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Etanol

Uma novela de Raoni Oliveira


1

Ah, como eu gosto desse cheiro...


Bem, ainda não se lia meio-dia no relógio da cabeceira. Sei que eu poderia
dormir mais um bom tempo, mas esse desconforto... Droga de peso existencial no
meu momento de ócio e preguiça. Escolhi abrir os olhos aos poucos, simulando
aqueles espasmos engraçados que as pessoas têm enquanto dormem. Dessa forma eu
teria escolha caso quisesse ignorar o ambiente ao meu redor e tentar voltar a dormir –
não conseguiria, como sempre, mas gostava de acreditar que, caso tentasse, voltaria a
dormir logo após acordar. E persistia burramente –. Ela estava me olhando como se
esperasse o micro-ondas apitar enquanto esquenta brigadeiro. A louca me
contemplava como se eu realmente fosse alguém. “Porra de mulher doida”, pensava
eu enquanto fingia roncar com a garganta e acabava sendo obrigado a fechar a boca e
engolir, por conta da secura que o ar me causou. Boa oportunidade para virar de
costas... Não, melhor acordar mesmo. Esse desconforto só vai acabar sendo
prorrogado.
Abri os olhos olhando pra cara de maluca dela e fiquei estático, sério,
esperando o que viria. Ela sorriu. E era um sorriso sincero.

– Bom dia – disse ela. Eu prendia o ar pra não sentir o bafo matinal e não
piorar ainda mais minha manhã.
– Ei, dona. Dormiu bem? Por que já acordou?

Enquanto ela respondia, eu pensava em como tirar ela da minha cama e da


minha casa. E, pior, pensava em como aquela mesma situação seria com a Cla.
Acordar ao lado da Cla, com ela me olhando... Boa, Rico: dois minutos acordado e
sua cabeça já começou a te foder! Ouvi algo sobre café e, sem perceber, estava
respirando pelo nariz. Ela já tinha escovado os dentes e fumado um cigarro ou bebido
café; eu não estava conseguindo distinguir. Só fiquei meio puto de segurar a
respiração à toa.
Levantei, dei um beijo na testa dela e fui ao banheiro. Mijei sentado, pois
tenho esse costume quando quero gastar um tempo ao celular. Decidi usar uma forma
antiga e bem escrota pra dispensar a garota: mandei uma mensagem pro Rafael
pedindo pra ele me ligar após um tempo curto. O bom de mijar sentado é que quando
você quer usar o celular, você não mija no teto do banheiro por acidente;
principalmente de manhã, que ele costuma estar numa postura diferente da usual.
Voltei pro quarto e lá estava a garota. Ela sorria; isso me deixou meio
deprimido. “Queria sorrir pras pessoas que me fodem”, pensei eu. Essa frase fazia
sentido em todas as interpretações possíveis. Eu ainda estava meio bêbado e achei
essa ideia engraçada demais. Acabei sorrindo, por reflexo. A garota achou que fosse
uma reação ao sorriso dela. Que tonta. Fiquei deprimido, novamente.
Rafael não me ligou. Ele não costumava falhar e nem eu com ele, apesar de
ele não requisitar muito esse tipo de coisa. Eu andava sendo babaca. Eu andava
machucando as pessoas apenas pelo medo de me machucar. Virei um porco-espinho
emocional.

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2

Na véspera eu havia bebido tanto que esqueci o nome da garota que me


acordou. A gente se conheceu numa festa. Eu não estava muito a fim de parar de
beber no meio da festa para poder conversar com uma garota, então peguei o telefone
dela e voltei à minha missão de beber a ponto de alcançar uma amnésia colossal que
destruísse os últimos dois anos de memória da minha vida. Falhei. Bastante. Nesse
dia eu acordei tremendo de frio e pelado na cama do Rafael. Ele dormiu na sala com
Letícia, sua namorada. Sério, ele precisava parar de me mimar dessa forma. Existe
algo mais soberbo que mimar alguém? “Ah não, cara! Pode usar minha cama. Eu
durmo no sofá com minha garota. Você precisa mais de uma cama que a gente”. Eu
passei o dia com uma das piores ressacas da minha vida e chamando Rafael de
soberbo condescendente. Ele ria. Sabia que, no fundo, eu era pura gratidão.
Chegou a noite e eu lembrei da garota da festa. A que quase interrompeu
minha tentativa falha de alcançar paz interior. Liguei pra ela:

– Alô.
– Ei! Sou eu, Rico.
– Quem?
– Você foi à festa de aniversário da Julia ontem?
– Sim, mas quem é?
– Você me deu o seu telefone, porra!
Ela desligou na minha cara. Meio sensível, né? Liguei de novo:
– Ei, sou eu de novo. Me desculpa. Tô com uma puta dor de cabeça. Bebi
demais ontem. Acontece que eu me esqueci de muita coisa, mas me lembro de você.
Você deve ser importante.
– Impressionante a cara de pau... “deve ser importante”. Que merda é essa?
– Cara, você só me deu o telefone e eu voltei pros meus amigos. Eu queria te
ver, sei lá. Topa uma cerveja?
– Tá, Frederico. Deixa eu te lembrar de que você me deu as costas assim que
anotou meu celular e me deixou falando sozinha. Mas tudo bem; depois me contaram
da sua missão de ontem. Bem idiota, mas fazer o quê? Onde você sugere a cerveja?
– No Barriga?
– Tá.

Tomei um banho, peguei uma camisa emprestada do Rafael, tomei mais uns
dois remédios pra ressaca e desci a caminho do boteco do Barriga. Era um desses
botecos que se nota que tem classe, mas a administração se esforça pra tentar manter
o título de boteco. Eu achava isso gozado. O povo não quer classe na hora de beber.
Não se trata do preço, a gente só quer ter o sentimento de que, caso precisemos ir ao
banheiro vomitar, não iremos ser julgados por um garçom bem vestido na saída do
banheiro. O mesmo conta pra falar alto bêbado. A gente quer poder fazer isso sem ter
madame olhando torto.
Cheguei ao Barriga e sentei na primeira mesa vaga que achei. Não lembrava
muito bem da cara da garota. Se eu entrasse no boteco e não a reconhecesse, não ia
ser legal. E eu já havia pisado na bola duas vezes com ela. Uma garota se levantou da
mesa ao lado da minha e sentou na minha mesa. Puta merda! Era ela. “Ei! Ainda bem
que você me viu, vim sem meus óculos e ia sofrer pra te achar. Achei que ainda não

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estivesse por aqui”, disse eu. Acho que não colou, mas ela fingiu bem ter acreditado.
Ela parecia feliz... com os olhos. E era o que importava. Demonstrava-se empolgada
sobre a minha vida e bebia na mesma toada que eu. Havia um problema, obviamente.
Que tipo de mulher fica assim por um cara que a ignorou na véspera para tentar
apagar com álcool as melhores memórias da sua vida? Eu era o lixo e ela era o vira-
lata me revirando.
Conforme fomos bebendo, eu fui ficando mais tolerante à conversa agradável
e à ideia dela se interessar por mim. Assistindo àquela cena daria até pra se convencer
de que eu era um cara realmente interessante e que ela fora tomada por toda aquela
velha euforia que se tem quando se conhece alguém excepcional. Quando liguei pra
ela, eu só estava buscando remendar as horas do meu dia com pessoas para evitar a
solidão. Não dava pra ficar empatando foda na casa do Rafael, ainda mais no começo
do namoro dele; os dois estavam piores que adolescentes sob efeito de ecstasy.
Após um tempo ela se levantou para ir ao banheiro. Hora de avaliar a
caminhada. A gente conclui muita coisa sobre uma mulher de acordo com a forma de
caminhar, ainda que nada faça sentido. Ela pegou a bolsa com as duas mãos e a
segurou colada na altura do umbigo. Ela se acha gorda e tá tentando esconder a
barriga ou então tá muito apertada. Um dos dois. A gente se sente bem ao fingir que
consegue interpretar pessoas através de observação de atos randômicos. Eu me sentia
bem.
Decidi que queria passar mais tempo com ela. Na verdade decidi que não
queria ficar sozinho com minha cabeça. Comecei a pensar em alguma ideia pra levá-
la pra minha casa. Era quase uma da manhã e conforme eu começava a apreciar a
companhia dela, meu pensamento sobre ela não ter lugar melhor para estar, neste
horário, a não ser numa mesa na calçada do Barriga, comigo, me incomodava muito.
A forma como eu me via se refletia completamente na forma que eu a via, já que ela
parecia me considerar uma boa companhia para um sábado à noite.
Lá voltava ela com a bolsa pendurada no ombro. Resolvi o mistério: estava
muito apertada, apenas. Reparei que era gostosa também. Geralmente a gente repara
isso quando a mulher vai, não quando vem. Ela se sentou:

– Onde estávamos? – perguntei.


– Você ia me contar sobre como conheceu a Julia.
– Ah, a Julia é a minha melhor amiga. Conhecemo-nos no ensino médio.
Meus amigos pegavam no pé dela porque ela era feia. Eu achava bonita, tinha até uma
quedinha por ela, mas eu era sonso. Daí eu fiquei amigo dela e ela criou muito apego
por mim, já que eu era o único garoto que não pegava no pé dela.
– Que fofinho!
– Não; sonso. E você? Não deve ser próxima, já que eu não te conhecia antes.
– Claro que conhecia. A gente já se viu algumas vezes – fiquei sem graça. Não
parava de pisar na bola com ela.
– Aposto que eu estava bêbado, perdão. Tenho bebido muito ultimamente.
– Isso é grave?
– Não, é só uma fase. Os últimos meses têm sido uma barra – ela já sabia que
se tratava do meu término. Alguém fez o favor de contar tudo durante a festa.
Provavelmente a Julia. Ela era bem intencionada, mas tinha uma língua que puta que
pariu.
– Sinto muito, eu já passei por isso.
– Todo mundo já passou...

“Meu caso é pior”, eu resmungava internamente. Sempre que alguém vinha


com esse papinho de que sabia o que eu estava passando por já ter tomado um pé na

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bunda ou um chifre eu pensava isso. Sei que talvez não fosse realmente pior, mas e
daí? Não dói em mim quando os outros se fodem. Quando eu me fodo, sim. Então é
pior.

– Tá meio frio, né? Quer tomar algo lá em casa? – arrisquei logo de uma vez
pois, às duas, eu já não ligava mais em ir pra casa sozinho.
– Acho que não, foi mal. Marquei de ir à praia amanhã de manhã com uma
amiga. Já devia até estar em casa.
– Tudo bem, como vai embora? Quer que chame um táxi?
– Não, estou de carro – desobediência civil. Gostei muito.
– Me deixa em casa?
– Claro.
– Tá bem pra dirigir ou quer que eu leve?
– Não, tô bem.

Pedimos a conta, eu chamei a maquininha de cartão, o garçom trouxe. Ela


tomou a conta da minha mão e alcançou a carteira na bolsa.

– Que isso? Deixa que eu pago.


– Não senhor, meio a meio.

Nem insisti, achei legal... Modernona. Achei legal isso e, principalmente, a


ideia de ela me levar bêbada até a minha casa correndo risco de multa ou de bater e
matar nós dois. Essa zona toda estava me botando cada vez mais com vontade de
levar ela pra cama.

“Sim” significa “talvez”, “não” significa “não”, “talvez” eu não faço ideia do
que se trata. A gente escolhe uma teoria barata qualquer sobre mulheres e, quando
não funciona, chama de exceção. Dessa vez o “não” acabou se tornando “sim”,
fortuita exceção. Ao parar na porta da minha casa, agradeci:

– Olha, obrigado pela companhia.


– Que conversa é essa? Deixa de ser bobo.

Eu fiquei encarando os olhos negros dela. Pensando no quanto eu estava


bêbado e tentando não perder a noção do tempo que a gente estava em silêncio.
Suspirei. Eu suspiro quando estou alto, meio que ajuda a botar as coisas mais ou
menos no lugar, na minha cabeça. Ela sorriu. Peguei os dois lados da gola do casaco
dela com uma mão e puxei. Ela me beijou com uma mão na minha nuca e outra
tentando soltar o cinto de segurança. O beijo era bom. O cheiro e gosto de álcool em
um beijo sempre trazem memórias de outros, ocorridos em situações similares. É um
pacote maravilhoso. E as lembranças despertadas são, em sua maioria, muito boas.
“Vamos pra dentro, essa rua é perigosa”, disse eu. Era mentira.

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Entramos. Eu morava no primeiro andar de um pequeno edifício. Era um lugar
legal: um quarto, uma sala grande e uma varandinha que dava de frente pra uma
praça; onde os coroas jogavam damas e adolescentes davam amassos, à noite, e
matavam aula durante o dia. Ofereci uma bebida, torci pra resposta ser “não”. Já
estávamos suficientemente bêbados e mais que isso poderia vir a estragar a foda.
"Sim, aceito". Abri o pior vinho da dispensa.

– O vinho tá quente, quer gelo?


– Não tem outra bebida? – tinha vodka e meia garrafa de whisky mas eu não
iria correr o risco dela exagerar. Acho que não saberia conviver com a ideia de
acordar com uma mulher arrependida de ter dormido comigo.
– Não – respondi –, preciso fazer compras.
– Traz sem gelo mesmo.

Fui ao computador. Ele era ligado ao home theater. Eu tinha uma playlist
muito boa para ouvir durante o sexo, o problema é que essa playlist estava encharcada
de lembranças que, no momento, eu queria obliterar. Coloquei um disco do The
Killers pra tocar: sempre caía bem e as lembranças que trazia eram da adolescência.
Suficientemente bom. Sentamos no sofá da sala e nem conversamos. A tensão entre a
gente cresceu durante a noite toda e eu não havia percebido o quanto as coisas se
amontoaram até o beijo no carro. Conforme nos entrelaçávamos, os dois ficavam
agressivos. Eu comecei falando um par de baixarias ao ouvido dela e, quando percebi,
ela estava em cima de mim tentando me asfixiar e me enchendo de sopapos na cara.
Ela era ótima.
Depois da segunda vez começou a bater uma vontade de ficar só, e ia
aumentando conforme o tempo passava. Estávamos deitados, fumando e quietos.
Minha bochecha estava meio quente, fiquei imaginando as costas dela. Senti que
exagerei com o cinto.

