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TÍTULO ORIGINAL
Diary of an Oxygen Thief
PREPARAÇÃO
Ângelo Lessa
REVISÃO
Nina Lua
Ulisses Teixeira
FOTO DE CAPA
Cortesia do autor
GERAÇÃO DE EPUB
Intrínseca
REVISÃO DE EPUB
Mariana Góes
E-ISBN
978-85-510-1512-1
1ª edição
1
2
3
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Para Matty
1
Ela chegou cerca de meia hora atrasada, mas estava linda para cacete.
Suéter preto de gola V, saia lápis preta, sapatos pretos. Um visual bem
Prada. Cabelo castanho-escuro comprido balançando atrás dela ao entrar
pela porta. Ela me pareceu familiar, como se eu já a conhecesse. Como uma
irmã que eu tinha e perdi.
Muito inocente, jovem e adulta ao mesmo tempo. Assim que ela entrou
pela porta, meu maior desa o passou a ser esconder como me senti afetado.
Ela veio até mim com, creio eu, a intenção de se inclinar à minha esquerda
e me dar o que, conforme eu aprenderia, é o obrigatório beijo na bochecha
nova-iorquino. Eu nunca tinha ouvido falar em uma coisa dessas em Saint
Lacroix.
Aqueles olhos.
Isso vai soar horrível, mas não ligo. Já passei há muito tempo da fase de
sentir vergonha.
Você não consegue ferir um homem com um al nete se ele já tiver uma
lança cravada no peito. Eu juro que ela estava igualzinha às imagens da
Virgem Maria nos lares católicos irlandeses.
Não estou brincando.
A porra da Virgem Maria.
— Você está linda — elogiei, enquanto fazia um gesto para o balcão da
recepcionista.
— Obrigada, você também.
Aquela foi a primeira mentira dela. Entramos na arena a passos largos. O
lugar era repleto de assentos de couro marrom e azulejos com aparência
antiga. Era sexta à noite. Eu pegaria um voo de volta para você sabe onde
na manhã seguinte. Estava bem cheio, então não pegamos a cabine
reservada. Mas conseguimos uma mesa boa o su ciente. Ela não era idiota.
Isso cou bem claro logo de cara.
Ela também não era uma bonequinha inexperiente de vinte e dois, vinte
e três ou mesmo vinte e quatro anos. Falava como alguém mais velha do
que parecia. Isso realmente me surpreendeu. Eu esperava passar a noite me
esquivando de elogios tão absurdos que acabaria odiando a falta de sutileza
dela. Em vez disso, quei com raiva de mim mesmo pela minha própria falta
de sutileza. E era tarde demais. Eu não podia acordar de repente e dizer:
“Ah, não me dei conta de que você era inteligente. Achei que não passava
de uma pirralha carente, bajuladora e idiota que não merecia que eu desse o
melhor de mim.”
Provavelmente ela viu tudo o que precisava ver em mim nos primeiros
quinze minutos da minha fala incrivelmente egocêntrica. Aos poucos,
quase como se estivesse com medo de me magoar, ela me fez ver quanto eu
havia me exibido. Já tinha ido a exposições sobre as quais eu mal começara
a ler. Filmes dos quais eu apenas ouvira falar já eram lembranças antigas
para ela. E eu só me dei conta de que pronunciava errado os nomes
daqueles artistas estrangeiros quando ela os pronunciou.
Sua superioridade era graciosa, até solidária. Fui pego completamente
desprevenido. Claro que desde então atribuí cada nuance da conversa
daquela noite às suas habilidades demoníacas de manipulação, mas a
verdade é que, quando alguém me ofusca, eu escondo a raiva colocando a
pessoa num pedestal. Isso me faz parecer generoso, e, assim, quando eu
en ar a faca nas suas costas, ela con ará em mim. Pois é, às vezes eu me
assusto comigo mesmo.
Seja como for, ela me contou que era de Whiteheath, em Dublin.
Descobri muito depois que essa é uma região extremamente abastada da
cidade. E que ela era lha única. Fazia trabalhos freelances como assistente
de fotogra a porque assim, entre um serviço e outro, tinha mais tempo para
se dedicar ao próprio trabalho. Mil desculpas, mas sempre traduzi isso como:
“Não consigo um emprego em tempo integral.” Enquanto ela falava, eu me
apaixonava total e irremediavelmente. As mãos compridas, o olhar direto,
os movimentos de cabeça para ajeitar os cabelos macios, a pele clara do
pescoço, a curva suave dos seus seios pequenos.
Chega.
Quando ela de fato se mostrava impressionada com algo que eu dizia (a
essa altura estava me dando conta de que precisaria me esforçar mais),
parecia me tratar do mesmo jeito que se trata uma criança pequena. “Ah,
nossa, que legal”, ou “Eles devem gostar muito de você”, ou “Queria eu ter
os mesmos problemas”. Por essas reações me dei conta de que estava
tentando impressioná-la. Eu me sentia compelido a isso. Queria poder
recomeçar aquela noite toda.
E não conseguia deixar de pensar que ela estava entediada, mas ngindo
interesse. Tomou cuba-libre no jantar. Uma dose grande. Pedi costeletas de
porco. Ainda tenho a conta. Sério. Pedi reembolso na empresa, mas quei
com a conta. Sabe, aquela noite mudou a minha vida. Não fosse ela, eu não
estaria aqui no East Village, em Nova York, escrevendo esta porra. Ela disse
que eu iria gostar do East Village.
Ela estava certa.
Mas foi isso. Fiquei completamente apaixonado por ela. Como não me
apaixonaria? Aquele era o presente do meu pai morto para mim, e eu iria
negá-lo? Não. Conversamos descontraidamente sobre publicidade, e z o
melhor que pude para fasciná-la. Ela era reservada, mas educada — muito
educada. Velha guarda. Eu nunca tinha recebido permissão para chegar
perto disso. Ela chegou a servir água mineral no meu copo e girou a garrafa
abruptamente, como se faz com champanhe.
Fiquei excitado.
Ela era muito atenciosa. Foi isso. Sabia manipular um cara. Fazia você
achar que não havia problema em ser um cara. Em ser você mesmo. Essa, ao
que me parece, é a arma mais devastadora do arsenal de uma mulher. Se
você consegue estimular o homem a ser ele mesmo, a revelar seu caráter e
seu jeito, descobre como lidar com ele, e portanto ele nunca vai conseguir
esconder nada de você.
Eu já sabia disso.
Consegui permanecer dez anos no mercado publicitário, área nem um
pouco conhecida pela caridade. No entanto, mesmo eu, o Sr.
Ressentimento em pessoa, atravessei suas cortinas de veludo e me rendi.
Veja bem, eu estava pronto. Cacete, fazia cinco anos que não tocava em
uma mulher.
Então ela representou seu papel de aristocrata irlandesa comportada e eu
representei o meu: o de garoto irlandês perdido com dois olhos enormes e
pidões. Ela deslizou pelo piso e me levou de volta à Broadway e depois à
Bleecker Street, que, na minha ignorância, e para minha vergonha eterna,
eu a pedira que me mostrasse por ter ouvido dizer que era bem legal.
Ela me levou a um bar gay. Fazia anos que eu não entrava em qualquer
bar, muito menos um bar gay. Demorei mais ou menos uma hora para
descobrir isso. Havia muitos homens de meia-idade e cabelo tingido
aparentemente muito felizes, cantando ao redor de um piano de armário.
Eles se deleitavam. Não estavam bêbados, apenas alegres. Querubínicos.
Ela foi ao banheiro e me deixou sozinho por mais tempo do que eu teria
achado necessário. Ela poderia muito bem ter atravessado a rua, tomado um
drinque com toda a calma e voltado bem a tempo de encontrar um homem
corpulento com os dentes mais brancos que eu já tinha visto se encostando
em mim. Fiquei aliviado ao vê-la e lhe contei isso. Ela gostou de saber.
Claro que gostou.
Fomos para outro bar. Um pouco mais cheio. Sentados em bancos
grudados, ela me contou, gesticulando — parecia ter adquirido o hábito
americano de usar as mãos para moldar as palavras que saíam da boca —,
que havia ganhado o green card na loteria irlandesa e trabalhado em L.A.
por um ano antes de cruzar o país e chegar a Nova York. Empolgou-se ao
revelar que passou o Mardi Gras em Nova Orleans durante a viagem e, mais
especi camente, que viu toda aquela gente dançando nas ruas. Pareceu
sonhadora ao falar da experiência. Foi a única vez que se soltou. Sim,
lembro que, mesmo enquanto estávamos fodendo — ou melhor, quando ela
estava me fodendo —, eu pensava em como era linda, mas que havia
alguma outra coisa ali, algo enervante, não exatamente um ódio genérico,
talvez um ódio de si mesma. Isso. Estava mais para ódio de si mesma. O que
quer que fosse, era algo interno. Ela lidaria com aquilo. Eu nunca teria essa
chance.
Esse privilégio.
Então, de lá fomos para um café que até hoje não consegui encontrar.
Devia ser em algum lugar perto da Bleecker. Ratos passavam por baixo das
cadeiras. Embora eu fosse car mais do que feliz ao ir embora por causa
disso, ela insistiu bastante para que continuássemos lá. Parecia esperar algo
mais. Então acabei confessando que tinha gostado muito de conversar com
ela. Mais do que havia esperado. Ela disse que pensava da mesma forma, de
novo gesticulando, dessa vez esticando o braço como se quisesse dizer
Segure a minha mão. Eu me estiquei, e, antes de perceber o que estava
acontecendo, nós nos beijamos delicadamente.
Nada muito elegante.
Eu estava meio de pé, debruçado numa mesa, com ratos circulando perto
dos nossos pés.
Mas foi legal.
Senti todas as teias de aranha serem revolvidas e depois levadas por uma
rajada quente de verão que pareceu se fechar em torno de mim. Sei lá que
porra ela sentiu, mas fui sgado ali mesmo. Teria cado bem contente de
passar horas dando beijinhos naqueles lábios. Sem problema.
Só que, com muita habilidade, ela aumentou as apostas com um
movimento rápido e rígido de língua. Foi impressionante. Assim como a
chama piloto que se acendeu no duto do meu pau. Você conhece o som:
Vuch, ou seria puff?
De repente, eu estava olhando para aquela adolescente doce e inocente
como se ela fosse uma piranha coberta de porra. E gostei. O mais
importante: ela também. Eu deveria ir embora no dia seguinte. Mas já era o
dia seguinte. Provavelmente eu não a veria de novo até o Natal, e nem isso
era garantido. Ambos pretendíamos passar as festas de m de ano em casa
na Irlanda. Não tive alternativa.
— Quer ir para o meu hotel?
Aquilo foi algo épico para mim. Eu já tinha comprimido uns quinze anos
de adolescência mal vivida em duas horas, e ali estava um sujeito de trinta e
cinco anos, ainda em formação, tentando realizar a maior venda da sua
vida. Ela murmurou alguma coisa sobre eu estar indo rápido demais, e eu
recuei, sentindo-me grato. Aliviado. Então caminhamos lentamente pela
rua, de mãos dadas, procurando um táxi, mas sem fazer muito esforço para
encontrar. Por m, ela se virou para mim e completou:
— Podemos ir para o hotel se formos com calma.
Dito isso, começamos a andar mais rápido. Ela chamou um táxi. Nós nos
beijamos um pouco no banco de trás. Nova York me pareceu maravilhosa
através das mechas castanhas reluzentes que caíam sobre o meu rosto entre
os beijos.
Permita-me um momento aqui.
Obrigado.
Logo chegamos ao meu hotel, e o porteiro se aproximou de nós em
câmera lenta. Eu morro de medo desses seres que cuidam das portarias,
porque conheci um em Saint Lacroix, e tudo o que ele sempre parecia fazer
era reclamar de como recebia gorjetas miúdas. Eu não dava gorjeta a eles.
Para quê? Para carem ali de pé? Então, minha jovem namorada e eu
passamos pelo rosto sorridente — e, na minha cabeça, invejoso — e
chegamos ao elevador. Eu estava uma pilha de nervos naquela caixa
espelhada que zumbia. Por que sempre tem espelhos? Para mim não há nada
mais assustador do que ver a minha própria imagem de dois ou três ângulos
diferentes. Olhei para o chão.
Quarto 901 signi cava nove andares.
Rezei para a chave funcionar. Também rezei para ela ter mais de dezoito
anos. Neste país você não quer ser associado à pedo lia, nem de
brincadeira. E aquela garota realmente parecia jovem. Eu me contentei em
pensar que ela estava pelo menos na casa dos vinte, mas ainda assim não
conseguia tirar da cabeça que a qualquer instante a polícia iria arrombar a
porta com um chute. Em certo momento ela se virou para mim (estávamos
na cama) e piscou com uma expressão inocente.
— Conte uma história para mim — pediu.
Devo ter cado branco. Ela podia ter catorze anos. Contei a história de
uma mulher que voltou para casa com um rato que havia pegado na Índia
achando que era um cachorro. Nós nos beijamos e nos acariciamos, e
acabei fazendo sexo oral nela.
Bom, não quero ser explícito demais aqui, mas tenho que dizer isto
porque é verdade, e, pela minha experiência, raro: a vagina dela tinha um
gosto melhor do que a boca. Eu poderia ter passado a noite inteira lá
embaixo.
Sem problema.
Eu só subia para ver se ela era tão bonita quanto eu descon ava. Era. Isso
continuou até o dia começar a raiar. Ela disse que deveríamos ir devagar,
então fomos. Eu estava determinado a que não fôssemos até o m.
Lembranças de momentos com a Pen, lembranças físicas, começaram a
brotar em mim. Eu me lembro de olhar para Aisling enquanto ela dormia e
pensar: “Ela voltou. Consegui a Penny de volta.” Eu costumava olhar para a
Penny enquanto ela dormia. Era gostoso simplesmente deixar meus olhos
vagarem à vontade sobre aquela pele macia. Um quadro vivo, que
respirava. Era estranho voltar a tocar um corpo nu depois de tanto tempo.
Eu estava tão aterrorizado com a possibilidade de ela não me achar atraente
que nem sequer tirei toda a roupa. No meu íntimo, estava contente por
irmos devagar, pois isso signi cava que eu não teria que enfrentar a questão
do desempenho. E se eu gozasse rápido demais ou não conseguisse car
duro?
Usei uma máxima do AA, que me ajudou.
Quando em dúvida, seja útil.
