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SOBRE COMO TENTAR AMAR UMA NERD

ASSUMIDA SEM SER VIRTUALMENTE


Diedra Roiz
1.
Lorena sempre tinha sido o tipo que faz sucesso, não importando onde
estivesse. Absolutamente enquadrada dentro dos padrões estabelecidos de
simpatia, popularidade e beleza.
Nada disso mudou depois que descobriu sua preferência por mulheres.
Aos 17 anos, numa viagem com as amigas para Búzios. A irmã do dono da
casa, uns cinco anos mais velha, tinha sido a primeira experiência
absolutamente perfeita.
Depois disso, Lorena não queria saber de mais nada. Figurinha fácil nas
boates e festas LGBT, sempre muito bem acompanhada. Só percebeu que
dez anos tinham se passado porque começou a se sentir muito cansada.
– Cansada de quê, Lorena? – Os amigos perguntavam.
Lorena não sabia explicar. Talvez imersa em algum tipo de crise dos 30
precoce, que a fizesse regredir ao desejo infantil dos contos de fadas:
encontrar sua cara metade.
Foi movida por esse sentimento que decidiu dar uma parada.
– Como assim, uma parada?
– Vou fechar pra balanço. – Essa era a resposta bem humorada.
Foi uma comoção geral. Lorena, logo Lorena, que em dez anos nunca
tinha sido vista sozinha, a mulher mais interessante e deliciosa do pedaço,
virar uma celibatária?
– Quero encontrar meu par perfeito.
Desistiu de explicar depois que a milionésima pessoa riu na cara dela e
falou:
– Cara, eu não sei o que você tomou, mas isso aí é a maior viagem!
***
Enquanto isso, Priscila estava sentada em frente ao monitor de LCD de
30”. Conversando com um de seus três HDs.
Não por estar entediada, mas por ser um hábito que tinha adquirido há
muito tempo. Desde o dia em que havia percebido que entendia melhor os
computadores do que as pessoas. E vice-versa.
Um barulhinho no fone de ouvido avisou a presença do irmão gêmeo no
MSN. Apesar de estar no quarto ao lado, Patric sabia perfeitamente que o
único jeito de conseguir falar com Priscila era através da internet.
Patric diz:
pensou no q eu te pedi?
Sem parar o que estava fazendo – jogando seu MMORPG preferido,
Lineage II – The Chaotic Throne, com a rapidez incrível que os anos no
teclado lhe conferiam, respondeu:
Priscila diz:
nem precisei pensar. Resposta de sempre: NÃO!!!
Patric diz:
por favor, Pri...
Priscila diz:
q diferença faz ir comigo ou sozinho?
Patric diz:
apoio moral?
Priscila diz:
vc eh o viado + chato q eu conheço, sabia?
Patric diz:
sou o único viado q vc conhece... rs... talvez o único ser
humano, na verdade... kkk...
E, antes que ela pudesse responder, completou:
Patric diz:
tô falando fora do second life... rs...
O canto da boca de Priscila se contorceu em algo que foi quase um
sorriso. Antes dela digitar com a ironia mordaz de sempre:
Priscila diz:
hahaha... so funny...
Patric diz:
vem comigo? Please?
Priscila diz:
nope.
Patric diz:
pleaaaaaaaaaaaaaaaase!!! Se tá preocupada com o q vestir, n
vai ser problema pra vc.
Priscila mordeu a isca:
Priscila diz:
como assim?
Patric diz:
a festa eh a fantasia... Pega uma das q vc usa nas convenções
malucas q sempre vai. Eh sucesso garantido!
Dessa vez, Priscila não só sorriu. Riu. Com um desprezo terrível:
Priscila diz:
defina sucesso, darling...
Patric diz:
numa festa? Pessoas te olhando e te desejando.
Priscila riu mais ainda:
Priscila diz:
patético!!!
Patric diz:
o q vc tem eh medo!!!
A resposta não foi novidade. Patric já a tinha ouvido – ou melhor: lido –
várias vezes:
Priscila diz:
medo? de n viver obcecada em obter coisas q eu n desejo só
pra q os outros vejam? do q vc chama de sucesso?
muitíssimo obrigada, mas... tenho medo mesmo!!!
Patric diz:
claro, vc prefere aumentar sua miopia se expondo a radiação
do monitor do computador 24h por dia...
Patric aproveitou o silêncio do outro lado para insistir:
Patric diz:
vem comigo, por favor. preciso de vc...
Priscila continuou estática. Patric seguiu com o bombardeio de
chantagens:
Patric diz:
eu nunca te peço nada... n me deixa na mão... por favor, Pri,
preciso muito q vc venha...
Até Priscila não aguentar:
Priscila diz:
ok. mas só vou ficar até cansar.
Patric já sabia que isso queria dizer uns 5 minutos mais ou menos.
Mesmo assim concordou:
Patric diz:
ok. feito.
Torcendo para que daquela vez fosse diferente.
***
– Vamos lá, Lorena... Se você não vier vou ficar muito chateada com
você.
Lorena equilibrou o telefone sem fio entre o ombro e a orelha para poder
passar hidratante nas pernas enquanto falava:
– Não sei...
Na verdade tinha até comprado uma fantasia. Mas estava começando a
mudar de ideia, sem saber muito bem por que razão... Adriana – a melhor
amiga há séculos – perdeu a paciência:
– Não sabe o quê, Lorena?
Lorena colocou o telefone no viva voz enquanto ajeitava o cabelo:
– Tô curtindo ficar em casa.
Depois de um suspiro exasperado, a amiga mudou de estratégia:
– E se ela vier?
Lorena franziu a testa. E perguntou, exatamente como Adriana tinha
planejado:
– Ela? Ela quem?
Depois de uma pausa para obter o efeito de ansiedade desejado, Adriana
finalmente respondeu:
– Sua alma gêmea.
Priscila ficou parada. Estática mesmo. Não tinha pensado nessa
possibilidade. A amiga continuou:
– Vai perder essa oportunidade?
Lorena nem pensou duas vezes:
– Te vejo mais tarde.
E desligou correndo. Muito pouco tempo para toda a produção que tinha
para fazer.
***
– Caramba, Pri! Você ainda tá assim?
Um Patric fantasiado de cowboy exclamou depois que a porta
eternamente trancada do quarto de Priscila se entreabriu e ele a viu de
camiseta e calça jeans.
– Imaginei qualquer coisa, menos que você fosse de vaqueiro!