– Que horas você vai à praia com sua amiga?


– Está chuviscando, não sei se vou. Além disso, acho que depois dessa noite
não é uma boa ideia sair de biquíni em público por uns dias – e riu me abraçando.

Decidi dormir antes que ela se empolgasse e quisesse outra. Eu tava morto.

Rafael não iria ligar. Devia estar trancado no quarto com a nova senhora dele.
Ainda mais com a chuva fria que caía naquele domingo. Eu ainda não lembrava o
nome da minha nova companheira. Fui até a cozinha, ela tinha passado café. Era
sobre isso que ela tava falando mais cedo. Enchi um copo e voltei pra cama.

– Esse tempinho é uma delícia, você gosta? – ela falou enquanto se enfiava no
meu colo.

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– Sim, bom pra ficar agarrado, né? Ver um filme e tal... Pena que eu marquei
de encontrar um amigo agora à tarde, ele não anda bem.
– O que ele tem?
– Não sei. Disse que precisava conversar, apenas. Deve ser algo relacionado
ao trabalho dele.
– Quer que eu vá acompanhar? Não tenho nada pra fazer agora à tarde mesmo.
– Não, dona. O assunto pode ser pessoal. Mas obrigado.
– Que horas você vai?
– Vou tomar um banho e vou.
– Quer companhia no banho?
– Não. Não dá tempo, me desculpa. É que eu tô realmente preocupado com
ele.
– Tudo bem, eu vou indo então. A gente se fala outra hora.

Me senti mal. Ela era ótima, divertida e, por algum motivo, gostou de mim.
Mas o café da Cla era melhor... Puta merda, foda-se o café da Cla.
Entrei no banho. Ouvia a garota se arrumando no quarto. Senti tristeza no
apartamento, dava quase pra tatear o ar, de tão pesado. Ela tinha levantado cedo e
feito café, voltou pra cama e me esperou acordar. Eu acordei e tomei café sozinho.
Que babaca. Quando saí do banho ela havia ido embora. Até arrumou a cama. Aposto
que fez isso pra me fazer me sentir pior. Conseguiu.
Acendi um cigarro. Olhei para aquele copo de café e lembrei-me de alguém
comentando sobre café irlandês, que era café com whisky... algo do tipo. Joguei
whisky no café e bebi. Ficou uma merda. Não devia ser essa a receita, mas como já
havia jogado whisky no copo, não iria desperdiçar. Continuei bebendo aquela
porcaria. Saí procurando o controle da TV pelo sofá e achei algo estranho. Puta que
me pariu! Era o celular da garota. Que droga, eu não queria aquilo. Não o celular. Eu
não queria era ela voltando pra buscá-lo. Achei o controle e sentei no sofá pra tentar
achar qualquer coisa que me distraísse.

O celular da garota tocou. Peguei e olhei quem ligava, era a Julia. Abaixei o
som da TV:

– Oi – atendi.
– Quem é?
– Sou eu, Ju. Rico, sua pessoa favorita em todo o mundo.
– Rico? Desculpa, liguei errado. Tinha certeza que havia ligado pra Vanessa –
descobri o nome da garota, finalmente.
– Não, não. Esse telefone é dela.
– Por que você está com o telefone da Vanessa?
– Ela deixou aqui em casa.
– Pera aí, Rico. Vanessa tava na sua casa? Você é louco?
– Não. Digo, tava, mas não sou louco. Como assim?
– O que ela tava fazendo aí?

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– Ela passou a noite. Dá pra você me explicar o que tá acontecendo?
– Rico, Rico... perdeu completamente a noção? Ela é noiva, sumiu desde
ontem e o noivo tá igual um maluco atrás dela. Por isso estou ligando pra ela.
– Olha, eu não tava sabendo disso. Ela parecia bem solteira, pra mim. E não
me contou nada sobre ter um noivo esperando em casa. Você sabe que não mexo com
esse tipo de coisa.
– Merda, Rico. Ela é meio maluca com você. Eu sempre falei bem de você
com ela, acho que no ouvido dela soava como propaganda ou algo do tipo. Ela
sempre me implorou pra te apresentar a ela, mas você era enrolado com aquela puta
da Cla.
– Não fala assim dela.
– É puta sim.
– Você precisa parar com esse ciúme besta.
– Que ciúme, Rico? Seu otário! Você passou dois anos lambendo os pés
daquela mulher. A gente só ouvia falar de você de vez em quando e, quando você
aparece, está aos pedaços... É uma puta, sim.
– Não foi bem assim, mas enfim: a Vanessa. Ela estava sozinha na sua festa,
me deu o telefone, saímos ontem e ela dormiu aqui. Eu não sabia de nada.
– Você tá com o telefone dela desde sexta?
– Não, me deu o número. Deixa de ser tonta. Que sentido existe em alguém
dar o celular pra um desconhecido?
– Sei lá, Rico. Nada faz muito sentido na sua vida.
– Tem razão.
– Vocês marcaram de sair de novo?
– Não, eu meio que a pus pra fora de casa com uma porção de desculpas. Mas
ela esqueceu o celular, né?
– Meu deus...
– Vai fazer o que agora à tarde?
– Acho que nada. Pensei em ver um filme na TV, depois que encontrasse a
Vanessa. Ela ia passar aqui mais tarde.
– Vem pra cá. Traz pipoca e a gente assiste algo. Também não tenho nada pra
fazer.
– Vou ver aqui e te ligo qualquer coisa.
– Tá. Beijo.
– Beijo.

Eu não gostava muito de assistir filme com a Julia. Ela sempre dormia na
metade do filme ou então ficava fazendo comentários sobre as roupas dos atores, mas
eu já tava ficando bêbado com meu café irlandês e ficar bêbado sozinho não era legal.
Ela mexia com moda, eu nunca soube muito bem o que ela fazia. Eu sempre falava
pros outros que ela era costureira. Era como eu a imaginava no trabalho.
Fiquei mais um tempo pensando na Vanessa. "Eu sabia que ela era doida",
murmurava comigo mesmo. Não queria estar na pele do noivo dela. Ser apaixonado
por alguém assim. Ela parecia ótima, na verdade, mas isso não se faz. Mesmo não
sabendo sobre ela ter alguém, fiquei me sentindo culpado. Eu fui parte da história de
infidelidade. Na verdade fui o coadjuvante. Quanto mais eu pensava, maior era o
vazio. Tudo o que aconteceu durante a noite, ela me achar um cara legal, interessante,
me tratar bem... foi mentira? Até dez minutos atrás eu me sentia mal por ela gostar de
mim. Agora eu me sentia mal por tudo provavelmente ter sido encenação. Meu copo
esvaziou. Fiz outro café irlandês; dessa vez sem café.

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Meu dedo já estava prestes a ter uma cãibra de tanto mudar de canal. Lembrei-
me o porquê de eu não assistir TV, aquilo era terrível. Liguei o computador e comecei
a procurar um filme. Já estava bem bêbado. Eu queria mandar uma mensagem pra
Cla, mas, àquela altura eu já tinha me encarregado de errar de todas as formas
possíveis com ela. Qualquer possibilidade da Cla olhar pra mim mais uma vez com
aquele brilho nos olhos, que só se vê em crianças olhando pra árvore de natal lotada
de presentes, havia sido devidamente destruída por meus desacertos.
Eu não gostei dela logo de cara. Parecia se esforçar pra ser alguém que não
era; o tempo todo. Meus amigos tratavam-na com aquela cortesia prestada apenas
para manter o clima de nossas reuniões. As coisas mudaram conforme passávamos
tempo juntos, sozinhos. Conforme encontrávamos, os detalhes vinham à tona; e foram
os detalhes que sempre fizeram a diferença. Como ela ria e a forma como ela ria em
horas inapropriadas. O cinismo, que sempre me encantou. A forma que ela se
preocupava com cachorros de rua. Em pouco tempo eu estava perdido em meio àquilo
tudo. Eu não tinha nada, mas decidi que todo o meu nada seria dela dali em diante.
Nunca imaginei estar numa fila de banco e aquele lugar, naquele momento, ser o
lugar que eu mais queria estar no mundo inteiro. Enquanto ela falava sobre o dia
maçante no escritório de arquitetura onde ela estagiava, eu assistia, hipnotizado, seus
olhos; e eles eram a única coisa que eu queria ver. Eu seria capaz de trocar uma vista
de camarote para o cometa Halley por segundos daquele olhar. Já estava chorando
havia um tempo e meu café irlandês tinha acabado de novo, quando me toquei.
Levantei, lavei a cara e juntei um pouco de papel higiênico pra assoar o nariz
até parar com aquela frescura. Percebi que meu celular não estava na sala. Talvez
Julia tenha me ligado e eu não vi. Procurei no quarto, na cozinha, não achei. Voltei
pra sala e sentei com o computador no colo pra voltar a tentar escolher um filme. O
celular da Vanessa tocou de novo. Número desconhecido. Fiquei com medo de
atender e ser o noivo, mas resolvi apostar:

– Alô.
– Rico? – era ela. De um orelhão, provavelmente, já que não sabia a senha do
meu celular. Ainda bem.
– Oi, Vanessa, sou eu.
– Eu confundi nossos celulares e peguei o seu.
– É. Percebi, Vanessa. Onde você está?
– Almoçando, você tá com seu amigo?
– Que amigo?
– O que você ia encontrar.
– Ah sim, ele mudou a hora. Vai ser mais tarde um pouco, Vanessa – eu tava
mostrando ao mundo que eu sabia o nome dela. Isso tava me fazendo me sentir
melhor.
– Posso passar aí pra pegar o meu celular e deixar o seu?
– Pode sim.
– Tá. Estou indo.

Peguei o computador e abri o e-mail pra escrever:

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"Cla,

Sou eu: O cara que você dizia ser parte de você. Como tem vivido sem uma
parte sua? Incompleta? Eu não tenho vivido. Pelo contrário.
Dizem que, quando um não quer, dois não brigam. É mentira. Tenho lutado
contra você todas as noites.

Com carinho,
Rico."

Estava bem bêbado e enviei. Só se vive uma vez, não é verdade? Por falar em
"só se vive uma vez", o interfone tocou. A doida. Atendi o interfone e abri a porta.
Deixei o celular dela em cima da mesa e sentei no sofá. Ela chegou, entrou e fechou a
porta. Veio e sentou no sofá ao meu lado.

– Alguém andou bebendo bastante, né?


– Não, só café.
– Claro... café – e riu.
– A Julia te ligou.
– Você atendeu?
– Sim, é minha melhor amiga, ora. Descobri umas coisas desagradáveis.
– Tipo?
– Seu noivo tá preocupado com você... Ah, também descobri que você tem um
noivo.
– E daí? A noite foi boa, né? Você gostou.
– Não se trata disso. Por que você tá fazendo isso? – Ela começou a querer
chorar, os olhos flutuavam em lágrimas:
– Eu não quero me casar. Eu não tenho o que a gente teve ontem.
– Por que tá com ele?
– Ele é bom pra mim, faz tudo por mim, é um cara legal.
– Mas?
– Mas eu não consigo sentir isso por ele.
– Você tá confusa. Com medo. Coloque sua cabeça no lugar. É raro alguém
que se importe com a gente. A gente precisa valorizar.
– Como você fez com sua ex?
– Não traz isso à tona. É exatamente o contrário do que eu fiz. Eu lamento por
cada erro. Tenho pagado por cada erro e te digo: não mexe com isso, não.
– Mas foi ótimo ontem – ela ainda chorava e olhava pra mim. O whisky
gritava na minha cabeça: "Come mais uma vez! Não vai piorar algo que já tá feito!".

Suspirei. Ela se inclinou pro meu lado, apoiou a cabeça no meu ombro e
colocou a mão na minha perna. Eu coloquei a minha na perna dela e foi como se eu
tivesse dado sinal verde. Ela ajoelhou no sofá e passou a outra perna por cima de
mim. Ficou sentada no meu colo de frente pra mim. "Que se foda", pensei. E lá
estávamos nós, de novo, destruindo mais um pouco o que nos restava de dignidade. A
dela, principalmente. Eu não tinha noivo, pelo menos. Não foi nem um pouco intenso,
como de madrugada. Foi algo melancólico. Os beijos no rosto dela eram salgados, as
bochechas ainda estavam molhadas de lágrimas. Nem fomos pro quarto. O sexo foi
algo para limpar a cabeça dos dois. Quando acabamos, ela continuou sentada no meu
colo e me abraçou. Ficou com a cabeça apoiada em meu ombro, virada para a
varanda. Ficamos abraçados por um tempo, fiquei tentando pensar numa forma de

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tirar algo bom dessa confusão toda... não havia. Eu precisava mandar ela embora; de
novo:

– Olha, acho que a gente deveria esquecer o que aconteceu e você deveria
voltar pro seu noivo.

Ela tornou a chorar. Já tava me enchendo o saco ter que lidar com isso. Eu dei
dois tapinhas na perna dela pra ela como sinal para ela sair de cima de mim, ela saiu e
eu pedi meu celular. Ela entregou. Havia algumas ligações perdidas do Rafael e uma
da Julia. Fui ao banheiro mas mijei em pé. E me lavei.
Quando voltei, voltei com a história do meu amigo que precisava de mim. E
disse pra ela ligar pra Julia. Ela levantou sem falar nada, pegou o celular dela de cima
da mesa e foi embora sem fechar a porta.
Não retornei as ligações da Ju e do Rafael. Tava cansado, com um pouco de
ressaca moral e muito de ressaca física... ou o inverso; sei lá. O whisky acabou, minha
cabeça doía. Decidi dormir até não aguentar mais.

