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O MÍNIMO SOBRE FILOSOFIA Victor Sales Pinheiro

1ª edição — janeiro de 2023 — CEDET


Copyright © Victor Sales Pinheiro, 2023
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Editor:
Thomaz Perroni

Editor assistente:
Felipe Denardi

Capa:
Guilherme Conejo

Diagramação:
Virgínia Morais

Revisão de provas:
Paulo Bonafina
Tamara Fraislebem
Conselho editorial:
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Silvio Grimaldo de Camargo

FICHA CATALOGRÁFICA

Pinheiro, Victor Sales.


O mínimo sobre fi losofi a / Victor Sales Pinheiro
Campinas, SP: O Mínimo, 2023.
ISBN 978-65-85033-04-6
1. Filosofi a
I. Autor II. Título
CDD 100
ÍNDICES PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO:
1. Filosofi a – 100

www.ominimoeditora.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição por
qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica, mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro
meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.
Sumário
UMA ILUSTRE DESCONHECIDA

AMOR À SABEDORIA

AS DISCIPLINAS FILOSÓFICAS

O FILÓSOFO E SEU AVESSO

VIDA INTELECTUAL E FÉ CRISTÃ

GUIA DE LEITURA

NOTAS DE RODAPÉ
UMA ILUSTRE DESCONHECIDA
A filosofia é complexa e profunda, mas ela não precisa ser obscura e
confusa. No contexto da pedagogia atual, muitos têm um contato
traumático com a filosofia, por meio de uma disciplina escolar ou
universitária em que as idéias filosóficas são lançadas de modo
praticamente aleatório e arbitrário.

Desse desencontro, restam empoeirados na memória alguns rótulos e


clichês filosóficos, como o idealismo de Platão, o dogmatismo de
Tomás de Aquino, o racionalismo de Descartes, o empirismo de
Locke, o materialismo de Marx e o ateísmo de Nietzsche, que
embaçam a compreensão do esforço intelectual dos grandes filósofos
da nossa tradição, que alcançaram um patamar superior de
interpretação e elucidação da realidade e que tiveram um impacto
significativo nas instituições sociais e na cultura.

Se a filosofia fosse um conjunto de idéias soltas, uma especulação


vazia e sem sentido, como explicar o seu prestígio e permanência ao
longo dos últimos 2.500 anos? Afinal,

o que é a filosofia?
Qual é a sua finalidade? Este livro foi escrito como um mínimo para
que comecemos a desmistificar esse preconceito e permitir a
redescoberta da filosofia, com um novo colorido, demonstrando o
impacto que ela pode ter na nossa vida, pela expansão do nosso
horizonte intelectual.

DIMENSÃO EDIFICANTE DA FILOSOFIA


Quando bem apresentada e vivida, eu acredito que praticamente todos
se interessariam pela filosofia, como reflexão radical sobre a
existência e o mundo. Por isso, há mais de dez anos, além da docência
no magistério superior e da pesquisa acadêmica, dedico-me a levar a
filosofia a um público maior, com a intenção pedagógica de contribuir
para sua formação moral e intelectual. Penso que, ao lado da literatura
e da história, a filosofia seja uma disciplina humanista e edificante,
capaz de nos ajudar nos dilemas da nossa vida.

Pessoalmente, valorizo muito a filosofia “profissional”, praticada


com rigor científico na universidade. Com a minha formação
acadêmica de mestrado e doutorado em filosofia, sou professor e
pesquisador da Universidade Federal do Pará, com produção técnica e
especializada de filosofia, sobretudo no âmbito da teoria da lei natural,
de inspiração de Aristóteles e Tomás de Aquino.1

Contudo, nunca me restringi à atividade acadêmica estrita, pois sou o


organizador da edição bilíngüe de Platão (numa coleção de 18
volumes, pela Editora UFPA) — que é o pai e fonte permanente da
filosofia —, e da obra ensaística de Benedito Nunes (em 9 livros, por
várias editoras, como Companhia das Letras, Martins Fontes e
Loyola), um dos maiores filósofos e críticos literários do Brasil. A
importância desses dois autores, Platão e Benedito Nunes, não se
limita à especialidade acadêmica; eles alimentam a inteligência de
todos, tanto quanto a música interessa-nos a todos, e não apenas aos
músicos profissionais e acadêmicos.

A importância desses dois autores não se limita à especialidade


acadêmica, mas alimenta a inteligência de todas as pessoas, tanto
quanto a música interessa-nos a todos, e não apenas aos músicos
profissionais e acadêmicos.

Aliás,

o maior ícone da filosofia, Sócrates, não


a considerava uma profissão a ser
remunerada
e a conferir um status social (como o prestigioso e rentável
magistério dos sofistas), porém uma vocação pedagógica e cívica.
Benedito Nunes, por sua vez, publicava seus ensaios filosóficos no
jornal e palestrava em instituições culturais, conservatórios, museus,
galerias, e não apenas na universidade.

Com essa intenção de divulgar a filosofia, mas sem vulgarizá-la ou


simplificá-la, entre 2015 e 2017, contribuí com ensaios filosóficos no
jornal paraense O Liberal e, em 2016, lancei meu site de cursos de
filosofia, Em 2021, compilei os meus escritos no livro A crise da
cultura e a ordem do amor: Ensaios filosóficos (É Realizações), que
serve também de introdução à filosofia e está consignado na
bibliografia ao final deste trabalho. Neste mesmo ano de 2021, gravei
lives filosóficas diárias no Instagram, transcrevendo-as e organizando-
as posteriormente no no livro Virtudes no cotidiano (Auster, 2022).

Neste sintético livro, eu introduzo a essência da filosofia clássica, de


inspiração platônica, para que você a aprecie e queira me acompanhar
nesta nova fase de difusão digital da filosofia, beneficiada pela
comunicação imediata e interativa de minhas redes sociais como nos
meus perfis de Instagram e Youtube, nos quais você já deve estar
inscrito (caso contrário, sugiro inscrever-se em todos eles agora e
retornar à leitura em seguida).

O APERITIVO DE UM BANQUETE
Para as próximas páginas, não espere longas reflexões filosóficas,
com demonstrações analíticas dos argumentos, apenas um convite na
forma de um aperitivo que aguce o seu paladar para um banquete que
será servido em seguida, caso você se disponha a me acompanhar
nesta longa caminhada, que não tem um ponto de chegada fixo.

Como a dança,

a filosofia é um fim em si mesma, uma


atividade intelectual desinteressada,
que não serve a nenhum objetivo específico, como a diplomação ou
capacitação profissional. Ou seja, ela não tem fim e consome toda a
vida do filósofo autêntico. Por isso que Aristóteles distinguia a vida
prática (voltada aos negócios da cidade, necessários para a
subsistência) e a vida contemplativa (dedicada à atividade intelectual
e científica de compreender o mundo, amando-o pela inteligência).

Um importante filósofo tomista2 do século XX, o frade dominicano


Sertillanges, renovou a atenção a esta realidade da filosofia clássica, a
da vida intelectual, com virtudes morais necessárias, como a
paciência, a perseverança e a amizade, para a conquista das virtudes
intelectuais da concentração, memória, articulação e escrita
(voltaremos a essas virtudes no capítulo dedicado à vida intelectual e
fé cristã).

É claro que o treino filosófico desenvolve enormemente as nossas


potências intelectuais e nos permite pensar e escrever muito melhor,
estruturar logicamente os argumentos com mais destreza e
propriedade. Entretanto, a filosofia é contemplativa,

é uma forma de amor,


que não tem preço e nem prazo. Portanto, ela não se confunde com
uma habilidade técnica profissionalizante, como as ciências em geral.
Ela é teorética, seu fim é conhecer, e não prático-produtiva. Todavia
ela é iminentemente ética, porque enriquece a personalidade de quem
a pratica.

UM PASSEIO APRAZÍVEL
Após uma definição breve da filosofia, procedo com uma descrição
sumária das suas disciplinas, naturalmente fronteiriças e superpostas
umas às outras: as ciências práticas da ética, política e poética e as
ciências teóricas da ontologia e epistemologia. Em seguida, menciono
a dialética da filosofia com suas rivais sofísticas, as antifilosofias que
tendem a neutralizá-la, como o ceticismo e o relativismo. Ao cabo,
proponho um guia de leitura de obras que ajudam a se iniciar na
filosofia, além dos seus principais clássicos.

Aqui, adoto uma linguagem simples e direta, como numa conversa


informal, sem incursões eruditas, aprofundamentos conceituais e
citações (as referências para leitura ulterior constam ao fim).

Com isso, pretendo tornar essa primeira jornada intelectual


agradável, um primeiro passo para uma navegação mar adentro,
posteriormente. Trata-se de um passeio inicial, lembrando os
colóquios de Aristóteles com seus alunos em longas caminhadas,
motivo pelo qual ficaram conhecidos como “peripatéticos”
(caminhantes). É um grande prazer contar com a sua companhia nesta
caminhada intelectual.
AMOR À SABEDORIA

UMA DÚVIDA SUFOCANTE

A filosofia é tão reflexiva e questionadora que ela começa


interrogando-se a si mesma, perguntando que tipo de atividade
intelectual ela realiza. Por isso, é natural que ela enfrente,
recorrentemente, uma espécie de crise de identidade, em que os seus
diversos cultores concorram sobre a sua natureza e finalidade.

Essa característica reflexiva arrisca resvalar num círculo vicioso, que


denigre a sua imagem aos leigos, que, com razão, poderiam afirmar
aos filósofos:

“Primeiro, decidam o que é a filosofia;


depois, convidem-nos a participar dela”.
Se decidimos estudar matemática ou jogar futebol, por exemplo,
precisamos apenas nos inteirar das regras e das finalidades dessas
atividades para começar a praticá-las. Com a filosofia é um pouco
diferente, porque, antes de praticá-la, precisamos tomar consciência
do que ela é. E os próprios filósofos divergem sobre a sua essência.

Essa divergência é explicada pela dimensão crítica da filosofia, que


convida a sempre questionar e problematizar o que já foi conquistado,
o que pode gerar um ceticismo generalizado sobre a própria filosofia,
num gesto que Chesterton (um dos filósofos mais perspicazes e
incomuns da nossa tradição) chamava de “suicídio do pensamento”,
quando o pensamento duvida do próprio pensamento.

A QUINTESSÊNCIA DA FILOSOFIA
Em meio a este mar de dúvidas e incertezas que constituem a natureza
da filosofia, há um consenso que chega a ser uma unanimidade entre
os filósofos: Platão inaugurou uma série de questões permanentes e
incontornáveis.

Desde o seu mais célebre aluno, Aristóteles, passando pelo seu mais
conhecido herdeiro cristão, Santo Agostinho, até o seu mais inflamado
inimigo moderno, Nietzsche, praticar filosofia é dialogar com Platão,
é responder aos seus múltiplos questionamentos. Por isso, o
importante filósofo da matemática Whitehead afirmou, famosamente,
que a melhor caracterização da filosofia européia (ocidental) é que ela
consiste numa série de notas de rodapé a Platão.

