foi se certificar de que a porta da frente estava trancada, depois
viu se a porta lateral estava trancada, fechou todas as persianas e
fumou o resto da maconha que tinha, sentado no futon e usando
aquele vestido idiota, sentindo-se um idiota. E aí, mesmo depois de
ficar super, superdoidão, ele ainda assim não parou de se sentir um
idiota. Tentou se masturbar, mas não deu certo.
E foi assim que James soube que é autoginefílico, e não
transformista, que parece uma coisa excitante na teoria, mas na prática
é a coisa mais triste e decepcionante do mundo.
Esse deveria ter sido o fim da sua carreira de transformista, mas
como na noite seguinte Nicole tinha outro compromisso, sabe-se lá
qual, ele passou o dia inteiro sem se masturbar, aí pôs o vestido outra
vez tipo às onze da noite e dessa vez conseguiu gozar, mas foi ainda
pior do que se masturbar lendo umas legendas de pornografia
ridículas na internet. Tipo, James gozou, mas mal chegou a ser um
orgasmo, e não houve euforia nenhuma, e aí ele simplesmente
pensou: como assim? Eu não sou transformista? Não gosto de
vestidos? Será que eu tenho um fetiche que não dá nem para ser
realizado na vida real, como se excitar imaginando que está sendo
devorado por gigantes tarados?
Como não conseguia entender, enterrou o tal vestido no fundo do
closet para sempre. Não jogou fora porque jogar fora teria sido pior
ainda, e talvez de algum modo aquilo ainda tivesse salvação.
Considerando o quanto odeia aquele vestido, ele duvidava que tivesse,
mas não consegue se forçar a se livrar daquilo.
A mesma melancolia e sensação deprimente que caracterizaram
todo o incidente do vestido culminaram numa sensação de que ele
não podia simplesmente embolar o vestido e jogá-lo debaixo de uma
pilha de tralhas no fundo do closet, então James o pendurou. Apesar
de odiar aquele vestido, gostava da ideia de tê-lo ali pendurado no seu
closet. Autoginefilia, cara.
7
Porque, olha, não é que James não pense se ele é trans ou não, certo?
Para ser totalmente sincero, ele pensa nisso o tempo todo, só não
consegue imaginar ser trans de verdade no mundo real. Será que ele
gostaria de ser uma garota? Puta que… é claro que ele gostaria de ser
uma garota. Ninguém passa vinte e nove horas por semana pensando
em ser uma garota e se masturbando sem pensar, tipo, será que esse
padrão está tentando me dizer alguma coisa. E para ser sincero ele
provavelmente não se comprometeu nem com um sim nem com um
não. Tipo, existem um milhão de motivos pelos quais ele obviamente
não é trans, ou não o tipo de pessoa trans que transiciona. Ele nunca
disse isso em voz alta, nem mesmo pensou explicitamente, mas talvez
ele seja meio gênero queer, então não sabe nem o que pensar a
respeito. Já acessou sites e blogs de muita gente, leu sobre
autoginefilia e sobre o que os hormônios fazem e não fazem, e sabe
que se for transexual ele com certeza não é tipo uma pessoa transexual
normal, as pessoas transexuais normais todas já sabem que são
transexuais desde pequenininhas e contam para a família e levam
esporro por causa disso, ou então começam a tomar hormônios aos
treze anos e não passam todas as noites da porra da vida se
masturbando e vendo uma pornografia constrangedora pra caramba
que é idiota, chata e repetitiva, e tipo, isso é simplesmente todo um
outro mundo de expressão de gênero e de sexualidade, então tanto
faz, quem se importa com isso, a questão é só que, tipo, James sabe
que a transexualidade existe.
Talvez ele saiba muito bem.
É
Então vai ver ele fica buscando isso? É claro que fica buscando,
tipo, coisas esquisitas sobre gênero em todo mundo o tempo todo ou
sei lá, como se fosse hiper-sensível ou algo assim. Mas dessa vez foi
simplesmente tipo: ai meu deus, uma pessoa trans! Só que James
engoliu e não disse nada, porque ele é bom demais em engolir as
coisas e não dizer nada. Tipo, em relação aos sentimentos e tal.
Então vai ver ele vive o tempo inteiro em busca de transexuais e
finalmente viu uma. Cara, sei lá. Vai saber. Quem sabe como falar
dessas coisas sem faltar com o respeito, então sei lá, que se dane, a
questão é que James precisou de um minuto depois de ela ter ido
embora para cair a ficha de que essa era a questão com ela. Só que ela
já tinha ido embora, certo? Ele pensou tipo: eu tenho o comprovante
do cartão, quem sabe poderia fazer alguma parada hacker com isso se
eu fosse um tarado. E se ele tivesse tempo, energia e foco para
aprender a fazer paradas de hacker. Em algum nível, faz tempo que
quer aprender essas paradas. Então.
11
Maria não volta ao Wal-Mart na mesma hora. Vai andando até o carro
de Steph, senta e vira a chave. Não se tocou que teria sido legal
encontrar uma árvore para estacionar embaixo, então o carro está
superquente e ela por um segundo agradece não ter levado seus jeans
cortados para usar, porque se estivesse de shorts teria literalmente
queimado a parte de trás das coxas no banco. Talvez pudesse tirar o
saião que está usando por baixo da saia mais curta, mas nesse caso
ficaria nervosa por causa das partes dela. A saia laranja não é
transparente, mas também não é grossa, e até veludo faz dobras. Então
ela fica sentada dentro do carro, com o pé sobre o pedal do acelerador
e do pedal pegajoso do freio, sem dirigir. Esperando o ar-condicionado
resfriar o carro.
O ar-condicionado do carro de Steph é mais ou menos, mas
funciona. O carro todo parece tipo um sólido de Platão, talvez, se é
que isso existe. Tipo, é meio velho e está meio detonado, mas não
realmente velho nem realmente detonado, e nada nele está realmente
quebrado ou é particularmente eficiente. O ar funciona, mas nunca
chega a esfriar de verdade. Dá para acelerar, mas nem tanto se for na
subida.
Ela está pensando: eu deveria ir, vamos lá. Mas algo está puxando o
fio de telefone que conecta seu coração e seu cérebro. O fio está mais
esticado que de costume. Em algum nível, ela está pensando: Maria, é
isto que está acontecendo, é isto o que você está fazendo, é
justamente este o objetivo dessa viagem. Essa coisa. Bem aí.
Ela quase atravessou o país inteiro tentando entender que porra
está errada com ela: por que não consegue estar presente numa
relação, por que não consegue administrar o próprio dinheiro. Por que
não consegue sequer tomar uma injeção de quinze em quinze dias.
Parece claro que isso tem alguma coisa a ver com ser trans, e
provavelmente com o jeito como ser trans interrompe o
desenvolvimento humano normal, mas em vez de empacar no estágio
anal ou sei lá o quê, você acaba empacando no estágio pré-
adolescente, no estágio Nickelodeon, no estágio eu sei me cuidar mas
me cuido pessimamente. Esse é o motivo óbvio pelo qual ela surtou e
comprou um monte de droga com a qual, na real, ela é cagona demais
para brincar, depois tentou sumir, e é por isso que continua
carregando o celular, lendo as mensagens de Steph, Piranha e Kieran e
pensando é, hoje à noite, vou responder hoje à noite, quando parar
para comer com certeza vou avisar a todo mundo que não morri. Só
que nunca faz isso. Nos últimos dois dias ela vem carregando o celular
no acendedor do carro, mas não o liga mais do que o tempo necessário
para reler as mensagens. Steph declarou o carro roubado para a
polícia. Kieran é desagradável. Piranha está com saudades do blog
dela, o que parece meio sarcástico.
O fato central disso tudo é que Maria é muito boa em ser trans.
Talvez isso seja só relativo a outras pessoas, mas ela se tocou dessa
única coisa e é boa nisso. As cerca de duzentas pessoas que leem seu
LiveJournal concordam. As mulheres trans ficam: Nossa, como você
disse isso bem, e as pessoas cis ficam: Nossa, nunca pensei nisso
assim. Maria é capaz de explicar para você exatamente o que
entendeu, como entendeu, e é capaz de farejar a cisnormatividade
num raio de tipo cem metros. Só que ela é péssima em praticamente
todo o resto.
Sentada ali, num carro quente, no estacionamento de um Wal-
Mart debaixo de um sol escaldante do início da tarde, ela pensa: eu
posso não saber porra nenhuma sobre a minha própria vida; aprendi
muita coisa com Steph sobre sexo, sobre comunidade, sobre ponto de
vista, sobre ser queer e sobre um bando de outras coisas realmente
importantes, mas nada sobre o que fazer quando alguém me olha no
metrô, ou sobre o que fazer quando não tenho como pagar o aluguel e
já é dia 3 e eu só vou receber dali a cinco dias, e tenho medo de ligar
pra minha mãe e sei que em teoria a gente tem uma comunidade que
apoia seus membros, mas na prática o que eu vou fazer, meter um
botão do PayPal no meu blog? Acho que isso nem seria mais cara de
pau do que dar uma festa para operar os peitos, mas agora, neste
momento, neste carro e sem computador, meter um botão do PayPal
no meu blog não vai resolver nada. Até aqui, essa escapada ridícula do
centro do universo não me ensinou nada sobre como viver uma vida
pós-transição, e com certeza não parece que eu vou conseguir chegar
em Oakland ou São Francisco, ou subir até Portland, Seattle ou
Olympia, e encontrar alguém lá que vai sentar comigo e explicar o que
preciso fazer para existir como uma pessoa tridimensional que cuida
do próprio corpo, da própria mente, da própria vida, dos próprios
amigos e dos próprios amores, e que é capaz de existir numa relação
com outra pessoa. Para existir como alguém que sabe o que está
sentindo e consegue expressar isso para uma outra pessoa.
Maria conhece gente que fez a transição anos antes dela, e até
algumas pessoas que começaram a transição tipo uma década antes
dela. Essas pessoas não são todas fodidas da cabeça. Mas tampouco são
budas. Houve épocas na sua vida em que ela pensou nelas como
budas, depois se decepcionou quando elas explicaram que a sua
iluminação consiste nas mesmas banalidades nas quais toda
iluminação consiste: Foda-se o que os outros acham, e sei lá, cara, Não
existe centro no centro das coisas. Tipo tá, que legal, mas depois
como você faz para consertar o estrago que uma porra de uma vida
inteira cagando para si mesma fez com você?
O painel parece ter esfriado o suficiente para ser tocado quando ela
pensa tá, não existe epifania. O único jeito de ser um buda é
simplesmente ser um buda, ignorar as paradas que estão no caminho
para virar um buda. Então ela pensa tá, se a iluminação está
simplesmente sentada aqui, dentro do carro comigo, no meu colo,
sem peso e sem violência, então tudo bem, iluminação. Tudo bem.
Talvez aquilo de que Maria precise não seja ficar olhando para o
próprio umbigo e sentindo raiva de si mesma por ser uma inútil.