Fui ao supermercado, comprei muita bebida, macarrão instantâneo e passei


uns dias trancado em casa. Isolado. Eu acreditava que estragaria tudo em que eu
encostasse; tipo aquele sujeito, o Midas, mas seria merda em vez de ouro. Então me
pus de quarentena.
Nem mexendo no mercado eu estava. Eu vivia de investimento no mercado de
ações, moedas, commodities e futuros. Não era nenhum bicho de sete cabeças.
Aprendi bem cedo e desenvolvi um sistema que me dava um retorno consistente. Às
vezes eu ganhava muito e às vezes eu perdia um pouco mas dava pra viver bem
daquilo. O sistema era baseado em um indicador que se movia minutos após a
abertura do mercado asiático. Baseado nesse indicador, eu observava uma tendência
que durava por alguns minutos. Nesse tempo eu fazia a festa. Raramente falhava.
Claro que eu não tinha posto todo o dinheiro que ganhei em mesas de poker e
baccarat em operações de alto risco. Fiz uma grana alta jogando baralho na época que
dava pra aplicar edge sorting por conta dos decks vagabundos que usavam nas mesas
clandestinas por aqui. As costas das cartas eram sempre diferentes de uma pra outra e
eu decorava uma porrada. Mas tentava fazer isso só no baccarat, que era contra a
casa. É difícil “trapacear” contra alguém olhando no olho. Uma moral deturpada, eu
sei, mas enquanto a casa tentava me foder, eu fazia a minha parte em tentar foder com
ela. Haviam umas ações que eu fazia venda a descoberto, quando era uma empresa
que eu simplesmente não gostava, e por falta de juízo. Eu ainda jogava poker, além da
bolsa, mas o baccarat eu larguei – sem edge sorting não dava pra ganhar no baccarat
consistentemente. Já no poker, cada dia eu aparecia na mesa chapado de algo
diferente, então os coroas não conseguiam me ler. Era uma estratégia eficaz pra
ganhar dinheiro e perder saúde. Mas eu não jogava tanto –. Quando perguntavam o
que eu fazia pra viver, claro que eu não dizia: "Eu faço uma operação no mercado de
moedas uma vez por dia e, eventualmente, faço uma fortuna sem esforço nenhum" –

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que era onde eu fazia uns 70% do meu dinheiro do dia a dia –. Eu fazia parecer algo
que me desse um pingo de mérito e dignidade de um trabalhador de verdade: "Sou
investidor e faço operações de alto risco". Ninguém perguntava sobre detalhes depois
que eu falava isso. Ninguém se importava. Se perguntassem, eu começava a vomitar
conceitos tipo swap, hedge funds, bullish e bearish butterflies. Eu sabia o que
significava, mas não usava nada disso. Tirando as butterflies, que é comprar uma
opção de compra e venda ao mesmo tempo, eficaz quando a ação tá muito volátil e,
como o Brasil vive de volatilidade, eu ganhava quase sempre com elas. Eu me pagava
com, no máximo, duas operações ao dia. Era bom.
Acontece que eu havia feito muito dinheiro nas últimas semanas – fiz uma
butterfly na véspera de um escândalo nacional. Eu dava essas “sortes”, mas era só
perceber quando tava tudo muito quieto e meter muito dinheiro numa dessas. Quase
sempre dava uma merda no outro dia e eu, como uma mosca, fazia a festa no meio da
merda – e podia me dar ao luxo de ficar fora do jogo por um tempo.
Após uns dias com uma rotina sólida de "acordar, beber, comer macarrão,
beber e dormir", decidi que já era o suficiente. "Talvez eu consiga sair por aí sem
fazer merda", pensei. Resolvi ligar pro Rafael, que tinha me ligado umas mil vezes
durante a semana:

– Ei, Manoel – eu sempre chamava Rafael por qualquer palavra que


terminasse com "el". Eu achava engraçado, mas era só eu mesmo.
– Rico? O que aconteceu, cara?
– Ah, eu tava de quarentena. Andei cagando demais na vida.
– Não fode, Rico. Eu tava preocupado, porra! Custava ligar?
– Não fica aborrecido. Tive meio mal. Sabe aquela menina de sábado?
– Sei.
– Ela é noiva. Comi ela sem saber.
– Porra, Rico. Que merda, hein?
– Nem fala. Ela ainda ficou cheia de drama falando que não queria casar.
Porra de mulher doida.
– Você só arruma problema pro seu lado.
– Não dava pra adivinhar, velho.
– Mas e aí? Tá melhor?
– Tô, vai fazer o que hoje? – botei o celular no viva voz e comecei a procurar
o calendário nele, era quinta.
– Nada. A Lê vai ficar até o final de semana na casa duma tia dela no interior.
– Vamo arrumar alguma coisa hoje?
– Bora, passo aí daqui uma hora.
– Falou.

Fiquei esperando Rafael chegar. Abri uma vodka e botei Sex Pistols pra tocar
no som. Acendi um cigarro. Enquanto o som gritava: “I am an antichrist, I am an
anarchist”, eu olhava pro teto com vontade de botar fogo na minha casa e gritar da
janela. Eu não ficava empolgado daquele jeito fazia um bom tempo. Era um copo
atrás do outro. Fiquei podre de bêbado em minutos. O interfone tocou e eu bati o
dedinho do pé na mesa de centro ao ir atender. "Vai tomar no cu!", gritei com a
mesinha. Atendi o interfone:

– Princesa Isabel! Sobe aí! – e abri o portão.

Rafael já entrou em casa rindo, acabou-se de rir depois de me ver com uma
garrafa de vodka e um cigarro numa mão tentando me equilibrar só de cueca olhando

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se o dedinho tinha machucado aquele tanto que doía. Sempre dói mais do que
machuca. Dedinho é uma merda.
Ele pegou um copo e falou pra eu encher. Aquilo me deixou feliz. Rafael era
um maníaco quando bebia. Ele era do tipo que não tinha limite, assustava qualquer
um que assistisse a ele bebendo e ninguém era capaz de acompanhar. Eu conheci ele
bem novo, perdeu os pais num acidente e morava com a tia perto da minha casa em
Vitória – a do Espírito Santo, não a da Conquista –. Durante a faculdade ele foi
skinhead antifa; batia em neonazistas em São Paulo com o grupinho careca dele. Ele
teve que voltar pra Vitória quando a tia dele adoeceu. Foi ele quem cuidou dela até
ela se recuperar e ele acabou terminando a faculdade de direito por aqui. Eu não
gostava de ouvir as histórias porque nunca fui do tipo violento, mas o pouco que eu
ouvi foi o suficiente pra saber como funcionava aquela cabecinha doentia. Apesar
disso ele sempre foi um cara doce. Quando usava essa energia maluca dele, era pra
algo bom, na maioria das vezes. Atualmente ele trabalhava como oficial de justiça.
Passou no concurso pouco tempo depois de se formar e, por sorte, não tinha
antecedente da época de skinhead. Sinceramente, eu não sabia como uma pessoa
daquela podia exercer uma função pública. A sociedade tava fodida com a gente.
Pouco depois dele chegar, a vodka acabou. Ele era uma esponja de álcool. Pra
minha sorte eu já estava bêbado havia muito tempo.

– Bora pra rua, Rico. Acabou a bebida.


– Pra onde?
– Hoje tem show de uns moleques daqui do bairro naquele pub inglês perto da
ponte.
– Vamo.

Descemos e entramos no carro dele. Não fiquei surpreso por ele estar de carro,
já havia me acostumado com ele bêbado ao volante. Rafael dirigiu em direção ao pub
e parou num posto de gasolina próximo à ponte. Compramos duas cervejas, um maço
de cigarros e voltamos pro carro. Antes de ligar o carro o celular dele tocou: era a
Letícia. Ele disse que estava indo comigo a um show de rock e depois respondeu algo
sobre mim. Aparentemente ela também estava preocupada comigo. Menina legal a
dele. Após isso foi uma frescura fodida ao telefone. Coisa de casal novo. Fiquei
olhando pra cara dele com minha cara de babaca impaciente enquanto ele falava de
amor. Comecei a ficar curioso sobre como uma mocinha daquela tinha peito pra
encher a cabeça de neonazistas de bicudas com coturno. Que cena ridícula. O tempo
acaba com a gente mesmo.

– A Letícia te come?
– Vai à merda.

Engraçado como uma mulher muda a gente. E como a ausência de uma


também muda. Encostamos o carro em frente ao pub; ainda estava vazio. Descemos e
ficamos um tempo bebendo encostados no carro dele. Pensei em chamar a Julia, mas
lembrei que ela não gostava muito de rock. Liguei pra ela mesmo assim:

– Ei, Ju.
– Ei. O que aconteceu com você?
– Nada, passei uns dias sem o celular só.
– Não some assim, cara. Tentei falar com você.
– É, eu sei. Como andam as coisas?
– Mais ou menos. Você me arrumou o maior problema.

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– O que foi?
– A Vanessa entrou numa de terminar o noivado e eu tô tendo que lidar com
essa zona.
– Essa mulher é louca.
– É, mas é minha amiga.
– Que merda... Ô Ju, quer vir ao pub inglês perto da ponte? Tô aqui com o
Rafael. Tô bêbado.
– Tô notando – disse ela rindo. Eu costumava confessar que estava bêbado
sempre que ficava.
– Vem pra cá, traz a Vanessa.
– Não tem graça, Rico.
– Traz o noivo também. Eu faço o casamento.... Tem algum padre aí? – gritei
na porta do pub. Rafael cuspiu um gole de cerveja rindo na hora errada.
– Deixa de ser idiota. Que horas começa aí?
– Sei lá.
– Vou não, Rico. Pega leve aí, viu?
– Tá, meu amor. Beijo na boca.
– Tchau, Rico.

O pub estava com cara de que iria encher naquela noite. Estava meio frio e o
pessoal não parava de chegar. Havia grupos de pessoas com copos descartáveis na
mão e uma garrafa de destilado no chão em cada canto do beco que a gente olhasse.
Parecia que todo mundo estava querendo antecipar o final de semana. "É por isso que
ninguém trabalha direito nas sextas", pensei. E é verdade; onde quer que você vá
numa sexta, os funcionários estarão parecendo zumbis. Sempre achei que fosse um
tipo de apatia pré-caos, pros que iriam botar pra foder no final de semana. Agora eu
estava olhando por um novo ângulo. Quintas-feiras são o motivo das pessoas ficarem
abestalhadas nas sextas.
A banda acabava de passar o som quando entramos. Eu não sabia o quanto
mais seria capaz de beber, mas Rafael estava comigo. Eu não teria permissão para
parar tão cedo. Pedimos uma garrafa de conhaque. O motivo era simples: ninguém
falsifica conhaque – e era minha bebida favorita –. A gente já estava velho o
suficiente pra cair no truque mais antigo dos bares: vender whisky ou vodka
falsificados por uma fortuna. Então sempre pedíamos conhaque, gim ou rum. Eu
preferia conhaque. "É uma bebida subestimada", eu sempre dizia. Além disso, se
alguma garota perguntasse o que eu estava bebendo, eu podia dizer: "Estou bebendo
brandy, aceita?". Soa chique, mas é praticamente a mesma porcaria, basicamente, cá
em Pindorama. Sempre que aceitavam, diziam ser gostoso. Daí eu dizia que ia buscar
conhaque e perguntava se também queriam. Nunca aceitavam e faziam cara de nojo.
Eu sempre me divertia com isso.
Sentamos numa mesa longe da banda, pra poder conversar sem gritar muito.
Eu tinha notado, desde o lado de fora, uma garota. Ela estava usando uma camisa
flanelada e calças jeans. Foi com duas amigas, mas parecia completamente sozinha.

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Enquanto as amigas conversavam, ela fumava e ficava olhando pro nada. Não parecia
estar procurando alguém, senão nossos olhares teriam se cruzado, eventualmente. Ela
olhava pra longe, como se enxergasse através das paredes e visse algo que ninguém
mais via. Não a vi beber em hora nenhuma. Fumou uns três cigarros, apenas,
enquanto estávamos no lado de fora. Ela tinha o hábito de fumar demais ou algo a
incomodava.
Eu queria saber o que se passava naquela cabeça, o que aqueles olhos viam,
que cheiro, além de cigarros, tinha aquela camisa flanelada. O grupo dela com as
amigas estava de pé, próximo à minha mesa. Uma das amigas me notou olhando para
ela e sussurrou algo com a outra amiga. Tentei disfarçar, mas não ajudou muito. Eu
estava bêbado demais pra simular qualquer comportamento artificial. Rafael era
bonito e tinha uma cicatriz no olho esquerdo que o fazia parecer durão. Não que ele
não fosse, mas a cicatriz foi de uma queda quando criança. As meninas achavam
sexy. Eu achava engraçado. O grupo continuava a cochichar entre elas sobre a gente.
Eu não sou muito bonito, mas sou bom em ficar calado. Isso sempre me ajuda. As
mulheres sempre achavam que eu tenho algum segredo incrível, ou que eu sou super
inteligente... coisas do tipo. A verdade é que eu nunca fui de pensar rápido, então eu
geralmente não tenho nada pra falar e fico quieto. Funciona bem pra quase tudo
comigo.

– Miguel, eu acho que estou amando.