Patric nem afastou as revistas da cama da irmã antes de se atirar sobre o
colchão:
– Brokeback Mountain, meu bem.
Deitou de lado, a mão apoiando a cabeça:
– E você, vai de quê?
– Sei lá, tanto faz.
Com um sorriso que Priscila não conseguiu entender, o irmão sugeriu:
– Vai com aquele uniforme de escola japonesa...
Priscila estranhou:
– Você acha?
O entusiasmo repentino de Patric a deixou ainda mais desconfiada:
– É super legal...
Mas acabou dando de ombros, completamente sem saco. Vestiu-se
rapidamente. Não tirou os óculos – não enxergava sem eles e se recusava a
usar lentes de contato – e prendeu os cabelos num rabo. Estava pronta e
arrumada. Desligou os três monitores. Patric ainda perguntou – apontando
surpreso para o PC – antes de saírem:
– Não vai desligar?
Por questão de segurança, Priscila tinha deixado o computador fazendo o
back up de alguns arquivos para o disco virtual, mas... Nem se deu ao
trabalho de responder. Ele não ia entender mesmo.
***
Lorena estava detestando a festa. Claro que, como sempre, fez o maior
sucesso. Recebeu vários olhares, cantadas e até algumas tentativas ousadas
de beijo. Exatamente por isso estava de saco cheio. Já tinha resolvido ir
embora quando algo a fez mudar de ideia.
Abriu a porta, pronta para sair à francesa – porque se despedir levaria no
mínimo uma hora e meia – quando deu de cara com Patric – vestido de
Brokeback Mountain, ela reconheceu na hora – acompanhado por uma
garota que nunca tinha visto na vida.
A garota era comum. Nem bonita, nem feia. Jamais chamaria a atenção
de Lorena se não fosse por... A roupa que usava. Uniforme de escola
japonesa como o dela. As duas estavam... Idênticas.
Lorena não acreditava em coincidências. Achava que em toda brincadeira
do destino existia algo. Uma pista, uma dica, um detalhe importante a ser
desvendado. E, para ela, o real significado daquilo estava claro: parada ali
na frente dela estava a alma gêmea que tanto procurava.
***
Foi muito mais do que rápida:
– Oi Patric, tudo bem?
Patric estranhou. Lorena nunca tinha trocado com ele mais do que duas
palavras. Nem jamais tinha feito tanta questão de ser simpática.
Cumprimentou-a rapidamente, os olhos percorrendo tudo que podiam
alcançar da sala como um periscópio.
– Não me apresenta? – tentou chamar a atenção dele, uma vez que a
garota, incrivelmente, sequer olhou de relance para ela.
Lorena, por outro lado, a olhou acintosamente, de cima a baixo. Pernas
bonitas, corpo razoável. Os óculos deviam fazer parte da fantasia, porque...
Nem a pessoa mais míope do mundo se prestaria a ir a uma festa sem lentes
de contato... Brancura quase transparente. Se não fossem os olhos e cabelos
castanhos, Lorena teria certeza: é uma albina. Ou uma vampira, quem sabe?
Se deixaria ser mordida de muito bom grado... Lorena não conseguiu conter
o sorriso malicioso que o último pensamento lhe fez bailar nos lábios.
Sem parar a inspeção que fazia das pessoas da festa, Patric perguntou
distraidamente:
– Ãh?
Lorena lançou seu olhar mais sedutor para a garota na frente dela. Nada.
Priscila não fez por mal. Na verdade, nem percebeu a súbita atenção que
a outra lhe dispensava, ocupada em suspirar exasperada e em contar os
segundos para poder se retirar. Assustou-se quando a garota falou, tão
próxima que se desse um passo para frente os corpos ficariam colados:
– Oi... Prazer. Eu sou a Lorena.
Priscila hesitou por um momento. E nada disse.
Lorena estranhou, mas foi incisiva:
– E você é?
Priscila deu um passo para trás, achando a outra desconfortavelmente
invasiva. Acabou respondendo:
– Priscila.
Lorena não estava entendendo. Nunca tinha sido tão ignorada. Muito
menos rejeitada daquele jeito. Acostumada que estava em ter quem quisesse
sem precisar se esforçar. A total falta de interesse de... Priscila – provou o
nome da outra deliciada – a deixou com muito mais certeza. A rejeição dela
era – só podia ser – mais um sinal.
Tentou puxar assunto:
– Você e Patric se conhecem há muito tempo?
Lorena a observou atentamente, não querendo deixar escapar um detalhe.
Adorou quando Priscila sorriu. E quando fez um olhar enigmático adorável:
– Desde que eu era uma pequena célula.
Lorena não entendeu nada. Achou que talvez tivesse perdido alguma
parte da conversa, compenetrada em gravar cada detalhe do rosto de
Priscila em sua mente:
– Desculpe, eu não entendi...
Fazendo Priscila rir... Dela. Em qualquer outra circunstância, Lorena
ficaria irritada. Mandaria a outra para lugares nem um pouco agradáveis.
Mas naquela situação única, singular, surpreendente, parecia que cada
gesto, cada palavra, cada olhar de Priscila deixava Lorena... Cada vez mais
apaixonada. Ela era... Perfeita. Lorena tinha certeza: estavam
predestinadas...
– Somos gêmeos.
Patric explicou, estragando a diversão de Priscila – estava adorando fazer
a patricinha idiota de palhaça. Antes de completar:
– Bom, já que estão devidamente apresentadas e aparentemente se dando
tão bem – Lançou um olhar sarcástico para Priscila, sabia que Lorena era o
tipo de garota que a irmã detestava. – Vou circular.
Gêmeos? Interessante. Como tudo nela...
Lorena sorriu, achando graça. Mais ainda quando percebeu que pela
primeira vez na vida, não sabia o que fazer. Estava... Nervosa, insegura,
sem palavras. As mãos tremiam, geladas. Diferente de tudo que já tinha
experimentado. A voz saiu fraca:
– Vocês não são nada parecidos...
Priscila a olhou sem acreditar. Respondeu com a ironia que lhe era
peculiar:
– Gêmeos bivitelinos. Já ouviu falar?
Num primeiro momento, Lorena não acreditou que a mulher da vida dela
a estivesse tratando daquele jeito. Inacreditável... Ficou tão perplexa que
nem conseguiu falar. Quando afinal recuperou-se e ia dar a resposta que
estava atravessada, Priscila a olhou inteira, como se a inspecionasse. Lorena
sentiu uma fraqueza inacreditável com aquele simples olhar. E voltou a
ficar sem palavras.