Então, eu me concentrei em dar a ela o máximo de prazer que podia. A
Pen havia me ensinado a fazer sexo oral nela, e, naquele momento, quei
feliz por isso. Aisling exibia um leve sorriso no rosto adormecido. Parecia
bem feliz.
Quando amanheceu eu a chamei para tomar café da manhã. Arrumei
minhas bolsas e z o check-out. Logo estávamos em outro táxi a caminho
de um café perto da casa dela. E pouco depois disso eu estava em mais um
táxi, voltando para Aquele Lugar. Ela não olhou para o carro depois que
entrei nele e fui levado embora.
Eu sei disso porque olhei.
Ainda não havia nevado em Saint Lacroix. E eu ainda não tinha
vendido a porra da casa. A paranoia já estava me enlouquecendo, eu
achava que a empresa estava bloqueando a venda. Achei que vinham
subornando o corretor para conter seu entusiasmo por fechar um negócio.
Eu estava sob enorme pressão por causa da grande campanha que vinha
criando para uma instituição de caridade que oferecia férias de verão para
crianças com aids.
Grande projeto. Grande coisa.
Toda agência de publicidade deve ter no portfólio uma instituição de
caridade para a qual faz todo tipo de favores absurdos. Mas há alguns
incentivos atraentes para isso. Um: a agência normalmente pode fazer um
grande trabalho dramático para a instituição, mais dramático do que seria
autorizada a fazer para um alimento enlatado. E dois: há reduções scais e
isenções. Mas é importante escolher bem a que instituição de caridade você
se liga.
Especialmente nos Estados Unidos.
Por exemplo, uma instituição que arrecada recursos para ajudar viciados
a largar a heroína não é nem de longe tão con ável, atraente nem gera
tanta pena quanto uma que trata de crianças com aids. Adultos com aids
não são bons. Pode ser culpa deles mesmos. Não, crianças são boas.
Crianças com aids são ainda melhores. Desculpa, mas é verdade. Não é
culpa das agências de publicidade. Na verdade a culpa é sua.
Do público.
E, se isto nunca for publicado, a culpa também é sua, porque signi ca
que consideraram este tipo de história desinteressante.
Seus desgraçados.
As pessoas simplesmente não aceitam que um viciado em heroína peça
dinheiro para largar o vício. Talvez estejam certas. Quem sabe? Mas é isso.
Instituições de caridade são tão competitivas quanto empresas comerciais e,
hoje em dia, precisam pensar como elas.
A nal, estão correndo atrás da mesma grana.
E há também as redes de televisão, que têm um tempo limitado de
transmissão disponível anualmente para ser doado a instituições de
caridade. A quais devem ceder o tempo? Cada rede tem seus padrões a
manter e se preocupa em divulgar o per l dos seus canais. Em suma, tudo
depende de qual comercial vai dar ao canal a melhor imagem. Mais uma
vez, com as crianças você está seguro. Então a agência de publicidade é
esperta o bastante para escolher uma instituição com muitas crianças, pois
sabe de cara que as emissoras vão ter mais tempo para elas — neste caso,
tempo de exibição.
De qualquer forma, permita-me contar minha história sobre o
acampamento de verão para crianças. Estávamos gravando o comercial em
uma locação no Acampamento Northern Minnesota. Dormíamos em
beliches lá. Só fui saber o que era um acampamento de verão quando me
explicaram. Ainda assim me pareceu algo ao qual apenas crianças de classe
média iriam. Mas não existe classe média nos Estados Unidos. É, sei...
Depois de um sono irregular, fui ao toalete (eufemismo para banheiro
comunitário) dar uma cagada e fazer a barba. E me ocorreu que, com
duzentas crianças correndo por ali durante o verão, algumas das suas
doenças contagiosas poderiam ser transferidas para as pias. Isso me ocorreu
pouco antes de fazer a barba.
Pensei em cada poro da minha pele se abrindo para todo o ar
contaminado. Meu Deus. Segui em frente e z a barba, claro. E, depois de
alguns olhares avaliadores para mim mesmo, quei satisfeito por, apesar de
não ter dormido bem, não passar essa impressão.
Tomei o cuidado de não sorrir para mim mesmo. Quero nunca ser
agrado sorrindo para mim mesmo diante de um espelho. Tudo bem fazer
isso em particular. Saí para tomar café da manhã. A equipe e o diretor já
estavam reunidos em torno de pratos fumegantes. Pareciam cansados e
barbados.
Isso me agradou.
Eu me sentei e devorei ovos, torradas e tudo o que era oferecido. Caaa-
fééé. Então, o chefe do acampamento e grande herói do dia entrou todo
empolgado, esfregando as mãos e baixando os olhos com um excesso de
humildade. Ele dirigia o lugar e era o fundador da coisa toda. Notei que o
homem também estava com a barba por fazer. Aquilo era muito atípico, já
que ele era sempre muito cuidadoso com a aparência. Na verdade, com
exceção da barba, ele parecia normal e bem-vestido como de costume, mas
usava roupas de lã e tweed. Meu sangue começou a coagular. Ele se arriscou
a lançar um olhar humilde ao redor da mesa. Estava apenas em busca de
informações. Quem estava à mesa? Com quem precisava ser mais gentil, e
em qual ordem?
Parou junto a mim.
— Você não fez a barba, fez?
Devo ter cado branco.
— Sim, z. Eu...
— Ah, poxa... Estou muito desapontado.
Estava prestes a perguntar como ele achava que eu me sentia.
— A gente não faz a barba aqui no acampamento. É para ser uma coisa
informal, mas acho que, como a rigor você está trabalhando, a gente vai
deixar passar.
Dei uma risada sincera. Eu sobreviveria. E, mais importante, não
precisaria fazer um teste de HIV antes de me encontrar novamente com a
minha amada. Estar naquele acampamento, com pássaros cantando e
crianças por toda parte sendo tão fo nhas e legais umas com as outras,
despertou algo familiar dentro de mim. Eu me vi morando com Aisling em
algum lugar de oresta como aquele. A luz banhando nossa felicidade, risos
ecoando nas árvores até nos calarmos para não acordar o bebê.
Nós nos consideraríamos extremamente afortunados pelo fato de nosso
lho não ter sido contaminado por alguma terrível doença.
O número de telefone da minha futura esposa queimava minha coxa, o
interior de uma gaveta e alguns outros lugares dos quais não conseguia me
lembrar. Eu havia tomado a precaução de anotá-lo em vários pedaços de
papel para o caso de perdê-lo. Tive que resistir à tentação de ligar para ela.
Enorme.
Anseio físico.
Eu estava mal. Quer dizer, fazia cinco anos que eu nem sequer olhava
para uma mulher, e então tudo aquilo em cima de mim. E eu não sabia
sequer o que aquilo era. Nunca havia sentido aquelas coisas. Hoje em dia,
eu me contraio só de olhar para trás, mas realmente estava apaixonado. Ou
obcecado. Meus olhos pesavam quando eu pensava nela, minhas pupilas
dilatavam só de eu pensar sobre ela.
No m das contas, os anúncios do acampamento caram ótimos, e um
deles até ganhou um prêmio.
De lá para cá, todas as crianças que apareceram neles morreram.
Ainda não sei bem o que fazer com essa informação.
Mas aí está. Para mim é fácil ser totalmente honesto porque a
possibilidade de alguém um dia publicar o que escrevo aqui é muito remota.
Pelo menos vou me bene ciar, usar isto como uma espécie de terapia. Eu
senti amor ou obsessão? Ainda não sei. De algum modo, pensar nela, ou
mesmo pensar em ligar para ela, me fez sobreviver àquelas noites em
Minnesota.
Então telefonei para ela, e conversamos, principalmente sobre
publicidade — portanto, sobre mim. Achei que ela estava interessada.
Talvez estivesse. Pelo menos isso teria tornado a conversa um pouco mais
prazerosa para ela. Não consigo deixar de pensar que ela deve ter lidado
com essa parte da coisa toda da mesma forma que uma prostituta lida com a
conversa antes do sexo. Você tem que escutar um pouco das merdas deles
até se sentirem à vontade o bastante para carem de pau duro, e eles
precisam car de pau duro, caso contrário não vão fazer o sexo que você
precisa que façam para ser paga. Era o que eu achava que estava
acontecendo. Ela me escutava, simplesmente sei que me escutava. Lá vou
eu de novo. O ego masculino. Como o cara que acha que a prostituta goza
quando parece gozar. Quero acreditar que ela me escutava, gostava de mim
e, sim, até me amava um pouco. Mesmo agora pareço querer acreditar nisso.
Maluquice, né? Eu costumava dizer “Maluquice, não?”. Mas agora é né.
Estados Unidos.
Eu havia passado quase dois anos em um estado de espírito horrível em
Minnesota e achava que merecia que algo de bom acontecesse. Hoje, em
Nova York há mais de um ano, percebo como devo ter soado inocente e
bobo para uma fotógrafa faminta de vinte e sete anos e determinada a
arrasar na cena nova-iorquina. Tudo bem. Ela podia ter um fascínio
mórbido, porém o meu não era muito mais desenvolvido.
Eu queria que ela me ajudasse a sair. Sair de Saint Lacroix. Queria que
ela fosse a minha guia em Nova York. Eu a queria. Queria muito.
Eu tinha minhas razões, e suponho que Aisling tinha as dela. Para a
garota, eu devia parecer um baita culchie bisonho que ganhava um salário
alto demais, sendo culchie um termo para qualquer pessoa de fora da área de
Dublin.
Eu estava pronto para a ceifa.
Nas suas viagens trabalhando como assistente, Aisling tinha visto muitas
pessoas parecidas comigo. Era comum fotógrafos da nublada Nova York
marcarem sessões em Miami — a iluminação, meu bem. Muitos quartos de
hotel, bares e longas sessões de foto. Um monte de diretores de arte como
eu, com dinheiro, mulheres, lhos e hipotecas. Espero ter me destacado por
ter apenas a hipoteca.
Mas ela devia ter achado que eu era casado, ou torcido por isso. Veja
bem, nada me tirava da cabeça que ela estava recolhendo informações
sobre mim para usar depois. Talvez quisesse material para me chantagear
por causa da esposa que imaginou que eu tivesse. Bom, por que mais eu
estaria morando em uma casa vitoriana de três quartos? A razão para a
chantagem? Receber encomendas de trabalho bem polpudas da agência de
publicidade. Para ela, como fotógrafa iniciante, valeria muito ter feito um
ou dois trabalhos para uma empresa tão renomada.
Pensei: “Que se dane. Ela é linda, eu estou sozinho. E também estou
precisando de alguma coisa para aumentar minha coragem.”
Eu não teria tido os colhões para fazer o movimento seguinte se uma
garota gostosa não estivesse me estimulando. Dei a ela o poder de me
arrancar de lá.
Comecei ligando para o RH e perguntando como pedir demissão. Como
se eu não soubesse. Queria que eles soubessem que era sério. Eu já não me
importava. Na realidade, foi uma jogada maluca. Provavelmente eles
tinham certeza de que eu estava apaixonado, e vamos encarar os fatos: eu
estava. Fiz questão de perguntar se aquela conversa era con dencial, já
sabendo que, em uma situação como aquela, o RH teria que informar ao
presidente do grupo. Então, na prática, pude ameaçar me demitir sem ter
que pedir demissão. Graham, meu chefe, cou sabendo o que eu queria que
ele soubesse. Que eu estava falando sério.
Não demorou para ele me perguntar, como quem não queria nada, se eu
tinha vendido a casa. Nunca vou me esquecer da expressão no rosto dele.
Deus que me perdoe, mas eu gostei. E mais uma vez, acredite em mim,
provei do meu próprio veneno em seguida, mas aquele momento foi meu. A
melhor forma de descrever seu rosto branco é dizer que ele ondulava. A
onda solitária começava abaixo do queixo e subia até a linha do cabelo.
Parecia leite. Ele era branco assim. Demorou alguns instantes para o
signi cado daquilo ser registrado por ele, e depois por mim. Achei que para
ele não teria importância, que tanto fazia. Mas pelo que parecia tinha
importância, sim. Ele realmente deve ter pensado que contaria comigo por
mais alguns anos. Se eu tivesse sucumbido às suecas, ele provavelmente
conseguiria.
No dia seguinte ele me chamou para dizer que eu pegaria um voo rumo a
Nova York, onde ajudaria no escritório durante algumas semanas. Eu não
sabia que não voltaria mais para Saint Lacroix, mas era o que eu esperava.
Eu poderia ver a minha Aisling. Não ligava para o trabalho. Foda-se o
emprego, estava de saco cheio da publicidade e de todo mundo no ramo. Só
queria algumas semanas remuneradas em um belo hotel de Nova York com
o meu amor.
Quando voltasse ao Forte Fracasso (meu apelido para a casa), eu falaria
com ela. Eu a imaginaria sentada em uma cadeira à minha frente. Eu taria
amorosamente um ponto a meia distância logo acima da cadeira, como se
olhasse dentro dos seus olhos verdes, e inclinaria a cabeça, impressionado.
Assentiria de maneira educada, me inclinaria para a frente e concordaria de
forma quase relutante com o que ela diria. Ela era tão inteligente que até eu
tinha que dar o braço a torcer.
E então eu daria uma risada feliz. Porque estava feliz. Estava tendo um
caso amoroso. O caso perfeito, sem interrupções por parte de ninguém. Vi
um cartum que tinha uma imagem de Narciso olhando para o próprio
re exo num lago. A namorada dele está perguntando: “Narciso, tem outra
pessoa?”
Se me demitissem depois da minha temporada em Nova York, tudo bem,
pelo menos teria vivido alguns momentos inesquecíveis. Eu havia tentado
me organizar e viajar para Nova York antes, mas meus planos nunca tinham
dado em nada. Todas as vezes tentei desesperadamente esconder a decepção
na voz quando contava a Aisling que não conseguiria ir.
Eu me culpava ao ver que qualquer esperança para a nossa relação estava
murchando. Aquilo me matava. Então eu telefonava por volta de dez e
meia da manhã de sábado, e ela não estava em casa. A diferença de uma
hora no fuso horário me deixava ainda mais ansioso: nove e meia em Nova
York. Caramba, como minha mente se divertia com isso, posso garantir.
Ela não estava em casa?