– Eu sei, cara. Você vai sair dessa. Bebe mais.
– Não, tô falando daquela menina ali. A de cabelo preto – e apontei
discretamente. Pelo menos eu achava que estava sendo discreto.
– A esquisita com cara de maluca?
– É... agora que você disse, acho que ela deve ser maluca mesmo.
– Não, Rico. Gente doida não pode sair de casa sem um responsável. Vê se
aquelas duas têm cara de ser responsáveis?
– Capaz da esquisita estar cuidando das duas.
– Pois é. Você tá a fim da esquisita?
– Mais ou menos. Tô intrigado, na verdade.
– Vamos lá falar com elas.
– Não, tá maluco? O que eu falo?
– Cresce, Rico. Não precisa falar nada de mais. Olha o estado delas – ele tinha
razão. Elas estavam péssimas, com exceção da de camisa flanelada. A gente também
estava péssimo. Nessas ocasiões a bebida faz tudo sozinha, a gente vira uma porção
de marionete nas mãos do álcool.
– Bora – virei o resto do copo, enchi de novo e levantei.

Fomos até elas e Rafael chegou puxando papo. Ele era bom nisso. Agora que
estava namorando então, o cara virou um deus. É incrível como a nossa intenção dita
a reação das garotas. Se fosse algum moleque disposto a qualquer coisa pra comer
uma das três, o papo não duraria dez segundos. Rafael já parecia ser o melhor amigo
das meninas. Até a minha musa tinha parado de viajar na própria cabeça e estava
conversando com a gente. Eu apenas respondia às perguntas. Quando levantei,
pareceu que o conhaque, as cervejas e a vodka vieram todos de uma vez e me
atingiram como um caminhão. Eu estava ali, de frente pra garota mais interessante do
pub, tentando com todas as minhas forças ficar de pé e entender a conversa. Uma
delas me perguntou:

– Tá bebendo o quê?
– Conhaque – respondi. Foi tudo o que consegui falar.

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– Uau, vocês tão pegando pesado, hein?
– Você nem imagina... Licença. Já volto.

Corri pro banheiro e, na entrada, caí. Dei com a cara na parede do lavabo. Uns
caras que saíam na hora vieram me acudir. Me ajudaram a levantar e perguntaram se
eu estava bem. "Tô bem. Só tropecei, mas valeu pela preocupação", disse eu. Eu não
estava bem. Entrei no banheiro e fiquei sentado num vaso enquanto suspirava várias
vezes tentando me colocar em ordem. Percebi que não ia ficar muito melhor. Levantei
e fui para a pia. Olhei no espelho e vi que eu tinha um corte imenso na testa, estava
sangrando um pouco. Abri a torneira e bebi um tanto de água, para ver se ajudava
com o porre, lavei a cara e peguei um papel toalha pra limpar a testa. Quando voltei,
Rafael tinha voltado pra mesa e levado as meninas. Sentei ao lado dele. A menina
com a camisa flanelada estava com um copo cheio de conhaque nas mãos. Ela se
inclinou até mim e perguntou baixo:

– O que foi isso na sua testa?


– Não sei. Quando cheguei ao banheiro e olhei no espelho, estava lá.
Sangrando à beça.
– Louise – disse ela estendendo a mão e rindo.
– Rico... Na verdade é Frederico, mas todo mundo me chama de Rico –
apertei a mão dela. Era macia, pequena e eu não queria soltar.

Rafael estava falando algo sobre a época dele em São Paulo, as meninas
estavam totalmente empolgadas com tudo o que ele falava. Eu estava bem tonto, as
coisas rodavam sem parar e minha boca se enchia de saliva, como se eu tivesse
jogado um punhado de sal na língua. Mas era vontade de vomitar, quase irresistível.
Esperei Louise me olhar para eu fazer um sinal pedindo a ela para que se inclinasse
de novo. Quando ela olhou, fiz o sinal. Ela se inclinou e virou o rosto para escutar:

– Olha, acho que não vamos ficar mais por muito tempo.
– Tudo bem, foi um prazer.
– Vamos marcar outro dia, me dá seu número.

Ela sentou de volta na cadeira e fez sinal de positivo com as mãos. Entreguei
meu celular pra ela e ela anotou o número. O celular dela estava em cima da mesa.
Ela me devolveu o meu, olhei o contato salvo e guardei o celular.

– Não vai me ligar agora pra ver se eu dei o número certo? – disse ela,
gritando, sem se inclinar.
– Se deu o número errado, o problema é seu. Devia ter falado que não queria
dar o número, se foi o caso.

As amigas dela me olharam como se eu tivesse dado um tapa na cara de


Louise no meio do pub. Eu fiquei olhando pra elas pensando em como faria pra
explicar que eu não estava sendo grosso, apesar de soar assim. Rafael percebeu o
clima e começou a rir. "Eles estão brincando entre eles, Rico tem um senso de humor
esquisito", disse ele. Parece que funcionou. Logo as meninas estavam rindo
novamente das histórias dele. Falei no ouvido de Rafael que eu estava prestes a
vomitar e que a gente precisava ir embora com urgência. Ele inventou qualquer coisa
para as meninas. Uma pediu o telefone dele, ele disse pra elas pegarem com Louise
depois, pois ela teria meu telefone. Fomos embora rapidamente. Ao pisar do lado de
fora do pub eu corri até uma lixeira próxima da entrada e me debrucei nela. Vomitei

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até perder as forças e fui ziguezagueando pro carro do Rafael. Entrei e reclinei o
banco.

– Fazia tempo que eu não te via desse jeito, Rico.


– Nem me fale, Gargamel.
– Os Smurfs? Você tá péssimo mesmo. Doeu a queda?
– Que queda?
– A do banheiro, gênio. Todo mundo viu. A gente decidiu não comentar pra
você não ficar sem graça.
– Puta que pariu.
– Mas a Louise te curtiu, as meninas falaram.
– Aquela desgraçada fez hora com minha cara. Perguntou onde eu tinha
machucado a testa e ficou rindo.
– Quem diria, achou a mulher perfeita pra você num pub.
– A queda não tinha doído. Tá doendo agora.

Chegamos em casa. Falei pro Rafael subir e dormir lá, ele tava morando meio
longe e estava bem bêbado. "Não, tá tudo bem. Rapidinho eu chego", disse ele. Não
insisti e agradeci por ter me dado cobertura. Entrei e subi praticamente engatinhando.
Não me lembro de mais nada daquele dia.

Dor de cabeça. A ponto de me acordar e me colocar quase maluco. Fiquei


rolando na cama um tempo, meu celular começou a vibrar debaixo do travesseiro. Era
Vanessa. Não atendi, estava com vários tipos de ressaca. Imaginei que o meu
isolamento não tenha sido o suficiente. Ou, talvez, tenha represado toda tendência
para fazer merda que eu tinha. Fiquei na cama por um bom tempo. Pensei em ligar
pra Louise. Porra nenhuma. Eu tava tão carente que até pra Vanessa eu ligaria, mas
ainda tinha bom senso. Liguei pra Julia. Eu andava devendo um momento com ela:

– Ju.
– Fala, Rico. Como foi ontem?
– Nada de mais. Vimos a banda tocar e fomos embora.
– Só isso? Nada sobre beber demais e cair?
– De onde você tá tirando isso? – eu realmente estava confuso, pois Rafael e
Julia não tinham contato.
– Uma amiga minha viu a cena e me contou. Você já não tem idade pra isso,
Rico.
– Eu escorreguei, só. Mas que amiga é essa?
– Deixa pra lá.
– Tá. Quer fazer alguma coisa?
– Que tipo de coisa?
– Sei lá. Chega aqui em casa. A gente assiste algo na TV e fica falando merda.

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– Vamos sim. Deixa só eu acabar de costurar umas coisas aqui – não era à toa
que eu dizia que ela era costureira.
– Tá. Beijo.
– Beijo.

Sentei no sofá com o notebook no colo e, ao olhar a tela, meu coração


esqueceu uma batida. Talvez duas. A Cla tinha respondido. Eu estava morrendo de
ressaca e deprimido – ressaca faz isso comigo –. Eu não sabia se leria ou não. Se
fosse algo ruim, do jeito que eu estava deprimido, seria capaz de me matar. Imagina
que cena ridícula eu me matando por conta de uma mensagem de uma ex. Porém, não
importa o quão negativo fosse o que estivesse escrito no e-mail, a pior mensagem não
seria essa. Era algo muito maior e mais grave. Palavras não são nada. Nós somos
capazes de escrever ou falar qualquer tipo de coisa. Esse é o problema da boca. Já os
olhos... eles não mentem. Você não consegue fazer sair algo dos seus olhos sem
sentir. Eles entregam a gente sempre. Eu sempre andei de óculos escuros por conta
disso. Não queria que as pessoas vissem minha alma. E os olhos da Cla, na última vez
que nos encontramos, me falaram muito mais do que eu gostaria de saber.
Se a resposta fosse algo bom, seria outro problema. Mais uma chance para eu
agir como o desastre que sou e magoar a única pessoa que bota a saúde do meu
coração em risco. Na verdade também tinha a chapeira da lanchonete perto da minha
casa. O hambúrguer dela era de outro mundo.
Decidi deixar pra depois. Eu realmente não tinha condições de lidar com nada
que viesse da Cla naquele momento. Eu sentia fome, decidi cozinhar algo. Fui à
cozinha e fiquei com preguiça de cozinhar. Patético. Fiz um sanduíche de atum com
umas coisas velhas que estavam na geladeira e fui comendo devagar. Em um dia
normal eu comeria em duas mordidas, mas ressaca é uma merda, né? Sentei no sofá e
olhava pela varanda enquanto mordia pedacinho por pedacinho daquele sanduíche
quase intragável. Estava ameaçando chover, o tempo ia esfriando mais, aos poucos.
Eu gostava desse tipo de tempo. Estava no final do lanche e o interfone tocou.
Normalmente eu não atenderia. Não tolero gente chegando em casa sem avisar, mas
eu estava esperando a Julia. Fui atender.

– Oi.
– Rico? Abre aí.
– Já vai.

Abri o portão e fui vestir uma camisa enquanto ela subia. Ouvi a porta bater
na sala e fui lá.

– Ei, Ju.
– Rico – disse ela sorrindo – trouxe um kit pra te ajudar.

No dito "kit" dela havia uma garrafa de dois litros de refrigerante e dois
salgados fritos da padaria que ficava próxima à casa dela. Ela sabia o quanto eu
gostava dessas porcarias. O refrigerante ajudou a empurrar o resto do sanduíche de
atum pra dentro e eu peguei um salgado. Eu sentia saudade da Julia. Não uma
saudade recente, era saudade do nosso tempo junto rindo e fazendo besteira. O tempo
foi ressecando as coisas. Tipo borrachinha de dinheiro, sabe? Quando passa muito
tempo, ela para de esticar o tanto que esticava. Até que fica tão desgastada que você
não pode forçar muito, pois ela vai arrebentar.

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– Como você anda, filé? – eu gostava de ser tosco com ela. Eu percebia que
isso a divertia.
– Tô bem, Rico. Andei meio down por conta desse lance de envelhecer. Trinta
é uma merda, ainda mais quando se é solteira.
– Sossega, Ju. Você ainda dá show e vai continuar assim por um bom tempo –
ela suspirou e sorriu sem mostrar os dentes. Daquele jeito que a gente faz quando
alguém tenta nos animar e tentamos fingir que funcionou.
– E você, seu adolescente? Não acha que passou da fase de beber até cair?
– Sério. Como você sabe dessa merda?
– Tirando o rombo na sua testa, uma amiga me contou.
– Sim, mas que amiga?
– Você conheceu ontem, a Bruna.
– Não conheci não.
– Você devia estar péssimo mesmo, ela se sentou com vocês. Ficou meio
gamada no Rafael, inclusive. Mas eu já disse que ele tem namorada.
– Parece que ninguém respeita essas coisas. Duvido que o fato dele ter
namorada a impeça de dar mole pra ele. Acho que sua amiga estava num grupo com
uma menina que me chamou a atenção.
– Quem?
– Ela se chama Louise. Até me passou o telefone. É meio esquisita.
– Do jeito que você gosta, né?
– Sabe como é. Normal não tem graça.

Busquei uma coberta, sentamos no sofá e procuramos um filme para assistir


mas só tinha porcaria. A ressaca ainda me detonava. Deitei no colo da Jú,
continuamos conversando e cochilei.

10

Acordei com o telefone tocando. Ignorei por acreditar ser a Vanessa de novo.
Eu não estava mais no colo da Julia. Levantei e fui procurar por ela. Ela tinha ido
embora. Fiquei chateado por desperdiçar um tempo com ela, porém foram bons
momentos. Fazia tempo que a gente não colocava a conversa em dia. Peguei o celular
para mandar uma mensagem me desculpando e falando o quanto gostei da companhia
dela. Vi que a chamada não atendida era de Louise. Fiquei animado. O celular tocou
de novo, peguei pra olhar: era ela. Eu ainda estava intrigado, resolvi atender:

– Ei.
– Frederico?
– Rico.
– Que voz horrível. Tá bem?
– Melhorando da ressaca.
– E o machucado misterioso na testa, melhorou? – disse ela rindo.
– Não tem graça.

- 18 -
– Olha, desculpa ligar assim, mas eu prometi o telefone do Rafael pra minha
amiga. Você pode me passar?
– Sério que você ligou pra isso?
– Me desculpa novamente. É que eu prometi. Além disso, ele disse pra pegar
com você.
– Olha, Rafael tem namorada. Esquece isso.
– Eu não sabia, achei que ele tivesse brincando ontem quando comentou isso.
– Não estava.
– Vai fazer o que hoje? – acho que ela ficou sem graça de ligar só pra saber o
telefone do Rafael e perguntou só por educação. Mas acontece que eu ainda estava
interessado, então decidi aproveitar.
– Estou pensando em tomar uma. Vamos?
– Eu fiquei de sair com as meninas, mas talvez eu possa desmarcar. Pretende
ir aonde?
– Escolhe aí. Tô com muita ressaca pra decidir.
– Tudo bem. Vou ver se vai chover ou não, decido e te aviso.
– Tá. Até.
– Beijo.