Inacreditável... Priscila olhou Lorena de cima a baixo. Bonita. Pra não
dizer linda. Toda produzida, das unhas dos pés cuidadosamente pintadas ao
cabelo impecável. Provavelmente passava muito mais tempo em frente ao
espelho do que em qualquer outro lugar. Lamentável...
Priscila não conseguiu evitar:
– Procura no Google. Vai encontrar tudo que precisa saber lá.
Já ia se afastar, quando Lorena a segurou pelo braço. Cara metade ou
não, a paciência de Lorena tinha se esgotado. Não ia ficar ali sendo
maltratada sem fazer nada:
– Sabia que a intolerância é responsável pelo mundo estar desse jeito?
O embate foi inevitável. Priscila não facilitou:
– Em que concurso de beleza você aprendeu e decorou essa frase? Não
me diga que o que você mais deseja é a paz mundial...
E riu. Lorena perdeu completamente a calma:
– Sabia que beleza e inteligência não são coisas contrárias?
A resposta de Priscila foi imediata:
– Mas é quase impossível andarem lado a lado.
Lorena levantou uma das sobrancelhas. Desafiou:
– Você acha?
Priscila nem piscou:
– Tenho certeza.
Depois de um risada sedutora, que já tinha deixado muita gente de
quatro, Lorena provocou ainda mais:
– Quer dizer então que você é burra?
Aproximou-se a ponto de fazer Priscila gaguejar:
– O que... O que você quer dizer?
Doce, macio, suave. Foi o tom de voz de Lorena. Fitando Priscila nos
olhos e depois nos lábios:
– Que não acho você feia. Pelo contrário.
Nesse momento, os olhos se encontraram. Nenhuma das duas soube dizer
exatamente como, quem tomou a iniciativa, ou se foi um movimento
sincronizado... A única certeza foi a perfeição com que os lábios se
aproximaram, se saborearam, se aprovaram.
Priscila se espantou, mas o que sentiu foi tão forte que não conseguiu
mais pensar. Instintivamente entreabriu os lábios e quando as línguas se
tocaram, o coração acelerou, asas de passarinho batendo alto dentro do
peito, tão alto que Lorena conseguiu escutar.
Mergulhada na boca de Priscila, de olhos fechados, Lorena sentiu o
momento exato em que a entrega das duas aconteceu de fato. O corpo todo
de Priscila parecendo pulsar descompassado, mas absolutamente em
sintonia com o ritmo em que o de Lorena estava. Abraçando-a pela cintura,
puxou-a para si carinhosamente, cheia de cuidados. Deixou escapar um
gemido quando Priscila também a envolveu com os braços.
Foi o gemido de Lorena que fez Priscila voltar à realidade. Controlou-se,
apesar de não desfazer o contato dos lábios.
Lorena sentiu a diferença nitidamente. Como se, de repente, Priscila
escapasse por entre os dedos, se tornasse distante, fria, intocável.
O beijo terminou exatamente como começou: sem que nenhuma das duas
pudesse precisar quem o encerrava.
Afastaram-se, um pouco sem graça. Um momento absurdamente
constrangedor se estabeleceu. Lorena se desesperou. Ansiando por um
contato, qualquer tipo de contato, iniciou – ou tentou iniciar – o mais
descabido e estapafúrdio de todos os diálogos:
– Você trabalha em quê?
Priscila a olhou sem acreditar. Nem se deu ao trabalho de responder.
Mesmo se tivesse vontade, e aquela não fosse a mulher mais louca, estranha
e bizarra que já tinha conhecido em toda a vida dela – e por ser tão
conectada à internet, não era fácil Priscila classificar alguém como louco,
estranho e bizarro –, não ia perder tempo explicando. A tal Lorena não ia
entender mesmo... Nem o irmão gêmeo conseguia entender o que Priscila
fazia para viver...
Murmurou um:
– Vou indo...
Quase ininteligível de tão baixo. Mas Lorena ouviu. E deixou escapar
um:
– Já?
Priscila apenas acenou com a cabeça afirmativamente. Não querendo
falar mais nada. Desejando apenas poder voltar para a proteção
reconfortante da vida virtual. Mas Lorena não pretendia deixar:
– Eu te levo.
Fazendo Priscila se encolher, como se Lorena tivesse proposto algo
inaceitável. Provocando uma recusa quase gritada:
– Não!
O olhar magoado de Lorena fez Priscila se sentir mal. Tentou melhorar:
– Não precisa se incomodar.
Os olhos de Lorena voltaram a brilhar. Ela sorriu. De um jeito que deixou
Priscila ofuscada. Insistiu:
– Incômodo nenhum. Faço questão de te deixar em casa.
Sem joystick, mouse nem teclado. Como se Lorena fosse um vírus
desconhecido que estivesse testando seu nível de proteção. Priscila a
seguiu, torcendo para ter defesas suficientes. No fundo, dolorosamente
consciente de que ia precisar de uma boa atualização em seu firewall.
***
Lorena parou o carro em frente à portaria de Priscila e não a deixou sair.
Não precisou usar de força, muito menos de violência. Foi isso que deixou
Priscila mais preocupada, revoltada consigo mesma. Por estar gostando – e
aproveitando – a ponto de ficar ali durante duas horas e meia conversando
com Lorena. Por mais estranho que pudesse parecer, ela era uma excelente
ouvinte, além de também ter muito a dizer.
Inevitavelmente, a conversa acabou levando a uma nova tentativa – dessa
vez frustrada por Priscila – de beijo:
– O que você tá querendo? Não tô entendendo...
Uma Priscila desesperada tentou inutilmente se defender. Lorena sorriu.
Colocou a mão na perna de Priscila de um jeito que a fez estremecer:
– Não tá entendendo o quê? Que eu tô muito, mas muito interessada em
você?
Incoerente. Era o que Priscila achava da estranha declaração. Mais ainda
quando Lorena completou:
– Não acredita em amor à primeira vista?
Priscila ficou tão perplexa que a princípio se calou. Abriu e fechou a
boca várias vezes. Depois franziu a testa e chegou à única conclusão
plausível num caso daqueles:
– Isso é algum tipo de brincadeira? Fez alguma aposta com suas amigas
ou algo do gênero?
Lorena a olhou profundamente. Querendo que Priscila aceitasse,
entendesse, correspondesse:
– Eu também não acreditava. Até colocar meus olhos em você.
Não foi o que Lorena disse. Foi a forma como Priscila sentiu o corpo
arrepiar inteiro... Que a fez dizer:
– Eu... Eu não sou gay...
