Você está na página 1de 125

Copyright © 2006 by Anonymous

TÍTULO ORIGINAL
Diary of an Oxygen Thief

PREPARAÇÃO
Ângelo Lessa

REVISÃO
Nina Lua

Ulisses Teixeira

FOTO DE CAPA
Cortesia do autor

ADAPTAÇÃO DE CAPA E DIAGRAMAÇÃO


Ilustrarte Design e Produção Editorial

GERAÇÃO DE EPUB
Intrínseca

REVISÃO DE EPUB
Mariana Góes

E-ISBN
978-85-510-1512-1

Edição digital: 2016

1ª edição

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA INTRÍNSECA LTDA.
Rua Marquês de São Vicente, 99, 3º andar
22451-041 Gávea
Rio de Janeiro – RJ
Tel./Fax: (21) 3206-7400
www.intrinseca.com.br
Sumário
Capa
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Dedicatória

1
2
3

Leia também
Para Matty
1

Eu gostava de machucar garotas.


Mentalmente, não sicamente. Nunca bati em uma garota na vida. Bem,
uma vez. Mas foi um equívoco. Mais para a frente falo disso. A questão é
que aquilo me excitava. Eu sentia prazer de verdade.
É como quando você ouve um serial killer dizer que não se arrepende,
que não sente remorso por todas as pessoas que matou. Eu era assim.
Adorava. E também não ligava para quanto tempo demorava, porque não
tinha pressa. Esperava carem totalmente apaixonadas por mim. Até que
aqueles olhos grandes e redondos estivessem olhando para mim. Eu adorava
a expressão de choque no rosto delas. Depois, o olhar vidrado ao tentarem
esconder o quanto eu as magoara. E era legal. Acho que matei algumas
delas. Quer dizer, suas almas. Era das almas que eu estava atrás. Sei que
cheguei perto disso umas duas vezes. Mas não se preocupe. Eu recebi meu
merecido castigo. Por isso estou te contando isso. A justiça foi feita. O
equilíbrio foi restaurado. A mesma coisa aconteceu comigo, só que pior.
Pior porque aconteceu comigo. Agora me sinto redimido, sabe? Limpo. Eu
fui punido, então não tem problema falar disso tudo. Pelo menos é o que eu
acho.
Carreguei a culpa dos meus crimes por muitos anos depois de ter parado
de beber. Eu não podia nem olhar para uma garota, que dirá acreditar que
merecia interagir com elas. Ou talvez só estivesse com medo de que vissem
através de mim. Seja como for, depois de entrar para os Alcoólicos
Anônimos passei cinco anos sem nem sequer beijar uma garota. Verdade.
Nem na mão eu segurava.
É sério.
Acho que no fundo eu sempre soube que tinha um problema com
bebida. Só nunca fui capaz de admitir. Eu bebia apenas pelo efeito. Mas, até
onde eu sabia, não estava todo mundo fazendo a mesma coisa? Comecei a
me dar conta de que havia algo errado quando passei a levar surras. Minha
língua sempre me arranjava problemas, claro. Eu ia até o maior cara do
lugar, erguia a vista para olhar para as narinas dele e o chamava de bicha.
Aí, quando ele me dava uma cabeçada, eu dizia: “Você chama isso de
cabeçada?” Então o sujeito me dava outra, com mais força. Na segunda vez
eu já não tinha tanto a dizer. Uma das minhas “vítimas” en ou minha
cabeça na boca de um fogão elétrico portátil. Em Limerick. A Cidade das
Facadas. Tive sorte de sair vivo daquela casa. Mas ele fez isso porque eu
quei facaneando fua língua preva. Talvez por isso eu tenha passado para as
garotas. Mais so sticadas, saca? E elas não me espancavam. Simplesmente
me encaravam, incrédulas e chocadas.
Os olhos delas, entende?
Todo o ngimento e todas as regras se dissolviam. Só havia nós dois e a
dor. Todos aqueles momentos íntimos, cada leve suspiro, aqueles toques
suaves, o ato de fazer amor, as con dências, os orgasmos, as tentativas de
chegar ao orgasmo — tudo não passava de combustível. Quanto mais
envolvidas estavam, mais bonitas pareciam quando o momento chegava.
E eu vivia para esse momento.
Durante esse período, trabalhei como freelance na área de publicidade
em Londres. Diretor de arte. Uma grande contradição. É o que faço até
hoje. Estranhamente, sempre consegui ganhar dinheiro. Mesmo na escola
de belas-artes eu recebia uma bolsa, porque meu pai tinha acabado de se
aposentar e, com isso, de repente passei a ter direito ao benefício. E depois
consegui um emprego atrás do outro sem muita di culdade.
Eu nunca pareci um bêbado, apenas era um, e de qualquer modo,
naquela época, a publicidade era um ramo em que as pessoas bebiam muito
mais do que hoje. Como freelance, eu era dono do meu próprio nariz, por
assim dizer, e me mantinha ocupado garantindo uma sequência de
encontros marcados. Nenhuma das garotas deveria saber disso. A ideia era
formar uma la impressionante para que, quando uma delas se aproximasse
da maturidade — em geral, após três ou quatro encontros com alguns
telefonemas nos intervalos —, outra entrasse no jogo. Assim, quando uma
ia para a lixeira, a nova ocupava o seu lugar. Não havia nada de incomum
no meu método, todo mundo fazia isso. Mas eu gostava tanto... Não do
sexo, nem mesmo da conquista, mas de causar dor.
Foi depois da noite maluca que passei com a Pen (já volto a esse
assunto) que me dei conta de que havia encontrado meu nicho na vida. De
algum modo eu conseguia atrair aquelas criaturas para o meu covil. Passava
metade do tempo tentando afastá-las, mas isso tinha o efeito contrário. E o
fato de elas se sentirem atraídas por um merda como eu fazia com que as
odiasse ainda mais do que se rissem na minha cara e fossem embora. E
quanto à aparência? Não sou grandes coisas, mas dizem que tenho olhos
lindos. Olhos dos quais não poderia brotar nada além da verdade.
Dizem que, na realidade, o mar é negro e apenas re ete o céu azul. Assim
era comigo. Eu permitia que você se admirasse nos meus olhos. Eu fornecia
um serviço. Eu escutava, escutava e escutava. Você se armazenava em mim.
Nunca na minha vida nada me tinha parecido mais certo. Para ser
sincero, ainda hoje sinto falta de machucá-las. Não estou curado disso, mas
já não me dedico sistematicamente a destruir, como costumava fazer. A
falta que sinto da bebida não é nem metade da que sinto disso. Ah,
machucá-las de novo. Desde aqueles dias inebriantes eu ouço um ditado
que parece se aplicar a essa situação: “Pessoas machucadas machucam
pessoas.”
Agora entendo que estava sofrendo e queria que os outros também
sentissem isso. Era minha forma de me comunicar. Eu conhecia as mulheres
e conseguia o obrigatório número do telefone na primeira noite; então,
depois de alguns dias, para fazê-las suar um pouco de ansiedade, eu ligava e
cava todo nervoso. Elas adoravam. Eu as chamava para sair, ngia que
nunca fazia “esse tipo de coisa” e dizia que não saía muito em Londres
porque, na verdade, não conhecia bem a noite da cidade. Essa parte,
entretanto, era verídica, já que só o que eu costumava fazer era perder o
controle nos bares ao redor de Camberwell.
Nós então combinávamos de nos encontrar em algum lugar. Eu gostava
de Greenwich, com o rio, os barcos e, claro, os pubs. E a área tinha um
ótimo clima de romance. Agradável e respeitável. Antes mesmo de nos
encontrarmos eu já estava meio fora dessa sintonia, mas ainda assim eu era
divertido, encantador, pueril e trêmulo. Tentando me deixar à vontade, elas
sorriam e faziam comentários sobre meu tremor, pensando que eu estava
nervoso porque queria causar uma boa impressão. Como eu não estava
bebendo o su ciente, minha alma tremia. Eu tinha que pedir duas doses
duplas de uísque no balcão para cada meia cerveja que elas tomassem.
Virava os Jimmys sem que elas vissem e seguia em frente com o show.
Adorável.
Eu não ligava nem um pouco se as levava para a cama ou não. Só queria
uma companhia enquanto me embebedava, enquanto esperava crescer
dentro de mim a coragem de machucá-las. E elas pareciam satisfeitas
porque eu não tentava agarrá-las. Às vezes eu tentava. Porém, na maioria
dos casos me comportava muito bem. Isso continuava por alguns encontros.
Nesse meio-tempo eu as encorajava a falar de si.
Isso é muito importante para o momento bem-sucedido posterior.
Quanto mais elas con am e investem em você, mais profundo é o choque e
mais prazeroso é o momento no nal. Então, eu cava sabendo sobre os
hábitos dos seus cachorros, os nomes dos seus ursinhos de pelúcia, o
temperamento dos pais, os temores das mães. Eu gostava de crianças?
Quantos irmãos eu tinha? Um seriado que eu precisava ver até o m. Mas
tudo bem, porque eu sabia que iria cortá-las do elenco.
Elas falavam sem parar, e eu concordava. Erguiam uma sobrancelha
estratégica. Faziam uma careta quando necessário. Soltavam uma
gargalhada cruel ou ngiam estar em choque, o que fosse preciso. Eu
observava as pessoas conversando e registrava suas expressões faciais.
Interesse: erga uma sobrancelha; erga ou baixe a outra, dependendo da
conversa.
Atração: tente car com o rosto ruborizado. Essa não é fácil (pensar no
que faria com ela mais tarde ajudava). E um rubor geralmente produzia um
rubor. Ou seja, se eu conseguia um enrubescimento, ela muito
provavelmente retribuiria o rubor. Solidariedade: franzir a testa e anuir
devagar. Encantamento: inclinar a cabeça para um lado e dar um sorriso de
quem está pedindo desculpas. Eu empregava essas máscaras pré-fabricadas
no momento certo. Era fácil. Prazeroso. Os caras faziam isso o tempo todo
para transar. Eu fazia para carmos quites. Ser cruel com o mulherio, essa
era a minha missão. Mais ou menos nessa época descobri o signi cado da
palavra “misógino”. Lembro-me de achar hilário ela ter “gino” como su xo,
que me lembrava “vagina”.
Só sei que me sentia melhor quando via outra pessoa sofrendo. Mas é
claro que, com frequência, elas não deixavam transparecer o quanto eu as
havia machucado. Sim, ajudá-las a externar o que sentiam era um desa o
em si, mas também era terrivelmente frustrante ter todo aquele trabalho e
não poder desfrutar de uma cena dramática. Foi por isso que se tornou
necessário condensar tudo em um único momento ilustrativo.
A Sophie era do sul de Londres. Foi a gurinista de Angus Brady na
comédia Não Está Feliz em me Ver?. Eu a conheci numa festa da escola de
belas-artes de Camberwell em que entrei de penetra. Depois dela teve
aquela designer — cujo nome sinceramente não consigo lembrar — que sei
com toda a certeza que machuquei, porque ela nunca mais me telefonou. É
engraçado isso, porque, embora eu nunca mais a tenha visto nem tenha
falado com ela, sei que cou mal.
E como eu sei?
Eu sei.
Teve a Jenny. Foi ela quem jogou cerveja na minha cara. Fiquei animado
por ter ajudado a provocar tanta fúria.
Depois veio a Emily. Mas na verdade ela não conta, porque era tão boa
quanto eu, senão melhor, no que quer que seja isso que fazíamos. Eu meio
que me apaixonei por ela. A Laura apareceu em algum momento por aí. Era
uma ex-assessora de imprensa de bandas, com uma bunda fantástica que
havia sobrevivido a uma lha pequena. Certo dia acordei e vi uma menina
de oito anos me observando enquanto eu tentava me libertar dos tentáculos
sardentos da mãe comatosa. E então, depois de ela ter me deixado culpado
o bastante para levá-la à escola, quei com a impressão de que mãe e lha
utilizavam plenamente os homens que passavam por suas vidas. Como os
indígenas americanos e o bisão, os esquimós e a foca, a mãe que recebe
benefícios sociais do governo e eu.
E teve aquela que começou tudo.
Penelope Arlington. Eu saía com ela havia quatro anos e meio. Muito
tempo. Ela era legal comigo. Mais do que qualquer outra garota já tinha
sido. Quando eu falava, ela virava a cabeça para mim e parecia se entregar
ao signi cado das palavras. Eu gostava daquilo. Só muito depois descobri
que ela era horrível na cama. Na época, eu achava que ela era uma
libertina. Não. Mas é ela quem mais me arrependo de ter magoado. Por
quê? Porque a Penelope não merecia. Não que as outras merecessem, mas a
Pen não teria me largado se eu não a tivesse destruído. E eu precisava que
me largasse, porque ela estava se colocando entre mim e a minha bebida.
Certa noite simplesmente surtei. Fazia anos que eu vinha borbulhando.
Aquece a fogo brando, esquenta, borbulha, cozinha... gorgoleja. Fiquei
completamente bêbado, e toda uma sequência de acontecimentos começou
a se agitar. Por que alguém decidiria partir o coração de uma pessoa que
amava? Por que causar aquele tipo de dor de forma intencional?
Por que as pessoas matavam umas às outras?
Porque elas gostavam disso. Será que era mesmo assim, tão simples?
Despedaçar uma alma é mais fácil quando o perpetrador já passou pela
mesma experiência. Pessoas machucadas machucam pessoas com mais
habilidade. Um especialista em partir corações conhece o efeito de cada
incisão. A lâmina penetra quase sem ser notada, a dor e o pedido de
desculpas chegam ao mesmo tempo.
Eu tinha me cansado da garota com quem estava saindo havia quatro
anos e meio. Eu a amava. Isso era o mais horrível sobre o que estou prestes a
contar. Existe a possibilidade de ela estar em algum lugar por aí lendo isto
neste exato momento. Todos vocês virem a cabeça; o que vem agora é só
para ela.
Pen, eu sinto muito. Precisava machucar você. Eu sabia que estávamos
chegando ao m. Sabia que você tinha começado a desprezar quem eu era.
Você tentou esconder como se sentia, mas estava estampado no seu rosto.
Nojo. Comecei a odiá-la por não ter a coragem de me dizer o que de fato
pensava de mim. Por isso tive que decidir por você.
Todos vocês podem voltar a olhar agora.
Era uma noite de sexta-feira em um pub em Victoria Park. Eu estava
desempregado havia pouco tempo. Outra agência de publicidade onde
outro punhado de conceitos havia sido massacrado por outro diretor
criativo atrapalhado. Eu tinha certeza de uma coisa. Precisava car
completamente bêbado. Então, comecei a virar uma cerveja atrás da outra
num ritmo alarmante.
O barman encarquilhado parecia apreensivo. Passei para o uísque. Às
sete e meia da noite eu estava cambaleando. Tinha combinado de me
encontrar com a Penelope às oito. Tive que empurrar a bicicleta até o local
do encontro. Outro pub, é claro.
Raiva. Tédio. Embriaguez. Uma péssima combinação. Comecei com algo
assim:
— Como eu posso estragar quatro anos?
O olhar intrigado da Pen foi seguido por uma evasiva na forma de
“Gostou da minha blusa nova?”.
— Parece. Uma. Toalha. De. Mesa.
Uma expressão magoada sucedida por:
— Outra?
Mais bebida. Isso costumava funcionar.
— Namorada? Sim, por favor.
Mais entediada do que magoada agora. Olhando ao redor do pub.
Silêncio.
Então ela pediu:
— Vamos para outro lugar.
Isso também costumava funcionar. Mas eu tinha decidido que naquela
noite não funcionaria. Não naquela noite. Naquela noite nós iríamos até o
m. Aquilo era apenas o perímetro, os primeiros sacos de areia da defesa.
Meu gracioso grupo de terroristas emocionais passou com toda a malícia por
esses insultos no treinamento que havia recebido.
— Claro. Vamos para outro lugar.
Decidi não dizer nada no caminho entre aquele pub e o seguinte. Tive
êxito. Ela estava tremendo agora. Insegura. Eu também estava tremendo.
De excitação. Ela pediu umas bebidas no balcão. Nem fodendo que eu iria
pagar pelos drinques, então peguei um lugar a uma mesa redonda e comecei
a ertar explicitamente com outras garotas. Ela me viu. Era para ver. Ainda
nenhuma reação. Tinha quatro anos e meio em jogo ali. Bons, na maior
parte do tempo. Por que ela não permitiria uma noite ruim? E isso era o
mais excitante. Eu havia chegado a essa conclusão. E a Penelope não
conseguia ver o que se passava pela minha cabeça. Eu transando com
aquela prostituta de pele branca e veias azuis com apenas um seio. Eu sabia
que podia mutilar a Pen. Provavelmente ela também podia me mutilar, mas
não faria isso porque eu agiria primeiro.
Mas por quê? Eu sabia que não fazia sentido. Eu a amava do meu jeito. E
muito. Ela era bonita, divertida e carinhosa, mas eu estava entediado, tão
entediado... Precisava pensar em outras garotas para car de pau duro. Eu
não queria tomar a longa e árdua estrada que culminava no orgasmo dela,
que dirá no meu. Tinha medo de tocá-la e ela confundir isso com um
convite ao sexo. Então, para sentir alguma coisa em meio à dormência,
decidi perpetrar na minha alma e na dela o equivalente a apagar cigarros
nos meus membros paralisados. Eu tinha a esperança de que, se eu
registrasse a dor, a sensação seria acolhida como um sinal de vida.
Ou talvez eu simplesmente estivesse bêbado.
Seja como for, quei ainda mais resoluto.
— É assim que eu co quando njo escutar o seu papinho chato.
Então, congelei o rosto na minha expressão mais doce, meus inocentes
olhos azuis se arregalando em um interesse ngido, a mesma expressão que
eu usava com professores. Pen me encarou, descon ada. Havia algo novo
ali. Desviei o rosto, como um imitador se preparando para o próximo
personagem.
— É assim que eu co quando njo que estou apaixonado por você.
Olhei para ela com um semblante amoroso mas respeitoso, do mesmo
modo que havia feito tantas vezes antes com o sentimento real. Eu até
estava sendo sincero naquele momento, mas só porque queria ser
convincente.
— Espere aí. O que mais? Ah, sim. E é assim que eu co quando njo
que você é minimamente esperta só para poder transar depois.
Joguei a cabeça para trás, dei uma gargalhada, inclinei a cabeça e olhei
de soslaio. Desculpe, garotas. Os caras sacam dessas coisas também. Pen
estava começando a entender. Os olhos dela perderam o brilho. Eu podia
ajudá-la com aquilo.
— E este sou eu.
Gostei especialmente desse momento. Eu tinha recitado o bordão de Ted
Carwood, um imitador britânico muito popular que terminava seus
espetáculos com essa revelação antes de dar boa-noite. Era o único
momento em que ele aparecia como ele mesmo. Eu acrescentei uma
variação. No meu caso, a expressão que acompanhava era de provocação
pura. Uma mistura de Me Bate e Vai se Foder que eu normalmente
reservava para as brigas de bar com sujeitos muito maiores do que eu.
Sempre funcionava. Eu estava dizendo que ela era uma covarde se não me
batesse. Ela não bateu, claro. Só cou me olhando. Com uma expressão
inocente. Aquilo estava sendo mais engraçado do que eu tinha esperado.
Ela não deveria estar pelo menos chorando? Se quer saber a verdade, quei
impressionado. Mas até aquele momento eu estava apenas me aquecendo.
— Você acha que estou brincando, não é?
Nenhuma resposta.
— Eu vou acabar com este relacionamento hoje. E não há nada que
você possa fazer. Vai ter que car sentadinha aí e escutar o que eu tenho a
dizer. Vai questionar sua própria capacidade de julgamento. Talvez nunca
mais volte a con ar em si mesma. E espero que isso aconteça. Porque, se eu
não quero você, e pode acreditar que não quero, então também não quero
que você seja feliz com outro enquanto restar qualquer dúvida de que eu
possa conseguir outra garota.
Eu ainda não estava consciente, entenda, que me tornaria a fornalha de
almas que você tem à sua frente. Mas estava perdendo a pose que achava
merecer, então acrescentei:
— Sua boceta é frouxa.
Ela ouviu, mas não soube como reagir. Eu também a ajudei com isso.
— Vou colocar de outra forma. Sua vagina é larga... Parece que foi usada
demais.
Aí, sim, a coisa começou a andar. Ela arregalou os olhos. Vi como tentou
guardar o ultraje para si. Mas era tarde demais, eu já estava lá. Eu quase
podia ver através dos seus olhos. Ela não conseguia se esconder. Não de
mim. Eu era o policial à paisana. Conhecia todos os seus movimentos.
Tinha ajudado a criá-los. Aquilo era fácil demais.
— Seus peitos são caídos.
Essa eu soltei como um soco. Recuei para ter uma visão melhor do
efeito.
— São grandes demais e cam pendurados muito lá embaixo.
Esse acréscimo foi só para o caso de restar alguma dúvida. A sensação de
choque pode proteger a vítima e reduzir a velocidade máxima do golpe. É
melhor ter certeza de que você atingiu o alvo. Veja bem, às vezes é
divertido quando há uma leve confusão, porque produz expressões
maravilhosas. Em muitas situações ela sorri para você depois de receber seu
pacote desprezível, ainda sem ter noção do conteúdo.
— Para car de pau duro eu tenho que pensar numa garota qualquer que
vi no ônibus.
Esperei a Penelope absorver essa. Levei a mão ao queixo como se
estivesse pensando no que dizer em seguida. Tentei parecer o mais doce
possível. Eu co bonito quando estou me divertindo, é o que dizem.
— Por falar nisso, transei com outra garota além daquela sobre a qual lhe
contei.
Agora eu estava vencendo. Então dei um sorriso solidário.
Um vencedor não quer se vangloriar. Quer apenas vencer. Ela parecia
diferente, uma nova pessoa. Não havia mais nada que eu pudesse arrancar.
Eu não sabia sequer se queria ouvir o que sairia da boca da Pen. Não
importava quão bem escolhidas fossem as palavras, nem sempre era possível
con ar que a voz fosse transmiti-las. Pigarrear, esse era o dilema. Pigarrear
sem permitir que ele soubesse o quanto aquilo o satisfaria. Por que ele
estava fazendo aquilo? Não importava o motivo; a questão era que aquilo
estava acontecendo.
— Já chega?
Sem hesitação. Apenas um gesto de cabeça dela. Para cima e para baixo.
Provavelmente ela sentiu misericórdia no ar. Sentiu errado. Só conseguiu
fazer com que eu soubesse que estava causando o efeito desejado. Que ela
soluçava por dentro.
— Sim, bem, ainda assim... Eu z muito pior do que simplesmente
transar com outra. Fiz uma coisa horrível, até para os meus parâmetros. Na
verdade, é tão ruim que vou te poupar disso. Talvez eu conte mais tarde.
Talvez não. Mas você iria desmoronar se soubesse, e não sei bem se quero
isso para você agora.
Ela cou tão chocada que não fazia sentido continuar. Eu senti remorso?
De modo algum. Para aumentar a tortura perguntei a ela sobre o seu
emprego, a sua blusa e a sua vida.
Tomei o cuidado de usar as expressões faciais que já tinha imortalizado,
de modo a instigá-la ainda mais. E acho que me lembro de ter arrancado
dinheiro dela para comprar mais umas bebidas.
Mas espere, tem outra coisa. E essa é a coisa bizarra. Como tinha dado a
ela um bom motivo para se vingar, eu lhe ofereci algumas opções. As
chaves para mim, por assim dizer. Acho que foi aí que errei nos cálculos.
Minha lógica era a seguinte: se alguém te machuca, automaticamente
você quer vingança. Não importa quanto tempo demore para chegar, você
quer vingança. Achei que, se a magoasse o su ciente, ela iria querer
vingança. Portanto, eu não teria que me preocupar com a possibilidade de
nunca mais vê-la de novo. Porque isto era o que eu mais temia: o fato de
perdê-la. A questão era como não perdê-la para sempre. Dei a ela algumas
dicas de como ter êxito ao revidar.
Amor disfarçado.
Nunca deixe a garota saber o quanto você a ama, senão ela vai usar isso
para acabar com você. No meu caso, porém, ainda hoje essa a rmação tem
um fundo de verdade, infelizmente. Mas deixa pra lá. Caramba, isso já faz
quanto tempo? Dez anos?
Sim, acho que faz.
— Ligue para mim toda noite às oito e, quando eu atender, não diga
nada. Cuidado para não deixar música tocando ao fundo. Por falar nisso, eu
sempre quis comer a sua irmã, e acho que ela também teria topado. Quero
que se lembre destas coisas que estou mandando você fazer. Sei que tem
algum cara do seu trabalho interessado em você. Quero que passe um m de
semana com ele. Por que não? Você merece. Vá em frente. Não me avise de
nada. Eu nem sequer vou me lembrar do que estou lhe dizendo agora. É
provável que suma da minha cabeça... Daqui a pouco eu vou passar para o
conhaque. Ele sempre faz com que as coisas sumam da minha mente. E
então? Vai fazer? Boa garota. E também que me seguindo de carro. De
repente você pode até trocar de carro. Se quiser, pode usar o Paul como seu
mensageiro. Você quer ser livre, não quer? Ainda mais depois desta noite. É
claro que quer. Então, bem, faça o que eu estou mandando, senão vou
atormentar você para sempre. É sério. Talvez você só faça algumas dessas
coisas. Tudo bem. E você pode ter as suas próprias ideias, e também vai
estar tudo certo, mas quero que se vingue de mim. Quero que me odeie.
Estou ajudando você a me odiar. Estou lhe fazendo um favor ao libertá-la e
pedir que faça o mesmo por mim. Pode ser?
Eu tinha feito aquele monólogo com o máximo de sinceridade possível.
Estava falando sério. Queria que Pen quisesse me machucar de volta. Esse
seria o novo nós. Ela olhou para mim. Dentro de mim. Aqueles belos olhos
vidrados brilhando como pequenos hematomas azulados. E, ainda assim, ela
parecia mais forte do que eu jamais a vira. Desapegada. Solteira. Fora de
alcance.
Do meu alcance.
Estava terminado. Quatro anos e meio. Tive que garantir que ela
continuaria a saber quem eu sou. Ao mesmo tempo, eu não me importava.
Precisava de alguma coisa, qualquer coisa que me zesse seguir em frente.
Ultrapassando limites, se necessário. Eu queria culpá-la pelo que poderia
acontecer. Queria fazer dela um mito. Aquela que Iria se Vingar Daquele
que Ousou se Rebelar.
O romance já matou mais pessoas do que o câncer. Certo, talvez não
tenha matado, mas embotou mais vidas. Acabou com mais esperanças,
vendeu mais remédios, arrancou mais lágrimas.
Olhando para trás, vejo que foi isto: eu fazendo um teste para Heathcliff
em Hackney. Lancei mais alguns insultos escolhidos a dedo — seu pai é um
idiota, seu irmão é um merda, você não é inteligente o bastante para ser
minha namorada porque eu sou um gênio e me cansei de ngir que sou
menos inteligente só para você poder me acompanhar — e fui ao balcão
pegar um conhaque. Como você pode ver, eu me lembro da maioria dos
detalhes, mas pode muito bem ter havido mais.
Pelo bem dela, espero que não.
Naquela noite, enquanto tentava comer um kebab, caí da minha grande
bicicleta preta em algum lugar perto do Victoria Park. Não liguei de ter
precisado me levantar do asfalto. Estava rindo e cantando “Born Free”, e,
sabe-se lá como, pedalei até a casa dela na mesma noite. Como de hábito,
ela havia deixado a porta aberta para mim.
Eu me lembro de pensar: “Essa piranha... Ela não me levou a sério.”
Porém, quando me joguei ao lado dela na cama, senti seu corpo vibrar
enquanto ela chorava até dormir. Lembro-me dela se vestindo na manhã
seguinte. Se en ando no conjuntinho de lingerie branca. Ela estava
incrível de pé diante do espelho. Sua expressão enquanto decidia se gostava
do próprio visual contrastou fortemente com a que se instalou no seu rosto
quando ela me pegou olhando. Eu poderia muito bem ser um sem-teto que
a espiava de sob as cobertas.
Ela saiu com o cara do escritório. Eu não estava preparado para a dor
disso e me senti como ela deve ter se sentido quando a machuquei.
Dá na mesma discutir com o espelho ou com o outro. A nal, não somos
todos na verdade a mesma pessoa?
Seja como for, tenho isto a dizer: depois que a Pen foi embora, alguém de
fato me ligou toda noite por volta das oito durante umas duas semanas. Isso
realmente me deixou em pânico. Eu atendia e... nada. Quem quer que fosse,
desligava suavemente. O “suavemente” me assustava mais do que tudo.
Sem paixão. Essa intriga se encaixava com meus delírios paranoicos, e
beber havia deixado de ser um hábito para se tornar uma ocupação em
tempo integral. Isso ia me matar, e eu via essa perspectiva com bons olhos.
Atribuí meu infortúnio à inteligência e à astúcia daquela garota
reservada de Stratford-upon-Avon chamada Penelope. E, embora eu me
sentisse lisonjeado pensando que ela tentaria se vingar, não me dei conta de
que me deixar cozinhando em meus próprios sucos paranoicos já era
vingança su ciente. Eu faria mal a mim mesmo num nível que ela jamais
alcançaria. Quando quase morri espremido entre um carro e uma
motocicleta, cheguei a imaginar que ela havia orquestrado o acidente.
Minha bicicleta foi esmagada e saí com o pulso quebrado. Fiquei
extremamente encantado por ela ter chegado àquele ponto em nome de
uma vingança romântica contra mim.
Ela, a nal de contas, devia me amar.
Eu não conseguia mijar, porque meu braço esquerdo estava inutilizável e
o direito, esfolado. A bexiga queimava, os dois braços cavam projetados
como se eu estivesse pedindo esmola dos outros supostos pacientes no
pronto-socorro. Ainda assim, eu sorria. Porque Penelope me amava o
su ciente para conceber um atentado contra aquilo que risivelmente era
de nido como a minha vida. Criei a fantasia de que ela surgiria de uniforme
de enfermeira a qualquer momento para me administrar uma punheta
longa, lenta e sensual... mas só depois de me ajudar a dar uma mijada longa,
lenta e sensual.
Um tempo depois, eu me convenci de que ela havia aparecido na merda
do meu apartamento de subsolo disfarçada de possível colega de quarto. Eu
me recusei a levar sua “candidatura” a sério. Quando ela me perguntou
onde cava o banheiro, por exemplo, resisti ao impulso de aplaudir. Achei
hilário ela — que tinha estado no apartamento centenas de vezes — me
perguntar alguma coisa sobre o lugar de modo tão convincente. A Pen sabia
mais sobre a minha casa do que eu, já que eu vivia apagado. Mas eu não iria
arruinar aquela ceninha. Ouvi cada pergunta com um risinho
congratulatório e respondi com deboche. Com um sorriso exagerado e
anuindo sugestivamente, levei a jovem à porta.
Ela não cou com o quarto.
Então, este sou eu. Minha gata me trocou por outro cara com
apartamento próprio, um carro e um casaco. Eu estava entrando em um
mundo de dor, e nem todo o sofrimento era meu.
Sobe a música country.
2