Talvez o que ela precise fazer seja tirar as porras dos olhos do espelho
por vinte minutos e prestar atenção em outra pessoa: em alguém que
de fato pudesse usar o pouco que ela de fato entende, a pouca
sabedoria que ela possui. O que ela provavelmente deveria estar
fazendo agora era sair da porra do carro. Ocorre-lhe que, se o cão e o
gato que ela disse para James H. que estavam dentro daquele carro não
fossem embelezamentos retóricos, mas tivessem sido mesmo
companhias imaginárias de sua viagem, talvez ela não estivesse se
sentindo tão incomensuravelmente esquisita e improdutiva agora,
talvez pudesse simplesmente ter passado um tempão debatendo
aquelas paradas com um cão e um gato imaginários, e não com um
dedo indicador muito real, encarquilhado e cansado girando o botão
do rádio até quase cair.
O botão do rádio deve ser a superfície mais limpa do carro, e ela
pensa tá, eu vou lá conversar com aquela menina e dizer para ela que
ela é uma menina, e ela vai dizer Que nada, eu não sou menina, e eu
vou dizer Não, você é menina, e ela vai dizer, Pois é, eu só disse que
não era menina porque eu sou menina, mas parece que seria
impossível sair deste corpo e desta situação social e ir para um corpo
que fosse lido como feminino e ter amigas e amigos que me lessem
como mulher, e eu direi Pois é, vamos conversar sobre isso, eu tenho
várias opiniões sobre o assunto, e ela vai dizer Legal, e eu vou dizer
tipo É, você é jovem e não é tão alta assim, e pelo visto a puberdade
praticamente não passou pela sua casa, vamos começar uma terapia de
reposição hormonal já, e ela vai dizer Cara, sei lá, e a gente vai
conversar, e ela vai chorar, e eu vou criar um LiveJournal para ela
poder processar tudo o que está sentindo e aí vou embora e com
certeza vou aprender alguma coisa sobre mim mesma também.
Ela desliga o motor, mas abre um pouco a janela. Então abre as
outras janelas, tranca a porta e volta a atravessar o estacionamento.
12
Dez minutos depois de Maria ter ido embora, bem quando James
tinha se conformado com o fato de que nunca mais veria aquela
garota, ela reaparece andando pelo corredor na direção dele. Maria
Gri ths, caralho, a Rainha da Porra Toda. Seu rosto exibe uma
expressão que é meio difícil de encarar, como se ela tivesse quase se
convencido de que é uma pessoa cool e está no controle. Mas não cem
por cento. Tipo quase não dá para ver que ela está apavorada.
James H., diz ela quando alcança a seção de música e filmes. Sua
voz não soa apavorada. Eu sei que a gente não se conhece nem nada,
mas estou na estrada faz tempo e na real não tenho conversado com
ninguém sobre nada em lugar nenhum, faz tempo, e agora que parei
numa cidade de verdade estou pensando em ficar um pouco, mas não
conheço ninguém aqui. Só, tipo, você. Eu meio que estava torcendo
pra você poder me mostrar a cidade.
James responde sem pensar: É uma cidade idiota pra ficar. Então
olha em volta. Não é o tipo de coisa que se deva dizer quando se é um
representante público da corporação Wal-Mart.
Quer dizer, diz ele, Ahn, olha, é, pode ser. Na real, não tem muita
coisa pra mostrar, mas não tô fazendo nada mesmo.
Ele pensa muito claramente que, embora seja esquisito uma pessoa
desconhecida simplesmente aparecer e pedir para colar em você,
principalmente uma desconhecida que parece uma assassina, aquela
talvez seja a única chance que ele vai ter de, tipo, conversar com uma
mulher trans de verdade, ainda que ela seja uma assassina mesmo. Seu
pensamento seguinte é um longo uau, mas o que vem em seguida é
uma coisa vaga, tipo é óbvio que ela não sabe sobre ele ou sobre
qualquer questão relacionada ao gênero que ele possa ter, e é óbvio
que ele não pode deixá-la perceber que sacou que ela é trans porque
obviamente isso seria uma baita falta de educação. E isso vai ser um
lance meio complicado de navegar, certo? E aí, depois de pensar essas
coisas todas, ele acaba chegando na primeira coisa em que deveria ter
pensado, que é tipo: o que Nicole ia pensar se ele não pudesse
encontrar com ela hoje? Uma única noite em toda a sua desolada
união ou sei lá, e nesse único dia entre uns setecentos dias, ele meio
que sair com aquela outra garota?
Então ele fala depressa: E eu tenho namorada e tal…
Ela ri.
É, tanto faz, James H., não se preocupa, em primeiro lugar eu nem
saio com caras — James se retrai e tenta disfarçar — e em segundo
devo ter dez anos a mais que você, então a gente tipo nem está na
mesma divisão de namoro. Tecnicamente falando. Eticamente falando.
Tranquilo, diz ele. James sente vontade de pedir isso por escrito
enquanto pensa uau, ela curte garotas! Se você lê algumas coisas na
internet, você sabe que existem mulheres trans que curtem garotas, e
é um pouco aterrorizante pensar nisso porque, se é possível ser trans e
curtir garotas, então tipo, isso torna mais possível ele poder ser trans,
tipo legítima e verdadeiramente trans, coisa em que ele não quer nem
pensar e esse obviamente nem é um argumento muito convincente. É
uma possibilidade. Enfim. Mas ainda assim James pensa: obrigado,
Divina Providência, por jogar no meu colo essa trans gata, esquisita e
sapatona, do nada, de um jeito totalmente não sexual.
Ele pensa: mas vai ver eu a Nicole estamos até terminados. James
só partiu do princípio de que a veria dali a um ou dois dias, de que
nada aconteceu e de que estariam juntos outra vez, como sempre
acontece, mas agora pensa: na real, isso importa. E então se dá conta
de que peraí, putz, eu já disse em voz alta que tenho namorada. Essa
evidentemente é a manobra defensiva clássica quando uma garota
flerta com você: nem pensar, cara, eu tenho uma namorada secreta!
Ela mora em, ahn, em Olympia! Ela faz faculdade. Mas James já estava
pensando em Nicole e ele não queria namorar ninguém nunca mais,
então ela é uma boa desculpa, mas na verdade ele também meio que
tem um relacionamento com ela. Na vida real.
Maria pergunta que horas ele sai, e em vez de responder com uma
piadinha idiota James diz: Acho que daqui a uma meia hora.
Tá, diz ela, estou num carro verde feioso bem no final do
estacionamento, com um monte de adesivos constrangedores colados
e que não é lavado tem um tempo.
E tem um cachorro e um gato.
Haha, é, diz ela. Um cachorro e um gato. Isso.
Meia hora mais tarde, James bate o ponto de saída e encontra o
carro dela na hora. O estacionamento do Wal-Mart de Star City nunca
fica lotado. Ela está sentada debaixo de uma árvore em frente ao carro
verde, toda suada.
Oi, diz ela.
Oi.
Maria e ele passam alguns instantes se entreolhando, a
integralidade do pânico em relação ao que está prestes a acontecer
parecendo uma presença física no ar que os separa, antes de James
quebrar a tensão com um comentário inteiramente amável: Você está
com calor, hein?
Pois é, cara, diz ela. Só que estou num dilema, sabe? Sou feminista
o suficiente pra não raspar as pernas tipo nunca, mas não feminista o
suficiente pra de fato deixar alguém ver.
Mas você está tipo de suéter, de jaqueta e tal.
Ela faz uma pausa e então diz: James H., você já passou umas duas
semanas usando as mesmas roupas?
Ele diz, tipo: Acho que não, e ela diz: Você meio que se acostuma
com elas, e quanto mais tempo passa sem tirar nada menos quer fazer
isso. Tipo o Homem-Aranha e a roupa do Venom, sabe? É a mesma
coisa.
James tenta acompanhar, mas já está começando a se perder.
Precisa fumar um.
Eu sei quem são… o Homem-Aranha e o Venom, diz ele.
Então escuta, o que as pessoas fazem por aqui? Tem um lago onde
a gente possa ir tomar cerveja ou tipo uma ponte onde o pessoal fica
fumando coisas esquisitas e se queimando com cigarros?
Ahn, tem um rio. Mas é uma merda.
Já entendi, James H., diz Maria. Tudo aqui é uma merda. Mas neste
momento eu não estou a fim de dirigir mais nem um metro na direção
do Pacífico, e o que mais a gente pode fazer? Ficar aqui sentado e fazer
uma sauna de maconha dentro do carro?
James diz: Bom. Na real…
13
Tá, Maria não tinha a intenção de ficar tão doidona a ponto de não
conseguir ter uma conversa de verdade, mas feito um Maquiavel
chapado conseguiu mesmo assim direcionar a conversa para assuntos
sérios. Mesmo chapadona ela entendeu na hora que a relação daquele
menino com a namorada não era o problema. Nicole devia ter
dezenove anos e ser bem legal e estar muito à frente de James em
matéria de quase tudo. James só não sabe como estar numa relação
porque não sabe ser ele mesmo, e ninguém tem como ser uma das
pessoas numa relação se estiver ocupado se recusando a ser uma
pessoa.
Certo?
E aquele apartamento não parece o apartamento de uma pessoa.
Não que seja o apartamento padrão de um garoto de vinte anos: não
tem uma pia lotada de louça suja, nem cheiro de suor. Parece um não
apartamento, um apartamento fantasma. Tem literalmente uma
luminária no teto, um futon, uma mesa de computador, uma cômoda
de criança bem detonada e um home theater precário com uma
imensa televisão de tubo velha de vinte e sete polegadas. Há indícios
que demonstram que é o apartamento de um Cara Jovem: alto-falantes
tão grandes que parecem fora de lugar, conectados ao aparelho de som
que brilha mais do que qualquer outra coisa na sala. A grande e bem-
organizada coleção de DVDs. E todos Filmes Clássicos, além disso, em
vez de séries completas de anime ou coisa assim: filmes pretensiosos e
totalmente entranhados em construções de valores patriarcais, mas
pelo menos não eram filmes esquisitos e chatos.
Ela leva um segundo para entender como um espaço tão
esparsamente ocupado por coisas pode parecer abrigar qualquer tipo
de vida. Então entende: é porque está tudo saturado de fumaça de
maconha. A poeira na tela da TV e nas prateleiras de DVDs é
obviamente tanto cinza e THC quanto uma pele velha e as traças de
poeira que adoram comê-la. A fumaça se entranhou profundamente
em todas as superfícies.
Não tem pizza.
A gente pode pedir, pergunta Maria.
Sei lá, cara. Acho que sim. Enfim… tem uma Domino's, mas a pizza
de lá é ruim e cara. Tem uma pizzaria do lado do Wal-Mart, mas acho
que eu meio que estou evitando ir lá.
James não menciona que está evitando ir lá porque está evitando a
namorada. Na real, ele não admitiu isso nem para si mesmo.
15
Tem uma coisa que Maria está acostumada a fazer na internet. Como
na real ninguém quer ser uma mulher trans, ou seja, ninguém acorda
e pensa: uau, talvez minha vida fique melhor se eu transicionar, assim
vou perder a maior parte dos meus amigos e parentes, e o que será
que vai acontecer no trabalho, eu adoraria gastar todo o meu dinheiro
com hormônios e cirurgias, comprar todo um guarda-roupa novo que
no momento eu nem entendo, provavelmente me tornar impossível
de ser amada e depois pôr fim à minha curta vida com um assassinato
sangrento. Na verdade, se existe uma coisa que se ganha com uma
vida inteira de síndrome de Estocolmo com a hegemonia é uma
compreensão plena dos clichês culturais sobre as mulheres trans.