Eu estava com aquela dúvida, sobre ela estar interessada ou não, pairando em
minha cabeça. Deixei nas mãos dela por querer. Talvez facilitasse minha vida. Voltei
a dormir.
Acordei lá pras nove. Havia uma chamada não atendida de Louise e algumas
da Vanessa. Não dei a mínima pra nenhuma das duas. Não estava com saco, apesar de
estar recuperado da ressaca. Liguei pro Rafael, não tinha falado com ele desde que ele
me deixou em casa e foi embora bêbado e dirigindo pra casa dele:

– Ei, Rafael – eu não estava bem humorado. Não havia espaço pra piadas
idiotas com o nome dele.
– Ainda mal?
– Não muito. Tô ligando só pra ter notícias.
– Só você estava bêbado ontem, Rico. Sossega.
– É, parece que foi por aí mesmo a história de ontem.
– E a esquisita? Ligou pra ela?
– Não, ela ligou.
– Meu garoto!
– Mas ligou atrás do seu telefone. Aparentemente a amiga dela gostou de
você.
– E você deu?
– Não, disse que você namora.
– Fez bem.
– Vou tentar voltar pra cama, cara. Não estou legal.
– Tudo bem. Olha, a Letícia volta amanhã. Quer sair pra tirar essas merdas da
cabeça?
– Tenho tentado. Amanhã a gente vê isso.
– Falou.
– Até.

Desliguei o telefone e comecei a olhar para o notebook, que me encarava em


cima da mesa. Aos poucos percebi que todo esse sono era só uma forma de adiar a
resposta da Cla. Imaginei que eu conseguiria dormir mais. Tentei e consegui.

- 19 -
11

No sábado eu levantei cedo. Provavelmente por conta do tanto que dormi na


sexta. Mas me sentia ótimo. Dormir é um puta remédio pra tudo. Fui à cozinha, comi
algo e sentei no sofá. Fiquei pensando no que fazer durante o dia. Eu tinha muito
tempo à toa. Geralmente era bom, mas às vezes me fazia pensar demais. Eu tava
pensando em ouvir música, mas sempre fui indeciso em tudo na minha vida. Então
demorava um tempo pra decidir a melhor música pro momento. Testei algumas mas
nenhuma parecia se encaixar. Eu estava animado, mas ainda melancólico, acho que
sabia o que ouvir. Surfer Rosa, um álbum do Pixies. Eu gostava muito daquela
porcaria, apesar do vocal terrível. Coloquei Where Is My Mind? pra tocar primeiro e o
resto no aleatório. Música é foda, ela dita seu comportamento e humor de uma forma
impressionante. Sei que essa escolha não parece ter sido muito esperta, pois na
metade da música, eu estava com o computador no colo abrindo a resposta da Cla.
Hesitei um pouquinho e li:

"Ei, Rico,

Bebendo demais ainda, né? Eu ando bem. Sinto muito em saber que você não
está legal, mas é hora de seguir em frente. Você não é mais uma parte minha, é parte
do passado. Um passado ótimo, mas que é passado. Você é um cara incrível, pare de
perder seu tempo se prendendo ao que já passou.

Cla."

Nem um "Beijo"? Chorei um pouco, mas não pelo e-mail. Foi mais pela
situação. É duro andar na rua, ver um carrinho de comida que deixaria ela louca de
felicidade e não poder levá-la pra comer. Sair no cinema um filme que eu sabia que
ela esperava com extrema ansiedade e não ser a pessoa que iria com ela e assistiria a
ela assistindo ao filme. Pra que filme? O espetáculo eram os olhos dela brilhando e
ela sorrindo em cada cena que a agradasse. Ouvir uma música nova e pensar: "eu
preciso mostrar à Cla. Ela vai pirar com esse som", e simplesmente não poder. Eu
tinha tanta coisa pra oferecer, tanto mundo pra mostrar, e todo o amor que meu
coração era capaz de produzir pra entregar para ela, mas não havia mais "ela". Houve
um tempo que eu evitei todas essas coisas. Ignorava carrinhos de comida,
principalmente os de churros, que eram os favoritos dela. Não assistia nem a trailers
de filmes do gosto dela. As músicas ainda me fodiam, mas não havia escapatória. Eu
gostava demais de música. Talvez ela tivesse razão, era hora de andar com a vida.

- 20 -
12

Chorei mais um pouco, queria chorar tudo de uma vez pra passar aquilo. Esses
picos de saudade e tristeza eram uma merda. Mandei uma mensagem pro Rafael
perguntando sobre o que faríamos à noite. Eu não conhecia bem a Letícia, mas Rafael
tinha um bom gosto. Acho que ela se parecia um pouco comigo. Não falava muito,
via graça em coisas esquisitas, talvez por isso Rafael gostasse tanto dela; ele gostava
de mim, fazia sentido. Ela parecia bem inteligente. Talvez por conta daquele efeito
que acontece quando não se fala muito e as pessoas assumem que você é inteligente,
mas o pouco que conversei com ela me confirmou a impressão. Enquanto ele não
respondia, resolvi ligar pra Louise, chamou até cair. Ela deve ter saído com as amigas
na véspera e não devia ter acordado ainda. Fiquei deitado no sofá até o disco acabar,
hora de escolher outra coisa pra ouvir. Eu já não precisava tanto me animar, coloquei
qualquer coisa calma. Meu interfone tocou, eu não iria atender. O problema é que,
como eu morava no primeiro andar e estava ouvindo rock numa altura razoável – pra
tentar abafar meus pensamentos sobre o e-mail –, dava pra ouvir lá embaixo. Quem
quer que fosse, sabia que eu estava em casa. A não ser que fosse algum pedinte ou sei
lá.
O interfone voltou a tocar, eu não tinha como ignorar. Levantei e fui atender.

– Alô.
– Ei, sou eu.
– Eu quem?
– Vanessa, Rico. Abre aí.
– Você não devia estar aqui.
– Abre logo.

Abri e desliguei a música. Não queria correr o risco dessas coisas mexendo
com minha cabeça. Ela entrou pela porta, estava linda. Carregava a bolsa no ombro,
não queria fazer xixi. Novamente ri dos meus pensamentos e a tonta achou que fosse
felicidade em vê-la.

– Você tá sem celular?


– Não, por quê?
– Te liguei várias vezes e você não atendeu.
– Tenho dormido demais, me desculpa.
– Olha, sinto muito pelo o que aconteceu. Eu devia ter te contado sobre o meu
noivado.
– Devia mesmo.
– Acontece que eu terminei. Como eu disse: eu não queria ficar com ele.
– Você é louca. E o que você tá fazendo aqui?
– Tenho te ligado pra a gente fazer algo mas você não atende, resolvi vir aqui
ver como você está.
– Estou várias coisas, mas não estou a fim de sair com você, me desculpe.
– Você tá chateado comigo?
– Claro. Você põe um chifre no cara comigo sem eu saber e agora vem dizer
que terminou com ele?

- 21 -
– Eu gosto de você, Rico. Tudo o que fiz, foi por isso. Tá certo que não fiz da
melhor maneira, mas eu gosto de você.

A Vanessa era legal, companhia muito agradável, gostosa, bonita, uma boa
foda – principalmente bêbada – e me queria. Acontece que eu não tinha capacidade de
confiar em alguém que traiu o ex. Mesmo que ela tenha terminado com ele logo
depois e existia toda aquela promessa implícita batida de "foi com você porque você é
demais, jamais faria isso com você". Além disso, eu não tive aquela queda que eu
devia ter por ela quando a conheci. Desde antes de saber que ela tinha noivo, eu já
não achava que teria chance de me apaixonar. Simplesmente não bateu.
Por outro lado; agora, com ela solteira, não teria problema em ficar com ela,
eventualmente. Seria um bom remédio pra Cla, mas eu nunca fui do tipo de ficar com
uma mulher que estivesse envolvida e eu não. Na verdade não gostava de ficar com
nenhum tipo de mulher que eu não tivesse um pingo de envolvimento. Meio incomum
entre meus amigos, já que todos os homens parecem cachorros que não dispensam um
cruzo por nada. Eu tava em dúvida, pois eu realmente precisava de um remédio pra
curar a Cla e, como dizem, nada como outra mulher pra te fazer esquecer uma.

– Quer água? Já almoçou?


– Ainda não, ia te chamar pra almoçar. E aceito a água. O que aconteceu com
sua testa?
– Eu tava bêbado, bati a cabeça.
– Meu deus, a bebida não parece não ser um problema, como você disse.
– As coisas estão se acertando, sossega.

Fui à cozinha, peguei água pra ela e abri a geladeira pra ver se dava pra
cozinhar algo decente.

– Toma sua água. Eu vou cozinhar agora, quer almoçar aqui?


– Até animo, mas não acredito que você saiba cozinhar.
– Eu moro sozinho, porra. Acha que eu como comida congelada todo dia?
– Talvez. Macarrão instantâneo também deve fazer parte do seu cardápio –
disse ela tentando segurar o riso – deixa que eu cozinho... pra me redimir.

Esse lance de segurar o homem pelo estômago funciona mesmo. Mas,


geralmente, rola quando a mulher não trai o noivo com o cara. Deixei-a cozinhar: tava
curioso sobre a comida dela e imaginava que não daria pra enfeitiçar comida. Fui pra
sala, pois se ficasse na cozinha ia ficar tentado a agarrá-la. Mulher cozinhando me
dava um puta tesão. Acho que é porque ela está prestes a te alimentar e está de costas
pra você o tempo todo virada pro fogão; e tem algo sobre o domínio do fogo também
que eu não entendo muito bem como funciona mas me afetava. Tem algo mais
chamativo que isso? Sentei na sala e comecei a pensar em música. Abri a janela e
começava a chover fininho. O tempo estava uma delícia. Coloquei qualquer banda
aleatória de rock inglês contemporâneo, pois, pra mim, funcionava como música de
elevador. Era algo genérico que me agradava. Além de não ter um teor que me
induzisse à putaria. Eu não queria ser influenciado.

– Quer ajuda aí? – gritei da sala.


– Não, obrigada. Mas você podia ficar aqui.

Era justo. A mulher estava cozinhando na minha casa e não dava pra eu ficar
no sofá esperando ficar pronto. Levantei do sofá e fui, receoso, pra cozinha. O cheiro

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tava muito bom. Ela fazia algum tipo de molho maluco e cozinhando macarrão.
Fiquei olhando pra ela, que estava de costas cortando algo. A tragédia estava
anunciada. Eu parecia um peixe retardado prestes a morder uma minhoca no anzol.
Minhoca não nada, elas vivem na terra. A porra do peixe vai lá e vê uma minhoca
nadando abraçada com um pedaço de metal e come achando que vai se dar bem.
Burro pra caralho. Prazer, peixe.
Eu já era, nessa hora. "Vê se tá bom de sal", disse ela soprando o molho numa
colher para esfriar. Levantei, estendi a mão para pegar a colher e ela afastou a colher
de mim. "Abre a boca", sussurrou. Abri a boca e aproveitei pra fechar os olhos. Essa
brincadeira de “abre a boca e fecha os olhos” tava enraizada na minha cabeça de uma
forma que até quando médico queria olhar minha garganta eu fechava os olhos. Ou
então eu tava abrindo uma brecha por querer pra ela. Vai entender... Ouvi a colher
batendo na pia e senti Vanessa me puxando pela calça com uma mão e a outra
enfiando as unhas no meu pescoço. Assim que ela me beijou, agarrei a cintura dela
com mais força do que precisava e coloquei-a sentada em cima da pia. Por sorte não
joguei ela em cima da colher. As coisas escalaram de uma forma absurda.
Aparentemente havia muita coisa represada entre a gente. Acabou que nos
esquecemos da comida e o molho queimou. Decidimos comer mesmo assim, já
estávamos com fome antes de nos embolarmos. Depois, então, comeríamos qualquer
porcaria. O molho estava terrível, tinha gosto de carvão. Enquanto comíamos, ela
parecia feliz. Puxava um assunto atrás do outro. Eu estava bem calado, não estava
feliz com o que tinha acabado de acontecer. Ainda estava processando os fatos na
minha cabeça.
Lavei a louça enquanto ela falava sem parar sentada na cozinha e depois
fomos pro quarto. Ela era bem carinhosa e tentava agradar o tempo todo. Depois que
deitamos, ela subiu em cima de mim e tentou outra. Eu disse que estava muito
cansado e que precisava cochilar. Ela não conseguia esconder a frustração, mas
tentava bastante. Deitei de barriga pra baixo e coloquei um braço sobre ela. Ela
acariciava meu cabelo sem parar e ficava me olhando, aquilo me incomodava. O sono
veio forte com o carinho, a barriga cheia e o fato de haver poucos minutos desde que
fizemos sexo na cozinha. Apaguei. Ainda bem.
Não demorou muito para que eu acordasse. Ela não tinha parado de mexer no
meu cabelo e olhar pra mim. Fiquei com medo de saber por quanto tempo dormi. Se
tivesse passado mais de meia hora, seria assustador que ela ainda estivesse fazendo
aquilo.

13

Peguei o meu celular e tentei não ver as horas. Havia algumas mensagens do
Rafael. A ideia era ir pra casa dele beber e, depois, ir pra algum lugar com ele e
Letícia. Hora de expulsar Vanessa, finalmente.

– Olha, eu marquei de sair com Rafael hoje. Vou me arrumar.


– Aonde vocês vão?
– Não sei ainda. Vou pra casa dele e, de lá, a gente vai decidir o destino.
– Quer companhia?

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– Não vai rolar, eu preciso de um tempo com ele. Desculpa.
– Tudo bem, onde ele mora? Quer carona?
– Perto da rodoviária. Ainda não sei onde você mora, é caminho?
– É sim. Te deixo lá.
– Vou me arrumar.