Lorena abaixou a cabeça tentando esconder o sorriso imenso que não
conseguiu conter. E não teve como deixar de dizer:
– Difícil acreditar que você seja hetero depois do jeito que me beijou, não
é mesmo?
Surpreendentemente, Priscila respondeu:
– Eu não sou hetero também...
A incredulidade de Lorena foi evidente. Nem precisou pedir, Priscila
explicou voluntariamente:
– Sou assexuada.
– O quê?
Lorena gritou sem querer. Não querendo acreditar. Preferindo pensar que
não tinha escutado direito. Priscila continuou:
– Não acredito em contato físico. Não vejo um objetivo, entende?
Lorena balançou a cabeça negativamente. O estado de choque
aumentando conforme Priscila ia falando:
– É uma total perda de tempo. Sabia que quando você faz sexo com uma
pessoa a energia dela fica no seu corpo durante 6 meses? Além do quê...
Ninguém vai saber me tocar melhor do que eu mesma...
Paralisada. Boquiaberta. Sem conseguir se mover. Lorena continuou
assim durante algum tempo. Depois parou de medir as palavras:
– Quer dizer que você nunca fez? Com outra pessoa, nem na vida real,
quero dizer...
Priscila respondeu absolutamente orgulhosa de si mesma:
– Nem vou fazer.
– Tem certeza?
Com um movimento ágil, impossível de prever, Lorena puxou Priscila
pelo pescoço, e grudou os lábios nos dela.
Dessa vez Priscila não tentou resistir. Deixou-se afundar na correnteza.
Mergulhada num descontrole profundo, desconhecido e intenso. Sentiu o
próprio corpo suspirar, gemer, derreter, sem que pudesse fazer nada. Não
entendendo mais nada, muito menos a si mesma. Montanha russa de
sentimentos que a fez lamentar quando Lorena encerrou o beijo.
Olharam-se durante um breve momento. Numa pálida tentativa de um
entendimento que não veio. Lorena ainda sem saber explicar para si mesma
porque havia parado, uma vez que Priscila não tinha esboçado qualquer
resistência.
Tomada pelo mais incontrolável e primitivo medo, Priscila saiu do carro
quase correndo.
Lorena voltou para a festa. Procurou e encontrou Patric, pouco se
importando com o fato dele estar aos beijos com um moreno alto na porta
do banheiro. Foi dizendo:
– Com licença!
Enquanto o empurrava para um canto, Patric ainda tentou protestar:
– Ei...
Mas Lorena estava desesperada:
– Você precisa me ajudar!
Atônito, sem entender nada, Patric a ouviu explicar:
– Tô apaixonada pela sua irmã. O que eu faço?
Patric deu uma risada. Como se tivesse escutado uma piada. E disse na
maior sinceridade:
– Se mata!
– Patric, eu tô falando sério!
Impossível duvidar. Principalmente quando Lorena – a irresistível e
poderosa Lorena – se debulhou em lágrimas.
– Não fica assim... Calma...
Nem o nariz entupido a fez perder o charme. Pegou um lencinho na bolsa
e enxugou os olhos se olhando no espelho da caixinha de batom, com
cuidado para não estragar a maquiagem:
– Desculpa. Essa história toda me deixou um pouco alterada...
A vontade de Patric foi dizer: “Um pouco?” – achando aquilo tudo
totalmente absurdo, para não dizer hilário –, mas não o fez. Ficou esperando
Lorena recompor-se, se perguntando aonde ela ia chegar.
Lorena retocou o lápis nos olhos que as lágrimas tinham borrado antes de
falar:
– Preciso encontrar a Priscila de novo!
Patric continuou com a mesma expressão de quem não acreditava. Coçou
a cabeça antes de falar:
– Sinceramente? Isso é quase impossível... Ela não sai de casa.
– Me dá o celular dela.
– A Priscila não tem celular.
– O quê?
Lorena nem conseguia imaginar como ela fazia para viver e...
Comunicar-se. Até Patric esclarecer:
– Se quer falar com a Priscila, tem que usar a internet.
Lorena arregalou os olhos. Sacudiu a cabeça numa negação total:
– Você só pode estar brincando!
Patric deu de ombros antes de reafirmar:
– A vida dela é virtual.
Lorena era uma analfabeta virtual. Achava a Internet a maior das perdas
de tempo. Mal sabia abrir seus e-mails... Confessou:
– Não sei o que fazer.
– Começa pelo MSN.
O suspiro de desespero de Lorena foi tão profundo que Patric se
ofereceu:
– Calma. Vou te ajudar.
Mais um suspiro. Dessa vez resignado. Afinal de contas, Lorena
acreditava que, pelo amor verdadeiro, qualquer sacrifício seria válido...
***
Uma semana e muitas horas de aulas depois – Patric também não era
nada genial com computadores, mas felizmente sabia o básico – Lorena
conseguiu aprender, com muita dificuldade, o bastante para instalar um
MSN.
– E agora?
Com toda a paciência do mundo – afinal de contas Patric queria e muito
que Priscila “desencalhasse” – ele explicou:
– Agora precisa pedir autorização pra poder adicionar a Priscila.
– Como assim?
– Só pode falar com ela se ela aceitar.
Lorena achou aquilo o fim. Voltou a se desesperar. Foi preciso que Patric
a lembrasse:
– Queridinha, você é a rainha das sapas. Não é possível que não consiga
pensar numa mensagem que faça a minha irmã te adicionar.
Lorena nunca tinha corrido atrás de ninguém. Sempre tinha sido muito
fácil. Sorriu, vendo naquilo mais um sinal. Como se, a cada obstáculo
ultrapassado, ela se tornasse mais digna do prêmio final. Já podia quase
escutar, num tom de narração enfático: E foram felizes para sempre...
Pensou cuidadosamente. Com calma. Repetindo mentalmente de forma
incansável: “A pressa é inimiga da perfeição”.
Demorou dois dias para conseguir elaborar a frase que certamente a
levaria à próxima fase...
***
Priscila ficou muito tempo olhando para as palavras na tela:
“Você me apresenta ao mundo virtual?”
Não sabendo direito o que pensar. Acabou clicando em “aceitar o
convite”. Apesar de absolutamente não compreender por que razão o fez.
***
Lorena estava parada na frente do computador, numa terrível ansiedade.