Esses clichês se originaram na antiga prática de dizer a todas as
pessoas que acham que podem ser trans que deviam ter certeza
absoluta de ser trans antes de sequer cogitar comprarem qualquer
roupa ou começarem a tomar bloqueadores de testosterona. É a velha
narrativa, a narrativa do Johns Hopkins dos anos 1970: as únicas
pessoas realmente trans são aquelas que já sabiam explicitamente
desde a mais tenra idade, que são bonitas sem precisar de hormônios e
que não conseguem sobreviver sem transicionar. As mulheres trans na
internet olhavam em volta e pensavam: bom, talvez sobreviver a
primeira parte da vida no papel de um cara cis seja uma estratégia de
adaptação. Talvez se convencer de que a transição seria uma coisa
impossível seja um mecanismo de defesa que permitiu à pessoa
sobreviver ao ensino médio, à família, ao trabalho, mas assim como a
maioria dos mecanismos de defesa, não era uma coisa consciente, e
assim como a maioria dos mecanismos de defesa, se transformou num
padrão do qual a pessoa não tinha consciência, e então, assim como a
maioria dos mecanismos de defesa, em determinado momento parou
de facilitar e começou a dificultar a vida dessa pessoa.
Além do mais, o mundo já evoluiu desde a narrativa segundo a qual
ser trans é algo a ser evitado a todo custo; o mundo evoluiu desde a
narrativa segundo a qual o único jeito de ser trans é ser jovem,
delicada, bonita e curtir homem, e então transicionar e sumir. Hoje
em dia existe uma compreensão bem melhor do que significa ser
trans: você é trans e pronto. O fato de a sua transição talvez não correr
às mil maravilhas por causa do formato do seu corpo, ou do formato da
sua família, ou do formato da sua personalidade, ou da maneira como a
sua sexualidade se moldou não significa que, portanto, você possa
simplesmente decidir não ser trans. Não é algo que a gente expulsa
com a força do pensamento. Expulsar a transgeneridade com a força
do pensamento é um mecanismo de defesa que inevitavelmente vai
falhar, e você estará de volta ao ponto de partida: sendo trans. Só que
mais velha e mais entranhada numa vida que mal passa de um
mecanismo de defesa destinado a impedir você de ser trans no mundo
real. Se você é trans, você é trans, e se você tiver uma obsessão com o
fato de ser ou não ser trans é porque provavelmente você é trans.
Durante um tempo se dizia que a gente precisava ter certeza
absoluta. Depois começaram a dizer, sei lá, cara, parece provável que
você seja trans, você deveria explorar isso. Aí, depois de algum tempo,
quando Maria e as mulheres trans da internet não puderam mais
deixar de reparar que estavam cem por cento corretas nos seus
diagnósticos dos fóruns online, elas começaram simplesmente a dizer:
Bom, você com certeza é trans. Porque, mesmo na eventualidade
improvável de alguém que procura uma comunidade trans para falar
sobre essas coisas não ser realmente trans — o que quer que
Realmente Trans signifique, aliás —, talvez ouvir alguém dizer, tipo,
você é trans, pudesse estimular alguns pensamentos úteis. Tipo: se
você vai decidir seu gênero para o resto da vida com base no que um
ou dois idiotas te dizem online, é provável que você tenha outros
problemas além de um falso diagnóstico de transexualidade. Além do
mais, ninguém disse que você precisava se comprometer pelo resto da
vida com nada.
Então, quando James diz: Não sei, a resposta imediata de Maria é
algo tipo: Eu sabia. Eu sabia. Porra, como eu sou inteligente. É a
oportunidade perfeita de explicar tudo para ele.
Ela diz algo tipo: Uau, você não sabe?
Eu não sei, diz ele. Quer dizer, eu penso nisso. Mas, tipo, olha pra
mim, saca? Eu tenho um emprego, uma namorada. O que vou fazer,
começar a usar vestidos?
Ele baixa os olhos para as próprias mãos. Está segurando o
cachimbo em uma e o isqueiro na outra. Sem realmente pensar no que
está fazendo, James leva o cachimbo à boca. Seu polegar do isqueiro se
move, mas ele então diz: Peraí, nada a ver, não tem nada a ver fumar
agora, e estende o braço e pousa o cachimbo em cima da mesa. Parece
algo bem maduro de se fazer.
18
O mais idiota é que James agora obviamente sabe que transicionar não
é só, tipo, botar um vestido e ir trabalhar. Ele sabe que pessoas burras
e ridículas pensam assim. E já estava se recriminando por ter dito
“uma garota na real” minutos antes. James sabe que isso não se diz.
Mas é estranho como é difícil falar sobre essas paradas mesmo quando
você quer falar sobre elas. O cérebro dele simplesmente desligou e
ficou burro.
Mas Maria quer muito falar no assunto.
Ela pergunta: Então você já pensou nisso?
E ele diz: Sei lá, acho que sim.
E ela diz: Tipo pensou sério?
E ele diz: Sei lá, acho que sim.
Os olhos de Maria brilham, como se ela estivesse totalmente
chapada por James estar lhe contando isso, mas o cérebro dele está
congelando mais ainda, como se houvesse uns cem milhões de coisas
que ele quisesse dizer, mas quer dizê-las todas ao mesmo tempo,
então tudo que consegue dizer é: Você quer dar um dois, e: Sei lá, e:
Ahn, e: Hmmm. Ele vê embalagens de pizza e poeira nos cantos do
cômodo, uma camada de poeira cobrindo tudo, e não consegue
processar muito bem o fato de aquela pessoa estar ali dentro do seu
apartamento.
Maria diz: Então você sabia que eu era trans?
E James diz: Sei lá, sim.
Porque obviamente você não diz para uma pessoa que dava para
perceber que ela é trans, e como dizer para uma pessoa que você
sacou que ela é trans, e que o motivo pelo qual você sacou não é nada
que a pessoa tenha feito nem nada em relação a ela, mas porque
provavelmente, em algum nível, todos os dias você olha para alguém e
torce para conseguir ver indícios de que a pessoa é trans, para poder
fazer amizade com alguém que seja trans e possa dizer que você
também é trans e, tipo, resolver esse problema por você?
Mesmo assim ela se retrai, mas depois tipo quase se sacode, como
quando um cachorro está totalmente surtado por ter achado um bicho
morto que já foi atropelado algumas vezes, mas sabe que não vai poder
comer o bicho, então recua alguns passos e se sacode como se
estivesse encharcado, como se tivesse acabado de sair de dentro de
um rio, como se estivesse tentando resetar seu sistema nervoso ou
algo assim. Ou seja qual for o contrário desse sentimento, a versão
ruim de encontrar uma carcaça que você tem vontade de lamber. Seja
como for, ela se sacode e diz: É.
James diz: É.
Ela diz: Bom, ahn, acho que se você quiser falar sobre isso, fiz a
transição muito tempo atrás e sei bastante sobre as paradas trans, e o
principal motivo de eu ter voltado ao Wal-Mart foi porque meio que
adivinhei que você era trans, só que não tive certeza, mas você meio
que parecia, ahn, exatamente como eu era aos vinte anos, e pensei: eu
queria ter tido alguém para conversar sobre essas paradas nessa idade,
em vez de só a porcaria da internet de 2002, sabe?
James tem uma sensação esquisita de pontos que se ligam, ou como
se a névoa de ser um maconheiro imbecil do deserto que trabalha no
Wal-Mart tivesse se dissipado por um instante, tipo, talvez um
momento de clareza ou sei lá o quê. Porque sinceramente, desde que
ela perguntou se ele era trans, foi como se uma névoa tivesse baixado,
tipo não uma fumaça de bagulho, mas algo mais denso, e ele viajou
forte. O que lhe dá vontade de fumar ainda mais, muito embora já
tivesse fumado um monte. Mas foi como se por um segundo um raio
de luz tivesse atravessado essa névoa e várias coisas o tivessem
atingido ao mesmo tempo: ela é trans, mas não é tipo aquelas pessoas
trans bizarras da internet. Sem querer ofender. E: eu acho que acabo
de dizer em voz alta para outra pessoa que eu às vezes penso em ser
uma garota, mesmo que não admita o quanto penso nisso ou com que
intensidade. E, tipo, ele sente ao mesmo tempo dois sentimentos
conflitantes: tipo, por um lado que porra é essa garota tentando me
falar sobre coisas das quais eu não quero falar, mas por outro lado
talvez eu possa entrar no carro dela e sair da cidade com ela, e ir morar
com ela e usar as roupas dela e filar seus hormônios, e quem sabe tudo
ficaria totalmente bem para sempre. Então James se sente um pouco
como se os seus pulmões tivessem ficado sem ar, mas também como
se um tipo novo e melhor de ar tivesse sido soprado para dentro dele,
sabe? Ou algo assim, bem estranho.
Mas tudo que ele conseguiu dizer foi: É, a internet. É, tipo, eu às
vezes penso em ser uma garota, mas eu ia querer ser igual à Nicole,
sabe, não igual àquelas mulheres todas maquiadas que fazem aquelas
piadas chatas e idiotas e usam sapato bege ou sei lá que porra.
É, diz Maria, o problema da internet é que a maioria das mulheres
trans que consegue fazer a transição e continuar sendo escrota, ou
punk, ou esquisita, ou sapatão, ou radical ou sei lá o quê, elas também
mantêm distância dessas pessoas, e existe uma narrativa de “segredo
profundo” que faz parecer que a gente talvez não exista ou que a gente
para de ser trans, mas na verdade o que acontece é que a gente segue
vivendo nossas vidas e sendo esquisita e a gente… acho que eu deveria
falar só por mim, mas eu cansei de falar no assunto. Tipo, eu tenho
um LiveJournal, e conheço umas pessoas do Facebook que encontrei
na vida real uma ou duas vezes, mas em grande parte é tipo, o
Advocate quer distância de mulheres trans que não têm como bancar
plásticas na cara e detestam o capitalismo, então pode ser inclusive
muito difícil encontrar alguém.
James diz: Bom, eu não sei nada sobre capitalismo nem nada.
Maria diz: Bom, vamos conversar.
James diz: A gente está conversando.
Maria ri, e James diz: Qual é a graça?
Tá, desculpa, diz Maria. Não vamos falar sobre capitalismo nem
anarquismo nem nada, só que eu quero sim dizer que essas coisas
acabaram se revelando totalmente essenciais pra minha compreensão
de ser trans, e do feminismo, e da minha localização, e das coisas uós
em relação a ser trans. Tudo isso. Então quem sabe a gente possa
deixar isso de lado por enquanto e depois voltar.
James diz: Tá bom.
Maria diz: Bom, e sobre o que você quer falar?
James passa alguns segundos pensando, depois passa mais alguns
segundos pensando, e então, quando se dá conta de que
provavelmente está doidão demais para pensar em qualquer coisa, diz:
Quer tomar café da manhã?
Maria lhe lança um olhar que significa: dá pra ver que esse menino
bobo está com a cabeça cheia, e diz: Tá, claro, pode ser.