Platão é a quintessência da filosofia;


como Bach, da música; e Shakespeare, da poesia. Ele a encarnou de
forma tão pura e perfeita que abriu o caminho para que esta atividade
fosse praticada indefinidamente, depois dele. Note que eu não me
refiro ao conteúdo da filosofia platônica como sendo o definitivo ou o
verdadeiro, mas à forma de praticá-la, como amor insaciável pela
sabedoria, que mobiliza toda nossa vida e inteligência.

O ESTADO DE ÂNIMO DO FILÓSOFO: O AMOR


A identidade intelectual da filosofia é mesmo problemática porque ela
é abrangente e universal e não tem um único objeto de interesse.
Nisso, ela difere das ciências particulares, que se caracterizam pelo
seu objeto de estudo. Ninguém duvida que a aritmética estude os
números; a biologia, os seres vivos; a física, o movimento; o direito,
as normas, e assim por diante.

Em vez de ser definida pelo objeto de análise, a filosofia se


caracterizou, na Grécia Antiga, pelo estado subjetivo do filósofo: o
amor (philia). Mas amor ao quê? À sabedoria (sophia). Sabedoria de
quê? De tudo o que se pode saber, sem exceção.

Quando lemos as obras fundamentais da filosofia, que são as de


Platão e Aristóteles, assusta a amplitude do seu horizonte intelectual.
Tudo lhes interessava, eram cientistas universais, que amavam o
conhecimento de toda a realidade, desde as realidades naturais até os
símbolos e narrativas religiosas.

A definição etimológica da filosofia como

amor à sabedoria,
portanto, não é acidental, produto de uma contingência lingüística,
porém revela a sua essência. Em grego, as palavras sophos e sophistes
eram usadas para referir aos sábios, aqueles reconhecidos pela
sociedade em geral como dotados de um conhecimento abrangente
sobre as ciências e sobre os negócios da cidade (ética e política). Eram
os poetas, cientistas, legisladores, estadistas e oradores, capazes de
dissertar sobre praticamente todos os temas concernentes à religião e à
sociedade.

FILÓSOFO, E NÃO SÁBIO


Pitágoras, no século VI a.C., foi o primeiro a recusar o insigne título
de sábio, que ele certamente merecia, em nome da designação mais
modesta de amante da sabedoria. Com isso, ele enfatiza mais a busca
do conhecimento do que o seu resultado, a sabedoria. Aqui, já se
percebem duas dimensões da filosofia, (1) a da inquirição e
perseguição dinâmica do conhecimento (a zetética e a crítica) e (2) o
resultado estático e cristalizado do conhecimento (a dogmática e a
ciência).

Para facilitar a compreensão didática desse argumento, proponho a


seguinte analogia: é como se houvesse, por um lado, (1) uma
dimensão de pesquisa acadêmica, de produção de novos
conhecimentos a partir da discussão e da crítica dos saberes já
consolidados e, por outro lado, (2) uma dimensão de ensino escolar,
de reprodução dos conhecimentos já acabados e fechados. A primeira
dimensão é ativa, hipotética e propositiva; ao passo que a segunda é
mais passiva, dogmática e reprodutiva.
Por isso, podemos dizer que

toda ciência tem uma dimensão filosófica


na sua origem, expansão e aprofundamento. Quando Albert Einstein,
um dos maiores e mais populares cientistas do século XX, procurou
refutar a física moderna de Isaac Newton, ele agiu como um filósofo,
analisando e criticando uma teoria, tanto quanto Newton havia feito
em relação à física antiga de Aristóteles.

Ao propor a teoria da relatividade de forma consistente e coerente,


Einstein estabeleceu uma hipótese científica de imenso poder
explicativo, que persuadiu os seus pares e por isso passou a ser
reproduzida e ensinada a alunos de física. No entanto, ela também
pode ser estudada pela filosofia, criticada e mesmo refutada. O
filósofo da ciência Thomas Khun refere-se às mudanças
paradigmáticas, que são sempre filosóficas, pelas quais a ciência passa
ao longo das eras.

A VIDA FILOSÓFICA COMO ARTE DO AMOR


Perceba que, em meio à questão epistemológica (relativa à elaboração
de conhecimento científico, sólido, seguro, verdadeiro), desponta uma
questão ética (relativa à prática das virtudes), a da disposição
intelectual crítica, livre e investigativa que exige que o filósofo se
dedique à atividade intelectual ao longo de toda a sua vida, porque
sempre há algo a descobrir e a aprofundar.

O filósofo ama o saber, por isso se dedica a ele de modo integral e


praticamente ininterrupto. É lendária a figura incômoda de Sócrates,
filosofando nas praças e nos banquetes de Atenas, quando todos
pretendiam apenas praticar política, comércio, poesia ou sexo. É que
Sócrates filosofava exatamente sobre essas práticas cotidianas, sobre a
vida boa, a felicidade, como tomar consciência do sentido, da causa
primeira e do fim último de tudo isso. Sócrates perturbava porque
implodia o senso comum acrítico e exigia uma postura autêntica,
baseada no exame da própria consciência e dos valores sociais. O
autoconhecimento é doloroso e não raro traumático na medida em que
rompe com as representações cristalizadas que temos de nós mesmos
e da sociedade. Daí a sua célebre afirmação, registrada por Platão na
Apologia de Sócrates3 :

“uma vida não refletida não é digna de ser


vivida”.
“Amor à sabedoria” é uma definição que registra, muito bem, essa
dupla dimensão, moral e intelectual, da filosofia. O filósofo tem um
compromisso com a verdade das coisas, contudo, para atingi-la,
precisa amá-la e se dedicar a ela, como quem corteja a amada.

Quem ama tem um interesse tão genuíno e intenso que sempre


procura desvendar algo a mais da amada. Ele não se cansa de procurá-
la e cobiçá-la, sente que nunca a exaure. Não seria estranho alguém
dizer que deixou de amar, depois de alguns meses ou anos, porque já
esgotou tudo o que tinha a amar ou que a amada já foi suficientemente
amada? Instigado pela estranha figura de Sócrates, que, ao mesmo
tempo em que dizia que nada sabia, afirmava também que só sabia da
“arte do amor”, Platão refletiu profundamente sobre o amor, como
uma escada de ascensão do desejo erótico às formas mais sublimes de
união intelectual e espiritual com a beleza, verdade e bondade.

Se a República é o diálogo mais completo e influente de Platão,


sobre a questão da justiça na alma e na cidade, e se a Apologia de
Sócrates e Fédon, que narram, respectivamente, a condenação e a
morte de Sócrates, são os mais comoventes, os seus mais belos e
inspirados diálogos são Banquete e Fedro, odes apaixonadas à
potência moral e intelectual do amor.

Se descurarmos por algum instante a realidade fundamental e


ascensional do amor, deixamos de entender o que é a filosofia. Neste
sentido, Santo Agostinho é o maior herdeiro de Platão, porque
também refletiu sobre a dimensão ética e cosmológica do amor, tanto
como peso gravitacional da existência humana, quanto como fator de
explicação da realidade harmônica do mundo, a ser conhecido pela
filosofia e também pela fé no Deus trino que é amor.

É o amor que liga o pólo subjetivo do filósofo com o pólo objetivo


da realidade que ele quer conhecer. O amor filosófico revela a
dimensão subjetiva e objetiva da filosofia. Subjetiva, porque ele
engaja toda a existência do filósofo, numa autêntica “vida intelectual”,
tão bem descrita por Sertillanges. Objetiva, porque ele sai de si e
busca compreender a verdade e assimilar a beleza do mundo que
contempla.

O RISCO DOS REDUCIONISMOS


Quando a filosofia perde de vista o nexo entre a dimensão subjetiva e
interior com a objetiva e exterior, ela pode recair nos reducionismos
modernos do cientificismo (objetivista) e existencialismo
(subjetivista), em que o pólo oposto é neutralizado pela afirmação
exclusiva de um deles.

Por isso, essas filosofias modernas acumularam notáveis


conhecimentos sobre a natureza, por um lado, e sobre a subjetividade,
por outro, todavia raramente conseguiram uni-los de modo coeso e
orgânico. Os resultados extremos desses reducionismos são

ora uma ciência desumana, ora uma


subjetividade descolada da realidade social
e natural.
Exemplo máximo disso é o embate entre a psiquiatria (ciência
médica da dimensão orgânica da mente) e a psicologia (teoria
filosófica de interpretação da linguagem simbólica da alma).

Isso explica, parcialmente, por que as ciências modernas resultaram


em ideologias como o positivismo (objetivista) e o romantismo
(subjetivista), em que a descoberta da realidade natural despreza o
universo subjetivo do homem e, reciprocamente, a análise da
interioridade e da psicologia humana neutraliza a dimensão objetiva e
universal da natureza.

Sem o ideal de totalidade e unidade, a filosofia pode se fragmentar


numa miríade de ciências desencontradas, auto-refutatórias e
mutuamente excludentes. Um dos maiores filósofos contemporâneos,
Husserl denunciou essa crise das ciências, propondo a fenomenologia
como alternativa.

ADMIRAÇÃO COMO ORIGEM DA FILOSOFIA


A origem da filosofia é a contemplação, o gosto que temos por
admirar a beleza do mundo, tentando aprofundar o seu sentido e
investigar as suas causas. Diante da positividade do ser, brota no
coração do filósofo uma gratidão e um maravilhamento,

o desejo de trazer a realidade para dentro


de nós,
pelo pensamento, depois de o mundo se apresentar como colorido e
curioso aos nossos sentidos.

As questões metafísicas fundamentais, a do ser e a do conhecer,


provêm exatamente desse amor à contemplação, ao desejo de
conhecer toda a realidade, de modo verdadeiro, e não apenas aparente.

A admiração filosófica inclina o filósofo ao todo da realidade e ao


conhecimento verdadeiro (científico). Por isso, ele coleciona questões
ontológicas (relativas à ordem do ser) e epistemológicas (relativas à
ordem do conhecer): o que percebemos pelos sentidos exaure toda a
realidade? Não há algo mais a ser conhecido? O conhecimento
recebido pelos sentidos e o recebido pela tradição é mesmo
verdadeiro, sólido, consistente, científico (epistêmico)? Essas
questões, contudo, podem ser formuladas de maneiras diferentes, por
diversos métodos, ou com diferentes abordagens. Isso dá origem às
divisões internas da filosofia, às suas disciplinas. Vejamos agora,
brevemente, como isso se dá.
AS DISCIPLINAS FILOSÓFICAS

DOIS MÉTODOS

H áo dois métodos básicos e intrinsecamente ligados da filosofia: (1)


analítico-conceitual e (2) o hermenêutico-histórico. (1) O
analítico é sincrônico e analisa os conceitos filosóficos de modo
abstrato, abstraído do contexto biográfico, histórico e social do
filósofo, concentrando-se na dimensão lógica dos argumentos, com
seus termos, proposições e silogismos. (2) Já o método hermenêutico
é diacrônico, histórico e dialético, procurando relacionar os autores e
correntes entre si, numa linha de influências e rupturas, pensando a
tradição filosófica como uma sucessão de continuidades e rupturas.

Essa abordagem hermenêutica privilegia a história da filosofia, sua


origem e crises epocais, relacionando-a às situações históricas
específicas, como as guerras, as invenções tecnológicas, as
descobertas científicas e as mudanças nas formas de vida.