Óbvio que estava saindo do apartamento de algum cara e voltando para
casa, ou talvez ainda estivesse trepando com ele. Por que não? Ela foi para a
cama comigo na primeira noite em que saímos. Mas aquilo era diferente,
aquilo era amor. Foi comigo. Eu ligava e me oferecia para ir passar um m
de semana lá. Ela descartava a hipótese com elegância, dizendo que seria
melhor se eu não tivesse que gastar nada. Melhor esperar uma viagem de
trabalho. Ela estava certa, claro, mas eu morria de vontade de transar.
Também via que ela era ambiciosa. Não tinha medo de falar do trabalho
dela.
Isso me assustava um pouco, pois signi cava que ela só estava interessada
em mim por causa do meu cargo de diretor de arte sênior. Eu odiava a
palavra “sênior”, dava a impressão de que eu era velho. Para ela, eu devia
parecer velho para cacete. Meu consolo era pensar que não parecia ter mais
que trinta e dois anos. Ela brincava com isso. Qual garota bonita que tinha
acabado de fazer vinte e sete não brincaria? Certa noite ela disse que ia
realizar uma exposição. Fiquei tão contente por ela me envolver na sua vida
a ponto de me contar esse detalhe que me ofereci para ajudar. Tentei
impressioná-la com a minha capacidade de manipular a mídia, mas ela não
se impressionou.
Ficou mais para desapontada.
Eu quis amenizar a coisa toda dizendo que iria lá para comemorar o dia
de São Patrício.
Agora vejo como isso deve tê-la deixado mais à vontade para seguir em
frente com o que ia fazer. É engraçado como, depois de decidirmos que não
gostamos de alguém, conseguimos encontrar razões para sustentar a decisão,
e, da mesma forma, fazer o oposto. É o que acho que estava acontecendo.
Eu mergulhava cada vez mais e já havia decidido que gostava dela — não,
eu a amava —, e pouco a pouco comecei a recolher e trançar uma
sequência orida de pequenas observações e nuances que a uniam
carinhosamente a mim.
Ao mesmo tempo, ela estava compilando a própria lista.
De queixas.
Lembro-me dos silêncios que se instalavam após eu dizer alguma coisa. O
tipo de silêncio no qual você deixa a pessoa que fala cozinhando, calada. É
como um holofote apontado para o que foi dito. Como repetir algo com
uma voz fria e desinteressada. E nas folgas que tirava de mim ela alimentava
seu fervor para completar o que provavelmente já havia começado.
Eis o que sei sobre ela.
Vinte e sete anos. Aisling McCarthy. Assistente de fotogra a. No
começo dos anos 1990, trabalhou como gerente de projetos em uma
empresa de design grande e ultrapassada de Dublin. Deixou a cidade após
ganhar um green card na loteria. Disse que teve que deixar Dublin às
pressas. Trabalhou em L.A. por cerca de um ano. Trabalhou como
recepcionista no Green Room, restaurante quatro estrelas que recebia a
elite de Dublin. Tento não de nir o termo “recepcionista”, a não ser que
esteja me sentindo particularmente grosseiro.
Ela adora Deelford, minha cidade natal, e o padrasto, o Sr. Tom
Bannister, advogado do meu pai, que está morto.
A mãe dela é de Ballina. Uma irlandesa bastante patriótica, mas não de
um jeito feniano, desagradável, como uma revolucionária. Quando a
conheci, ela era uma das assistentes de Peter Freeman, um grande fotógrafo,
um baita fotógrafo, provavelmente um dos melhores de Nova York e,
portanto, do mundo. Ela dividia um apartamento no Lower East Side com
duas pessoas. Sua casa na Irlanda ca em Whiteheath. Elegante para
cacete, acredite. E parece muito, muito nova. Já perguntaram se ela tinha
dezesseis anos.
Passou um tempo em um colégio de freiras quando criança. Era muito
próxima de uma delas. E o avô morreu na época em que a conheci.
É obcecada por retratos, especialmente em preto e branco com alto
contraste.
Esteve na Espanha e trabalhou em um museu.
Todas essas informações registradas após uma noite curta e não mais do
que quatro telefonemas. Ela nunca poderia me acusar de não escutar.
Escutei até demais. Estava tentando absorvê-la. Poderia ter escrito um livro
sobre ela.
Opa.
Certa vez, ela passou férias com a família no Peru. Disse que cou
enojada com o modo como olhavam para ela. Branca demais naquele
ambiente de rostos cor de couro e cabelos cor de corvo. No seu novo
trabalho era necessário ter muito conhecimento de informática. Ela me
encorajou a abrir minha própria agência em Dublin. Gostava de beber
Guinness. Recebeu ajuda de Peter Freeman no seu trabalho. Ele até
apareceu alguns ns de semana para ajudá-la. Senti ciúmes ao ouvir isso.
E é só. Fora, claro, todo o resto que vou contar. Vou lhe dizer uma coisa:
estou me surpreendendo comigo mesmo, porque, em geral, sou mais
cauteloso. Se houvesse um jeito de torturá-la e matá-la sem ir para a prisão,
eu iria em frente. Ou se me sentisse capaz. Não se preocupe, não passo o dia
pensando em fazer isso, sonhando acordado com formas de matá-la. Apenas
me sinto capaz de causar mal a ela. Mas não vou. Estas páginas são o mais
perto que vou chegar de compensar os efeitos daquela noite de março. Mas
não vamos nos precipitar, certo? A raiva tem me consumido há quase seis
meses. Causar esse tipo de fúria em alguém demanda uma boa dose de
talento e, pre ro pensar, inteligência. Amor, ódio: qual é a diferença?
Certa noite, ao telefone, ela me contou que tinha fechado contrato para
um livro. Interessante.
Perguntei que tipo de contrato e como havia conseguido. Eu estava
sempre interessado em caminhos que me tirassem da publicidade. Ela me
contou que tinha um amigo que estudava produção editorial em Princeton.
Tentei não engasgar. É de escrotos podres de ricos que estamos falando aqui.
Na hora, claro, esqueci que eu mesmo ganhava muito bem. Nunca me senti
rico. Apenas idiota. Ainda mais naquela casa. O livro consistiria de ensaios
fotográ cos, disse ela. Retratos. Ela já havia feito alguns. Mas ainda tinha
alguns anos para concluir o trabalho.
Imediatamente quei com inveja. Eu queria fazer algo puro. Algo que
não precisasse vender nada.
— Talvez você apareça nele — acrescentou.
Isso foi deixado em aberto. Eu não sabia se deveria me sentir lisonjeado,
mas foi o que aconteceu. Combinamos de nos encontrar em Dublin quando
estivéssemos na Irlanda para o Natal. Telefonei para lá de Saint Lacroix e
reservei um belo quarto no Shelbourne Hotel. Saint Lacroix estava gelada
para cacete no momento em que, agradecido, entrei num táxi, enquanto
soltava o ar ruidosamente e, com um sotaque americano, pedia ao motorista
que me levasse ao aeroporto. Era uma corrida de quarenta e cinco minutos,
e não, eu não queria conversar. O voo também era longo. Oito horas e
meia. Na verdade, foi mais por causa da Northsouth Airlines.
A pior companhia aérea do mundo.
Atrasos eram o padrão. Eu nunca levava mais do que a bagagem de mão;
do contrário, as malas acabariam sendo entregues dois dias depois onde
quer que você estivesse. Os passageiros viviam gritando com o pessoal da
empresa, que obviamente estava acostumado a ouvir gritos e a usar
máscaras pro ssionais de indiferença. Aquela era a única companhia aérea
que decolava de Minnesota, de modo que não havia muito a se fazer... a não
ser gritar.
Eu achava que estaria muito cansado antes de encontrar minha amada
em Dublin, por isso me recolhi no Shelbourne para dormir por algumas
horas. Quando acordei, encontrei uma mensagem passada sob a porta do
quarto.
Ali, no papel timbrado do hotel, havia uma daquelas inscrições Favor
ligar para. Vi Aisling escrito em uma bela caligra a, encabeçando a
composição de tipogra a vitoriana que me pareceu bem exótica, após um
ano e meio no ambiente sem história do qual eu acabara de sair.
Eu ainda tinha cerca de uma hora para matar antes de ligar para ela às
sete da noite, como pedido no papel. Eu precisava de camisinhas e comecei
a entrar em pânico porque não conseguia lembrar se nesse departamento
especí co a Irlanda ainda era medieval. Até pouco tempo você só podia
comprá-las com receita médica.
Fui dar uma caminhada. Virei à direita após sair pela bela porta da frente
do Shelbourne e segui em direção à Grafton Street. Precisei conter as
lágrimas. Acho que não consigo expressar a sensação de caminhar em meio
a todos aqueles rostos jovens e bonitos. Era como se alguém fosse gritar:
“Não ele. Não. Todos os outros podem caminhar por aqui, rir, relaxar e se
vestir bem, mas este sujeito não. Ele nem sequer deveria estar aqui.”
Foi fantástico. Nem sei se me encontrava mesmo na Grafton Street.
Estava aberta para pedestres no dia anterior à véspera de Natal. Nunca vou
me esquecer desse momento. Até achei uma farmácia da cadeia Boots, o
que me fez sentir como se estivesse em Londres. Dublin havia mudado
muito, e eu também.
Eu era uma pessoa mais triste.
No entanto, depois de comprar uma embalagem com doze camisinhas
(ei, algumas delas poderiam estourar), eu me alegrei um pouco. Voltei para
o hotel com a sensação de que tinha acabado de sair da prisão. Liguei do
quarto para o telefone da casa dela, e um cara atendeu. O pai? O padrasto?
Caramba, por aquela eu não esperava. Então simplesmente disse que ligaria
depois ou algo assim. Ele não pareceu muito feliz. Às sete ela ligou e
marcou na esquina da Grafton Street, no grande shopping center de vidro.
Eu conhecia o lugar e, tentando manter a calma, concordei em encontrá-la
ali em quinze minutos. Quinze minutos? Fui para lá e esperei do outro lado
da rua. Ela estava um pouco atrasada. Mas linda. Tive que conferir para me
convencer de que era mesmo tão maravilhosa quanto parecia. Ela, pensei,
estava fazendo a mesma coisa comigo, mas agora me dou conta de que devia
estar conferindo como eu tinha cara de bobo. Como era fácil me enganar.
Comemos alguma coisa em um café próximo, e lá a primeira foto foi
tirada. Na verdade, eu nem notei, mas vi algo nos olhos dela depois de
apertar o botão da pequena câmera descartável. Ela disse que
provavelmente o retrato nem sequer sairia naquele ambiente mal
iluminado. Eu havia perguntado se ela andava com uma câmera. Ela
respondeu que sim, mas que eu iria rir se a visse. Falei que não. Ela insistiu
que sim. Então eu disse tudo bem, que iria rir. Ela pegou uma câmera
descartável (do tipo que você vê em bancas), inclinou-a no tampo da mesa,
apontou-a de baixo para cima na direção do meu queixo e apertou o
obturador. Lembro que estava olhando para ela quando a foto foi batida.
Olhando direto para seus grandes olhos verdes e inocentes... Clique.
Imediatamente me senti roubado.
Ela havia capturado meu rosto bobo.
Meu olhar estúpido havia sido sugado do meu rosto, substituído por uma
expressão de descon ança. Só por um momento. Meu primeiro instinto
estava correto. Eu sabia que uma foto tirada daquela forma — de uma hora
para outra, sem preparação, batida por uma pro ssional — não poderia ser
lisonjeira.
Ela bebeu água com a refeição, e depois acabamos em um pub em
Temple Bar, onde tomou cuba-libre pelo resto da noite, enquanto eu virava
umas cinco garrafas da maldita água Ballygowan. Ela devia estar alucinada
quando voltamos para o meu hotel. Fiquei satisfeito com minha forma de
lidar com a situação. Falei:
— Uma pena você não poder voltar comigo para o hotel.
— Por quê, tem regras? Você não pode entrar com ninguém?
— Não, só imaginei que você não poderia ir, com seus pais e...
— Ah, não. Eu quero ir.
Ding-ding. Avançar a todo vapor. Cuidado com os icebergs.
Caminhamos para o hotel, ela agarrando com os dedos compridos minha
mão atarracada. Fazia uma noite linda, e as árvores ao longo do Stephen’s
Green estavam amareladas por causa da iluminação da rua em contraste
com o céu azul-marinho. Não falamos muito. Ela me beijava. Sem parar.
Houve um momento em que seus grandes olhos se dilataram, depois suas
pupilas se encolheram até parecerem cabeças de al nete. Aquilo me deixou
meio assustado. Fiquei pensando se ela não havia usado alguma droga. Já no
quarto, entramos em ação de um jeito que hoje considero bem objetivo.
Usamos a MTV como iluminação.
Foi ótimo. Eu adorei. Ela estava linda. Demais. Acho que não estaria
escrevendo isto se não fosse o caso. Não é todo dia que você tem a chance
de transar sem a menor pressa com a Virgem Maria quando ela estava com
dezesseis anos. Suas costas eram bonitas e esguias. As minhas eram peludas.
Eu não conseguia parar de rir. Na verdade, houve momentos em que
cheguei a rir alto. Ela cou um pouco incomodada com isso. Mas eu não
conseguia parar. Estava bom demais. Quando me sinto bem assim, eu rio.
Aisling achou que eu estava rindo dela. Além do mais, eu também
estava nervoso. Fazia (sim, você já sabe) cinco anos. Rolamos de um lado
para outro e basicamente transamos até o amanhecer. Lembro que, em dado
momento, ela cou por cima. Seus longos cabelos castanhos e sedosos
caíram para a frente enquanto ela quicava em mim. Os cabelos formavam
uma massa escura que parecia o interior do capuz da Morte. Como uma
cena saída de um daqueles lmes de terror no qual a gente consegue ver o
brilho fraco de dois pequenos pontos vermelhos em meio à escuridão.
Eu não conseguia deixar de pensar no comentário que ela havia feito
sobre o Mardi Gras de Nova Orleans e sobre como tinha se impressionado
com os dançarinos e o clima da festa como um todo. Imaginei umas pessoas
vestidas de vodus sinistros e cobertas de sangue de galinha. Só que ali era
Dublin. Estávamos muito longe da Louisiana, e o alvorecer entrava
suavemente pela janela. Comecei a me preparar para a nossa separação.
Pedimos café da manhã, e tomei banho depois dela.
Quando saí do banheiro, ela estava debruçada na janela enquanto tirava
fotos com sua pequena câmera descartável. Sem dúvida, em breve veríamos
esses retratos de novo.
Só Deus sabe o que mais ela fotografou enquanto eu tirava o roupão e
vestia minha roupa. Oportunidades não lhe faltaram. Ela foi na frente a
caminho do elevador. Então, virou-se para mim, xando aqueles grandes
faróis verdes, e disse:
— Eu estou um lixo.