19
A primeira coisa que James e Maria fazem no carro é passar num lugar
que vende café para Maria comprar um café de verdade. É um
quiosque drive-thru na beira da autoestrada, e ela fica um pouco
chateada por não venderem bagels. James não compra nada, e ela diz:
Ah, você prefere alguma coisa que te chape?, estende a mão para abrir
o porta-luvas e faz um gesto para indicar uma meia esportiva listrada
de azul enrolada dentro de outra meia, enfiada debaixo de uns mapas e
de um par de luvas esfiapadas daquelas sem as pontas dos dedos. Ele
diz: Sério, é aí que você guarda sua heroína, dentro de uma meia no
porta-luvas? Então entram na rota 80 e ele ainda está meio que, tipo,
principalmente tentando entender as coisas que Maria contou lá no
apartamento, tentando entender como falar de si mesmo de um jeito
parecido.
Quer dizer, pensa ele, qual é a minha, afinal? Eu sou um
maconheiro idiota que também é péssimo em relacionamentos, só que
não estou terminado com a minha namorada. Mas essa sensação de
não estar entendendo nada também está se dissolvendo tipo numa
sensação de encaretamento e numa espécie de animação. Ele não
fuma um desde antes do café da manhã.
Então, diz Maria alguns minutos depois de entrarem na
autoestrada. Qual é a sua, James H.?
Ha, diz ele. Tá. Eu acabei de fazer vinte anos. Cresci na cidade de
Star City, Nevada, uma porra de uma cidade imbecil que eu detesto, e
trabalho no Wal-Mart desde os dezesseis. Namoro uma menina
chamada Nicole. Ela é legal, mas a gente meio que brigou e eu devia
mandar uma mensagem pra ela. Minha família também mora aqui, eu
vejo a minha mãe meio que bastante. Sei lá.
Ela meio que fica tipo fazendo aquilo de encarar de forma estudada
e intencional a estrada à sua frente, e ele meio que percebe que ela
quer que ele fale sobre alguma parada de gênero ou sei lá o quê, só que
James não faz ideia do que dizer. Toda vez que ele meio que encontra
algo concreto para mencionar — tipo masturbação, ou sexo, ou
fantasias, ou quando ele chorou na fila do banheiro dos meninos na
colônia de férias quando tinha oito anos — parece haver oito ou doze
coisas a dizer a respeito e todas importantes, mas, como não consegue
escolher uma, James não diz nada. O sexo com Nicole? O vestido no
seu closet? A pornografia nada a ver na internet? Será este o momento
de explorar se fumar maconha feito um doido é uma fachada para seja
lá que porra for? Que se foda tudo isso. E tipo… quanto disso tem a
ver com aquilo que Nicole vive falando sobre como ela gostaria que
ele tomasse uma decisão? Está tudo interconectado demais para ele
sequer começar a esmiuçar ou debater. James traça uma linha na
poeira do painel, bem ao lado do duto de ventilação, expira, vê que
seus dedos pálidos e magros estão tremendo, então inspira.
Ele diz: Você sabe o que é autoginefilia?
Maria solta uma mistura de expiração e um Aaaaaah. Tipo ah, que
pena. Mas o que ela diz é: Sim, eu sei o que é isso.
Tá, diz ele. Bom, eu às vezes penso tipo, será que eu tenho
autoginefilia? Ou será que sou autoginefílico, se é que isso existe?
Faz-se um silêncio tenso e prolongado, e James sente vontade de
tirar sua maconha da bolsa e simplesmente fumar ali mesmo, naquele
exato instante, só que não dá para mudar de assunto desse jeito. O
silêncio perdura por um tempão, mas provavelmente nem por tanto
tempo assim, e então Maria ri. Tipo, ri bastante. James pensa: você tá
de sacanagem comigo, mas não diz isso em voz alta.
Maria diz: É, eu sei o que é isso. Eu, ahn. Como assim, você é
autoginéfilo?
Não sei, diz ele, sentindo-se na mesma hora encurralado e bravo, o
que talvez seja meio esquisito. Tipo, ela acabou de corrigi-lo, meio
que de um jeito sutil, mas pouco importa, é mais do que isso. Só que
essa porra na verdade não tem graça nenhuma e está arruinando a sua
vida, então ele diz: Não sei, é tipo, eu curto mulher e tal, mas acho
que tipo, principalmente o que… o que me dá tesão é… ser menina?
Tipo, não só ser menina, mas tipo. Você sabe. Sei lá, é complicado.
Ele se dá conta de que está zangado e olhando com raiva pela
janela, incendiando cactos com a raiva de seus olhos estreitados de
fúria ou algo assim.
Maria diz: James H., vamos falar sobre autoginefilia?
23
Claro, resmunga ele, sem nem sequer saber por que de repente está se
sentindo uma merda tão grande assim.
Escuta só, diz ela. Quando eu era mais nova, era superfácil
simplesmente não entrar em contato comigo mesma ou com o que
estava acontecendo. Eu podia usar roupas sem forma definida, ter
relacionamentos com pessoas nos quais só falava sobre bandas e video
games e, sabe como é, sobre nada, e que nunca iam mais fundo do que
isso. Era tudo superfácil, né? É desse padrão de alienação que eu
estava falando mais cedo. Quando as pessoas acham que você é um
cara, elas meio que esperam essas coisas de você. Mas a única ocasião
em que eu não conseguia mentir pra mim mesma sobre quem eu
queria ser, e como eu queria ser, e tipo a forma na qual eu precisava
existir no mundo se eu quisesse de fato existir nele, era quando eu
estava me masturbando.
Os olhos estreitados de James se arregalam bastante diante do fato
de aquela garota que ele conheceu na véspera estar falando sobre
masturbação, mas não diz nada.
Eu pensava em ser menina quando me masturbava, diz ela. Tipo,
assim que comecei a me masturbar. Durante anos achei que fosse por
ter uma perversão, uma tara que nunca, jamais deveria contar pra
ninguém, certo? O que era triste. Na real, eu não pensava em nada
especificamente misógino nem com qualquer outra conotação escrota;
eu só queria ser mulher, o que a princípio é rotulado como, entre
aspas, uma “perversão”. Certo? Tipo: a única forma de sexo não
pervertido é ser um cara, ficar de pau duro olhando os peitos de uma
garota e depois pôr o pau duro na vagina dela. Mas olha só, essa porra
é toda culturalmente construída e culturalmente conotada… blá blá
blá. O que eu estou querendo dizer é, tipo: daí eu entrei na internet e
comecei a consumir uma pornografia feita por pessoas que
supostamente tinham a mesma tara que eu e pensei, tipo: por que
tudo isso é tão imbecil e misógino e mal escrito, e simplesmente, tipo,
nojento, mas como na verdade não existia muito material erótico de
mudança de gênero que não fosse inteiramente escroto, eu acabei
passando uma porrada de tempo numas paradas totalmente sinistras e
uós. Levei anos pra entender que as coisas que dão tesão nessa
pornografia uó, a troca de poder, os gestos, adereços e paradigmas
específicos, tudo isso pode existir independentemente da forma total
escrota como a coisa toda é posta pelas pessoas que criam essa
pornografia.
E adivinha só, diz ela. Tem um bom motivo pra isso acontecer:
sapatonas legais, e acho que provavelmente caras legais, e
provavelmente meninas héteros legais também, sei lá, tanto faz, já
publicaram um montão de trabalhos sobre ter uma tara e ser
responsável! Mas praticamente todo mundo que produz pornografia
com mulheres trans é homem. Tipo, uma pessoa imbuída dos próprios
privilégios masculinos, e de sistemas de poder reificantes nos quais se
está no topo, e de construções profundamente misóginas do que
significa ser mulher, e portanto do que significa e como seria, entre
aspas, “tornar-se” mulher, e tipo essa coisa toda. É complicado e
nojento, mas o fato é que a pornografia é produzida segundo um
paradigma misógino por pessoas que estão inclusive cagando pra
questionar a misoginia. De certa forma elas estão erotizando a
misoginia, o que, tipo, tudo bem se você estiver fazendo isso de forma
intencional e consciente, mas quando está fazendo isso e, ops,
reforçando a misoginia como uma norma cultural, vai se foder. Tipo,
vai se foder mil vezes.
Deixa isso pra lá um pouco, diz ela. A palavra autoginefilia foi
inventada por um psicólogo; foi popularizada por um cara chamado J.
Michael Bailey, que estuda principalmente os desvios da sexualidade.
Eu sei quem é J. Michael Bailey, diz James.
Tá, diz ela. Então: ele escreveu um livro explicando que existem
dois tipos de mulheres transexuais: as transexuais homossexuais, que
eram homens gays antes de fazerem a transição e depois da transição
se tornam atraentes para homens heterossexuais, e as transexuais
autoginefílicas, que simplesmente têm tanto, mas tanto tesão em ser
mulher que decidem se tornar mulheres apesar de serem feias e
impossíveis de serem amadas.
Eu sei de tudo isso, diz James, ainda meio puto, em parte porque
não sabe como falar do que ele próprio sente e em parte por Maria
estar explicando uma porrada de coisas que ele já sabe.
Tá, mas escuta só, diz ela. Vamos ignorar por um instante essa
assimetria esquisita: se você é trans, então tem tesão ou em homens
ou em você mesma. E vamos ignorar por um instante a total falta de
análise feminista: as “transexuais homossexuais” se tornam mulheres
bonitas não por já estarem familiarizadas e à vontade com o fato de
serem objeto do olhar masculino, mas sim por curtirem homens; e
vamos ignorar, obviamente, o fato gritante de os teóricos queer, e
gerações de feministas que os precederam, mostrarem claramente que
sexo e gênero são coisas distintas, e que a sexualidade está vinculada
mas não é produzida por eles; deixando de lado essas coisas todas,
façamos a pergunta óbvia: qual é o paradigma paralelo nas mulheres?
Cadê as autoandrófilas?
Na real elas existem, diz ela, mas a questão é que esses são de certa
forma rótulos legítimos aplicados de maneira equivocada. É a
estrutura como um todo, o quão inerentemente, ao transformar a
conversa sobre a classificação das mulheres trans numa conversa sobre
a sexualidade das mulheres trans, você já determinou que a
característica que define as mulheres trans é a sua sexualidade. A
suposta “ciência” da autoginefilia consiste em criar categorias para
entender por que J. Michael Bailey tem vontade de comer algumas
mulheres trans, mas outras não. Consiste em apresentar as mulheres
trans como homens para poder entender um desvio de sexualidade
masculino, sem nunca olhar para a sexualidade feminina. Alguém
alguma vez já fez um estudo usando mulheres cis como grupo
controle para comparar mulheres trans? Porra, eu acho que não. Além
do mais: mulheres trans atraídas por mulheres que não sejam elas
mesmas existem?
É tudo uma imbecilidade sem tamanho, conclui ela.
Maria parece meio a ponto de chorar ou algo assim, então James
olha para o lado e vê que ela de fato está prestes a cair no choro.
Então ele diz: Ahn, tá bom, porque, na real, não entende o que ela
acabou de dizer.