Então, eu estava pronto para transmitir os meus ensinamentos aos não


iniciados. Os não machucados. Os inocentes. Com a namorada fora do
caminho eu conseguiria me dedicar mais. Estava muito puto e só queria que
os outros também se sentissem assim.
Especialmente as garotas. Uma garota havia me causado isso, então uma
garota teria que pagar. Eu queria machucar alguém. Aquele era um mundo
totalmente novo para mim. Eu nunca soube que era possível ser tão
machucado. Já havia levado um monte de surras que não eram nada
comparadas àquele sentimento.
Eu não esperava uma dor física. Uma queimação no peito, como se de
algum modo um pedregulho fumegante tivesse se alojado ali durante a
noite. Uma espécie de pânico duradouro que se desenvolvia lentamente. O
exato oposto de entusiasmo. Tudo isso era acompanhado de dores
lancinantes na parte de trás dos braços. O que era aquilo? Rejeição? Era tão
tangível assim? Eu só conseguia pensar que, se podia ser ferido daquele
jeito, com certeza podia causar a mesma dor nos outros. Isso me consolou.
Estudei e arquivei cada nova contração de desconforto. Registrei o que
havia acontecido e como isso tinha me afetado. Telefonei e pedi à
secretária eletrônica dela que me machucasse. Para ser livre, eu precisava
odiá-la. Nosso relacionamento havia terminado de vez, mas eu não
conseguia suportar o fato de que ainda precisava dela. Por isso, supliquei
que me ferisse, pedido que ela atendeu justamente ao se recusar a fazê-lo.
Nesse meio-tempo, eu me atirava na noite de Londres em busca de corações
para apunhalar.
Uma professora irlandesa. Uns vinte e cinco anos. Virgem. Não, sério.
Disse que eu tinha “um invejável domínio da língua inglesa”. Eu não sabia
direito o que fazer com ela. A resposta veio a mim quando me en ei na
cama dela depois de cozinhar meu prato especial de frango desossado, cuja
preparação assustava até a mim, por envolver tanta carne sendo arrancada
de ossos. Ela estava noiva e ia se casar. Isso me fez sentir ódio dela. Na
conversa, ela revelou que se sentia constrangida por ser virgem. Não queria
que o noivo descobrisse na noite de núpcias que continuava intacta.
Eu não sabia por onde começar.
Deveria ensinar a ela alguns truques sujos que lançariam as sementes da
dúvida na mente do noivo? Eu, por exemplo, nunca tive em boa conta uma
garota que engole. Não me entenda mal, a sensação é fantástica, e eu brilho
de gratidão na hora, mas só uma vadia faria uma coisa dessas. Não é
comportamento de uma futura esposa.
De algum modo, era evidente que eu deveria deixar sua virgindade
intacta. A coisa passou a dizer respeito ao cara. Como eu poderia feri-lo por
intermédio dela? Sexo anal? Ela continuaria virgem. Será que ela queria
mesmo perder a virgindade ou estava blefando? Depois de uma enorme
garrafa de vinho, da qual bebi a maior parte direto do gargalo, eu deveria
supostamente dormir no sofá.
Foi o que z até as quatro, quando acordei com uma ereção e me en ei
ao lado dela, encontrando apenas uma resistência mínima. Ela realmente
queria perder. Mas eu não gostava da ideia de ser um bombeiro hidráulico
sexual. Queria estar presente na noite de núpcias dela. Queria que seu
corpo se lembrasse do meu do mesmo jeito que eu me lembrava do corpo da
Penelope. Comecei a chupá-la. Por duas horas. Quando ela cava
hipersensível eu dava um tempo, depois voltava a lambê-la com toda a
delicadeza.
De vez em quando eu erguia os olhos e dizia como ela era linda. Soprei
ar frio dentro dela. Acariciei a parte interna das suas coxas e tentei
imaginar que estava apaixonado por ela enquanto me comportava como se
de fato estivesse. En ei um dedo e senti a estalactite do seu hímen. Tomei o
cuidado de não rompê-lo. Em certo momento, coloquei um dedo de cada
lado. Ela ergueu os quadris, oferecendo-me a pélvis em forma de taça.
Suguei e bebi fazendo o maior barulho, satisfeito porque sua noite de
núpcias seria a primeira de muitas noites de frustração sexual enquanto ela
tentava comunicar suas necessidades ao maridinho sem apontar a falta de
habilidade dele na cama. Isso funcionava como um incentivo para que ela
desenvolvesse seu próprio “invejável domínio da língua inglesa”.
Depois veio a Lizzie. Tinha um apartamento próprio. Belos pisos de
madeira de lei e um pé-direito alto lindo. Também tinha pelos na bunda.
Isso por si só já era um crime, mas quer saber o crime número dois? Ela
realmente gostava de mim.
Eu precisava cuidar disso rápido.
Ela havia acabado de levar um pé na bunda após um longo
relacionamento e estava muito fragilizada. Eu tinha outras duas quando
saímos pela primeira vez. Meu nervosismo a deixou mais à vontade. Ela
achou que eu estava inseguro sobre os seus sentimentos em relação a mim.
A verdade era menos encantadora.
Eu era um alcoólatra que precisava beber.
Acabei transando com ela no chão da cozinha enquanto ela preparava
alguma refeição vegetariana idiota. Na cerâmica suja, enquanto as panelas
borbulhavam simbolicamente no fogão. As janelas caram cobertas de
vapor. O rosto dela olhando para mim, incrédula, o queixo escondido
debaixo do pulôver e do sutiã puxados para cima. Olhos arregalados.
Infantis. Depois que eu a deixei lá daquele jeito, nunca mais a vi. Após um
tempo, ela deixou uma mensagem na minha secretária eletrônica dizendo
que eu a havia estuprado.
Do ponto de vista emocional, talvez a tivesse estuprado, mas sicamente
ela estava a m, sem dúvida. Tinha adorado. Eu conseguia vê-la guardando
as lembranças enquanto a comia. Seu rosto subindo e descendo enquanto
me observava, registrando as imagens como uma câmera recoberta de
carne, close no rosto dele, panorâmica para um plano aberto da ação mais
embaixo... corta.
No m das contas, talvez haja uma lei. Da natureza. Como a gravidade.
Um axioma tácito que governa as nossas relações emocionais. O que você
faz volta para você com o dobro da força — o cacete, com o triplo da força.
Não somos punidos pelos pecados que cometemos; eles é que nos punem.
No momento em que conheci a Jenny eu soube que iria machucá-la. Era
só uma questão de onde e quando. E acho que ela não teve culpa de até se
parecer um pouco com a Pen.
Foi esse fato que pareceu validar minhas ações. Depois de passar a noite
inteira fora, eu estava indo relutante na direção daquilo que, por puro
deboche, chamava de lar, quando me dei conta de que precisava beber
mais. Eu sempre precisava de mais. Até sonhava com isso. Certa noite, eu
estava bebendo uísque e, no exato momento em que o álcool descia pela
minha garganta, pensei: “Preciso de uma bebida.” Complicado.
Seja como for, um dos principais obstáculos para conseguir mais bebida
era a falta de dinheiro. E o dinheiro acabava porque eu nem sempre podia
contar com mais trabalhos como freelance de direção de arte. Eu não
pagava aluguel, pois estava explorando o conselho municipal, que pagava o
meu aluguel e a minha conta de luz. Só tinha que ir lá receber o benefício a
cada duas semanas.
As festas eram uma boa fonte, especialmente aquelas já quase acabando.
Os amadores estavam apagados no chão ou já tinham voltado para suas
caminhas.
A música. A janela muito iluminada. Eu não precisava ser um Sherlock
Holmes para descobrir que encontraria uma geladeira cheia de bebida. Todo
mundo levava alguma coisa, tentando parecer generoso. Ainda mais se
fosse em uma região de gente com grana — e nesse caso era um pouco mais
difícil, porque eu precisava estar alerta para as relações verbais
inevitavelmente intrincadas. Precisava resistir a explodir de tanta raiva que
sentia daqueles cretinos. Odiava aquelas pessoas mais que qualquer coisa.
Aquelas que recebiam tudo de bandeja, que, na minha cabeça, nunca
precisaram trabalhar, que não davam valor ao que tinham. Quando
adolescente em Deelford eu tive que colher beterrabas em campos gelados,
usando apenas meias velhas no lugar das luvas. A beterraba congelava nos
regos da plantação, e a gente precisava chutar uma a uma para tirá-las do
seu encaixe na terra dura e congelada antes de cortar os talos com a faca. A
expressão “trabalho duro” é relativa.
Então eu tocaria o interfone e falaria:
— Desculpe o atraso.
A porta se abriria e eu não conseguiria conter o sorriso ao subir as
escadas de três em três degraus. Se a porta já não estivesse aberta, logo
estaria. Eu nunca pareci um bêbado, apenas era um. Entrei. Ia direto para o
banheiro e ou vomitava para abrir espaço para mais bebida, ou
simplesmente reconhecia o terreno. Depois a geladeira. Ah, feliz retângulo
branco. Um hospital em miniatura em um mundo ferido.
O rangido musical enquanto ela se abria. O brilho vindo de dentro. Ali.
Uma garrafa cheia e ainda fechada de vinho barato junto com umas latas de
cervejas de várias marcas, desgarradas dos engradados.
De volta à sala de estar com o vinho, depois de colocá-lo em um copo de
cerveja para não aparecer segurando uma garrafa que o dono pudesse
reconhecer.
E lá estava ela. Sentada sem companhia. Sozinha em um sofá às quatro
da manhã, numa festa onde restavam apenas três pessoas de pé. E eu era
uma delas. Pernas compridas, elegante e claramente deslocada, ela me
lembrou uma foto da Vogue. Garota bonita em ambiente lamentável. A
lha rica e culta de algum membro do parlamento inglês passando
di culdades em Camberwell.
Seja como for, jurei comê-la assim que me joguei ao lado dela. Mesmo
no meu estado muito comatoso, eu sabia que chamá-la para dançar, embora
não fosse capaz de me levantar do sofá, seria uma atitude cativante. Dançar
com um copo de vinho em uma das mãos e um baseado na outra era
complicado. Antes que qualquer um dos dois se desse conta disso,
estávamos nos beijando.
Duas semanas depois ela está tacando cerveja na minha cara, e três horas
depois disso percebo o carro dela estacionado em frente à merda do meu
apartamento de subsolo. Eu estava bêbado e cambaleando na minha
bicicleta. Ela estava num Ford qualquer coisa. Assim que virei a esquina, o
carro foi ligado, deu um solavanco e parou.
O veículo parecia um inseto mecanizado cujas pernas haviam sido
arrancadas e estava sendo despertado à força para voltar a ser torturado. Eu
ri alto o su ciente para ela ouvir pelas janelas abertas, de onde saía fumaça
de cigarro.
Tentei agir como se estivesse montado em um cavalo. Ela deu a partida
de novo e foi embora com raiva. Sei que foi com raiva porque ouvi as
marchas arranhando. O que tinha causado aquela fútil demonstração de
emoção? Apenas palavras.
Mais cedo, naquela mesma noite, ela me perguntou como havia sido o
meu m de semana.
— Nada mau — respondi. — Trepei.
Chocada, ela me olhou com o mesmo sorriso inquisitivo que pertencia à
pergunta que tinha acabado de fazer.
A cerveja acertou o meu rosto com tanta força que achei que ela havia
me dado um tapa. Mas eu não tinha me limitado a responder à pergunta;
tinha dado também o Sorriso Malicioso. A Penelope sentira esse peso, e
aquela era a vez da Jenny. Ninguém nunca havia jogado cerveja na minha
cara. Eu me senti lisonjeado. Ela se levantou, arrancou o casaco do encosto
da cadeira e foi embora. Depois de lamber lentamente a bebida dos lábios,
troquei com o barman um olhar que dizia Mulheres! e voltei à minha
cerveja ainda intocada. Não por muito tempo.
Por falar em tapa e na arte do Sorriso Malicioso, já fazia muito tempo
desde a última vez que eu tinha implorado por uma surra. O Swan, no sul
de Londres, era o ambiente ideal para essa empreitada.
Bem irlandês, um ambiente bastante agressivo. Muitos, muitos
seguranças. Eles cavam de pé em banquinhos para policiar melhor os
irlandeses exilados e beberrões como eu. Eu estava em uma conversa
animada com um ruivo de Dublin. Havia muita disputa por lugar, com os
outros exilados tentando usar a Guinness para se aproximar um pouco mais
da sua amada pátria.
O lugar que o dublinense e eu ocupávamos era sagrado. Bem na frente
do balcão. Era preciso chegar lá às três da tarde para ocupar uma posição
daquelas. Eu estava ali desde uma hora. Então me viro para o sujeito e digo
com toda a sinceridade:
— Passei o dia inteiro escutando as suas merdas e estou de saco cheio.
Até aí eu nem me importaria, mas além de tudo você tinha que ser de
Dublin.
Ele na mesma hora me deu uma cabeçada tão forte que consegui ver o
sangue respingar no meu copo. E quei pensando se deveria tentar chupar o
sangue por entre os dentes para salvar os dois centímetros de cidra que
restavam no fundo. Comecei a achar importante fazer o sangue pingar ali
dentro. Por alguma razão, eu não devia deixar o local todo ensanguentado.
Em vez disso, anunciei:
— Um de nós vai deixar este bar, e não vou ser eu.
Ergui os olhos para o meu agressor, cujo rosto estampava o esgar típico
de quem tem sede de sangue.
Congela.
Vi essa expressão apenas três vezes. Essa foi a primeira. A seguinte, quando
fui derrubado da minha bicicleta pelo motociclista “contratado”, enquanto
esperava o pessoal da ambulância avaliar se eu tinha ferimentos graves.
Eu estava deitado de costas, com medo de olhar para as pernas. No piso
superior de um ônibus de dois andares que passava havia uma senhora de casaco
marrom. O ônibus teve que parar, provavelmente por causa do tumulto
generalizado. A expressão da velha megera era exatamente a mesma que o nosso
amigo de Dublin exibia naquele momento. Olhe para ele. Barba ruiva por fazer,
língua se projetando levemente por entre os lábios carnudos — igualzinho a uma
boceta. Outras cabeças bloquearam o que poderia ter sido a minha última visão
do céu, mas foi o rosto dela que predominou na minha espera pela ambulância.
Deitado lá eu ainda escutava “Accidents Will Happen”, de Elvis Costello. É
sério. Embora meu walkman estivesse todo torto, continuava ligado. Aquela vaca
velha lá em cima olhando para mim parecia estar anuindo ao ritmo dos
sentimentos do Sr. Costello. Tentei deduzir pela expressão da idosa o quanto
estava ferido. Desejei conhecê-la melhor, porque se ela fosse uma escrota
completa o menor sorriso no seu rosto signi caria que eu estava fodido e que as
minhas pernas tinham virado carne moída.
Mas, se fosse uma pessoa gentil e carinhosa que alimentava pombos e fazia
carinho nos cachorros de desconhecidos, eu estaria bem, porque seu sorriso
signi caria algo a meu favor. Decidi que era uma escrota e que eu estava fodido.
A terceira vez que vi a expressão foi quando a garota que eu amava... Espere
um minuto, toda esta merda é exatamente sobre essa terceira coisa. Vamos
chegar lá.
Descongela.
O dublinense parecia ter acabado de transar comigo. Eu havia demorado
esse tempo todo para me dar conta de que tinha levado uma cabeçada. Não
havia dor. Apenas a luz se apagando. Como se alguém estivesse girando um
daqueles interruptores com dimmer numa sala de estar.
— Não. Vamos manter a coisa limpa. Sem copo — disse ele.
Eu soube imediatamente o que o sujeito queria dizer. Ele pensou que eu
iria dar uma copada nele, ou pensou em fazer isso comigo.
Eu estava me concentrando em direcionar o estranho sangue que
pingava — e que poderia muito bem estar caindo do teto — para dentro do
copo na minha mão direita. Por algum motivo era importante não sujar o
piso do Swan.
Levar uma copada é receber um copo de vidro na cara. A boca do copo é
colocada ao redor do queixo e debaixo do nariz. Então uma força enorme é
aplicada com a base da mão no fundo do copo. O lindo rosto que paira
acima da escrita destas páginas só consegue fazer uma careta diante da ideia
do que poderia ter ocorrido naquela noite.
Então, lá estava eu, segurando meio copo do meu próprio sangue,
enquanto o sujeito queria acabar comigo da pior maneira possível.
De repente, ele foi puxado para cima como se tivesse sido sugado por um
enorme aspirador de pó. Calculando sua iminente expulsão, o dublinense
segurou minha gola e me puxou com ele. Formamos um trenzinho
cambaleante cuja locomotiva eram dois, depois três seguranças que tinham
acabado de descer dos seus bancos.
Ah... nada como beber em paz.
O dublinense queria me levar para fora para me dar uma surra mais
despreocupada, mas eu simplesmente saí do casaco e voltei para o meu lugar
e para um copo de cidra recém-tirada do barril.
Por conta da casa. No m das contas, um de nós dois realmente deixou o
bar. Um dos heroicos funcionários do lugar levou meu casaco de volta, e
dobrado. Que o Swan tenha uma vida longa e próspera.
E depois da Penny? Teve... Vejamos... Ainda não consigo me lembrar do
nome dela. Ela era, ou pelo menos dizia ser, designer. Cabelos castanhos,
cacheados e rebeldes. Reluzente. Atraente. Trinta e três anos que pareciam
trinta e oito. Velha, quando você tem vinte e nove. E, veja bem, eu me
sentia com oitenta.
— Você gosta de árvores?
Foi tudo o que eu disse. Um tempo depois ela me contou que tinha
cado fascinada com a minha pergunta. Ela sacou qual era a minha muito
mais rápido do que todas as outras. Mas não a tempo. Passei um domingo
excruciante com ela, esperando que a noite chegasse. Ela preparou o jantar.
Frango. E convidou seus dois irmãos parrudos. Depois descobri que aquilo
acontecia todo domingo. Na época achei que tinha sido por minha causa.
Nunca fui de fumar maconha. Eu era de beber, entende? Mas naquele dia
eu estava quebrado, então fumeeeei o máximo que consegui daquela merda.
Só serviu para elevar a minha já conhecida paranoia a proporções
internacionais. Achei que os irmãos dela iam comer minha bunda como
sobremesa e depois me espancar até a morte com seus punhos brancos.
Eu estava doidão. Quando nalmente apareceu, o frango parecia um
animal selvagem abatido havia tempo demais na savana. Cacete, que susto
eu levei. Na minha cabeça chapada, o bicho ainda respirava. Uma carcaça
furiosa e vingativa. Para o meu enorme alívio, alguém tinha levado uma
garrafa de vinho tinto. Tive que resistir para não me lançar sobre a mesa e
beber tudo no gargalo. Tomei uma taça.
E ela teve a audácia de me dar indiretas sobre o quanto eu bebia. Isso
vindo de uma maconheira? E ainda tive que esperar aquela coisa patética
entre irmãos acabar para poder me en ar no seu quarto e depois na sua
calcinha.
O medo e a paranoia que eu precisei suportar naquele dia alimentaram
cada impulso pélvico que se seguiu. Um punhal alargando um ferimento já
existente. Nada mais do que uma ação necessária para eu poder machucá-la
depois.
Na manhã seguinte, grato por não estar de ressaca, fui embora
razoavelmente revigorado. Até peguei um pedaço de frango na saída.
Nunca mais a vi.
Depois?
A Catherine tinha acabado de terminar com o namorado que morava
com ela. Ela tinha uma lha pequena. Minha expectativa era me superar.
Ela tivera alguns problemas. Problemas emocionais. Falou-se em tentativa
de suicídio. Fiquei de orelhas em pé. Ouvi: “Me mate.” Se eu machucar essa
mulher o su ciente, talvez a empurre para a fronteira do suicídio. Eu a
estaria ajudando a fazer o que realmente queria, e seria um belo teste para
os meus poderes.
Fiquei empolgado só de pensar que poderia causar uma morte por tabela.
Mas ela se mostrou ou forte ou idiota demais, ou ambas as coisas, ou sabe-se
lá o quê. No entanto, aprendi com ela a técnica que mais tarde salvaria
minha própria vida.
Detesto ser tão dramático, mas acho que era este o nível em que estavam
as apostas: alto. A dor de um coração partido de forma premeditada poderia
ser facilmente comparada com um caso de agressão, mas nenhum tribunal
consideraria isso um crime. Um braço quebrado se cura.
Ela cou caída por mim rapidamente, e eu estava com pressa de chegar à
parte boa. Assim que eu soube que a havia sgado, comecei uma lenta
tortura. Fui me tornando cada vez menos disponível até bani-la para as
regiões mais gélidas da minha ausência. Fiquei na expectativa de receber a
notícia de que ela havia acabado com a própria vida. Eu já me imaginava
bonito no funeral. Ou, ainda melhor, enterrando meu pau em outra pessoa
enquanto ela era enterrada na cova.
Não consigo nem descrever como me senti insultado quando ela
telefonou e me perguntou alegremente como eu estava. Não consegui
acreditar. Ela deveria estar em uma cadeira de rodas. Debilitada pela dor.
Usando óculos escuros impenetráveis e agarrando um cacho reluzente da
minha cabeleira louro-acinzentada antes de cinicamente desistir da própria
vida.
Não.
Ela continuou telefonando e perguntando sobre o meu bem-estar, o que
só fez aumentar meu mal-estar. Aquela era a forma de me vencer, eu tinha
que admitir. Eu não conseguia aceitar a indiferença dela, mas era isso que
eu recebia. Em retrospecto, acho que ela só queria mostrar como estava
lidando bem com aquilo. Senão, por que telefonar? Na verdade, você pode
perguntar: por que escrever tudo isto? Quem se importa? Todos temos água
barrenta como essa correndo sob nossas pontes, certo?
Sem dúvida, mas há uma represa à frente.
Em minha defesa, eu poderia falar sobre como um irmão da De La Salle
abusou de mim quando eu tinha nove anos. Como sentira toda a leira de
carteiras sacudindo enquanto ele brincava com o seu aluno prodígio no
fundo da sala. Como tive que prender um al nete na braguilha das minhas
calças curtas para impedir o fervor religioso desse jovem irmão. Em vez de
tentar abri-las, ele passou a subir a mão pela perna, motivo pelo qual
supliquei à minha mãe que me deixasse usar calças compridas. Ela disse que
eu ainda não tinha idade para isso, e além do mais estávamos no verão, e o
irmão Ollie só estava sendo amigável. Não era um abuso sério.
Quer dizer, ele nunca comeu minha bunda.
Tempos depois, o irmão Ollie foi processado por seu crime, e de certa
forma eu também fui pelo meu.
E, se você gostou dessa história, aí vai outra.
Meu pai estava se barbeando. Era uma manhã fria em Deelford. A
lâmpada estava ligada acima do espelho do banheiro, então devia ser época
de inverno. Ele parecia raspar uma barbona de personagem de desenho
animado. Eu queria atenção, por isso disse algo como “Se você não blá-blá-
blá não me lembro, eu nunca mais falo com você”. Então, lentamente,
muito lentamente, ele se inclinou na minha direção de um jeito incisivo. O
rosto coberto de espuma foi cando cada vez maior ao se aproximar do meu.
E de baixo daquela máscara cômica vieram as três palavrinhas que
signi caram tanto:
— Eu não ligo.
Mesmo agora sinto que deveria colocar essa frase em letras maiúsculas,
pois esse foi o efeito que ela teve sobre mim. Ele falou bem baixinho. Como
se quisesse garantir que a mensagem era só para mim. Ou vai ver estava
com medo de a minha mãe ouvir. Não tinha por que ter medo disso.
Uma espécie de terremoto me abalou por dentro. Um desmoronar
apavorado. Vou me lembrar disso para sempre. Foi o momento em que eu
soube que precisaria enfrentar essa coisa sozinho. Essa coisa que era a vida.
Portas se fecharam. Como nos faroestes, quando o bandido sai para a rua e
todos os moradores da cidade batem as portas uma após a outra em uma
cena panorâmica.
Até então meu pai era meu único amigo. Minha mãe nem sequer parecia
notar que eu estava por perto, e para meus dois irmãos e minha irmã eu não
passava de um aborrecimento que precisava de cuidados o tempo todo. Até
ali, o papai havia sido o único a demonstrar algum afeto por mim. Talvez
como forma de compensação.
Não quero que você manche minhas páginas recém-publicadas com
gotinhas salgadas caídas dos seus olhos, então vou encerrar este assunto
agora. Mas vou lhe dizer uma coisa: sementes foram lançadas.
Talvez isso tenha relação com outra coisa que aconteceu depois. Talvez
não. Talvez eu esteja emulando a única relação baseada em con ança que
tive na vida e, depois, rompendo-a abruptamente.
Faça o que quiser com essa informação.
Convidei a Catherine e algumas das outras para minha festa de
aniversário de trinta anos, que aconteceria no quintal dos fundos do meu
prédio. A ideia era criar uma espécie de lasanha de dor. Todas as minhas ex-
namoradas iriam se reunir em um só local. A merda do meu quintal.
Aquelas personalidades distintas, unidas pelo sofrimento que eu lhes havia
causado, nalmente compreenderiam a mente demoníaca que então
controlava o futuro delas. Algo assim.
Foi um horror. Eu estava bêbado demais para cumprimentar qualquer
uma delas. Na verdade, esse requinte era secundário quando tudo o que eu
queria era jogar conchas cheias de ponche no meu rosto já molhado pelas
lágrimas. Em dado momento, abandonei a concha e bebi direto da tigela.
Imagino que alguém tenha machucado alguém em algum momento da
noite, porque nunca mais ouvi falar de nenhuma delas... A não ser a
Catherine, que telefonou apenas para perguntar se eu estava bem. Meu
Deus.
Vamos simplesmente abafar essa história. Mas quei irritado. Era como
acordar ao lado de uma garota linda e não conseguir lembrar como foi o
sexo. A propósito, estou contando tudo isso porque em algum lugar deste
mundo essas garotas estão seguindo com a vida, e quero que elas saibam o
que aconteceu comigo. Que, embora esteja circulando livre pelo mundo,
provei do meu próprio veneno. E nem importa que elas nunca leiam estas
páginas. Só estou tentando ser honesto comigo mesmo. Como se fosse um
bilhete de cento e sessenta páginas para mim. Não estou querendo
solidariedade. Estou muito mais interessado em igualdade.
Aquela que jogou cerveja na minha cara me telefonou seis meses depois,
ainda soluçando. Foi grati cante. E a Catherine continuou ligando para
perguntar como eu estava. Enfurecedor, mas claro que eu não iria deixá-la
saber disso, pois signi caria que ela estava vencendo. Talvez agora você
esteja começando a compreender como o jogo todo era fútil. E continuou
assim por um tempo, até eu simplesmente não conseguir mais sustentar a
encenação. Em suma, perdi a trama.
Mas espere um pouquinho, porque eu prometi que iria contar sobre a
única vez que bati em uma garota. Muito tempo atrás, antes de todas essas
outras coisas, eu estava no Mascot Bar, em Deelford. Tinha saído com um
suposto amigo, Lenehan. Estava bêbado, assim como ele, assim como a
maioria da cidade em uma noite de sexta-feira. O bar estava lotado e
tivemos que atravessar a multidão. Lenehan estava à minha frente, abrindo
a trilha. Uma garota atraente se virou e me deu um tapa no rosto com toda
a força. Antes mesmo de saber o que estava acontecendo, dei um soco nela.
Bom, eu não sei sobre você, seu herege cretino, mas na Irlanda a gente
não tolera esse tipo de comportamento. Esperei na saída do pub pela surra
que sabia estar prestes a receber. Não importavam os atenuantes.
Eu tinha batido em uma garota.
A notícia se espalhou pela massa embriagada, e não demorou para que
cinco caras que eu conhecia bastante bem saíssem e, depois de pedirem
muitas desculpas enquanto torciam as mãos, começassem a me encher de
socos e chutes.
Mas não havia sentimento envolvido naquilo. Eles só parariam quando
vissem sangue, e nenhum sangue se daria o trabalho de correr para aqueles
amadores.
Agachado ali, eu me esforcei ao máximo para insultá-los. Mas minhas
provocações mais con áveis não surtiram efeito, até que eu os acusei de ter
parentes na Grã-Bretanha.
Tudo acabou em questão de segundos.
Lembro-me de apertar a mão deles. Um se recusou por ainda estar
chateado pelo que eu dissera. Deixei o sangue que escorria da minha
sobrancelha seguir seu rumo sem ser limpo, um anúncio de que a justiça
havia sido feita. Mas, para começo de conversa, por que a garota me deu um
tapa? Lenehan tinha colocado a mão por baixo da saia dela, e ela achou que
tinha sido eu.
Então procurei os Alcoólicos Anônimos. E aos poucos melhorei. Oito
anos depois, ainda vou a reuniões. Espero continuar indo para sempre. E me
mantive longe das temíveis Fêmeas pelos cinco anos seguintes.
Cinco e meio, na verdade. E minha carreira decolou. Para valer.
Consegui um emprego em uma agência de publicidade renomada em
Londres e ganhei prêmios pelo trabalho que eu e meu parceiro de criação
realizamos. Houve um momento em que camos bem famosos. Meu nome
ainda é conhecido. Eu ia às reuniões do AA de noite e trabalhava o mais
duro possível durante o dia. Acho que eu era bom, porque a verdade é que
nunca senti di culdade para ter ideias.
Era o medonho mundo da polidez empresarial que eu achava tão
cansativo. E mal sabia que o mundo empresarial londrino era praticamente
uma anarquia completa, se comparado com o equivalente americano.
Depois de um tempo, me desiludi com meu parceiro de criação em
Londres porque sentia que ele não estava se esforçando tanto. Eu me
achava o talentoso da dupla e estava de saco cheio de trabalhar com ele.
Nós nos encarávamos por cima da escrivaninha já havia quatro anos, e eu
tinha resistido a pular por cima do móvel e enterrar os polegares na sua
laringe pela última vez.
Terminamos de modo amigável. De verdade. Ele arranjou outro parceiro
na mesma agência. Eu fui abordado por uma headhunter para me transferir
para uma agência ótima nos Estados Unidos com sede em Saint Lacroix.
Assim que ela disse o nome da empresa eu soube que era a coisa certa a
fazer. Eu tinha marcado duas semanas de férias na França com alguns
amigos do AA, então disse que conversaríamos quando eu voltasse. Ela
queria muito que eu ligasse para o cara da França. Então foi o que z.
O diretor de criação da Killallon Fitzpatrick estava em Londres por
alguns dias, fazendo entrevistas.
A conversa que deu o pontapé inicial para os acontecimentos dos três
anos seguintes aconteceu no corredor barulhento de uma velha fazenda
francesa na Dordonha, com cachorros latindo e o vento mistral sacudindo
as janelas. Eu não tinha ideia da aparência dele, mas sua voz soava
hilariamente americana. Como se um dos meus amigos tivesse ligado para
me sacanear.
Fui envolvido pelo cheiro de comida sendo preparada, e isso deve ter
feito com que eu me sentisse mais à vontade do que tinha direito, porque
me vendi para aquele americano como o equivalente irlandês do Jimmy
Stewart, só que com metade da altura e do talento. Era o que ele queria
ouvir. O sujeito praticamente se apaixonou por mim.
Ele se desculpou por Saint Lacroix, em Minnesota, me alertando que a
cidade não era nada comparada a Londres ou Los Angeles. Disse que era
“bem fria” no inverno, mas não tão ruim quanto as pessoas diziam. Lá dava
para comprar uma casa perto do lago por uma ninharia.
Ele achava que eu tinha o tipo de idade certa para o trabalho. Eu estava
com trinta e quatro. Havia um monte de moças lindas na agência. Ele
pareceu seguro de que eu seria popular. Um garanhão. Mas na época eu era
maduro para isso. Claro que eu adorava Londres, mas estava entediado.
Tinha ganhado os prêmios, feito sucesso. Era hora de algo novo.
Eu disse que não me importava com o frio, porque tudo o que eu fazia era
trabalhar. Eles tinham aquecimento, não tinham?
Pedi desculpas por não fumar nem beber, sabendo que ele caria
empolgado, já que os americanos se mostravam apreensivos com a fama de
beberrões dos pro ssionais de criação britânicos. Isso não caía bem nas
empresas americanas.
Além disso, informei que estava naquela idade em que pensava em me
casar. Em seguida, houve um longo momento de silêncio, que só podia ser
explicado de forma satisfatória por ele estar socando o ar em triunfo e