— Você não está tão ruim assim — falei, tentando não deixar que
soubesse como estava linda.
— Tão ruim? — reagiu ela, nitidamente irritada.
Eu me encolhi. Ela fez uma ligação na recepção. Também tinha usado o
telefone na noite anterior. Para avisar aos pais que não voltaria para casa.
Tomamos café, e eu peguei um táxi para a Heuston Station. Em suma, isso
foi tudo.
Passei em casa o segundo Natal depois da morte do meu pai. Ficamos
bem, minha mãe e eu. Meu pai adorava o Natal, então a cadeira vazia
chamou muito a nossa atenção naquela época do ano. Mas eu estava
otimista. Bem, na verdade não, estava alegre. Tinha uma namorada
irlandesa espetacular, e minha casa estava prestes a ser vendida, o que
signi cava que Saint Lacroix chegava ao m do seu reinado como a cidade
em que eu morava. Naquele Natal eu animei a casa. Meu irmão nos fez uma
visita. Fui às minhas reuniões do AA. Aisling até me visitou em Deelford, e
tomamos café em um lugar novo. Um banco que tinha sido reformado. A
Irlanda havia mudado muito. Nenhuma das mudanças me incomodava.
Olhando em retrospecto, acho que ela queria me convidar para uma
festa que um dos seus amigos de Dublin dava todo ano para comemorar o
réveillon. Ela estava em Deelford para visitar o padrasto e tirou um tempo
para me ver. Isso foi dois dias antes da véspera de Ano-Novo.
Talvez ela quisesse fazer na véspera do Ano-Novo o que acabou fazendo
comigo no Cat and Mouse Bar em Nova York três meses depois. Não havia
nada que me indicasse que era esse o caso, a não ser a minha
intuição/paranoia notoriamente falha. Na noite em que nos encontramos
em Dublin ela comentou que um amigo de Nova York estava em visita na
cidade na época de Natal e que ela o deixara em um bar qualquer. Quando
nos vimos e nos beijamos pela primeira vez naquele encontro senti um forte
cheiro de álcool, o que me levou a concluir que ela provavelmente havia
bebido com o sujeito antes de me encontrar. Eu, claro, reclamei, dizendo
que ela não deveria largá-lo sozinho, que deveríamos tê-lo convidado para
se juntar a nós.
As mãos compridas dela descartaram a sugestão.
— Ele é grosseiro demais, você não ia gostar dele.
Acredito que o conheci no mês de março seguinte, no Cat and Mouse.
De volta ao Bistrô Bancário, acho que o fato de ela já ter marcado de visitar
amigos em Londres na véspera de Ano-Novo adiou por mais alguns meses a
ferida que se abriria na minha alma. Reservei um quarto no Hotel
Constance para a noite depois da virada, na esperança de repetirmos a
noite de sexo da semana anterior. E achei que seria uma bela surpresa para
ela, já que um dia havia trabalhado lá como recepcionista.
Liguei para ela de Londres no dia de Ano-Novo após uma noite
frustrante com meus amigos do AA. A mãe atendeu. Foi muito simpática e
perguntou quem era. Esperando que Aisling tivesse mencionado o meu
nome, respondi.
— Desculpe, quem?
Meu peito caramelizou.
E, quando a garota dos meus sonhos nalmente se atrapalhou, sonolenta,
com o telefone e disse alô, ouvi a decepção na sua voz rouca. Então os nãos
começaram a sair do fone em la única. Não, ela tinha que passar um
tempo com os pais. Não, ela quase nunca os via o su ciente. Não, talvez
quando estivéssemos de volta a Nova York. Não. Não. Não.
Não contei que havia reservado o hotel. Fácil, já que sou muito bom em
esconder a decepção. O Hotel Constance tem multa de cem por cento por
cancelamento. Se um dia você pensar em cancelar uma reserva lá, melhor
saber que isso signi ca que não vai receber o dinheiro de volta.
Minha irmã resumiu bem:
— Isso me parece mais uma punheta bem cara.
Ela também tem um invejável domínio da língua inglesa. E, com o
Constance cobrando quatrocentos euros a diária, ela tinha razão. Fiz tudo o
que pude para não telefonar para Aisling até retornar a Saint Lacroix. Eu
não queria voltar de jeito nenhum. Naquele momento só ela me
interessava. Eu odiava meu grande emprego maravilhoso. “Odiava” nem é a
palavra certa. Passa uma ideia de ação. Aquilo mais parecia apatia.
Deixando o cuidado para lá, contei a pessoas de língua solta que estava
infeliz e que em breve pediria demissão. Até aquele momento, não queria
nem pensar em algo assim pelo risco de ser ouvido. Mas passei a querer ser
demitido.
Eu teria recebido a notícia de bom grado. Mas eles não me demitiram.
Longe disso. Quando voltei do recesso de Natal, fui mandado para Nova
York. Era evidente que eu estava cagando e queria car em Nova York.
Então, arranjaram isso para mim. O cialmente eu deveria ajudar por
algumas semanas, mas sabia que nunca mais voltaria. Acho que eles
também sabiam disso.
Em especial porque a venda da minha casa tinha sido marcada para 2 de
fevereiro. Dois meses antes, um jovem casal havia aparecido à minha porta.
— Oi. A gente queria saber se você tem interesse em vender sua bela
casa.
Tive que resistir à tentação de abraçá-los.
Pessoas perfeitas. Palavras perfeitas saindo das suas bocas. Depois de
tanto tempo no ramo da publicidade e de tantas noites em claro estudando
velhas fotos de arquivo de pessoas como aquele casal, eu estava começando
a achar que era o único que dava peidos longos e sonoros e se masturbava
na banheira. Eles simplesmente pareciam con rmar que, para começo de
conversa, eu não deveria nem ter cado naquela casa. Era como se eu a
estivesse devolvendo aos donos por direito.
Uma prece sendo atendida não era algo a que estivesse acostumado. Eles
devem ter passado pela casa quando havia uma placa de “vende-se” da
imobiliária e esperado. Inteligentes. Porque, como eu havia rompido com
aquele corretor, nenhum de nós teria que pagar comissão.
A fuga para Nova York não era mais um sonho. Eu pegaria o avião
domingo à noite. Deixei dois recados para Aisling dizendo que estaria lá na
semana seguinte.
De forma deliberada não disse que iria car lá para sempre. Eu sabia que
ela continuaria me rejeitando.
Na noite de domingo ela deixou uma mensagem dizendo que achava
engraçado, mas que estaria em Miami naquele dia. Hilário. Eu sabia que
estava sendo sacaneado. Só nunca poderia ter adivinhado o nível de
so sticação da sacanagem. Então, na noite de terça-feira, por volta de sete
horas, ela ligou para o meu quarto no hotel Soho Grand, onde os hóspedes
ganham seu próprio peixinho preto e onde eu imaginava que foderia com
ela mais tarde na mesma noite.
Não seria assim, meu amigo, não seria assim. Nessa noite começaram a
se desenrolar os acontecimentos que ainda hoje me deixam com a boca
seca. Combinamos de nos encontrar no Georgina’s, um café na Prince
Street. Cheguei cedo e me sentei a uma mesinha. Ela chegou de casaco
branco, parecendo cansada. Para o meu alívio, não estava tão bonita.
Aliás, tenho consciência de que a esta altura estou soando como um
namorado rejeitado tentando disfarçar a tentativa de vingança (isto é, toda
esta história) como um acontecimento literário do qual você (leitor)
deveria participar. Pode ser. Mas acho que você concorda que as estripulias
de Aisling merecem ser registradas, seja qual for a justi cativa. Chame isso
de um alerta aos meus irmãos românticos. Chame de delírios paranoicos.
Chame do que quiser. Chame de terapia para mim (e você se mete muito
na vida dos outros).
Veja, caso ela se reconheça nestas páginas, também não tem problema.
Claro que o tiro poderia sair pela culatra e torná-la famosa. Ainda assim,
esse acontecimento indicaria que muitos exemplares do livro teriam sido
vendidos, o que signi ca que eu também não teria me saído tão mal.
Ainda está lendo? Que bom.
De volta ao Georgina’s, eu disse algo sobre como aquele local era
agradável. E, tendo saído de Saint Lacroix, falava sério. Contei por alto que
tinha visto fotos dele em algum lugar e perguntei se era famoso. Nunca vou
me esquecer do olhar frio no rosto dela quando respondeu:
— Você vai se lembrar dele depois desta noite.
Eu a observei para descobrir se o comentário signi cava algo bom. Não
parecia o caso. Gaguejei de leve.
— Como assim? Vou ter uma grande surpresa esta noite?
Eu queria manter a ambiguidade.
— Aguarde. — Isso foi tudo o que ela disse.
Aquilo não era o que eu tinha esperado, e quei assustado. Aguarde?
Devia haver alguma espécie de cronograma. Uma ordem. Uma estrutura
que ela guardava na cabeça sobre como a noite deveria se desenrolar. Engoli
em seco como alguém que se dá conta de que está em grandes apuros. Algo
nada bom iria acontecer. Mas não estava necessariamente acontecendo
naquele instante. Aconteceria em breve, e ela sabia o que era, mas eu não.
Eu ainda não podia ir embora porque não tinha nada a que reagir. Ela
começou a me bombardear com perguntas. Onde cava o escritório da
Killallon Fitzpatrick? Eu esquiava? Malhava? Já tinha cavalgado? Jogava
xadrez? Respondi que não a todas essas perguntas. Eu me senti em um
interrogatório. Que porra era aquela? Aquilo fez com que eu me sentisse
muito ocioso. Ela disse que adoraria jogar xadrez comigo um dia.
Comentei que ser derrotado no xadrez seria duplamente humilhante, já
que eu gostava de me ver como um estrategista. Os olhos dela brilharam.
Ela estava se divertindo. Não consegui evitar me remexer na cadeira. Ela se
recostou e me observou enquanto eu me contorcia.
Ela parecia... relaxada. Não mais tão inocente. Mais à vontade consigo
mesma. Totalmente no controle. Invejei essa sensação, embora não
soubesse o que ela controlava.
Eu logo descobriria.
Ela olhou ao redor. Cruzou os braços. Depois forçou um bocejo.
Entediada.
— Acho que vou para casa agora — disse ela.
Só fui entender o signi cado dessa frase um tempo depois. Mas eu soube
que a dispensa dela era signi cativa. Ela me deu um tempo para digerir a
informação.
Devo ter conseguido fazer uma pergunta que me permitiria avaliar se ela
pretendia voltar para casa sozinha. Não consigo me lembrar direito do que
foi falado, só da sensação de estar sendo assassinado. (Sou um tremendo
melodramático, não?)
Tem uma cena em O Resgate do Soldado Ryan na qual um soldado alemão
está matando um soldado americano com uma faca. O alemão está em cima
do ianque. O americano começa a suplicar baixinho, dizendo algo como
“Espere, não podemos conversar sobre isto?”. Em vão. O alemão, quase
pedindo desculpas, continua descendo com a faca. Seu rosto trai o ato que
ele está cometendo. (Caso você esteja se perguntando, eu sou o
americano.) Então, ali estava eu sendo apunhalado, mas recebendo as
ataduras imediatamente depois. De tal modo que quase acabei me
desculpando com ela. Estava prestes a isso, o que a faria franzir sua bela
testa. Como eu seria capaz disso? A questão era que, se ela mandasse eu me
foder, eu teria ido embora. Mas não foi o que ela fez. Estava se divertindo
demais.
Ela demorou mais ou menos uma hora para dizer que não estava
interessada em um relacionamento. Como se eu fosse a porra de um
vendedor de loja tentando entender as exigências de sua senhoria. Pelo
menos consegui fazer uma avaliação clara do que aquilo queria dizer. E o
que aquilo queria dizer principalmente (para ser franco) era nada de sexo.
Então minha primeira reação foi tudo bem, foda-se.
Ela disse que adoraria ir a exposições comigo e me mostrar Nova York, e
eu já estava fazendo que não com a cabeça. Saquei que ela usara quase
todos os clichês, menos um dos mais comuns. Fiz isso por ela.
— Então você quer que sejamos amigos?
Ela não iria se comprometer com isso. Provavelmente porque soaria
de nitivo demais, e ela sabia que eu cairia fora. Tentou deixar a questão em
aberto ao responder:
— Quero te conhecer melhor.
Isso implicava que talvez pudéssemos voltar a car juntos no futuro. Meu
instinto foi me levantar, ir embora e dar aquele dia ruim por encerrado. Mas
ela parecia querer continuar a discussão, ouvir meus pensamentos. Disse:
— Você parece pensativo. Está com raiva?
Ao que retruquei:
— Pareço? Desculpa. Raiva? Não. Por que estaria com raiva? Fui eu que
vim para cá.
Foi decisão minha. Senti que ela se desapontou com a minha reação;
queria que eu casse com raiva, e eu tinha levado a situação bem demais.
Qualquer um pensaria que ela estava me contando sobre suas cortinas
novas. Pelo menos era o que eu esperava. Pareceu ainda mais entediada
agora que não conseguia a demonstração de emoção que esperava.
Então, sem aviso, uma luz me cegou. Um ash. Eu não conseguia
enxergar, estava em choque. O sujeito ao meu lado se virou, sorrindo, e
disse:
— Lamento. Disparou sem querer.
Assenti automaticamente.
— Tudo bem. Sem problema.
Ele trocou olhares com Aisling. Ela estava sorrindo. Assim como eu.
Assim como ele. Eu nem sequer havia notado uma câmera na mesa ao lado,
perto do saleiro e do pimenteiro.
Olhei mais uma vez para o sujeito. Havia algo errado. Eu não sabia o que
era. Ele parecia feliz demais com aquele pequeno incidente. E o momento
havia sido preciso demais, como se ele tivesse se dado conta de que o pico
emocional havia sido atingido. Que não haveria nada mais revelador do
que a expressão estampada no meu rosto e que, por isso, precisava tirar a
foto de imediato. O fotógrafo casual e sua cúmplice permaneceram ao nosso
lado na outra mesa.
Aisling me perguntou se queria beber alguma coisa. Eu ainda estava com
a minha Perrier. Entendi que ela me perguntou se eu queria beber algo mais
forte. Isso me magoou bastante, considerando o que já havia acontecido.
