Diedra Roiz 1. Lorena sempre tinha sido o tipo que faz sucesso, não importando onde estivesse. Absolutamente enquadrada dentro dos padrões estabelecidos de simpatia, popularidade e beleza. Nada disso mudou depois que descobriu sua preferência por mulheres. Aos 17 anos, numa viagem com as amigas para Búzios. A irmã do dono da casa, uns cinco anos mais velha, tinha sido a primeira experiência absolutamente perfeita. Depois disso, Lorena não queria saber de mais nada. Figurinha fácil nas boates e festas LGBT, sempre muito bem acompanhada. Só percebeu que dez anos tinham se passado porque começou a se sentir muito cansada. – Cansada de quê, Lorena? – Os amigos perguntavam. Lorena não sabia explicar. Talvez imersa em algum tipo de crise dos 30 precoce, que a fizesse regredir ao desejo infantil dos contos de fadas: encontrar sua cara metade. Foi movida por esse sentimento que decidiu dar uma parada. – Como assim, uma parada? – Vou fechar pra balanço. – Essa era a resposta bem humorada. Foi uma comoção geral. Lorena, logo Lorena, que em dez anos nunca tinha sido vista sozinha, a mulher mais interessante e deliciosa do pedaço, virar uma celibatária? – Quero encontrar meu par perfeito. Desistiu de explicar depois que a milionésima pessoa riu na cara dela e falou: – Cara, eu não sei o que você tomou, mas isso aí é a maior viagem! *** Enquanto isso, Priscila estava sentada em frente ao monitor de LCD de 30”. Conversando com um de seus três HDs. Não por estar entediada, mas por ser um hábito que tinha adquirido há muito tempo. Desde o dia em que havia percebido que entendia melhor os computadores do que as pessoas. E vice-versa. Um barulhinho no fone de ouvido avisou a presença do irmão gêmeo no MSN. Apesar de estar no quarto ao lado, Patric sabia perfeitamente que o único jeito de conseguir falar com Priscila era através da internet. Patric diz: pensou no q eu te pedi? Sem parar o que estava fazendo – jogando seu MMORPG preferido, Lineage II – The Chaotic Throne, com a rapidez incrível que os anos no teclado lhe conferiam, respondeu: Priscila diz: nem precisei pensar. Resposta de sempre: NÃO!!! Patric diz: por favor, Pri... Priscila diz: q diferença faz ir comigo ou sozinho? Patric diz: apoio moral? Priscila diz: vc eh o viado + chato q eu conheço, sabia? Patric diz: sou o único viado q vc conhece... rs... talvez o único ser humano, na verdade... kkk... E, antes que ela pudesse responder, completou: Patric diz: tô falando fora do second life... rs... O canto da boca de Priscila se contorceu em algo que foi quase um sorriso. Antes dela digitar com a ironia mordaz de sempre: Priscila diz: hahaha... so funny... Patric diz: vem comigo? Please? Priscila diz: nope. Patric diz: pleaaaaaaaaaaaaaaaase!!! Se tá preocupada com o q vestir, n vai ser problema pra vc. Priscila mordeu a isca: Priscila diz: como assim? Patric diz: a festa eh a fantasia... Pega uma das q vc usa nas convenções malucas q sempre vai. Eh sucesso garantido! Dessa vez, Priscila não só sorriu. Riu. Com um desprezo terrível: Priscila diz: defina sucesso, darling... Patric diz: numa festa? Pessoas te olhando e te desejando. Priscila riu mais ainda: Priscila diz: patético!!! Patric diz: o q vc tem eh medo!!! A resposta não foi novidade. Patric já a tinha ouvido – ou melhor: lido – várias vezes: Priscila diz: medo? de n viver obcecada em obter coisas q eu n desejo só pra q os outros vejam? do q vc chama de sucesso? muitíssimo obrigada, mas... tenho medo mesmo!!! Patric diz: claro, vc prefere aumentar sua miopia se expondo a radiação do monitor do computador 24h por dia... Patric aproveitou o silêncio do outro lado para insistir: Patric diz: vem comigo, por favor. preciso de vc... Priscila continuou estática. Patric seguiu com o bombardeio de chantagens: Patric diz: eu nunca te peço nada... n me deixa na mão... por favor, Pri, preciso muito q vc venha... Até Priscila não aguentar: Priscila diz: ok. mas só vou ficar até cansar. Patric já sabia que isso queria dizer uns 5 minutos mais ou menos. Mesmo assim concordou: Patric diz: ok. feito. Torcendo para que daquela vez fosse diferente. *** – Vamos lá, Lorena... Se você não vier vou ficar muito chateada com você. Lorena equilibrou o telefone sem fio entre o ombro e a orelha para poder passar hidratante nas pernas enquanto falava: – Não sei... Na verdade tinha até comprado uma fantasia. Mas estava começando a mudar de ideia, sem saber muito bem por que razão... Adriana – a melhor amiga há séculos – perdeu a paciência: – Não sabe o quê, Lorena? Lorena colocou o telefone no viva voz enquanto ajeitava o cabelo: – Tô curtindo ficar em casa. Depois de um suspiro exasperado, a amiga mudou de estratégia: – E se ela vier? Lorena franziu a testa. E perguntou, exatamente como Adriana tinha planejado: – Ela? Ela quem? Depois de uma pausa para obter o efeito de ansiedade desejado, Adriana finalmente respondeu: – Sua alma gêmea. Priscila ficou parada. Estática mesmo. Não tinha pensado nessa possibilidade. A amiga continuou: – Vai perder essa oportunidade? Lorena nem pensou duas vezes: – Te vejo mais tarde. E desligou correndo. Muito pouco tempo para toda a produção que tinha para fazer. *** – Caramba, Pri! Você ainda tá assim? Um Patric fantasiado de cowboy exclamou depois que a porta eternamente trancada do quarto de Priscila se entreabriu e ele a viu de camiseta e calça jeans. – Imaginei qualquer coisa, menos que você fosse de vaqueiro! Patric nem afastou as revistas da cama da irmã antes de se atirar sobre o colchão: – Brokeback Mountain, meu bem. Deitou de lado, a mão apoiando a cabeça: – E você, vai de quê? – Sei lá, tanto faz. Com um sorriso que Priscila não conseguiu entender, o irmão sugeriu: – Vai com aquele