Quando um bonequinho verde – que agora ela sabia que queria dizer
“online” – apareceu ao lado de Priscila, clicou no contato – o único que
tinha e que a interessava – e uma janela se abriu. No topo se lia:
Priscila “O pêndulo da mente se alterna entre perceber e não perceber, e
não entre certo e errado (Jung)”
Lorena digitou um tímido:
oi... tudo bem com você?
Como resposta, obteve:
Priscila diz:
você eh vc
Lorena diz:
O quê? Não entendi
Priscila diz:
você = vc
tudo = td
tem q aprender a tc
Lorena diz:
o q é tc?
Priscila diz:
rs rs
Lorena diz:
o q é rs?
Priscila diz:
tc = teclar
rs = risos
em q mundo vc vive?
A resposta surgiu imediatamente: “no real, ora essa!” – mas Lorena
estrategicamente a engoliu.
***
Como vontade é tudo, Lorena aprendeu a “tc” rapidamente. A única coisa
que não conseguiu foi aumentar a velocidade com que digitava.
Mas como diz o ditado: “há males que vêm para bem”.
E foi exatamente por causa disso que uma Priscila exasperada – era um
tédio esperar as respostas de Lorena, especialmente para quem digitava tão
rápido – fez algo que, para alguém que odiava até telefone, era inusitado.
Priscila diz:
vc tem mic?
Lorena diz:
n sei, o q eh mic?
Priscila diz:
rs rs
microfone
Lorena diz:
tenho mas n sei usar
Priscila diz:
te ensino
Lorena diz:
ok
Depois de muita confusão – e de, incrivelmente, Priscila não ficar irritada
–, Lorena conseguiu ouvir e falar com Priscila. Ficou tão aliviada que teve
uma crise de sinceridade:
– Não acredito que você me fez catar milho esse tempo todo se a gente
podia simplesmente falar!
Surpresa, decepção, raiva. Foi o que sentiu quando obteve a resposta:
Priscila diz:
vc fala e eu tc
Respirou fundo. Contou até dez. Priscila era, sem sombra de dúvida, a
pessoa mais inusitada – e difícil – que já tinha conhecido.
Uma pessoa tão singular só poderia ter nascido para ela. O pensamento a
fez deixar escapar um suspiro sonhador, de adolescente apaixonada ou algo
do tipo.
Sorriu. Mesmo sem ter noção do quanto já havia conseguido adentrar nas
impenetráveis muralhas que Priscila tinha cuidadosamente erguido.
***
– Tenho que ir trabalhar.
Era o que Lorena dizia diariamente. Cada dia num horário
completamente diferente.
Priscila diz:
vc trabalha com q?
Lorena precisou ler três vezes a mensagem para acreditar. Era a primeira
vez – depois de quase um mês – que Priscila demonstrava algum tipo de
interesse ou curiosidade. Chegou a ficar emocionada. Sentiu algo
inacreditável. Quase como se Priscila tivesse dito que a amava.
Recompôs-se antes de responder:
– Sou promoter.
Um instante de vazio na tela, que Lorena agora já interpretava como
“silêncio” enquanto Priscila abria o Google e procurava. Encontrou no
Yahoo! Respostas:
“Pessoa responsável por organizar e promover um determinado evento,
recepção, festas, seminários, etc. responsável, principalmente, pela lista de
convidados de uma festa ou evento.
O Promotor de Eventos ocupa-se do desenvolvimento de atividades de
planejamento, de captação, de promoção, realização, administração dos
recursos e prestação de serviços especializados de eventos.
A profissão de promoter exige dedicação e muitos, mas muitos contatos.
É fundamental ter muito pique, gostar do que faz e, acima de tudo, ser
muito carismático. Tem que fazer as pessoas se interessarem pelo evento
que está divulgando. Normalmente, o promoter é extrovertido, gosta de
curtir a noite e faz amizades muito fácil.”
Quando Lorena pensava que ia morrer de ansiedade, leu:
Priscila diz:
vc deve ter uma vida social intensa
Era bom demais para ser verdade. Lorena teve que ler a frase outra vez
antes de acreditar que Priscila estava realmente sendo pessoal.
Tinha conseguido ultrapassar as frases telegráficas, frias e didáticas dela.
Começou a pular como uma louca dentro do quarto. Rindo e gritando.
Esquecendo completamente que o microfone estava ligado.
Só percebeu quando leu:
Priscila diz:
isso eh algum tipo d demo?
Mordeu o lábio inferior. Antes de responder:
– O quê? Demo? Como no exorcista?
Priscila quase teve uma síncope de tanto rir. Demorou o que para Lorena
pareceu séculos para conseguir digitar algo além de:
Priscila diz:
rs rs
Priscila diz:
DEMOnstração...
Lorena não aguentou. Saiu sem pensar:
– Demonstração de quê? Fala! Digita! Tc, sei lá!
Priscila diz:
de como uma promoter tem q ser animada?
rs rs
Qualquer outra pessoa ficaria sem saber se ria ou se matava, mas
felizmente, Lorena tinha um jogo de cintura invejável. E aproveitou a
brecha que estava esperando durante todo aquele tempo:
– Nem a metade do que seria se nos encontrássemos de novo.
Pessoalmente, é claro.
Priscila nem parou para pensar. Digitou muito mais do que rápida:
Priscila diz:
pessoalmente pq? n ta bom assim?
Lorena nem pesou as vantagens e desvantagens. Falou sem medir as
palavras. Com total sinceridade:
– Quero muito mais.
Na mesma hora, Priscila ficou offline. Assustada com a forma como as
mãos estavam tremendo.
Lorena, por outro lado, ficou desesperada. Sem saber como conseguiria
trabalhar daquele jeito.
Tomou coragem. Não era mulher de se deixar abater. Sabia tirar proveito
de qualquer situação, mesmo de uma absolutamente desfavorável como
aquela. Digitou:
Lorena diz:
pode fugir de mim, mas n de si mesma
Na mesma hora apareceu na tela:
Priscila está Offline. As mensagens enviadas serão
entregues quando esse contato entrar.
Desligou o computador com um sorriso. Que permaneceu enquanto se
arrumava e muito depois de ter saído de casa.
***
Priscila demorou mais de duas horas para ter coragem de voltar a entrar
no MSN. Uma estranha dualidade de sentimentos – alívio e decepção –
quando viu que Lorena não estava conectada.
A simples percepção de que tinha acabado de confessar para si mesma
que Lorena a fazia sentir algo a fez ficar apavorada. Mais ainda quando leu
a mensagem que ela tinha deixado.