Mas foi fácil esconder a dor. Tudo o que passei a desejar foi me afastar dela e
cuidar do que decididamente era um coração partido. Mas algo dentro de
mim não queria desistir. Perguntei se podíamos dar uma caminhada. Ela
reagiu de um jeito meio exagerado, enfático demais, dizendo:
— Não! — Depois acrescentou mais suavemente. — Está muito frio lá
fora.
Eu não conseguia tirar da cabeça que ela estava seguindo um roteiro
prede nido. Eu tinha lido um artigo cínico em uma revista feminina sobre
como partir corações e tirar prazer disso. Havia muitas técnicas
antimasculinas úteis, entre as quais cito:
Descubra os hobbies dele antes de largá-lo. Ele pode ser útil como amigo, ou você pode querer
apresentá-lo a uma amiga. Especialmente se ele for bom de cama. Existe presente melhor para
uma amiga íntima? Aprenda a jogar xadrez bem; não há nada mais humilhante para um homem
do que ser derrotado intelectualmente por uma mulher bonita. Você vai fazer com que ele sinta
uma dor física. Se ele disfarçar os sentimentos, ligue mais tarde. Acorde-o. Se ele estiver
apaixonado, vai ter di culdade para esconder quando você falar de um jeito meigo com ele na
cama, mesmo que seja só pelo telefone.
Essas foram algumas das dicas do artigo. Aisling cumpriu boa parte delas
antes do m da noite.
Tudo isso me ocorreu retrospectivamente. Na hora eu tinha coisas
demais na minha frente para analisar. Só reagi ao que apareceu diante de
mim. Lembre-se de que havia muita coisa acontecendo; cidade nova (Nova
York), basicamente um emprego novo (Killallon Fitzpatrick NY), funções
novas. Assustador. E então aquilo. Até onde sabia, eu tinha me mudado
para Nova York para car com aquela garota, e ali estava ela rindo de mim.
Foi como vi a situação. Isso já seria o bastante, mas havia aquela camada
adicional. A sensação irritante de que existia um objetivo. Um objetivo
oculto. Ao pensar nisso agora, acho ainda mais aterrorizante. Na época
devo ter sido protegido pelo choque ou até, ouso dizer, por Deus.
Sinto muito, mas vou ter que falar um pouco sobre uma divindade aqui.
Durante um mês ou mais, rezei todos os dias para ser libertado de Saint
Lacroix. Fui libertado. Quando olho para trás e vejo todo o experimento
em tortura psicológica (pois era disso que se tratava), eu me pergunto se,
caso houvesse descoberto antes o que estava acontecendo, teria usado isso
como desculpa para voltar a beber (nós, alcoólatras, gostamos das nossas
desculpas), dado um soco impotente em alguém ou saído de uma fúria cega
segurando o corpo inerte dela pelo pescoço e percebendo aos poucos que
aquelas eram as minhas mãos. Tempos depois, ao me dar conta do que havia
acontecido, a raiva que senti era quase visível ao meu redor.
Como sempre, tenho minhas teorias.
Visto que eu a conhecera no estúdio de Brian Tomkinsin, achei que
poderia ser uma armação. Tomkinsin fazia um volume enorme de trabalho
para a Killallon Fitzpatrick e, portanto, favores.
Vez ou outra, quando a empresa pedia, ele fazia trabalhos de graça
porque sabia que era vantajoso manter uma boa relação com uma das
melhores agências de publicidade do mundo. Era uma prática comum.
Uma teoria da conspiração era que a Killallon Fitzpatrick não gostou da
ideia de alguém em quem eles tinham investido tanto ir para Nova York;
portanto, quiseram me instigar a acabar comigo mesmo me apresentando a
uma jovem irlandesa que queria investir na própria carreira.
Ela conseguiu o emprego com Peter Freeman imediatamente depois de
nos divertirmos em Nova York. Só estou falando. Sei que é delirante até
para os meus padrões, mas eu havia concluído que a Killallon Fitzpatrick
era a porra de um lugar esquisito.
A outra teoria podia ou não coexistir com a anterior. Como você
preferir. A teoria número dois vai pelo caminho do livro de arte. Nessa
versão ela tem dois amigos de Princeton que estudavam produção editorial.
Eles já haviam fechado contrato de publicação e aprovaram o conceito de
um livro de fotogra as de alta qualidade com ensaios fotográ cos ao estilo
daqueles do lme Amor à Queima-Roupa, que costumavam ser comuns nos
anos 1970. Neste caso, porém, cada romance teria uma garota com
diferentes caras. Os ensaios registrariam a evolução do começo do
relacionamento até o término. Na teoria dois, eu sou um desses caras.
A teoria três diz que as teorias um e dois são babaquice e a vida é
aleatória, então, tudo o que acontece não tem signi cado ou estrutura,
simplesmente acontece ou não. Como disse o inglês com língua presa ao
saber do destino do Titanic, “Unthinkable”.
Então, aí está. Só para sua informação, aposto pesado nas teorias um e
dois, com mais dinheiro na dois.
Se analisarmos a teoria dois, ela havia coberto os estágios iniciais de
nosso “Amor à Queima-Roupa” e até o começo do m. Mas não tinha um
material decente. Apenas imagens bobas de um homem apaixonado
demais. Nada de raiva, nada de lágrimas, nada de angústia. O que é um
romance sem raiva, lágrimas e a ição? Não dá para publicar um livro
intitulado Amizade à queima-roupa, dá? Bom, claro que não. Não se você
tem um contrato de publicação assinado, o que signi ca que tem também
um prazo e que já gastou dinheiro de um orçamento de nido, que recebeu
para ajudar a “colher material”.
E não se você já investiu um bocado de tempo e energia no alvo. Ah,
não mesmo. Outra foto foi tirada na entrada do Georgina’s, na qual eu ergo
as mãos (viradas para cima), no que pensei que poderia ser compreendido
como um gesto de suplício, e com isso aquela página do seu futuro livro foi
virada.
No dia seguinte, após prometer que ligaria para ela, z o possível para
resistir à tentação de deixar quinze mensagens suplicantes na sua secretária
eletrônica. No m, deixei uma avisando que não poderia vê-la naquela
noite, que havia aparecido um trabalho e que “a gente se vê por aí”. Minha
mão tremia. Usei tudo o que tinha, que não era muito, para dar aquele
telefonema. Minha intenção era nunca mais ligar para ela. Jamais. Eu iria
usar o método que havia aprendido para abandonar a bebida. Porções
pequenas. Uma hora de cada vez. Um minuto. Meu Deus, foi uma tortura.
Meu ego me dizia que ao não telefonar eu a estava magoando
desnecessariamente. Que eu estava ferindo a ela. Que ela precisava se fazer
de difícil. Era isso que as garotas tinham que fazer.
Seja como for, de algum jeito consegui sobreviver a outro dia, e naquela
noite, por volta das sete e meia, ela ligou para o meu hotel. Eu estava
dormindo. Tinha nevado mais cedo, e eu havia tentado marcar um
encontro com Telma, mas ela não estava por perto naquela noite.
Quando o telefone tocou, eu acordei, e com quem estava falando? Com
a fonte do meu pior pesadelo. Ela me fez contar coisas que eu tinha jurado
nunca lhe revelar. Hoje em dia, estremeço só de pensar nisso. Toda aquela
merda ingênua sobre Tom Bannister, meu pai, aquela que deveria ser A
Mulher da Minha Vida e a minha ameaça de pedir demissão da Killallon
Fitzpatrick se não fosse mandado para Nova York e... Ah, meu Deus. Eu
estava sonolento e não sabia o que dizia. Ela me estimulou, claro, me
consolando com coisas como “Eu não sabia disso”, “Você deveria ter dito”
ou “Isso é diferente”. Para mim, essas falas quase inaudíveis signi caram que
havia esperança.
Esta é outra recordação sobre nossas conversas telefônicas: cacete, eu
nunca conseguia escutá-la. Eu cava constrangido demais para pedir que
repetisse. Resolvi me abrir e no m me saí com um “Não tenho o menor
interesse em ser seu amigo”.
Desliguei, orgulhoso de pelo menos ter conseguido iniciar o m do
telefonema. Eu havia me tornado patético àquele ponto. Ela terminou a
relação e eu terminei um telefonema. O placar não estava exatamente
empatado, mas eu teria que me contentar com isso.
Até dois dias depois.
Não consegui me segurar. Liguei e deixei uma mensagem dizendo que
tinha pensado no que ela havia dito e sugeri nos encontrarmos para
almoçar. Na minha cabeça um almoço era um compromisso menos
importante do que um jantar. Em resposta ela deixou uma mensagem
dizendo que poderíamos jantar naquela noite, domingo, “se você estiver
disposto”. Essa porra me matou. Implicava que ela sabia o efeito que exercia
em mim.
O efeito exato.
Não consegui me conter. Eu precisava saciar a minha vontade. Liguei e
marcamos de um encontro em um restaurante francês perto de onde ela
trabalhava. Ela estava se preparando para a estreia de uma exposição na
quarta-feira seguinte. Vinha trabalhando muito. Acho que eu deveria ter
levado isso em conta. Estava tentando ver as coisas do ponto de vista dela.
O cara aparece em Nova York esperando que ela largue tudo só porque ele
quis sair de Saint Lacroix. Um cara com quem, para começar, ela nem
chegou a se empolgar. E ali estava ele, todo magoado porque ela não queria
transar. Eu conseguia entender o lado dela.
O problema, porém, eram aquelas fotogra as sendo tiradas. No meio da
nossa conversa no charmoso restaurante francês na Lafayette Street, outro
ash de câmera disparou. Dessa vez vindo de uma mesa de quatro pessoas
no lado oposto do salão. Eles riram e até acenaram. Não consegui saber se o
ash estava virado para mim ou se apenas haviam batido uma foto deles
mesmos. Mas, olhando em retrospecto (onde estaríamos sem esse recurso?),
isso se encaixava no padrão. As pessoas da outra mesa tinham bolsas. E daí?
Bolsas de equipamento, não de roupas. (Tudo bem, talvez mesmo para mim
isso seja forçar um pouco demais.)
Tenho certeza absoluta de que outra foto foi tirada naquela noite de
domingo. Até z uma brincadeira com isso. Estava contando como meu
antigo parceiro e eu acabamos aparecendo na TV em Londres por causa de
um anúncio ultrajante que criamos. Estava tentando impressioná-la. Fazer
com que soubesse que estava largando um puta gênio da mídia. E acabei
contando como não gostava do meu parceiro:
— É ele quem você deveria estar tentando sacanear, em vez de mim. Ele
merece. Não é uma boa pessoa. Você e os seus amigos deveriam tentar com
ele — disse eu, apontando com a cabeça para a outra mesa.
Bom, você vai ter que me perdoar, porque minha memória me diz que
ela retrucou com um olhar cheio de signi cado.
— Então você sabe.
E minha memória me diz que respondi:
— Claro que sei.
— E por que está fazendo isso?
— Porque é interessante para mim — falei.
Bem, isso podia signi car qualquer coisa, mas sei o que achei que
signi cava. E peço desculpas, porque nem sequer tenho certeza de que esse
diálogo aconteceu. Eu me lembro, porém, de mencionar meu ex-parceiro e
até de dizer onde trabalhava, para o caso de ela querer sacaneá-lo. (Por falar
nisso, ouvi dizer que ele tinha visitado Nova York pouco tempo antes para
um casamento e que depois veio trabalhar na cidade. Tire suas próprias
conclusões.) Seja como for, paguei a conta e expliquei que tinha uma verba
para despesas e estava ganhando mais só por estar em Nova York, já que as
contas do hotel e cada migalha de comida eram custeadas pela empresa. Ela
pareceu car com inveja.
Dinheiro era o único assunto que a fazia demonstrar emoções. Seus olhos
adoráveis se arregalavam quando o tema era abordado. E daí? Não posso
usar isso contra ela. As mulheres só amam tanto o dinheiro porque nós,
homens, di cultamos para que elas o ganhem. Elas precisam massagear a
nós e aos nossos egos para consegui-lo. Do contrário, não dariam a mínima
para nós. Exceto, talvez para uma foda casual. Nada muito diferente de
como as tratamos.
Saímos do restaurante. Para evitar o risco de ser rejeitado, nem no rosto
tentei beijá-la. Não queria que a coisa da amizade se tornasse o cial. Pelo
menos assim ainda havia alguma esperança de transarmos. Então, quei a
mais ou menos dois metros dela (e, veja bem, ela não estava exatamente
tentando reduzir a distância) e disse coisas como “Eu te ligo” e “Vejo você
por aí”.
Eu me preparei para a dolorosa caminhada de volta ao hotel.
— Você vem na quarta?
Pulei de felicidade em segredo.
— Ah, sim, tinha esquecido, a exposição. Onde vai ser?
Eu me despedi e saí pisando duro na direção do Soho Grand, como se
tivesse mil coisas para fazer.
Nesse meio-tempo, estava trabalhando para uma das mais famosas
agências de publicidade do mundo, em duas das suas contas mais difíceis: as
câmeras Harris e a revista Minted. Milagrosamente, estava me saindo bem.
O chefe parecia feliz. Eu não conseguia acreditar, porque vinha trabalhando
com apenas metade da potência.
Quando chegou a grande noite da exposição de Aisling, eu estava uma
pilha de nervos. Iria conhecer os amigos dela. Na minha cabeça eu ainda
era o seu namorado. Só estávamos passando por um momento ruim. Quer
dizer, eu não estava sentindo muita rmeza no relacionamento. Tinha a
horrível sensação de que descobriria algumas coisas desagradáveis. Quando
cheguei lá, o evento já tinha começado. Abri caminho por entre a
impressionante multidão de pessoas elegantes e que davam a impressão de
estarem à vontade ali. Pessoas que pareciam acostumadas a serem amadas (é
estranho dizer isto, mas foi a minha impressão: de que elas eram
requisitadas). Tentei encontrá-la e de início não consegui. Mas pude ver a
enorme colagem de fotos na parede dos fundos do bar.
E o lugar era só aquilo.
Um grande bar com uma grande parede nos fundos. Uma só impressão
abstrata composta de centenas de fotos em preto e branco de funcionários e
usuários do metrô. A mim lembrava os fotógrafos dos anos 1920 e 1930.
Um Man Ray ou um John Heart eld russos. Ela mostrava inteligência
visual no modo como fez o presente parecer tão retrô.
Fiquei chocado e puto por ter gostado tanto da obra. Isso signi cava que
ela era mais talentosa do que eu temera. Não só havia roubado o meu
coração, como também a vida que eu teria adorado viver caso fosse corajoso
o bastante para não entrar para o ramo da publicidade.