uniforme de escola japonesa... Priscila estranhou: – Você acha? O entusiasmo repentino de Patric a deixou ainda mais desconfiada: – É super legal... Mas acabou dando de ombros, completamente sem saco. Vestiu-se rapidamente. Não tirou os óculos – não enxergava sem eles e se recusava a usar lentes de contato – e prendeu os cabelos num rabo. Estava pronta e arrumada. Desligou os três monitores. Patric ainda perguntou – apontando surpreso para o PC – antes de saírem: – Não vai desligar? Por questão de segurança, Priscila tinha deixado o computador fazendo o back up de alguns arquivos para o disco virtual, mas... Nem se deu ao trabalho de responder. Ele não ia entender mesmo. *** Lorena estava detestando a festa. Claro que, como sempre, fez o maior sucesso. Recebeu vários olhares, cantadas e até algumas tentativas ousadas de beijo. Exatamente por isso estava de saco cheio. Já tinha resolvido ir embora quando algo a fez mudar de ideia. Abriu a porta, pronta para sair à francesa – porque se despedir levaria no mínimo uma hora e meia – quando deu de cara com Patric – vestido de Brokeback Mountain, ela reconheceu na hora – acompanhado por uma garota que nunca tinha visto na vida. A garota era comum. Nem bonita, nem feia. Jamais chamaria a atenção de Lorena se não fosse por... A roupa que usava. Uniforme de escola japonesa como o dela. As duas estavam... Idênticas. Lorena não acreditava em coincidências. Achava que em toda brincadeira do destino existia algo. Uma pista, uma dica, um detalhe importante a ser desvendado. E, para ela, o real significado daquilo estava claro: parada ali na frente dela estava a alma gêmea que tanto procurava. *** Foi muito mais do que rápida: – Oi Patric, tudo bem? Patric estranhou. Lorena nunca tinha trocado com ele mais do que duas palavras. Nem jamais tinha feito tanta questão de ser simpática. Cumprimentou-a rapidamente, os olhos percorrendo tudo que podiam alcançar da sala como um periscópio. – Não me apresenta? – tentou chamar a atenção dele, uma vez que a garota, incrivelmente, sequer olhou de relance para ela. Lorena, por outro lado, a olhou acintosamente, de cima a baixo. Pernas bonitas, corpo razoável. Os óculos deviam fazer parte da fantasia, porque... Nem a pessoa mais míope do mundo se prestaria a ir a uma festa sem lentes de contato... Brancura quase transparente. Se não fossem os olhos e cabelos castanhos, Lorena teria certeza: é uma albina. Ou uma vampira, quem sabe? Se deixaria ser mordida de muito bom grado... Lorena não conseguiu conter o sorriso malicioso que o último pensamento lhe fez bailar nos lábios. Sem parar a inspeção que fazia das pessoas da festa, Patric perguntou distraidamente: – Ãh? Lorena lançou seu olhar mais sedutor para a garota na frente dela. Nada. Priscila não fez por mal. Na verdade, nem percebeu a súbita atenção que a outra lhe dispensava, ocupada em suspirar exasperada e em contar os segundos para poder se retirar. Assustou-se quando a garota falou, tão próxima que se desse um passo para frente os corpos ficariam colados: – Oi... Prazer. Eu sou a Lorena. Priscila hesitou por um momento. E nada disse. Lorena estranhou, mas foi incisiva: – E você é? Priscila deu um passo para trás, achando a outra desconfortavelmente invasiva. Acabou respondendo: – Priscila. Lorena não estava entendendo. Nunca tinha sido tão ignorada. Muito menos rejeitada daquele jeito. Acostumada que estava em ter quem quisesse sem precisar se esforçar. A total falta de interesse de... Priscila – provou o nome da outra deliciada – a deixou com muito mais certeza. A rejeição dela era – só podia ser – mais um sinal. Tentou puxar assunto: – Você e Patric se conhecem há muito tempo? Lorena a observou atentamente, não querendo deixar escapar um detalhe. Adorou quando Priscila sorriu. E quando fez um olhar enigmático adorável: – Desde que eu era uma pequena célula. Lorena não entendeu nada. Achou que talvez tivesse perdido alguma parte da conversa, compenetrada em gravar cada detalhe do rosto de Priscila em sua mente: – Desculpe, eu não entendi... Fazendo Priscila rir... Dela. Em qualquer outra circunstância, Lorena ficaria irritada. Mandaria a outra para lugares nem um pouco agradáveis. Mas naquela situação única, singular, surpreendente, parecia que cada gesto, cada palavra, cada olhar de Priscila deixava Lorena... Cada vez mais apaixonada. Ela era... Perfeita. Lorena tinha certeza: estavam predestinadas... – Somos gêmeos. Patric explicou, estragando a diversão de Priscila – estava adorando fazer a patricinha idiota de palhaça. Antes de completar: – Bom, já que estão devidamente apresentadas e aparentemente se dando tão bem – Lançou um olhar sarcástico para Priscila, sabia que Lorena era o tipo de garota que a irmã detestava. – Vou circular. Gêmeos? Interessante. Como tudo nela... Lorena sorriu, achando graça. Mais ainda quando percebeu que pela primeira vez na vida, não sabia o que fazer. Estava... Nervosa, insegura, sem palavras. As mãos tremiam, geladas. Diferente de tudo que já tinha experimentado. A voz saiu fraca: – Vocês não são nada parecidos... Priscila a olhou sem acreditar. Respondeu com a ironia que lhe era peculiar: – Gêmeos bivitelinos. Já ouviu falar? Num primeiro momento, Lorena não acreditou que a mulher da vida dela a estivesse tratando daquele jeito. Inacreditável... Ficou tão perplexa que nem conseguiu falar. Quando afinal recuperou-se e ia dar a resposta que estava atravessada, Priscila a olhou inteira, como se a inspecionasse. Lorena sentiu uma fraqueza inacreditável com aquele simples olhar. E voltou a ficar sem palavras. Inacreditável... Priscila olhou Lorena de cima a baixo. Bonita. Pra não dizer linda. Toda produzida, das unhas dos pés cuidadosamente