depois ajeitando as roupas antes de continuar. Quando falou outra vez,
parecia alguém que eu conhecia havia anos, parando de usar verbos na
condicional e passando a falar no tempo futuro.
Meu futuro.
A headhunter telefonou na segunda-feira.
— Graham adorou você — disse ela, e depois começou a usar palavras
como “visto” e “demissão”, as quais ouvi satisfeito.
Tudo isso aconteceu com meu redator sentado bem à minha frente. Tive
que esticar a cabeça, incluindo o o do telefone, para fora da janela para
conseguir privacidade.
Não demorou para eu pedir demissão e me ver sentado no meu
apartamento em Londres esperando as aprovações do visto de trabalho.
Fiquei no apartamento como freelance até tudo se tornar o cial.
No entanto, como eu precisava esvaziar o imóvel para poder alugá-lo,
me mudei para um hotel no Hyde Park. Eu me vi a quinze minutos do meu
próprio apartamento, onde dois estranhos estavam morando, com a tinta
ainda úmida em um contrato de aluguel de seis meses, e sem qualquer sinal
do visto de trabalho nos Estados Unidos. Essa inde nição se tornaria a
norma pelos cinco anos seguintes.
Se eu soubesse o que estava prestes a acontecer, teria parado tudo e ido
morar com a minha mãe. Mas, graças ao AA, eu também acabara de assinar
um contrato para uma nova vida e estava determinado a usá-la. A nal, qual
era o sentido de car sóbrio e não fazer nada com isso? E eu precisava
pensar nos recém-chegados. Um cretino maluco como eu indo para os
Estados Unidos para ter uma nova carreira dava esperança aos novos
membros do AA. Pelo menos foi o que o meu padrinho disse.
Eu me senti completamente em casa em Deelford por uns dias antes de
viajar para os Estados Unidos. Meus pais estavam animados por mim, mas
tristes por eles mesmos. Desde que eu havia parado de beber, eles realmente
gostavam de me ter por perto. Comprei para eles um ditafone e os
convenci, e convenci a mim mesmo, de que trocaríamos mensagens
gravadas que cruzariam o Atlântico.
Nunca aconteceu.
Meu pai teve um ataque horrível de tosse carregada quando estava me
levando de carro à estação ferroviária. Fazia um mês que eu estava no meu
novo emprego, no meu novo país, na minha nova cidade, na minha nova
casa, quando minha mãe me telefonou e me fez a pergunta mais ridícula:
— Você está sentado?
Soube de cara que meu pai tinha morrido. Mas não. Minha mãe contou
que ele estava muito mal e que eu deveria me preparar para voltar a
qualquer momento. Meus novos chefes foram muito compreensivos e até
me ajudaram a reservar um voo. Você consegue comprar uma passagem com
desconto se puder provar que tem um parente com uma doença grave. Basta
dar a eles o telefone do hospital. Então, peguei o voo de volta e até hoje me
sinto culpado por ter torcido para o meu pai morrer na semana que eu havia
reservado para o meu período em casa.
Sempre um cavalheiro, ele atendeu ao meu pedido. Estava morto e
enterrado com um dia de sobra, e, para minha vergonha, voltei ao trabalho
na segunda seguinte. Bem, eu estava sob pressão, não estava? Precisava
impressionar o meu novo chefe e os meus antigos empregadores em
Londres. Queria mostrar a eles que tinham cometido um grande erro ao não
me tratarem melhor. Mas a verdade é que nem tinham me tratado tão mal.
Só me parecia conveniente não gostar deles. A verdade é que eu precisava
ir embora de Londres porque odiava meu parceiro de criação.
Obsessivamente.
Eu me lembro de um dia estar de pé com uma daquelas réguas grandes e
compridas com bordas chanfradas que servem de apoio para cortar papelão
É
com um estilete. É basicamente uma espada cega. Ele estava de pé à minha
esquerda. De repente, me senti fraco. Não caí nem nada assim. Só apaguei
por alguns segundos. Vi uma espécie de névoa amarelada.
Quando voltei a mim, morri de medo de olhar para baixo e vê-lo caído
no chão com um talho na cabeça. Foi no dia em que coloquei a cabeça para
fora da janela e liguei para os headhunters. Eu tinha medo do que poderia
fazer caso continuasse trabalhando com ele. E era melhor sair do país do
que me preocupar com a possibilidade de encontrá-lo nas ruas
desagradáveis de Londres. Ou talvez eu apenas precisasse de uma mudança.
Recém-chegado ao meu novo país, à minha nova cidade, eu não estava
interessado em garotas. Nem um pouco. Quando penso nas chances que
perdi, tenho vontade de chorar. No Meio-Oeste americano, um estrangeiro
como eu realmente se destaca. Bem, eu até chamei uma garota espetacular
para sair, mas ela disse que estava namorando sério, então pensei: “Que se
foda. Se eu não posso ter o melhor, não vou brincar.” A outra coisa, claro,
era que eu não queria car preso ali com dois lhos e um cachorro. Assim
que cheguei, soube que precisaria ir embora.
Achei que um ano bastaria. Estava errado. Comprei uma casa, mas só
para convencê-los de que estava comprometido. Era fácil vender uma casa
em um mercado aquecido. E, se eu zesse tudo certo, ganharia algum
dinheiro com aquela porra... Além disso, quando eu seria capaz de ter uma
casa vitoriana com piso de madeira de lei e um balanço bonitinho na
varanda como a casa dos Waltons? Para me ajudar a comprá-la, a agência
falou com o banco.
A casa foi ótima por mais ou menos um mês.
Nesse meio-tempo, comecei a conhecer a fundo os aeroportos. Pegar um
avião nos Estados Unidos é como pegar um ônibus na Inglaterra. Você
entra num avião para ir a uma reunião. Especialmente se está sediado em
Saint Lacroix, Minnesota. O primeiro trabalho que me deram foi um
projeto enorme de supervisão dos comerciais da empresa automobilística
BNV ligados ao lme de Shane Pond O amanhã sempre vive.
O novo modelo deles, o 9T, aparecia no lme, bem como a nova
motocicleta, a T2600 Surfer. Eles queriam três comerciais e três anúncios
impressos apresentando essa tão atrativa associação de imagens.
Foi um saco. Eu tive que apresentar o carro em destaque e colocar cenas
do lme. Uma tarefa muito difícil. É muito difícil ter uma ideia clara e
limpa tendo que incluir todos esses elementos distintos. E, além disso,
precisávamos lidar com três clientes: a BNV North America, a BNV
Germany e a DGR Pictures. Foram necessários quase nove meses e três
vezes esse número em voos para concluir aquela porcaria.
No meu escritório, no vigésimo sétimo andar de um sinistro arranha-céu
cinzento, com vista para a planície do Meio-Oeste que se estendia por
centenas de quilômetros em todas as direções, eu poderia muito bem estar
na lua.
Aquilo me lembrava uma série de cção cientí ca da BBC chamada
Espaço: 1999. Havia muitas semelhanças. Os interiores da base lunar eram
todos em linhas retas e recobertos de aparelhos de alta tecnologia, e as
vistas das janelas eram estéreis e vazias. Os habitantes da base tinham sido
selecionados a dedo, eram altamente civilizados e, acima de tudo,
disciplinados. Isto era importante na Killallon Fitzpatrick: a capacidade de
sorrir ao se sentir intimidado. Eles adoravam isso. Gostavam que você
sofresse calado.
E eu quei muito bom nisso. Estava sóbrio havia cinco anos. Era para
aquilo que eu havia parado de beber. Aquele era o tipo de coisa que eu
nunca teria sido capaz de realizar. Quer dizer, no papel era ótimo. Casa.
Emprego. Dinheiro. Mudança para os Estados Unidos. Na época em que eu
bebia, não havia a menor chance de alguém me oferecer esse tipo de
situação. E eu me parabenizei por não ter caído na armadilha de arranjar
uma namorada, porque nunca teria conseguido ir embora caso tivesse
arranjado. Eu estava decidido a resistir a qualquer avanço de qualquer
garota de qualquer lugar do Meio-Oeste. Eu não era idiota. Não iria me
permitir car preso pelo resto da vida com uma esposa espetacular e lhos
louros enquanto a Killallon Fitzpatrick aumentava a temperatura
lentamente até eu rachar como gelo na primavera.
Ingressei nos grupos locais do AA, o que foi ótimo. Comecei a me sentir
melhor. Saint Lacroix é a capital da reabilitação. Eles têm mais centros do
que em qualquer outro lugar nos Estados Unidos. Essa foi uma das primeiras
razões pelas quais me senti tão reconfortado em me mudar para lá. Menos
reconfortante foi a minha descoberta de que, ao lado do maior desses
centros de tratamento, há um bar. Dentro desse bar tem uma placa. Ela diz:
“Trocamos chas do AA.” Para cada ano que passa sóbrio, você recebe uma
cha metálica. O bar oferece bebidas de graça por uma noite para qualquer
membro desgarrado do AA disposto a gastar sua cha. A parede atrás do
balcão está coberta de chas.
Desde que não bebesse e não começasse um relacionamento, eu seria
capaz de voltar a Londres, retomar a vida e ver tudo aquilo como um
interessante período de falta de concentração. Seja como for, eu estava
olhando pela minha janela após ter sido levado para lá e receber um bom
salário — eu faturava trezentos mil dólares por ano. Meu ego havia sido
in ado e acariciado a ponto de ejacular, meus móveis preferidos tinham
sido cuidadosamente embalados e enviados, minha mãe recebera uma
enorme quantidade de ores pela perda do marido, meu pai. A expectativa
não dita e não escrita pairava sobre mim: Certo, gurão, vamos lá.
Foi muito assustador, mas eu não me importava, porque estava em uma
boa situação: se zesse merda, não tinha importância; estava em um país
estrangeiro. Se me saísse bem, signi caria apenas que a con ança deles era
justi cada. E claro que eu iria garantir que “o pessoal em Londres, na
Inglaterra” soubesse de tudo.
Então eu voltava para o meu casarão vitoriano à noite, depois da reunião
no AA, e gostava do fato de quase não ter mobília. Achava interessante
morar em uma casa com poucas coisas. A falta de objetos me lembrava a
capa de um álbum do Deep Purple que tinha fotos de uma enorme casa de
campo na França com equipamento de gravação, os e uns caras maneiros
espalhados pela imagem. Era esse o efeito que eu buscava alcançar ali.
No entanto, ninguém mais apreciou a ironia de uma casa quase vazia de
um irlandês de cabeça raspada que parecia não ser responsável o bastante
para ter conseguido uma hipoteca. Isso me divertia. Não teria parecido
estranho se alguém abrisse minha porta com um chute e dissesse: “Houve
um engano. Vá embora.” Eu partiria quieto, porque realmente achava que
não merecia uma sorte daquelas.
Isso estava relacionado a sentimentos de culpa e vergonha pelo que eu
tinha feito às pessoas no período em que bebia. Essa necessidade de
machucar havia diminuído quando parei de beber. Talvez tenha sido
substituída por uma necessidade de machucar a mim mesmo.
Meus vizinhos tentaram me dar as boas-vindas, mas não compreendiam
que eu nunca poderia ser visto com eles voluntariamente. Tudo bem
alguém bater à minha porta ou me convidar para uma cerveja, que logo se
transformava em uma Coca. Era possível fazer a ironia brotar nessas
condições. Tudo isso funcionou bem até eu ser forçado a pedir um cortador
de grama emprestado.
Os gramados americanos são carregados de signi cados sociais e
políticos. Existe uma lei dizendo que você tem que cuidar do seu gramado
— caso contrário seus vizinhos podem obrigá-lo a isso. Eu não fazia ideia
dessa lei e imediatamente me deleitei com a possibilidade de deixar o meu
jardim da frente e o meu quintal retornarem à natureza. Uma batida
educada à minha porta da frente mudou tudo isso.
A batida educada é responsável por muitos problemas deste mundo. Ali
estava ele, testa franzida, mão no coração, folheto na outra. A
personi cação do estado de Minnesota.
— Dia.
— Ah, oi — cumprimentei, ngindo surpresa após ver aquele gordo
invasor desgraçado na minha porta da frente.
— Eu estava notano como você está teno problemas para cuidar do seu
gramado, e, bem, acho que você poderia achar este folheto interessante.
A pronúncia preguiçosa de palavras como “notando” é um código para
informalidade. Dizer notano em vez de notando é o jeito deles de anunciar
que são apenas pessoas comuns.
— Ah, muito obrigado, é realmente muito gentil da sua parte — disse
eu, empregando os dez anos de anglicismo estocados para momentos como
esse.
Mas com toda a humildade.
O cortador de grama que peguei emprestado com outro vizinho estava
com o tanque de gasolina cheio, e até eu sabia que teria que devolvê-lo
cheio. Essa tarefa implicaria uma conversa com um frentista de posto de
gasolina.
— Você não é daqui, né?
Toda vez.
Eu mudava meu sotaque. Amenizava um pouco. Conseguia ngir que era
de Nova York ou de Los Angeles. Pelo menos eles não achavam que tinham
sgado um peixe grande.
Se você dizia que era irlandês, mas de Londres, era como se eles tivessem
realizado um tipo de felação tão bizarro que seus olhos cavam vidrados e
um leve sorriso de felicidade curvava suas bocas momentaneamente
silenciosas.
E então começavam os agradecimentos. Eu representava todos os
cartões-postais, lmes ou boatos que já haviam se originado na Europa. E
todos sabem que embaixadores precisam ser diplomáticos. Eu simplesmente
pegava o que estava tentando comprar e ia embora. Tinha ódio deles. Me
desculpem, mas tinha ódio, cacete. Quando retornei à Irlanda para passar a
época de m de ano, não conseguia sequer olhar para um letreiro do
McDonald’s sem querer cuspir. Agora estou bem porque moro em Nova
York. Muito obrigado, meu Deus, por Nova York.
Mas o Meio-Oeste é outra parada.
Meu chefe costumava apontar para garotas que haviam acabado de
entrar na empresa e sussurrar: “Ela é solteira.” Eu não conseguia acreditar.
Ele me estimulava ativamente a sair com mulheres da agência. A teoria,
claro, era que, se eu me casasse com alguém da empresa, então a empresa
viveria para sempre. E eu poderia até ter lhos.
Ou então ele dizia:
— Você vem de ônibus, não é?
— Isso.
— Conheci minha esposa no ônibus.
Puta merda.
Ele era um sujeito decente. Acho que não fazia isso por cinismo.
Simplesmente parecia ter comprado o pacote completo. A publicidade é
falsa. Quando você sabe disso, tem uma chance. Mas ele acreditava nesse
chavão. A mulher/a casa/os lhos/o cachorro. Acho que ele era bom no que
fazia e um grande chefe; só não descon ava o su ciente.
É claro que tenho consciência de que, ao ler isto, você pode concluir que
eu mesmo causei qualquer infelicidade que tenha vivenciado. Que o fato de
eu descon ar das boas intenções do meu chefe fosse o problema em si. Mas
é isso que faço. Eu descon o. Para mim o difícil são as outras coisas. Por
exemplo, con ar nelas. Um conceito estranho. Pergunte a qualquer uma
dos bilhões de garotas com quem não saí.
Portanto, o chefe tinha os motivos dele e eu tinha os meus. Eu só queria
ter um ano de Killallon Fitzpatrick no currículo. Era isso. Um ano. Estava
em pânico após três meses. Se não tivesse acabado de me mudar para a casa,
teria ido embora imediatamente. Então, acho que a coisa veio para o bem.
Seja como for, demorei quase dois anos para ir embora, mas não é sobre
isso que quero falar. Menciono tudo isso sobre a publicidade para
contextualizar o resto da minha história. Meu verdadeiro objetivo é contar
como me redimi dos meus pecados contra as mulheres e, de fato, contra
mim mesmo. Dizem que não somos punidos pelos pecados que cometemos,
eles é que nos punem.
Além do mais, sou completamente paranoico. Quer dizer, seriamente
paranoico. Não sou apenas um pouco interessado no fato de que talvez haja
muita gente que não necessariamente quer o melhor para mim. Não. A
palavra é “paranoico”. Outra palavra é “egocêntrico”. Mas dessa eu não
gosto tanto. Não se parece o su ciente com um termo médico.
É importante mencionar a paranoia porque essa condição às vezes
alimenta meu raciocínio louco. Como quando achei que a Pen estava
pagando pessoas para me seguirem. Por que ela estaria fazendo isso não era
bem claro. Minha paranoia só me apresenta cenários amplos. É preguiçosa
demais para entrar em detalhes. Eu acreditava que as pessoas, pessoas
comuns na rua, estavam trabalhando para ela e tinham como missão me
desestruturar psicologicamente. Sempre que eu saía do meu apartamento de
subsolo em Camberwell, uma senhora ou um homem com a lha se
transformavam em inimigos que eu precisava evitar.
Eu adotava uma expressão facial que, na minha pobre e confusa cabeça,
transmitia a seguinte mensagem: “Eu sei quem vocês todos são. Vou passar a
impressão de que não sei só para podermos continuar com esta farsa, mas na
verdade sei quem são. Por isso, não forcem a barra.”
Talvez você se pergunte como era essa expressão. Vou dizer. Raiva
arrogante. Um rosnado com um leve sorriso — imperceptível mas presente.
Era um eu sei que vocês sabem que eu sei se estendendo ao in nito. Claro
que o fato de lhe contar tudo isso abala um pouco a minha credibilidade
com relação ao que vem a seguir, mas a minha única obrigação aqui é
relatar o que aconteceu.
Esta é a minha terapia. Sou perturbado demais para ir a um psicólogo e,
para ser sincero, nem con aria nele, não é? Quer dizer, não é como se a
minha paranoia fosse se desligar durante uma hora por semana. E já tenho
muito com o que lidar, precisando ser um gênio durante o dia e um membro
in uente do AA à noite. Ouvi alguém dizer que, escrevendo, é possível
expurgar a doença de si mesmo. E, quem sabe, talvez alguém se bene cie
com isto aqui.
Seja como for, como eu disse, agora moro em Nova York. Sou muito
mais feliz e, embora o modo como vim parar aqui não tenha sido
exatamente elegante, estou amando a cidade. E é impressionante para mim
que isso aconteça. Nunca cheguei tão perto do suicídio quanto nos dois
primeiros meses que passei em Manhattan. Foi engraçado como isso me
ocorreu. A ideia de me matar.
Apenas uma semana havia se passado desde que Aisling me rejeitara no
Georgina’s, e de algum modo durante esse período eu tinha conseguido
fazer uma personi cação bem decente de mim mesmo. Você pensaria que
deveria ter sido mais fácil, considerando que tenho sido meu próprio
substituto há anos.
Fazer pausas para sair e chorar me ajudou.
Certo dia, eu me vi olhando pela janela do décimo quinto andar da lial
nova-iorquina da mesma agência para a qual trabalhava em Saint Lacroix.
Era por volta do m de março e o tempo estava bem úmido. Não tão ruim
quanto ca em julho, mas, ainda assim, úmido, só que no m das contas era
muito pior, pois eles não ligam o ar-condicionado até a chegada do verão.
Então, lá estava eu, lutando para respirar — um sopro de vento, uma
brisa misericordiosa —, quando olhei para o cimento lá embaixo. Era nos
fundos do prédio, então eu estava olhando para aquelas esquisitas saídas de
ar com ventilador que estão por todo lado em Nova York. Ninguém sabe
que porras são aquelas. Mas no centro havia uma pequena clareira
retangular de concreto riscado. Me ocorreu suavemente. Suavemente,
agora. Não como um corte seco maluco em uma cena de lme que faz você
piscar.
Com calma, eu me vi deitado como se estivesse na fase REM do sono,
emoldurado à perfeição naquela área retangular. Perna esquerda dobrada,
perna direita esticada, braço esquerdo dobrado com a palma da mão para
baixo. Braço direito esticado ao lado do corpo. A cabeça de lado sobre a
mão esquerda, como se estivesse dormindo em um travesseiro. Logo acima
da minha cabeça, debaixo da mão esquerda, parecia haver uma área
vermelha abstrata muito elegantemente composta. Como uma grande or
bidimensional na qual a minha cabeça repousava. Repousava. Eu parecia
em paz. Além da dor.
Eu sentia muita dor, sabe? Mas ela havia sido causada por uma lâmina
abstrata. O que quero dizer é: a dor era física, a causa não. Acho que alguns
diriam que eu estava sofrendo de um coração partido. Ou que simplesmente
são coisas da vida. Ou talvez que isso é alcoolismo sem o álcool. A nal, na
época eu estava sóbrio havia cinco anos.
Verdade, só que havia algo mais acontecendo. E como eu sei? Não sei.
Simplesmente me recuso a crer que o meu estado emocional pudesse ser
explicado com um termo tão adolescente quanto “coração partido”. Quero
estar errado, mas não sei como alguém um dia será capaz de provar isso,
então me sinto bem seguro. Essa é outra coisa que você vai aprender sobre
mim à medida que avançamos. Não gosto de correr riscos. Só vou lhe
oferecer a possibilidade de que eu esteja errado se eu estiver seguro de que
estou certo.
Isso faz com que eu pareça mais humilde.
Por exemplo, se acho que algo em que pensei é engraçado, njo que foi
outra pessoa quem me disse para conseguir uma reação não tendenciosa do
indivíduo a quem estou contando. Se a pessoa ri, eu me parabenizo por ter
dito algo engraçado, realmente engraçado, pois consegui arrancar risadas do
meu conhecido sem ter a sensação de que caria magoado caso ele não
tivesse achado engraçado.
Onde eu estava mesmo? Suicídio. Bom, o suicídio chega como um velho
amigo. Eu tinha acabado de me mudar de Minnesota para car com a
garota que amava, mas essa garota não existia. Não conseguia encontrá-la
em lugar algum. Eu podia vê-la sempre que queria. Era capaz de falar com
ela de dia ou de noite. Ela cava muito feliz de ser minha amiga. O
rebaixamento-mor. A palavra “amigo” soava como eunuco na minha mente
febril. Eu podia vê-la, mas apenas na posição de um não homem.
Tortura re nada.
E aquilo era tão gostoso.
Eu tinha uma carga enorme de um trabalho assustador para fazer. Pessoas
a impressionar. Apartamentos para ver, ideias por criar. Tinha uma forte
sensação de que o mundo e seus habitantes estavam tentando não gargalhar
na minha cara. Que fariam isso depois, quando eu não estivesse olhando. A
ideia me ocorreu: “Você podia dar uma descansada.” Eu me senti
concordando com esse pensamento. E então tudo terminaria. Não haveria
mais dor. Ar fresco durante a queda.
Fazia sentido. Especialmente o ar fresco durante a queda. Esse fator me
atraiu muito. Mas alguma coisa se adiantou e disse não. Depois disso, acho
que quei meio dormente por mais ou menos um mês, mas aquela fotogra a
em que apareço emoldurado em um colchão cinza vai permanecer comigo
para sempre. Minha polaroide paranoica. Esse é um retrato no qual minha
paranoia realmente trabalhou.
Então, vamos ver, avançamos demais. Voltemos um pouco. Certo, estou
em Saint Lacroix, e é por volta de agosto. Meu pai morreu e mora debaixo
da terra na periferia de Deelford, no canto de um cemitério de igreja, perto
do pai dele. Estranho pensar nisso. Eu estava vivo e bem, esperando o que
todo mundo esperava em Saint Lacroix. O inverno. Se você está sorrindo,
se divertindo e se atrevendo, um luterano vai saborear o momento antes de
dizer: “Pode esperar.”
Eles não gostam de felicidade.
É sério. Toda a in uência sueca/norueguesa que eles sofreram surte o
mesmo efeito de um grande cobertor peludo e molhado que congela e
endurece no inverno por no mínimo seis meses. Maldito congelamento. Se
você vive lá começa a relativizar o frio extremo.
Eu sentia uma alegria enorme quando acordava de manhã e o babaca na
televisão me dizia que fazia vinte e sete graus negativos em vez dos trinta e
quatro negativos do dia anterior. Me aprontava para pegar shorts e
sandálias. Para qualquer pessoa sã do mundo real isso ainda é gelado para
cacete. Nunca antes a fotogra a de uma garota de biquíni me causou uma
sensação tão forte de incompreensão. Lá, em um anúncio de viagem de
férias, na lateral de um ônibus preso numa nevasca. Sorrindo e bronzeada, a
cabeça apoiada em uma das mãos, ela dizia: “Você é um idiota de merda.”
Enquanto o ônibus se arrastava diante de mim os lábios da garota realmente
pareciam se mexer, perguntando: “Por que você está aí, congelando as bolas
nessa quase Sibéria?”
Eu teria chorado, mas minhas lágrimas provavelmente congelariam e me
deixariam cego. Não sabia o que acontecia com as lágrimas em
temperaturas como aquelas. Como poderia saber? Eu não era dali. Não
tinha experiência. Eu me ensinei a extrair um prazer pervertido do
surrealismo daquele lugar. O inferno invertido. Em vez de fogo e enxofre,
era neve e gelo.
Entre os mitos de Minnesota existe um fenômeno lendário. Em certas
temperaturas — na casa dos quarenta negativos —, uma xícara de café
lançada no ar cristaliza antes de cair no chão. Eu tinha ouvido isso pelo
menos três vezes antes de experimentar meu primeiro inverno.
O objetivo disso, imagino, era deixar os recém-chegados em um pânico
fodido. Essa historinha vinha com um belo disfarce, para que, à primeira
vista, parecesse ser algo interessante que merecia ser mencionado.
Esse conto possui até aquilo que nós, da publicidade, chamamos de
mnemônica. Ou seja, tem uma coisa memorável que se pode extrair. A
história seria identi cada como “aquela em que o café congela no ar”. É o
fato funcionando como chamariz para quem conta a história. Aquele que
descreve o fato pode transmitir sua narrativa disfarçado como alguém que
está simplesmente partilhando conhecimento. Mas na verdade isso tem
mais a ver com a satisfação que você sente ao ver a expressão do ouvinte
quando ele se dá conta de como deve ser gelado para cacete, a ponto de
uma xícara de café se cristalizar em pleno ar.
O ouvinte então precisa decidir se reage de forma honesta (empalidece e
vomita) ou desonesta (simula interesse na física real). Certa noite, minha
casa vitoriana tinha uma cama, uma mesa, um aparelho de som e um amigo
do Texas. Cito seu estado de origem só para eliminar qualquer autoridade
que você pudesse atribuir a ele sobre qualquer merda ligada ao gelo.
— Cara, está fazendo menos trinta e sete lá fora. Vamos tentar aquela
coisa do café.
— Não está frio o su ciente — retruquei, com medo de ter que fazer café
e mostrar minha ignorância no uso da cafeteira, que eu nunca havia ligado
e só tinha em casa porque alguém me dera como presente de mudança.
— Cara, com esse vento gelado está fazendo frio su ciente, sim.
— Bem, eu não quero fazer café. E acho que nem tenho.
— Cara, água serve. Vamos ferver um pouco de água.
Que se dane, eu já estava mesmo cansado de escutar como o Texas era
fantástico. Acredite ou não, eu tinha umas panelas, e, antes de você
conseguir dizer “Vai, caubói!”, a água já estava fervendo.
— Cara, espera borbulhar. Precisa borbulhar. Senão não vai funcionar.
E borbulhou. Havia dois degraus entre a cozinha e o quintal dos fundos.
Abri a porta de tela contra mosquitos, que aprendera a manter fechada o
tempo todo, mesmo no inverno. Com esses desgraçados você não pode
correr riscos. Então, depois de me en ar em um casaco de peça única, que
serve de edredom e de abrigo antibombas e que escolhi a dedo (para todos
os objetivos e propósitos, um abrigo exível), entreabri a porta da cozinha.
O “texasno” não iria aguentar aquilo. Vestindo apenas uma camiseta, ele
agarrou o cabo com as duas mãos e, tomando o cuidado de não derramar
nada, levou a panela fumegante para a noite lá fora. Escancarei a porta e
acendi a luz do quintal.
Bom, porra, se aquilo era verdade eu não queria perder. Ele parou no
degrau de cima. Por causa da diferença de temperatura, uma fumaça parecia
sair da panela. Ele a segurava à frente com as duas mãos. Disse “Cara” mais
uma vez só porque teve a oportunidade, então se inclinou para trás e jogou
a água para cima, na direção do céu negro. Vi um pequeno brilho em meio
ao vapor, depois ouvi um rugido poderoso.
Ele olhou diretamente para cima e estremeceu. De início pensei que era
por causa do frio, mas depois me dei conta de que era o oposto. A água
fervida havia subido, descido e caído nele. Longe de cristalizar, a água só
esfriou um pouco, e foi apenas graças a isso que ele não teve de dar um pulo
no hospital.
É engraçado como faz silêncio quando mais de um metro de neve cobre
tudo. Como é surreal sair de casa de manhã e se ver no cenário do Dr.
Jivago. Os pelos nas minhas narinas endureciam e, se eu tentasse limpar o
nariz, eles se partiriam. O ar machucava os meus pulmões. Eu sentia o peso
dele no peito. Podia até usar um chapéu grande e engraçado, mas era
melhor proteger as orelhas.
As extremidades eram as primeiras a ir embora. Orelhas e dedos das
mãos e dos pés. É o que você sempre ouve dizer sobre aqueles tipos de caras
meio Capitão Scott que fazem expedições nos polos e perdem os dedos
congelados. Você precisa daqueles gorros engraçados com abas laterais. Ah,
como precisa. O inverno não reduz apenas suas sensibilidades físicas;
também agride sua noção de bom gosto com igual fervor. Mas, de algum
modo, o efeito puri cador do ar frio e estéril me reconfortava. Ele permitia
que uma preguiça conspiratória envolvesse a alma. Conspiratória porque os
outros o ajudariam a adiar sua vida. Pois era assim que funcionava. Eu disse
a mim mesmo: “Bem, não se pode conseguir nada assim. O clima está tão
inóspito que não faz sentido começar um novo projeto até melhorar.” O que
acabei esperando que nunca acontecesse.
Com esse tipo de esperança, você estaria no lugar certo. Lá em
Minnesota, as pessoas engordavam tanto no inverno que não conseguiam
mais sair de casa, o que, por sua vez, contribuía para que cassem ainda
mais gordas. Havia suprimento constante de comida nas suas portas. Os
limpa-neves mantinham as ruas abertas só para alimentar aqueles gordos
cretinos com pizza. Os motoristas dos limpa-neves também não eram
exatamente esguios. Mas quer saber... Estou tentando parar de dizer isso.
Em Minnesota, eles viviam falando “Quer saber?”. Para mim, “Quer saber?”
deveria ser reservado para algo realmente surpreendente.
— Quer saber?
— O quê?
— Vai se foder.
Seja como for, antes de me interromper a mim mesmo, eu ia dizer que
todo mundo que eu encontrava me fazia tantos alertas sobre o inverno que,
quando a estação chegou, não foi tão ruim assim. Disseram que eu passei
dois dos invernos mais moderados em muito tempo. Não me importei, não
me senti enganado. Ainda assim, posso dizer com toda a honestidade que
suportei dois Invernos Desgraçados e Congelantes de Minnesota.
Cumpri minha pena.
Combine meu celibato com essa experiência ártica e você terá um
poderoso coquetel de agressividade e negação acumuladas. Comecei a
entender os caras que sentiam o impulso de entrar num McDonald’s com
uma Uzi exigindo satisfação. Admito que, se um dia eu entrasse em um
estabelecimento desses pensando em realizar um massacre, seria o tipo de
cara que se recusaria a apontar a arma para si mesmo. É muito melhor atirar
na própria perna e ngir ser uma das vítimas. Dessa forma, eu veria a
repercussão pela TV, deitado em um leito de hospital. Mas as outras vítimas
não te reconheceriam? Não se eu tivesse tomado o cuidado de cobrir o
rosto. Sim, sim, eu já pensei nisso.
Um ano em Minnesota parecia três. Eu era dono de uma casa vitoriana
em um dos melhores bairros de Saint Lacroix. A essa altura, ganhava
trezentos mil dólares por ano, minha hipoteca tinha subido para quatro mil
e quinhentos por mês e eu andava totalmente estressado. Meu salário me
dava mais do que o necessário para quitar a hipoteca mensal. Podia pagá-la,
mas ainda assim não era rico.
Achei que caria rico. Eu tinha me imaginado uma pessoa
despreocupada com dinheiro. Possuindo brinquedos caros como jukeboxes,
sistemas de som, mesas de sinuca e antiguidades embrulhadas em plástico
bolha.
Não. Mas esperem aí: eu ia ganhar uma fortuna quando vendesse a casa,