É que uma vez que você começa a usar os termos dessas pessoas,
diz ela, você está se colocando dentro de uma caixa restritiva criada
por elas, que não deixa espaço pra entender quem você é ou o que
você quer. É uma caixa com os rótulos Cara e Tarado — Segredo
Ruim e Terrível. Quando na minha experiência não deveria ter de ser
um segredo o fato de, se você é mulher, talvez sentir tesão no fato de
ser mulher quando for o momento adequado de sentir tesão; quando,
na real, se você é mulher, seja trans ou cis, faz sentido curtir a ideia de
ser uma mulher na cama. Não é uma tara isso, de jeito nenhum. É tipo
o oposto de uma tara. É a coisa menos tarada que existe, o fato de a
sua sexualidade corresponder ao seu gênero! Então, tipo, a teoria da
autoginefilia só foi criada basicamente pra reforçar a ideia de que as
mulheres trans são homens, de que as mulheres não têm sexualidade e
de que os caras héteros são as pessoas certas para falar sobre a
sexualidade das mulheres queer.
Tá, mas eu não disse que sou trans, diz James. Eu nem sei o que eu
sou, mas sei que a autoginefilia meio que se encaixa, então sei lá.
Bom, é, mas mesmo assim, diz ela, fazendo uma pausa de alguns
segundos. As nossas taras não são simplesmente coisas aleatórias que
caíram na nossa cabeça. Elas nos revelam coisas: querer ser amarrada
em geral tem a ver com os relacionamentos coercitivos profundos,
escrotos e normativos que a gente tem com os diferentes tipos de
liberdade; querer que alguém te bata em geral tem a ver de alguma
forma com vergonha. Na prática são coisas bem complicadas, e
complicadas por causa de vários outros fatores, mas, sendo sincera,
quando não nos permitem ter uma coisa que a gente quer, a gente fica
esquisita demais em relação a essa coisa. Às vezes essa esquisitice
assume a forma de uma tara. Essa tara é mais forte ainda quando quem
está negando é você. A relação entre fetiche e tabu, entende? Seja
você trans ou não. Ter tesão em ser menina faz sentido se você for
uma menina que não tem permissão pra ser menina. É tipo o oposto
de complicado.
James ouve um engasgo ou uma pausa na voz dela que deixa claro
que Maria o considera uma pessoa burra, que simplesmente não
entende que é transexual, então fica só fazendo cara feia sem dizer
nada e ela desiste do assunto. James e Maria passam um tempo sem
falar nada, e ela então põe para tocar o CD de um cara que solta gritos
meio estridentes e guitarras que parecem estar arranhando as paredes
de metal de uma cabana enferrujada. Um horror. James queria já estar
com um baseado bolado para poder fumar ali mesmo, porque na
verdade não dá para andar na autoestrada com um cachimbo aceso. Só
que ele não previu isso.
James pensa que Maria decidiu que ele precisa fazer a transição,
provavelmente muito em breve, e que deveria terminar com Nicole e
parar de fumar maconha, e provavelmente, tipo, usar uma montanha
de roupas todas ao mesmo tempo, pintar o cabelo de vermelho e falar
em monólogos longos e entediantes. Ele meio que pensa: bom, então
foda-se você, mas mesmo assim não consegue se forçar a
simplesmente dizer foda-se e nunca mais falar com ela. James imagina
Maria e ele brigando como fazemos com pessoas amigas, quando
fazemos as pazes depois, mas faz só um dia que ele a conhece e não
tem a menor ideia de como discutir assim. E provavelmente nunca
teve esse tipo de briga com ninguém. Então fica sentado de cara
amarrada olhando feio para os cactos.
Ficar doidão e olhar feio para os cactos: a história de James Hanson.
Escrito e dirigido por Charlie Kaufman.
Para um pouco, diz ele. Preciso fazer xixi.
Tá bom, tranquilo, eu também, diz ela.
24
A verdade sobre a rota 80 é que não tem nada nela; tem, tipo, paradas
de caminhões em cada saída, e saídas de quinze em quinze
quilômetros ou algo assim, mas James nem precisava fazer xixi. Tipo,
precisar até precisava, mas na real ele queria mesmo era ficar doidão.
Tipo sentiu que precisava ficar doidão. Agora. Deveria ter fumado
antes de ter saído de casa, mas o tempo inteiro ficou pensando: cara,
que papo mais intenso, é melhor eu estar careta pra falar sobre isso, só
que agora as paradas ficaram mais intensas ainda e ele está meio que
sentindo que não tem mais condição. Está na hora de ficar doidão. As
últimas vinte e quatro horas foram bem esquisitas. Enfim. De toda
forma, a maioria das saídas da rota 80 naquele trecho têm aquelas
paradas de caminhões grandes da Flying J ou sei lá o quê, e na verdade
não dá pra fumar num nos banheiros imensos dessas paradas, mas na
saída para Lovelock tem um posto de gasolina detonado, todo velho e
empoeirado, com um banheiro masculino e outro feminino no qual só
cabe uma pessoa por vez e cujas portas trancam. Então foi uma
estratégia brilhante: Ah, ei, preciso fazer xixi, vamos parar na próxima
saída. Pelo visto, James é um estrategista brilhante. Quem imaginaria?
Na real, provavelmente todo mundo sabia que ele era um gênio
quando o assunto era maconha.
James e Maria entram no posto, e o lugar está tão desolado quanto
de costume. Maria estaciona junto à bomba e põe gasolina antes de ir
fazer xixi, o que o deixa se perguntando se ela é secretamente rica ou
coisa assim, mas quem se importa. Ele então se distrai pensando que
seria possível criar uma grande e tediosa metáfora sobre quem entra
em qual banheiro naquele posto de gasolina idiota, mas como James
não quer nem pensar nisso ele se tranca no banheiro masculino,
enche o cachimbo e toca fogo. Que se dane. Ele fuma tudo e enche o
cachimbo de novo, mas quando está enchendo pela segunda vez,
James tem um sentimento de consciência e enche só até a metade.
Um cachimbo e meio deveria bastar para controlar qualquer
sentimento.
James imagina a fumaça saindo atrás dele do banheiro num rastro,
como sempre imagina, só que sair do banheiro não é nada demais.
Mas é bom estar doidão. O sol está forte e quente, embora seja
novembro. Não há nada em volta a não ser o deserto, e uma lojinha de
posto de gasolina toda desbotada que deve vender chocolates e essas
coisas. Ele tem uma sensação desolada de longa distância, como se
fosse o fim do mundo e ele e Maria tivessem ido parar ali. Um filme
idiota da série Resident Evil, ou quem sabe até um faroeste das antigas.
James sempre meio que se sentiu inseguro com o fato de não
conseguir se forçar a dar a mínima para filmes de faroeste, visto que
ele próprio é do oeste, mas não consegue abraçá-los nem descartá-los,
não tem nenhuma sensação forte nem para o bem nem para o mal.
Nem sequer acha muita graça em música country, mas é impossível
não absorvê-la pela pele quando se mora em Star City. Certamente
não tem nenhum mp3 do Brad Paisley nem nada disso. Está
encarando a roda de aspecto chique do pneu dianteiro da bicicleta
chique presa na traseira do carro de Maria quando ela se aproxima,
vinda do nada, estabelece contato visual e começa a rir.
Ah, tá, ela diz. Querendo dizer: Ah, tá, você é um maconheiro loser
incapaz de fazer qualquer coisa sem estar doidão.
Ela provavelmente não quis dizer especificamente isso.
Mas James pode ouvir isso na voz dela, então balbucia alguma coisa
e Maria e ele tornam a entrar no carro. O mesmo CD está tocando,
mas evidentemente a música agora é bem mais interessante, e ele
pode ficar sentado escutando e viajando. Depois de um tempo,
quando já estão de volta à autoestrada e ele já passou um tempinho
sem dizer nada, Maria começa a cantar bem baixinho alguns trechos
da letra junto com a música, meio que para si mesma. Ela canta num
timbre meio grave, mas ele não consegue escutar bem o suficiente
para dizer mais do que isso. Não sabe dizer se é a voz de um cara ou
de uma mina, ela está só cantando baixinho.
Mas principalmente ele está prestando atenção em si mesmo, e no
motivo pelo qual, no presente momento, James odeia Maria e a si
mesmo e tudo o mais na real, porque, tipo, a ideia agora era ele estar
vivendo uma aventura maneira, mas tudo em que consegue pensar é
numas paradas muito nada a ver. Nas coisas em relação àquela garota
que parecem bizarras, na barba por fazer que agora sumiu, na testa
idiota que ela tem, nas coisas em relação a si mesmo que ele detesta,
nas coisas da sua relação com Nicole que são boas e pelas quais ele
deveria sentir gratidão. Provavelmente deveria mandar uma
mensagem para ela, mas o problema das mensagens quando ele está
doidão é que ele nunca conseguiu ficar bom nisso. Como na internet
você fica parecendo um imbecil quando usa emojis, só que ninguém
entende o que você está dizendo, se está sendo sarcástico ou o quê.
Ele é bom em ficar doidão — para falar a verdade, talvez melhor do
que qualquer pessoa —, mas nunca consegue decidir como uma frase
numa mensagem de texto vai ser lida, tipo se vai parecer sarcástica,
cruel ou o que seja. Maria provavelmente acha que ele deveria mandar
uma mensagem tipo: Acho que a gente precisa de um tempo, mas isso
o faz sentir mais ainda que deveria mandar uma mensagem dizendo:
Acho que a gente não deve ficar longe nunca. Só que duas noites antes
ele estava pensando: Acho que a gente deveria passar um tempo
separados.
E, na real, Nicole e ele não se veem há dois dias.
James olha para baixo e seu corpo está todo encolhido, os joelhos
junto ao peito naquele banco de carona pequeno daquele carro
pequeno. Ele é razoavelmente alto, o que é importante por vários
motivos, mas está tentando ficar pequenininho.
Enfim. Ele estica as pernas, recua ao máximo o banco e massageia o
próprio ombro. Seus ombros estão doloridos. Quem se importa com
qualquer coisa. Ele não precisa resolver aquilo agora. O cantor está
berrando, falando de como o merchandising nos mantém na linha, e
James está pensando, tipo: na real, isso não é relevante pra minha vida
no momento, mas como não quer mais pensar nele mesmo e naquelas
paradas, ele não diz nada.
Depois de um tempo, Maria pergunta a James se ele avisou à
namorada que estava indo para Reno.
Ele nem sequer pensou em avisar. Estranho, né? Em geral, James
pergunta para Nicole na hora sobre tudo, mas no momento ele não
pensou em nada muito além de, tipo: eu acho que vou pra Reno com
uma pessoa de quem eu achei que gostasse. Talvez em algum nível ele
tenha imaginado que estaria de volta antes de Nicole sair do trabalho
naquele dia. De toda forma, ele responde: Não, e Maria pergunta
como Nicole é.
Ela é legal, responde James. Sei lá.
Só isso?
Como é a sua namorada?, dispara ele.
Tá, é, justo, diz ela. Só que a gente terminou. Mas ela é legal. Ela é
meio, tipo, sabe quando às vezes você conhece alguém que é punk
quando tem catorze anos, aí encontra dez anos depois e pensa: cara,
você tá totalmente diferente, é como se nunca nem tivesse tido uma
fase punk, com esse seu celular e essa sua camisa social e esse seu
corte de cabelo, sabe? Mas às vezes você reencontra dez anos depois
alguma pessoa conhecida que era punk e pensa uau, a sua punkice
cresceu, amadureceu, se desenvolveu e virou uma visão de mundo
obviamente coerente com aquilo em que você acreditava na
adolescência, sabe como é?