Ficou sem saber o que fazer. Estranhamente, optou por “aparecer
offline”. Com uma estranha ansiedade que não sabia explicar. Quando
finalmente entendeu, deixou escapar um gemido baixo. Dolorosamente
consciente de que estava esperando Lorena voltar.
***
Mas Lorena não o fez. Durante dois dias inteiros. Aproveitou para rever
alguns amigos, falar no celular, resgatar um pouco sua vida normal. Apesar
de ter que reprimir a vontade de ligar o computador, abrir a caixa de
mensagens, o MSN... Aquilo era um vício, uma praga, uma sarna que
coçava sem parar.
Um súbito insight a fez se acalmar. Não era a internet que a interessava.
Não era mais uma vítima da virtualidade. Continuava sendo a Lorena de
sempre. Com uma única diferença: algo muito mais do que nobre, sincero,
belo. O amor que sentia por Priscila.
***
Assim que Lorena voltou a se conectar – depois dos dois dias que para
Priscila foram quase improdutivos – a janela do MSN se abriu.
Priscila diz:
oi
Lorena parou, esperou, demorou um longo tempo. Antes de finalmente
responder:
Lorena diz:
oi
Já Priscila digitou com uma rapidez incrível:
Priscila diz:
vc sumiu
Aquilo não era uma brecha. Era uma rachadura imensa. Lorena não
perdeu tempo:
Lorena diz:
sentiu minha falta?
Alguns minutos de silêncio. Nos quais Priscila se debateu. Antes de
digitar as três letrinhas da palavra pequena, mas incrível:
Priscila diz:
sim
Lorena voltou a saltitar e dar gritinhos pelo quarto. Estava com o
microfone desligado mesmo... Comemorou intensamente o momento que
seria perfeito se... Priscila não ficasse novamente offline.
Bufando de raiva. Xingando todos os palavrões que tinha direito. Foi
como Lorena reagiu. Achando aquilo de um ridículo extremo.
Bater a porta ou o telefone na cara dela tudo bem. Mas o MSN?
Já estava digitando a mensagem desaforada que Priscila merecia quando
do nada recebeu:
Priscila diz:
quero namorar com vc
O queixo de Lorena caiu. Ficou olhando para a tela de boca aberta
durante um breve momento. Depois respondeu. Nunca tinha digitado rápido
daquele jeito:
Lorena diz:
to indo praí
Foi imediato. De uma velocidade ainda mais incrível:
Priscila diz:
N!!! ESPERA!!!
Lorena voltou a se sentar. Levou as mãos à boca, mordeu nervosamente
as pontas dos dedos. Fechou os olhos e quando os abriu de novo, leu:
Priscila diz:
virtualmente
Suspirou profundamente. Disse para si mesma: “não vou desistir!”
Respirou fundo. Preparando-se para o diálogo sem fala:
Lorena diz:
n entendo
Priscila diz:
namoro virtual
Lorena diz:
como eh isso?
Priscila diz:
msn, facebook, email, second life, twitter
Lorena diz:
sem contato físico?
Priscila diz:
eh
Lorena diz:
n sei
Priscila diz:
n sabe se quer?
Lorena diz:
n sei como fazer
Priscila diz:
te ensino
quer?
Lorena diz:
quero vc
Priscila diz:
vai ter
As duas pararam ao mesmo tempo. Relendo as duas últimas frases.
Tentando decifrar o que exatamente queriam dizer.
Para evitar qualquer erro de interpretação, Priscila fez questão de
especificar novamente:
Priscila diz:
virtualmente
Lorena diz:
ok
Priscila suspirou aliviada. Sem imaginar que Lorena estava pensando,
com um sorriso imenso: “isso é só o começo!”
***
– Lorena, eu não entendo! Você enlouqueceu?
Uma Adriana quase desesperada berrou ao telefone. Lorena deu uma
resposta monossilábica qualquer.
Adriana se irritou ainda mais ao ouvir o barulho dos dedos da amiga
batendo continuamente no teclado:
– Dá pra parar com esse inferno?
Nunca tinha visto – quer dizer: ouvido – Adriana alterada daquele jeito.
Por isso, e só por isso, digitou:
Lorena diz:
pera, amor. tel
Priscila diz:
ok
Mandou um beijo para a tela – apesar de Priscila não poder ver, porque
odiava, se recusava a usar webcam – e falou:
– Pronto, Adriana. O que você quer tanto me dizer?
Um suspiro exasperado. E depois a frase quase gritada:
– Você enlouqueceu! Faz meses que não sai da frente desse computador...
E esse namoro de vocês... Lorena, isso não é normal!
Lorena sacudiu a cabeça negativamente. Não ia deixar ninguém – nem
mesmo a melhor amiga – estragar tudo que tinha conseguido conquistar até
aquele momento com um esforço gigantesco:
– Até parece que eu sou a única pessoa no mundo a ter uma namorada
virtual.
Adriana voltou a atacar:
– Lorena, escuta o que você tá dizendo! As pessoas namoram
virtualmente quando namoram à distância. E ainda assim combinam,
querem e conseguem se encontrar. Nunca ouvi falar em namoro virtual
entre pessoas que moram na mesma cidade! E que nunca se vêm
pessoalmente! É o fim da picada!
Lorena começou:
– Ai, Adriana, nem...
Mas a amiga não a deixou completar:
– Todo mundo precisa de sexo! Beijar na boca, dar uns amassos! Não é
possível! Você não sente falta?
Lorena sentia, claro. Mais do que isso: queria, precisava, desejava...
Consolava-se repetindo para si mesma: “Só preciso ter um pouco mais de
paciência”.
– Você não vai entender. É muito complicado.
O tom de voz sofrido, quase deprimido da amiga fez Adriana perder a
calma. Começou a gritar:
– Não, não é complicado! Se apaixonar, namorar, trepar, é muito simples!
A sua namorada é pirada! Essa é a verdade!
– Não fala assim da Pri!
Lorena defendeu Priscila sem pestanejar. Como sempre fazia – muito
mais constantemente do que desejava, aliás.
– Tudo bem, Lorena. Me liga quando você voltar ao normal.
Nos últimos meses, Lorena tinha perdido a conta de quantas vezes tinha
escutado aquela frase. Mas nem assim estava disposta a voltar atrás.
Tinha certeza do que sentia por Pri. E do que Pri sentia por ela. Amavam-
se. Muito. De verdade. Virtualmente, é claro. Mas esse era só um pequeno
detalhe.