não é? Sim, claro que ia. Agora volte ao trabalho.
Eu estava convencido de que, toda vez que pagava os quatro mil e
quinhentos dólares mensais por aquela casa vitoriana, estava colocando
dinheiro na poupança. Mas não. De forma bastante apropriada,
considerando a temperatura lá fora, tudo o que eu consegui fazer foi
congelar o empréstimo. Nada estava sendo quitado. Eu só estava pagando
os juros e o seguro.
Em resumo, estava pagando apenas o aluguel do empréstimo. E claro que
não ganhei uma fortuna por aquela porra de casa quando en m a vendi.
Depois dos impostos, basicamente consegui empatar e olhe lá. Até que,
vendo em retrospecto, não doeu tanto quanto poderia. Mas na época eu
tinha uma casa pendurada no pescoço, uma determinação de não tocar em
nada que pudesse levar a um contato com uma fêmea de qualquer espécie,
que dirá humana, e um desejo tão forte de voltar para Londres que podia
senti-lo no ar.
Eu esperava pelo jornal The Observer como um bêbado espera a hora de
o bar abrir. Minha tristeza quando o jornal esgotava ou simplesmente não
chegava por causa — adivinhe — do clima gelado era indescritível.
Quando chegava, eu o pressionava contra o peito. Já haviam se passado três
dias desde a publicação, mas e daí?
Eu adorava o jeito inteligente, relaxado, quase entediado com que os
jornalistas apresentavam seus pontos de vista. Nunca tinha me dado conta
de como era uma pessoa urbana. A mudança de Londres para Saint Lacroix
foi um choque maior do que teria sido retornar à Irlanda. Descobri isso ao
passar algumas noites na Nova Dublin. A cidade estava tão vibrante e
renovada naquela véspera de Natal que precisei conter as lágrimas por saber
que teria que voltar a Minnesota.
O The Observer, a Time Out London, na verdade qualquer coisa de
Londres... Eu adorava essas publicações. Acho que é o comportamento
típico de quem tem saudade de casa, mas tiro meu chapéu imaginário para o
The Observer por ajudar a salvar de um m trágico os clientes do
McDonald’s e de outras lanchonetes de Minnesota. E também para os
lmes. Filmes franceses. Eu tinha um aparelho de DVD. Agora não tenho
mais. Para me divertir hoje em dia, só preciso passear descontraído pela
Avenida A que obtenho toda a diversão necessária.
Mas, na época, ver um lme francês era como sentir gotas d’água
pingando nos lábios rachados pela desidratação. Não só porque os franceses,
que Deus os abençoe, fazem ótimos lmes, mas ver aquelas imagens de ruas
e prédios antigos e do clima úmido e chuvoso — Jesus Cristo, eu adorava
aquilo. Até pausava em certos momentos para tirar fotogra as das cenas.
Isso foi durante meu segundo ano em Minnesota, quando comecei a surtar
de verdade. Ainda tenho as fotos em algum lugar. Eu precisava car em
contato com a Europa de alguma forma.
Meu maior medo era acabar incorporando ao meu vocabulário
expressões como “Pode crer” e “Tu tá doido”. Então, com meus lmes
franceses (Claude Lelouch era o meu diretor preferido), meus jornais
ingleses e minha origem irlandesa, mantive a bandeira europeia hasteada e
tremulando nas ferozes ventanias de Minnesota.
Dois anos. Dois anos de presença física ali, mas espiritualmente pareciam
oito. Eu me arrastava até o ponto de ônibus toda manhã em meio à neve
recém-caída e abria caminho ao voltar para casa à noite. Às vezes, andava
ao redor do lago, que cava a menos de cem metros da minha porta
congelada. Parece agradável, não é?
Calma.
Um dos sintomas mais claros de hipotermia, para o qual você sempre
deve car alerta, são as alucinações. A atração imaginária daquilo que está
diante de você. Eu dizia a mim mesmo: “Você tem um emprego ótimo, uma
casa ótima. As pessoas são legais de verdade. As garotas são fantásticas” etc.
Eu deveria adorar aquilo. Imagina-se que um homem solteiro de trinta e
quatro anos que vai para lá e se vê nessas condições deveria agradecendo à
sua sorte. Mas eu estava me xingando por ter criado aquelas circunstâncias.
Se fosse qualquer outra pessoa, eu teria aprovado e até dado os parabéns,
mas, como era eu mesmo, não conseguia suportar. Era como se tivesse sido
escalado equivocadamente para viver minha própria vida. Se eu olhasse
para o outro lado da rua e visse alguém que tivesse feito comigo as coisas
que eu costumava fazer a mim mesmo, sairia correndo na direção contrária.
Mas não posso fazer isso, certo?
Sou casado comigo.
E, pelo que eu podia ver, o normal lá era casar com outra pessoa. Eu não
bebia, não fumava e me comportava muito bem. Pelo menos
super cialmente. Deveria ser o candidato ideal para alguma garota
respeitável e de boa genética de Minnesota. Mas, cacete, aqueles sorrisos
enormes e cheios de dentes, aquela simpatia exagerada e carente. Aquele
olhar louco e arregalado. Ainda não sei o que era aquilo. Antidepressivos?
Estupidez? Em Nova York, todos simplesmente passavam a impressão de
estarem machucados. Parecia mais honesto. Talvez eu apenas me
identi casse com eles.
Por m, decidi que estava farto daquilo. Eu ia embora. Isso antes do m
do meu primeiro ano. Escolhi um corretor de imóveis de verdade em um
encontro no AA, já que não con ava no pessoal que tinha me vendido a
casa. Eu acreditava seriamente que eles tirariam o telefone do gancho,
ligariam para a Killallon Fitzpatrick e contariam que eu queria vender a
casa. A nal, a empresa tinha investido muito ao me levar para Minnesota e
poderia estar interessada em saber que eu queria ir embora depois de apenas
doze meses trabalhando ali.
Declaro isso em defesa da minha paranoia. Só descobri como seria difícil
partir sicamente quando de fato tentei. A casa não recebeu uma única
oferta. Durante todo aquele verão ninguém me fez qualquer espécie de
proposta. Não consigo expressar como quei aterrorizado com o passar dos
dias, o verão, chegando ao m, o inverno se aproximando e a possibilidade
de mais um ano no exílio. Ninguém compra nada no inverno.
Insone, eu me sentava empertigado na cama. Xingava as paredes que me
cercavam e, sim, chorava. Longas sessões de choro soluçante carregadas de
uma tristeza autopiedosa. Acho que ninguém chegou a me ver (pelo menos
espero que não), mas às vezes eu terminava de quatro no chão. Era a única
posição em que eu conseguia respirar. Havia dias em que acabava rindo de
alívio.
O emprego também era muito exaustivo, e imagino que isso não tenha
ajudado em nada. Na verdade, o trabalho era grande parte do problema.
Sabendo que eu não iria a lugar algum com aquela casa pendurada no
pescoço, eles gentilmente passaram a me pressionar cada vez mais. Eu
precisaria de pelo menos alguns meses para vendê-la. Com isso, eles se
sentiram à vontade para me passar algumas das contas mais complicadas. Eu
não pediria demissão no meio de um projeto. Ou, se pedisse, eles
receberiam um bom tempo de aviso prévio. Quanto mais a pressão
aumentava, mais eu queria vender a casa.
Mas nada acontecia. Por isso, aconselhado pelo meu corretor
imobiliário, até comecei a baixar o preço. No m, eu já não tinha nenhuma
simpatia por ele. Voltava do trabalho xingando minha casinha bonitinha e
o corretor, mas sobretudo a mim mesmo, por tê-la comprado. O conselho
que ele me deu foi mobiliá-la. Dar a impressão de que alguém de fato vivia
ali. Alguém normal. Então pedi móveis emprestados, do tipo que faria
parecer que uma mulher de meia-idade morava ali. Cuidei do jardim.
Espalhei vasos com ores pela casa sempre que a abria para visitas. Aparei
os gramados. Para vender aquela porra, virei exatamente a coisa que
adorava não ser.
Mas nada acontecia.
Certa noite, voltei para casa após me recusar a ir à festa de Natal da
empresa. De algum jeito, tinham conseguido colocar duas esculturas de gelo
de ambos os lados do caminho que levava para a minha porta. Grandes
cilindros de gelo com velas dentro.
Bem legal, de verdade.
Chutei as duas para dentro de casa. Para mim, aquelas esculturas
despretensiosas representavam o fato de que eu não estava a salvo dos olhos
enxeridos deles, nem mesmo na porra daquela casa superfaturada. Eu estava
mal. Ia trabalhar e fazia o melhor que podia. Um bom trabalho. Mas nada
que eu concebia era aprovado. Nada me tirava da cabeça que eles só
queriam garimpar ideias e jogá-las em uma fonte conceitual coletiva onde
os funcionários de carreira poderiam pescá-las.
Os funcionários de carreira eram os preferidos deles. Aqueles que nunca
vão embora, portanto de quem não se espera que apresentem as próprias
ideias. Lealdade recompensada com ausência de estresse. Em geral, eram
casados e tinham lhos e casa, de forma que não iriam a lugar algum.
Precisavam constantemente de carne nova da qual se alimentar. E
recebiam. Sem problema, desde que você conhecesse as regras. Bem
assustador, se você acreditava no embuste do grupo: “Amamos todos os
nossos. Você faz parte da nossa família.”
Isso me dava vontade de ir ao banheiro. Toda a minha raison d’être era
não me tornar um funcionário de carreira. Já viram um lme chamado A
Firma? Era assim. Uma empresa que sabia de todos os seus passos e
controlava o que você fazia. Tudo estava bem até você ir contra o que eles
pregavam.
Aliás, admito que muito do que estou dizendo é paranoia. Tudo isso e
tudo o que se segue poderia muito bem ser fruto da minha imaginação e
completamente sem fundamento. Quer dizer, os fatos e os números são
verdadeiros. Datas, salários, locais, prêmios etc. Mas os motivos, as emoções
e mesmo a existência de algumas pessoas cercando esses dados concretos
são nebulosos.
Eu estava trabalhando para uma empresa muito esquisita, mas
esplêndida. Não me importava, porque era interessante estar nos Estados
Unidos, mesmo sendo apenas em Minnesota, e vantajoso, porque a
Killallon Fitzpatrick tinha reputação de produzir trabalhos fantásticos que
ganhavam prêmios. Mesmo não conseguindo que nada fosse produzido, era
mais empolgante do que car sentado em Londres fazendo as mesmas coisas
que vinha fazendo havia anos. Não vou ngir que na época eu gostava do
que fazia, mas, agora que estou aqui no East Village, posso dizer que foi
ótimo ter saído de Londres e vindo para os Estados Unidos.
De qualquer modo, com quase dois anos lá — meu quarto ano longe da
bebida —, eu ainda me recusava a ter qualquer envolvimento com alguém
do sexo feminino. Minha técnica preferida de masturbação consistia em
tomar um belo banho quente de banheira, ensaboar bem o careca e bater
aquela punheta. Houve uma época em que eu podia escrever um roteiro
sobre a minha mão direita, uma história de amor. Haveria cenas em que eu
a deixaria esfregar minha coxa como forma de preliminar. Isso me faria
corar. Em outro momento do lme, minha mão direita caria com ciúmes
da esquerda.
Muitas vezes eu voltava correndo para casa à noite só para fazer amor
ardente comigo mesmo. Ao longo do dia, memorizava as bundas
maravilhosas das secretárias, e mais tarde as combinava mentalmente em
um só traseiro perfeito. Funcionava. Como você pode ver pelas páginas
anteriores, isso não gerou nenhum efeito inconveniente sobre o meu estado
mental ou espiritual. Quando muito, foi o inverso: outro salão cheio de
clientes do McDonald’s foi poupado do incômodo de usar o plano de saúde.
Também me poupei da dor de precisar passar catorze anos casado com
alguma sueca que, para começo de conversa, teria que ser paga pela minha
empresa para se casar comigo. Imaginem aquelas esculturas de gelo na
minha entrada de garagem todo Natal (só de pensar começo a tremer, e
estamos em agosto).
Basta dizer que me masturbei muito durante esse período em Minnesota.
Sabe, qualquer um lendo isto seria perdoado por pensar: “O que esse cara
tem de errado? Qual o problema dele? Consegue um emprego legal nos
Estados Unidos e desde que chegou só ca choramingando.” Mas me
permita dizer apenas isto: estou choramingando em retrospecto. Na época,
nunca choraminguei. Nem uma única vez. Eu era o retrato da humildade e
da gratidão.
“Ah, obrigado. Ah, não, obrigado. Vir trabalhar este m de semana?
Claro, eu não ia fazer nada mesmo. Nem tenho namorada, então não há
perigo de algo assim atrapalhar as necessidades dela. Vocês não gostam
desse conceito? Claro que não gostam, é fraco. Eu deveria ter pensado
melhor antes de mostrar.”
Fora sair da sala me curvando, eu fazia tudo. Era preciso. Não estava em
posição de barganhar. Com uma hipoteca de quatro mil e quinhentos
dólares por mês e sem visto de residência, eu precisava evitar deixar alguém
puto. Caramba, quando olho para trás, noto que a minha situação era ainda
mais assustadora do que me permiti perceber. É engraçado que, quando as
coisas estão esquisitas e não gosto de como tudo está indo, entro no modo
“só por hoje”. É um velho truque do AA para permanecer longe da bebida.
Nada que eu precise fazer é para sempre. Só preciso fazer hoje. Isso torna
suportável até as merdas mais pesadas. Mas então, quando olho para trás e
vejo como aquilo era um fardo, eu suspiro.
Mas espere aí, porque tenho que contar uma coisa que aconteceu no
primeiro Natal depois que meu pai morreu. Lembro agora que estava em
Minnesota havia apenas quatro meses e só conheceria Aisling em
novembro do ano seguinte. Minha mãe e eu estávamos sentados na
cozinha, nos encarando como quem avalia um ao outro. Estávamos em
choque — ela pelo fato de que o marido de um casamento de quarenta anos
de repente não estava mais lá (minha mãe me contou um sonho em que os
dois haviam viajado de férias e ela não conseguia encontrá-lo) e eu por
perder o pai e ter sido exilado para o Ártico.
Um peru assado sem coxas fumegava no espaço entre nós. Foi a primeira
vez que minha mãe comprou um peru sozinha, e para ela parecera uma
pechincha comprar aquele que não tinha coxas. Era bem mais barato do
que a versão sadia do animal. A nal, como ela havia passado a vida toda
com um homem que lidava com todas as questões nanceiras, naquele
momento o custo de vida se tornara uma questão importante. O vapor do
peru suavizou a imagem que tivemos um do outro naquele Natal.
Mais tarde, naquela mesma visita, eu estava ocupando a cadeira na
reunião do AA em Deelford. Quando um membro ocupa a cadeira, ele
conta sua história. Como bebia, como parou e como está a vida. Nas
reuniões menores, eles se cansavam de ouvir as mesmas pessoas o tempo
todo, de modo que, quando alguém ia para lá de férias, com frequência era
convidado a falar. Naquele domingo, era a minha vez. Entre os
frequentadores regulares, muitos dos quais eu passara a conhecer bem ao
longo dos anos, havia uma loura muito jovem, bem-vestida, magra, alta,
elegante. Sem dúvida ela se destacava. Poderia ser modelo.
Provavelmente era.
Por causa dela, tentei não embelezar demais minha história. Comecei
contando ao círculo matutino heterogêneo como costumava gostar de
machucar pessoas, sobretudo garotas. Abordei o prazer que extraía disso, o
prazer que sentia quando elas reagiam com repulsa. A necessidade que eu
tinha de machucar. Nada diferente de algumas coisas que partilhei com
você, porém de modo mais genérico.
Prossegui dizendo como acreditava que esse comportamento estava
relacionado ao meu alcoolismo, que não sentia mais necessidade de fazer
isso e que ainda parecia que eu devia reparar os erros cometidos com todas
aquelas garotas, mas que o princípio do AA era não voltar a lugares onde
poderíamos causar ainda mais sofrimento. A melhor reparação que eu
poderia fazer era car fora da vida delas. Não tinha o direito de voltar e
tornar o fardo delas mais pesado apenas para aliviar o meu.
Depois que terminei de falar, a garota se aproximou e me agradeceu.
Procedimento-padrão. Mas ela me contou algumas coisas que só foram
assimiladas um ano depois, e que depois disso causaram muita turbulência.
Disse que tinha uma amiga que gostava de fazer o mesmo que eu. Só que
com homens. O tipo de coisa que eu tinha descrito parecia muito com o
que a amiga fazia. Segundo a garota, a amiga morava em Nova York, mas
era de Dublin. Era assistente de um fotógrafo. E me advertiu de que, se um
dia eu a conhecesse, deveria tomar muito cuidado. É provável que eu
estivesse com uma expressão educada, porque, de repente, ela disse:
— Ela sabe de você.
É óbvio que a garota era biruta. Isto acontecia muito no AA: a pessoa
aparecia em uma reunião e depois você nunca mais a via. Torci para que
fosse o caso.
Ela prosseguiu dizendo que naquele m de semana estava hospedada com
o padrasto dessa tal garota assustadora em Deelford e que precisava de uma
reunião do AA porque não estava sabendo lidar com as festas que varavam
a noite. Ela temia pela própria sobriedade. Imediatamente imaginei orgias
satânicas na casa do sujeito e estava até preparado para ouvir os detalhes,
mas então ela mencionou o nome do cara.
Tom Bannister.
Eu conhecia aquele nome muito bem, porque ele havia sido advogado do
meu pai. Na verdade, quando meu pai morreu, ele nos deu tanto apoio e
nos ajudou de tal forma que eu havia pedido que casse de olho no meu
apartamento em Londres. Ela conseguiu minha atenção, mas o signi cado
não foi registrado. Porque não havia nada a que reagir.
Depois, muito depois, lembrei que nove meses antes daquele encontro,
quando ainda trabalhava em Londres, o Deelford Gazette havia publicado
um artigo que eu mesmo havia escrito e enviado anunciando minha
contratação como diretor de arte sênior da Killallon Fitzpatrick. Era o tipo
de coisa que os jornais locais adoravam. Garoto de Deelford se dá bem. Fiz
isso tanto por meu pai quanto por qualquer um.
Ele adorou se vangloriar com os amigos sobre mim.
Chegou até a ser mencionado como pai do menino prodígio, juntamente
com a escola que frequentei e os meus passatempos (coloquei escrever e
música), e não consegui deixar de incluir o fato de que era solteiro. Bem,
por que não? Podia haver uma bela garota irlandesa lendo aquilo.
Ao que parece, não foi o caso.
Será que Aisling poderia ter lido aquele artigo durante uma das suas
visitas? Isso explicaria como sabia de mim. “Ela é perigosa”, disse a loura.
Aparentemente, ela havia testemunhado o efeito medonho que a garota
podia exercer sobre os caras. E cou me encarando por muito tempo. Como
se eu não estivesse levando o que ela disse su cientemente a sério. Eu não
estava.
Achei que ela era apenas uma riquinha de Dún Laoghaire que havia
cheirado demais e estava no AA para deixar o marido rico feliz. Mas agora
acho que ela queria me alertar. Ela assumiu um tom ainda mais sério
quando se voltou para mim antes de ir embora e disse:
— São os olhos dela, é o que causa isso. Os caras não conseguem
acreditar que ela possa ser tão má.
Eu me lembro de pensar que era uma pena ela parecer tão pirada, porque
era deliciosa. Mas notei que, fosse quem fosse a pessoa da qual ela estava
falando, certamente a deixara morrendo de medo. Então, não pensei mais
nisso. Por que pensaria? O tempo todo tem muita gente — algumas
estranhas, outras não — passando pelo AA.
Nunca mais vi a loura. Então lá fui eu de volta para a tundra com o
coração partido naquele mês de janeiro. Jurei a mim mesmo que iria embora
antes do m do ano. Era a segunda vez que fazia essa promessa. Demoraria
um pouco mais. Eu estava trabalhando nos comerciais da BNV. Só estava
trabalhando na BNV. É duro quando você trabalha apenas em uma coisa;
parece que não consegue respirar ar fresco. É muito duro quando você passa
quase dois anos nisso. E também muito exaustivo.
Em dado momento resisti até a fazer piadinhas com meu pequeno círculo
de amigos do AA, porque temia que o gasto de energia criativa pesasse na
minha conta bancária e eu estivesse sem fundos quando a BNV aparecesse
para fazer outro saque. Pois é. Quando você trabalha quatro ns de semana
seguidos — sem luz do sol ou férias à vista e sem vontade de estar no país,
muito menos no escritório —, é importante não gastar suas reservas.
Talvez você ainda tenha um longo caminho pela frente. E, embora eu
tivesse prometido a mim mesmo que em breve daria o fora dali, meu lado
cauteloso me lembrou de que eu já havia falado isso antes. Já era o mês de
fevereiro. Mais três, talvez quatro meses de um clima assustador pela frente.
Escondendo-me atrás das páginas largas do The Observer e sentindo o brilho
quente da tela da TV, de algum modo consegui chegar à primavera, que
durou cerca de uma semana, então surgiu o verão e tudo se transformou.
Onde antes havia uma folha de papel em branco, começaram a aparecer,
nos mais delicados traços de crayon, a grama e as folhas, os botões e as
ores.
E as garotas.
Inacreditáveis exemplos de seios e coxas arianos. Tão saudáveis que
chegava a ser um insulto. Como tropas bem treinadas circum-navegando os
lagos de bicicleta, de patins e, claro, a pé. A Infantaria Sexual. Logo
descobri que elas eram casadas ou noivas. Arrematadas cedo por
investidores espertos. Vá em frente, lance aquele olhar malicioso. Elas
coçavam o nariz ou ajeitavam a roupa, me enviando uma mensagem clara
em código Morse com suas alianças reluzentes.
S-E-M C-H-A-N-C-E T-A-R-A-D-O.
Muito justo. Quanto mais bonita e mais clara a pele, maior e mais
ofuscante o brilho. Era a voz do noivo me alertando à distância. Poupando
meu tempo. Típico de Minnesota. Educado. As grávidas também pareciam
ter muito orgulho da natureza bulbosa das suas barrigas, fenômeno com o
qual eu nunca havia deparado. Em Londres, a gravidez era associada ao
fracasso e à morte social. Em Minnesota, era estimulada. As pessoas eram
promovidas depois de terem um lho. Uma pequena âncora de carne
impedia a mente dos soldados americanos de se afastar demais das suas
missões.
Não era um lugar para machos solteiros.
Especialmente machos solteiros de fora. O verão em Saint Lacroix é tão
quente quanto o inverno é frio. A umidade deixa o ar tão denso que ca
difícil respirar. Toda aquela carne exposta se torna presa do poderoso
mosquito, pássaro-símbolo do estado de Minnesota.
Meu primeiro verão foi pior que meu primeiro inverno. Pelo menos
sobre a estação fria eu havia sido alertado. No entanto, tive que tomar
minhas próprias decisões sobre os meses de calor. Além do mais, em geral as
casas vitorianas não têm instalado aquele cobiçado aparelho de ar-
condicionado. Ele nem sequer havia sido inventado até os anos 1960 ou
1970. Que tal a minha pesquisa apurada sobre esse fato?
Na minha humilde opinião, muitos dos protestos pelos direitos civis —
e, de fato, grande parte dos problemas deste belo país, inclusive a Guerra de
Secessão e o assassinato de mais de um presidente — podem ser atribuídos à
falta de ar-condicionado.
Você abre a janela na maior inocência, esperando que uma leve brisa
penetre a falta de ar em que se transformou sua vida. Em vez disso, é
atacado por uma procissão de insetoides alados cansados do mundo, mas
treinados na arte da guerra psicológica.
Durante o verão, essas bocas de Hades escancaradas disfarçadas de
janelas arrotavam uma tortura sem precedentes para dentro da minha casa
morna. Eu buscava refúgio em uma banheira cheia de água fria, mas
precisava car submerso o máximo que os pulmões permitiam. Ainda assim
podia ser mordido no rosto.
Aprendi.
Era no começo da noite que eu parecia mais suculento para os carnívoros
alados. Existem dez mil lagos em Minnesota. Quando esquenta, é muita
umidade. Umidade signi ca mosquitos. Tem uma história que corre por lá.
Um casal idoso foi acampar. Eles haviam sido alertados para a presença de
mosquitos grandes como gafanhotos. Instalaram a barraca. Cobriram-se
com o que acreditavam ser repelente de mosquitos.
Os dois foram encontrados mortos. Havia uma lata vazia de uma
substância que atraía mosquitos entre os dois cadáveres. O produto era
concebido para car fora da barraca, afastando as “criaturas irritantes” para
longe dos corpos adormecidos. Segundo a história, o marido acordou
coberto de picadas e disse à esposa tão cheia de picadas quanto ele:
“Imagine como teria sido pior se não tivéssemos passado o repelente,
querida.”
Não, eu também não acredito nisso. Mas o verão teve seus bons
momentos. Eleena era uma daquelas garotas com uma versão caricata de
como deveria ser um corpo feminino. Também era membro do AA de Saint
Lacroix e, portanto, mais do que quali cada para participar do churrasco
anual de Saint Lacroix. Estava se bronzeando em uma pequena
espreguiçadeira dobrável quando seu celular a despertou.
Ela abriu o telefone e, com esforço, disse as seguintes palavras em uma
voz pelo menos três vezes mais alta do que seu QI:
— Oi, Jimmy, estou aqui tostando a bunda. Quer vir me virar?
Ela parecia a Sophia Loren justaposta em um gramado de Minnesota.
Era difícil não atribuir a ela o chiado da churrasqueira próxima. Mais tarde,
no frescor da minha banheira, eu me masturbei furiosamente pensando
nessa imagem. Ah, como me masturbei.
No entanto, não estamos aqui para falar do verão. Setembro chegou, e as
coisas refrescaram um pouco. Foi a época mais agradável do ano. As folhas
ganharam uma cor âmbar, o ar cou fresco e, de vez em quando, até batia
uma brisa. Ah, que dias felizes. Com eles chegou outro trabalho para a
BNV. Eu não aguentava mais trabalhar nessa conta. A simples visão de um
automóvel da marca na rua (nunca tive carro) me fazia encolher. Ainda faz.
Mas isso não importava, porque eles tinham gastado todo o dinheiro me
trazendo para este belo país e queriam que eu trabalhasse na PORRA DA
CONTA DA BNV.
Sem ofertas pela casa, eu não tinha nenhum poder, então mordi minha
língua já ferida e murmurei algo sobre aquela ser a última vez que iria
trabalhar na conta daquela marca automobilística idiota. Tanto eles quanto
eu sabíamos que eles só anuíram porque estavam entediados. Comecei a
trabalhar no projeto com um redator, e em pouco tempo conseguimos algo
que não era de todo ruim.
Em seguida, precisamos de um fotógrafo. De repente pensei (ou a ideia
foi sutilmente apresentada a mim por sábios gerentes de conta) que um
fotógrafo de naturezas-mortas chamado Brian Tomkinsin traria uma
mudança interessante. Os caras que trabalhavam com naturezas-mortas
normalmente fotografavam facas, garfos, sapatos e outras merdas do tipo.
Nunca, ou quase nunca, carros. Isso, claro, deixou a BNV nervosa, mas por
pouco tempo. Vendi a ideia para eles com meu sotaque irlandês/inglês, e
logo estava em um avião rumo a Nova York com uma semana de sessões de
fotos pela frente. Esta é a minha parte preferida de trabalhar no ramo da
publicidade.
As sessões de foto são fantásticas. Até mesmo as para impressão. Você
ca em um hotel legal, com tudo pago, passa uma semana, talvez mais, fora
de Minnesota, arranja uma foto razoavelmente decente para colocar no
portfólio, ca um tempo sem trabalhar em novos conceitos que vão servir
para alimentar a fornalha. Você respira.
Tudo o que eu sabia sobre Nova York era o que tinha visto cinco ou seis
anos antes, durante a semana de São Patrício. Basicamente quei fora de
mim todo o tempo que passei lá, e o lugar me pareceu triste, escuro e
perigoso. Essa, porém, não foi a Nova York que me recebeu então.
Era outubro, e o outono estava rolando na região que logo descobri ser o
SoHo. Bonito aos olhos, agradável ao toque, absolutamente hipnótico. Para
o olhar faminto de alguém como eu, parecia haver um excesso de grandeza.
Cores, cheiros, texturas, nacionalidades — vocês já ouviram tudo isso
antes. O estúdio cava, ainda ca, na Broadway, bem na boca do SoHo, na
sobrancelha do East Village e na beirada de Nolita. Consigo me lembrar de
ter medo de olhar para não aumentar a inevitável tristeza de precisar ir
embora.
Fiz compras. Um luxo desconhecido para mim. Ah, existem lojas em
Minnesota, mas em Nova York ninguém pergunta de onde você é. Eles
simplesmente não se importam.
Meu Deus, como eu adorava aquilo.
As sessões de foto correram bem, e, embora não estivesse empolgado
com o hotel onde tinham me colocado, o Tannery, na Trinta e Cinco com a
Madison (não muito legal), aproveitei os canais pornô. Por que não? Era
por conta deles. E depois dos primeiros três dias trocaram meu hotel. En m,
as primeiras sessões aconteceram em outra parte da cidade, num “estoodio”
maior. Não sei dizer onde cava — só lembro que não era muito longe da
Broadway. Então, o estágio seguinte de acompanhamento precisava ser feito
do quartel-general do Tomkinsin, na Broadway.
Para mim foi conveniente. Apareci lá no primeiro dia e me trataram
como uma subcelebridade. Óbvio que eles só estavam puxando o meu saco,
mas era difícil não gostar. Acabei não gostando de como eles eram bons
nisso. Era quase como se eu mostrasse o saco e dissesse: “Com licença, mas
vocês esqueceram essa partezinha aqui.” Realmente terrível. Foi uma coisa
meio tácita. Eles sabiam que você sabia que eles sabiam etc. — até o
in nito.
Então, depois de um dia particularmente bem-sucedido de puxação de
saco, uma garota nova me abordou nervosa e perguntou:
— Você é de que lugar da Irlanda? — Ela ouvira eu me vangloriando de
ser irlandês.
— Deelford — respondi, notando como ela era linda, embora um pouco
jovem. Eu já tinha visto a garota por ali antes, mas naturalmente pensei que
fosse uma das muitas assistentes de fotogra a que pareciam ser necessárias.
E era.
— Ah, isso é espetacular.
Eu só tinha ouvido essa expressão dita por irlandeses.
— Você é irlandesa?
— Sim, sou, de Dublin.
Bem, não posso dizer que achei essa descoberta grande coisa, mas desde
então revisei esses poucos momentos diversas vezes. Procurando pistas.
Qualquer coisa que me ajudasse a explicar que porra estava acontecendo.
Ela prosseguiu, dizendo que havia “um bando de irlandeses aqui” e que,
se eu quisesse, poderia me apresentar ao pessoal. Achei mesmo que ela era
jovem demais. Perigosamente jovem, se é que me entendem. Mas, depois de
conversarmos um pouco mais, descobri que o padrasto dela em Deelford era
o advogado do meu pai. Ela era linda e tinha um ar muito inocente. O fato
de ser irlandesa e ter laços com Deelford, combinado com o fato de que o
seu padrasto havia sido advogado do meu pai, parecia signi car alguma
coisa. Eu deixei que signi casse que ela havia sido enviada pelo meu pai
morto como um presente para compensar o sofrimento que eu estava
passando em Saint Lacroix.
Foi um erro grave. Eu não tinha consciência de que queria comê-la.
Ainda achava que era jovem demais, mas pensei em convidá-la para jantar,
só como diversão. A nal, ela era praticamente uma parente minha, e o que
o padrasto dela diria se soubesse que tínhamos nos conhecido e eu nem
sequer a convidara para jantar? Ela me deu o telefone, e por pura falta de
conhecimento reservei lugares no mesmo restaurante ao qual Tomkinsin
havia me levado para ser sociável algumas noites antes. Na verdade, eu
também tinha ido lá com a Telma.
Quem era Telma? Telma Way era uma garota maravilhosa que
trabalhava na lial de Nova York e se convidou para jantar comigo quando
me viu circulando por lá. Nunca achei que existia qualquer chance de me
envolver romanticamente com ela. Uma pessoa excepcional, muito bonita
e muito durona.
Aisling: esse era o nome da irlandesa.
É, também gostei. Signi ca “sonho” em gaélico. Esse nome me assombra
desde então. Aisling deixou uma mensagem na secretária eletrônica do
hotel dizendo:
— Vejo você lá.
3