pintadas ao cabelo impecável. Provavelmente passava muito mais tempo em frente ao espelho do que em qualquer outro lugar. Lamentável... Priscila não conseguiu evitar: – Procura no Google. Vai encontrar tudo que precisa saber lá. Já ia se afastar, quando Lorena a segurou pelo braço. Cara metade ou não, a paciência de Lorena tinha se esgotado. Não ia ficar ali sendo maltratada sem fazer nada: – Sabia que a intolerância é responsável pelo mundo estar desse jeito? O embate foi inevitável. Priscila não facilitou: – Em que concurso de beleza você aprendeu e decorou essa frase? Não me diga que o que você mais deseja é a paz mundial... E riu. Lorena perdeu completamente a calma: – Sabia que beleza e inteligência não são coisas contrárias? A resposta de Priscila foi imediata: – Mas é quase impossível andarem lado a lado. Lorena levantou uma das sobrancelhas. Desafiou: – Você acha? Priscila nem piscou: – Tenho certeza. Depois de um risada sedutora, que já tinha deixado muita gente de quatro, Lorena provocou ainda mais: – Quer dizer então que você é burra? Aproximou-se a ponto de fazer Priscila gaguejar: – O que... O que você quer dizer? Doce, macio, suave. Foi o tom de voz de Lorena. Fitando Priscila nos olhos e depois nos lábios: – Que não acho você feia. Pelo contrário. Nesse momento, os olhos se encontraram. Nenhuma das duas soube dizer exatamente como, quem tomou a iniciativa, ou se foi um movimento sincronizado... A única certeza foi a perfeição com que os lábios se aproximaram, se saborearam, se aprovaram. Priscila se espantou, mas o que sentiu foi tão forte que não conseguiu mais pensar. Instintivamente entreabriu os lábios e quando as línguas se tocaram, o coração acelerou, asas de passarinho batendo alto dentro do peito, tão alto que Lorena conseguiu escutar. Mergulhada na boca de Priscila, de olhos fechados, Lorena sentiu o momento exato em que a entrega das duas aconteceu de fato. O corpo todo de Priscila parecendo pulsar descompassado, mas absolutamente em sintonia com o ritmo em que o de Lorena estava. Abraçando-a pela cintura, puxou-a para si carinhosamente, cheia de cuidados. Deixou escapar um gemido quando Priscila também a envolveu com os braços. Foi o gemido de Lorena que fez Priscila voltar à realidade. Controlou-se, apesar de não desfazer o contato dos lábios. Lorena sentiu a diferença nitidamente. Como se, de repente, Priscila escapasse por entre os dedos, se tornasse distante, fria, intocável. O beijo terminou exatamente como começou: sem que nenhuma das duas pudesse precisar quem o encerrava. Afastaram-se, um pouco sem graça. Um momento absurdamente constrangedor se estabeleceu. Lorena se desesperou. Ansiando por um contato, qualquer tipo de contato, iniciou – ou tentou iniciar – o mais descabido e estapafúrdio de todos os diálogos: – Você trabalha em quê? Priscila a olhou sem acreditar. Nem se deu ao trabalho de responder. Mesmo se tivesse vontade, e aquela não fosse a mulher mais louca, estranha e bizarra que já tinha conhecido em toda a vida dela – e por ser tão conectada à internet, não era fácil Priscila classificar alguém como louco, estranho e bizarro –, não ia perder tempo explicando. A tal Lorena não ia entender mesmo... Nem o irmão gêmeo conseguia entender o que Priscila fazia para viver... Murmurou um: – Vou indo... Quase ininteligível de tão baixo. Mas Lorena ouviu. E deixou escapar um: – Já? Priscila apenas acenou com a cabeça afirmativamente. Não querendo falar mais nada. Desejando apenas poder voltar para a proteção reconfortante da vida virtual. Mas Lorena não pretendia deixar: – Eu te levo. Fazendo Priscila se encolher, como se Lorena tivesse proposto algo inaceitável. Provocando uma recusa quase gritada: – Não! O olhar magoado de Lorena fez Priscila se sentir mal. Tentou melhorar: – Não precisa se incomodar. Os olhos de Lorena voltaram a brilhar. Ela sorriu. De um jeito que deixou Priscila ofuscada. Insistiu: – Incômodo nenhum. Faço questão de te deixar em casa. Sem joystick, mouse nem teclado. Como se Lorena fosse um vírus desconhecido que estivesse testando seu nível de proteção. Priscila a seguiu, torcendo para ter defesas suficientes. No fundo, dolorosamente consciente de que ia precisar de uma boa atualização em seu firewall. *** Lorena parou o carro em frente à portaria de Priscila e não a deixou sair. Não precisou usar de força, muito menos de violência. Foi isso que deixou Priscila mais preocupada, revoltada consigo mesma. Por estar gostando – e aproveitando – a ponto de ficar ali durante duas horas e meia conversando com Lorena. Por mais estranho que pudesse parecer, ela era uma excelente ouvinte, além de também ter muito a dizer. Inevitavelmente, a conversa acabou levando a uma nova tentativa – dessa vez frustrada por Priscila – de beijo: – O que você tá querendo? Não tô entendendo... Uma Priscila desesperada tentou inutilmente se defender. Lorena sorriu. Colocou a mão na perna de Priscila de um jeito que a fez estremecer: – Não tá entendendo o quê? Que eu tô muito, mas muito interessada em você? Incoerente. Era o que Priscila achava da estranha declaração. Mais ainda quando Lorena completou: – Não acredita em amor à primeira vista? Priscila ficou tão perplexa que a princípio se calou. Abriu e fechou a boca várias vezes. Depois franziu a testa e chegou à única conclusão plausível num caso daqueles: – Isso é algum tipo de brincadeira? Fez alguma aposta com suas amigas ou algo do gênero? Lorena a olhou profundamente. Querendo que Priscila aceitasse, entendesse, correspondesse: – Eu também não acreditava. Até colocar meus olhos em você. Não foi o que Lorena disse. Foi a forma como Priscila sentiu o corpo arrepiar inteiro... Que a fez dizer: – Eu... Eu