O ideal é sempre articular as duas abordagens, alternando


conceituações lógicas com considerações históricas e contextuais.
Mas, como o objetivo deste “mínimo” não é apresentar a história da
filosofia, o que me exigiria muito mais páginas, cabe agora apresentar,
sumariamente, o quadro das disciplinas filosóficas tradicionais,
sempre fronteiriças e interligadas.

UM AMOR ORDENADO
A filosofia é o amor ao todo da realidade e, como a realidade se
apresenta altamente complexa, composta por múltiplas partes
interdependentes, para alcançá-la na sua inteireza, a filosofia precisa
analisá-la por partes. Essa é a origem das tradicionais disciplinas
filosóficas, em que normalmente os cursos universitários são
divididos.
Foi Aristóteles que procurou, pela primeira vez, sistematizar e fundar
essas disciplinas, no entanto nunca descurou as suas inter-relações. Ao
estudar filosofia, é importante nunca perder de vista

a unidade ontológica da realidade e a


unidade epistemológica do conhecimento
sobre ela. Caso contrário, recai-se, facilmente, na fragmentação que
impede a visão do todo, com que Platão caracterizou os filósofos
dialéticos, na República.

A totalidade da realidade a que a filosofia se volta não pode dispersá-


la ou afogá-la. Por isso, é necessário muita disciplina intelectual,
ordem e método para se concentrar em cada uma dessas disciplinas,
uma de cada vez, sempre ressaltando seus nexos de comunicação e
justaposição, sabendo que a luz que se lança sobre uma delas sempre
irradia sobre as demais. Ao longo da história da filosofia, diferentes
filósofos enfatizaram ora uma, ora outra disciplina, e isso é relevante
para a determinação de sua identidade filosófica.

Kant, por exemplo, considerava que não se pode ensinar filosofia (o


resultado dogmático da especulação), mas apenas a filosofar (a
atividade do pensamento que desenvolve as teorias). Ninguém
aprende a nadar fora da piscina, é preciso treinar e testar a capacidade
intelectual diante de problemas reais e relevantes para a vida. Assim,
o maior filósofo da modernidade postulou quatro perguntas
fundamentais: 1. Na metafísica: o que posso saber? 2. Na ética: o que
devo fazer? 3. Na religião: o que posso esperar? 4. Na antropologia: o
que é o homem? Como Kant já trabalha num contexto da crítica à
metafisica aristotélico-tomista, para erigir o seu sistema do idealismo
transcendental, convém partir da primeira organização do saber
filosófico na Antigüidade, que é a de Aristóteles.

CIÊNCIAS PRÁTICAS
Na Metafísica de Aristóteles, o tratado fundacional da ontologia, a
filosofia primeira que ordena todas as disciplinas filosóficas, consta
uma divisão elementar entre as ciências teóricas e as ciências práticas.

Se as ciências teóricas são contemplativas, as práticas estão


interessadas na ação ética e na produção técnica. A razão humana tem
uma dupla faculdade, a teórica e a prática. Pela faculdade teórica,
conhecemos o mundo ao redor; pela prática, tomamos decisões e
orientamos a nossa ação e produção.

A ética clássica reflete sobre o agir humano a partir dos fins (bens)
que ele alcança, na busca pela felicidade, que é um estado de
realização e plenitude.

As virtudes são forças da personalidade,


excelências morais que franqueiam o bem individual e comum. A
ética tem uma dimensão política, porque normatiza, racionalmente, a
conduta social, por meio das leis e das concepções morais da justiça.

Se as ações éticas constituem o caráter do agente, as ações técnicas


são produtivas, interessadas na produção de objetos exteriores, que
podem ser técnicos (pautados na utilidade, como um engenheiro que
constrói uma ponte) e/ou artísticos (pautados na beleza, como um
pintor que desenha um quadro).

As ciências produtivas técnicas são menos filosóficas do que as


artísticas, porque o belo sempre desperta grande interesse filosófico,
pela sua relação com o bem e com a verdade, suscitando questões
morais, psicológicas, epistemológicas e metafísicas.

ÉTICA E POLÍTICA
Uma das expressões mais conhecidas da filosofia é a de que o homem
é um animal político. Cunhada por Aristóteles, ela se encontra no
livro I da Política, tratado de filosofia prática posterior à Ética a
Nicômaco, que lhe serve de pano de fundo conceitual e metodológico.
O homem é naturalmente político não como as formigas ou abelhas,
que coordenam a atividade para a subsistência do grupo, e sim porque
é dotado de razão que unifica o pensamento do grupo em torno do que
é a justiça, princípio que guia a colaboração social.

A política é o conjunto de instituições, não apenas governamentais,


mas também sociais, éticas, pedagógicas, culturais e religiosas que
moldam o caráter de um povo civilizado, isto é, um povo ordenado
que vive numa cidade constituída por leis que regulam as relações
cívicas dos cidadãos livres e iguais (note-se o nexo não só etimológico
como também semântico entre cidade, civismo, cidadania e
civilização). Esse é o fundamento da tradição republicana: um
governo constitucional em que os cidadãos governam e são
governados por si próprios em nome do bem comum.

Diferente do positivismo das ciências sociais modernas, que


pretendem ser neutras de valoração ao descrever a política, Aristóteles
avalia que

o bom governo caracteriza-se por servir


ao bem comum dos governados,
e não aos interesses egoístas dos governantes. Um governo que está a
serviço dos governantes é tirânico e usurpador.

Ademais, o bom governo não se baseia apenas na força e na coerção,


na obediência pelo medo da punição que caracteriza o governo
despótico, mas em leis com as quais concordam os governados ou de
cuja formulação eles participaram, conferindo legitimidade à
autoridade do Estado.

Por fim, o bom governo é um governo “constitucional”, baseado em


leis, que governam até mesmo os governantes. Enquanto os homens
são passionais e instáveis, as leis são racionais e equilibradas,
expressão da racionalidade compartilhada de homens livres e iguais.
A relação entre governante e governado é de cidadania, de igualdade e
alteridade, diferente da relação desigual entre tirano e escravo ou entre
déspota e súdito.

O regime constitucional das leis é um sinal da racionalidade humana.


Obedecê-las é típico do homem virtuoso que procura contribuir para o
bem comum e manter a paz social. Ele o faz voluntariamente, como
parte de sua racionalidade e realização pessoal, e não por medo de
punição. Como explica Adler, o homem bom
não é coagido pelo governo, e por isso o governo não é, para ele, um mal, como o é para o
homem mau.

O homem bom também não sente que sua liberdade é limitada pelo governo. Ele não quer
mais liberdade do que consegue usar sem prejudicar os outros. Só o homem mau quer mais
liberdade do que isso, e portanto só ele sente que sua liberdade de fazer o que quiser, sem
preocupar-se com os outros, é limitada pelo governo.4

Os homens precisam da justiça política porque é impossível


desenvolverem amizade por todos da cidade. Se a amizade é o desejo
de felicidade do amigo, o dom gratuito de lhe dar tudo o que puder
contribuir para o seu bem, a justiça é o dever de atender aos direitos
dos outros cidadãos. A amizade é baseada no amor, na generosidade,
no desinteresse e na benevolência; já a justiça, na responsabilidade e
obrigação pelo bem comum, o conjunto de condições externas para a
realização pessoal dos bens a que os homens são naturalmente
inclinados.

No âmbito político, esses bens que provêm das necessidades


humanas fundamentais de viver bem, como saúde, conhecimento,
trabalho, sociabilidade e participação política, são os direitos (que
hoje classificamos como direitos humanos). A justiça do regime
constitucional, portanto, é a liberdade de pessoas iguais, sendo que
essa igualdade provém da natureza humana comum, que me exige
tratar os outros do mesmo modo como eu mereço ser tratado para que
eu tenha uma vida boa, isto é, desenvolvendo essas mesmas
faculdades naturais dos demais. Por isso, é intrinsecamente injusto um
governo tirânico ou despótico, que reduz os governados a escravos ou
súditos, privando-os da cidadania, racionalidade e, portanto,
humanidade.
E aqui reside a contradição fundamental da Política

de Aristóteles.

Até o cristianismo, nenhuma sociedade


afirmou a igual dignidade de todos os seres
humanos, sem exceção,
baseada na igual filiação divina em Cristo, motivo da fraternidade
universal (Gálatas 3, 28).5 Marcado pelo etnocentrismo e pela
misoginia helênicos, Aristóteles considerava haver naturezas
diferentes entre as pessoas.

Por isso, o seu jusnaturalismo, tão articulado para promover os


fundamentos filosóficos da cidadania, da igualdade e da liberdade
políticas, conduziu-o a um dos erros mais graves da nossa tradição: o
de negar a racionalidade e, portanto, a dignidade de escravos e
mulheres, subtraídos da participação política por serem
“naturalmente” inferiores, incapazes de autogoverno, logo incapazes,
como crianças e doentes mentais, de governarem os outros.

Pelo influxo do cristianismo e do liberalismo moderno que o


secularizou, reconhecemos que o governo justo é o constitucional,
aquele que não discrimina nem despersonaliza nenhum ser humano
por motivo de sexo, raça, credo, etnia ou riqueza. Todos têm a
liberdade de governarem e serem governados como iguais. A igual
dignidade de todos repousa na natureza humana comum e nos bens
humanos que a realizam.

Baseada no maior intérprete de Aristóteles, Tomás de Aquino, que


comentou minuciosamente a Ética a Nicômaco e a Política, essa
interpretação do governo constitucional e da dignidade humana é a
mais consoante com a atual política dos direitos humanos. Entretanto,
a riqueza de um clássico como a Política de Aristóteles é a abertura
intelectual que ela franqueia. Mesmo pautada numa estrutura social de
cidade-estado radicalmente diferente da moderna,
essa obra-prima permanece imprescindível
para compreender a tradição política
ocidental
e continua a alimentar os debates em torno das ideologias
contemporâneas do socialismo, fascismo, liberalismo, republicanismo,
conservadorismo e comunitarismo. Se Aristóteles não fornece
respostas prontas ou soluções definitivas para nossos incontáveis e
incontornáveis dilemas atuais, ele ainda contribui para a reflexão
sobre as virtudes da amizade e da justiça que mantêm a cidade unida.

CIÊNCIAS TEÓRICAS
As ciências teóricas são contemplativas, porque buscam espelhar (do
termo latino speculum, de que deriva também a palavra especulação)
na mente a realidade que não se pode transformar. Elas são ciências
puras e desinteressadas, visam tão-somente compreender a realidade
das coisas, independentemente da eventual aplicação técnica desse
conhecimento.

É claro que a ciência da matemática tem uma utilidade imediata para


quase toda atividade, pela capacidade de contar e relacionar os dados
quantitativos entre si. Do mesmo modo, a ciência da astronomia
permite a orientação náutica, a compreensão dos ventos, das águas e
assim por diante. Todavia,

essas ciências são teóricas exatamente


porque não se definem pelo uso técnico que
se faz delas ou por sua influência ética no
caráter do filósofo.
Num nível de abstração crescente, pode-se dividir as ciências
teóricas em (1) ciências naturais, (2) ciências matemáticas e (3)
ciência metafísica.