James pensa: não, não sei, mas não diz nada.
Steph é sem dúvida nenhuma o segundo caso, diz Maria, só que,
em vez de punk, na real, é como se os cabelos roxos e os bótons de
triângulo de sapatão novinha tivessem se transformado nessa coisa
não exatamente lésbica poderosa, mas nessa coisa queer adulta.
Ela passa alguns segundos pensando.
Acho que é meio assustador, diz ela. Acho que ver sua namorada se
transformar em outra pessoa, mais adulta, mas mesmo assim
continuar sendo ela mesma, enquanto você segue trabalhando no
mesmo emprego de sempre, no mesmo nível de pindaíba e com as
mesmas pessoas que te conheciam anos atrás e que te conheciam
quando você fez a transição. Quando você vê as mesmas pessoas que
via todos os dias desde antes da transição e já passou por uma
mudança social e física imensa, e tem medo de sequer cogitar mudar
ou evoluir de qualquer forma que seja, porque você meio que teve que
viver toda uma bravata, teve que agir como se realmente acreditasse
em si mesma pra poder transicionar.
Tipo: como se livrar dessa bravata pra poder evoluir como pessoa?
Quer dizer, você perguntou da Steph, e olha eu aqui simplesmente
falando outra vez de mim, mas acho que a questão é, tipo: como
transicionar e depois continuar evoluindo como pessoa, pós-transição,
quando parece que você só conseguiu transicionar afirmando bem
alto, mesmo que só pra você, que você sabia quem era, o que queria e
que confiava em si mesma?
Acho que Steph vem passando pelo processo de entender quem ela
é e do que precisa, enquanto eu estou num processo de, tipo, jurar de
pés juntos pra sempre que eu sabia exatamente quem era, que eu sabia
exatamente do que precisava e que tudo isso era importante pra mim.
Eu acho, James H., que antes de ir embora de Nova York eu estava
jurando pra mim mesma que a coisa mais importante na minha vida
era a irresponsabilidade, mas o que eu queria dizer com isso, o que eu
ainda não tinha entendido, era que eu não preciso ser irresponsável
em todos os quesitos. Acho que a minha ideia era dizer a mim mesma
que eu preciso parar de me sentir responsável por todo mundo o
tempo todo, responsável por apresentar essa fachada consistente e
estática. E eu precisava desencanar da ideia de que ser responsável
numa relação significa ser consistente, estoica, e não lidar com os
próprios sentimentos.
Quanta baboseira de macho internalizada.
Mas, sim, diz ela, Steph é demais, é inteligente e boa no que faz;
com certeza é alguém que se manteve fiel aos próprios princípios. Ela
trabalha numa porra de uma clínica pra pessoas LGBTQ nas horas vagas,
cara! Acho que mesmo assim ela foi meio idiota de ter inventado
histórias mentirosas sobre ter me traído ou sei lá o quê, mas acho que
eu não consegui acompanhar ela porque eu não sabia como estar
numa relação, então simplesmente me agarrei à nossa com todas as
forças e torci pras coisas darem certo, mas acabei inevitavelmente
sugando todo o sangue da relação ou sei lá o quê. Puta que pariu.
Mas por que vocês terminaram?, pergunta James.
Putaquepariiiiiu, diz Maria. Eu… eu não sei.
Ah, você não sabe, diz James, subitamente conseguindo assumir a
ofensiva.
Quer dizer, diz Maria. Ela faz uma careta e um gesto como se
tivesse uma porção de pensamentos e ideias e fosse colocá-los em
ordem, e parece estar apenas organizando os pensamentos, mas
depois o tempo vai passando, passando, e ela eventualmente diz: Eu
não sei.
Ah, você simplesmente não sabe?, repete James. Tipo, ninguém
chifrou ninguém, e vocês não pararam de ter interesses em comum e
continuavam gostando dos mesmos filmes, e você simplesmente se
tocou um belo dia e pensou, tipo, bom, até mais, acho que vou roubar
a porra do seu carro e dirigir milhares de quilômetros até a porra de
Star City, Nevada, sem nenhuma porra de um motivo?
Maria faz uma pausa de um segundo, e então diz: É complicado.
Não me diga, diz James, feliz por estar meio doidão, porque sóbrio
certamente não teria conseguido jogar sal na ferida daquele jeito. Você
só roubou o carro dela e saiu fora.
Eu não sei, tá bom?, diz Maria. Puta merda, eu só… Aconteceram
umas paradas, e aí não foi tipo a gente começou de repente a se odiar
nem nada disso. Eu só falei porra, esse namoro não está mais sendo
bom pra mim, e ela falou é, pra mim também não, e eu falei bom. E ela
falou bom, então tá, e aí, em vez de combinar a logística do término
mais importante das minhas três décadas de vida eu fui e saí fora, tá?
Pois é. Uma hora eu vou ter que voltar pra Nova York e pegar meus
livros, meu gato e minhas paradas, mas não, eu não tenho uma
narrativa organizada sobre como a gente terminou.
Então foi você que terminou com ela, diz James.
Ela faz uma pausa mais longa ainda e diz: Foi mútuo.
James fica encarando os cactos enquanto resmunga é, então tá, foi
mútuo. Eu só namorei uma menina a vida inteira e sei que “foi
mútuo” significa que você levou um puta pé na bunda, sua iludida
idiota, sa… mas ele se interrompe antes de dizer sapatão.
Ele ri. Não tem certeza de ter dito nada disso numa voz
suficientemente alta para ela escutar, mas então Maria ri, uma vez só,
um pouquinho, e diz: Foi ela que terminou comigo.
Enfim, diz James.
E a Nicole sabe sobre a boa e velha autoginefilia?, pergunta Maria.
James congela de pânico e diz: Meu Deus, tomara que não, então
diz: Não que eu saiba.
Por que não?
O que você faria se tivesse um namorado que te contasse uma
parada dessas?
Ele passa alguns segundos pensando, tipo: você sabe exatamente
por que não, porra, pensei que você soubesse tudo dessas paradas e
que fosse por isso que estivesse entrando na jogada e tentando me
fazer terminar com a Nicole e transicionar ou sei lá que porra.
Só que, como ela não disse nada, James diz: Porra cara, eu não sei,
como é que se diz uma coisa dessas pra sua namorada?
Mas o que ele está pensando é que o motivo pelo qual está infeliz
com Nicole é exatamente o mesmo motivo pelo qual Maria disse que
estava infeliz com Steph. Pensando: não é por eu ser transgênero, nem
por eu ser uma porra de um tarado, é por eu não dizer, tipo: eu acho
esse filme uma merda. Ou: eu não quero comer isso. Ou: eu quero
usar sua calcinha, quero ter uma boceta igual à sua.
É
É como se uma coisa levasse a outra. Tipo, se ele dissesse: eu não
quero ver um filme ridículo do Drew Carey, Nicole diria: tá, o que
você quer ver, e ele seria sincero e diria: Paris is Burning, ou Hedwig:
Rock, amor e traição, ou Transamérica, ou algum outro filme sobre
pessoas trans que James mal consegue admitir para si mesmo que quer
assistir. E aí, se ele fosse sincero em relação ao filme que quisesse ver
quando Nicole vai na casa dele, o castelo de cartas inteiro desabaria e
isso o levaria a ser sincero sobre o tipo de roupa que ele quer usar, e
sobre o tipo de corpo que gostaria de ter para poder ficar legal nessas
roupas, e depois viriam perguntas sobre o tipo de sexo que ele quer
fazer, um lance que ele nem sequer sabe responder, e é então que tipo
a ficha toda cai, de que todas as paradas de que Maria estava falando, o
tempo inteiro, resumiam exatamente a forma como ele se sentia.
Tipo, os detalhes eram diferentes. Um pouco. Mas tipo, o que minhas
taras estão me dizendo? Por que sou tão incapaz de conversar com a
Nicole? Ela pergunta com toda clareza, o tempo inteiro, o que eu
estou pensando e o que eu quero, mas eu nem sei como dizer pra ela,
mesmo que as respostas fossem coisas que ela quisesse ouvir.
Mas o que ele diz, meio que por despeito, é: Enfim, Maria. E as
suas taras, quais são? O que elas te dizem sobre você?
25
Ela não diz nada. Por, tipo, uns quarenta minutos ou algo assim.
26
Ele não consegue pensar num filme sobre o qual falar: odiou todos os
que assistiu nos últimos um ou dois anos, e aqueles de que gosta de
repente parecem profundamente idiotas. James e Maria ficam em
silêncio e então, quando mal tinham entrado em Reno, Maria para no
estacionamento de uma pequena lanchonete de burritos e diz: A gente
precisa comer alguma coisa. Estou sendo esquisita porque estou com
fome. E você?
Acho que sim, diz James. Ele nem tinha pensado nisso.
Mas ela desce do carro antes de conseguir responder direito e entra
direto no restaurante. Ele a vê pelo janelão que ocupa a fachada do
lugar, olhando o cardápio acima da bancada do caixa, que é tipo um
cardápio de McDonald's só que talvez um pouco mais engordurado,
com a gordura acumulada escurecendo os cantos e aquelas letrinhas
de plástico que se encaixam em fendas horizontais de um lado até o
outro. A gordura escurece o espaço embaixo dos caixas, os cantos das
mesas e sei lá mais o quê. Na real, não dá pra ver, mas é essa a
impressão que se tem olhando pela janela.
Ele leva alguns minutos tentando organizar os pensamentos, mas
quando ergue os olhos Maria está em pé diante do guichê do
restaurante, olhando para ele lá fora, segurando uma nota de vinte
dólares e apontando para o dinheiro. Está comunicando: entra aqui,
porra. Eu vou te pagar o almoço, seu idiota.
Assim que entra, o que ele está pensando é: será que as pessoas que
trabalham aqui sacam que Maria é trans? E tipo, se sacam, o que elas
acham de mim? Parecia quase, tipo: elas com certeza sabem que Maria
é trans, portanto com certeza sabem que eu sou, tipo, seja lá que porra
eu for. Tipo, uma espécie de trans ou sei lá. Tipo, não era só que elas
talvez sacassem que eu curto o tipo de pornografia constrangedora
que eu curto. Era tipo: elas talvez saquem alguma coisa muito mais
constrangedora e fodida sobre o ser humano fake e problemático que
eu sou, ou algo assim. Vai saber? Mas ele não consegue nem se
concentrar no cardápio acima do guichê. Fica pensando, tipo: eu
conheço essas palavras, mas será que estou com fome mesmo?
Maria já está sentada em uma mesa, e quando ele olha na sua
direção ela diz: Pede o que quiser.
Eu nem sei o que pedir, o que eu devo pedir?
E ela diz: Porra, nachos, claro.
Então ele pede nachos. Ela bebe uma Corona, e ele pensa puta que
pariu, como eu queria tomar uma cerveja também, mas ele só tem
idade para entrar para o exército e morrer pelo seu país, não para
consumir álcool. Mas fica feliz por ainda estar razoavelmente doidão, e
feliz por pelo menos ter idade suficiente para apostar. Na mesa em que
Maria está sentada tem uma espécie de videopôquer e ele põe na
máquina uma moeda de vinte e cinco centavos.> E perde na mesma
hora.