Ela chegou cerca de meia hora atrasada, mas estava linda para cacete.
Suéter preto de gola V, saia lápis preta, sapatos pretos. Um visual bem
Prada. Cabelo castanho-escuro comprido balançando atrás dela ao entrar
pela porta. Ela me pareceu familiar, como se eu já a conhecesse. Como uma
irmã que eu tinha e perdi.
Muito inocente, jovem e adulta ao mesmo tempo. Assim que ela entrou
pela porta, meu maior desa o passou a ser esconder como me senti afetado.
Ela veio até mim com, creio eu, a intenção de se inclinar à minha esquerda
e me dar o que, conforme eu aprenderia, é o obrigatório beijo na bochecha
nova-iorquino. Eu nunca tinha ouvido falar em uma coisa dessas em Saint
Lacroix.
Aqueles olhos.
Isso vai soar horrível, mas não ligo. Já passei há muito tempo da fase de
sentir vergonha.
Você não consegue ferir um homem com um al nete se ele já tiver uma
lança cravada no peito. Eu juro que ela estava igualzinha às imagens da
Virgem Maria nos lares católicos irlandeses.
Não estou brincando.
A porra da Virgem Maria.
— Você está linda — elogiei, enquanto fazia um gesto para o balcão da
recepcionista.
— Obrigada, você também.
Aquela foi a primeira mentira dela. Entramos na arena a passos largos. O
lugar era repleto de assentos de couro marrom e azulejos com aparência
antiga. Era sexta à noite. Eu pegaria um voo de volta para você sabe onde
na manhã seguinte. Estava bem cheio, então não pegamos a cabine
reservada. Mas conseguimos uma mesa boa o su ciente. Ela não era idiota.
Isso cou bem claro logo de cara.
Ela também não era uma bonequinha inexperiente de vinte e dois, vinte
e três ou mesmo vinte e quatro anos. Falava como alguém mais velha do
que parecia. Isso realmente me surpreendeu. Eu esperava passar a noite me
esquivando de elogios tão absurdos que acabaria odiando a falta de sutileza
dela. Em vez disso, quei com raiva de mim mesmo pela minha própria falta
de sutileza. E era tarde demais. Eu não podia acordar de repente e dizer:
“Ah, não me dei conta de que você era inteligente. Achei que não passava
de uma pirralha carente, bajuladora e idiota que não merecia que eu desse o
melhor de mim.”
Provavelmente ela viu tudo o que precisava ver em mim nos primeiros
quinze minutos da minha fala incrivelmente egocêntrica. Aos poucos,
quase como se estivesse com medo de me magoar, ela me fez ver quanto eu
havia me exibido. Já tinha ido a exposições sobre as quais eu mal começara
a ler. Filmes dos quais eu apenas ouvira falar já eram lembranças antigas
para ela. E eu só me dei conta de que pronunciava errado os nomes
daqueles artistas estrangeiros quando ela os pronunciou.
Sua superioridade era graciosa, até solidária. Fui pego completamente
desprevenido. Claro que desde então atribuí cada nuance da conversa
daquela noite às suas habilidades demoníacas de manipulação, mas a
verdade é que, quando alguém me ofusca, eu escondo a raiva colocando a
pessoa num pedestal. Isso me faz parecer generoso, e, assim, quando eu
en ar a faca nas suas costas, ela con ará em mim. Pois é, às vezes eu me
assusto comigo mesmo.
Seja como for, ela me contou que era de Whiteheath, em Dublin.
Descobri muito depois que essa é uma região extremamente abastada da
cidade. E que ela era lha única. Fazia trabalhos freelances como assistente
de fotogra a porque assim, entre um serviço e outro, tinha mais tempo para
se dedicar ao próprio trabalho. Mil desculpas, mas sempre traduzi isso como:
“Não consigo um emprego em tempo integral.” Enquanto ela falava, eu me
apaixonava total e irremediavelmente. As mãos compridas, o olhar direto,
os movimentos de cabeça para ajeitar os cabelos macios, a pele clara do
pescoço, a curva suave dos seus seios pequenos.
Chega.
Quando ela de fato se mostrava impressionada com algo que eu dizia (a
essa altura estava me dando conta de que precisaria me esforçar mais),
parecia me tratar do mesmo jeito que se trata uma criança pequena. “Ah,
nossa, que legal”, ou “Eles devem gostar muito de você”, ou “Queria eu ter
os mesmos problemas”. Por essas reações me dei conta de que estava
tentando impressioná-la. Eu me sentia compelido a isso. Queria poder
recomeçar aquela noite toda.
E não conseguia deixar de pensar que ela estava entediada, mas ngindo
interesse. Tomou cuba-libre no jantar. Uma dose grande. Pedi costeletas de
porco. Ainda tenho a conta. Sério. Pedi reembolso na empresa, mas quei
com a conta. Sabe, aquela noite mudou a minha vida. Não fosse ela, eu não
estaria aqui no East Village, em Nova York, escrevendo esta porra. Ela disse
que eu iria gostar do East Village.
Ela estava certa.
Mas foi isso. Fiquei completamente apaixonado por ela. Como não me
apaixonaria? Aquele era o presente do meu pai morto para mim, e eu iria
negá-lo? Não. Conversamos descontraidamente sobre publicidade, e z o
melhor que pude para fasciná-la. Ela era reservada, mas educada — muito
educada. Velha guarda. Eu nunca tinha recebido permissão para chegar
perto disso. Ela chegou a servir água mineral no meu copo e girou a garrafa
abruptamente, como se faz com champanhe.
Fiquei excitado.
Ela era muito atenciosa. Foi isso. Sabia manipular um cara. Fazia você
achar que não havia problema em ser um cara. Em ser você mesmo. Essa, ao
que me parece, é a arma mais devastadora do arsenal de uma mulher. Se
você consegue estimular o homem a ser ele mesmo, a revelar seu caráter e
seu jeito, descobre como lidar com ele, e portanto ele nunca vai conseguir
esconder nada de você.
Eu já sabia disso.
Consegui permanecer dez anos no mercado publicitário, área nem um
pouco conhecida pela caridade. No entanto, mesmo eu, o Sr.
Ressentimento em pessoa, atravessei suas cortinas de veludo e me rendi.
Veja bem, eu estava pronto. Cacete, fazia cinco anos que não tocava em
uma mulher.
Então ela representou seu papel de aristocrata irlandesa comportada e eu
representei o meu: o de garoto irlandês perdido com dois olhos enormes e
pidões. Ela deslizou pelo piso e me levou de volta à Broadway e depois à
Bleecker Street, que, na minha ignorância, e para minha vergonha eterna,
eu a pedira que me mostrasse por ter ouvido dizer que era bem legal.
Ela me levou a um bar gay. Fazia anos que eu não entrava em qualquer
bar, muito menos um bar gay. Demorei mais ou menos uma hora para
descobrir isso. Havia muitos homens de meia-idade e cabelo tingido
aparentemente muito felizes, cantando ao redor de um piano de armário.
Eles se deleitavam. Não estavam bêbados, apenas alegres. Querubínicos.
Ela foi ao banheiro e me deixou sozinho por mais tempo do que eu teria
achado necessário. Ela poderia muito bem ter atravessado a rua, tomado um
drinque com toda a calma e voltado bem a tempo de encontrar um homem
corpulento com os dentes mais brancos que eu já tinha visto se encostando
em mim. Fiquei aliviado ao vê-la e lhe contei isso. Ela gostou de saber.
Claro que gostou.
Fomos para outro bar. Um pouco mais cheio. Sentados em bancos
grudados, ela me contou, gesticulando — parecia ter adquirido o hábito
americano de usar as mãos para moldar as palavras que saíam da boca —,
que havia ganhado o green card na loteria irlandesa e trabalhado em L.A.
por um ano antes de cruzar o país e chegar a Nova York. Empolgou-se ao
revelar que passou o Mardi Gras em Nova Orleans durante a viagem e, mais
especi camente, que viu toda aquela gente dançando nas ruas. Pareceu
sonhadora ao falar da experiência. Foi a única vez que se soltou. Sim,
lembro que, mesmo enquanto estávamos fodendo — ou melhor, quando ela
estava me fodendo —, eu pensava em como era linda, mas que havia
alguma outra coisa ali, algo enervante, não exatamente um ódio genérico,
talvez um ódio de si mesma. Isso. Estava mais para ódio de si mesma. O que
quer que fosse, era algo interno. Ela lidaria com aquilo. Eu nunca teria essa
chance.
Esse privilégio.
Então, de lá fomos para um café que até hoje não consegui encontrar.
Devia ser em algum lugar perto da Bleecker. Ratos passavam por baixo das
cadeiras. Embora eu fosse car mais do que feliz ao ir embora por causa
disso, ela insistiu bastante para que continuássemos lá. Parecia esperar algo
mais. Então acabei confessando que tinha gostado muito de conversar com
ela. Mais do que havia esperado. Ela disse que pensava da mesma forma, de
novo gesticulando, dessa vez esticando o braço como se quisesse dizer
Segure a minha mão. Eu me estiquei, e, antes de perceber o que estava
acontecendo, nós nos beijamos delicadamente.
Nada muito elegante.
Eu estava meio de pé, debruçado numa mesa, com ratos circulando perto
dos nossos pés.
Mas foi legal.
Senti todas as teias de aranha serem revolvidas e depois levadas por uma
rajada quente de verão que pareceu se fechar em torno de mim. Sei lá que
porra ela sentiu, mas fui sgado ali mesmo. Teria cado bem contente de
passar horas dando beijinhos naqueles lábios. Sem problema.
Só que, com muita habilidade, ela aumentou as apostas com um
movimento rápido e rígido de língua. Foi impressionante. Assim como a
chama piloto que se acendeu no duto do meu pau. Você conhece o som:
Vuch, ou seria puff?
De repente, eu estava olhando para aquela adolescente doce e inocente
como se ela fosse uma piranha coberta de porra. E gostei. O mais
importante: ela também. Eu deveria ir embora no dia seguinte. Mas já era o
dia seguinte. Provavelmente eu não a veria de novo até o Natal, e nem isso
era garantido. Ambos pretendíamos passar as festas de m de ano em casa
na Irlanda. Não tive alternativa.
— Quer ir para o meu hotel?
Aquilo foi algo épico para mim. Eu já tinha comprimido uns quinze anos
de adolescência mal vivida em duas horas, e ali estava um sujeito de trinta e
cinco anos, ainda em formação, tentando realizar a maior venda da sua
vida. Ela murmurou alguma coisa sobre eu estar indo rápido demais, e eu
recuei, sentindo-me grato. Aliviado. Então caminhamos lentamente pela
rua, de mãos dadas, procurando um táxi, mas sem fazer muito esforço para
encontrar. Por m, ela se virou para mim e completou:
— Podemos ir para o hotel se formos com calma.
Dito isso, começamos a andar mais rápido. Ela chamou um táxi. Nós nos
beijamos um pouco no banco de trás. Nova York me pareceu maravilhosa
através das mechas castanhas reluzentes que caíam sobre o meu rosto entre
os beijos.
Permita-me um momento aqui.
Obrigado.
Logo chegamos ao meu hotel, e o porteiro se aproximou de nós em
câmera lenta. Eu morro de medo desses seres que cuidam das portarias,
porque conheci um em Saint Lacroix, e tudo o que ele sempre parecia fazer
era reclamar de como recebia gorjetas miúdas. Eu não dava gorjeta a eles.
Para quê? Para carem ali de pé? Então, minha jovem namorada e eu
passamos pelo rosto sorridente — e, na minha cabeça, invejoso — e
chegamos ao elevador. Eu estava uma pilha de nervos naquela caixa
espelhada que zumbia. Por que sempre tem espelhos? Para mim não há nada
mais assustador do que ver a minha própria imagem de dois ou três ângulos
diferentes. Olhei para o chão.
Quarto 901 signi cava nove andares.
Rezei para a chave funcionar. Também rezei para ela ter mais de dezoito
anos. Neste país você não quer ser associado à pedo lia, nem de
brincadeira. E aquela garota realmente parecia jovem. Eu me contentei em
pensar que ela estava pelo menos na casa dos vinte, mas ainda assim não
conseguia tirar da cabeça que a qualquer instante a polícia iria arrombar a
porta com um chute. Em certo momento ela se virou para mim (estávamos
na cama) e piscou com uma expressão inocente.
— Conte uma história para mim — pediu.
Devo ter cado branco. Ela podia ter catorze anos. Contei a história de
uma mulher que voltou para casa com um rato que havia pegado na Índia
achando que era um cachorro. Nós nos beijamos e nos acariciamos, e
acabei fazendo sexo oral nela.
Bom, não quero ser explícito demais aqui, mas tenho que dizer isto
porque é verdade, e, pela minha experiência, raro: a vagina dela tinha um
gosto melhor do que a boca. Eu poderia ter passado a noite inteira lá
embaixo.
Sem problema.
Eu só subia para ver se ela era tão bonita quanto eu descon ava. Era. Isso
continuou até o dia começar a raiar. Ela disse que deveríamos ir devagar,
então fomos. Eu estava determinado a que não fôssemos até o m.
Lembranças de momentos com a Pen, lembranças físicas, começaram a
brotar em mim. Eu me lembro de olhar para Aisling enquanto ela dormia e
pensar: “Ela voltou. Consegui a Penny de volta.” Eu costumava olhar para a
Penny enquanto ela dormia. Era gostoso simplesmente deixar meus olhos
vagarem à vontade sobre aquela pele macia. Um quadro vivo, que
respirava. Era estranho voltar a tocar um corpo nu depois de tanto tempo.
Eu estava tão aterrorizado com a possibilidade de ela não me achar atraente
que nem sequer tirei toda a roupa. No meu íntimo, estava contente por
irmos devagar, pois isso signi cava que eu não teria que enfrentar a questão
do desempenho. E se eu gozasse rápido demais ou não conseguisse car
duro?
Usei uma máxima do AA, que me ajudou.
Quando em dúvida, seja útil.
Então, eu me concentrei em dar a ela o máximo de prazer que podia. A
Pen havia me ensinado a fazer sexo oral nela, e, naquele momento, quei
feliz por isso. Aisling exibia um leve sorriso no rosto adormecido. Parecia
bem feliz.
Quando amanheceu eu a chamei para tomar café da manhã. Arrumei
minhas bolsas e z o check-out. Logo estávamos em outro táxi a caminho
de um café perto da casa dela. E pouco depois disso eu estava em mais um
táxi, voltando para Aquele Lugar. Ela não olhou para o carro depois que
entrei nele e fui levado embora.
Eu sei disso porque olhei.
Ainda não havia nevado em Saint Lacroix. E eu ainda não tinha
vendido a porra da casa. A paranoia já estava me enlouquecendo, eu
achava que a empresa estava bloqueando a venda. Achei que vinham
subornando o corretor para conter seu entusiasmo por fechar um negócio.
Eu estava sob enorme pressão por causa da grande campanha que vinha
criando para uma instituição de caridade que oferecia férias de verão para
crianças com aids.
Grande projeto. Grande coisa.
Toda agência de publicidade deve ter no portfólio uma instituição de
caridade para a qual faz todo tipo de favores absurdos. Mas há alguns
incentivos atraentes para isso. Um: a agência normalmente pode fazer um
grande trabalho dramático para a instituição, mais dramático do que seria
autorizada a fazer para um alimento enlatado. E dois: há reduções scais e
isenções. Mas é importante escolher bem a que instituição de caridade você
se liga.
Especialmente nos Estados Unidos.
Por exemplo, uma instituição que arrecada recursos para ajudar viciados
a largar a heroína não é nem de longe tão con ável, atraente nem gera
tanta pena quanto uma que trata de crianças com aids. Adultos com aids
não são bons. Pode ser culpa deles mesmos. Não, crianças são boas.
Crianças com aids são ainda melhores. Desculpa, mas é verdade. Não é
culpa das agências de publicidade. Na verdade a culpa é sua.
Do público.
E, se isto nunca for publicado, a culpa também é sua, porque signi ca
que consideraram este tipo de história desinteressante.
Seus desgraçados.
As pessoas simplesmente não aceitam que um viciado em heroína peça
dinheiro para largar o vício. Talvez estejam certas. Quem sabe? Mas é isso.
Instituições de caridade são tão competitivas quanto empresas comerciais e,
hoje em dia, precisam pensar como elas.
A nal, estão correndo atrás da mesma grana.
E há também as redes de televisão, que têm um tempo limitado de
transmissão disponível anualmente para ser doado a instituições de
caridade. A quais devem ceder o tempo? Cada rede tem seus padrões a
manter e se preocupa em divulgar o per l dos seus canais. Em suma, tudo
depende de qual comercial vai dar ao canal a melhor imagem. Mais uma
vez, com as crianças você está seguro. Então a agência de publicidade é
esperta o bastante para escolher uma instituição com muitas crianças, pois
sabe de cara que as emissoras vão ter mais tempo para elas — neste caso,
tempo de exibição.
De qualquer forma, permita-me contar minha história sobre o
acampamento de verão para crianças. Estávamos gravando o comercial em
uma locação no Acampamento Northern Minnesota. Dormíamos em
beliches lá. Só fui saber o que era um acampamento de verão quando me
explicaram. Ainda assim me pareceu algo ao qual apenas crianças de classe
média iriam. Mas não existe classe média nos Estados Unidos. É, sei...
Depois de um sono irregular, fui ao toalete (eufemismo para banheiro
comunitário) dar uma cagada e fazer a barba. E me ocorreu que, com
duzentas crianças correndo por ali durante o verão, algumas das suas
doenças contagiosas poderiam ser transferidas para as pias. Isso me ocorreu
pouco antes de fazer a barba.
Pensei em cada poro da minha pele se abrindo para todo o ar
contaminado. Meu Deus. Segui em frente e z a barba, claro. E, depois de
alguns olhares avaliadores para mim mesmo, quei satisfeito por, apesar de
não ter dormido bem, não passar essa impressão.
Tomei o cuidado de não sorrir para mim mesmo. Quero nunca ser
agrado sorrindo para mim mesmo diante de um espelho. Tudo bem fazer
isso em particular. Saí para tomar café da manhã. A equipe e o diretor já
estavam reunidos em torno de pratos fumegantes. Pareciam cansados e
barbados.
Isso me agradou.
Eu me sentei e devorei ovos, torradas e tudo o que era oferecido. Caaa-
fééé. Então, o chefe do acampamento e grande herói do dia entrou todo
empolgado, esfregando as mãos e baixando os olhos com um excesso de
humildade. Ele dirigia o lugar e era o fundador da coisa toda. Notei que o
homem também estava com a barba por fazer. Aquilo era muito atípico, já
que ele era sempre muito cuidadoso com a aparência. Na verdade, com
exceção da barba, ele parecia normal e bem-vestido como de costume, mas
usava roupas de lã e tweed. Meu sangue começou a coagular. Ele se arriscou
a lançar um olhar humilde ao redor da mesa. Estava apenas em busca de
informações. Quem estava à mesa? Com quem precisava ser mais gentil, e
em qual ordem?
Parou junto a mim.
— Você não fez a barba, fez?
Devo ter cado branco.
— Sim, z. Eu...
— Ah, poxa... Estou muito desapontado.
Estava prestes a perguntar como ele achava que eu me sentia.
— A gente não faz a barba aqui no acampamento. É para ser uma coisa
informal, mas acho que, como a rigor você está trabalhando, a gente vai
deixar passar.
Dei uma risada sincera. Eu sobreviveria. E, mais importante, não
precisaria fazer um teste de HIV antes de me encontrar novamente com a
minha amada. Estar naquele acampamento, com pássaros cantando e
crianças por toda parte sendo tão fo nhas e legais umas com as outras,
despertou algo familiar dentro de mim. Eu me vi morando com Aisling em
algum lugar de oresta como aquele. A luz banhando nossa felicidade, risos
ecoando nas árvores até nos calarmos para não acordar o bebê.
Nós nos consideraríamos extremamente afortunados pelo fato de nosso
lho não ter sido contaminado por alguma terrível doença.
O número de telefone da minha futura esposa queimava minha coxa, o
interior de uma gaveta e alguns outros lugares dos quais não conseguia me
lembrar. Eu havia tomado a precaução de anotá-lo em vários pedaços de
papel para o caso de perdê-lo. Tive que resistir à tentação de ligar para ela.
Enorme.
Anseio físico.
Eu estava mal. Quer dizer, fazia cinco anos que eu nem sequer olhava
para uma mulher, e então tudo aquilo em cima de mim. E eu não sabia
sequer o que aquilo era. Nunca havia sentido aquelas coisas. Hoje em dia,
eu me contraio só de olhar para trás, mas realmente estava apaixonado. Ou
obcecado. Meus olhos pesavam quando eu pensava nela, minhas pupilas
dilatavam só de eu pensar sobre ela.
No m das contas, os anúncios do acampamento caram ótimos, e um
deles até ganhou um prêmio.
De lá para cá, todas as crianças que apareceram neles morreram.
Ainda não sei bem o que fazer com essa informação.
Mas aí está. Para mim é fácil ser totalmente honesto porque a
possibilidade de alguém um dia publicar o que escrevo aqui é muito remota.
Pelo menos vou me bene ciar, usar isto como uma espécie de terapia. Eu
senti amor ou obsessão? Ainda não sei. De algum modo, pensar nela, ou
mesmo pensar em ligar para ela, me fez sobreviver àquelas noites em
Minnesota.
Então telefonei para ela, e conversamos, principalmente sobre
publicidade — portanto, sobre mim. Achei que ela estava interessada.
Talvez estivesse. Pelo menos isso teria tornado a conversa um pouco mais
prazerosa para ela. Não consigo deixar de pensar que ela deve ter lidado
com essa parte da coisa toda da mesma forma que uma prostituta lida com a
conversa antes do sexo. Você tem que escutar um pouco das merdas deles
até se sentirem à vontade o bastante para carem de pau duro, e eles
precisam car de pau duro, caso contrário não vão fazer o sexo que você
precisa que façam para ser paga. Era o que eu achava que estava
acontecendo. Ela me escutava, simplesmente sei que me escutava. Lá vou
eu de novo. O ego masculino. Como o cara que acha que a prostituta goza
quando parece gozar. Quero acreditar que ela me escutava, gostava de mim
e, sim, até me amava um pouco. Mesmo agora pareço querer acreditar nisso.
Maluquice, né? Eu costumava dizer “Maluquice, não?”. Mas agora é né.
Estados Unidos.
Eu havia passado quase dois anos em um estado de espírito horrível em
Minnesota e achava que merecia que algo de bom acontecesse. Hoje, em
Nova York há mais de um ano, percebo como devo ter soado inocente e
bobo para uma fotógrafa faminta de vinte e sete anos e determinada a
arrasar na cena nova-iorquina. Tudo bem. Ela podia ter um fascínio
mórbido, porém o meu não era muito mais desenvolvido.
Eu queria que ela me ajudasse a sair. Sair de Saint Lacroix. Queria que
ela fosse a minha guia em Nova York. Eu a queria. Queria muito.
Eu tinha minhas razões, e suponho que Aisling tinha as dela. Para a
garota, eu devia parecer um baita culchie bisonho que ganhava um salário
alto demais, sendo culchie um termo para qualquer pessoa de fora da área de
Dublin.
Eu estava pronto para a ceifa.
Nas suas viagens trabalhando como assistente, Aisling tinha visto muitas
pessoas parecidas comigo. Era comum fotógrafos da nublada Nova York
marcarem sessões em Miami — a iluminação, meu bem. Muitos quartos de
hotel, bares e longas sessões de foto. Um monte de diretores de arte como
eu, com dinheiro, mulheres, lhos e hipotecas. Espero ter me destacado por
ter apenas a hipoteca.
Mas ela devia ter achado que eu era casado, ou torcido por isso. Veja
bem, nada me tirava da cabeça que ela estava recolhendo informações
sobre mim para usar depois. Talvez quisesse material para me chantagear
por causa da esposa que imaginou que eu tivesse. Bom, por que mais eu
estaria morando em uma casa vitoriana de três quartos? A razão para a
chantagem? Receber encomendas de trabalho bem polpudas da agência de
publicidade. Para ela, como fotógrafa iniciante, valeria muito ter feito um
ou dois trabalhos para uma empresa tão renomada.
Pensei: “Que se dane. Ela é linda, eu estou sozinho. E também estou
precisando de alguma coisa para aumentar minha coragem.”
Eu não teria tido os colhões para fazer o movimento seguinte se uma
garota gostosa não estivesse me estimulando. Dei a ela o poder de me
arrancar de lá.
Comecei ligando para o RH e perguntando como pedir demissão. Como
se eu não soubesse. Queria que eles soubessem que era sério. Eu já não me
importava. Na realidade, foi uma jogada maluca. Provavelmente eles
tinham certeza de que eu estava apaixonado, e vamos encarar os fatos: eu
estava. Fiz questão de perguntar se aquela conversa era con dencial, já
sabendo que, em uma situação como aquela, o RH teria que informar ao
presidente do grupo. Então, na prática, pude ameaçar me demitir sem ter
que pedir demissão. Graham, meu chefe, cou sabendo o que eu queria que
ele soubesse. Que eu estava falando sério.
Não demorou para ele me perguntar, como quem não queria nada, se eu
tinha vendido a casa. Nunca vou me esquecer da expressão no rosto dele.
Deus que me perdoe, mas eu gostei. E mais uma vez, acredite em mim,
provei do meu próprio veneno em seguida, mas aquele momento foi meu. A
melhor forma de descrever seu rosto branco é dizer que ele ondulava. A
onda solitária começava abaixo do queixo e subia até a linha do cabelo.
Parecia leite. Ele era branco assim. Demorou alguns instantes para o
signi cado daquilo ser registrado por ele, e depois por mim. Achei que para
ele não teria importância, que tanto fazia. Mas pelo que parecia tinha
importância, sim. Ele realmente deve ter pensado que contaria comigo por
mais alguns anos. Se eu tivesse sucumbido às suecas, ele provavelmente
conseguiria.
No dia seguinte ele me chamou para dizer que eu pegaria um voo rumo a
Nova York, onde ajudaria no escritório durante algumas semanas. Eu não
sabia que não voltaria mais para Saint Lacroix, mas era o que eu esperava.
Eu poderia ver a minha Aisling. Não ligava para o trabalho. Foda-se o
emprego, estava de saco cheio da publicidade e de todo mundo no ramo. Só
queria algumas semanas remuneradas em um belo hotel de Nova York com
o meu amor.
Quando voltasse ao Forte Fracasso (meu apelido para a casa), eu falaria
com ela. Eu a imaginaria sentada em uma cadeira à minha frente. Eu taria
amorosamente um ponto a meia distância logo acima da cadeira, como se
olhasse dentro dos seus olhos verdes, e inclinaria a cabeça, impressionado.
Assentiria de maneira educada, me inclinaria para a frente e concordaria de
forma quase relutante com o que ela diria. Ela era tão inteligente que até eu
tinha que dar o braço a torcer.
E então eu daria uma risada feliz. Porque estava feliz. Estava tendo um
caso amoroso. O caso perfeito, sem interrupções por parte de ninguém. Vi
um cartum que tinha uma imagem de Narciso olhando para o próprio
re exo num lago. A namorada dele está perguntando: “Narciso, tem outra
pessoa?”
Se me demitissem depois da minha temporada em Nova York, tudo bem,
pelo menos teria vivido alguns momentos inesquecíveis. Eu havia tentado
me organizar e viajar para Nova York antes, mas meus planos nunca tinham
dado em nada. Todas as vezes tentei desesperadamente esconder a decepção
na voz quando contava a Aisling que não conseguiria ir.
Eu me culpava ao ver que qualquer esperança para a nossa relação estava
murchando. Aquilo me matava. Então eu telefonava por volta de dez e
meia da manhã de sábado, e ela não estava em casa. A diferença de uma
hora no fuso horário me deixava ainda mais ansioso: nove e meia em Nova
York. Caramba, como minha mente se divertia com isso, posso garantir.
Ela não estava em casa?
Óbvio que estava saindo do apartamento de algum cara e voltando para
casa, ou talvez ainda estivesse trepando com ele. Por que não? Ela foi para a
cama comigo na primeira noite em que saímos. Mas aquilo era diferente,
aquilo era amor. Foi comigo. Eu ligava e me oferecia para ir passar um m
de semana lá. Ela descartava a hipótese com elegância, dizendo que seria
melhor se eu não tivesse que gastar nada. Melhor esperar uma viagem de
trabalho. Ela estava certa, claro, mas eu morria de vontade de transar.
Também via que ela era ambiciosa. Não tinha medo de falar do trabalho
dela.
Isso me assustava um pouco, pois signi cava que ela só estava interessada