(1) As ciências naturais se voltam à realidade fornecida inicialmente


pelos sentidos, abstraindo as diferenças individuais dos fenômenos e
se concentrando nas qualidades ou propriedades comuns de um
conjunto da realidade, como os vegetais ou animais, por exemplo.

Não interessa este ou aquele cão, mas a natureza canina, seus


atributos constitutivos, sua essência ou espécie científica, a substância
sem a qual um animal deixa de ser um cão. O binômio substância
(aquilo que existe por si mesmo) e acidente (aquilo que depende de
outro ente para existir) ajuda na formulação das essências dos entes
categorizados em conjuntos. Note que essa é a metodologia de
qualquer ciência.

(2) As ciências matemáticas são lógicas e formais, porque abstraem a


qualidade sensível dos entes para se concentrar na sua quantidade.
Elas são formais porque dispensam a “matéria” quantificada. Assim,
não importa se são dois homens ou dois gatos que, somados com dois
entes da mesma espécie, resultam em quatro deles. O raciocínio opera
num nível de abstração da matéria, refletindo sobre a estrutura interna
dos números.

Platão considerava absolutamente indispensável a iniciação nessas


ciências matemáticas como propedêuticas à filosofia. Ele teria,
inclusive, escrito no pórtico de sua Academia:

“Aqui não entra quem não for geômetra”.


A geometria é a projeção da matemática às formas sólidas, analisando
as suas relações numéricas.

(3) A ciência metafísica é ontológica porque enfoca o “ser enquanto


ser”, que não é nada de específico e que, ao mesmo tempo, é aquilo de
que tudo o que é participa. Essa ciência abstrai tanto a qualidade das
espécies (cães) e dos entes individuais (este poodle individual, peludo
e aleijado), quanto a sua quantidade (um ou trezentos cães ou
estrelas), abstrai toda a matéria (carne ou granito) e forma (circular ou
retangular), concentrando-se simplesmente na estrutura do ser, com as
categorias metafísicas que o tornam inteligível. A compreensão do
que é a metafísica é fortemente condicionada à capacidade abstrativa
da inteligência, que exige bastante treino gramatical e lógico. Junto
com a retórica, essas ciências são propedêuticas à filosofia.

SER, CONHECER E DIZER


Há muito o que se refletir no campo da ontologia (ciência do ser) e da
epistemologia (ciência do conhecer), pois, ao longo da história, os
filósofos divergem profundamente sobre (1) a existência e essência do
ser (ontologia), (2) a possibilidade de conhecê-lo (epistemologia), e
(3) a possiblidade e os modos de dizê-lo (questão da linguagem).

Como explica Peter Kreeft em The Platonic Tradition, o célebre


retórico Górgias de Leontini foi um niilista (do ponto de vista
ontológico) e cético (do ponto de vista epistemológico). Ele formulou
seu pensamento numa série de três proposições encadeadas: (1) Não
há o ser (niilismo), este ente genérico e universal que Parmênides
buscava como permanente, estável, sempre idêntico, insuscetível a
qualquer movimento ou mudança, que simplesmente é o que é, e não
pode jamais deixar de ser (e que a tradição cristã identificou com
Deus); (2) Se houvesse o ser, ele não seria conhecível (ceticismo),
pois não temos meios intelectuais de acessar algo permanente, eterno
e imutável, de modo a nos certificar que, de fato, o atingimos; isto é,
não teríamos conhecimento científico, sólido e infalível sobre o ser;
(3) Se houvesse o ser e pudéssemos conhecê-lo, não poderíamos
comunicá-lo (insuficiência da linguagem), pois nossa linguagem é
imperfeita, instável e suscetível a infinitas interpretações, de modo
que jamais poderíamos atestar que o receptor entendeu exatamente a
mesma coisa que lhe foi comunicada pelo emissor.

A tese niilista e cética de Górgias não vingou na filosofia da


Antigüidade, pelo menos não entre os seus mais extensos e profundos
expoentes, Platão e Aristóteles, que, ao contrário,
apostaram e demonstraram ser possível
exercitar e depurar o pensamento e a
linguagem de modo a alcançar o ser
fundamental da realidade,
a causa não causada e o motor imóvel, que consideravam divino.

Portanto, como bem notou Heidegger, a tradição metafísica ocidental


é uma onto-teo-logia, uma articulação racional (pelo logos), do ser
(ontos) divino (theos), que a teologia e filosofia cristãs identificaram
como sendo o próprio Deus, que se fez carne em Cristo (Logos de
Deus).

Diante desse quadro de Górgias — ser, conhecer, dizer — pode-se


identificar três tendências fundamentais na história da filosofia: (1) a
ontologia clássica dos antigos e medievais, (2) a epistemologia dos
modernos e (3) a filosofia da linguagem dos contemporâneos.

A ONTOLOGIA CLÁSSICA
A ontologia clássica dos antigos (como Platão e Aristóteles) e
medievais (como Santo Agostinho e Santo Tomás de Aquino) buscava
a unidade do todo da realidade, a partir da sua abóbada metafísica, o
ser ou Deus. Dessa premissa, deriva uma série de análises
epistemológicas da relação do conhecimento sensível (dos órgãos
corporais) e inteligível (da inteligência abstraída da experiência
sensível).

Franqueado pelos sentidos, o conhecimento sensível (chamado de


empírico na Modernidade) é sempre particular, porque condicionado
pelo tempo e espaço: o meu corpo só me mostra uma coisa de cada
vez, eu só posso tocar esta pessoa humana particular, ver este
computador e beber este copo de água.

Por outro lado, o conhecimento inteligível (que encontra


denominações muito variadas ao longo da história da filosofa, como
ciência, intuição, compreensão e entendimento) formula um conceito
universal, focado no ente em si, concebendo o ser humano em geral
(independente das suas particularidades e contingências), a essência
do computador em si e a natureza

permanente e substancial da água como tal.

Os filósofos clássicos são teístas,


porque reconhecem a existência de Deus, como Ser supremo, eterno e
imutável, causa não causada, motor imóvel e inteligência ordenadora
que engendrou o cosmos inteligível. Essa dimensão filosófica e
metafísica de Deus, já elaborada por Platão, Aristóteles e Plotino,
embora de modos diferentes em cada um deles, foi essencial para a
assimilação da filosofia grega na especulação religiosa cristã, em
filósofos como Santo Agostinho de Hipona e Santo Tomás de Aquino,
que exploraram e desenvolveram as categorias clássicas para refletir
sobre a teologia (natureza de Deus), antropologia (natureza humana),
epistemologia (teoria do conhecimento), psicologia (teoria das
faculdades da alma humana) e a ética (teoria do bem humano e da
felicidade).

A EPISTEMOLOGIA MODERNA
A epistemologia moderna se concentra não tanto no ser, como a
ontologia clássica,porém no conhecer, no modo como acessamos a
realidade. Partindo dos embates entre racionalistas, como Descartes,
Spinoza e Leibniz, e empiristas, como Locke, Berkeley e Hume, Kant
concebe o projeto do criticismo transcendental, buscando fundamentar
a ciência moderna, como a praticada por Isaac Newton, que era o
modelo de cientista moderno.

A epistemologia (também chamada de gnosiologia ou teoria do


conhecimento) parte da diferença entre sujeito cognoscente e objeto
conhecido, analisando as categorias do sujeito que permitem atingir o
objeto. A teoria do conhecimento de Kant parte da distinção entre
juízos analíticos (a priori) e sintéticos (a posteriori).

Os juízos analíticos (a priori) são que são formais e explicativos, não


acrescentando nenhum conhecimento novo, mas apenas explicitando o
conteúdo predicativo já presente no sujeito; por exemplo, o triângulo
tem três lados. Os juízos analíticos se fundam nos princípios lógicos
da identidade e não-contradição, formando juízos de identidade que
são tautológicos, universais e necessários. Eles são apriorísticos
porque anteriores à experiência sensível.

Já os juízos sintéticos (a posteriori) são materiais e extensivos, pois


aumentam o conhecimento pela união sintética de elementos
heterogêneos no sujeito e predicado; por exemplo, o calor dilata os
corpos. Esses juízos se fundam na experiência sensível, particular e
contingente. Eles são a posteriori, posteriores à experiência sensível,
por dependerem do dado empírico fornecido pelos sentidos.

Para que não seja nem tautológica (como no caso dos juízos
analíticos), nem contingente (como no caso dos juízos sintéticos em
geral), a ciência precisa de juízos sintéticos a priori (baseados em
intuição não sensível). Isso em três âmbitos, (1) na Estética
Transcendental, (2), na Analítica Transcendental e (3) na Dialética
Transcendental.

(1) A Estética Transcendental analisa as faculdades de se ter


percepções sensíveis. Nela, os juízos sintéticos a priori se baseiam
nas formas puras de intuição: tempo e espaço. Esses juízos
independem da experiência sensível, são formas de apreensão,
condições de possibilidade do conhecimento das coisas, ou seja, a
condição transcendental para as coisas serem objeto de conhecimento.
Eles se baseiam nas formas de sensibilidade, da faculdade de ter
percepções sensíveis; (2) A Analítica Transcendental considera que a
coisa em si (o númeno) escapa à possibilidade de conhecimento, pois
Kant considera que só podemos conhecer os fenômenos, isto é, as
coisas tais como se mostram à nossa capacidade de percepção, que são
constituídos pelas categorias transcendentais do conhecimento; (3) A
Dialética Transcendental reflete sobre a impossibilidade científica da
metafísica, uma vez que ela não alcança juízos sintéticos a priori, ao
lidar com os conceitos de alma (síntese das vivências subjetivas),
universo (síntese das vivências objetivas) e Deus (síntese final e
suprema). Para falar de Deus e alma, deve-se apelar à razão prática, à
consciência moral, que fundamenta a religião.

Com sua teoria altamente complexa e elaborada do conhecimento,


Kant inaugura uma rica tradição de filosofia alemã, que conta com
seus sucessores idealistas, Fichte, Hegel e Schelling, e com seus
críticos voluntaristas como Schopenhauer e Nietzsche.

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA DA LINGUAGEM


A filosofia contemporânea é dominada pelo tema da linguagem. É
comum dividi-la na vertente continental (hermenêutica) e peninsular-
britânica (analítica), considerando a cisão pós-kantiana entre
positivismo e romantismo.

Os positivistas afirmam a objetividade e a verdade das ciências


particulares, reduzindo o escopo da filosofia ao âmbito empírico e
material da realidade, ao passo que os românticos se voltam para a
complexidade da subjetividade e da psicologia humana, enfocando-a
também pela história e pela cultura a que ela pertence.

Essas posturas filosóficas têm em comum


uma crítica à metafísica clássica,
com sua demonstração da existência de Deus e a proposição de uma
ética normativa das virtudes, como a da lei natural.

A linguagem do ponto de vista lógico (analítico) motiva as


investigações de Wittgenstein e os membros do Círculo de Viena,
como Bertrand Russell, que cultivavam o ideal matemático de ciência.
Por outro lado, a linguagem na sua dimensão poética, histórica e
cultural (hermenêutica) motivava a fenomenologia de Martin
Heidegger e sua filosofia da existência, que inspirou muitos alunos e
seguidores nas mais diversas áreas.