Maria e James fazem sua refeição triste em silêncio, mas depois de
uns minutos ela começa a falar.
Então tá, ela diz. Solta o ar por alguns instantes, então recomeça.
Tá bom. O que eu vou dizer é meio sobre as paradas trans, mas é
principalmente sobre eu ser uma porra de uma escrota, tudo bem?
James ri, solta uma risada genuína e legítima, ainda que Maria
esteja falando em voz alta sobre ser trans, e mesmo que ele não
reconheça ninguém no momento e isto seja bem improvável, que
alguém com quem ele estudou no ensino médio possa entrar a
qualquer momento, entreouvir Maria apesar de ela não estar falando
muito alto, e se tocar que ele é autoginefílico. Mas estranhamente ele
meio que pensa: que se dane.
James diz: Tudo, claro.
O negócio é o seguinte, diz Maria. Ninguém mais presta atenção
em J. Michael Bailey. Ele é só um cara que escreveu um livro dizendo
como as mulheres trans são umas pervertidas, o que é algo fácil de
fazer uma editora publicar. Ninguém nunca fica duro vendendo
“senso comum” retrógrado. Mas o camarada dele, Kenneth Zucker,
ainda é bem cotado. Ele tem uma clínica no Canadá e defende, tipo…
Ela faz uma careta e para, consciente de que já começou a fazer um
monólogo.
Olha, você conhece a NPR?, pergunta ela.
Mais ou menos, diz ele.
Umas duas semanas atrás a NPR transmitiu um programa que tinha
uma mulher, médica, que dizia bom, escutem, se a criança de vocês
for trans, vocês deveriam ser legais com ela e apoiar essa criança.
Crianças são espertas. E tinha também um outro médico, Ken Zucker,
que dizia bom, não, na verdade se você tiver uma criança trans o que
você deve fazer é ser bem cruel com ela. Faça a criança chorar o tempo
todo. A gente não tem nenhum indício de que isso funcione, mas você
quer que a sua criança seja uma pessoa pervertida, bizarra e doente
quando ela crescer? Acabar com a criança para ela reprimir tudo e
esquecer como sentir qualquer coisa por décadas até ela se dar conta
de que detestou a própria vida inteira e que precisa transicionar, é isso
o que se recomenda aqui no Canadá.
E a médica e esse cara estavam lá no estúdio da rádio, diz Maria.
Recebendo ligações de ouvintes.
Então eu liguei, né, imaginando que fosse dar a real pra ele, apesar
de a tal outra médica, doutora Ehren-alguma coisa, já estar fazendo
um bom trabalho em matéria de dar a real. Mas eu ia ligar e dizer: oi,
eu sou trans, e você quer mesmo dizer essa porra na minha cara? Quer
mesmo me dizer que a minha vida seria melhor se a minha infância
tivesse sido ainda mais difícil? Apesar de eu saber, por experiência
própria, que as pessoas não escutam o que você diz sobre assuntos
trans pelo simples fato de você ser trans. Ninguém dá a mínima para o
“bem, por experiência própria eu posso dizer que” que antecede o
“aquilo que você pensa saber está errado”. Mas mesmo assim pensei: o
que eu vou fazer, não ligar? Então eu liguei, e o cara, o apresentador
da rádio, me apresentou. Disse assim: estamos com uma ouvinte aqui
na linha, dr. Zucker, que diz ser uma mulher trans da Pensilvância, e
ela discorda totalmente da sua visão. Maria?
E eu pensei: é isso aí! Pronto! Vou resolver essa porra toda de uma
vez por todas! Só que eu abri a boca e não saiu nada, né? Eu tinha
pensado: vou me deixar levar e surtar com esse babaca! E tinha
pensado: quem sabe vou só expor racionalmente a contradição
inerente do argumento dele, né? Só que eu não tinha nem pensado
em uma frase pra começar. Se eu tivesse dito: oi, dr. Zucker,
provavelmente teria conseguido começar. Mas em vez disso eu gelei
diante da misoginia, do etarismo e da transfobia patriarcais e
institucionalizadas e não consegui falar nada. Teve uma pausa
demorada, então Ira Flatow perguntou: Maria, você ainda está aí? Mas
mesmo assim eu não consegui dizer nada, e acho que cortaram a
minha ligação, mas não antes de eu soltar meio que um soluço
patético e triste. Dá pra ouvir online, já fui ver.
Maria se cala, e James meio que deseja que ela continue.
Caralho, diz ele.
Pois é, diz ela.
Ele põe outra moeda na máquina de videopôquer e pergunta: Então
você não conseguiu falar nada?
Nada, diz ela, e então ri e ele se dá conta de que, sei lá, foi legal ter
conhecido Maria, e quem sabe eles vão ficar amigos no Myspace ou
algo assim quando ela for para a baía de São Francisco e ele voltar para
casa. Mas James se dá conta de que não precisa ficar bolado por ela
falar de gênero e opinar, dizendo que acha que ele deveria transicionar
e, tipo, Quem eu Sou, Porra, porque ele não é trans. Tipo pode ser
que sim, vai saber, mas ele certamente não vai fazer transição
nenhuma num futuro próximo. Ele tem uma namorada, tem um
emprego, e apesar de não ser próximo do pai nem nada, como poderia
contar uma porra dessas para ele? Então que se dane. E quando ele se
dá conta disso, de que não precisa ficar todo bolado só porque aquela
garota acha que ele é trans e quer que ele vire mulher ou sei lá o quê, é
como se inspirasse profundamente pela primeira vez em vinte e
quatro horas, e ele então se sente meio que tranquilo ali sentado
naquela mesa. Bolado em algum grau, claro, e com certeza com
vontade de fumar mais um, mas ele vive com vontade de fumar mais
um.
Sentado naquele restaurante xexelento, comendo nachos e pondo
moeda atrás de moeda na máquina de videopôquer, ouvindo o
monólogo de Maria sobre o que ela acha que deveriam fazer em Reno,
ele pensa que se dane. Tudo bem. Está começando a se livrar da
angústia. É bom sentir isso. Ele tomou uma decisão. Recosta-se na
cadeira e torna a perder no videopôquer. Pensa: e daí se metade da
minha turma do último ano do ensino médio se mudou pra Reno, e
provavelmente está me vendo comer nachos com uma transexual
neste exato instante. James começa até a pensar que isso poderia ser
maneiro.
Então tá, diz Maria. Então vamos achar um cassino e dar uma
relaxada, a gente consegue umas bebidas de graça e dá um tempo lá e
pronto, que tal?
Tá, tranquilo, diz ele.
Foi esse o plano todas as vezes em que ele esteve em Reno.
Maria e James jogam fora seu queijo endurecido, o papel manteiga
e o papel alumínio, e James vai na direção da porta do restaurante
quando Maria diz: Peraí, vou fazer uma coisa. Ela atira as chaves do
carro roubado e vai na direção do banheiro, e ele meio que pensa Ué,
mas então sai e se senta no banco de carona. James não se permite
realmente saber o que está acontecendo, mas abre a bolsa que está no
seu colo e tenta fazer parecer que está vasculhando dentro dela, tipo
procurando uma carteira ou algo assim, mas o que está fazendo na
verdade é abrindo o porta-luvas, pegando a meia dela cheia de
heroína, tirando a meia de dentro da meia de fora, desembolando a
meia de dentro, e despejando tipo metade da heroína dentro da bolsa.
Ele não sabe ao certo o que estava esperando. Tipo, só um pó branco
cru embolado numa meia parecia possível, mas improvável. Mas na
real eram só uns daqueles tipos de papelotes de papel encerado muito
bem-feitos e comuns, e talvez ele tenha por acidente pegado mais do
que pretendia, mas que se dane.
Os papelotes se espalham dentro da bolsa dele, e James enrola a
primeira meia outra vez, enrola a segunda meia por cima, estende o
braço para enfiar as duas freneticamente no porta-luvas de novo, fecha
o porta-luvas e fecha o zíper da bolsa. Quando ergue os olhos, tem
certeza de que vai dar com Maria em pé ao lado de sua janela, tipo
com uma arma em punho ou algo assim, mas ela na verdade não está
nem visível. Ele tem tipo cinco minutos, ou talvez mais, para ficar se
perguntando se ela o viu roubar sua droga e está fazendo alguma coisa
horrível. Obviamente alguma coisa sem ser chamar a polícia, embora
talvez alguma outra pessoa tenha chamado a polícia e ela saiba disso e
agora já esteja a três cidades de distância dali. Vai ver a coisa toda foi
uma armação! Mas ela então sai de trás do balcão do restaurante, abre
distraidamente a porta, e tenta abrir a porta do carro. Ele não tinha
destrancado. James aperta o botão para destravar a porta e Maria puxa
a maçaneta ao mesmo tempo.
Isso acontece três vezes até Maria se afastar uns dois passos do
carro, erguer as mãos acima dos ombros, e ele conseguir destravar a
porta.
James escondeu seu rastro de modo magistral, nada está fora do
lugar, ele é o maior criminoso de todos os tempos. Maria vira o carro
na direção dos prédios altos do centro da cidade. Que se dane.
28
Nicole vem pegá-lo umas duas horas depois. Ele mente e não diz nada
sobre Maria, nem sobre a heroína nem nada; diz que esbarrou com
Mark naquela manhã e foi até Reno com ele, depois acabaram se
desencontrando.
Mark não está respondendo as mensagens dele, diz James. Sei lá.
Nicole passa de carro em frente ao posto de gasolina onde ele e
Maria tinham parado para ele dar um dois. O sol já está baixando, mas
não está escuro lá fora nem nada, e James fica pensando se não
poderiam encostar na parada de caminhões antes de Star City onde
Nicole e ele foram em seu primeiro encontro. James pensa se a luz
amarela e a nostalgia poderiam deixar seu corpo inconsequente o
bastante para ficar de pau duro. E se pergunta se tem espaço suficiente
no banco de trás do carro de Nicole para ela pagar um boquete.
Posfácio
Escrever este posfácio foi mais difícil do que eu imaginava. Sinto que
eu deveria ter sacadas geniais não só em relação à literatura trans tanto
anterior quanto posterior à publicação de Nevada, mas também ao que
era ser trans quando escrevi a primeira versão do texto, em 2008, e
como isso evoluiu na última década e meia. Acho que estou me
sentindo meio intimidada; para começar, não existe algo que se possa
denominar uma Experiência Trans homogênea à qual eu pudesse fazer
referência. Nevada foi uma coisa muito específica, num momento
muito específico, e eu me sinto orgulhosa e até meio acanhada pelo
fato de tantas pessoas terem dito que a história as reconfortou, que
clareou seus pensamentos, mudou suas vidas, salvou suas vidas, e de
várias outras formas lhes fez bem.
Já é algo que funciona. Agora a gente vai colar mais uma coisa no
final? Acho que estou com medo de criar uma coisa nova que detone a
coisa original.
Pode soar como uma ironia o tal papo sobre Nevada ter salvado
vidas e feito bem às pessoas. Pode ser que você tenha acabado de ler o
livro pela primeira vez e reparado que o fim não parece resolver
grande coisa. Vou falar mais sobre isso daqui a pouco, mas o que eu
quero dizer é que Nevada sempre teve a intenção de ser mais uma
narrativa do tipo “tá, isso não deu certo” do que uma narrativa que
ensine alguém a viver. Acho que são as especificidades do que Maria
tenta e não consegue fazer — e por que ela não consegue e como não
consegue — que fizeram Nevada bater tão forte em várias pessoas.