não sou gay... Lorena abaixou a cabeça tentando esconder o sorriso imenso que não conseguiu conter. E não teve como deixar de dizer: – Difícil acreditar que você seja hetero depois do jeito que me beijou, não é mesmo? Surpreendentemente, Priscila respondeu: – Eu não sou hetero também... A incredulidade de Lorena foi evidente. Nem precisou pedir, Priscila explicou voluntariamente: – Sou assexuada. – O quê? Lorena gritou sem querer. Não querendo acreditar. Preferindo pensar que não tinha escutado direito. Priscila continuou: – Não acredito em contato físico. Não vejo um objetivo, entende? Lorena balançou a cabeça negativamente. O estado de choque aumentando conforme Priscila ia falando: – É uma total perda de tempo. Sabia que quando você faz sexo com uma pessoa a energia dela fica no seu corpo durante 6 meses? Além do quê... Ninguém vai saber me tocar melhor do que eu mesma... Paralisada. Boquiaberta. Sem conseguir se mover. Lorena continuou assim durante algum tempo. Depois parou de medir as palavras: – Quer dizer que você nunca fez? Com outra pessoa, nem na vida real, quero dizer... Priscila respondeu absolutamente orgulhosa de si mesma: – Nem vou fazer. – Tem certeza? Com um movimento ágil, impossível de prever, Lorena puxou Priscila pelo pescoço, e grudou os lábios nos dela. Dessa vez Priscila não tentou resistir. Deixou-se afundar na correnteza. Mergulhada num descontrole profundo, desconhecido e intenso. Sentiu o próprio corpo suspirar, gemer, derreter, sem que pudesse fazer nada. Não entendendo mais nada, muito menos a si mesma. Montanha russa de sentimentos que a fez lamentar quando Lorena encerrou o beijo. Olharam-se durante um breve momento. Numa pálida tentativa de um entendimento que não veio. Lorena ainda sem saber explicar para si mesma porque havia parado, uma vez que Priscila não tinha esboçado qualquer resistência. Tomada pelo mais incontrolável e primitivo medo, Priscila saiu do carro quase correndo. Lorena voltou para a festa. Procurou e encontrou Patric, pouco se importando com o fato dele estar aos beijos com um moreno alto na porta do banheiro. Foi dizendo: – Com licença! Enquanto o empurrava para um canto, Patric ainda tentou protestar: – Ei... Mas Lorena estava desesperada: – Você precisa me ajudar! Atônito, sem entender nada, Patric a ouviu explicar: – Tô apaixonada pela sua irmã. O que eu faço? Patric deu uma risada. Como se tivesse escutado uma piada. E disse na maior sinceridade: – Se mata! – Patric, eu tô falando sério! Impossível duvidar. Principalmente quando Lorena – a irresistível e poderosa Lorena – se debulhou em lágrimas. – Não fica assim... Calma... Nem o nariz entupido a fez perder o charme. Pegou um lencinho na bolsa e enxugou os olhos se olhando no espelho da caixinha de batom, com cuidado para não estragar a maquiagem: – Desculpa. Essa história toda me deixou um pouco alterada... A vontade de Patric foi dizer: “Um pouco?” – achando aquilo tudo totalmente absurdo, para não dizer hilário –, mas não o fez. Ficou esperando Lorena recompor-se, se perguntando aonde ela ia chegar. Lorena retocou o lápis nos olhos que as lágrimas tinham borrado antes de falar: – Preciso encontrar a Priscila de novo! Patric continuou com a mesma expressão de quem não acreditava. Coçou a cabeça antes de falar: – Sinceramente? Isso é quase impossível... Ela não sai de casa. – Me dá o celular dela. – A Priscila não tem celular. – O quê? Lorena nem conseguia imaginar como ela fazia para viver e... Comunicar-se. Até Patric esclarecer: – Se quer falar com a Priscila, tem que usar a internet. Lorena arregalou os olhos. Sacudiu a cabeça numa negação total: – Você só pode estar brincando! Patric deu de ombros antes de reafirmar: – A vida dela é virtual. Lorena era uma analfabeta virtual. Achava a Internet a maior das perdas de tempo. Mal sabia abrir seus e-mails... Confessou: – Não sei o que fazer. – Começa pelo MSN. O suspiro de desespero de Lorena foi tão profundo que Patric se ofereceu: – Calma. Vou te ajudar. Mais um suspiro. Dessa vez resignado. Afinal de contas, Lorena acreditava que, pelo amor verdadeiro, qualquer sacrifício seria válido... *** Uma semana e muitas horas de aulas depois – Patric também não era nada genial com computadores, mas felizmente sabia o básico – Lorena conseguiu aprender, com muita dificuldade, o bastante para instalar um MSN. – E agora? Com toda a paciência do mundo – afinal de contas Patric queria e muito que Priscila “desencalhasse” – ele explicou: – Agora precisa pedir autorização pra poder adicionar a Priscila. – Como assim? – Só pode falar com ela se ela aceitar. Lorena achou aquilo o fim. Voltou a se desesperar. Foi preciso que Patric a lembrasse: – Queridinha, você é a rainha das sapas. Não é possível que não consiga pensar numa mensagem que faça a minha irmã te adicionar. Lorena nunca tinha corrido atrás de ninguém. Sempre tinha sido muito fácil. Sorriu, vendo naquilo mais um sinal. Como se, a cada obstáculo ultrapassado, ela se tornasse mais digna do prêmio final. Já podia quase escutar, num tom de narração enfático: E foram felizes para sempre... Pensou cuidadosamente. Com calma. Repetindo mentalmente de forma incansável: “A pressa é inimiga da perfeição”. Demorou dois dias para conseguir elaborar a frase que certamente a levaria à próxima fase... *** Priscila ficou muito tempo olhando para as palavras na tela: “Você me apresenta ao mundo virtual?” Não sabendo direito o que pensar. Acabou clicando em “aceitar o convite”. Apesar de absolutamente não compreender por que razão o fez. *** Lorena estava parada na frente do computador, numa terrível ansiedade. Quando um bonequinho verde – que agora ela sabia que queria dizer “online” – apareceu ao lado