***
Priscila estava perfeitamente consciente de que estava apaixonada. Mais
do que isso: estava curtindo e gostando da novidade. Por que não estaria?
Lorena era perfeita. Afinal de contas, não era qualquer namorada que
aguentaria ficar acordada com ela sem reclamar até que o novo programa
que estava testando rodasse.
Outra coisa que adorava em Lorena era o fato dela nunca se recusar a
nada. Pelo contrário, se entregava à namorada e ao mundo virtual com uma
confiança que Priscila achava uma graça.
Depois que Lorena desligou o telefone, viu que Priscila tinha enviado
alguns emotions de mulheres se beijando.
Das primeiras vezes tinha achado engraçado. Depois tinha aprendido. A
resistência se desmanchando com uma facilidade absurda. Permitindo que
Priscila a ensinasse, a conduzisse, a guiasse. Tinha rapidamente deixado de
lado todo e qualquer pudor da recém perdida virgindade virtual. Era só
Priscila começar:
Priscila diz:
me beija...
Que respondia:
Lorena diz:
uhm... isso me da uma vontade...
Priscila diz:
vontade de q?
E daí continuavam.
Lorena estava muito mais do que cansada do sexo casual meio
automático, feito apenas por fazer. Sexo virtual foi uma descoberta ao
mesmo tempo surpreendente e agradável. Incrivelmente, exigia que ela
estivesse totalmente presente. Imaginação, provocação e instigação
inteiramente voltadas para dar e receber um inusitado e inesperado tipo de
prazer.
Claro que para Lorena, aquilo era apenas uma entrada – e não o prato
principal – para seu objetivo final: sexo na vida real. Com paciência. Passo
a passo. Tinha certeza que ainda conseguiria chegar lá.
***
Quando pensava que não teria mais surpresas, aconteceu. No auge das
preliminares virtuais, quando Lorena pensava que não ia aguentar mais:
Priscila diz:
amor, vamos pra minha casa
Lorena parou. Sem saber o que isso queria dizer. Ficou perdida, porque...
O certo não seria dizer “vem”?
Chegou a segurar as chaves do carro entre os dedos trêmulos de
antecipação.
Percebendo o silêncio e a confusão absolutos da namorada, Priscila
explicou:
Priscila diz:
no second life
Claro que Lorena ficou decepcionada. E Priscila não teve como deixar de
notar. Como se pudesse, pelo ritmo e forma como a namorada digitava – ou
ficava estática, como foi o caso – reconhecer seu estado emocional.
Priscila diz:
q foi?
Depois de mais alguns segundos de silêncio, a resposta clássica:
Lorena diz:
nada
Priscila diz:
fala
Lorena pensou e repensou. Acabou achando melhor omitir – não era
mentir – a verdade:
Lorena diz:
nunca fizemos no second life
Priscila suspirou aliviada. Deu uma risada:
Priscila diz:
rs rs
Antes de completar:
Priscila diz:
te ensino, amor. confia em mim
E mais uma vez, Lorena se deixou iniciar.
***
A experiência no second life deixou Lorena assustada. Era real demais.
Suspiros, gemidos, respirações, mãos e corpos que se percorriam, que
entravam, saíam, se encaixavam. Tudo com uma precisão detalhada.
Priscila tinha sido perfeita. Na net, mas... A dúvida que não queria calar:
seria assim na vida real?
Lorena começou a sentir medo. Pânico, para falar a verdade. Primeiro
por já não ter certeza de nada. Segundo por ter finalmente compreendido
que, para Priscila, sexo no Second Life era o limite de até onde poderiam
chegar. Tinha ficado claro – na verdade Priscila nunca tinha dito o
contrário, Lorena é que tinha tentado se enganar – que nunca passaria do
virtual. Terceiro e último porque agosto era o mês em que Lorena fazia
aniversário.
Se por um lado não fazer a big festa anual era impensável, por outro seria
deprimente não ter a presença da namorada. O dilema fez Lorena passar
noites e noites em claro. Até que finalmente chegou o dia inevitável.
***
Acordou com o celular apitando o recebimento de uma mensagem. Com
total e absoluta surpresa, Lorena leu:
“PARABENS, AMOR!!! FELIZ NÍVER!!! TE AMO MUITO MUITO
MUITO!!! To te esperando as 21h no SL.”
Apesar de ter um dia intenso, cheio de telefonemas, emails, mensagens
de amigos e familiares, e também de muito trabalho – era 4ª feira e Lorena
estava organizando uma exposição de climatizadores e condicionadores de
ar no Rio Cidade Nova – estava pontualmente conectada na hora
combinada.
Uma Priscila – ou melhor: o avatar dela – toda misteriosa conduziu
Lorena – o avatar também – para dentro do carro sem explicar nada. Levou-
a até um local fantástico: uma mansão toda iluminada, perto do mar, onde
Priscila tinha organizado – e aí sim Lorena ficou pasma – uma festa
surpresa gigantesca. Virtual, é claro.
***
No fim da festa, uma Lorena completamente bêbada – não só o avatar,
ela de verdade: tinha comprado algumas muitas garrafas de Smirnoff Ice no
supermercado antes de chegar em casa e as tinha bebido enquanto a balada
virtual rolava – atacou Priscila dentro do carro.
Priscila, é claro, adorou a voracidade da namorada. Correspondeu à
altura. Foi a melhor de todas as transas virtuais. Quando terminaram,
ficaram um momento sem falar nada.
Foi Lorena quem quebrou o silêncio:
– O que eu preciso fazer pra você ir na minha festa de aniversário?
Priscila não entendeu. Achou que era a bebida que falava.
– Como assim? Acabei de sair de lá.
E riu. Lorena não aguentou. Perdeu o controle de vez. Começou a chorar.
E a falar enquanto soluçava:
– Não a virtual... A minha festa de verdade... Na 6ª feira... Quero ir com a
minha namorada...
Priscila a abraçou. Mas Lorena não sentiu nada. Como poderia, sentada
na frente da tela e do teclado sozinha no dia do próprio aniversário, falando
num microfone e olhando dois bonequinhos desenhados? Pela primeira vez
compreendeu o quanto a situação era surreal. Desabafou:
– Eu... Eu não posso mais...
Do outro lado, Priscila se desesperou:
– Não pode o quê? Amor, o que você quer dizer?
Lorena sabia que por mais precisos e detalhados que os avatares fossem,
jamais conseguiria explicar nem expressar através deles quem era, o que
pensava, nem o que sentia de verdade. Como poderia? Isso só era possível
numa troca de olhares, no esbarrar de vida a vida de duas pessoas que
realmente se encontravam.