☘ Tendo compreendido tudo isso, regressemos agora ao que


dizíamos no início, para tentar compreender melhor a natureza da
filosofia, a essência da sua prática.
O FILÓSOFO E SEU AVESSO

CONCEITUAÇÃO DIALÉTICA

A filosofia é a arte da conceituação, o esforço intelectual de usar


termos adequados para definir as realidades. Isso se dá pela
dialética, pela confrontação de entes parecidos. Para a formação de
um conceito, Aristóteles busca o seu gênero comum e a sua diferença
específica. Ou seja, para compreendermos alguma coisa, precisamos
aproximá-la de algo semelhante e depois divisar o que ela tem de
particular.

Assim, dizemos que

o homem é um animal racional.


Ele é tão animal quanto um cão, porque nasce e morre, tem vida
sensível e se movimenta. O homem pertence ao gênero comum dos
animais. Todavia há animais irracionais (como o cão) e racionais
(como homens). O homem também é um animal político, porque não
apenas convive, mas forma uma organização política baseada nas
palavras e nas leis.

O CÃO E O LOBO
O filósofo é um intelectual, alguém que desempenha a atividade do
pensamento, contudo certamente não é o único que faz isso. Como há
outros tipos de intelectuais, Platão precisou distinguir o filósofo (cujo
modelo fundamental é Sócrates, o protagonista dos seus diálogos) dos
poetas e dos retóricos.

A distinção entre filósofo e sofistas é


estrutural na filosofia,
pois é fácil confundi-los, como é fácil confundir, de noite, o cão e o
lobo, como lembra Platão num diálogo chamado, exatamente, Sofista.
Na verdade, o cão é uma espécie de lobo domesticado, em quem se
pode confiar e não discerni-lo é demasiado arriscado.

Os sofistas eram os famosos professores de retórica que viajavam


pelas cidades helênicas ministrando aulas e preleções, ensinando a
arte da persuasão verbal. Além da retórica, os sofistas exploravam,
argutamente, a gramática (estrutura da língua) e a lógica (estrutura do
raciocínio), no entanto Platão percebeu que eles argumentavam por
falácias, que são raciocínios falsos, imprecisos, aproximativos, meias-
verdades ou quase-verdades. Seu objetivo é apenas convencer, pela
verossimilhança, e não conhecer o mundo tal como ele é.

Os diálogos de Platão são uma tentativa de explicar a fisionomia do


filósofo em confrontação dialética com os poetas e os sofistas, que
gozavam de grande prestígio na cultura grega do seu tempo, cultura
amante de recitações poéticas e discursos encomiásticos de toda
natureza, na religião, na política e nos banquetes festivos.

A distinção fundamental é que o filósofo ama a verdade, o ser, e não


o espetáculo, o aparecer e a persuasão. O filósofo busca a essência das
coisas, sem se contentar com as aparências sensíveis e as convenções
tradicionais. Uma distinção epistemológica desponta dessa dialética: o
amor à sabedoria contraposto ao amor à opinião (sofistas) ou ao
espetáculo (poetas).

Sofistas e poetas não estão


compromissados com a verdade, mas com
a persuasão ou a beleza.
Um argumento pode ser persuasivo e mesmo belo, porém falso. A
filosofia afirma o critério intelectual e científico para aferir a verdade
de algo, independentemente da popularidade, da beleza ou das
impressões subjetivas. No plano ontológico, trata-se da distinção entre
ser e parecer, que se incorporou à sabedoria popular pelo provérbio
“nem tudo o que parece é”.

FILOSOFIA E ANTIFILOSOFIAS
A partir dessa distinção fundamental entre filosofia e sofística, deve-
se atentar às formas intelectuais concorrentes, as antifilosofias que
tendem a neutralizar a dimensão pedagógica e cognitiva da filosofia,
apelando para formas variadas de ceticismo e relativismo.

O filósofo tem um desejo sincero de educar seus alunos e discípulos,


contribuindo para a formação humana e por conseguinte para a
sociedade, a partir de um compromisso epistemológico com a
verdade, que deve ser distinguida da falsidade e da aparência.

Afirmar, dogmaticamente, que não é possível alcançar a verdade das


coisas (ceticismo), ou que a verdade não existe e que tudo depende de
uma perspectiva pessoal, cultural ou histórica (relativismo) neutraliza
a atividade filosófica, confundindo-a com uma retórica ou uma
ideologia.

O resultado da negação de uma verdade a ser conhecida é a redução


da inteligência a uma disputa retórica de poder persuasivo, em que a
filosofia se torna mais uma contendora numa disputa interminável de
dominação. Por isso, a filosofia deve se precaver e refutar os
ceticismos e relativismos, sofísticas que sempre a assediam.

PHYSIS E NOMOS
A filosofia nasce da interseção dialética entre duas tendências
intelectuais vigentes na época de Platão, que ele incorporou num
impressionante gesto de síntese. Trata-se da investigação sobre a
natureza (physis) e da sobre a lei e os costumes humanos (nomos).

Como a nossa era é ao mesmo tempo positivista e relativista,


tendemos a considerar mutuamente excludentes a natureza (objetiva) e
a cultura humana (subjetiva e histórica), soando autocontraditório o
ideal clássico de uma “lei natural” ou de uma “justiça por natureza”.

Na perspectiva de Platão, os sofistas observavam que os costumes e


as leis sociais (nomos) variavam de cidade para cidade, concluindo
que não há meios para superar esse relativismo, que não se pode
julgar uma ética por outra. Nos diálogos Teeteto e Protágoras, Platão
refere-se à afirmação deste último sofista de que “o homem é a
medida de todas as coisas”. Com isso, cada homem veria o mundo de
acordo com as suas próprias lentes, não havendo uma verdade
universal e objetiva, válida para todos eles.

Essa tendência intelectual se reflete no relativismo pós-moderno de


autores como Foucault, Derrida, Rorty e Vattimo, que considera tudo
dependente da linguagem, da cultura ou da história, demitindo a
possibilidade de se alcançar uma verdade objetiva na ética, estética ou
política.

A afirmação de que “tudo é relativo”


integra o senso comum atual, sendo uma
afirmação antifilosófica e autocontraditória.
Na época de Platão, havia também os intelectuais que investigavam a
natureza (physis), buscando as suas causas fundamentais, o princípio
divino que a estruturava e animava. Trata-se da intuição de que o
mundo é uma ordem (cosmos), que é regida por leis que podem ser
conhecidas, num ato conjunto dos sentidos e da inteligência.

Chamados de “pré-socráticos”, esses primeiros filósofos naturalistas


mobilizaram o vocabulário poético disponível para articular os
primeiros teoremas filosóficos, que foram aproveitados e
desenvolvidos por Platão e Aristóteles, e seus sucessores.

A DIALÉTICA FILOSÓFICA
O resultado dessa síntese platônica de buscar uma verdade sobre a
natureza e sobre o homem implica o reconhecimento de uma dialética
estrutural (não necessariamente um dualismo dicotômico) entre o que
nós chamamos de ciências da natureza (como física, química, biologia
e astronomia) e ciências humanas (como sociologia, economia,
antropologia e direito).

Essa dualidade estrutural também se reflete em vários pares


dialéticos, cujo equacionamento e relação com os demais caracterizam
as várias respostas filosóficas ao desafio platônico fundamental: 1.
Corpo e alma; 2. Desejo e vontade; 3. Âmbito sensível (o que pode ser
experimentado pelos cinco órgãos dos sentidos corporais) e inteligível
(o que pode ser pensado); 4. Opinião e ciência; 5. Imanência e
transcendência; 6. Pluralidade e unidade; 7. Acidente e substância; 8.
Tempo e eternidade; 9. Mal e bem; 10. Caos e ordem.

No século XIX, Nietzsche percebeu que toda a filosofia ocidental se


baseava neste tipo de dialética e que o cristianismo a perpetuara na
estrutura carne e espírito, e Terra e Céu. Para tentar superá-la, ele
propôs uma ética para além do bem e do mal, e uma negação da
função intelectual e moral tradicionalmente atribuída à alma em
relação ao corpo. Admirador dos sofistas, Nietzsche inaugura uma
robusta antifilosofia no nosso tempo, criticando veementemente o
projeto filosófico como um todo, ao mesmo tempo que se envolve
profundamente nas questões filosóficas mais importantes, sobre a
verdade, a bondade e a beleza.

Assim, contrapondo o conceito e o projeto socrático da filosofia,


como o amor pela sabedoria, às antifilosofias modernas e
contemporâneas, eu creio que seja conveniente estudarmos, também
brevemente, a continuidade daquele primeiro, tal como a tradição
cristã católica o desenvolveu, identificando a sabedoria, amada pelo
filósofo, ao Deus revelado.
VIDA INTELECTUAL E FÉ CRISTÃ
D epois de termos percorrido o conceito clássico de filosofia como
amor à sabedoria, contrapondo-o, dialeticamente, aos
reducionismos e às antifilosofias modernas e contemporâneas,
convém conhecer, brevemente, o modo como a tradição intelectual
católica, particularmente a tomista, desenvolveu o ideal filosófico de
vida intelectual, integrando o amor à sabedoria à contemplação
religiosa de Deus.6

Nessa fecunda escola de pensamento, fé e razão não se contrapõem,


mas se complementam harmonicamente numa unidade de vida. Para o
maior filósofo da cristandade, Santo Tomás de Aquino, trata-se de
duas virtudes interdependentes, já que a fé, como virtude sobrenatural,
atua sobre a virtude natural da inteligência, assim como o amor
(caridade) robustece a faculdade moral da vontade.

Pascal dizia que

o último passo da razão é entender que


infinitas coisas a transcendem.
A razão filosófica se percebe incapaz de perscrutar todos os mistérios
do mundo, sobretudo o da sua origem e finalidade; por isso, abre-se à
fé na Revelação de um Deus feito homem, Cristo, digno de ser amado
com todas as nossas forças, inclusive as intelectuais. A afirmação de
que Deus é a razão, o logos buscado pelos filósofos, permitiu o
desenvolvimento não só da teologia, como Ciência da Revelação, mas
de uma autêntica filosofia cristã, que se articula ativamente com os
dados da fé.

Para explorar esse tópico central da filosofia clássica, convém


apresentar a obra-prima A vida intelectual: Seu espírito, suas
condições, seus métodos, de Sertillanges.7
UMA VOCAÇÃO
“Para um apóstolo moderno, uma hora de estudo é uma hora de oração”.

— São Josemaria Escrivá, Caminho, cap. “Estudo”, n. 335

“Quando o universo está em chamas, [...] a sensação que se tem é de


esmagadora impotência [...] o presente só traz tormento e desconcerto
[...]”.8 Assim inicia Sertillanges o prefácio à terceira edição desta sua
obra-prima sobre a vida intelectual, em 1944, nos estertores
apocalípticos da Segunda Guerra Mundial.