de Priscila, clicou no contato – o único que tinha e que a interessava – e uma janela se abriu. No topo se lia: Priscila “O pêndulo da mente se alterna entre perceber e não perceber, e não entre certo e errado (Jung)” Lorena digitou um tímido: oi... tudo bem com você? Como resposta, obteve: Priscila diz: você eh vc Lorena diz: O quê? Não entendi Priscila diz: você = vc tudo = td tem q aprender a tc Lorena diz: o q é tc? Priscila diz: rs rs Lorena diz: o q é rs? Priscila diz: tc = teclar rs = risos em q mundo vc vive? A resposta surgiu imediatamente: “no real, ora essa!” – mas Lorena estrategicamente a engoliu. *** Como vontade é tudo, Lorena aprendeu a “tc” rapidamente. A única coisa que não conseguiu foi aumentar a velocidade com que digitava. Mas como diz o ditado: “há males que vêm para bem”. E foi exatamente por causa disso que uma Priscila exasperada – era um tédio esperar as respostas de Lorena, especialmente para quem digitava tão rápido – fez algo que, para alguém que odiava até telefone, era inusitado. Priscila diz: vc tem mic? Lorena diz: n sei, o q eh mic? Priscila diz: rs rs microfone Lorena diz: tenho mas n sei usar Priscila diz: te ensino Lorena diz: ok Depois de muita confusão – e de, incrivelmente, Priscila não ficar irritada –, Lorena conseguiu ouvir e falar com Priscila. Ficou tão aliviada que teve uma crise de sinceridade: – Não acredito que você me fez catar milho esse tempo todo se a gente podia simplesmente falar! Surpresa, decepção, raiva. Foi o que sentiu quando obteve a resposta: Priscila diz: vc fala e eu tc Respirou fundo. Contou até dez. Priscila era, sem sombra de dúvida, a pessoa mais inusitada – e difícil – que já tinha conhecido. Uma pessoa tão singular só poderia ter nascido para ela. O pensamento a fez deixar escapar um suspiro sonhador, de adolescente apaixonada ou algo do tipo. Sorriu. Mesmo sem ter noção do quanto já havia conseguido adentrar nas impenetráveis muralhas que Priscila tinha cuidadosamente erguido. *** – Tenho que ir trabalhar. Era o que Lorena dizia diariamente. Cada dia num horário completamente diferente. Priscila diz: vc trabalha com q? Lorena precisou ler três vezes a mensagem para acreditar. Era a primeira vez – depois de quase um mês – que Priscila demonstrava algum tipo de interesse ou curiosidade. Chegou a ficar emocionada. Sentiu algo inacreditável. Quase como se Priscila tivesse dito que a amava. Recompôs-se antes de responder: – Sou promoter. Um instante de vazio na tela, que Lorena agora já interpretava como “silêncio” enquanto Priscila abria o Google e procurava. Encontrou no Yahoo! Respostas: “Pessoa responsável por organizar e promover um determinado evento, recepção, festas, seminários, etc. responsável, principalmente, pela lista de convidados de uma festa ou evento. O Promotor de Eventos ocupa-se do desenvolvimento de atividades de planejamento, de captação, de promoção, realização, administração dos recursos e prestação de serviços especializados de eventos. A profissão de promoter exige dedicação e muitos, mas muitos contatos. É fundamental ter muito pique, gostar do que faz e, acima de tudo, ser muito carismático. Tem que fazer as pessoas se interessarem pelo evento que está divulgando. Normalmente, o promoter é extrovertido, gosta de curtir a noite e faz amizades muito fácil.” Quando Lorena pensava que ia morrer de ansiedade, leu: Priscila diz: vc deve ter uma vida social intensa Era bom demais para ser verdade. Lorena teve que ler a frase outra vez antes de acreditar que Priscila estava realmente sendo pessoal. Tinha conseguido ultrapassar as frases telegráficas, frias e didáticas dela. Começou a pular como uma louca dentro do quarto. Rindo e gritando. Esquecendo completamente que o microfone estava ligado. Só percebeu quando leu: Priscila diz: isso eh algum tipo d demo? Mordeu o lábio inferior. Antes de responder: – O quê? Demo? Como no exorcista? Priscila quase teve uma síncope de tanto rir. Demorou o que para Lorena pareceu séculos para conseguir digitar algo além de: Priscila diz: rs rs Priscila diz: DEMOnstração... Lorena não aguentou. Saiu sem pensar: – Demonstração de quê? Fala! Digita! Tc, sei lá! Priscila diz: de como uma promoter tem q ser animada? rs rs Qualquer outra pessoa ficaria sem saber se ria ou se matava, mas felizmente, Lorena tinha um jogo de cintura invejável. E aproveitou a brecha que estava esperando durante todo aquele tempo: – Nem a metade do que seria se nos encontrássemos de novo. Pessoalmente, é claro. Priscila nem parou para pensar. Digitou muito mais do que rápida: Priscila diz: pessoalmente pq? n ta bom assim? Lorena nem pesou as vantagens e desvantagens. Falou sem medir as palavras. Com total sinceridade: – Quero muito mais. Na mesma hora, Priscila ficou offline. Assustada com a forma como as mãos estavam tremendo. Lorena, por outro lado, ficou desesperada. Sem saber como conseguiria trabalhar daquele jeito. Tomou coragem. Não era mulher de se deixar abater. Sabia tirar proveito de qualquer situação, mesmo de uma absolutamente desfavorável como aquela. Digitou: Lorena diz: pode fugir de mim, mas n de si mesma Na mesma hora apareceu na tela: Priscila está Offline. As mensagens enviadas serão entregues quando esse contato entrar. Desligou o computador com um sorriso. Que permaneceu enquanto se arrumava e muito depois de ter saído de casa. *** Priscila demorou mais de duas horas para ter coragem de voltar a entrar no MSN. Uma estranha dualidade de sentimentos – alívio e decepção – quando viu que Lorena não estava conectada. A simples percepção de que tinha acabado de confessar para si mesma que Lorena a fazia sentir algo a fez ficar apavorada. Mais ainda quando leu a mensagem que ela tinha