em mim por causa do meu cargo de diretor de arte sênior. Eu odiava a
palavra “sênior”, dava a impressão de que eu era velho. Para ela, eu devia
parecer velho para cacete. Meu consolo era pensar que não parecia ter mais
que trinta e dois anos. Ela brincava com isso. Qual garota bonita que tinha
acabado de fazer vinte e sete não brincaria? Certa noite ela disse que ia
realizar uma exposição. Fiquei tão contente por ela me envolver na sua vida
a ponto de me contar esse detalhe que me ofereci para ajudar. Tentei
impressioná-la com a minha capacidade de manipular a mídia, mas ela não
se impressionou.
Ficou mais para desapontada.
Eu quis amenizar a coisa toda dizendo que iria lá para comemorar o dia
de São Patrício.
Agora vejo como isso deve tê-la deixado mais à vontade para seguir em
frente com o que ia fazer. É engraçado como, depois de decidirmos que não
gostamos de alguém, conseguimos encontrar razões para sustentar a decisão,
e, da mesma forma, fazer o oposto. É o que acho que estava acontecendo.
Eu mergulhava cada vez mais e já havia decidido que gostava dela — não,
eu a amava —, e pouco a pouco comecei a recolher e trançar uma
sequência orida de pequenas observações e nuances que a uniam
carinhosamente a mim.
Ao mesmo tempo, ela estava compilando a própria lista.
De queixas.
Lembro-me dos silêncios que se instalavam após eu dizer alguma coisa. O
tipo de silêncio no qual você deixa a pessoa que fala cozinhando, calada. É
como um holofote apontado para o que foi dito. Como repetir algo com
uma voz fria e desinteressada. E nas folgas que tirava de mim ela alimentava
seu fervor para completar o que provavelmente já havia começado.
Eis o que sei sobre ela.
Vinte e sete anos. Aisling McCarthy. Assistente de fotogra a. No
começo dos anos 1990, trabalhou como gerente de projetos em uma
empresa de design grande e ultrapassada de Dublin. Deixou a cidade após
ganhar um green card na loteria. Disse que teve que deixar Dublin às
pressas. Trabalhou em L.A. por cerca de um ano. Trabalhou como
recepcionista no Green Room, restaurante quatro estrelas que recebia a
elite de Dublin. Tento não de nir o termo “recepcionista”, a não ser que
esteja me sentindo particularmente grosseiro.
Ela adora Deelford, minha cidade natal, e o padrasto, o Sr. Tom
Bannister, advogado do meu pai, que está morto.
A mãe dela é de Ballina. Uma irlandesa bastante patriótica, mas não de
um jeito feniano, desagradável, como uma revolucionária. Quando a
conheci, ela era uma das assistentes de Peter Freeman, um grande fotógrafo,
um baita fotógrafo, provavelmente um dos melhores de Nova York e,
portanto, do mundo. Ela dividia um apartamento no Lower East Side com
duas pessoas. Sua casa na Irlanda ca em Whiteheath. Elegante para
cacete, acredite. E parece muito, muito nova. Já perguntaram se ela tinha
dezesseis anos.
Passou um tempo em um colégio de freiras quando criança. Era muito
próxima de uma delas. E o avô morreu na época em que a conheci.
É obcecada por retratos, especialmente em preto e branco com alto
contraste.
Esteve na Espanha e trabalhou em um museu.
Todas essas informações registradas após uma noite curta e não mais do
que quatro telefonemas. Ela nunca poderia me acusar de não escutar.
Escutei até demais. Estava tentando absorvê-la. Poderia ter escrito um livro
sobre ela.
Opa.
Certa vez, ela passou férias com a família no Peru. Disse que cou
enojada com o modo como olhavam para ela. Branca demais naquele
ambiente de rostos cor de couro e cabelos cor de corvo. No seu novo
trabalho era necessário ter muito conhecimento de informática. Ela me
encorajou a abrir minha própria agência em Dublin. Gostava de beber
Guinness. Recebeu ajuda de Peter Freeman no seu trabalho. Ele até
apareceu alguns ns de semana para ajudá-la. Senti ciúmes ao ouvir isso.
E é só. Fora, claro, todo o resto que vou contar. Vou lhe dizer uma coisa:
estou me surpreendendo comigo mesmo, porque, em geral, sou mais
cauteloso. Se houvesse um jeito de torturá-la e matá-la sem ir para a prisão,
eu iria em frente. Ou se me sentisse capaz. Não se preocupe, não passo o dia
pensando em fazer isso, sonhando acordado com formas de matá-la. Apenas
me sinto capaz de causar mal a ela. Mas não vou. Estas páginas são o mais
perto que vou chegar de compensar os efeitos daquela noite de março. Mas
não vamos nos precipitar, certo? A raiva tem me consumido há quase seis
meses. Causar esse tipo de fúria em alguém demanda uma boa dose de
talento e, pre ro pensar, inteligência. Amor, ódio: qual é a diferença?
Certa noite, ao telefone, ela me contou que tinha fechado contrato para
um livro. Interessante.
Perguntei que tipo de contrato e como havia conseguido. Eu estava
sempre interessado em caminhos que me tirassem da publicidade. Ela me
contou que tinha um amigo que estudava produção editorial em Princeton.
Tentei não engasgar. É de escrotos podres de ricos que estamos falando aqui.
Na hora, claro, esqueci que eu mesmo ganhava muito bem. Nunca me senti
rico. Apenas idiota. Ainda mais naquela casa. O livro consistiria de ensaios
fotográ cos, disse ela. Retratos. Ela já havia feito alguns. Mas ainda tinha
alguns anos para concluir o trabalho.
Imediatamente quei com inveja. Eu queria fazer algo puro. Algo que
não precisasse vender nada.
— Talvez você apareça nele — acrescentou.
Isso foi deixado em aberto. Eu não sabia se deveria me sentir lisonjeado,
mas foi o que aconteceu. Combinamos de nos encontrar em Dublin quando
estivéssemos na Irlanda para o Natal. Telefonei para lá de Saint Lacroix e
reservei um belo quarto no Shelbourne Hotel. Saint Lacroix estava gelada
para cacete no momento em que, agradecido, entrei num táxi, enquanto
soltava o ar ruidosamente e, com um sotaque americano, pedia ao motorista
que me levasse ao aeroporto. Era uma corrida de quarenta e cinco minutos,
e não, eu não queria conversar. O voo também era longo. Oito horas e
meia. Na verdade, foi mais por causa da Northsouth Airlines.
A pior companhia aérea do mundo.
Atrasos eram o padrão. Eu nunca levava mais do que a bagagem de mão;
do contrário, as malas acabariam sendo entregues dois dias depois onde
quer que você estivesse. Os passageiros viviam gritando com o pessoal da
empresa, que obviamente estava acostumado a ouvir gritos e a usar
máscaras pro ssionais de indiferença. Aquela era a única companhia aérea
que decolava de Minnesota, de modo que não havia muito a se fazer... a não
ser gritar.
Eu achava que estaria muito cansado antes de encontrar minha amada
em Dublin, por isso me recolhi no Shelbourne para dormir por algumas
horas. Quando acordei, encontrei uma mensagem passada sob a porta do
quarto.
Ali, no papel timbrado do hotel, havia uma daquelas inscrições Favor
ligar para. Vi Aisling escrito em uma bela caligra a, encabeçando a
composição de tipogra a vitoriana que me pareceu bem exótica, após um
ano e meio no ambiente sem história do qual eu acabara de sair.
Eu ainda tinha cerca de uma hora para matar antes de ligar para ela às
sete da noite, como pedido no papel. Eu precisava de camisinhas e comecei
a entrar em pânico porque não conseguia lembrar se nesse departamento
especí co a Irlanda ainda era medieval. Até pouco tempo você só podia
comprá-las com receita médica.
Fui dar uma caminhada. Virei à direita após sair pela bela porta da frente
do Shelbourne e segui em direção à Grafton Street. Precisei conter as
lágrimas. Acho que não consigo expressar a sensação de caminhar em meio
a todos aqueles rostos jovens e bonitos. Era como se alguém fosse gritar:
“Não ele. Não. Todos os outros podem caminhar por aqui, rir, relaxar e se
vestir bem, mas este sujeito não. Ele nem sequer deveria estar aqui.”
Foi fantástico. Nem sei se me encontrava mesmo na Grafton Street.
Estava aberta para pedestres no dia anterior à véspera de Natal. Nunca vou
me esquecer desse momento. Até achei uma farmácia da cadeia Boots, o
que me fez sentir como se estivesse em Londres. Dublin havia mudado
muito, e eu também.
Eu era uma pessoa mais triste.
No entanto, depois de comprar uma embalagem com doze camisinhas
(ei, algumas delas poderiam estourar), eu me alegrei um pouco. Voltei para
o hotel com a sensação de que tinha acabado de sair da prisão. Liguei do
quarto para o telefone da casa dela, e um cara atendeu. O pai? O padrasto?
Caramba, por aquela eu não esperava. Então simplesmente disse que ligaria
depois ou algo assim. Ele não pareceu muito feliz. Às sete ela ligou e
marcou na esquina da Grafton Street, no grande shopping center de vidro.
Eu conhecia o lugar e, tentando manter a calma, concordei em encontrá-la
ali em quinze minutos. Quinze minutos? Fui para lá e esperei do outro lado
da rua. Ela estava um pouco atrasada. Mas linda. Tive que conferir para me
convencer de que era mesmo tão maravilhosa quanto parecia. Ela, pensei,
estava fazendo a mesma coisa comigo, mas agora me dou conta de que devia
estar conferindo como eu tinha cara de bobo. Como era fácil me enganar.
Comemos alguma coisa em um café próximo, e lá a primeira foto foi
tirada. Na verdade, eu nem notei, mas vi algo nos olhos dela depois de
apertar o botão da pequena câmera descartável. Ela disse que
provavelmente o retrato nem sequer sairia naquele ambiente mal
iluminado. Eu havia perguntado se ela andava com uma câmera. Ela
respondeu que sim, mas que eu iria rir se a visse. Falei que não. Ela insistiu
que sim. Então eu disse tudo bem, que iria rir. Ela pegou uma câmera
descartável (do tipo que você vê em bancas), inclinou-a no tampo da mesa,
apontou-a de baixo para cima na direção do meu queixo e apertou o
obturador. Lembro que estava olhando para ela quando a foto foi batida.
Olhando direto para seus grandes olhos verdes e inocentes... Clique.
Imediatamente me senti roubado.
Ela havia capturado meu rosto bobo.
Meu olhar estúpido havia sido sugado do meu rosto, substituído por uma
expressão de descon ança. Só por um momento. Meu primeiro instinto
estava correto. Eu sabia que uma foto tirada daquela forma — de uma hora
para outra, sem preparação, batida por uma pro ssional — não poderia ser
lisonjeira.
Ela bebeu água com a refeição, e depois acabamos em um pub em
Temple Bar, onde tomou cuba-libre pelo resto da noite, enquanto eu virava
umas cinco garrafas da maldita água Ballygowan. Ela devia estar alucinada
quando voltamos para o meu hotel. Fiquei satisfeito com minha forma de
lidar com a situação. Falei:
— Uma pena você não poder voltar comigo para o hotel.
— Por quê, tem regras? Você não pode entrar com ninguém?
— Não, só imaginei que você não poderia ir, com seus pais e...
— Ah, não. Eu quero ir.
Ding-ding. Avançar a todo vapor. Cuidado com os icebergs.
Caminhamos para o hotel, ela agarrando com os dedos compridos minha
mão atarracada. Fazia uma noite linda, e as árvores ao longo do Stephen’s
Green estavam amareladas por causa da iluminação da rua em contraste
com o céu azul-marinho. Não falamos muito. Ela me beijava. Sem parar.
Houve um momento em que seus grandes olhos se dilataram, depois suas
pupilas se encolheram até parecerem cabeças de al nete. Aquilo me deixou
meio assustado. Fiquei pensando se ela não havia usado alguma droga. Já no
quarto, entramos em ação de um jeito que hoje considero bem objetivo.
Usamos a MTV como iluminação.
Foi ótimo. Eu adorei. Ela estava linda. Demais. Acho que não estaria
escrevendo isto se não fosse o caso. Não é todo dia que você tem a chance
de transar sem a menor pressa com a Virgem Maria quando ela estava com
dezesseis anos. Suas costas eram bonitas e esguias. As minhas eram peludas.
Eu não conseguia parar de rir. Na verdade, houve momentos em que
cheguei a rir alto. Ela cou um pouco incomodada com isso. Mas eu não
conseguia parar. Estava bom demais. Quando me sinto bem assim, eu rio.
Aisling achou que eu estava rindo dela. Além do mais, eu também
estava nervoso. Fazia (sim, você já sabe) cinco anos. Rolamos de um lado
para outro e basicamente transamos até o amanhecer. Lembro que, em dado
momento, ela cou por cima. Seus longos cabelos castanhos e sedosos
caíram para a frente enquanto ela quicava em mim. Os cabelos formavam
uma massa escura que parecia o interior do capuz da Morte. Como uma
cena saída de um daqueles lmes de terror no qual a gente consegue ver o
brilho fraco de dois pequenos pontos vermelhos em meio à escuridão.
Eu não conseguia deixar de pensar no comentário que ela havia feito
sobre o Mardi Gras de Nova Orleans e sobre como tinha se impressionado
com os dançarinos e o clima da festa como um todo. Imaginei umas pessoas
vestidas de vodus sinistros e cobertas de sangue de galinha. Só que ali era
Dublin. Estávamos muito longe da Louisiana, e o alvorecer entrava
suavemente pela janela. Comecei a me preparar para a nossa separação.
Pedimos café da manhã, e tomei banho depois dela.
Quando saí do banheiro, ela estava debruçada na janela enquanto tirava
fotos com sua pequena câmera descartável. Sem dúvida, em breve veríamos
esses retratos de novo.
Só Deus sabe o que mais ela fotografou enquanto eu tirava o roupão e
vestia minha roupa. Oportunidades não lhe faltaram. Ela foi na frente a
caminho do elevador. Então, virou-se para mim, xando aqueles grandes
faróis verdes, e disse:
— Eu estou um lixo.
— Você não está tão ruim assim — falei, tentando não deixar que
soubesse como estava linda.
— Tão ruim? — reagiu ela, nitidamente irritada.
Eu me encolhi. Ela fez uma ligação na recepção. Também tinha usado o
telefone na noite anterior. Para avisar aos pais que não voltaria para casa.
Tomamos café, e eu peguei um táxi para a Heuston Station. Em suma, isso
foi tudo.
Passei em casa o segundo Natal depois da morte do meu pai. Ficamos
bem, minha mãe e eu. Meu pai adorava o Natal, então a cadeira vazia
chamou muito a nossa atenção naquela época do ano. Mas eu estava
otimista. Bem, na verdade não, estava alegre. Tinha uma namorada
irlandesa espetacular, e minha casa estava prestes a ser vendida, o que
signi cava que Saint Lacroix chegava ao m do seu reinado como a cidade
em que eu morava. Naquele Natal eu animei a casa. Meu irmão nos fez uma
visita. Fui às minhas reuniões do AA. Aisling até me visitou em Deelford, e
tomamos café em um lugar novo. Um banco que tinha sido reformado. A
Irlanda havia mudado muito. Nenhuma das mudanças me incomodava.
Olhando em retrospecto, acho que ela queria me convidar para uma
festa que um dos seus amigos de Dublin dava todo ano para comemorar o
réveillon. Ela estava em Deelford para visitar o padrasto e tirou um tempo
para me ver. Isso foi dois dias antes da véspera de Ano-Novo.
Talvez ela quisesse fazer na véspera do Ano-Novo o que acabou fazendo
comigo no Cat and Mouse Bar em Nova York três meses depois. Não havia
nada que me indicasse que era esse o caso, a não ser a minha
intuição/paranoia notoriamente falha. Na noite em que nos encontramos
em Dublin ela comentou que um amigo de Nova York estava em visita na
cidade na época de Natal e que ela o deixara em um bar qualquer. Quando
nos vimos e nos beijamos pela primeira vez naquele encontro senti um forte
cheiro de álcool, o que me levou a concluir que ela provavelmente havia
bebido com o sujeito antes de me encontrar. Eu, claro, reclamei, dizendo
que ela não deveria largá-lo sozinho, que deveríamos tê-lo convidado para
se juntar a nós.
As mãos compridas dela descartaram a sugestão.
— Ele é grosseiro demais, você não ia gostar dele.
Acredito que o conheci no mês de março seguinte, no Cat and Mouse.
De volta ao Bistrô Bancário, acho que o fato de ela já ter marcado de visitar
amigos em Londres na véspera de Ano-Novo adiou por mais alguns meses a
ferida que se abriria na minha alma. Reservei um quarto no Hotel
Constance para a noite depois da virada, na esperança de repetirmos a
noite de sexo da semana anterior. E achei que seria uma bela surpresa para
ela, já que um dia havia trabalhado lá como recepcionista.
Liguei para ela de Londres no dia de Ano-Novo após uma noite
frustrante com meus amigos do AA. A mãe atendeu. Foi muito simpática e
perguntou quem era. Esperando que Aisling tivesse mencionado o meu
nome, respondi.
— Desculpe, quem?
Meu peito caramelizou.
E, quando a garota dos meus sonhos nalmente se atrapalhou, sonolenta,
com o telefone e disse alô, ouvi a decepção na sua voz rouca. Então os nãos
começaram a sair do fone em la única. Não, ela tinha que passar um
tempo com os pais. Não, ela quase nunca os via o su ciente. Não, talvez
quando estivéssemos de volta a Nova York. Não. Não. Não.
Não contei que havia reservado o hotel. Fácil, já que sou muito bom em
esconder a decepção. O Hotel Constance tem multa de cem por cento por
cancelamento. Se um dia você pensar em cancelar uma reserva lá, melhor
saber que isso signi ca que não vai receber o dinheiro de volta.
Minha irmã resumiu bem:
— Isso me parece mais uma punheta bem cara.
Ela também tem um invejável domínio da língua inglesa. E, com o
Constance cobrando quatrocentos euros a diária, ela tinha razão. Fiz tudo o
que pude para não telefonar para Aisling até retornar a Saint Lacroix. Eu
não queria voltar de jeito nenhum. Naquele momento só ela me
interessava. Eu odiava meu grande emprego maravilhoso. “Odiava” nem é a
palavra certa. Passa uma ideia de ação. Aquilo mais parecia apatia.
Deixando o cuidado para lá, contei a pessoas de língua solta que estava
infeliz e que em breve pediria demissão. Até aquele momento, não queria
nem pensar em algo assim pelo risco de ser ouvido. Mas passei a querer ser
demitido.
Eu teria recebido a notícia de bom grado. Mas eles não me demitiram.
Longe disso. Quando voltei do recesso de Natal, fui mandado para Nova
York. Era evidente que eu estava cagando e queria car em Nova York.
Então, arranjaram isso para mim. O cialmente eu deveria ajudar por
algumas semanas, mas sabia que nunca mais voltaria. Acho que eles
também sabiam disso.
Em especial porque a venda da minha casa tinha sido marcada para 2 de
fevereiro. Dois meses antes, um jovem casal havia aparecido à minha porta.
— Oi. A gente queria saber se você tem interesse em vender sua bela
casa.
Tive que resistir à tentação de abraçá-los.
Pessoas perfeitas. Palavras perfeitas saindo das suas bocas. Depois de
tanto tempo no ramo da publicidade e de tantas noites em claro estudando
velhas fotos de arquivo de pessoas como aquele casal, eu estava começando
a achar que era o único que dava peidos longos e sonoros e se masturbava
na banheira. Eles simplesmente pareciam con rmar que, para começo de
conversa, eu não deveria nem ter cado naquela casa. Era como se eu a
estivesse devolvendo aos donos por direito.
Uma prece sendo atendida não era algo a que estivesse acostumado. Eles
devem ter passado pela casa quando havia uma placa de “vende-se” da
imobiliária e esperado. Inteligentes. Porque, como eu havia rompido com
aquele corretor, nenhum de nós teria que pagar comissão.
A fuga para Nova York não era mais um sonho. Eu pegaria o avião
domingo à noite. Deixei dois recados para Aisling dizendo que estaria lá na
semana seguinte.
De forma deliberada não disse que iria car lá para sempre. Eu sabia que
ela continuaria me rejeitando.
Na noite de domingo ela deixou uma mensagem dizendo que achava
engraçado, mas que estaria em Miami naquele dia. Hilário. Eu sabia que
estava sendo sacaneado. Só nunca poderia ter adivinhado o nível de
so sticação da sacanagem. Então, na noite de terça-feira, por volta de sete
horas, ela ligou para o meu quarto no hotel Soho Grand, onde os hóspedes
ganham seu próprio peixinho preto e onde eu imaginava que foderia com
ela mais tarde na mesma noite.
Não seria assim, meu amigo, não seria assim. Nessa noite começaram a
se desenrolar os acontecimentos que ainda hoje me deixam com a boca
seca. Combinamos de nos encontrar no Georgina’s, um café na Prince
Street. Cheguei cedo e me sentei a uma mesinha. Ela chegou de casaco
branco, parecendo cansada. Para o meu alívio, não estava tão bonita.
Aliás, tenho consciência de que a esta altura estou soando como um
namorado rejeitado tentando disfarçar a tentativa de vingança (isto é, toda
esta história) como um acontecimento literário do qual você (leitor)
deveria participar. Pode ser. Mas acho que você concorda que as estripulias
de Aisling merecem ser registradas, seja qual for a justi cativa. Chame isso
de um alerta aos meus irmãos românticos. Chame de delírios paranoicos.
Chame do que quiser. Chame de terapia para mim (e você se mete muito
na vida dos outros).
Veja, caso ela se reconheça nestas páginas, também não tem problema.
Claro que o tiro poderia sair pela culatra e torná-la famosa. Ainda assim,
esse acontecimento indicaria que muitos exemplares do livro teriam sido
vendidos, o que signi ca que eu também não teria me saído tão mal.
Ainda está lendo? Que bom.
De volta ao Georgina’s, eu disse algo sobre como aquele local era
agradável. E, tendo saído de Saint Lacroix, falava sério. Contei por alto que
tinha visto fotos dele em algum lugar e perguntei se era famoso. Nunca vou
me esquecer do olhar frio no rosto dela quando respondeu:
— Você vai se lembrar dele depois desta noite.
Eu a observei para descobrir se o comentário signi cava algo bom. Não
parecia o caso. Gaguejei de leve.
— Como assim? Vou ter uma grande surpresa esta noite?
Eu queria manter a ambiguidade.
— Aguarde. — Isso foi tudo o que ela disse.
Aquilo não era o que eu tinha esperado, e quei assustado. Aguarde?
Devia haver alguma espécie de cronograma. Uma ordem. Uma estrutura
que ela guardava na cabeça sobre como a noite deveria se desenrolar. Engoli
em seco como alguém que se dá conta de que está em grandes apuros. Algo
nada bom iria acontecer. Mas não estava necessariamente acontecendo
naquele instante. Aconteceria em breve, e ela sabia o que era, mas eu não.
Eu ainda não podia ir embora porque não tinha nada a que reagir. Ela
começou a me bombardear com perguntas. Onde cava o escritório da
Killallon Fitzpatrick? Eu esquiava? Malhava? Já tinha cavalgado? Jogava
xadrez? Respondi que não a todas essas perguntas. Eu me senti em um
interrogatório. Que porra era aquela? Aquilo fez com que eu me sentisse
muito ocioso. Ela disse que adoraria jogar xadrez comigo um dia.
Comentei que ser derrotado no xadrez seria duplamente humilhante, já
que eu gostava de me ver como um estrategista. Os olhos dela brilharam.
Ela estava se divertindo. Não consegui evitar me remexer na cadeira. Ela se
recostou e me observou enquanto eu me contorcia.
Ela parecia... relaxada. Não mais tão inocente. Mais à vontade consigo
mesma. Totalmente no controle. Invejei essa sensação, embora não
soubesse o que ela controlava.
Eu logo descobriria.
Ela olhou ao redor. Cruzou os braços. Depois forçou um bocejo.
Entediada.
— Acho que vou para casa agora — disse ela.
Só fui entender o signi cado dessa frase um tempo depois. Mas eu soube
que a dispensa dela era signi cativa. Ela me deu um tempo para digerir a
informação.
Devo ter conseguido fazer uma pergunta que me permitiria avaliar se ela
pretendia voltar para casa sozinha. Não consigo me lembrar direito do que
foi falado, só da sensação de estar sendo assassinado. (Sou um tremendo
melodramático, não?)
Tem uma cena em O Resgate do Soldado Ryan na qual um soldado alemão
está matando um soldado americano com uma faca. O alemão está em cima
do ianque. O americano começa a suplicar baixinho, dizendo algo como
“Espere, não podemos conversar sobre isto?”. Em vão. O alemão, quase
pedindo desculpas, continua descendo com a faca. Seu rosto trai o ato que
ele está cometendo. (Caso você esteja se perguntando, eu sou o
americano.) Então, ali estava eu sendo apunhalado, mas recebendo as
ataduras imediatamente depois. De tal modo que quase acabei me
desculpando com ela. Estava prestes a isso, o que a faria franzir sua bela
testa. Como eu seria capaz disso? A questão era que, se ela mandasse eu me
foder, eu teria ido embora. Mas não foi o que ela fez. Estava se divertindo
demais.
Ela demorou mais ou menos uma hora para dizer que não estava
interessada em um relacionamento. Como se eu fosse a porra de um
vendedor de loja tentando entender as exigências de sua senhoria. Pelo
menos consegui fazer uma avaliação clara do que aquilo queria dizer. E o
que aquilo queria dizer principalmente (para ser franco) era nada de sexo.
Então minha primeira reação foi tudo bem, foda-se.
Ela disse que adoraria ir a exposições comigo e me mostrar Nova York, e
eu já estava fazendo que não com a cabeça. Saquei que ela usara quase
todos os clichês, menos um dos mais comuns. Fiz isso por ela.
— Então você quer que sejamos amigos?
Ela não iria se comprometer com isso. Provavelmente porque soaria
de nitivo demais, e ela sabia que eu cairia fora. Tentou deixar a questão em
aberto ao responder:
— Quero te conhecer melhor.
Isso implicava que talvez pudéssemos voltar a car juntos no futuro. Meu
instinto foi me levantar, ir embora e dar aquele dia ruim por encerrado. Mas
ela parecia querer continuar a discussão, ouvir meus pensamentos. Disse:
— Você parece pensativo. Está com raiva?
Ao que retruquei:
— Pareço? Desculpa. Raiva? Não. Por que estaria com raiva? Fui eu que
vim para cá.
Foi decisão minha. Senti que ela se desapontou com a minha reação;
queria que eu casse com raiva, e eu tinha levado a situação bem demais.
Qualquer um pensaria que ela estava me contando sobre suas cortinas
novas. Pelo menos era o que eu esperava. Pareceu ainda mais entediada
agora que não conseguia a demonstração de emoção que esperava.
Então, sem aviso, uma luz me cegou. Um ash. Eu não conseguia
enxergar, estava em choque. O sujeito ao meu lado se virou, sorrindo, e
disse:
— Lamento. Disparou sem querer.
Assenti automaticamente.
— Tudo bem. Sem problema.
Ele trocou olhares com Aisling. Ela estava sorrindo. Assim como eu.
Assim como ele. Eu nem sequer havia notado uma câmera na mesa ao lado,
perto do saleiro e do pimenteiro.
Olhei mais uma vez para o sujeito. Havia algo errado. Eu não sabia o que
era. Ele parecia feliz demais com aquele pequeno incidente. E o momento
havia sido preciso demais, como se ele tivesse se dado conta de que o pico
emocional havia sido atingido. Que não haveria nada mais revelador do
que a expressão estampada no meu rosto e que, por isso, precisava tirar a
foto de imediato. O fotógrafo casual e sua cúmplice permaneceram ao nosso
lado na outra mesa.
Aisling me perguntou se queria beber alguma coisa. Eu ainda estava com
a minha Perrier. Entendi que ela me perguntou se eu queria beber algo mais
forte. Isso me magoou bastante, considerando o que já havia acontecido.
Mas foi fácil esconder a dor. Tudo o que passei a desejar foi me afastar dela e
cuidar do que decididamente era um coração partido. Mas algo dentro de
mim não queria desistir. Perguntei se podíamos dar uma caminhada. Ela
reagiu de um jeito meio exagerado, enfático demais, dizendo:
— Não! — Depois acrescentou mais suavemente. — Está muito frio lá
fora.
Eu não conseguia tirar da cabeça que ela estava seguindo um roteiro
prede nido. Eu tinha lido um artigo cínico em uma revista feminina sobre
como partir corações e tirar prazer disso. Havia muitas técnicas
antimasculinas úteis, entre as quais cito:

Descubra os hobbies dele antes de largá-lo. Ele pode ser útil como amigo, ou você pode querer
apresentá-lo a uma amiga. Especialmente se ele for bom de cama. Existe presente melhor para
uma amiga íntima? Aprenda a jogar xadrez bem; não há nada mais humilhante para um homem
do que ser derrotado intelectualmente por uma mulher bonita. Você vai fazer com que ele sinta
uma dor física. Se ele disfarçar os sentimentos, ligue mais tarde. Acorde-o. Se ele estiver
apaixonado, vai ter di culdade para esconder quando você falar de um jeito meigo com ele na
cama, mesmo que seja só pelo telefone.

Essas foram algumas das dicas do artigo. Aisling cumpriu boa parte delas
antes do m da noite.
Tudo isso me ocorreu retrospectivamente. Na hora eu tinha coisas
demais na minha frente para analisar. Só reagi ao que apareceu diante de
mim. Lembre-se de que havia muita coisa acontecendo; cidade nova (Nova
York), basicamente um emprego novo (Killallon Fitzpatrick NY), funções
novas. Assustador. E então aquilo. Até onde sabia, eu tinha me mudado
para Nova York para car com aquela garota, e ali estava ela rindo de mim.
Foi como vi a situação. Isso já seria o bastante, mas havia aquela camada
adicional. A sensação irritante de que existia um objetivo. Um objetivo
oculto. Ao pensar nisso agora, acho ainda mais aterrorizante. Na época
devo ter sido protegido pelo choque ou até, ouso dizer, por Deus.
Sinto muito, mas vou ter que falar um pouco sobre uma divindade aqui.
Durante um mês ou mais, rezei todos os dias para ser libertado de Saint
Lacroix. Fui libertado. Quando olho para trás e vejo todo o experimento
em tortura psicológica (pois era disso que se tratava), eu me pergunto se,
caso houvesse descoberto antes o que estava acontecendo, teria usado isso
como desculpa para voltar a beber (nós, alcoólatras, gostamos das nossas
desculpas), dado um soco impotente em alguém ou saído de uma fúria cega
segurando o corpo inerte dela pelo pescoço e percebendo aos poucos que
aquelas eram as minhas mãos. Tempos depois, ao me dar conta do que havia
acontecido, a raiva que senti era quase visível ao meu redor.
Como sempre, tenho minhas teorias.
Visto que eu a conhecera no estúdio de Brian Tomkinsin, achei que
poderia ser uma armação. Tomkinsin fazia um volume enorme de trabalho
para a Killallon Fitzpatrick e, portanto, favores.
Vez ou outra, quando a empresa pedia, ele fazia trabalhos de graça
porque sabia que era vantajoso manter uma boa relação com uma das
melhores agências de publicidade do mundo. Era uma prática comum.
Uma teoria da conspiração era que a Killallon Fitzpatrick não gostou da
ideia de alguém em quem eles tinham investido tanto ir para Nova York;
portanto, quiseram me instigar a acabar comigo mesmo me apresentando a
uma jovem irlandesa que queria investir na própria carreira.
Ela conseguiu o emprego com Peter Freeman imediatamente depois de
nos divertirmos em Nova York. Só estou falando. Sei que é delirante até
para os meus padrões, mas eu havia concluído que a Killallon Fitzpatrick
era a porra de um lugar esquisito.
A outra teoria podia ou não coexistir com a anterior. Como você
preferir. A teoria número dois vai pelo caminho do livro de arte. Nessa
versão ela tem dois amigos de Princeton que estudavam produção editorial.
Eles já haviam fechado contrato de publicação e aprovaram o conceito de
um livro de fotogra as de alta qualidade com ensaios fotográ cos ao estilo
daqueles do lme Amor à Queima-Roupa, que costumavam ser comuns nos
anos 1970. Neste caso, porém, cada romance teria uma garota com
diferentes caras. Os ensaios registrariam a evolução do começo do
relacionamento até o término. Na teoria dois, eu sou um desses caras.
A teoria três diz que as teorias um e dois são babaquice e a vida é
aleatória, então, tudo o que acontece não tem signi cado ou estrutura,
simplesmente acontece ou não. Como disse o inglês com língua presa ao
saber do destino do Titanic, “Unthinkable”.
Então, aí está. Só para sua informação, aposto pesado nas teorias um e
dois, com mais dinheiro na dois.
Se analisarmos a teoria dois, ela havia coberto os estágios iniciais de
nosso “Amor à Queima-Roupa” e até o começo do m. Mas não tinha um
material decente. Apenas imagens bobas de um homem apaixonado
demais. Nada de raiva, nada de lágrimas, nada de angústia. O que é um
romance sem raiva, lágrimas e a ição? Não dá para publicar um livro
intitulado Amizade à queima-roupa, dá? Bom, claro que não. Não se você
tem um contrato de publicação assinado, o que signi ca que tem também
um prazo e que já gastou dinheiro de um orçamento de nido, que recebeu
para ajudar a “colher material”.
E não se você já investiu um bocado de tempo e energia no alvo. Ah,
não mesmo. Outra foto foi tirada na entrada do Georgina’s, na qual eu ergo
as mãos (viradas para cima), no que pensei que poderia ser compreendido
como um gesto de suplício, e com isso aquela página do seu futuro livro foi
virada.
No dia seguinte, após prometer que ligaria para ela, z o possível para
resistir à tentação de deixar quinze mensagens suplicantes na sua secretária
eletrônica. No m, deixei uma avisando que não poderia vê-la naquela
noite, que havia aparecido um trabalho e que “a gente se vê por aí”. Minha
mão tremia. Usei tudo o que tinha, que não era muito, para dar aquele
telefonema. Minha intenção era nunca mais ligar para ela. Jamais. Eu iria
usar o método que havia aprendido para abandonar a bebida. Porções
pequenas. Uma hora de cada vez. Um minuto. Meu Deus, foi uma tortura.
Meu ego me dizia que ao não telefonar eu a estava magoando
desnecessariamente. Que eu estava ferindo a ela. Que ela precisava se fazer
de difícil. Era isso que as garotas tinham que fazer.
Seja como for, de algum jeito consegui sobreviver a outro dia, e naquela
noite, por volta das sete e meia, ela ligou para o meu hotel. Eu estava
dormindo. Tinha nevado mais cedo, e eu havia tentado marcar um
encontro com Telma, mas ela não estava por perto naquela noite.
Quando o telefone tocou, eu acordei, e com quem estava falando? Com
a fonte do meu pior pesadelo. Ela me fez contar coisas que eu tinha jurado
nunca lhe revelar. Hoje em dia, estremeço só de pensar nisso. Toda aquela
merda ingênua sobre Tom Bannister, meu pai, aquela que deveria ser A
Mulher da Minha Vida e a minha ameaça de pedir demissão da Killallon
Fitzpatrick se não fosse mandado para Nova York e... Ah, meu Deus. Eu
estava sonolento e não sabia o que dizia. Ela me estimulou, claro, me
consolando com coisas como “Eu não sabia disso”, “Você deveria ter dito”
ou “Isso é diferente”. Para mim, essas falas quase inaudíveis signi caram que
havia esperança.
Esta é outra recordação sobre nossas conversas telefônicas: cacete, eu
nunca conseguia escutá-la. Eu cava constrangido demais para pedir que
repetisse. Resolvi me abrir e no m me saí com um “Não tenho o menor
interesse em ser seu amigo”.
Desliguei, orgulhoso de pelo menos ter conseguido iniciar o m do
telefonema. Eu havia me tornado patético àquele ponto. Ela terminou a
relação e eu terminei um telefonema. O placar não estava exatamente
empatado, mas eu teria que me contentar com isso.
Até dois dias depois.
Não consegui me segurar. Liguei e deixei uma mensagem dizendo que
tinha pensado no que ela havia dito e sugeri nos encontrarmos para
almoçar. Na minha cabeça um almoço era um compromisso menos
importante do que um jantar. Em resposta ela deixou uma mensagem
dizendo que poderíamos jantar naquela noite, domingo, “se você estiver
disposto”. Essa porra me matou. Implicava que ela sabia o efeito que exercia
em mim.
O efeito exato.
Não consegui me conter. Eu precisava saciar a minha vontade. Liguei e
marcamos de um encontro em um restaurante francês perto de onde ela
trabalhava. Ela estava se preparando para a estreia de uma exposição na
quarta-feira seguinte. Vinha trabalhando muito. Acho que eu deveria ter
levado isso em conta. Estava tentando ver as coisas do ponto de vista dela.
O cara aparece em Nova York esperando que ela largue tudo só porque ele
quis sair de Saint Lacroix. Um cara com quem, para começar, ela nem
chegou a se empolgar. E ali estava ele, todo magoado porque ela não queria
transar. Eu conseguia entender o lado dela.
O problema, porém, eram aquelas fotogra as sendo tiradas. No meio da
nossa conversa no charmoso restaurante francês na Lafayette Street, outro
ash de câmera disparou. Dessa vez vindo de uma mesa de quatro pessoas
no lado oposto do salão. Eles riram e até acenaram. Não consegui saber se o
ash estava virado para mim ou se apenas haviam batido uma foto deles
mesmos. Mas, olhando em retrospecto (onde estaríamos sem esse recurso?),
isso se encaixava no padrão. As pessoas da outra mesa tinham bolsas. E daí?
Bolsas de equipamento, não de roupas. (Tudo bem, talvez mesmo para mim
isso seja forçar um pouco demais.)
Tenho certeza absoluta de que outra foto foi tirada naquela noite de
domingo. Até z uma brincadeira com isso. Estava contando como meu
antigo parceiro e eu acabamos aparecendo na TV em Londres por causa de
um anúncio ultrajante que criamos. Estava tentando impressioná-la. Fazer
com que soubesse que estava largando um puta gênio da mídia. E acabei
contando como não gostava do meu parceiro:
— É ele quem você deveria estar tentando sacanear, em vez de mim. Ele
merece. Não é uma boa pessoa. Você e os seus amigos deveriam tentar com
ele — disse eu, apontando com a cabeça para a outra mesa.
Bom, você vai ter que me perdoar, porque minha memória me diz que
ela retrucou com um olhar cheio de signi cado.
— Então você sabe.
E minha memória me diz que respondi:
— Claro que sei.
— E por que está fazendo isso?
— Porque é interessante para mim — falei.
Bem, isso podia signi car qualquer coisa, mas sei o que achei que
signi cava. E peço desculpas, porque nem sequer tenho certeza de que esse
diálogo aconteceu. Eu me lembro, porém, de mencionar meu ex-parceiro e
até de dizer onde trabalhava, para o caso de ela querer sacaneá-lo. (Por falar
nisso, ouvi dizer que ele tinha visitado Nova York pouco tempo antes para
um casamento e que depois veio trabalhar na cidade. Tire suas próprias
conclusões.) Seja como for, paguei a conta e expliquei que tinha uma verba
para despesas e estava ganhando mais só por estar em Nova York, já que as
contas do hotel e cada migalha de comida eram custeadas pela empresa. Ela
pareceu car com inveja.
Dinheiro era o único assunto que a fazia demonstrar emoções. Seus olhos
adoráveis se arregalavam quando o tema era abordado. E daí? Não posso
usar isso contra ela. As mulheres só amam tanto o dinheiro porque nós,
homens, di cultamos para que elas o ganhem. Elas precisam massagear a
nós e aos nossos egos para consegui-lo. Do contrário, não dariam a mínima
para nós. Exceto, talvez para uma foda casual. Nada muito diferente de
como as tratamos.
Saímos do restaurante. Para evitar o risco de ser rejeitado, nem no rosto
tentei beijá-la. Não queria que a coisa da amizade se tornasse o cial. Pelo
menos assim ainda havia alguma esperança de transarmos. Então, quei a
mais ou menos dois metros dela (e, veja bem, ela não estava exatamente
tentando reduzir a distância) e disse coisas como “Eu te ligo” e “Vejo você
por aí”.
Eu me preparei para a dolorosa caminhada de volta ao hotel.
— Você vem na quarta?
Pulei de felicidade em segredo.
— Ah, sim, tinha esquecido, a exposição. Onde vai ser?
Eu me despedi e saí pisando duro na direção do Soho Grand, como se
tivesse mil coisas para fazer.
Nesse meio-tempo, estava trabalhando para uma das mais famosas
agências de publicidade do mundo, em duas das suas contas mais difíceis: as
câmeras Harris e a revista Minted. Milagrosamente, estava me saindo bem.
O chefe parecia feliz. Eu não conseguia acreditar, porque vinha trabalhando
com apenas metade da potência.
Quando chegou a grande noite da exposição de Aisling, eu estava uma
pilha de nervos. Iria conhecer os amigos dela. Na minha cabeça eu ainda
era o seu namorado. Só estávamos passando por um momento ruim. Quer
dizer, eu não estava sentindo muita rmeza no relacionamento. Tinha a
horrível sensação de que descobriria algumas coisas desagradáveis. Quando
cheguei lá, o evento já tinha começado. Abri caminho por entre a
impressionante multidão de pessoas elegantes e que davam a impressão de
estarem à vontade ali. Pessoas que pareciam acostumadas a serem amadas (é
estranho dizer isto, mas foi a minha impressão: de que elas eram
requisitadas). Tentei encontrá-la e de início não consegui. Mas pude ver a
enorme colagem de fotos na parede dos fundos do bar.
E o lugar era só aquilo.
Um grande bar com uma grande parede nos fundos. Uma só impressão
abstrata composta de centenas de fotos em preto e branco de funcionários e
usuários do metrô. A mim lembrava os fotógrafos dos anos 1920 e 1930.
Um Man Ray ou um John Heart eld russos. Ela mostrava inteligência
visual no modo como fez o presente parecer tão retrô.
Fiquei chocado e puto por ter gostado tanto da obra. Isso signi cava que
ela era mais talentosa do que eu temera. Não só havia roubado o meu
coração, como também a vida que eu teria adorado viver caso fosse corajoso
o bastante para não entrar para o ramo da publicidade.
Acho que isso não me atingiu de forma consciente na época, mas na
hora me senti desconfortável. Não, quei com inveja. E, para completar,
quando a encontrei, ela estava segurando a porra de um lírio enorme que
alguém tinha dado (um cara, sem dúvida) e uma baita caneca de Guinness.
Uma. Caneca. De. Guinness. Fazia quatro anos que eu nem sequer via uma,
que dirá na mão de uma garota que eu amava. Alguma coisa rachou sob os
meus pés.
Assenti educadamente quando ela me apresentou à amiga, a garota mais
alta e poderosa que eu já tinha visto na vida. Devia ter mais de dois metros.
Parecia capaz de me levantar e jogar pela janela. Saíra de Los Angeles
especialmente para ver Aisling. Eu disse que isso era uma demonstração de
lealdade. Para minha irritação, ela comentou que tinha ido porque Aisling
seria rica um dia. Eu me lembro de achar aquilo estranho.
Então quei ali preso, conversando sobre porra nenhuma com o tronco
daquela garota, enquanto os dois amores da minha vida, a Guinness e Ela,
deslizavam pelo bar beijando a bochecha de todo mundo. O chefe dela até
deu as caras. Peter Freeman, a nal, era uma coisa emaciada de cabelos
grisalhos metida em um cardigã. Parecia muito mais velho do que eu
imaginara. Cinquenta e poucos anos. Lembro-me de car aliviado e pensar:
“Bem, pelo menos com este não preciso me preocupar.”
Paguei um Baileys para a garota alta, e, por iniciativa minha, nos
sentamos a uma mesinha, porque eu me sentia ridículo demais olhando
para as narinas dela enquanto ngia interesse na sua vida em Los Angeles.
Tudo o que eu queria dela eram informações sobre a amiga, minha amante,
a fotógrafa em ascensão. Não consegui nada, é claro. Estávamos sentados
havia algum tempo quando de repente senti um jorro de Baileys no rosto e
no peito. Olhei para ela incrédulo. Ela segurava um canudo de plástico. E o
tinha sacudido na minha direção. Enquanto ouvia o pedido de desculpas,
me dei conta de que havia uma gota no meu lábio inferior. Sorrindo, limpei
o peito e a boca com cuidado. Sabia muito bem que bastaria eu lamber o
lábio, e qualquer coisa poderia acontecer. Eu havia combinado com meu
amigo Adam, do AA, de nos encontrarmos depois se as coisas cassem
esquisitas. E aquilo, concluí, era esquisito. Foi bom ter alguém de verdade
com que eu poderia me encontrar em vez de precisar inventar uma desculpa
esfarrapada. Fiquei ali mais um tempo, e então, depois de pegar outro
Baileys para ela (sempre um cavalheiro), pedi que se desculpasse por mim
com Aisling, pois tinha um encontro marcado para o jantar.
Dia feliz. Saí de lá. A garota alta não parava de pedir desculpas e tentou
agarrar meu braço para me fazer sentar novamente. Sem chance de eu car
só para poder ser ignorado com mais ênfase. Foda-se, pensei, e saí para o ar
de março, que me recebeu de braços abertos. Fantástico. Em quinze
minutos, Adam e eu caminhávamos contra um vendaval chuvoso pela
Williamsburg Bridge. Foi bom para mim. E para ele também, acho. Eu
continuava repassando o momento do Baileys na cabeça. Puta merda, como
aquilo poderia ter sido um acidente? Eu bebi tudo em que consegui pôr as
mãos por mais de quinze anos, e nunca uma bebida havia salpicado em mim
daquele jeito. Pelo menos não acidentalmente. Era monstruoso demais
sugerir que ela havia feito aquilo de propósito. Paranoico demais. Então
meio que esqueci a história.
Não liguei para Aisling no dia seguinte. Estava convencido de que já
tinha entendido qual era a dela e da sua turma. Havia conhecido um ou
dois amigos (além da gigantesca) e me achei no direito de classi cá-los de
irlandeses ricos e entediados. Os únicos tipos para os quais a humilhação de
um culchie ainda era interessante.
No entanto, fraquejei no dia seguinte. Liguei e deixei uma mensagem
sobre como tinha gostado de conhecer os amigos dela e que adoraria
almoçar de novo um dia (grande idiota eu era). Ela, claro, deixou outra
mensagem dizendo que topava, que também adoraria me ver, que iria amar
almoçar ou qualquer coisa assim etc.
Acabamos nos encontrando para um almoço no Café Drill, na esquina
de onde ela morava. Cheguei lá cedo, claro, e ela apareceu uns quarenta e
cinco minutos atrasada. Ela morava na porra da esquina. Até chamou
atenção para isso. Deixei para lá: Sr. Tolerante, Sr. Compreensivo. Seguiu-
se o papo provocante de sempre, nada dito às claras, muita baboseira sobre
publicidade. Depois, do nada, ela se desculpou por um comentário bem
ácido que zera na noite anterior. Tivera o efeito de um tapa.
“Se fosse do seu jeito, você teria trazido a porra da imprensa para cá.”
Ela se referia às minhas tentativas de impressioná-la com o que eu
achava ser um bom modo de “lançar” a inauguração. Eu queria chamar
fotógrafos de várias mecas da mídia como a Vogue, a Elle e a Vanity Fair para
o vernissage. Cheguei a sugerir que ela cuidasse para que sua foto fosse boa
e grande na parede, garantindo assim que qualquer retrato batido no evento
destacasse seu trabalho ao fundo. Também me lembro de dizer que seria
ótimo se houvesse uma briga em frente à fotogra a dela. Porque, se
começasse uma briga e ela “por acaso” tivesse uma câmera ali e também
“por acaso” tirasse uma boa foto da situação, essa mesma foto poderia se
tornar uma das obras. E também, como mercenário da mídia, eu sabia que
uma imagem dessas di cilmente seria recusada por qualquer editor de
qualquer revista. Assim como o restante de nós, eles também precisam
preencher espaços em branco nas páginas.
Que ironia eu ter dado essa ideia. A questão é que, claro, isso
funcionaria melhor se ela conseguisse envolver alguém bem conhecido na
briga.
Mas cá estou eu me adiantando de novo. Não me deixe fazer isso. Então
ela estava se desculpando, dizendo que fez o comentário por estar nervosa
com o vernissage.
Deixei para lá. Claro que deixei para lá. Depois falei algo de que me
arrependo.
— Você pode pagar pela conta. Vem querendo fazer isso desde que te
conheci, assim não vai car de coração partido.
Eis o que ela fez.
Ela estava mexendo na carteira, provavelmente esperando eu dizer que a
guardasse, mas ao ouvir as palavras “coração” e “partido” cou imóvel. Seus
olhos (ah, aqueles olhos) se ergueram da carteira como se prestes a se xar
nos meus, mas pararam de modo arti cial. Ela pareceu então olhar para o
chão. Eu sabia que ela sabia que eu a observava. Por alguns segundos
manteve os olhos parados, mas depois, como se notando algo na mesa, os
deixou subir, piscando lentamente. Em seguida, com o corpo e a cabeça
imóveis, olhou para cima e para o lado, mirando por cima do meu ombro
esquerdo, até nalmente fazer a última diagonal, subindo pela minha
bochecha, e se cravar nas minhas órbitas.
— Eu. Acho. Que. Não.
Foi o que ela disse. Como se soubesse que poderia me matar ali, naquele
instante, mas o momento não era certo. O que me assustou foi sua
disciplina. Signi cava que estava fazendo o que quer que fosse aquilo por
motivos pro ssionais. Não havia paixão ali. E, portanto, não tinha havido
paixão antes. O Shelbourne fora apenas uma cena necessária, parte de uma
fórmula testada e aprovada anteriormente. Incluindo até a parte em que ela
deu um tapinha no meu ombro enquanto fazíamos amor e fez uma pose de
garota pervertida de dezesseis anos, com direito a sorriso provocante e um
gesto de cabeça para baixo, na direção do corpo dela, como se quisesse
garantir que eu bateria a foto mental que pretendia. Ninguém pode dizer
que ela não entendia a natureza da fotogra a. Seu comedimento nesse
almoço me mostrou como ela era extremamente so sticada e me fez desejá-
la ainda mais.
Para ser sincero, eu fazia ideia de que estava sendo enganado, mas queria
qualquer coisa que viesse dela. A nal, se isso era o que ela queria, e eu
podia lhe dar, por que não? Estava apaixonado por ela, não estava? E
também enfeitiçado. Passara dois anos assistindo a vídeos em Saint Lacroix
( lmes franceses) e não deparara com nada tão interessante quanto aquilo.
E sempre havia a possibilidade remota de transar novamente. Mas a
verdade é que eu era o peixe, e ela, a pescadora. Aquilo era só uma questão
de o que ela queria que eu zesse em seguida.
O que ela queria que eu zesse em seguida era acompanhá-la até uma
exposição na Stent Gallery, na Broadway. Foi o que zemos. Apenas uma
coisa digna de nota. Quando chegamos a um dos cruzamentos, esqueci qual,
ela se virou como se quisesse me impedir de me jogar na frente do trânsito e
bateu com muita força no meu peito. Sério, foi forte para cacete.
Por um segundo não consegui respirar. Fiquei atordoado. Eu já tinha
perdido uns seis quilos por causa de todo o meu estado choque. Li em algum
lugar que, quando alguém sofre um choque emocional, a região ao redor do
coração perde parte da sua camada protetora de gordura e, portanto, o
órgão ca perigosamente exposto. Um golpe certeiro não é apenas doloroso;
quando a pessoa que estava em choque começa a recuperar o peso, o
coração permanece ferido, e isso pode levar a brilação atrial. Você não
corre risco de morte, mas é desconfortável.
Doeu, mas ngi que não.
A parada seguinte na minha viagem pessoal de descoberta foi no Café
Xadrez. Sim, eles têm esse tipo de coisa em Nova York. No SoHo. Era
medonho. Estávamos caminhando perto de algumas das propriedades mais
românticas do planeta, mas eu poderia muito bem estar no inferno. Estava
ao lado da garota dos meus sonhos, que também era a fonte de algumas das
piores dores que eu já havia sentido. No Café Xadrez você pagava um dólar
para alugar uma mesa e podia jogar xadrez por quanto tempo quisesse. Eles
serviam café e, con rmando a neutralidade dos enxadristas, era um dos
poucos lugares onde você podia não apenas fumar, mas era encorajado a
isso. Todas aquelas expressões carrancudas cavam bem através de nuvens
de fumaça de cigarro.
Ela me derrotou facilmente, e eu me remexi na cadeira que rangia, o
mesmo movimento que tinha feito no Georgina’s. Ela se recostou, como se
estivesse aquecendo as mãos mentalmente outra vez, como zera no
Georgina’s. Derrubei o meu rei na segunda partida. Ela pareceu machucada
e enganada. Machucada porque eu estava cortando seu barato. Enganada
porque provavelmente vinha planejando uma morte demorada para mim, e
eu tinha me matado e lhe negado esse prazer. E isso também deve ter
mostrado a ela como eu jogava o jogo da vida: eu preferiria me matar a
prolongar a dor. Ela reclamou muito. Como se isso tivesse importância.
Como se eu houvesse atingido um ponto fraco.
— Termine o jogo! — exclamou.
Eu disse algo sobre não querer prolongar a agonia e a cumprimentei por
ser tão boa no xadrez.
— Por quê? Porque derrotei você?
A essa altura, eu estava quase mancando. Estava mental e
emocionalmente em frangalhos. Mais um golpe, e eu teria começado a
chorar. Abriria o berreiro na rua. Só mais um comentário, e as ssuras
mínimas atrás dos meus olhos começariam a esguichar, depois a vazar, e por
m um dilúvio transformaria em canais as ruas estreitas do SoHo.
Eu tinha pedido ao meu bom amigo e padrinho no AA, Dean, que me
encontrasse às seis e meia, e disse isso a ela. Nunca me senti tão grato, e
ainda assim de coração partido, por me afastar dela quanto naquela tarde.
Não tive coragem sequer de beijá-la no rosto. Temi que uma última rejeição
me tirasse do sério. Saí pisando duro novamente, cheio de sentimentos de
fúria, confusão, medo, amor e alívio. Tínhamos conversado sobre ver um
lme durante a semana.
Eu estava farto de falar sobre ela. Mas tinha que contar a história toda a
alguém. Não só um ou outro fragmento, mas a coisa toda, talvez porque eu
mesmo não sabia se acreditava naquilo. Achava que se colocasse no papel
poderia nalmente me afastar de tudo. Eu lidaria com aquilo. E talvez isso
servisse como um alerta para os outros.
Passei a semana seguinte ocupado no trabalho e consegui até dizer a
Aisling que não poderia ir ao cinema com ela na noite de quarta porque
estava sendo “cortejado” por outra agência. Aquilo era apenas um terço
verdade. Um cara de outra agência, um redator, queria se encontrar comigo
e bater um papo, e, sim, eles estavam contratando, mas o lugar não era
conhecido por fazer grandes trabalhos.
Aisling e eu marcamos de nos encontrar na sexta à noite para “beber”
alguma coisa em um bar. Eu não sabia que seria a última vez que a veria.
Apenas pensei que iria encontrar a garota que amava, que aquela seria
apenas uma das milhões de vezes que me encontraria com ela ao longo do
resto da nossa vida. O amor era paciente, gentil e tolerante. Muito do que
vou descrever não me ocorreu no momento, mas depois, quando me senti
mais calmo e objetivo. Posso dizer com toda a certeza que na época eu vivia
um dia de cada vez em uma forma branda de choque.
Sem dúvida.
Cheguei cedo. Ela havia marcado entre oito e meia e nove, então
cheguei por volta de oito e quinze. Fui o primeiro. Depois de uns minutos a
amiga dela, Sharon (irlandesa), e um cara (vamos chamá-lo de Camisa do
Brasil porque ele vestia uma camisa da seleção brasileira de futebol)
entraram no bar.
Sharon conversou um pouco comigo, e, quando eu disse que era amigo
de Aisling, o Camisa do Brasil falou:
— Ah, mais um?
Eu me senti estranho de imediato, e ele pareceu excessivamente
antipático. Antipático sem motivo algum. Isso continuou por um tempo,
comigo quase não abrindo a boca e ele tentando ser antipático com alguém
que concordava com ele.
Então ela apareceu. Estava linda. Acho que já havia bebido alguns
drinques. Pelo brilho no olhar, talvez tivesse feito algo além de beber. Vai
ver era apenas ansiedade. Os três pareciam estar com os sentidos aguçados.
Se a minha teoria é correta, eles estavam desfrutando o frisson pré-abate.
Ou talvez estivessem apenas animados por saírem. Aisling mal olhou para
mim, mal reconheceu minha presença.
Novamente quei muito magoado com isso, mas liguei o piloto
automático. Disse a mim mesmo para sorrir com educação e não permitir
que soubessem como me sentia. Se tivesse ido embora de cara teria passado
uma noite muito mais agradável e não estaria sentado aqui escrevendo isto.
Mas eu estava curioso para descobrir se conseguiria transar. Eu sabia que ela
caria bem bêbada, e além disso eu não tinha mais nada para fazer.
Minhas opções eram ser torturado por uma garota linda que parecia a
Virgem Maria, com pelo menos uma possibilidade remota de fazer sexo, ou
ir a outra reunião do AA.
Na verdade isso não é justo, porque a reunião do AA Nova York no
SoHo contava com algumas das mulheres mais sensuais que eu já tinha
visto. Mas ali estava eu, sendo ignorado pela única garota no mundo para
quem eu ligava e recebendo uma atenção descabida do Camisa do Brasil.
Depois talvez do meu terceiro copo de Coca com gelo, comecei a car bem
entediado. Então me veio uma sensação esquisita na cabeça. “Dormência”
seria o termo mais preciso. Como se sentisse dor, mas alguma outra coisa na
frente disso.
O Camisa do Brasil se inclinou para bem perto dela. Perto demais. O
su ciente para beijá-la. Não estava beijando, mas não teria parecido
estranho caso estivesse. Em certo momento ele se pôs de pé entre as pernas
dela e se curvou na sua direção, enquanto ela, sentada no banco, se
inclinava para trás e se recostava no balcão.
Era irreal, ela me encarando por cima do ombro dele como que dizendo:
“Veja o que eu estou fazendo. Veja o que ele está fazendo. Isso não deixa
você com raiva?” Deixava. Também fazia com que me sentisse um idiota.
Mas isso estava aberto a interpretações. Ele poderia estar tentando a sorte.
A nal, ela era atraente. Ou ela podia estar exercendo seu direito como
jovem de ertar em uma noite de sexta-feira num bar no centro de Nova
York. Claro. Mas o que se deu depois levou os acontecimentos a um nível
totalmente diferente.
Eis o que aconteceu. Imagine-se de pé em um bar; o balcão está à sua
direita, e atrás dele há um grande espelho. A garota que você ama está à sua
direita, entre o bar e você. O cara que você odeia vestindo uma camisa do
Brasil está de costas para você, conversando com outra amiga da sua
Amada. A garota que você ama faz um gesto com as mãos que só pode
signi car uma coisa. Coloca as duas mãos à frente, como se mostrando o
tamanho de um peixinho. Peixinho? Ela está dando uma risadinha
enquanto olha para você e gesticula. Você não sabe o que ela quer dizer.
Encara-a com um ponto de interrogação estampado no rosto. Sente-se grato
só pelo fato de ela olhar para você. Ela olha para você de novo e faz o gesto
para o Camisa do Brasil, que baixa o olhar para as mãos dela. Em seguida, o
Camisa do Brasil te encara. Depois dá um sorriso constrangido por você.
Quase solidário.
Ela se inclina para a frente e sussurra algo para ele. O sorriso do sujeito
aumenta. O rosto dela agora brilha. Parece mais feliz do que você já a viu.
Ela é linda, mas não quer que você a veja dessa forma. Ela sabe como você
está apaixonado. Inclina-se para a frente outra vez, e ele se curva,
oferecendo o ouvido. Ela poderia estar beijando a lateral da cabeça dele. Faz
novamente a coisa de “peixe” com as mãos. Dessa vez, é ainda menor. Olha
para você de cima a baixo. Ele também. Os dois riem juntos. Para não ser
excluído, você também ri.
Sem jeito. Então ele diz em voz alta, como se estivesse falando com a
outra garota.
— Vou dizer a ele que está morto e enterrado e que tem quatro outros
enterrados acima dele. Quantos são?
Ele se vira para Ela e confere. Ela conta nos dedos. Exagerando,
pousando um dedo nos lábios de propósito, ngindo pensar antes de contar
mais um dedo. Ele continua.
— Eu estou enterrado acima dele. Eu gostaria de ser enterrado acima
dele... ou enterrado em você.
— Não, eu estaria por cima — retruca ela.
Isso resolve tudo. Ele olha para ela como se fossem fazer ali mesmo,
naquela hora. Você já entendeu. O único gesto de clemência a seu favor é
que eles não interpretaram toda a cena de frente para você, o que lhe
permite ngir que não entendeu. Então você se vira com a maior elegância
possível para a outra garota e começa uma conversa educada. Precisa de
tempo. Está tonto. Se o que você acha que está acontecendo realmente está
acontecendo, então é melhor dar o fora, porque essa é uma merda bizarra do
mal.
Mas você não pode ter certeza. Pelo menos não tão depressa. E se estiver
errado e sair correndo? Seria a segunda vez que faria isso. Aqueles são os
amigos dela. O que eles vão pensar de você? Ou dela. Se estão rindo de
você naquele momento, o que vão fazer se for embora? Então, você ca. A
outra amiga não está cooperando. Praticamente olha para Ela como se
dissesse: “Ele é problema seu, você que lide com isso.”
É
É o que Ela faz.
Você está apoiado no balcão, conversando com outro amigo dela, um
babaca de Cork. Por falar nisso, você só foi convidado porque dois amigos
dela estão na cidade apenas para passar o m de semana, e você precisa
conhecê-los. Depois se dá conta de que são os alunos de produção editorial
de Princeton. Um deles, a garota, é irlandesa, então tudo se encaixa.
Colegas dos tempos de escola, sem dúvida. E eles estão a menos de cinco
metros, com Ela.
E é então que acontece. Lentamente. Ou talvez apenas pareça lento,
como se você se lembrasse da visão em câmera lenta. O Camisa do Brasil
vestindo jaqueta militar verde enquanto levanta uma bolsa de lona.
Ele se aproxima de você e pousa a bolsa no chão, junto aos seus pés.
Arregaça as mangas como um pianista antes de uma apresentação. Você
sente alívio porque acha que ele vai embora. Agora ele está na sua frente,
avaliando-o da cabeça aos pés. Segura um fotômetro, que você sabe que é
usado por fotógrafos para medir a intensidade da luz re etida por um objeto,
e faz uma leitura. A coisa está apontada para você. Ele sinaliza alguns
números para trás, na direção do que agora parece suspeitamente uma
pequena plateia composta da garota que você ama e seus parceiros. Eles
conversam entre si, mas olham para você e seu novo amigo com sorrisos
explícitos e dando uma ou outra gargalhada. Você pergunta ao Camisa do
Brasil Agora com Jaqueta Militar se ele está prestes a tirar uma foto. Ele
não responde. Como você é diretor de arte, conhece os gestos que ele está
fazendo, dizendo ao fotógrafo qual velocidade do obturador e abertura de
lente usar na câmera. Você se sente desconfortável. Tem algo de errado
nisso tudo.
O cara exibe um pro ssionalismo que começa a deixar você nervoso. É
uma noite de sexta. Será que todos não deveriam estar mais relaxados? Por
que ele parece tão sério? Você então vê que o fotômetro sumiu. Voltou para
a bolsa? E ele está segurando uma lente de câmera. Segurando-a afastada de
si. Estreitando um olho, ele a avalia, primeiro erguendo-a contra a luz,
depois virando-a para baixo. Está exagerando. Seus movimentos são
desajeitados, grotescos. Como se estivesse encenando para o prazer dos
outros. Mas qual prazer? Está apenas olhando para a lente de uma câmera.
Então limpa uma poeira para conseguir ver através dela com mais clareza.
E é aí que você saca.
De início você acha que está sendo paranoico, pois, vamos encarar os
fatos, você é. Mas então se dá conta de que é a única explicação para toda
aquela encenação. Fingindo um tom de distração criativa, você sugere a ele:
— Você poderia fazer parecer que tenho pau pequeno.
A lente que ele segura está apontada diretamente para suas partes
íntimas. Ele semicerra mais o olho quando aponta para lá. Você ri. Não
gosta, mas ri. Rir junto é melhor do que ser motivo de riso. Você acha. Vê o
sujeito reagir como se dissesse: Como você sabia disso? Ele olha para a plateia
em busca de orientações. Dá de ombros. Aponta para você e depois para a
própria têmpora e faz com a boca as palavras “ele sabe”, ou pelo menos é o
que lhe parece, pensando em retrospecto. Ele olha para você com uma
expressão perplexa. Você sorri. Acha que deu a ideia a ele. Ele repete o que
disse.
Dessa vez às claras.
E aqui eu gostaria de deixar uma sugestão para o lme que vão fazer deste
livro. A tela ca preta depois dos créditos iniciais. Ouvimos a “Sinfonia de
Dante”, de Franz Liszt, e aí entra a costumeira citação pretensiosa em letras
brancas sobre o fundo preto dizendo:

Por mim entrais na cidade da dor


Por mim chegais à dor eterna
Por mim alcançais as pessoas perdidas
Abandonai, vós que entrais, toda a esperança.

Talvez o alerta de Dante devesse estar escrito acima da porta do Cat and
Mouse na Bleecker Street. A essa altura o Camisa do Brasil Agora com
Jaqueta Militar está apontando a lente para o seu pau e sorrindo
abertamente com o suposto esforço que faz ao tentar ver sua coisinha. Tira
um ponto de poeira imaginário que com certeza está escondendo seu
membro minúsculo. Encara-o com ironia, ngindo simpatia.
Você não está curtindo. Mas não pode deixar que ele saiba disso. Você ri
como se achasse que ele é muito esperto. A plateia também. Agora você
acha que sabe o que está acontecendo. Eles o estão fazendo de bobo. Você é
a diversão. É sexta à noite num bar, e você, meu amigo, é a diversão. Você
arrisca um olhar para a garota que ama.
Ela está maravilhosa. Mesmo rindo de você. E está rindo. Você sempre
gostou do riso dela. Ri junto. A risada dela aumenta. Ri do fato de você
estar rindo. Aponta para o Camisa do Brasil. Você acompanha os olhos
dela, que riem. Vira a cabeça para ele. Ele está lhe oferecendo a lente. Está
lhe entregando. Então você imagina que, se pegá-la, pelo menos todo esse
sofrimento chegará ao m. Portanto, você a pega. Está quente. Mas espere,
eu me esqueci de dizer, como posso ter me esquecido disso? Um pouco antes
você tentou ir ao banheiro, pensando: “Foda-se, eu não tenho que car
parado aqui aturando isto.” Você foi nessa direção com o objetivo de
organizar as ideias e talvez até pegar sua bolsa e seu casaco na volta e dar o
fora dali.
Mas não.
Você encontra dois caras, um deles com cerca de um metro e noventa e
cinco de altura e uma aparência muito aristocrática que segura seus ombros
com uma rmeza excessiva.
— Espere — diz o aristocrata com simpatia. — Vamos dar uma olhada
nisto — acrescenta, apontando para a lente.
— Eu vou voltar em um segundo — retruca você, tentando sorrir.
Mas agora está mais do que machucado ou mesmo com raiva. Está com
medo. Eles são bastante simpáticos, mas estão impedindo sua entrada no
banheiro. Que porra é esta? Você ca imóvel.
Precisa pensar. O cara com a lente dá uma piscadinha para você, e a
plateia ri. Você acha que poderia tentar passar por eles à força, mas não
pode. Você se vira e pede ao bartender para chamar a polícia. Está sorrindo
ao pedir, mas pede, e, embora ele olhe para você de um jeito estranho, não
é estranho o su ciente. Será que ele está nesse joguinho de salão? Ele não
parece surpreso o bastante. Ele pergunta por quê. Você responde que está
sendo assediado por aqueles caras que en am o polegar no seu peito. Ele
parece concordar, mas em seguida vai alegremente na direção da plateia e
se curva para conversar com as pessoas.
Agora você está muito preocupado.
Então pega a lente de volta, achando que talvez sua ideia de chamar a
polícia tenha mostrado ao Camisa do Brasil que continuar com esse asco
humilhante não faz sentido. Mas não resiste. Segura a lente no mesmo
ângulo que ele estava segurando. Aponta para as partes baixas e semicerra
um olho. Sente-se levemente vingado. Em seguida, repete. Agora sim. Mas
leva dois segundos para se dar conta de que ele está apontando outra lente
para sua vara já ridicularizada.
Dessa vez é uma teleobjetiva enorme.
Esse deveria ser o momento em que você o acerta. Quando já basta. Mas
de algum modo você está bem. Pode aguentar. Assim, sorri para ele. Sorri
para ele?
Sim. E é um sorriso genuíno.
Por algum motivo de repente você acha aquilo tudo um tanto lisonjeiro.
É lisonjeiro que aquelas pessoas civilizadas e cosmopolitas tenham se dado a
toda essa trabalheira para humilhá-lo. Talvez seja um mecanismo de defesa,
mas é como se sente de verdade. Ele dá outra piscada para você. Do tipo
que é o último gesto antes de duas pessoas começarem a brigar. Eu já tinha
visto aquela piscada antes. Estive em muitas brigas de bar. Correção: levei
surras em muitas brigas de bar. A que ele deu signi ca exatamente o oposto
do que costuma signi car. É do tipo que um homem dá para outro ao
revelar que transou com a esposa dele. De um modo falsamente amistoso, a
piscada diz: “Eu fodi sua esposa. Portanto, fodi você.” É tão íntimo quanto a
briga que se segue. Mas você não quer conhecer aquele cara melhor do que
já conhece. Você está sorrindo. Seu sorriso também diz exatamente o
oposto do que costumaria dizer: “Não vou ser arrastado para uma briga por
um babaca como você. Não sou idiota.”
Ele continua segurando a teleobjetiva.
De repente, surge um enorme clarão.
Enorme. De primeira você acha que é um raio. Mas ali dentro?
Então se dá conta de que é o ash de uma câmera, e, como você é diretor
de arte, sabe que não é um ash comum de câmera. É do tipo pro ssional,
que fotógrafos usam em estúdios. A luz parece alcançar todo mundo como
uma gigantesca mão branca e agarrar seu peito com o indicador e o polegar.
Quase arranca algo de você.
Quase. Depois você se lembra de algo sobre os aborígenes, ou habitantes
da Nova Guiné ou alguma tribo primitiva que acredita que a câmera rouba
sua alma. Logo concorda com essa ideia. Mas de algum modo continua
intacto. Você simplesmente sabe. Sente. Foi agredido, mas desviou do
golpe. Não se sente ótimo, mas sabe que vai sobreviver. É uma sensação
boa. Agora sabe que por algum motivo estão tirando fotos pro ssionais de
você. Você não liga. Só sabe que uma foto sua sorrindo de pé no meio de
um bar não pode ter muita utilidade para ninguém.
Então continua sorrindo.
E, sem pensar, ergue o braço direito e mostra o dedo do meio para a
plateia. Não é exatamente uma vitória, mas você se sente compelido a
reconhecer abertamente que tem consciência de estar sendo humilhado.
Toma essa.
Olhando para eles, você espera a próxima foto. Está tentando dizer:
“Certo. Querem uma foto minha? Tirem esta. Esta é a única que vão
conseguir esta noite.” Mas o Camisa do Brasil tem uma ideia. E não é nada
má, você tem que admitir. Ele começa a semicerrar o olho pela teleobjetiva
na direção do seu dedo erguido. Não é o seu pau, mas vai ser su ciente.
Você se dá conta do que ele está para fazer e baixa o braço novamente.
Ele ca decepcionado. Faz um gesto para que levante o braço mais uma vez.
Você se recusa. Ele ca irritado. As coisas não estão indo de acordo com o
plano. Ele olha para a garota dos seus sonhos em busca de inspiração. Ela
parabeniza o Camisa do Brasil pela ideia de tirar a foto do dedo. Aplaude-o
em silêncio. Ele faz uma mesura.
Ela quer de novo.
— Não pegamos — diz o Camisa do Brasil. — Repete, e aí a gente te
deixa em paz.
Você recebe isso como uma vitória. Até o momento não estava certo se
toda aquela farsa era real ou imaginária (a nal, você tem passado por muito
estresse nos últimos tempos), mas agora sabe. Decide que, não importa o
que mais aconteça nesta noite, eles não vão conseguir a foto.
Você sorri. Quer que ele saiba que você está vencendo, ou que pelo
menos acredita nisso. A seguir ele saca um pente. Ergue-o, para que todos
vejam. Como um mágico, segura-o entre o indicador e o polegar. Com
habilidade, penteia primeiro seu ombro direito, depois o esquerdo. Você
está verdadeiramente perplexo com esse último desdobramento. Então se
dá conta. Olha para ela. O rosto dela é encantador, mas os olhos estão
carregados de ódio.
Por você. Ela odeia você? Por quê? Isso não importa agora. Você tem que
sair agora mesmo. Para sua vergonha e seu constante constrangimento,
você tem pelos nas costas e nos ombros. Tempos depois vai depilar com
cera, mas, no momento, é isso.
A única pessoa no salão que sabe da sua oresta é Aisling... e agora o
Monsieur Camisa do Brasil. Ela contou. A monstruosidade da situação
começa a se revelar. Ela quer destruir você. É nesse momento que você
precisa muito se conter para não fazer algo patético como dar um soco ou
um chute em alguém.
Você sempre dará graças por ter evitado isso.
Processos são comuns nos Estados Unidos, e alguém que ganha trezentos
mil dólares por ano vale esse esforço. Agora o Camisa do Brasil está
descaradamente tentando provocá-lo com o pente, a lente e, de vez em
quando, o dedo no peito, somados à piscadela. Você continua protegido
pelo estado de choque. Quer muito atacá-lo, mas algo o impede.
Você reza.
Talvez isso tenha funcionado. Na verdade tenho que ser mais objetivo.
Sei que foi isso. Do contrário eu teria tentado matá-lo. E, quando penso
nesse dia, o fato de que ele havia vestido a jaqueta militar devia signi car
que claramente esperava que eu tentasse. Com fotogra as sendo tiradas e
testemunhas por toda parte, teria sido uma bela jogada. Minha ideia
publicitária de conseguir alguém para brigar na frente da foto dela havia se
tornado real. Poético.
Teria sido uma excelente contribuição para o seu livro. O publicitário
que caiu sobre a própria espada envenenada. Ela poderia interpretar o anjo
vingador. Imaginei o belo rosto inocente no verso da sobrecapa. Um belo
retrato em preto e branco tirado por Peter Freeman.
Não, ela não lançaria o livro até ter terminado a jogada com ele. Veja
bem, nem mesmo ele estava seguro. Precisaria tomar cuidado. Em um
período de quatro anos, ela poderia tirar quantas fotos dele quisesse.
Então, no m evitei dar a ela tudo o que queria para o livro, a não ser
algumas imagens em que estou parado perto de um balcão de bar com um
sorriso bobo no rosto. Talvez isso fosse bom o bastante para ela usar. Talvez
não, mas pelo menos não lhe dei uma imagem minha rolando no chão em
uma briga de bar.
Acho que escrever isto é uma tentativa de compreender o que aconteceu
e deixar essa história para trás. Mais uma vez, eu me pergunto se tudo isso
chegou a acontecer mesmo. É como se tudo fosse um produto da minha
imaginação. O mais estranho é a esperteza do esquema. Eu teria adorado me
envolver em algo daquele tipo sete anos antes, quando eu mesmo fazia um
jogo parecido. Mas meus esforços não passavam de vandalismo espiritual.
Aquilo era pro ssional.
Terminei com uma garota com quem havia estado por quatro anos e
meio. O meio é importante. Fui um escroto com ela. In el, descuidado,
vivia bêbado a maior parte do tempo. Ela disse que queria espaço. No
começo adorei a ideia, depois quei péssimo. Excelente desculpa para beber.
Então bebi. Muito. Mas, enquanto tragava toda aquela bebida alcoólica, eu
me divertia usando minha história de desilusão amorosa para pegar outras
garotas que iam aos bares sórdidos que eu frequentava. Eu as atraía para a
minha teia e, quando estava convencido de que estavam apaixonadas por
mim, começava a me voltar contra elas. Eu me via como o playboy
despreocupado de smoking e gravata. Gostava de machucá-las. Não tinha
consciência da profundidade do efeito que era capaz de alcançar. Só sabia o
quanto gostavam de mim depois de machucá-las, quando já era tarde
demais. Corrigindo. Eu sabia. Exatamente por isso as machucava. Como
podiam gostar de mim? Eu as punia por isso. Também sabia que, mesmo
depois de magoá-las, elas continuariam gostando de mim, às vezes até mais,
porque eram boas por natureza.
Sinto vergonha de dizer que considero esta a parte mais diabolicamente
inteligente da coisa toda. O fato de serem carinhosas e amorosas por
natureza era a pedra que as fazia afundar. A fórmula é perfeita. A enfermeira
se dispõe a se sacri car pelo paciente. O paciente, porém, não está sofrendo
de uma doença causada por um agente externo, mas por ferimentos
autoin igidos. A enfermeira quer afastá-lo da sua dor. O paciente quer que
ela também sinta a dor. De que outro modo ela pode entendê-lo? Então, ela
se junta a ele. Agora há dois pacientes. Algo assim. Mas, pelo menos eu era
capaz de identi car alguns sinais do que estava acontecendo. Algo do qual
nunca teria sido capaz se já não tivesse estado do outro lado.
E também só quero fazer uma menção à França aqui. Desde então ouvi
dizer que em Paris há, entre os franceses mais aristocráticos, o elegante
hábito de convidar para reuniões sociais aquele que nós na Irlanda
costumamos chamar de saco de pancadas verbal. É muito importante que a
vítima não saiba o que está acontecendo.
A vítima é convidada para um jantar ou uma reunião e, sem saber,
oferece muita diversão aos outros convidados. A noite é considerada um
sucesso se todos puderem sacanear o pobre coitado, e um sucesso ainda
maior se o infeliz não souber o que está acontecendo. Então, sei o que você
deve estar pensando: “Caramba, como o cara guarda rancor dessa coisa
toda.” Mas vou lhe dizer uma coisa: não quero que o livro dela saia sem
algum tipo de resposta minha. Vou estar totalmente indefeso.
Claro que nem sequer sei se alguém vai publicar isto, mas minha
esperança é poder ver o que escrevi nas livrarias antes que o livro dela seja
lançado. Desse modo vou ter a primeira palavra. Depois vou cagar para as
fotos que ela publicar de mim.
Quer dizer, você consegue imaginar uma coisa dessas?
Uma porra de um ensaio fotográ co sobre uma parte da sua vida. Justiça?
É justo alguém manipular minha imagem depois de eu ter passado os
últimos dez anos no ramo da publicidade ganhando para manipular outras
imagens? Talvez seja. Pelo menos, se você ler isto, vai conhecer meu lado
da história. Sei que, se vir o livro dela e ali houver um cara ligado à
publicidade, vou supor que ele fez por merecer. Estereótipos, sabe? Da
mesma forma que esperei ser morto a tiros em Nova York assim que saí do
avião.
En m, cá estou eu de novo mudando de assunto. Onde eu estava? Ah,
sim, o Cat and Mouse. Nossa, ainda estremeço quando passo ali perto.
Agora tenho uma namorada. Ela mora por ali. Passo com frequência pelo
bar. Não gosto disso. Ela sabe tudo sobre o que aconteceu. É francesa. De
início quei perturbado por ela morar ali perto, pois achei que fosse mais
uma do grupo da Aisling, convocada para me ferrar ainda mais. Ela acha
que eu deveria procurar um terapeuta. Quanta insolência. Já vou a seis
reuniões do AA por semana. Mas ela é legal. Eu gosto dela. Ela gosta de
mim. Digamos apenas que gostamos um do outro. Por falar nisso, pau em
francês é bitte. Então, suponho que seja uma espécie de nal feliz, porque na
verdade nada terminou, eu estou vivo e pretendo continuar assim, ainda
aguardando o lançamento do livro dela.
Na verdade acabou de me ocorrer que este livro, caso se torne um, não
tem nal, feliz ou não. Será apenas uma vírgula na frase acrescentada a ele
próprio quando o livro dela sair. Há um elemento de vingança nisso tudo.
Consigo ver que um lado meu está sendo mesquinho, triste, pervertido,
amargo e, no geral, como as raízes de uma árvore europeia (você não vê
raízes retorcidas na porra deste país). Página após página de um mau humor
sombrio. Mas a verdade é que não me sinto assim.
Espere até ler isto. Logo antes de decidir sair do Cat and Mouse naquela
noite, um copo de Coca foi entregue a um homem de Cork por uma
madona de olhos verdes que parecia jovem demais para poder comprar
bebida alcoólica. O homem de Cork passou o copo de Coca para um
homem de Deelford que não bebia havia quase seis anos. Ele era alcoólatra.
Para começo de conversa, não deveria estar em um bar. Vinha vivendo
perigosamente. A nal, estava louco de paixão pela garota que acabara de
comprar a bebida. Aquele copo de Coca não parecia tão diferente dos copos
de Guinness que todos os outros pareciam segurar.
Essa era a ideia. Encaixar-se. E ele havia tido uma noite estranha.
Também havia tomado Coca-Cola para cacete. Mas aquela viera Dela. Era
especial. Ele sabia disso. Ela sabia disso. O homem de Cork sabia disso.
Digamos que era sabido. O homem de Deelford pegou o copo. Ela olhou
para ele de longe. Parecia preocupada em manter uma distância segura.
Como se estivesse com medo de ele pular em cima dela de repente. Era
quase como se ela quisesse isso. Ela cou ali de pé, se preparando para agir,
pronta para fugir. A pose surtiu um efeito estranho nele. Ele se viu
buscando razões para querer pular sobre ela.
Não encontrou nenhuma. Algo o protegia. Alguma outra coisa. Algo
que se colocara entre ele e a vontade de pular nela. Lógico que ele sabia
que tinha sido feito de bobo com muita habilidade, mas seu direito a dar o
troco fora adiado. Não cancelado, apenas postergado.
Ela ergueu o copo em um brinde debochado e deu uma piscadela que
signi cava Peguei você. Deveria ter doído, mas não foi o caso. Não naquela
noite. Mais tarde isso o cortou tão fundo que ele teve que trincar os dentes
para conseguir respirar. A compreensão disso o rasgou por dentro como se
seu sangue tivesse cado venenoso de repente. Como vidro moído correndo
por seu corpo. Era capaz de ver o rosto adorável dela rindo dele.
Naquela noite, porém, nada disso o afetou. Ele ergueu o copo e o segurou
no alto, criando, mesmo que por um breve momento, uma simetria entre
eles que não existira até então. Se isso fosse um lme, daríamos um close no
sorriso dela bebendo a Guinness e depois uma tomada ainda mais de perto
da boca dele enquanto ergue a Coca. Então, corta de uma boca para a outra
sucessivamente. O lábio superior dela mergulha no líquido espumante. O
dele também. Ela engole. Ele, não. Ela afasta o copo dos lábios e o ergue em
um gesto de triunfo.
O copo dele permanece diante da metade inferior do seu rosto. Seu lábio
superior está frio na Coca. Ele sente o cheiro de vodca. Acha que sente
cheiro de vodca. O homem de Cork olha para eles como se jogassem tênis.
O homem de Deelford obedece a uma voz que só reconhece dias depois.
Não beba isso. Ele não está com sede. A nal, já bebeu cinco copos dessa
coisa. Supostamente, vodca não tem cheiro. O AA está cheio de pessoas
que costumavam acreditar nisso. Por isso elas tragavam a coisa com tanta
vontade. Um alcoólatra não quer cheirar a bebida. É engraçado, de verdade
— você pensaria que não ligamos para isso.
Mas um pequeno truque que você aprende se não quer voltar a beber
nessa vida é adquirir o hábito de cheirar tudo o que bebe.
Até chá.
É um bom hábito. Pode salvar sua vida.
Então, a questão é: se isto for publicado, é provável que não publiquem o
livro dela de ensaios fotográ cos, porque seus métodos vão ter sido
revelados. Ou, caso publiquem, pelo menos eu terei tido a primeira palavra
e externado meus sentimentos sobre o que aconteceu. Se isto aqui não for
publicado, então o livro dela provavelmente será lançado em mais ou
menos um ano, eu serei humilhado, ou pelo menos levemente
constrangido, e ela vencerá e continuará me assombrando para sempre. Por
outro lado, se você está lendo isto, então não apenas ele foi publicado como
agora estou trabalhando no meu próximo livro ou no roteiro para o lme
deste.
Pode me dar os parabéns.
Leia também

O adulto
Gillian Flynn

Baseado em fatos reais


Delphine de Vigan
Coleção Como Lidar:
A esposa

Coleção Como Lidar:


A ressaca
Coleção Como Lidar:
O hipster

Coleção Como Lidar:


O marido
Coleção Como Lidar:
Os encontros

Você também pode gostar