Acho que isso não me atingiu de forma consciente na época, mas na
hora me senti desconfortável. Não, quei com inveja. E, para completar,
quando a encontrei, ela estava segurando a porra de um lírio enorme que
alguém tinha dado (um cara, sem dúvida) e uma baita caneca de Guinness.
Uma. Caneca. De. Guinness. Fazia quatro anos que eu nem sequer via uma,
que dirá na mão de uma garota que eu amava. Alguma coisa rachou sob os
meus pés.
Assenti educadamente quando ela me apresentou à amiga, a garota mais
alta e poderosa que eu já tinha visto na vida. Devia ter mais de dois metros.
Parecia capaz de me levantar e jogar pela janela. Saíra de Los Angeles
especialmente para ver Aisling. Eu disse que isso era uma demonstração de
lealdade. Para minha irritação, ela comentou que tinha ido porque Aisling
seria rica um dia. Eu me lembro de achar aquilo estranho.
Então quei ali preso, conversando sobre porra nenhuma com o tronco
daquela garota, enquanto os dois amores da minha vida, a Guinness e Ela,
deslizavam pelo bar beijando a bochecha de todo mundo. O chefe dela até
deu as caras. Peter Freeman, a nal, era uma coisa emaciada de cabelos
grisalhos metida em um cardigã. Parecia muito mais velho do que eu
imaginara. Cinquenta e poucos anos. Lembro-me de car aliviado e pensar:
“Bem, pelo menos com este não preciso me preocupar.”
Paguei um Baileys para a garota alta, e, por iniciativa minha, nos
sentamos a uma mesinha, porque eu me sentia ridículo demais olhando
para as narinas dela enquanto ngia interesse na sua vida em Los Angeles.
Tudo o que eu queria dela eram informações sobre a amiga, minha amante,
a fotógrafa em ascensão. Não consegui nada, é claro. Estávamos sentados
havia algum tempo quando de repente senti um jorro de Baileys no rosto e
no peito. Olhei para ela incrédulo. Ela segurava um canudo de plástico. E o
tinha sacudido na minha direção. Enquanto ouvia o pedido de desculpas,
me dei conta de que havia uma gota no meu lábio inferior. Sorrindo, limpei
o peito e a boca com cuidado. Sabia muito bem que bastaria eu lamber o
lábio, e qualquer coisa poderia acontecer. Eu havia combinado com meu
amigo Adam, do AA, de nos encontrarmos depois se as coisas cassem
esquisitas. E aquilo, concluí, era esquisito. Foi bom ter alguém de verdade
com que eu poderia me encontrar em vez de precisar inventar uma desculpa
esfarrapada. Fiquei ali mais um tempo, e então, depois de pegar outro
Baileys para ela (sempre um cavalheiro), pedi que se desculpasse por mim
com Aisling, pois tinha um encontro marcado para o jantar.
Dia feliz. Saí de lá. A garota alta não parava de pedir desculpas e tentou
agarrar meu braço para me fazer sentar novamente. Sem chance de eu car
só para poder ser ignorado com mais ênfase. Foda-se, pensei, e saí para o ar
de março, que me recebeu de braços abertos. Fantástico. Em quinze
minutos, Adam e eu caminhávamos contra um vendaval chuvoso pela
Williamsburg Bridge. Foi bom para mim. E para ele também, acho. Eu
continuava repassando o momento do Baileys na cabeça. Puta merda, como
aquilo poderia ter sido um acidente? Eu bebi tudo em que consegui pôr as
mãos por mais de quinze anos, e nunca uma bebida havia salpicado em mim
daquele jeito. Pelo menos não acidentalmente. Era monstruoso demais
sugerir que ela havia feito aquilo de propósito. Paranoico demais. Então
meio que esqueci a história.
Não liguei para Aisling no dia seguinte. Estava convencido de que já
tinha entendido qual era a dela e da sua turma. Havia conhecido um ou
dois amigos (além da gigantesca) e me achei no direito de classi cá-los de
irlandeses ricos e entediados. Os únicos tipos para os quais a humilhação de
um culchie ainda era interessante.
No entanto, fraquejei no dia seguinte. Liguei e deixei uma mensagem
sobre como tinha gostado de conhecer os amigos dela e que adoraria
almoçar de novo um dia (grande idiota eu era). Ela, claro, deixou outra
mensagem dizendo que topava, que também adoraria me ver, que iria amar
almoçar ou qualquer coisa assim etc.
Acabamos nos encontrando para um almoço no Café Drill, na esquina
de onde ela morava. Cheguei lá cedo, claro, e ela apareceu uns quarenta e
cinco minutos atrasada. Ela morava na porra da esquina. Até chamou
atenção para isso. Deixei para lá: Sr. Tolerante, Sr. Compreensivo. Seguiu-
se o papo provocante de sempre, nada dito às claras, muita baboseira sobre
publicidade. Depois, do nada, ela se desculpou por um comentário bem
ácido que zera na noite anterior. Tivera o efeito de um tapa.
“Se fosse do seu jeito, você teria trazido a porra da imprensa para cá.”
Ela se referia às minhas tentativas de impressioná-la com o que eu
achava ser um bom modo de “lançar” a inauguração. Eu queria chamar
fotógrafos de várias mecas da mídia como a Vogue, a Elle e a Vanity Fair para
o vernissage. Cheguei a sugerir que ela cuidasse para que sua foto fosse boa
e grande na parede, garantindo assim que qualquer retrato batido no evento
destacasse seu trabalho ao fundo. Também me lembro de dizer que seria
ótimo se houvesse uma briga em frente à fotogra a dela. Porque, se
começasse uma briga e ela “por acaso” tivesse uma câmera ali e também
“por acaso” tirasse uma boa foto da situação, essa mesma foto poderia se
tornar uma das obras. E também, como mercenário da mídia, eu sabia que
uma imagem dessas di cilmente seria recusada por qualquer editor de
qualquer revista. Assim como o restante de nós, eles também precisam
preencher espaços em branco nas páginas.
Que ironia eu ter dado essa ideia. A questão é que, claro, isso
funcionaria melhor se ela conseguisse envolver alguém bem conhecido na
briga.
Mas cá estou eu me adiantando de novo. Não me deixe fazer isso. Então
ela estava se desculpando, dizendo que fez o comentário por estar nervosa
com o vernissage.
Deixei para lá. Claro que deixei para lá. Depois falei algo de que me
arrependo.
— Você pode pagar pela conta. Vem querendo fazer isso desde que te
conheci, assim não vai car de coração partido.
Eis o que ela fez.
Ela estava mexendo na carteira, provavelmente esperando eu dizer que a
guardasse, mas ao ouvir as palavras “coração” e “partido” cou imóvel. Seus
olhos (ah, aqueles olhos) se ergueram da carteira como se prestes a se xar
nos meus, mas pararam de modo arti cial. Ela pareceu então olhar para o
chão. Eu sabia que ela sabia que eu a observava. Por alguns segundos
manteve os olhos parados, mas depois, como se notando algo na mesa, os
deixou subir, piscando lentamente. Em seguida, com o corpo e a cabeça
imóveis, olhou para cima e para o lado, mirando por cima do meu ombro
esquerdo, até nalmente fazer a última diagonal, subindo pela minha
bochecha, e se cravar nas minhas órbitas.
— Eu. Acho. Que. Não.
Foi o que ela disse. Como se soubesse que poderia me matar ali, naquele
instante, mas o momento não era certo. O que me assustou foi sua
disciplina. Signi cava que estava fazendo o que quer que fosse aquilo por
motivos pro ssionais. Não havia paixão ali. E, portanto, não tinha havido
paixão antes. O Shelbourne fora apenas uma cena necessária, parte de uma
fórmula testada e aprovada anteriormente. Incluindo até a parte em que ela
deu um tapinha no meu ombro enquanto fazíamos amor e fez uma pose de
garota pervertida de dezesseis anos, com direito a sorriso provocante e um
gesto de cabeça para baixo, na direção do corpo dela, como se quisesse
garantir que eu bateria a foto mental que pretendia. Ninguém pode dizer
que ela não entendia a natureza da fotogra a. Seu comedimento nesse
almoço me mostrou como ela era extremamente so sticada e me fez desejá-
la ainda mais.
Para ser sincero, eu fazia ideia de que estava sendo enganado, mas queria
qualquer coisa que viesse dela. A nal, se isso era o que ela queria, e eu
podia lhe dar, por que não? Estava apaixonado por ela, não estava? E
também enfeitiçado. Passara dois anos assistindo a vídeos em Saint Lacroix
( lmes franceses) e não deparara com nada tão interessante quanto aquilo.
E sempre havia a possibilidade remota de transar novamente. Mas a
verdade é que eu era o peixe, e ela, a pescadora. Aquilo era só uma questão
de o que ela queria que eu zesse em seguida.
O que ela queria que eu zesse em seguida era acompanhá-la até uma
exposição na Stent Gallery, na Broadway. Foi o que zemos. Apenas uma
coisa digna de nota. Quando chegamos a um dos cruzamentos, esqueci qual,
ela se virou como se quisesse me impedir de me jogar na frente do trânsito e
bateu com muita força no meu peito. Sério, foi forte para cacete.
Por um segundo não consegui respirar. Fiquei atordoado. Eu já tinha
perdido uns seis quilos por causa de todo o meu estado choque. Li em algum
lugar que, quando alguém sofre um choque emocional, a região ao redor do
coração perde parte da sua camada protetora de gordura e, portanto, o
órgão ca perigosamente exposto. Um golpe certeiro não é apenas doloroso;
quando a pessoa que estava em choque começa a recuperar o peso, o
coração permanece ferido, e isso pode levar a brilação atrial. Você não
corre risco de morte, mas é desconfortável.
Doeu, mas ngi que não.
A parada seguinte na minha viagem pessoal de descoberta foi no Café
Xadrez. Sim, eles têm esse tipo de coisa em Nova York. No SoHo. Era
medonho. Estávamos caminhando perto de algumas das propriedades mais
românticas do planeta, mas eu poderia muito bem estar no inferno. Estava
ao lado da garota dos meus sonhos, que também era a fonte de algumas das
piores dores que eu já havia sentido. No Café Xadrez você pagava um dólar
para alugar uma mesa e podia jogar xadrez por quanto tempo quisesse. Eles
serviam café e, con rmando a neutralidade dos enxadristas, era um dos
poucos lugares onde você podia não apenas fumar, mas era encorajado a
isso. Todas aquelas expressões carrancudas cavam bem através de nuvens
de fumaça de cigarro.
Ela me derrotou facilmente, e eu me remexi na cadeira que rangia, o
mesmo movimento que tinha feito no Georgina’s. Ela se recostou, como se
estivesse aquecendo as mãos mentalmente outra vez, como zera no
Georgina’s. Derrubei o meu rei na segunda partida. Ela pareceu machucada
e enganada. Machucada porque eu estava cortando seu barato. Enganada
porque provavelmente vinha planejando uma morte demorada para mim, e
eu tinha me matado e lhe negado esse prazer. E isso também deve ter
mostrado a ela como eu jogava o jogo da vida: eu preferiria me matar a
prolongar a dor. Ela reclamou muito. Como se isso tivesse importância.
Como se eu houvesse atingido um ponto fraco.
— Termine o jogo! — exclamou.
Eu disse algo sobre não querer prolongar a agonia e a cumprimentei por
ser tão boa no xadrez.
— Por quê? Porque derrotei você?
A essa altura, eu estava quase mancando. Estava mental e
emocionalmente em frangalhos. Mais um golpe, e eu teria começado a
chorar. Abriria o berreiro na rua. Só mais um comentário, e as ssuras
mínimas atrás dos meus olhos começariam a esguichar, depois a vazar, e por
m um dilúvio transformaria em canais as ruas estreitas do SoHo.
Eu tinha pedido ao meu bom amigo e padrinho no AA, Dean, que me
encontrasse às seis e meia, e disse isso a ela. Nunca me senti tão grato, e
ainda assim de coração partido, por me afastar dela quanto naquela tarde.
Não tive coragem sequer de beijá-la no rosto. Temi que uma última rejeição
me tirasse do sério. Saí pisando duro novamente, cheio de sentimentos de
fúria, confusão, medo, amor e alívio. Tínhamos conversado sobre ver um
lme durante a semana.
Eu estava farto de falar sobre ela. Mas tinha que contar a história toda a
alguém. Não só um ou outro fragmento, mas a coisa toda, talvez porque eu
mesmo não sabia se acreditava naquilo. Achava que se colocasse no papel
poderia nalmente me afastar de tudo. Eu lidaria com aquilo. E talvez isso
servisse como um alerta para os outros.
Passei a semana seguinte ocupado no trabalho e consegui até dizer a
Aisling que não poderia ir ao cinema com ela na noite de quarta porque
estava sendo “cortejado” por outra agência. Aquilo era apenas um terço
verdade. Um cara de outra agência, um redator, queria se encontrar comigo
e bater um papo, e, sim, eles estavam contratando, mas o lugar não era
conhecido por fazer grandes trabalhos.
Aisling e eu marcamos de nos encontrar na sexta à noite para “beber”
alguma coisa em um bar. Eu não sabia que seria a última vez que a veria.
Apenas pensei que iria encontrar a garota que amava, que aquela seria
apenas uma das milhões de vezes que me encontraria com ela ao longo do
resto da nossa vida. O amor era paciente, gentil e tolerante. Muito do que
vou descrever não me ocorreu no momento, mas depois, quando me senti
mais calmo e objetivo. Posso dizer com toda a certeza que na época eu vivia
um dia de cada vez em uma forma branda de choque.
Sem dúvida.
Cheguei cedo. Ela havia marcado entre oito e meia e nove, então
cheguei por volta de oito e quinze. Fui o primeiro. Depois de uns minutos a
amiga dela, Sharon (irlandesa), e um cara (vamos chamá-lo de Camisa do
Brasil porque ele vestia uma camisa da seleção brasileira de futebol)
entraram no bar.
Sharon conversou um pouco comigo, e, quando eu disse que era amigo
de Aisling, o Camisa do Brasil falou:
— Ah, mais um?
Eu me senti estranho de imediato, e ele pareceu excessivamente
antipático. Antipático sem motivo algum. Isso continuou por um tempo,
comigo quase não abrindo a boca e ele tentando ser antipático com alguém
que concordava com ele.