deixado. Ficou sem saber o que fazer. Estranhamente, optou por “aparecer offline”. Com uma estranha ansiedade que não sabia explicar. Quando finalmente entendeu, deixou escapar um gemido baixo. Dolorosamente consciente de que estava esperando Lorena voltar. *** Mas Lorena não o fez. Durante dois dias inteiros. Aproveitou para rever alguns amigos, falar no celular, resgatar um pouco sua vida normal. Apesar de ter que reprimir a vontade de ligar o computador, abrir a caixa de mensagens, o MSN... Aquilo era um vício, uma praga, uma sarna que coçava sem parar. Um súbito insight a fez se acalmar. Não era a internet que a interessava. Não era mais uma vítima da virtualidade. Continuava sendo a Lorena de sempre. Com uma única diferença: algo muito mais do que nobre, sincero, belo. O amor que sentia por Priscila. *** Assim que Lorena voltou a se conectar – depois dos dois dias que para Priscila foram quase improdutivos – a janela do MSN se abriu. Priscila diz: oi Lorena parou, esperou, demorou um longo tempo. Antes de finalmente responder: Lorena diz: oi Já Priscila digitou com uma rapidez incrível: Priscila diz: vc sumiu Aquilo não era uma brecha. Era uma rachadura imensa. Lorena não perdeu tempo: Lorena diz: sentiu minha falta? Alguns minutos de silêncio. Nos quais Priscila se debateu. Antes de digitar as três letrinhas da palavra pequena, mas incrível: Priscila diz: sim Lorena voltou a saltitar e dar gritinhos pelo quarto. Estava com o microfone desligado mesmo... Comemorou intensamente o momento que seria perfeito se... Priscila não ficasse novamente offline. Bufando de raiva. Xingando todos os palavrões que tinha direito. Foi como Lorena reagiu. Achando aquilo de um ridículo extremo. Bater a porta ou o telefone na cara dela tudo bem. Mas o MSN? Já estava digitando a mensagem desaforada que Priscila merecia quando do nada recebeu: Priscila diz: quero namorar com vc O queixo de Lorena caiu. Ficou olhando para a tela de boca aberta durante um breve momento. Depois respondeu. Nunca tinha digitado rápido daquele jeito: Lorena diz: to indo praí Foi imediato. De uma velocidade ainda mais incrível: Priscila diz: N!!! ESPERA!!! Lorena voltou a se sentar. Levou as mãos à boca, mordeu nervosamente as pontas dos dedos. Fechou os olhos e quando os abriu de novo, leu: Priscila diz: virtualmente Suspirou profundamente. Disse para si mesma: “não vou desistir!” Respirou fundo. Preparando-se para o diálogo sem fala: Lorena diz: n entendo Priscila diz: namoro virtual Lorena diz: como eh isso? Priscila diz: msn, facebook, email, second life, twitter Lorena diz: sem contato físico? Priscila diz: eh Lorena diz: n sei Priscila diz: n sabe se quer? Lorena diz: n sei como fazer Priscila diz: te ensino quer? Lorena diz: quero vc Priscila diz: vai ter As duas pararam ao mesmo tempo. Relendo as duas últimas frases. Tentando decifrar o que exatamente queriam dizer. Para evitar qualquer erro de interpretação, Priscila fez questão de especificar novamente: Priscila diz: virtualmente Lorena diz: ok Priscila suspirou aliviada. Sem imaginar que Lorena estava pensando, com um sorriso imenso: “isso é só o começo!” *** – Lorena, eu não entendo! Você enlouqueceu? Uma Adriana quase desesperada berrou ao telefone. Lorena deu uma resposta monossilábica qualquer. Adriana se irritou ainda mais ao ouvir o barulho dos dedos da amiga batendo continuamente no teclado: – Dá pra parar com esse inferno? Nunca tinha visto – quer dizer: ouvido – Adriana alterada daquele jeito. Por isso, e só por isso, digitou: Lorena diz: pera, amor. tel Priscila diz: ok Mandou um beijo para a tela – apesar de Priscila não poder ver, porque odiava, se recusava a usar webcam – e falou: – Pronto, Adriana. O que você quer tanto me dizer? Um suspiro exasperado. E depois a frase quase gritada: – Você enlouqueceu! Faz meses que não sai da frente desse computador... E esse namoro de vocês... Lorena, isso não é normal! Lorena sacudiu a cabeça negativamente. Não ia deixar ninguém – nem mesmo a melhor amiga – estragar tudo que tinha conseguido conquistar até aquele momento com um esforço gigantesco: – Até parece que eu sou a única pessoa no mundo a ter uma namorada virtual. Adriana voltou a atacar: – Lorena, escuta o que você tá dizendo! As pessoas namoram virtualmente quando namoram à distância. E ainda assim combinam, querem e conseguem se encontrar. Nunca ouvi falar em namoro virtual entre pessoas que moram na mesma cidade! E que nunca se vêm pessoalmente! É o fim da picada! Lorena começou: – Ai, Adriana, nem... Mas a amiga não a deixou completar: – Todo mundo precisa de sexo! Beijar na boca, dar uns amassos! Não é possível! Você não sente falta? Lorena sentia, claro. Mais do que isso: queria, precisava, desejava... Consolava-se repetindo para si mesma: “Só preciso ter um pouco mais de paciência”. – Você não vai entender. É muito complicado. O tom de voz sofrido, quase deprimido da amiga fez Adriana perder a calma. Começou a gritar: – Não, não é complicado! Se apaixonar, namorar, trepar, é muito simples! A sua namorada é pirada! Essa é a verdade! – Não fala assim da Pri! Lorena defendeu Priscila sem pestanejar. Como sempre fazia – muito mais constantemente do que desejava, aliás. – Tudo bem, Lorena. Me liga quando você voltar ao normal. Nos últimos meses, Lorena tinha perdido a conta de quantas vezes tinha escutado aquela frase. Mas nem assim estava disposta a voltar atrás. Tinha certeza do que sentia por Pri. E do que Pri sentia por ela. Amavam- se. Muito. De verdade. Virtualmente, é claro. Mas esse era só um pequeno detalhe. *** Priscila estava perfeitamente consciente de que estava apaixonada. Mais do que isso: estava curtindo e gostando da novidade. Por que não