Não anunciei que iria tomar banho pra ela não tentar entrar comigo. Queria
passar menos tempo possível com ela. Ela estava se entregando demais, eu não tinha
como corresponder a isso. Liguei o chuveiro quente. Eu me arrepiava com o vento
frio que entrava pela janela basculante do banheiro, daí entrava debaixo da água
quente. Que terapia sensacional. Durante o banho, minha cabeça pensava em duas
coisas: No ex-noivo da Vanessa tomando no cu de graça, já que ela o largou por mim
sem eu querer. E na Vanessa, que largou o noivo por um cara que só faz merda e não
tem um pingo de vontade de ficar com ela. Eu era o pivô de duas tragédias amorosas
ao mesmo tempo. Isso sem contar a minha própria. Que merda.
Saí do banho já de calça, Vanessa segurava um porta-retratos com uma foto
minha com a Cla. Essa foto estava virada pra parede havia semanas, não sei como foi
parar na mão dela. Mulher é pior que cão farejador, pra essas coisas.

– Então essa é a cara da responsável por você estar com defeito?


– Não foi culpa dela.
– O que você fez?
– Talvez tenha sido "o que eu não fiz". Guarda essa foto, vamos andando.

Calcei um par de tênis velhos e coloquei a camisa no ombro enquanto saía do


quarto. Na sala eu vesti a camisa e ofereci a ela mais um copo de água, ela estava
mais calada; recusou. Abri a porta e dei passagem para ela, tranquei a porta e
descemos a escada em silêncio. Nas cabeças dos dois passavam tantos assuntos,
frases em potencial, que não dava tempo de chegarem às bocas e serem verbalizados.
O silêncio reinou até o carro.
Eu fiquei surpreso. Ela tinha um Kadett preto a álcool. Motor 1.8. Acho que
era de 97, um amigo meu tinha um parecido, mas prata. Como caralhos uma mulher
com cara de boba, como a Vanessa, tinha um carro tão improvável como esse?

– Carro legal.
– É um Kadett, gostou?
– Bastante, mas e aquele outro carro?
– Era do meu ex – ela só podia estar de sacanagem comigo.
– Você é doente... tem ele há muito tempo?
– Mais ou menos. Era do meu pai e ia ficar pro meu irmão. Depois que meu
pai faleceu, ele não quis. Disse que prefere carro novo por conta de manutenção e
essas frescuras. Eu aproveitei e peguei. Eu adoro esse carro, anda igual o capeta.

Que mulher estranha. Eu desprezo, eu me interesso... Ela me deixa esquisito.


Entramos no carro, o cheiro daquele estofado era muito bom. Ela cuidava bem do
carro. Continuamos sem trocar muita conversa enquanto ela dirigia pros lados da
rodoviária. Ela parecia divagar o tempo todo. Não sei se a foto mexeu com ela. Não
devia ter mexido, não era nenhuma novidade o fato de eu estar preso à Cla. Decidi
não tentar descobrir o que se passava naquela cabeça por um tempo. Chegando perto
da rodoviária, comecei a dar as direções para a casa de Rafael. Chegamos e eu
agradeci. "Dou um beijo? Não? Acabei de comer a menina e não dou um beijo? Ela
não é puta, Rico!". Levantei e dei tchau pela janela do Kadett. Ela esperou Rafael me

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atender e abrir a casa antes de ir embora. Consegui ficar pior do que eu já estava, com
esse lance de não me despedir apropriadamente. Melhor parar de pensar nisso.

14

Rafael e Letícia já estavam bebendo havia um tempo. Letícia me serviu a


bebida que estavam tomando. Parecia caipirinha, mas o limão era daqueles chiques, e
sentei na sala com os dois. Eles estavam felizes, se completavam. Eu fiquei um tempo
apenas observando como era a face da felicidade. Era o máximo. Eu conseguia me
lembrar de estar na mesma situação com a Cla aproximadamente um ano antes. Eles
tinham várias piadas internas e conseguiam se comunicar apenas com olhares.
Assistir àquilo era como ouvir uma música boa. Dava vontade de repetir a cena várias
vezes.

– Qual foi, Rico? Tá todo esquisito – disse Rafael.


– Não estou não. Só preciso beber mais pra acompanhar vocês – e dei aquele
mesmo sorriso que a Ju me deu quando tentei animá-la.
– Então bebe.
– Quer algo mais forte? – disse Letícia com cara de quem queria me ver cair
de testa na parede mais tarde.
– Quero sim, que se foda.

Rafael estranhou. Na verdade ele estranhou desde que cheguei. Amigo é uma
merda, não se pode ficar miserável em paz perto desses putos.

– Pra onde a gente vai hoje, Rico? – perguntou Rafael. Eu já estava bebendo
havia um tempinho e não estava pensando com muita cautela.
– Pera aí.

Peguei o celular do bolso e liguei pra Louise.

– Oi.
– Ei.
– Como tá, Rico?
– Tô bem, e você?
– Ótima. O que você manda?
– Não mando não, costumo obedecer. Mas estou te ligando pra saber se anima
sair com a gente hoje.
– A gente quem?
– Eu, Rafael e a namorada dele.
– Pra onde vocês vão?
– Qualquer lugar. Tá todo mundo bem animado – eu não estava, mas iria me
adaptar.
– Tô indo com as meninas ao pub de quinta.
– Tem o que lá hoje?

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– Música eletrônica.
– Eletrônica como?
– Techno.
– Fechado – eu gostava bastante de música eletrônica old school. Sempre me
imaginava surtando num galpão em Berlim com um monte de loucos. O astral era
legal. Rafael e Letícia, então... era até perigoso o tanto que gostavam e aprontavam.
– A gente se vê lá então. Beijo.
– Beijo.

Quando desliguei, Rafael e Letícia olhavam pra mim rindo. Até quando o
assunto é zoar os outros, casais fazem bem, quando funcionam. Babacas.

– Crianças, a gente vai pra uma festa eletrônica no pub inglês.


– Mas eletrônica como? – perguntou Rafael ameaçando dar chilique.
– Old school. Techno e os caralho.
– Puta merda, saudade de uma festa dessas.

Letícia ficou mega animada e entrou pro quarto. Eu e Rafael continuamos


bebendo e eu contava pra ele das últimas sobre Vanessa. "Porra, um Kadett preto? Ela
é assaltante de banco? Que mulher estranha!", disse ele. Eu também ainda estava
intrigado com o gosto dela pra carros. Era sensacional. Parece aquelas meninas que
sabem arrotar alto. Dá vontade de casar. Mas eu não queria ser corno e nem gostava
dela, então nada feito. Letícia voltou do quarto com dois saquinhos na mão. Eu já
sabia o que era e não gostei da ideia. Eu soube por Rafael que ela era meio viciada em
pó, mas estava parando por causa dele. Ele acompanhava, eventualmente, pra ajudá-la
fazendo os dois pararem juntos. Eu sei que ele não gostava e que conseguiria fazê-la
parar mas, ainda assim, não era legal. Na outra sacolinha havia uns comprimidos.

– Que porra é essa, Letícia? – disse eu num tom curioso.


– Pó, ué. 99%.
– Eu sei, digo na outra sacolinha.
– A gente vai ouvir techno, né? Ecstasy. Anima?

Eu já tava bêbado, minha experiência anterior com essas merdas eram


melhores que minhas experiências com álcool.

– Me dá uma dessa aí.

Ela jogou um pra mim. Era um comprimido marrom, feião. Eu disse à Louise
que estava animado, o remédio estava ali na minha mão. Chegaria ao pub animado,
com certeza. "Vamos indo?", disse eu chamando os dois. Eles concordaram e
acabavam de se arrumar. Letícia foi terminar de se maquiar.

– Vocês têm que parar com essa porra, Lua de mel.


– É, também acho. Mas ela tá indo bem. Não usa mais durante a semana, não
vou tirar de vez isso dela, é pesado.
– Tomara que o progresso continue, ela é legal. E você não cai na besteira de
entrar nessa.
– Você me conhece, Rico. Sossega – eu sosseguei, ele realmente não era de
fazer besteira desse tipo.

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"Bora, caralho!", Letícia gritou chegando na sala e dançando esquisito. A cena
era um pouco engraçada e um pouco triste. O nariz dela estava meio sujo de pó.
Rafael levantou e limpou pra ela, com carinho. Aproveitei a caipirinha fresca que
estava na minha mão e usei pra descer o comprimido. Entramos no carro de Rafael e
fomos pro pub. No carro já tocava uma espécie de trance, mas com um BPM
altíssimo. Coisa de Letícia. Ela falava sem parar e parecia a pessoa mais feliz do
mundo. Eu podia ficar triste por saber que ela estava feliz por conta do pó ou poderia
acompanhar a alegria dela e me divertir com eles. Resolvi não ficar triste. Era uma
noite pra curtir.

15

Demoramos um pouco para chegar ao pub. Rafael dirigia devagar quando


bebia. Nesse meio tempo Letícia já tinha cheirado outra carreira e o comprimido que
tomei tinha começado a fazer efeito. A música, que antes incomodava um pouco, já
me empolgava bastante. Eu e Letícia conversávamos alto e eufóricos sobre um monte
de maluquice. Contei a história da Cla pra ela durante o caminho e nem fiquei triste.
Química é foda.

– Mas Rico, você sempre diz que a culpa foi sua. Agora contando a história eu
não entendi o que você fez.
– É, eu não fiz. A gente era perfeito. De repente não era mais. Eu falhei em
manter isso e ela me deixou, não sei muito bem o que foi, mas eu podia ter salvado a
relação – eu já estava bem louco, não conseguia me concentrar nos assuntos, então as
coisas saíam meio sem sentido.
– Rico, acho que você tá olhando da forma errada.

Rafael percebeu que aquilo iria mexer comigo e interferiu:

– Tamo chegando, galera. Me dá uma bala, amor.


– Não quer pó?
– Hoje não, você podia deixar no carro e usar bala com a gente.

Como ela tinha acabado de cheirar, aceitou bem a ideia e guardou o saquinho.
Pegou dois comprimidos de ecstasy, deu um pra Rafael e engoliu o outro. "Que trem
amargo, vai tomar no cu!", disse ela. Eu comecei a rir da cara que eles faziam
tomando aquilo sem água. O gosto era terrível mesmo. Chegamos ao pub. Ao descer
do carro, com o tempo ainda frio, respirei fundo. O ar gelado parecia que preenchia
meu corpo inteiro e era refrescante. Eu já estava ótimo. Olhei em volta procurando
por Louise, mas não a via.

– Miguel, me ajuda a achar a esquisita de quinta.


– Já tô procurando, Rico, ela deve estar lá dentro.

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Festas de música eletrônica tinham um problema muito sério: o público. Boa
parte era composta por adolescentes com a maioridade recentemente atingida, que
iam só pra usar droga. Era o ambiente perfeito. Fácil de achar qualquer coisa,
ninguém te julgava e a música cooperava. Era tipo uma celebração da juventude e a
liberdade trazida por ela, ironicamente. Essa galera me fazia pensar em como seria se
fossem meus filhos. Não era legal ver o estado deplorável que eles atingiam. Outra
parte do público era um monte de junkie. Eles eram os piores. Sempre exageravam
em tudo e ficavam agressivos ou babacas. Outra pequena parte simplesmente queria
sair com os amigos e se divertir ouvindo música boa. Eventualmente usavam algo
mas dificilmente dava pra adivinhar olhando pra eles, já que a maioria sabia bem o
que estava fazendo. Eu sempre me perguntei se eu fazia parte de algum dos dois
grupos que eu desprezava. Preferia acreditar que não.
Decidimos entrar, eu e Letícia estávamos bem loucos. Tudo o que a gente
queria era uma pista de dança. Rafael tinha acabado de tomar o comprimido dele,
então ainda teria um tempo “sóbrio” tolerando a gente. Ao entrarmos, havia luz
estroboscópica, skylaser e fumaça. A música estava ótima, a pista estava animada.
Não havia muito da galera que me incomodava. Letícia me puxou pro meio da pista e
começamos a dançar. Todo mundo dançava engraçado. Rafael foi buscar algo pra
beber e eu pedi que ele desse uma olhada à procura de Louise. Nessas horas o tempo
passa de uma forma muito esquisita. Você pode jurar que está dançando há meia hora,
mas ainda é a mesma música. É bom, pois quanto mais tempo, melhor. Um cara
cutucou meu ombro:

– Ei, ela tá com você?


– Oi? – tapei um ouvido pra ouvir melhor, a música estava muito alta.
– Essa menina que você tá dançando, ela tá com você?
– É namorada de um amigo, cara.
– Ah, demorou.

Apesar disso, ele veio pra perto da gente e ficou dançando como se
estivéssemos em três. Tava me incomodando pra caralho. Chamei Letícia pra
procurar Rafael. Ela disse que esperaria lá na pista. "Não, vem comigo. Depois te
explico", falei e peguei a mão dela. Ela me acompanhou. Encontramos Rafael
conversando com as meninas. A Bruna obviamente estava dando em cima dele, mas
ele não correspondia, parecia estar tentando sair de lá.

– Quem é essa vagabunda? – Letícia gritou no meu ouvido. Eu comecei a rir.


– É uma amiga da menina que eu estou a fim. Fica tranquila que não tem
perigo nenhum.
– Não tem mesmo, eu mato ela.
– Eu ia gostar de ver isso. Vem cá que eu vou te apresentar à minha musa.