Então ela apareceu. Estava linda. Acho que já havia bebido alguns
drinques. Pelo brilho no olhar, talvez tivesse feito algo além de beber. Vai
ver era apenas ansiedade. Os três pareciam estar com os sentidos aguçados.
Se a minha teoria é correta, eles estavam desfrutando o frisson pré-abate.
Ou talvez estivessem apenas animados por saírem. Aisling mal olhou para
mim, mal reconheceu minha presença.
Novamente quei muito magoado com isso, mas liguei o piloto
automático. Disse a mim mesmo para sorrir com educação e não permitir
que soubessem como me sentia. Se tivesse ido embora de cara teria passado
uma noite muito mais agradável e não estaria sentado aqui escrevendo isto.
Mas eu estava curioso para descobrir se conseguiria transar. Eu sabia que ela
caria bem bêbada, e além disso eu não tinha mais nada para fazer.
Minhas opções eram ser torturado por uma garota linda que parecia a
Virgem Maria, com pelo menos uma possibilidade remota de fazer sexo, ou
ir a outra reunião do AA.
Na verdade isso não é justo, porque a reunião do AA Nova York no
SoHo contava com algumas das mulheres mais sensuais que eu já tinha
visto. Mas ali estava eu, sendo ignorado pela única garota no mundo para
quem eu ligava e recebendo uma atenção descabida do Camisa do Brasil.
Depois talvez do meu terceiro copo de Coca com gelo, comecei a car bem
entediado. Então me veio uma sensação esquisita na cabeça. “Dormência”
seria o termo mais preciso. Como se sentisse dor, mas alguma outra coisa na
frente disso.
O Camisa do Brasil se inclinou para bem perto dela. Perto demais. O
su ciente para beijá-la. Não estava beijando, mas não teria parecido
estranho caso estivesse. Em certo momento ele se pôs de pé entre as pernas
dela e se curvou na sua direção, enquanto ela, sentada no banco, se
inclinava para trás e se recostava no balcão.
Era irreal, ela me encarando por cima do ombro dele como que dizendo:
“Veja o que eu estou fazendo. Veja o que ele está fazendo. Isso não deixa
você com raiva?” Deixava. Também fazia com que me sentisse um idiota.
Mas isso estava aberto a interpretações. Ele poderia estar tentando a sorte.
A nal, ela era atraente. Ou ela podia estar exercendo seu direito como
jovem de ertar em uma noite de sexta-feira num bar no centro de Nova
York. Claro. Mas o que se deu depois levou os acontecimentos a um nível
totalmente diferente.
Eis o que aconteceu. Imagine-se de pé em um bar; o balcão está à sua
direita, e atrás dele há um grande espelho. A garota que você ama está à sua
direita, entre o bar e você. O cara que você odeia vestindo uma camisa do
Brasil está de costas para você, conversando com outra amiga da sua
Amada. A garota que você ama faz um gesto com as mãos que só pode
signi car uma coisa. Coloca as duas mãos à frente, como se mostrando o
tamanho de um peixinho. Peixinho? Ela está dando uma risadinha
enquanto olha para você e gesticula. Você não sabe o que ela quer dizer.
Encara-a com um ponto de interrogação estampado no rosto. Sente-se grato
só pelo fato de ela olhar para você. Ela olha para você de novo e faz o gesto
para o Camisa do Brasil, que baixa o olhar para as mãos dela. Em seguida, o
Camisa do Brasil te encara. Depois dá um sorriso constrangido por você.
Quase solidário.
Ela se inclina para a frente e sussurra algo para ele. O sorriso do sujeito
aumenta. O rosto dela agora brilha. Parece mais feliz do que você já a viu.
Ela é linda, mas não quer que você a veja dessa forma. Ela sabe como você
está apaixonado. Inclina-se para a frente outra vez, e ele se curva,
oferecendo o ouvido. Ela poderia estar beijando a lateral da cabeça dele. Faz
novamente a coisa de “peixe” com as mãos. Dessa vez, é ainda menor. Olha
para você de cima a baixo. Ele também. Os dois riem juntos. Para não ser
excluído, você também ri.
Sem jeito. Então ele diz em voz alta, como se estivesse falando com a
outra garota.
— Vou dizer a ele que está morto e enterrado e que tem quatro outros
enterrados acima dele. Quantos são?
Ele se vira para Ela e confere. Ela conta nos dedos. Exagerando,
pousando um dedo nos lábios de propósito, ngindo pensar antes de contar
mais um dedo. Ele continua.
— Eu estou enterrado acima dele. Eu gostaria de ser enterrado acima
dele... ou enterrado em você.
— Não, eu estaria por cima — retruca ela.
Isso resolve tudo. Ele olha para ela como se fossem fazer ali mesmo,
naquela hora. Você já entendeu. O único gesto de clemência a seu favor é
que eles não interpretaram toda a cena de frente para você, o que lhe
permite ngir que não entendeu. Então você se vira com a maior elegância
possível para a outra garota e começa uma conversa educada. Precisa de
tempo. Está tonto. Se o que você acha que está acontecendo realmente está
acontecendo, então é melhor dar o fora, porque essa é uma merda bizarra do
mal.
Mas você não pode ter certeza. Pelo menos não tão depressa. E se estiver
errado e sair correndo? Seria a segunda vez que faria isso. Aqueles são os
amigos dela. O que eles vão pensar de você? Ou dela. Se estão rindo de
você naquele momento, o que vão fazer se for embora? Então, você ca. A
outra amiga não está cooperando. Praticamente olha para Ela como se
dissesse: “Ele é problema seu, você que lide com isso.”
É
É o que Ela faz.
Você está apoiado no balcão, conversando com outro amigo dela, um
babaca de Cork. Por falar nisso, você só foi convidado porque dois amigos
dela estão na cidade apenas para passar o m de semana, e você precisa
conhecê-los. Depois se dá conta de que são os alunos de produção editorial
de Princeton. Um deles, a garota, é irlandesa, então tudo se encaixa.
Colegas dos tempos de escola, sem dúvida. E eles estão a menos de cinco
metros, com Ela.
E é então que acontece. Lentamente. Ou talvez apenas pareça lento,
como se você se lembrasse da visão em câmera lenta. O Camisa do Brasil
vestindo jaqueta militar verde enquanto levanta uma bolsa de lona.
Ele se aproxima de você e pousa a bolsa no chão, junto aos seus pés.
Arregaça as mangas como um pianista antes de uma apresentação. Você
sente alívio porque acha que ele vai embora. Agora ele está na sua frente,
avaliando-o da cabeça aos pés. Segura um fotômetro, que você sabe que é
usado por fotógrafos para medir a intensidade da luz re etida por um objeto,
e faz uma leitura. A coisa está apontada para você. Ele sinaliza alguns
números para trás, na direção do que agora parece suspeitamente uma
pequena plateia composta da garota que você ama e seus parceiros. Eles
conversam entre si, mas olham para você e seu novo amigo com sorrisos
explícitos e dando uma ou outra gargalhada. Você pergunta ao Camisa do
Brasil Agora com Jaqueta Militar se ele está prestes a tirar uma foto. Ele
não responde. Como você é diretor de arte, conhece os gestos que ele está
fazendo, dizendo ao fotógrafo qual velocidade do obturador e abertura de
lente usar na câmera. Você se sente desconfortável. Tem algo de errado
nisso tudo.
O cara exibe um pro ssionalismo que começa a deixar você nervoso. É
uma noite de sexta. Será que todos não deveriam estar mais relaxados? Por
que ele parece tão sério? Você então vê que o fotômetro sumiu. Voltou para
a bolsa? E ele está segurando uma lente de câmera. Segurando-a afastada de
si. Estreitando um olho, ele a avalia, primeiro erguendo-a contra a luz,
depois virando-a para baixo. Está exagerando. Seus movimentos são
desajeitados, grotescos. Como se estivesse encenando para o prazer dos
outros. Mas qual prazer? Está apenas olhando para a lente de uma câmera.
Então limpa uma poeira para conseguir ver através dela com mais clareza.
E é aí que você saca.
De início você acha que está sendo paranoico, pois, vamos encarar os
fatos, você é. Mas então se dá conta de que é a única explicação para toda
aquela encenação. Fingindo um tom de distração criativa, você sugere a ele:
— Você poderia fazer parecer que tenho pau pequeno.
A lente que ele segura está apontada diretamente para suas partes
íntimas. Ele semicerra mais o olho quando aponta para lá. Você ri. Não
gosta, mas ri. Rir junto é melhor do que ser motivo de riso. Você acha. Vê o
sujeito reagir como se dissesse: Como você sabia disso? Ele olha para a plateia
em busca de orientações. Dá de ombros. Aponta para você e depois para a
própria têmpora e faz com a boca as palavras “ele sabe”, ou pelo menos é o
que lhe parece, pensando em retrospecto. Ele olha para você com uma
expressão perplexa. Você sorri. Acha que deu a ideia a ele. Ele repete o que
disse.
Dessa vez às claras.
E aqui eu gostaria de deixar uma sugestão para o lme que vão fazer deste
livro. A tela ca preta depois dos créditos iniciais. Ouvimos a “Sinfonia de
Dante”, de Franz Liszt, e aí entra a costumeira citação pretensiosa em letras
brancas sobre o fundo preto dizendo:
Talvez o alerta de Dante devesse estar escrito acima da porta do Cat and
Mouse na Bleecker Street. A essa altura o Camisa do Brasil Agora com
Jaqueta Militar está apontando a lente para o seu pau e sorrindo
abertamente com o suposto esforço que faz ao tentar ver sua coisinha. Tira
um ponto de poeira imaginário que com certeza está escondendo seu
membro minúsculo. Encara-o com ironia, ngindo simpatia.
Você não está curtindo. Mas não pode deixar que ele saiba disso. Você ri
como se achasse que ele é muito esperto. A plateia também. Agora você
acha que sabe o que está acontecendo. Eles o estão fazendo de bobo. Você é
a diversão. É sexta à noite num bar, e você, meu amigo, é a diversão. Você
arrisca um olhar para a garota que ama.
Ela está maravilhosa. Mesmo rindo de você. E está rindo. Você sempre
gostou do riso dela. Ri junto. A risada dela aumenta. Ri do fato de você
estar rindo. Aponta para o Camisa do Brasil. Você acompanha os olhos
dela, que riem. Vira a cabeça para ele. Ele está lhe oferecendo a lente. Está
lhe entregando. Então você imagina que, se pegá-la, pelo menos todo esse
sofrimento chegará ao m. Portanto, você a pega. Está quente. Mas espere,
eu me esqueci de dizer, como posso ter me esquecido disso? Um pouco antes
você tentou ir ao banheiro, pensando: “Foda-se, eu não tenho que car
parado aqui aturando isto.” Você foi nessa direção com o objetivo de
organizar as ideias e talvez até pegar sua bolsa e seu casaco na volta e dar o
fora dali.
Mas não.
Você encontra dois caras, um deles com cerca de um metro e noventa e
cinco de altura e uma aparência muito aristocrática que segura seus ombros
com uma rmeza excessiva.
— Espere — diz o aristocrata com simpatia. — Vamos dar uma olhada
nisto — acrescenta, apontando para a lente.
— Eu vou voltar em um segundo — retruca você, tentando sorrir.
Mas agora está mais do que machucado ou mesmo com raiva. Está com
medo. Eles são bastante simpáticos, mas estão impedindo sua entrada no
banheiro. Que porra é esta? Você ca imóvel.
Precisa pensar. O cara com a lente dá uma piscadinha para você, e a
plateia ri. Você acha que poderia tentar passar por eles à força, mas não
pode. Você se vira e pede ao bartender para chamar a polícia. Está sorrindo
ao pedir, mas pede, e, embora ele olhe para você de um jeito estranho, não
é estranho o su ciente. Será que ele está nesse joguinho de salão? Ele não
parece surpreso o bastante. Ele pergunta por quê. Você responde que está
sendo assediado por aqueles caras que en am o polegar no seu peito. Ele
parece concordar, mas em seguida vai alegremente na direção da plateia e
se curva para conversar com as pessoas.
Agora você está muito preocupado.
Então pega a lente de volta, achando que talvez sua ideia de chamar a
polícia tenha mostrado ao Camisa do Brasil que continuar com esse asco
humilhante não faz sentido. Mas não resiste. Segura a lente no mesmo
ângulo que ele estava segurando. Aponta para as partes baixas e semicerra
um olho. Sente-se levemente vingado. Em seguida, repete. Agora sim. Mas
leva dois segundos para se dar conta de que ele está apontando outra lente
para sua vara já ridicularizada.
Dessa vez é uma teleobjetiva enorme.
Esse deveria ser o momento em que você o acerta. Quando já basta. Mas
de algum modo você está bem. Pode aguentar. Assim, sorri para ele. Sorri
para ele?
Sim. E é um sorriso genuíno.
Por algum motivo de repente você acha aquilo tudo um tanto lisonjeiro.
É lisonjeiro que aquelas pessoas civilizadas e cosmopolitas tenham se dado a
toda essa trabalheira para humilhá-lo. Talvez seja um mecanismo de defesa,
mas é como se sente de verdade. Ele dá outra piscada para você. Do tipo
que é o último gesto antes de duas pessoas começarem a brigar. Eu já tinha
visto aquela piscada antes. Estive em muitas brigas de bar. Correção: levei
surras em muitas brigas de bar. A que ele deu signi ca exatamente o oposto
do que costuma signi car. É do tipo que um homem dá para outro ao
revelar que transou com a esposa dele. De um modo falsamente amistoso, a
piscada diz: “Eu fodi sua esposa. Portanto, fodi você.” É tão íntimo quanto a
briga que se segue. Mas você não quer conhecer aquele cara melhor do que
já conhece. Você está sorrindo. Seu sorriso também diz exatamente o
oposto do que costumaria dizer: “Não vou ser arrastado para uma briga por
um babaca como você. Não sou idiota.”
Ele continua segurando a teleobjetiva.
De repente, surge um enorme clarão.
Enorme. De primeira você acha que é um raio. Mas ali dentro?
Então se dá conta de que é o ash de uma câmera, e, como você é diretor
de arte, sabe que não é um ash comum de câmera. É do tipo pro ssional,
que fotógrafos usam em estúdios. A luz parece alcançar todo mundo como
uma gigantesca mão branca e agarrar seu peito com o indicador e o polegar.
Quase arranca algo de você.