estaria? Lorena era perfeita. Afinal de contas, não era qualquer namorada que aguentaria ficar acordada com ela sem reclamar até que o novo programa que estava testando rodasse. Outra coisa que adorava em Lorena era o fato dela nunca se recusar a nada. Pelo contrário, se entregava à namorada e ao mundo virtual com uma confiança que Priscila achava uma graça. Depois que Lorena desligou o telefone, viu que Priscila tinha enviado alguns emotions de mulheres se beijando. Das primeiras vezes tinha achado engraçado. Depois tinha aprendido. A resistência se desmanchando com uma facilidade absurda. Permitindo que Priscila a ensinasse, a conduzisse, a guiasse. Tinha rapidamente deixado de lado todo e qualquer pudor da recém perdida virgindade virtual. Era só Priscila começar: Priscila diz: me beija... Que respondia: Lorena diz: uhm... isso me da uma vontade... Priscila diz: vontade de q? E daí continuavam. Lorena estava muito mais do que cansada do sexo casual meio automático, feito apenas por fazer. Sexo virtual foi uma descoberta ao mesmo tempo surpreendente e agradável. Incrivelmente, exigia que ela estivesse totalmente presente. Imaginação, provocação e instigação inteiramente voltadas para dar e receber um inusitado e inesperado tipo de prazer. Claro que para Lorena, aquilo era apenas uma entrada – e não o prato principal – para seu objetivo final: sexo na vida real. Com paciência. Passo a passo. Tinha certeza que ainda conseguiria chegar lá. *** Quando pensava que não teria mais surpresas, aconteceu. No auge das preliminares virtuais, quando Lorena pensava que não ia aguentar mais: Priscila diz: amor, vamos pra minha casa Lorena parou. Sem saber o que isso queria dizer. Ficou perdida, porque... O certo não seria dizer “vem”? Chegou a segurar as chaves do carro entre os dedos trêmulos de antecipação. Percebendo o silêncio e a confusão absolutos da namorada, Priscila explicou: Priscila diz: no second life Claro que Lorena ficou decepcionada. E Priscila não teve como deixar de notar. Como se pudesse, pelo ritmo e forma como a namorada digitava – ou ficava estática, como foi o caso – reconhecer seu estado emocional. Priscila diz: q foi? Depois de mais alguns segundos de silêncio, a resposta clássica: Lorena diz: nada Priscila diz: fala Lorena pensou e repensou. Acabou achando melhor omitir – não era mentir – a verdade: Lorena diz: nunca fizemos no second life Priscila suspirou aliviada. Deu uma risada: Priscila diz: rs rs Antes de completar: Priscila diz: te ensino, amor. confia em mim E mais uma vez, Lorena se deixou iniciar. *** A experiência no second life deixou Lorena assustada. Era real demais. Suspiros, gemidos, respirações, mãos e corpos que se percorriam, que entravam, saíam, se encaixavam. Tudo com uma precisão detalhada. Priscila tinha sido perfeita. Na net, mas... A dúvida que não queria calar: seria assim na vida real? Lorena começou a sentir medo. Pânico, para falar a verdade. Primeiro por já não ter certeza de nada. Segundo por ter finalmente compreendido que, para Priscila, sexo no Second Life era o limite de até onde poderiam chegar. Tinha ficado claro – na verdade Priscila nunca tinha dito o contrário, Lorena é que tinha tentado se enganar – que nunca passaria do virtual. Terceiro e último porque agosto era o mês em que Lorena fazia aniversário. Se por um lado não fazer a big festa anual era impensável, por outro seria deprimente não ter a presença da namorada. O dilema fez Lorena passar noites e noites em claro. Até que finalmente chegou o dia inevitável. *** Acordou com o celular apitando o recebimento de uma mensagem. Com total e absoluta surpresa, Lorena leu: “PARABENS, AMOR!!! FELIZ NÍVER!!! TE AMO MUITO MUITO MUITO!!! To te esperando as 21h no SL.” Apesar de ter um dia intenso, cheio de telefonemas, emails, mensagens de amigos e familiares, e também de muito trabalho – era 4ª feira e Lorena estava organizando uma exposição de climatizadores e condicionadores de ar no Rio Cidade Nova – estava pontualmente conectada na hora combinada. Uma Priscila – ou melhor: o avatar dela – toda misteriosa conduziu Lorena – o avatar também – para dentro do carro sem explicar nada. Levou- a até um local fantástico: uma mansão toda iluminada, perto do mar, onde Priscila tinha organizado – e aí sim Lorena ficou pasma – uma festa surpresa gigantesca. Virtual, é claro. *** No fim da festa, uma Lorena completamente bêbada – não só o avatar, ela de verdade: tinha comprado algumas muitas garrafas de Smirnoff Ice no supermercado antes de chegar em casa e as tinha bebido enquanto a balada virtual rolava – atacou Priscila dentro do carro. Priscila, é claro, adorou a voracidade da namorada. Correspondeu à altura. Foi a melhor de todas as transas virtuais. Quando terminaram, ficaram um momento sem falar nada. Foi Lorena quem quebrou o silêncio: – O que eu preciso fazer pra você ir na minha festa de aniversário? Priscila não entendeu. Achou que era a bebida que falava. – Como assim? Acabei de sair de lá. E riu. Lorena não aguentou. Perdeu o controle de vez. Começou a chorar. E a falar enquanto soluçava: – Não a virtual... A minha festa de verdade... Na 6ª feira... Quero ir com a minha namorada... Priscila a abraçou. Mas Lorena não sentiu nada. Como poderia, sentada na frente da tela e do teclado sozinha no dia do próprio aniversário, falando num microfone e olhando dois bonequinhos desenhados? Pela primeira vez compreendeu o quanto a situação era surreal. Desabafou: – Eu... Eu não posso mais... Do outro lado, Priscila se desesperou: – Não pode o quê? Amor, o que você quer dizer? Lorena sabia que por mais precisos e detalhados que os avatares fossem, jamais conseguiria explicar nem expressar através deles quem era, o