Em vez de se render ao pessimismo da maioria dos pensadores do


seu tempo, ele convoca os católicos ao trabalho paciente de reflexão
sobre a crise civilizacional por que passa a Europa bombardeada e
incendiada, enfatizando a virtude necessária à sua realização. Ele sabe
que

as grandes crises e lutas ocorrem numa


dimensão mais profunda, a intelectual e a
espiritual.
Seria o nosso século XXI, acossado por crises sociais, econômicas,
políticas e sanitárias, tão diferente do nebuloso século desse autor?
Teria perdido este precioso livro a sua atualidade, permanecendo
apenas um capítulo de história da filosofia católica? Como explicar a
crescente demanda editorial atualmente no Brasil? Se Hegel dizia que
a coruja de Minerva (símbolo da inteligência filosófica) alça vôo no
crepúsculo, um filósofo cristão pode dizer, a fortiori, que a luz de
Cristo resplandece nas trevas (Jo 1, 5). Com efeito, a história da Igreja
é um vasto e eloqüente testemunho da força indômita de intelectuais
que souberam concentrar suas energias não apenas nas causas da
decadência cultural de suas eras, mas sobretudo nos meios espirituais
de sua renovação, como Santo Agostinho e São Bento, na
Antigüidade; São Bernardo e Santo Tomás, na Idade Média; Santo
Inácio, Santa Teresa e São John Henry Newman, na Modernidade; e
São Josemaria Escrivá e São João Paulo II, na contemporaneidade.
Como digno filho de São Domingos, cuja Ordem dos Pregadores foi
fundada, no século XIII, para o apostolado intelectual que culminou
na monumental síntese teológica e filosófica de Santo Tomás de
Aquino, o frade dominicano Antonin-Gilbert Sertillanges (1863–
1948) pertence à fecunda geração de intelectuais que acolheu,
vigorosamente, a invocação do Papa Leão XIII, na Encíclica Aeternis
Patris, de 1879, para a restauração da filosofia cristã do Doutor
Angélico.

Autores como Étienne Gilson, Jacques Maritain, Réginald Garrigou-


Lagrange, Jean Guitton, Dietrich von Hildebrand, Josef Pieper e
Gilberteith Chesterton apresentaram com tintas frescas a magnitude,
imponente e minuciosa como uma catedral gótica, da obra de Santo
Tomás, inserindo-o no debate contemporâneo e demonstrando que sua
metafísica realista e ética das virtudes resiste às incompreensões e aos
reducionismos modernos.9

Nesse contexto, a qualidade e a quantidade da produção intelectual


de Sertillanges salta aos olhos: são cerca de 30 livros de filosofia e
teologia, que, praticamente sozinhos, formariam uma nova geração de
intelectuais católicos.10 Além de professor e escritor, foi editor da
importante Revue Thomiste, que catalisou a inteligência católica do
seu tempo, legando um vasto material também a ser recuperado e
assimilado.

Se a sua vocação intelectual lhe rendeu frutos tão abundantes, ela se


perfez ao compartilhar, generosamente, o seu espírito, as suas
condições e os seus métodos, como indica o subtítulo de seu livro. Ou
seja, a vida intelectual é, propriamente, uma vocação, cuja consecução
depende de virtudes morais e competências técnicas.

A DIMENSÃO AUTOBIOGRÁFICA, TRADICIONAL E


COMUNITÁRIA DA FILOSOFIA
A vida intelectual é um livro inegavelmente autobiográfico e
confessional; na introdução, lemos, enternecidos: “O autor não
esqueceu, não mais que muitos outros sem dúvida, a comoção dos
seus vinte anos, quando o padre Gratry estimulava nele o fervor do
saber”;11 e, no prefácio à segunda edição: “[...] estas páginas, na
verdade, não têm data. Elas saíram do meu âmago. Já as trazia em
mim havia um quarto de século quando eclodiram. Escrevi-as como
alguém que expressa suas convicções essenciais e abre o seu
coração”.12 A generosidade de Sertillanges ressoa as palavras do livro
bíblico da Sabedoria (7, 13): “O que aprendi sem fraude, eu o
comunicarei sem ciúme; sua riqueza não escondo”.

Assim, este escrito alcança a estatura filosófica da Apologia de


Sócrates e da Carta VII de Platão, das Confissões de Santo Agostinho,
dos Pensamentos de Pascal, de O sentimento trágico da vida, de
Miguel de Unamuno, das Reflexões autobiográficas de Eric Voegelin
e de Lições dos mestres de George Steiner.

Nele, vemos o autor desfiar reflexivamente as virtudes que


conquistou no intenso e apaixonado atletismo intelectual a que
consagrou a sua vida, assumindo, com comovente gratidão, o dom da
sua vocação. Aqui, cada palavra poreja sinceridade, ânimo e
serenidade, realizando, performaticamente, o que o autor convida a
fazer com os clássicos da cultura: a reflexão profunda, o exame de
consciência, os alargamentos místicos e o êxtase do encontro com a
Verdade.

O verdadeiro mestre é um maieuta, um


pescador de homens, um mediador da
chamada divina.
Portador de uma boa-nova efusiva, ele é um semeador de
inteligências, irrigando-as com a seiva do entusiasmo e da paciência.
Os pólos passivo e ativo aqui convergem, pois Sertillanges aprendeu
do seu mestre Tomás de Aquino, que teve, em Alberto Magno, um
modelo vivo de intelectual; em Santo Agostinho, um modelo perene
de teólogo; e, em Aristóteles, um paradigma filosófico.
Estamos diante da cadeia de inspiração fornecida pela nossa melhor
e mais longeva tradição intelectual, cadeia essa que lembra a imagem
do entusiasmo poético do Íon de Platão. Nós, seus leitores, temos a
vocação e portanto a responsabilidade de continuá-la e legá-la às
próximas gerações. Nenhum intelectual é independente, muito menos
isolado; ele se alimenta sempre de um solo cultural prévio, a que
devolve, quando maduro, os seus frutos. Gratidão e generosidade são,
assim, virtudes indispensáveis. Por isso, diz Sertillanges: “A unidade
da fé dá ao trabalho intelectual o caráter de uma imensa cooperação. É
a obra coletiva dos humanos unidos em Deus”.13

A vocação intelectual nunca é individual, porém tradicional e


comunitária, pois a recebemos de Deus por nossos pais intelectuais e
devemos transmiti-la a nossos filhos espirituais. Um leitor recorrente
deste livro poderoso não resiste ao desejo de chamar o padre
Sertillanges de pai, que ajuda a discernir e a corresponder à sua
própria vocação intelectual, emulando-o a patamares tão altos quanto
exigentes de vida. Toda obra grande exige um esforço incomum, a
auto-superação constante, resultante de uma disciplina e austeridade
superiores.

HARMONIA DE FÉ E RAZÃO
É este teor exortativo e convertedor que me parece o traço mais
saliente desta obra, capaz de transformar a existência de quem a lê
com abertura de espírito. O autor nos apresenta um horizonte antes
insuspeitado de articulação da vida intelectual com a vida espiritual,
admoestando-nos a nunca abandonar a oração, fonte da humildade e
da paciência, virtudes sem as quais a inteligência se embota ou
extenua.

São inesquecíveis as suas palavras no prefácio à segunda edição


desta obra, de 1943:
“Querem os senhores compor uma obra intelectual? Comecem por criar em seu interior uma
zona de silêncio, um hábito de recolhimento, uma vontade de despojamento, de desapego,
que os deixem inteiramente disponíveis para a obra; adquiram esta disposição das
faculdades mentais isenta do peso dos desejos e de vontade própria, que é o estado de graça
do intelectual. Sem isso, não farão nada, ou ao menos nada que valha”.14

O ideal clássico de vida contemplativa foi exemplarmente defendido


por Platão e Aristóteles, que, inspirados em Sócrates, a consideravam
a forma superior de existência, por participar da atividade divina de
unidade com a justiça, beleza, harmonia e perfeição.15 Sendo Cristo o
Logos (palavra, pensamento) de Deus, não foi difícil para os Padres da
Igreja assimilarem o ideal filosófico de vida contemplativa com o
ideal religioso de vida espiritual, articulando a virtude da sabedoria
com a da fé e caridade.

Em Santo Tomás de Aquino, a harmonização de razão e fé encontra


o seu apogeu,16 numa relação que permanece viva e operante na
tradição católica e que é sintetizada por São Josemaria Escrivá, na
homilia A vocação cristã, nestes termos:
Se o mundo saiu das mãos de Deus, se Ele criou o homem à sua imagem e semelhança e lhe
deu uma chispa da sua luz, o trabalho da inteligência — mesmo que seja um trabalho duro
— deve desentranhar o sentido divino que já naturalmente têm todas as coisas; e, à luz da fé,
percebemos também o seu sentido sobrenatural, que procede da nossa elevação à ordem da
graça. Não podemos admitir o medo à ciência, porque qualquer trabalho, se for
verdadeiramente científico, conduz à verdade. E Cristo disse: Ego sum veritas, Eu sou a
verdade.

O cristão deve ter fome de saber. Desde o cultivo dos saberes mais abstratos até às
habilidades do artesão, tudo pode e deve levar a Deus. Porque não há tarefa humana que não
seja santificável, que não seja motivo para a nossa própria santificação e oportunidade para
colaborarmos com Deus na santificação dos que nos rodeiam. A luz dos seguidores de Jesus
Cristo não deve permanecer no fundo do vale, mas no cume da montanha, para que vejam as
vossas boas obras e glorifiquem vosso Pai que está nos céus (Mt 5, 16).

Trabalhar assim é oração. Estudar assim é oração. Investigar assim é oração. Não saímos
nunca do mesmo: tudo é oração, tudo pode e deve levar-nos a Deus, alimentar esse convívio
contínuo com Ele, da manhã até à noite. Todo o trabalho honrado pode ser oração; e todo o
trabalho que for oração, é apostolado. Desse modo, a alma se enrijece numa unidade de vida
simples e forte.17

Essa proposta de São Josemaria Escrivá reflete o mesmo núcleo


católico de Sertillanges: a vocação do intelectual cristão exige um
trabalho de estudo constante, convertido em oração e apostolado, e
vivido com senso de responsabilidade e dever.18 Antes de querer
transformar o mundo e a sociedade, deve-se cultivar a interioridade e
estabelecer um plano de vida que inclua a organização do tempo e a
luta ascética contra os vícios.19 Esse modelo conjuga, portanto, as
virtudes teologais e intelectuais com as virtudes morais da ordem,
disciplina, paciência e perseverança, que comportam sacrifícios e
renúncias, como a solidão e o silêncio.

O ÍMPETO MODERNO POR TRANSFORMAR O MUNDO


EXTERIOR
O conhecimento objetivo do mundo comporta uma transformação
subjetiva do filósofo, que acolhe, amorosamente, a verdade em seu
espírito, sem querer dominá-la ou transformá-la. Talvez aqui resida a
diferença mais radical entre o modelo cristão de intelectual-filósofo e
a versão moderna, politizada de intelectual-sofista, como Rousseau,
Marx e Sartre, cujas contradições biográficas foram expostas, entre
outros, por Paul Johnson.20

Na visão de Voegelin, um dos herdeiros dessa tradição clássica, o


gesto intelectual moderno é gnóstico, por enfatizar o aspecto técnico e
produtivo da ciência, de dominação da natureza e do próprio homem,
em nome de um ideal utópico de progresso, normalmente
negligenciando a edificação moral do homem pelo autoconhecimento
e autodomínio, na busca de instaurar a ordem na sua alma, a partir da
ordem divina do cosmos.21

Assim, chegamos ao estágio atual da educação moderna, pautada no


cientificismo e relativismo moral (como se observa nas correntes do
positivismo e existencialismo). Ciência e política se articulam para
dominar a natureza e a sociedade, demitindo a verdade moral,
metafísica e religiosa, como ilusões de uma época ingênua e
ignorante.