Cheguei no grupo das meninas. Eu estava um pouco suado e elas estavam


todas arrumadinhas. Fiquei um pouco sem graça, mas Louise veio e me deu um
abraço forte, inesperado. Ela estava com um chiclete na boca e com os olhos meio
arregalados. Diagnóstico: ecstasy. Me senti menos mal e com um pouco de tesão
depois disso. Apresentei Letícia às meninas. Houve um momento constrangedor na
hora de apresentar a terceira, pois eu a havia conhecido na quinta e não sabia o nome
dela. Acho que Louise percebeu e apresentou por mim, mas não entendi o nome –
creio que estava enfeitiçado por ela enquanto era atingida por skylasers e linda como
estava –. Será que a gente estava tendo um momento de casal em que um entende o
outro sem precisar falar nada, como Rafael e Letícia? Fiquei pensando nisso e

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pensando em agarrar Louise o quanto antes. Ela tava atraente de uma forma surreal,
pra mim. Ainda esquisita, mas nos olhos dela dava pra ver que seria capaz de quebrar
uma cama comigo.
Sussurrei ao ouvido dela chamando-a pra ir à pista de dança comigo. Ela fez
que sim com a cabeça e fomos. Ela segurou na minha mão pra a gente não se perder.
A mão dela estava suada. Acho que a minha também, mas a dela dava pra reparar
mais por estar fria. Chegamos na pista e começamos a dançar. Ela não dançava
engraçado, ela dançava de uma forma provocante. Eu tentava ignorar e não atrapalhar
a dança dela, mas estava bem difícil. Eu sorria ao olhar pra ela. Ela não sorria em um
momento sequer. Aquilo tava me oprimindo, decidi me render à minha vontade e
coloquei uma mão na cintura dela. Ela continuou dançando, mas começou a olhar pra
minha mão. Fiquei confuso e com medo de ter feito merda. Ela colocou a mão dela
sobre a minha, apertou e desceu até o quadril dela. De imediato levei a outra mão ao
quadril. Louise voltou a olhar nos meus olhos, séria e, dançando, levantou as mãos e
começou a descê-las até meus ombros. Continuamos dançando por mais uns
segundos, eu fechei as mãos nas costas dela e puxei o corpo dela contra o meu. Ela
tirou as mãos do meu ombro e me afastou devagar. Fiquei bem puto. Não gostava de
ser provocado de graça, mas não demonstrei. Ela virou de costas e encostou em mim,
ainda dançando. Decidi tentar algo mais ousado. Passei uma mão pela parte da frente
da cintura, apertei sua outra mão e mordi o pescoço dela. Ela se contorceu toda.
Parecia que eu tinha encostado fio desencapado nela. De repente ela se transtornou,
virou e me agarrou com força. Ela era magra, eu não imaginava que fosse tão forte.
Nosso amasso não tinha como continuar ali, daquele jeito; logo um segurança viria
chamar atenção. Aproveitei mais um pouco, ela mordia minha boca a ponto de
machucar. Eu gritei "Ai!" em uma dessas, mas não adiantou muito, ela estava fora de
si. A gente só precisava de privacidade, pois o resto todo já estava acontecendo ali
mesmo. Eu agarrei Louise pelo cabelo, afastei um pouco e falei:

– A gente tem que sair daqui.


– Por quê?
– Comportamento potencialmente inapropriado – disse eu morrendo de rir. Ela
também riu, mas parecia não entender bem o que estava acontecendo.

Eu precisava que ela melhorasse um pouco pra ter certeza que ela queria ficar
comigo. Tomei-a pelo braço e fomos atrás do pessoal. Encontramos com eles na pista,
um pouco mais afastados do palco. Tava todo mundo bem animado, nem perceberam
a gente chegando. Tentei descobrir qual amiga da Louise estava melhor, pra eu poder
pedir que cuidasse dela enquanto eu buscava umas garrafas de água. As duas estavam
iguais, mas eu só sabia o nome da Bruna. Pedi a ela pra que fizesse companhia a
Louise por uns minutos e fui comprar água. Rafael e Letícia também se comportavam
inapropriadamente. Mas eram um casal, né? Ninguém se arrependeria de nada no
outro dia.
Comprei três garrafas de água e voltei pra perto do pessoal. Todos pareciam se
divertir. Dei uma água pra Louise, uma pra Bruna e outra pra Letícia. Havia um cara
dançando meio colado nela e eu acho que era o cara que me perguntou se ela estava
comigo mais cedo. Rafael estava dançando e não percebia bem o que acontecia. Eu
comecei a prestar atenção no comportamento dele. Me incomodava desde cedo. Se
ele quisesse se aproximar de alguma das meninas, que elas decidissem; mas eu disse a
ele que Letícia namorava meu amigo. O cara estava bem louco, certamente tinha
exagerado em algo. Louise veio me agarrando e se apoiando em mim. Ela ainda não
tinha melhorado. O estrobo atingia a gente sem parar. Mesmo alguém de cara limpa
ficaria perdido naquela situação. Abracei Louise e disse no ouvido dela: "Fica com a

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Bruna mais um pouco e bebe sua água. Vê se ela tá bem". Ela fez sinal de positivo e
os olhos dela não pareciam conseguir focar em nada. Voltei a observar o cara, ele
estava chegando na Letícia já com a mão na cintura dela. Percebi ela empurrar a mão
dele e ele pôr de volta. Fui em direção a ele, coloquei a minha cabeça ao lado da dele,
na altura do ouvido e disse: "Já deu, cara. Sai daqui". Ele me olhou com uma cara de
louco que eu não via ninguém usar havia tempo e me empurrou. Caí no chão sentado
e, na hora, Rafael percebeu. Ele nem sabia o motivo, em segundos ele já tava
machucando a mão de tanto dar no cara. Levantei e fui tentar segurar Rafael antes que
desse merda e dois caras, que aparentavam ser amigos do que apanhava, chegaram.
Um deu um bico na costela de Rafael, que estava em cima do amigo deles e o outro
estava ao lado. Rafael iria matar os três, sem dificuldade nenhuma. Como eu disse,
ele era louco. Isso é pior que ser forte, grande ou saber brigar. Eu sou contra violência
gratuita, mas não é todo dia que se tem a oportunidade de sentar a mão num babaca.
Eu faria todo dia, se pudesse. As pessoas merecem apanhar. Quase todas, inclusive
eu. Fui na direção do que chutou Rafael e dei um murro que achava que não era
capaz, de tão forte. Acontece que eu imaginava que o cara ia cair igual na TV. A
porrada foi servida mas ele bambeou e olhou pra mim puto da vida. O estrobo me
deixava tonto, não percebi nada até sentir a mão do cara igual um taco de beisebol na
minha cara. Meu nariz foi pro caralho. Não sabia que dava pra sangrar tanto. Rafael já
tinha levantado e catou o sujeito que me bateu pela gola da camisa. Não sei se eu tava
muito louco ou se aconteceu mesmo, mas eu vi Rafael levantando o cara e jogando na
parede como se não fosse nada. As meninas estavam todas espremidas, com todo o
resto do pub. Eu corri pra cima de Rafael, segurando meu nariz, agarrei ele pelo
pescoço e gritei no ouvido dele:

– Vamo meter o pé daqui! Vai dar a maior merda.

Ele concordou e apareceu um segurança. Mais magro que eu, coitado. Eu fui
até ele e falei: "Esses caras me bateram e meu amigo me defendeu, não fizemos
nada". O segurança começou a falar algo no rádio e eu olhei pras meninas tentando
gesticular para que saíssem do pub. Rafael já tinha entendido o recado e saiu puxando
todo mundo. O segurança percebeu Rafael saindo e tentou ir atrás dele. Aproveitei pra
dar um chute servido no cara que me deu um soco. Cuspi na cara dele e saí correndo
em direção à saída. Encontrei o segurança na entrada e disse a ele que um dos caras
estava tendo uma convulsão. Ele ficou apavorado e foi correndo pra dentro. Eu saí
meio escondido e encontrei o pessoal do lado de fora. Parece que todo mundo ficou
sóbrio de repente. Louise correu pra cima de mim preocupada. Do nariz pra baixo eu
era só sangue.

– Meu deus, você tá bem?


– Tô, acho que meu nariz quebrou.
– Eu tenho certeza. Ele tá com um formato que não deveria estar – e começou
a rir
– Gente, vamo logo pra não correr o risco de dar merda.

Fomos andando pro carro de Rafael. Uma das amigas de Louise também
estava de carro. Eu a beijei e sussurrei ao ouvido dela pra que fosse com a gente.

– Mas e a Bruna? Você disse que era pra eu cuidar dela.


– Ela já tá bem. Cuida de mim agora – e fiz cara de coitado.

- 30 -
Coloquei a mão na cintura dela e agarrei com as unhas, olhando nos olhos
dela: "Vamos?". Ela foi até as amigas, trocou umas palavras e voltou. "Bora. Vou
cuidar de você", e me deu um beijo na bochecha.
Entramos no carro de Rafael, ele e Letícia tinham colocado música no
máximo. Estavam bem loucos ainda. Louise pareceu gostar, dançava com as mãos.

– O que aconteceu lá dentro, Rico? – Rafael ainda não sabia o porquê dele ter
espancado dois caras.
– Aquele cara que me empurrou tava tentando agarrar Letícia.
– Por que você não me falou, amor?
– Eu não tinha percebido. Na hora que percebi, afastei o cara e o Rico foi pra
cima dele – disse Letícia ainda tentando se lembrar de como as coisas tinham
acontecido.
– Valeu, Rico. Pagou com o nariz mas fez certo.
– Acho que ficou mais caro se juntar o preju dos dois – disse eu e rimos.

Rafael perguntou se eu queria ir pro hospital. "Só se tiverem quebrado sua


costela, Biel". Ele disse estar bem. Louise me enchia de beijos e carinho debruçada
em mim. Não dançava mais, claramente ela estava ficando sóbria.

16

– O que eu faço com meu nariz, velho? Ainda tá sangrando pra burro.
– Eu sei dar jeito nisso, Rico. Vai doer um pouco, mas é tranquilo – respondeu
Rafael.
– Vai aí? – disse Letícia apontando pra uma carreira numa capa de CD no colo
dela.

Louise nem respondeu, eu apontei pro meu nariz sangrando e Rafael disse que
não. Ele dirigia um pouco mais rápido e parecia ter se divertido bastante naquela
noite. Chegamos em casa. "Chega aqui, Rico", disse Rafael olhando pro meu nariz e
rindo. Eu só queria que aquilo fosse ajeitado. Fiquei com medo dele não saber o que
estava fazendo, mas o nariz dele não era torto e com certeza ele já tinha quebrado
algumas vezes. "Não tá tão fora do lugar", disse ele. Colocou os dois polegares: um
em cada lado do meu nariz, e começou a empurrar pro lugar. Não doía tanto quanto
eu imaginei, mas eu não parava de lacrimejar e o sangue não parava de escorrer.

– Pronto, coloca gelo agora – disse Rafael.


– Tá normal, já? – perguntei, cético.
– Meio inchado, mas vai ficar normal.
– Valeu, velho.

Rafael me deu um beijo no rosto – óbvio que ainda tava chapado, apesar da
gente fazer isso quando ficava muito tempo sem se ver– e foi em direção ao carro.

- 31 -
Letícia gritava da janela: "Comportem-se!", como se nós que estivéssemos
aprontando. Eles partiram cantando pneu e eu subi com Louise, ela já parecia bem
melhor, mas ainda estava meio tarada.

– Vamos ouvir algo, Rico. Posso escolher?


– Pode, os discos estão ali – disse eu, apontando pro armário onde guardava
alguns discos. Imaginei que ela fosse pegar algo muito agitado e eu não queria. De
repente começou a tocar a última coisa que eu queria ouvir. Louise escolheu o disco
favorito da Cla e pôs pra tocar. Songs for Polarbears, do Snow Patrol. Eu não gostava
do disco, mas sempre ouvia com a Cla.
– Por que você escolheu esse disco?
– Gostei da capa, é fofa. Mas o som é bem legal agora que tô ouvindo. Você
tem um gosto ótimo.

Eu comecei a chorar, mas como eu já estava lacrimejando por conta do nariz,


ela não reparou. Eu queria que ela fosse embora, queria quebrar aquele CD, eu queria
ficar sozinho. Eu fui ao banheiro e tomei um banho. Era meu tempo sozinho. Tentei
parar de chorar um pouco enquanto limpava o sangue. Quando me senti melhor, saí.
Ao chegar no quarto, Louise estava deitada:

– Por que você demorou? Tô esperando pra cuidar de você. Quase dormi aqui
– eu preferia que ela tivesse dormido.
– Tava limpando o sangue, desculpa.

Deitei-me e ela avançou, aos poucos, pra cima de mim. Era extremamente
carinhosa, talvez por conta do ecstasy de mais cedo, talvez por eu estar machucado. A
luz estava apagada e não dava pra enxergar muito bem. Ainda dava pra escutar Snow
Patrol tocando na sala e a gente parecia se amar. Não parecia sexo, parecia fazer
amor. Eu não consegui não imaginar a Cla no lugar dela. Tentei, bastante, mas era a
Cla ali. Não tinha o que fazer. Segui com a ideia. Quando acabamos, dava pra ouvir
Louise suspirando. "Foi intenso, né?", disse ela arfando e rindo. Balancei a cabeça
fazendo que sim e me deitei virado pra cima. Fiquei olhando pro teto, ela encostou a
cabeça no meu ombro e me abraçou. Em pouco tempo ela estava dormindo. Fiquei
surpreso com a capacidade de alguém dormir com tanta facilidade depois de tomar
ecstasy. Talvez só eu ainda estivesse um pouco ruim. Levantei e fui à sala desligar o
som, que me assombrava. Sentei no sofá e acendi um cigarro. Meu nariz já tinha
parado de sangrar havia um tempo, mas ainda doía bastante. Sem contar que eu
respirava pela boca, mais um problema pra dormir. Fui deitando, de pouco em pouco,
até que fiquei com a cabeça apoiada no braço do sofá. Olhei pro teto enquanto
fumava um cigarro atrás do outro.
Depois de um bom tempo e vários cigarros, dormi sem perceber e, como se
não tivesse dormido nada, acordei com o mesmo CD tocando de novo. Louise tinha
ligado o som e estava na cozinha passando café. Eu me sentia completamente
destruído. Mais cansado que na hora que fui dormir. O dia estava ensolarado mas era
cedo. O cheiro de café me ajudou a levantar.

- 32 -
17

Já de pé, ainda tentava acordar. A força da gravidade parecia ter triplicado.