Quase. Depois você se lembra de algo sobre os aborígenes, ou habitantes
da Nova Guiné ou alguma tribo primitiva que acredita que a câmera rouba
sua alma. Logo concorda com essa ideia. Mas de algum modo continua
intacto. Você simplesmente sabe. Sente. Foi agredido, mas desviou do
golpe. Não se sente ótimo, mas sabe que vai sobreviver. É uma sensação
boa. Agora sabe que por algum motivo estão tirando fotos pro ssionais de
você. Você não liga. Só sabe que uma foto sua sorrindo de pé no meio de
um bar não pode ter muita utilidade para ninguém.
Então continua sorrindo.
E, sem pensar, ergue o braço direito e mostra o dedo do meio para a
plateia. Não é exatamente uma vitória, mas você se sente compelido a
reconhecer abertamente que tem consciência de estar sendo humilhado.
Toma essa.
Olhando para eles, você espera a próxima foto. Está tentando dizer:
“Certo. Querem uma foto minha? Tirem esta. Esta é a única que vão
conseguir esta noite.” Mas o Camisa do Brasil tem uma ideia. E não é nada
má, você tem que admitir. Ele começa a semicerrar o olho pela teleobjetiva
na direção do seu dedo erguido. Não é o seu pau, mas vai ser su ciente.
Você se dá conta do que ele está para fazer e baixa o braço novamente.
Ele ca decepcionado. Faz um gesto para que levante o braço mais uma vez.
Você se recusa. Ele ca irritado. As coisas não estão indo de acordo com o
plano. Ele olha para a garota dos seus sonhos em busca de inspiração. Ela
parabeniza o Camisa do Brasil pela ideia de tirar a foto do dedo. Aplaude-o
em silêncio. Ele faz uma mesura.
Ela quer de novo.
— Não pegamos — diz o Camisa do Brasil. — Repete, e aí a gente te
deixa em paz.
Você recebe isso como uma vitória. Até o momento não estava certo se
toda aquela farsa era real ou imaginária (a nal, você tem passado por muito
estresse nos últimos tempos), mas agora sabe. Decide que, não importa o
que mais aconteça nesta noite, eles não vão conseguir a foto.
Você sorri. Quer que ele saiba que você está vencendo, ou que pelo
menos acredita nisso. A seguir ele saca um pente. Ergue-o, para que todos
vejam. Como um mágico, segura-o entre o indicador e o polegar. Com
habilidade, penteia primeiro seu ombro direito, depois o esquerdo. Você
está verdadeiramente perplexo com esse último desdobramento. Então se
dá conta. Olha para ela. O rosto dela é encantador, mas os olhos estão
carregados de ódio.
Por você. Ela odeia você? Por quê? Isso não importa agora. Você tem que
sair agora mesmo. Para sua vergonha e seu constante constrangimento,
você tem pelos nas costas e nos ombros. Tempos depois vai depilar com
cera, mas, no momento, é isso.
A única pessoa no salão que sabe da sua oresta é Aisling... e agora o
Monsieur Camisa do Brasil. Ela contou. A monstruosidade da situação
começa a se revelar. Ela quer destruir você. É nesse momento que você
precisa muito se conter para não fazer algo patético como dar um soco ou
um chute em alguém.
Você sempre dará graças por ter evitado isso.
Processos são comuns nos Estados Unidos, e alguém que ganha trezentos
mil dólares por ano vale esse esforço. Agora o Camisa do Brasil está
descaradamente tentando provocá-lo com o pente, a lente e, de vez em
quando, o dedo no peito, somados à piscadela. Você continua protegido
pelo estado de choque. Quer muito atacá-lo, mas algo o impede.
Você reza.
Talvez isso tenha funcionado. Na verdade tenho que ser mais objetivo.
Sei que foi isso. Do contrário eu teria tentado matá-lo. E, quando penso
nesse dia, o fato de que ele havia vestido a jaqueta militar devia signi car
que claramente esperava que eu tentasse. Com fotogra as sendo tiradas e
testemunhas por toda parte, teria sido uma bela jogada. Minha ideia
publicitária de conseguir alguém para brigar na frente da foto dela havia se
tornado real. Poético.
Teria sido uma excelente contribuição para o seu livro. O publicitário
que caiu sobre a própria espada envenenada. Ela poderia interpretar o anjo
vingador. Imaginei o belo rosto inocente no verso da sobrecapa. Um belo
retrato em preto e branco tirado por Peter Freeman.
Não, ela não lançaria o livro até ter terminado a jogada com ele. Veja
bem, nem mesmo ele estava seguro. Precisaria tomar cuidado. Em um
período de quatro anos, ela poderia tirar quantas fotos dele quisesse.
Então, no m evitei dar a ela tudo o que queria para o livro, a não ser
algumas imagens em que estou parado perto de um balcão de bar com um
sorriso bobo no rosto. Talvez isso fosse bom o bastante para ela usar. Talvez
não, mas pelo menos não lhe dei uma imagem minha rolando no chão em
uma briga de bar.
Acho que escrever isto é uma tentativa de compreender o que aconteceu
e deixar essa história para trás. Mais uma vez, eu me pergunto se tudo isso
chegou a acontecer mesmo. É como se tudo fosse um produto da minha
imaginação. O mais estranho é a esperteza do esquema. Eu teria adorado me
envolver em algo daquele tipo sete anos antes, quando eu mesmo fazia um
jogo parecido. Mas meus esforços não passavam de vandalismo espiritual.
Aquilo era pro ssional.
Terminei com uma garota com quem havia estado por quatro anos e
meio. O meio é importante. Fui um escroto com ela. In el, descuidado,
vivia bêbado a maior parte do tempo. Ela disse que queria espaço. No
começo adorei a ideia, depois quei péssimo. Excelente desculpa para beber.
Então bebi. Muito. Mas, enquanto tragava toda aquela bebida alcoólica, eu
me divertia usando minha história de desilusão amorosa para pegar outras
garotas que iam aos bares sórdidos que eu frequentava. Eu as atraía para a
minha teia e, quando estava convencido de que estavam apaixonadas por
mim, começava a me voltar contra elas. Eu me via como o playboy
despreocupado de smoking e gravata. Gostava de machucá-las. Não tinha
consciência da profundidade do efeito que era capaz de alcançar. Só sabia o
quanto gostavam de mim depois de machucá-las, quando já era tarde
demais. Corrigindo. Eu sabia. Exatamente por isso as machucava. Como
podiam gostar de mim? Eu as punia por isso. Também sabia que, mesmo
depois de magoá-las, elas continuariam gostando de mim, às vezes até mais,
porque eram boas por natureza.
Sinto vergonha de dizer que considero esta a parte mais diabolicamente
inteligente da coisa toda. O fato de serem carinhosas e amorosas por
natureza era a pedra que as fazia afundar. A fórmula é perfeita. A enfermeira
se dispõe a se sacri car pelo paciente. O paciente, porém, não está sofrendo
de uma doença causada por um agente externo, mas por ferimentos
autoin igidos. A enfermeira quer afastá-lo da sua dor. O paciente quer que
ela também sinta a dor. De que outro modo ela pode entendê-lo? Então, ela
se junta a ele. Agora há dois pacientes. Algo assim. Mas, pelo menos eu era
capaz de identi car alguns sinais do que estava acontecendo. Algo do qual
nunca teria sido capaz se já não tivesse estado do outro lado.
E também só quero fazer uma menção à França aqui. Desde então ouvi
dizer que em Paris há, entre os franceses mais aristocráticos, o elegante
hábito de convidar para reuniões sociais aquele que nós na Irlanda
costumamos chamar de saco de pancadas verbal. É muito importante que a
vítima não saiba o que está acontecendo.
A vítima é convidada para um jantar ou uma reunião e, sem saber,
oferece muita diversão aos outros convidados. A noite é considerada um
sucesso se todos puderem sacanear o pobre coitado, e um sucesso ainda
maior se o infeliz não souber o que está acontecendo. Então, sei o que você
deve estar pensando: “Caramba, como o cara guarda rancor dessa coisa
toda.” Mas vou lhe dizer uma coisa: não quero que o livro dela saia sem
algum tipo de resposta minha. Vou estar totalmente indefeso.
Claro que nem sequer sei se alguém vai publicar isto, mas minha
esperança é poder ver o que escrevi nas livrarias antes que o livro dela seja
lançado. Desse modo vou ter a primeira palavra. Depois vou cagar para as
fotos que ela publicar de mim.
Quer dizer, você consegue imaginar uma coisa dessas?
Uma porra de um ensaio fotográ co sobre uma parte da sua vida. Justiça?
É justo alguém manipular minha imagem depois de eu ter passado os
últimos dez anos no ramo da publicidade ganhando para manipular outras
imagens? Talvez seja. Pelo menos, se você ler isto, vai conhecer meu lado
da história. Sei que, se vir o livro dela e ali houver um cara ligado à
publicidade, vou supor que ele fez por merecer. Estereótipos, sabe? Da
mesma forma que esperei ser morto a tiros em Nova York assim que saí do
avião.
En m, cá estou eu de novo mudando de assunto. Onde eu estava? Ah,
sim, o Cat and Mouse. Nossa, ainda estremeço quando passo ali perto.
Agora tenho uma namorada. Ela mora por ali. Passo com frequência pelo
bar. Não gosto disso. Ela sabe tudo sobre o que aconteceu. É francesa. De
início quei perturbado por ela morar ali perto, pois achei que fosse mais
uma do grupo da Aisling, convocada para me ferrar ainda mais. Ela acha
que eu deveria procurar um terapeuta. Quanta insolência. Já vou a seis
reuniões do AA por semana. Mas ela é legal. Eu gosto dela. Ela gosta de
mim. Digamos apenas que gostamos um do outro. Por falar nisso, pau em
francês é bitte. Então, suponho que seja uma espécie de nal feliz, porque na
verdade nada terminou, eu estou vivo e pretendo continuar assim, ainda
aguardando o lançamento do livro dela.
Na verdade acabou de me ocorrer que este livro, caso se torne um, não
tem nal, feliz ou não. Será apenas uma vírgula na frase acrescentada a ele
próprio quando o livro dela sair. Há um elemento de vingança nisso tudo.
Consigo ver que um lado meu está sendo mesquinho, triste, pervertido,
amargo e, no geral, como as raízes de uma árvore europeia (você não vê
raízes retorcidas na porra deste país). Página após página de um mau humor
sombrio. Mas a verdade é que não me sinto assim.
Espere até ler isto. Logo antes de decidir sair do Cat and Mouse naquela
noite, um copo de Coca foi entregue a um homem de Cork por uma
madona de olhos verdes que parecia jovem demais para poder comprar
bebida alcoólica. O homem de Cork passou o copo de Coca para um
homem de Deelford que não bebia havia quase seis anos. Ele era alcoólatra.
Para começo de conversa, não deveria estar em um bar. Vinha vivendo
perigosamente. A nal, estava louco de paixão pela garota que acabara de
comprar a bebida. Aquele copo de Coca não parecia tão diferente dos copos
de Guinness que todos os outros pareciam segurar.
Essa era a ideia. Encaixar-se. E ele havia tido uma noite estranha.
Também havia tomado Coca-Cola para cacete. Mas aquela viera Dela. Era
especial. Ele sabia disso. Ela sabia disso. O homem de Cork sabia disso.
Digamos que era sabido. O homem de Deelford pegou o copo. Ela olhou
para ele de longe. Parecia preocupada em manter uma distância segura.
Como se estivesse com medo de ele pular em cima dela de repente. Era
quase como se ela quisesse isso. Ela cou ali de pé, se preparando para agir,
pronta para fugir. A pose surtiu um efeito estranho nele. Ele se viu
buscando razões para querer pular sobre ela.
Não encontrou nenhuma. Algo o protegia. Alguma outra coisa. Algo
que se colocara entre ele e a vontade de pular nela. Lógico que ele sabia
que tinha sido feito de bobo com muita habilidade, mas seu direito a dar o
troco fora adiado. Não cancelado, apenas postergado.
Ela ergueu o copo em um brinde debochado e deu uma piscadela que
signi cava Peguei você. Deveria ter doído, mas não foi o caso. Não naquela
noite. Mais tarde isso o cortou tão fundo que ele teve que trincar os dentes
para conseguir respirar. A compreensão disso o rasgou por dentro como se
seu sangue tivesse cado venenoso de repente. Como vidro moído correndo
por seu corpo. Era capaz de ver o rosto adorável dela rindo dele.
Naquela noite, porém, nada disso o afetou. Ele ergueu o copo e o segurou
no alto, criando, mesmo que por um breve momento, uma simetria entre
eles que não existira até então. Se isso fosse um lme, daríamos um close no
sorriso dela bebendo a Guinness e depois uma tomada ainda mais de perto
da boca dele enquanto ergue a Coca. Então, corta de uma boca para a outra
sucessivamente. O lábio superior dela mergulha no líquido espumante. O
dele também. Ela engole. Ele, não. Ela afasta o copo dos lábios e o ergue em
um gesto de triunfo.
O copo dele permanece diante da metade inferior do seu rosto. Seu lábio
superior está frio na Coca. Ele sente o cheiro de vodca. Acha que sente
cheiro de vodca. O homem de Cork olha para eles como se jogassem tênis.
O homem de Deelford obedece a uma voz que só reconhece dias depois.
Não beba isso. Ele não está com sede. A nal, já bebeu cinco copos dessa
coisa. Supostamente, vodca não tem cheiro. O AA está cheio de pessoas
que costumavam acreditar nisso. Por isso elas tragavam a coisa com tanta
vontade. Um alcoólatra não quer cheirar a bebida. É engraçado, de verdade
— você pensaria que não ligamos para isso.
Mas um pequeno truque que você aprende se não quer voltar a beber
nessa vida é adquirir o hábito de cheirar tudo o que bebe.
Até chá.
É um bom hábito. Pode salvar sua vida.
Então, a questão é: se isto for publicado, é provável que não publiquem o
livro dela de ensaios fotográ cos, porque seus métodos vão ter sido
revelados. Ou, caso publiquem, pelo menos eu terei tido a primeira palavra
e externado meus sentimentos sobre o que aconteceu. Se isto aqui não for
publicado, então o livro dela provavelmente será lançado em mais ou
menos um ano, eu serei humilhado, ou pelo menos levemente
constrangido, e ela vencerá e continuará me assombrando para sempre. Por
outro lado, se você está lendo isto, então não apenas ele foi publicado como
agora estou trabalhando no meu próximo livro ou no roteiro para o lme
deste.
Pode me dar os parabéns.
Leia também
O adulto
Gillian Flynn