O ativismo, imediatismo, pragmatismo — em poucas palavras, a


concentração na práxis transformadora, como em Marx — suplantam
a vida contemplativa, alterando a experiência do tempo e do
pensamento.22
Há uma pressa generalizada, uma
sensação de urgência, exacerbada pelos
meios de comunicação de massa e pelas
redes sociais,
que nos priva da paz e do silêncio do estudo e da oração reflexiva,
capazes de franquear o autoconhecimento. Aos poucos, perdemos de
vista a dimensão moral e espiritual da leitura e meditação.
Instrumentalizamos o conhecimento para uma profissão rentável,
funcional às demandas sociais exteriores. Para isso, precisamos nos
especializar cada vez mais, com o risco da fragmentação e alienação
da unidade das ciências.23

A UNIDADE MORAL E INTELECTUAL DO TOMISMO


Nesse contexto, o tomismo, defendido por Sertillanges, redimensiona
toda a nossa atividade intelectual, que se expande nas mais variadas
disciplinas sem perder a unidade que as correlaciona. Devemos levar
em alta conta a sua exortação e lutar contra a especialização
excludente e alienante, que é tão característica da Modernidade.
Independentemente da inclinação de cada intelectual e sua área de
atuação prioritária, deve-se praticar a “ciência comparada”, que é:
[...] alargamento das especialidades pela aproximação de todas as disciplinas conexas, e em
seguida a ligação dessas especialidades e de seu conjunto à filosofia geral e à teologia.

Não é sensato, não é profícuo, mesmo que se tenha que seguir uma especialidade muito bem
delimitada, fechar-se nela logo de saída. Seria o mesmo que colocar antolhos. Nenhuma
ciência basta a si mesma; nenhuma disciplina por si só constitui-se em luz eficiente para seu
próprio percurso. No isolamento, ela se encolhe, se seca, se debilita e, na primeira
oportunidade, se extravia.

[...] Cortar as comunicações de seu objeto é falseá-lo, pois suas conexões fazem parte dele.

[...] Assim, se quiserem garantir para si um espírito aberto, preciso, verdadeiramente forte,
previnam-se, antes de tudo, contra a especialidade [...]. Um especialista, se não for um
homem, não passará de um burocrata; sua esplêndida ignorância fará dele um transviado
entre os humanos; ele será desajustado, anormal e doido. O intelectual católico não se
pautará nesse modelo.24
A articulação das ciências particulares depende da unidade
epistemológica do conjunto, que é garantida pela filosofia. Ademais,
como a razão humana não exaure toda a realidade, devemos sorver a
sabedoria da ciência divina, a teologia. Filosofia e teologia são as
ciências arquitetônicas que estruturam as ciências particulares pela
remissão ao fundamento metafísico da ordem do ser, que é Deus. Sem
esse eixo ontológico gravitacional, as ciências não têm uma órbita
coesa e carecem de qualquer unidade epistemológica, dispersando-se
e fragmentando-se:
Toda ciência, cultivada em separado, não só não se basta a si mesma, mas apresenta perigos
que todos os homens sensatos reconheceram. A matemática tomada isoladamente deturpa o
raciocínio, habituando-o a um rigor que nenhuma outra ciência, e menos ainda a vida real,
comporta. A física e a química obcecam por sua complexidade e não conferem ao espírito
nada de amplo. A fisiologia leva ao materialismo, a astronomia à divagação, a geologia os
transforma num cão de caça farejador, a literatura os esvazia, a filosofia os estufa, a teologia
os abandona ao falso sublime e ao orgulho doutoral. É preciso passar de um espírito ao
outro a fim de corrigi-los um pelo outro; é preciso alternar as culturas para não arruinar o
solo.25

Contudo, essa abertura ao todo da realidade não significa,


naturalmente, abdicar de uma especialidade. Pelo contrário,

devemos nos concentrar, energicamente, na


disciplina correspondente à nossa vocação,
sem a tentação de flanar superficialmente por todas as áreas do
expansivo saber humano, sempre tão interessantes. Como filosofia e
teologia de fundo, o tomismo é uma “síntese”, capaz de coordenar as
ciências numa unidade e evitar tanto os excessos da especialização
excludente, quanto do generalismo superficial.
O tomismo é uma posição de espírito tão bem escolhida, tão distante de todos os extremos
onde se abrem os abismos, tão central em relação aos cumes, que se é logicamente
conduzido a ele a partir de todos os pontos do saber, e a partir dele se irradia, sem fraturas
no caminho, em todas as direções do pensamento e da experiência.

Outros sistemas se contrapõem aos sistemas vizinhos: esse os concilia numa luz mais
elevada, tendo investigado o que os seduzia e preocupando-se em reconhecer tudo que há
neles de correto. Outros sistemas foram renegados pelos fatos: esse vem ao seu encontro, os
envolve, os interpreta, os classifica e os consagra como se fosse um direito deles.26

AS VIRTUDES DO FILÓSOFO
Dos muitos conselhos e exortações do imprescindível livro do padre
Sertillanges — que inclui métodos práticos de leitura e anotação,
assim como o cuidado com o sono e o corpo —, destaco, como
conclusão, a virtude da paciência. Ela é imprescindível para o
intelectual, o maior antídoto à pressa e ao imediatismo da nossa época
virtual, assim como a disposição propícia para a ação da Graça em
nossa vida, cuja temporalidade difere da nossa:
Evitem a agitação do homem com pressa. Apressem-se lentamente. No âmbito do espírito, a
calma vale mais que a afobação. [...] O homem que dá tempo ao tempo tem todo o tempo do
mundo, que está sediado na eternidade. Assim sendo, trabalhem com espírito de eternidade.

[...] Cristãmente, os senhores têm de respeitar a Deus em sua providência. É Ele quem
determina as condições do saber: a impaciência é para com Ele uma revolta. Quando forem
tomados de febre, a escravidão espiritual já estará a espreitá-los, a liberdade interior se
dissolve. Não são mais os senhores que estão agindo, muito menos o Cristo nos senhores. Já
não estão fazendo a obra do Verbo.

De que serve querer adiantar-se de modo tão impróprio, quando o caminho já é em si uma
meta, o meio, um fim? Quando se olha o Niágara, sente-se vontade de vê-lo acelerar? A
intelectualidade tem valor por si mesma em todos os seus estados. O esforço virtuoso é uma
conquista. Aquele que trabalha para Deus e segundo Deus, encontra em Deus sua morada.
Que importa se o tempo correr, quando se está instalado ali?27

Este livro infunde o amor intelectual à verdade, sem a qual não se


persevera na faina dos estudos. Se a constância e a paciência são
coroadas pelas perseverança, e esta, por sua vez, depende do amor:
[...] aquele que deixa de amar, nunca amou. Se o destino é uno, o que não dizer de uma obra
parcial. O intelectual genuíno é por definição perseverante. Ele assume a tarefa de aprender
e de ensinar; ele ama a verdade de corpo e alma; ele é um consagrado: ele não renuncia
prematuramente.28

Dito de outro modo e com o outro mestre espiritual que nos mostra o
caminho da inteligência, São Josemaria Escrivá: “Qual é o segredo da
perseverança? O Amor.
— Enamora-te, e não O deixarás”.29

Há bons livros que apresentam a vida intelectual cristã, como os de


Jean Guitton, Josef Pieper, Mortimer Adler, Louis Riboulet, John
Haldane, James Schall e João Batista Libanio, entretanto em nenhum
resplandece a beleza e a força deste clássico memorável de
Sertillanges. Aos cristãos vocacionados ao bom combate da
inteligência, ele merece ser relido periodicamente, num detido exame
de consciência que aponta para o Caminho, a Verdade e a Vida.


GUIA DE LEITURA

PEQUENAS INTRODUÇÕES DIDÁTICAS

A scontando
editoras Paulus e Loyola têm um catálogo relevante de filosofia,
com duas coleções de volumes pequenos e acessíveis,
que permitem dar os primeiros passos na filosofia.

Coleção Leituras Filosóficas da Editora Loyola


1. AUBENQUE, Pierre. Desconstruir a metafísica? São Paulo: Loyola, 2012.

2. BERTI, Enrico. Convite à filosofia. São Paulo: Loyola, 2013.

3. BRAGUE, Rémi. Âncoras no céu: A infraestrutura metafísica. São Paulo: Loyola, 2013.

4. DUHOT, Jean-Joël. Sócrates ou o despertar da consciência. São Paulo: Loyola, 2004.

5. HADOT, Pierre. O que é a filosofia antiga? São Paulo: Loyola, 1999.

6. . Elogio da filosofia antiga. São Paulo: Loyola: 2012.

7. . Elogio de Sócrates. São Paulo: Loyola: 2012.

8. MARITAIN, Jacques. Sete lições sobre o ser. São Paulo: Loyola, 2005.

9. PIEPER, Josef. Que é filosofar? São Paulo: Loyola, 2007.

10. PORTA, Mario Ariel González. A filosofia a partir de seus problemas. São Paulo:
Loyola, 2002.

Coleção Como ler filosofia da Editora Paulus


1. BLANK, Renold. Encontrar sentido na vida: Propostas filosóficas. São Paulo: Paulus,
2008.

2. BOTTER, Barbara. Fazer filosofia: Aprendendo a pensar com os primeiros filósofos. São
Paulo: Paulus, 2013.

3. CASERTANO, Giovanni. Uma introdução à República de Platão. São Paulo: Paulus,


2011.

4. TEIXEIRA, João de Fernandes. Por que estudar filosofia? São Paulo: Paulus, 2016.
5. NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do. Um Mestre no Ofício: Tomás de Aquino. São
Paulo: Paulus, 2011.

Introduções gerais (destaque para Robinet, Melendo e Barzotto)


1. ALBERT, Karl. Platonismo: Caminho e essência do filosofar ocidental. São Paulo:
Loyola, 2011.

2. BARZOTTO, Luis Fernando. Filosofia do direito: Os conceitos fundamentais e a tradição


jusnatualista. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

3. MARCONDES, Danilo; FRANCO, Irley. A Filosofia: O que é? Para que serve? Rio de
Janeiro: Ed. Jorge Zahar; PUC-RJ, 2011.

4. MORENTE, Manuel García. Fundamentos de filosofia: Lições preliminares de filosofia.


São Paulo: Mestre Jou, 1970.

5. MELENDO, Tomás. Iniciação à filosofia: Razão, fé e verdade. São Paulo: Instituto


Brasileiro de Filosofia e Ciência ‘Raimundo Lúlio’, 2005, p. 32.