que pensava, nem o que sentia de verdade. Como poderia? Isso só era possível numa troca de olhares, no esbarrar de vida a vida de duas pessoas que realmente se encontravam. A artificialidade fria das máquinas jamais poderia substituir esse tipo de contato. Essa era a triste e dolorosa realidade. – Tá tudo terminado. Eu não quero mais. Desconectou-se desligando o computador da tomada. Cortando a rede de uma só vez, como uma cabeça guilhotinada. *** Priscila ficou sem saber o que fazer. Nunca tinha se alterado daquele jeito. Uma dor no peito, o estômago revirando como se fosse vomitar. Andou de um lado para outro no quarto, a respiração alterada, os olhos cheios de lágrimas que teimavam em não parar, a mente processando os dados lentamente, como um HD lotado. Amava Lorena. Claro que amava. Apesar de serem diferentes, tinha certeza de que era ela sua cara metade. Os opostos se atraem, são complementares, como o modem de uma banda larga. Lorena era, sem sombra de dúvida, a root do sistema de Priscila. O par perfeito. O amor verdadeiro. Então por quê? Por que ela tinha terminado? Mandou milhares de mensagens, scraps, emails... Nada. Lorena passou a noite e o dia seguinte inteiros offline. Na 6ª feira de manhã, uma Priscila exausta e sem defesas depois de duas noites em claro fez o inimaginável: pediu o celular de Patric – que ficou em estado de choque, nem conseguiu dizer nada – e ligou para Lorena. Lorena só atendeu depois do terceiro toque – tempo que pareceu enorme para Priscila – já dizendo: – Oi, Patric. E quase caiu para trás quando ouviu: – Lorena? Amor, preciso muito falar com você. Inacreditável. Dois dias atrás, teria pulado e gritado, comemorando a vitória de mais um passo. Naquele momento, já não acreditava mais. Respondeu secamente: – Fala. Mas Priscila não se abalou. Nem teve vergonha de falar: – Eu te amo. Muito. De verdade. O que preciso fazer pra você não terminar? Lorena suspirou. Também estava virada. Também tinha passado duas noites em claro. Mas o cansaço que a dominava era muito mais profundo. Vinha da alma: – Nada. Do outro lado, Priscila fechou os olhos. As mãos tremeram, um gemido escapou dos lábios. Insistiu: – Mas... Você... Você é a minha alma gêmea. Depois de uma pausa que pareceu interminável, Lorena deu sua resposta final: – Então você sabe o que fazer. Sem que eu precise falar. E desligou o celular. *** Lorena estava linda. Por fora. Por dentro se sentia um bagaço. Infelizmente o corretor só tirou as olheiras, mas não a tristeza que a dominava. Boa promoter que era, manteve um sorriso gigantesco na cara. Recebendo os amigos com a animação de sempre. Só que, dessa vez, uma animação absolutamente fingida e forçada. Quando Patric chegou sozinho, piorou ainda mais. Ele a abraçou com força, durante um bom tempo. Lorena pediu: – Não fala nada. Sabendo que se desmancharia em lágrimas se ele dissesse algo. Patric concordou com a cabeça antes de desaparecer na festa. Adriana se aproximou, beijou Lorena no rosto. Afirmou: – Levanta essa cabeça, amiga! Você a mulher mais linda dessa festa! E aposto que do mundo virtual também! – É a mais pura verdade... As duas olharam juntas, absolutamente surpresas. E viram... Priscila parada na frente delas, com um sorriso tímido. As mãos enfiadas nos bolsos da calça jeans, camiseta preta, tênis, óculos, os cabelos presos num rabo de cavalo meio frouxo. Para Lorena, simplesmente perfeita. Adriana murmurou um: – Bom, com licença. Antes de se afastar, deixando as duas a sós. Priscila se aproximou, tanto que Lorena pode sentir no rosto o hálito dela. E sussurrou: – Eu... Não sei o que fazer... Ouviu a resposta já hipnotizada pelo sorriso ardente de Lorena: – Eu te ensino, amor. Confia em mim. Os olhos não se desviaram enquanto Lorena estendeu a mão num convite que Priscila aceitou sem hesitar. Os lábios se encontraram, provaram, tomaram. Num movimento perfeitamente sincronizado. Nenhum tipo de medo, dúvida ou resistência as afastava mais. Na festa ficaram muito pouco tempo. Juntas, a noite inteira. O amanhecer as surpreendeu nuas e enlaçadas, unidas num último beijo debaixo dos lençóis de Lorena. Ainda extasiadas com a intensidade do momento. Surpresas com a facilidade com que Priscila rendeu-se e se deixou guiar, entregando-se sem barreiras. Correspondendo com um ardor extremo. Lorena achando-a ainda mais perfeita. Priscila só lamentando ter evitado estar nos braços de Lorena de verdade por tanto tempo. Uma sensação de realização inédita. A interação de maior resolução que já tinham experimentado. Algo que não era só físico. Imaterial, abstrato, nada palpável, mas concreto. Muito real. E virtual ao mesmo tempo. Porque carregava – além do que já era – uma possibilidade infinita de vir a ser. Exaustas, mas completamente satisfeitas. Sorrindo desses estranhos pensamentos – provavelmente efeito do sono que rapidamente veio – Priscila e Lorena fecharam os olhos e – embaladas nesse único, incomparável e incompreensível sentimento – finalmente adormeceram. SOBRE COMO TENTAR AMAR UMA NERD ASSUMIDA SEM SER VIRTUALMENTE Edição: Vira Letra
Autora: Diedra Roiz
Diedra Roiz é escritora, diretora teatral e atriz. Tem sete livros publicados: os romances O SUAVE TOM DO ABISMO - Reflexão (2016), O SUAVE TOM DO ABISMO - Absorção (2015), O LIVRO SECRETO DAS MENTIRAS e MEDOS (2009), LEGADO DE PAIXÃO (2014) e AMOR ÀS AVESSAS (2015), a coletânea de contos BOLEROS DE PAPEL (2011) e o livro de poesias AMA/DOR/A (2014). Carioca morando em Florianópolis - Santa Catarina, casada com a escritora Wind Rose, praticante do budismo de Nichiren Daishonin. Todos os textos que publicou na internet estão reunidos no site: www.diedraroiz.com LEIA MAIS: www.editoraviraletra.com.br