Mas como é que eu vou saber? Como na famosa frase de Roland
Barthes escrita em 1967, “Ninguém se importa com o que uma
escritora pensava que estava fazendo”. Seria uma egotrip usar este
posfácio como um espaço para enumerar tudo que eu estava tentando
fazer quando escrevia a primeira versão deste livro em 2008. Além do
mais, eu tenho uma memória péssima e provavelmente teria de
assistir a uma porção de vídeos no YouTube para ver o que eu disse
quando a Topside Press publicou o romance pela primeira vez, em
2013. Então em vez disso quero usar este posfácio para contextualizar
o livro.
As pessoas já chamaram Nevada de “marco zero da literatura trans
moderna”, e embora entenda isso — antes da publicação do livro, acho
que nunca tinha lido um romance com uma personagem trans (muito
menos uma protagonista) que eu no mínimo, tipo, não odiasse —, eu
não me sinto realmente uma visionária genial que inventou uma
literatura centrada em experiências marginais. No melhor dos casos,
essa ideia esconde o trabalho feito por outras pessoas que tornou
Nevada possível. Sendo assim, em vez de pôr o foco na minha própria
genialidade, quero usar este posfácio para nomear e agradecer algumas
das coisas sem as quais Nevada não poderia ter acontecido.
Fictionmania
Camp Trans
Uma grande parte de Nevada teve a ver com processar minha própria
partida de Nova York para ir morar em Oakland em 2007. Oakland
acabou comigo. Quando me mudei para lá, me peguei passando muito
tempo num submundo queer povoado por pessoas formadas em
Smith, que pelo que eu soube era uma instituição péssima com
pessoas transmasculinas na época, mas que ainda demoraria mais sete
ou oito anos para autorizar a matrícula de uma mulher trans assumida.
Não que todas as pessoas queers de Oakland fossem cruéis nem
nada disso. Lá não era o Michfest. Tinha muita linguagem
transinclusiva e muitas gente trans. Mas é que quase não tinha
nenhuma mulher trans além de mim. O que obviamente não quer
dizer que não existissem outras mulheres trans em Oakland. Ou
outras pessoas queer. Só que eu vivia, namorava e socializava numa
comunidade muito limitada, e ninguém mais ali era uma mulher trans.
Eu me culpava por me sentir deslocada. Afinal, tinha encontrado
uma comunidade queer! Eu era uma mulher queer, e aquelas eram
(majoritariamente) mulheres queer! Elas explicitamente aceitavam
pessoas trans! Então por que eu vivia indo embora de festas, reuniões
e espetáculos aos prantos?
Foi só depois de ir embora de lá, depois de dois incidentes com
dois caras trans diferentes que inconscientemente levaram umas
paradas transmisóginas para dentro da minha casa em Portland,
Maine, que precisei reconhecer que a comunidade queer ainda não
tinha chegado lá. Sabem como? Uma penca de boas intenções, mas
nenhuma noção do que fazer com isso. Era, tipo, num dia eu estava
muito empolgada, conversando com amigas trans sobre um livro novo
chamado Whipping Girl (que tem por subtítulo Observações de uma
mulher trans sobre o sexismo e a demonização da feminilidade), e no dia
seguinte estava indo à Marcha das Sapatões, onde umas líderes de
torcida radicais cisgênero ficavam gritando para mim a palavra
“traveco”.
Era exaustivo estar fora de casa como alguém que era lida como
trans. Em retrospecto, eu estava fazendo tudo o que podia para não
admitir que era exaustivo também estar dentro de casa quando
também tinha pessoas queers lá.
Exaustivo e solitário.
Aliás, é esse o contexto de algumas das coisas que Maria diz sobre
caras trans que parecem péssimas uma década e meia depois.
Mas o que isso tudo tem a ver com Nevada?
Nevada faz tanta questão de tratar com honestidade a experiência
trans de uma mulher porque eu estava completamente exausta e triste
com o fato de a minha experiência nunca ser tratada assim. Eu me
sentia invisível para a maior parte do mundo, e invisível também para
o submundo, então o livro foi meio que um grito de que eu, e portanto
nós, existimos.
Por volta dessa época, imprimi alguns exemplares de um zine no
qual reproduzi três ensaios de autorias trans explicando por que nós
queríamos que as pessoas cis parassem de nos chamar de “travecos”.
Fiz o zine para levar na bolsa e dar para as pessoas quando elas
usassem esse termo, de modo a poder entregar um zine em vez de ter
uma conversa emocionalmente exaustiva e muito provavelmente
inútil. Em certo sentido, Nevada foi uma extensão desse zine.
This Bridge Called My Back
Assim que me mudei para Oakland, fui morar numa grande república
chamada Fork in the Rode. Me perdoe, Roland Barthes, por fabricar
um mito, mas éramos tipo onze pessoas numa casa de quatro quartos
na rua 71 Norte. Alguém morava na garagem. E outra pessoa passou
um tempo morando numa cabana de compensado no quintal dos
fundos. Duas pessoas moravam no acesso de carros numa van cujo
motor não ligava. Em determinado momento tivemos um problema
com ratos, mas para fazer isso parecer um problema menos grave
chamamos os ratos de coelhos. Era uma puta de uma zona e era
perfeito. E em determinado momento durante o ano ou algo assim em
que morei na Fork, minha amiga Fischer me emprestou seu exemplar
de uma antologia chamada This Bridge Called My Back, organizada por
Cherríe Moraga e Gloria E. Anzaldúa.
Não terei como fazer justiça a This Bridge Called My Back aqui. Na
data em que escrevo, o livro está de novo em catálogo. Vocês deveriam
ler.
E quero tomar cuidado, porque embora um dos objetivos
declarados de This Bridge Called My Back fosse educar mulheres
brancas de classe média como eu, não se trata de um livro sobre mim.
O que eu quero dizer é: espero ter conseguido aprender com as
autoras que nele contribuíram. O trabalho do antirracismo é um
trabalho que pessoas brancas precisam fazer todos os dias, e This
Bridge Called My Back foi um baque, um chamado à realidade para
meu próprio trabalho antirracista. Sem querer exagerar, o livro segue
sendo uma conquista incrível que todo mundo tem a sorte de poder
ler. Acabei de pegar meu exemplar para folhear um pouco enquanto
escrevo isto, e embora os vários artigos de diferentes autoras (entre
elas, as editoras Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa, e colaboradoras
como Norma Alarcón, Barbara Smith, o Coletivo Combahee River e
Audre Lorde) abordem muitos temas, a obra continua tão vital hoje
É
quanto imagino que fosse em 1981, ano de sua primeira publicação. É
um clássico absoluto. Ponto, parágrafo.
Agora me imaginem em Oakland, em 2007. Um metro e oitenta e
três de altura, tomando hormônios só há uns dois anos. Meu cabelo
era metade louro, metade rosa-choque com as raízes pretas. Lembro
de muita sombra de olho rosa-choque. Eu não era sutil. Mas ao
mesmo tempo queria muito me passar por cis. Ou, mais
especificamente, eu queria ser cis. E o fato de eu não ser doía. Eu era
ofendida por ser trans em público com bastante regularidade e ficava
estraçalhada toda vez.
Então por que não aprendi a me maquiar de modo menos
chamativo, por que não parei de tingir o cabelo? Se ser lida como
trans doía tanto, por que eu não estava me esforçando mais para me
passar por cis? Por alguns motivos. Em primeiro lugar, eu não sabia
como fazer, e admitir essa vulnerabilidade teria sido bem assustador.
Em segundo lugar, e se eu super me esforçasse para ser lida como cis
e fracassasse? Essa parecia ser uma possibilidade mais dolorosa ainda.
Além do mais, eu não acho que já era capaz de articular a armadilha
representada por “eu deveria poder fazer o que quisesse com meu
corpo, mas também não deveria ter de encarar consequências injustas
por causa disso”. Em outras palavras, era aquela coisa da transição de
ter uma localização nova e mais vulnerável sob o patriarcado, mas não
ter ainda realmente aceitado as ramificações dessa localização.
Um fator complicador nisso tudo era o fato de eu ter passado anos
devorando narrativas de liberação queer escritas por pessoas cis. Já
escrevi sobre a forma como muitas ideias conceitualizadas por pessoas
cis para descrever coisas vivenciadas por pessoas cis não se transferem
de forma perfeita para as experiências trans, como o privilégio
masculino. (Mulheres trans têm privilégio masculino antes da
transição? Meio que sim. Caras trans têm privilégio masculino depois
da transição? Independentemente do que Maria Gri ths possa lhes
dizer, a resposta também é: meio que sim.) Uma coisa que eu
aprendia, e para a qual eu não conseguia encontrar linguagem, era que
as regras da liberação para queers cis são diferentes das regras para
pessoas trans.
Por isso eu me sentia tão sozinha na minha comunidade queer de
Oakland.
Continue me vendo. Agora estou lendo a capa bordô desbotada de
uma antologia escrita por várias autoras que na época se identificavam
como mulheres (um salve para Max Wolf Valerio, por ter
transicionado alguns anos após colaborar no livro) e que falam sobre
viver na convergência impossível da vulnerabilidade pública, como
mulheres de cor sob a supremacia branca, e da vulnerabilidade
privada, como mulheres de cor marginalizadas dentro de
comunidades predominantemente brancas de lésbicas, feministas e
outros grupos progressistas/radicais.
A forma como essa experiência era paralela à minha — com
especificidades distintas, claro — foi uma revelação. A dor de se sentir
marginal onde quer que se esteja, e o poder correspondente de
compartilhar espaço com pessoas que entendiam isso. Que entendiam
você.
This Bridge Called My Back é dividido em seis partes principais. A
primeira fala sobre “de que forma a visibilidade/invisibilidade como
mulheres de cor constrói nosso radicalismo”; a terceira fala sobre “os
efeitos destruidores e desmoralizantes do racismo no movimento das
mulheres”. Essas partes, em especial, me proporcionaram uma
linguagem com a qual pensar tanto na minha própria
visibilidade/invisibilidade quanto nos efeitos
destrutivos/desmoralizantes da transmisoginia nas comunidades de
mulheres queer ou coisa que o valha. TBCMB não era sobre mim, mas
estava falando comigo. Em mais de um nível. Estava tanto
aprofundando minha própria noção (e trabalho) de solidariedade
quanto me proporcionando uma estrutura para compreender melhor
minha própria localização.
This Bridge Called My Back me levou a Audre Lorde, bell hooks e
outras pensadoras feministas/mulheristas marginalizadas. Até hoje me
ocorre sentir que, se eu tenho alguma coisa inteligente a dizer sobre
ser trans, essa coisa provavelmente pode ser relacionada de forma
direta ao trabalho delas. E eu sou imensamente grata por isso.
Prettyqueer
capa
Bianca Baderna
composição
Jussara Fino
preparação e leitura sensível
floresta
revisão
Gabriela Rocha
Paula Queiroz
versão digital
Antonio Hermida
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
ISBN978-65-5692-572-1
Acesso eletrônico: 1 arquivo de ePub
CDD 813