6. NUNES, Benedito. “O fazer filosófico ou oralidade e escrita em filosofia”, in: Ensaios


filosóficos. Organização e apresentação Victor Sales Pinheiro. São Paulo: Martins Fontes,
2010.

7. ORTEGA Y GASSET, José. O que é filosofia? Campinas, SP: Vide Editorial, 2016.

8. PINHEIRO, Victor Sales. A crise da cultura e a ordem do amor: Ensaios filosóficos. São
Paulo: É Realizações, 2021.

9. ROBINET, François, O tempo do pensamento. São Paulo: Paulus, 2004.

10. ROOCHNIK, David. Pensar filosoficamente: Uma

introdução aos grandes debates. São Paulo: Loyola, 2018.

11. SERTILLANGES, Antonin-Gilbert. A vida intelectual: Seu espírito, suas condições,


seus métodos. São Paulo, É Realizações, 2010.

12. SCIACCA, Michele Federico. Filosofia e antifilosofia. São Paulo: É Realizações, 2011.

13. VOEGELIN, Eric. Ciência, política e gnose, Coimbra: Ariadne, 2005.

ENCICLOPÉDIAS
A editora Idéias & Letras tem traduzido os importantes Companions
da Universidade de Cambridge, que são compilados de artigos
acadêmicos de especialistas sobre temas (como filosofia medieval,
ciência e religião, e filosofia crítica) ou autores (como Primórdios da
Filosofia grega, Sócrates, Platão, Aristóteles, Plotino, Agostinho,
Aquino, Scotus, Descartes, Spinoza, Hobbes, Locke, Kant, Hegel,
Nietzsche, Freud, Foucault e James). Todos eles são valiosos e
retratam o estado da arte da pesquisa acadêmica sobre o assunto, com
suas múltiplas interpretações.

DICIONÁRIO
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

HISTÓRIA DA FILOSOFIA (DESTAQUE PARA COPLESTON)


1. COPLESTON, Frederick. Uma história da filosofia. 4 vols. Campinas: Vide Editorial,
2021–2023.

2. MACINTYRE, Alasdair. Deus, a filosofia e as universidades. Uma história seletiva da


tradição intelectual católica. Brasília: Devenir Editora, 2021.

3. MARÍAS, Julián. História da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2015.

4. MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


2007.

5. REALE, Giovani; ANTISERI, Dario. História da filosofia. 3 vols. São Paulo: Loyola,
2017.

6. WEISCHEDEL, Wilhelm. A escada dos fundos da filosofia: A vida cotidiana e o


pensamento de 34 grandes filósofos. São Paulo: Angra, 2001.

Em inglês
1. KREEFT, Peter. The platonic tradition, Indiana: St. Augustine Press, 2018.

2. The philosophy of Thomas Aquinas. Maryland: Recorded Books, 2009.

3. Summa Philosophica. Indiana: St. Augustine’s Press, 2012.

4. Socratic Logic: A logic text using socratic method, platonic questions and aristotelian
principles. Indiana: Augustine, 2014.

OS CLÁSSICOS
Estas obras permitem o mergulho efetivo na filosofia. Ainda que não
sejam plenamente entendidas, merecem ser lidas e estudadas com
calma e dedicação.

Ao procurar as edições dos próprios filósofos, nem sempre


disponíveis em português, prefira as editoras universitárias (como a
Ed. UFPA, no caso de Platão, Ed. UNESP, no caso de Aristóteles,
Descartes, Hume e Schopenhauer, e Ed. UNICAMP, no caso de
Heidegger), assim como editoras consolidadas como a Martins
Fontes, no caso de Aristóteles, Hobbes e Kant, Companhia das
Letras, no caso de Nietzsche e Freud, Loyola e Vide Editorial, no
caso de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino, e É Realizações e
Ecclesiae, no caso de Santo Agostinho.

Não há tradução perfeita e nem é imprescindível saber a língua


original do filósofo, embora isso seja muito recomendado no
aprofundamento do estudo. Não espere pela edição ou tradução ideal
para se aventurar no contato com os próprios filósofos. Aqui, vale o
ditado popular: “mais vale um pássaro na mão do que dois voando”,
ou seja, uma edição razoável e acessível é melhor do que edições
melhores inacessíveis. A Coleção d’Os Pensadores, da Editora Abril,
pode ser encontrada em sebos e mesmo em bancas de jornal.
1. Pré-socráticos (sobretudo Heráclito e Parmênides), Fragmentos.

2. Platão, República, Banquete, Fédon e Apologia de Sócrates.

3. Aristóteles, Ética a Nicômaco e Metafísica.

4. Plotino, Enéadas.

5. Santo Agostinho, Confissões e O livre-arbítrio.

6. Boécio, Consolação da filosofia.

7. Santo Anselmo, Proslogion.

8. Santo Tomás de Aquino, Suma teológica e Suma contra os gentios.

9. Descartes, Discurso do método e Meditações.

10. Pascal, Pensamentos.

11. Hobbes, O leviatã.

12. Hume, Tratado da natureza humana.


13. Locke, Ensaio acerca do entendimento humano e Segundo tratado sobre o governo.

14. Leibniz, Discurso de metafísica e Ensaios de Teodicéia.

15. Rousseau, O contrato social e Discurso sobre a origem e os fundamentos da


desigualdade entre os homens.

16. Kant, Crítica da razão pura e Fundamentação da metafísica dos costumes.

17. Hegel, Fenomenologia do espírito.

18. Nietzsche, Gaia ciência, Assim falou Zaratustra e Para além do bem e do mal.

19. Kierkegaard, Ou-ou.

20. Husserl, A crise das ciências e a fenomenologia transcendental.

21. Sartre, O existencialismo é um humanismo.

22. Heidegger, Ser e tempo.

23. Chesterton, Ortodoxia.

24. Voegelin, Reflexões autobiográficas e Ordem e história.


NOTAS DE RODAPÉ
1 Conheça o meu livro A filosofia do direito natural de John Finnis, vol. 1: Conceitos
fundamentais, Editora Lumen Juris.

2 Tomista é quem desenvolve seu pensamento a partir de Tomás de Aquino, o maior


filósofo da cristandade.

3 Como Sócrates nada escreveu, conhecemos seu comportamento e pensamento pelas


representações literárias de Platão, Xenofonte e Aristófanes, cuja fidedignidade e criatividade
são objeto de intermináveis discussões.

4 Mortimer Adler, Aristóteles para todos: Uma introdução simples para um pensamento
complexo. São Paulo: É Realizações, 2010, pp. 126–127.

5 Luis Fernando Barzotto, “Direitos humanos”, in Filosofia do direito: Os conceitos


fundamentais e a tradição jusnaturalista, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010.

6 Cf. Aladair MacIntyre, Deus, a filosofia e as universidades: Uma história seletiva da


tradição intelectual católica. Brasília: Devenir Editora, 2021.

7 A.–D. Sertillanges, A vida intelectual: Seu espírito, suas condições, seus métodos & A
arte e a moral. Edição bilíngue. São Paulo: É Realizações, 2020.

8 Ibid., p. 23.

9 Mariano Fazio Fernández, Francisco Fernández Labastida, Historia de la Filosofía, IV:


Filosofía contemporánea. 2 ed. Madrid: Palabra, 2009; Gerald A. McCool, The Neo-thomists.
Wisconsin: Marquette University Press, 1994; Fergus Kerr, After Aquinas: Versions of
Thomism. Oxford: Blackwell, 2002.

10 No Brasil de hoje, temos a felicidade de acompanhar o renascimento editorial não apenas


deste clássico da vida intelectual, mas de outras obras suas, pela meritória iniciativa de editoras
como Calvariae (Santo Tomás de Aquino, vols. 1 e 2, 2021; O problema do mal, 2021; O mito
moderno da ciência, 2020; Grandes teses da filosofia tomista, 2019), Ecclesiae (O que Jesus
via do alto da cruz, 2021; O milagre da Igreja, 2015) e Cultor de Livros (Deveres: Dez minutos
de cultura espiritual por dia, 2020).

11 Sertillanges, op.cit., p. 19.

12 Ibid., p. 11.

13 Ibid., p. 95.
14 Ibid., p. 12. Disposições semelhantes são recomendadas pelo Cardeal Robert Sarah aos
que verdadeiramente desejam uma vida espiritual: Robert Sarah e Nicolas Diat, A força do
silêncio: Contra a ditadura do ruído. Prefácio de Bento XVI. São Paulo: Fons Sapientiae, 2017.

15 A.-J. Festugière, Contemplation et vie contemplative selon Platon. Paris: Vrin, 1975;
Henrique de Lima Vaz, Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo:
Loyola, 2000.

16 Tomás Melendo, Iniciação à filosofia: Razão, Fé e Verdade. São Paulo: Instituto


Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2005.

17 São Josemaria Escrivá, É Cristo que passa. São Paulo: Quadrante, p. 34 (n. 10).

18 São Josemaria Escrivá, Caminho. Edição comentada por Pedro Rodríguez. São Paulo:
Quadrante, 2016, p. 432–434 (n. 335–336).

19 A fecundidade internacional de Jordan Peterson se dá por ele antepor a ética à ação


política, criticando o ativismo histérico e não raro hipócrita. Tornou-se proverbial a sua
conhecida exortação: “Antes de querer mudar o mundo, arrume seu quarto”. Cf. 12 regras para
a vida: Um antídoto para o caos. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.

20 Paul Johnson, Os intelectuais. Rio de Janeiro: Imago, 1990. Nesse sentido, ver também o
clássico livro de Julien Benda, A traição dos intelectuais. Rio de Janeiro: Peixoto Neto, 2007.

21 Eric Voegelin, Ciência, política e gnose. Coimbra: Ariadne, 2005. Ver também C. S.
Lewis, A abolição do homem. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Interessa conhecer a tese de
Mario Vieira de Mello, segundo a qual esse gesto de transformação gnóstica da realidade
natural, em detrimento do cuidado moral e espiritual com a alma, remonta à ruptura de
Aristóteles com Platão, que vingou na modernidade a partir de Descartes: Mario Vieira de
Mello, O homem curioso: O problema da exterioridade na filosofia de Aristóteles. São Paulo:
Paz e Terra, 2001. Note que esse autor foi um dos responsáveis pela recepção de Voegelin no
Brasil, com obras como O conceito de uma educação da cultura: com referência ao estetismo e
à criação de um espírito ético no Brasil. São Paulo: Paz e Terra, 1986; O humanista: A ordem
na alma do indivíduo e na Sociedade. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.

22 Josef Pieper, Só quem ama canta: Arte e contemplação. São Paulo: Quadrante, 2021. No
prefácio que escrevi a este livro, intitulado “Epifania da beleza”, distingo também a
experiência moderna da clássica.

23 Este é um dos temas que enfrento no meu livro A crise da cultura e a ordem do amor:
Ensaios filosóficos. São Paulo: É Realizações, 2021.

24 Sertillanges, op.cit., pp. 89–90.

25 Ibid., p. 91.

26 Ibid., p. 99.

27 Sertillanges, op.cit., pp. 174–175.


28 Ibid., p. 175,

29 São Josemaria Escrivá, Caminho. Edição comentada por Pedro Rodríguez. São Paulo:
Quadrante, 2016, p. 912 (n. 999).

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