A artificialidade fria das máquinas jamais poderia substituir esse tipo de
contato. Essa era a triste e dolorosa realidade.
– Tá tudo terminado. Eu não quero mais.
Desconectou-se desligando o computador da tomada. Cortando a rede de
uma só vez, como uma cabeça guilhotinada.
***
Priscila ficou sem saber o que fazer. Nunca tinha se alterado daquele
jeito. Uma dor no peito, o estômago revirando como se fosse vomitar.
Andou de um lado para outro no quarto, a respiração alterada, os olhos
cheios de lágrimas que teimavam em não parar, a mente processando os
dados lentamente, como um HD lotado.
Amava Lorena. Claro que amava. Apesar de serem diferentes, tinha
certeza de que era ela sua cara metade. Os opostos se atraem, são
complementares, como o modem de uma banda larga.
Lorena era, sem sombra de dúvida, a root do sistema de Priscila. O par
perfeito. O amor verdadeiro. Então por quê? Por que ela tinha terminado?
Mandou milhares de mensagens, scraps, emails... Nada. Lorena passou a
noite e o dia seguinte inteiros offline.
Na 6ª feira de manhã, uma Priscila exausta e sem defesas depois de duas
noites em claro fez o inimaginável: pediu o celular de Patric – que ficou em
estado de choque, nem conseguiu dizer nada – e ligou para Lorena.
Lorena só atendeu depois do terceiro toque – tempo que pareceu enorme
para Priscila – já dizendo:
– Oi, Patric.
E quase caiu para trás quando ouviu:
– Lorena? Amor, preciso muito falar com você.
Inacreditável. Dois dias atrás, teria pulado e gritado, comemorando a
vitória de mais um passo. Naquele momento, já não acreditava mais.
Respondeu secamente:
– Fala.
Mas Priscila não se abalou. Nem teve vergonha de falar:
– Eu te amo. Muito. De verdade. O que preciso fazer pra você não
terminar?
Lorena suspirou. Também estava virada. Também tinha passado duas
noites em claro. Mas o cansaço que a dominava era muito mais profundo.
Vinha da alma:
– Nada.
Do outro lado, Priscila fechou os olhos. As mãos tremeram, um gemido
escapou dos lábios. Insistiu:
– Mas... Você... Você é a minha alma gêmea.
Depois de uma pausa que pareceu interminável, Lorena deu sua resposta
final:
– Então você sabe o que fazer. Sem que eu precise falar.
E desligou o celular.
***
Lorena estava linda. Por fora. Por dentro se sentia um bagaço.
Infelizmente o corretor só tirou as olheiras, mas não a tristeza que a
dominava.
Boa promoter que era, manteve um sorriso gigantesco na cara.
Recebendo os amigos com a animação de sempre. Só que, dessa vez, uma
animação absolutamente fingida e forçada.
Quando Patric chegou sozinho, piorou ainda mais. Ele a abraçou com
força, durante um bom tempo. Lorena pediu:
– Não fala nada.
Sabendo que se desmancharia em lágrimas se ele dissesse algo. Patric
concordou com a cabeça antes de desaparecer na festa.
Adriana se aproximou, beijou Lorena no rosto. Afirmou:
– Levanta essa cabeça, amiga! Você a mulher mais linda dessa festa! E
aposto que do mundo virtual também!
– É a mais pura verdade...
As duas olharam juntas, absolutamente surpresas. E viram... Priscila
parada na frente delas, com um sorriso tímido. As mãos enfiadas nos bolsos
da calça jeans, camiseta preta, tênis, óculos, os cabelos presos num rabo de
cavalo meio frouxo. Para Lorena, simplesmente perfeita.
Adriana murmurou um:
– Bom, com licença.
Antes de se afastar, deixando as duas a sós.
Priscila se aproximou, tanto que Lorena pode sentir no rosto o hálito
dela. E sussurrou:
– Eu... Não sei o que fazer...
Ouviu a resposta já hipnotizada pelo sorriso ardente de Lorena:
– Eu te ensino, amor. Confia em mim.
Os olhos não se desviaram enquanto Lorena estendeu a mão num convite
que Priscila aceitou sem hesitar.
Os lábios se encontraram, provaram, tomaram. Num movimento
perfeitamente sincronizado. Nenhum tipo de medo, dúvida ou resistência as
afastava mais.
Na festa ficaram muito pouco tempo. Juntas, a noite inteira. O amanhecer
as surpreendeu nuas e enlaçadas, unidas num último beijo debaixo dos
lençóis de Lorena.
Ainda extasiadas com a intensidade do momento. Surpresas com a
facilidade com que Priscila rendeu-se e se deixou guiar, entregando-se sem
barreiras. Correspondendo com um ardor extremo.
Lorena achando-a ainda mais perfeita. Priscila só lamentando ter evitado
estar nos braços de Lorena de verdade por tanto tempo.
Uma sensação de realização inédita. A interação de maior resolução que
já tinham experimentado. Algo que não era só físico. Imaterial, abstrato,
nada palpável, mas concreto.
Muito real. E virtual ao mesmo tempo. Porque carregava – além do que
já era – uma possibilidade infinita de vir a ser.
Exaustas, mas completamente satisfeitas. Sorrindo desses estranhos
pensamentos – provavelmente efeito do sono que rapidamente veio –
Priscila e Lorena fecharam os olhos e – embaladas nesse único,
incomparável e incompreensível sentimento – finalmente adormeceram.
SOBRE COMO TENTAR AMAR UMA NERD
ASSUMIDA SEM SER VIRTUALMENTE
Edição: Vira Letra

Autora: Diedra Roiz


Diedra Roiz é escritora, diretora teatral e atriz. Tem sete livros publicados:
os romances O SUAVE TOM DO ABISMO - Reflexão (2016), O SUAVE
TOM DO ABISMO - Absorção (2015), O LIVRO SECRETO DAS
MENTIRAS e MEDOS (2009), LEGADO DE PAIXÃO (2014) e AMOR
ÀS AVESSAS (2015), a coletânea de contos BOLEROS DE PAPEL (2011)
e o livro de poesias AMA/DOR/A (2014). Carioca morando em
Florianópolis - Santa Catarina, casada com a escritora Wind Rose,
praticante do budismo de Nichiren Daishonin. Todos os textos que publicou
na internet estão reunidos no site: www.diedraroiz.com
LEIA MAIS:
www.editoraviraletra.com.br

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