Fui até o banheiro, olhei no espelho e minha cara estava uma zona. Lavei, com
cuidado. Ainda não conseguia respirar direito pelo nariz, apesar de sentir cheiro de
metal e café. Fui à cozinha e Louise estava usando minha camisa, apenas. A cena era
das mais lindas, das que a gente não esquece nunca e a pessoa mal sabe que vai fazer
parte da sua memória pra sempre. Ela sentou no banco ao lado da mesinha e serviu
café, pros dois. Fui até ela e dei um beijo em sua cabeça, o cabelo estava com cheiro
de shampoo e cigarro, era bom. Sentei e comecei a tomar café. “Bom dia”, disse eu,
soprando o café. Ela estava bebendo e dava pra vê-la sorrindo com os olhos. Me deu
bom dia com as sobrancelhas. Ela era linda. Mas dificilmente ganharia algum
concurso de beleza. Aposto que muita gente a achava feia. Tinha essa beleza esquisita
que eu costumava apreciar.

– A gente pode ouvir outro som? – perguntei.


– Por quê?
– A gente já ouviu esse ontem.
– Tá, ué. Mas eu gostei bastante. Me empresta?
– Claro.

Levantei com o café na mão e fui até o computador. Tirei o disco e separei pra
deixar com ela. Peguei qualquer coisa leve pra tocar. Ela levantou e veio até mim. Me
abraçou enquanto eu colocava o outro disco. Virei e nos beijamos. Estava
funcionando tudo muito bem. Imaginei como seria se a Cla soubesse como eu estava
bem. Tirando os machucados no rosto. Tirando, também, a Vanessa ter acabado o
noivado por minha causa. Eu não estava tão bem, no fim das contas. Quando
acabamos o café, voltamos pra cama e, novamente, não era só sexo. Quando ela
levantou pra tomar banho, eu fiquei olhando e pensando se aquilo estava acontecendo
mesmo. Ou se eu estava caminhando pra mais uma tragédia, essas coisas. Ela saiu do
banho e começou a se vestir.

– Preciso ir, Rico. Fiquei de almoçar com meu pai hoje.


– Janta com ele.
– Não, preciso ir mesmo – disse ela, rindo e me dando um beijo na testa.

Eu queria que ela ficasse um pouco mais. Finalmente o vazio dentro de mim
não doía tanto. Levantei e levei Louise até a porta. Beijamo-nos, entreguei aquele CD
amaldiçoado e nos despedimos. Fiquei assistindo à cena dela descendo as escadas até
que sumisse de vista. Voltei pra cama. Peguei meu telefone e havia duas chamadas
não atendidas de Rafael. Liguei pra ele:

– Ei, Joel.
– Rico! Tá vivo?
– Mais ou menos, como vocês tão?
– Eu machuquei minha mão um pouco, mas estamos bem. Puta preguiça, mas
paciência.
– Tô um pouco pior que isso. Você e Letícia podiam almoçar aqui, anima?

- 33 -
– Vou ver com ela, ela ainda tá deitada. Como foi com a esquisita?
– Esquisitas são meu fraco, né? Foi do caralho.
– Tá fodido.
– Talvez sim.
– Vou ver aqui com a Lê e já te respondo. Até.
– Té.

Fui à cozinha e mexi um pouco na dispensa atrás de algo decente pra fazer
pros dois. Resolvi caprichar. Tirei um salmão que estava havia um mês no congelador
para alguma ocasião especial e deixei na pia descongelando. Separei arroz, e umas
batatas para fazer purê. Era um dos meus pratos favoritos. Deixei tudo lá na pia
esperando a resposta do Rafael. Acendi um cigarro e fui pra sala trocar aquela música
morta que eu tinha colocado mais cedo. Coloquei Raimundos. Talvez a força da
gravidade voltasse ao normal com todo aquele esporro vindo do som. Rafael
respondeu. Eles iriam se arrumar e iriam almoçar comigo. Fiquei feliz e fui pra
cozinha para começar a agilizar as coisas.

18

Eu descongelei o salmão no micro-ondas pois não daria tempo de esperar.


Mataria os dois de fome. Temperei e, assim que coloquei no forno, o interfone tocou.
Eu nem falei nada. Já abri de uma vez, pois sabia que eram os dois. Abri a porta e
esperei que eles subissem a escada. Assim que me viu, Letícia teve que se apoiar em
Rafael de tanto que ria do meu nariz fodido. Nem era tão engraçado assim. "Rá rá",
disse eu rindo sem graça. Ela não parou de rir. Os dois me cumprimentaram e
entraram.

– Porra, adoro Raimundos – disse Letícia.


– Melhor que Snow Patrol – respondi.
– Oi?
– Nada.
– Legal sua casa, Rico. Onde é o banheiro?
– Obrigado, Lê. Ali naquela porta.

Ela foi ao banheiro e Rafael foi pra cozinha perguntando se eu precisava de


ajuda. "Faz o arroz, odeio fazer arroz", disse eu. Ele começou a lavar o arroz e
comentou:

– Então... Louise, hein?


– O que tem?
– Veio em boa hora, né?
– Bastante.
– Olha, Rico, tá bem na cara o que você tá fazendo.
– Como?

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– A Louise, ela tem todo o jeito da Cla. Vai me dizer que você discorda? Cara
de pau.
– Por que você tá falando isso?
– O jeito dela é idêntico, Rico. Para de show – Letícia voltou do banheiro e
ficamos quietos.
– O que vocês estavam cochichando? Sobre como o Rico tá usando a Louise
como substituta da Cla? – disse Letícia com a maior cara de babaca que eu já tinha
visto ela fazer.
– Você tá viajando, menina. A gente não falava disso e a Louise não é
substituta da Cla.
– Viajando o caralho.

Se Rafael não tivesse na minha casa, eu a mandaria tomar no cu e a


expulsaria. Eu gostava dela, mas ela estava sendo babaca sem motivo nenhum. Ela foi
pra varanda fumar um cigarro. Eu não ligava que fumasse dentro da minha casa, mas
deixei ela na varanda, pois não estava feliz com a presença dela. Eu e Rafael
continuamos cozinhando. Ele parecia um pouco sem graça, claramente notou o atrito,
mas logo aquilo passaria. Ela acabou de fumar e foi pra cozinha. Sentou e ficou
olhando a gente cozinhar enquanto falava sem parar. Depois de um tempo ela se
levantou e foi ao banheiro novamente.

– Você disse que ela tava parando com o pó, Rafael.


– Ela ainda exagera às vezes. No geral tem melhorado.
– Você ainda vai arrumar uma merda pro seu lado com isso.
– Acho que o salmão tá pronto, vê aí.

Abri o forno e ainda estava cru. Letícia voltou do banheiro e falava alto: "Tá
pronto? Tô morrendo de fome". Respondi que não e peguei um vinho pra a gente
começar a tomar. Começamos a beber e Letícia bebia de taça em taça. Devia acabar
em dois goles, no máximo. Abri outra garrafa e continuamos até a comida ficar
pronta. Fomos pra mesa da sala e, enquanto almoçávamos, conversávamos:

– Já que vocês se deram bem, a gente podia sair os quatro – disse Letícia.
– É uma boa ideia, vou ver com ela – respondi.
– Vai ser legal, só não vamos praquele pub tão cedo. O segurança ainda deve
estar puto com a gente, Rico – disse Rafael.
– Verdade, Raquel. A gente pode marcar de tomar uma no Barriga durante a
semana.
– Lá é uma bosta, mas pode ser – respondeu.

Acabamos de almoçar e levei a louça pra cozinha. Os dois sentaram no sofá e


eu puxei a cadeira do computador pro outro canto e sentei. "Eu já tava lesado. Agora,
depois desse almoço, vou dormir até amanhã", disse eu bocejando. Jogamos mais um
pouco de conversa fora e eles decidiram ir embora. Ainda bem, eu precisava muito
dormir. Despedimo-nos e desabei na cama. O travesseiro ainda tinha o cheiro de
Louise.

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19

Três da manhã. Acordei completamente. Ainda bem que não precisava


acordar cedo na segunda. Decidi beber pra passar o tempo. Ficar à toa e sozinho é
foda. A gente escolhe as piores formas de passar o tempo. Peguei uma gaita antiga
que eu comprei por dez reais havia anos e comecei a tocar enquanto bebia. Eu ainda
sabia tocar um pouco. Legal. Quando enjoei, liguei o som e puxei a cadeira pra
varanda. Acendi um cigarro e fiquei bebendo enquanto assistia o Sol nascer. Eu
adorava o Sol nascendo. Era muito mais bonito que ele se pondo. Talvez por nunca
haver ninguém acordado me distraindo. Sol se pondo sempre tem um monte de gente
narrando: "Olha que lindo!", "O Sol está se pondo!", é um saco.
Bêbado, às sete e meia de uma segunda. Cheguei a um ponto complicado. Na
verdade não era grande coisa. Era como um sábado à noite, porém sozinho e com
todo mundo acordando pra trabalhar. Se alguém soubesse, faria mau juízo de mim,
então era só eu não contar pra ninguém. Decidi tentar dormir novamente. Acordei
com o interfone tocando. Que caralho. Eu devia cortar o fio daquela merda, eu não
usava mesmo. Era só falar pra me ligarem quando fossem à minha casa. Ele não
parava de tocar. Eu puxei uma pontinha da cortina e espiei da janela. Havia um
Kadett preto do outro lado da rua. Nem fodendo eu atenderia. Deixei tocar, ficou mais
uns dez minutos e parou. Olhei novamente pela janela e Vanessa tinha ido embora.
Passaram-se alguns dias, eu voltara a trabalhar e só bebia depois das dez, pra
não trabalhar bêbado. Eu sempre comprava errado quando bebia. Achava que
conseguiria recuperar operações mal feitas, essas coisas. Ninguém apareceu por uns
dias. Eu também não procurei, estava bem. Na sexta, Rafael me mandou uma
mensagem perguntando sobre nosso rolê a quatro. Respondi falando que havia
esquecido. Era mentira, mas eu não queria dizer que estava receoso de tomar um não
da Louise. Passei um tempo bebendo e tomando coragem. Lá pras quatro da tarde
liguei pra ela:

– Ei, como estamos?


– Tô bem, Rico. E você?
– Bem também. Você sumiu.
– Tanto quanto você.
– Verdade. Eu andei ocupado, me desculpa.
– Desculpar o quê?
– O sumiço, ué.
– Não reclamei.
– Enfim. Vamo tomar uma hoje à noite com Rafael e Letícia?
– Acho que não – disse ela rindo – hoje eu fiquei de sair com as meninas. É
aniversário do namorado de uma delas.
– Tudo bem. Quer fazer algo amanhã então?
– A gente vê.
– Tudo bem. Beijo.
– Beijo.

O problema de mulher esquisita é esse. Muito homem sacaneia com elas, daí
elas ficam cascudas assim. Se eu não ligasse, ela não ligaria nunca. Não tem muito o
que fazer. Só torcer pra elas estarem numa fase boa e terem uma boa impressão de

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você. Eu ainda não sabia o que se passava na cabeça de Louise. Essa ligação me fez
me sentir sozinho. Comecei a pensar seriamente em ligar pra Vanessa.

20

"Papai Noel, vamos deixar esse esquema pra outro dia. Louise tem um
aniversário pra ir hoje". Escrevi e mandei essa mensagem. Eu estava cada vez mais
tentado a ligar pra Vanessa. A solidão te faz agir idiota. Ela era uma boa companhia,
mas um dia com ela me renderia, pelo menos, uma semana de dor de cabeça e um
mês de expectativas da parte dela. Era sacanagem com ela. Por outro lado era
sacanagem comigo ficar sozinho e carente enquanto ela ficava carente do lado de lá.
Eu odiava a forma como eu conseguia racionalizar e me convencer a fazer qualquer
bosta dependendo da minha necessidade. Acabei ligando pra ela. Liguei tão receoso
quanto quando liguei pra Louise, porém dessa vez não era receio de ser rejeitado, era
de ser atendido:

– Rico! Tá vivo?
– Parece que sim. Como tá?
– Tô ótima, fui à sua casa segunda mas você não estava – ela não conseguia
esconder a empolgação. Eu já estava arrependido de ter ligado.
– É, andei ocupado.
– Mas e aí?
– Tô ligando pra saber se você vai fazer algo hoje.
– Vou não. Vou ficar em casa vendo filme. Anima?
– Acho que sim. Me manda seu endereço que eu apareço aí.
– Tá, beijo!
– Beijo.

Passei um tempo me xingando e recebi o endereço dela. Eu tomei um banho e


chamei um táxi. Eu não tinha carro, pois dirigia feito maluco. Quase morri uma vez
num acidente e, outra vez, quem morreu foi o carro. Depois disso resolvi só andar de
ônibus e táxi. Como eu queria passar numa pizzaria pra comprar algo pra a gente
comer, fui de táxi. Eu não gostava de taxista. Alguns caíam nas minhas graças, mas a
maioria tinha aquele papo forçado, principalmente sobre futebol. Eu nunca vi graça
em esporte coletivo. Sempre tem algum jogador que a gente não gosta e a gente tem
que torcer pro time mesmo assim. Não era a minha praia. Gostava de assistir a
corridas. Quando tinha muito acidente era mais legal. Sem acidente não tinha graça.
Mas também não gostava se alguém se machucasse, queria só ver os carros capotando
e aquela porrada de faísca. Parando pra pensar, meu gosto sobre quase tudo era
estranho. O táxi chegou e buzinou na frente da minha casa. Olhei pela varanda e
assobiei pra avisar que estava descendo. Desci e entrei no táxi.
Chegando à pizzaria o táxi encostou. Tinha uma foto dele com a esposa no
console do carro. Eu fiquei olhando. O taxista começou a estranhar: "Ô chefe, você
quer que eu espere aqui?". Olhei pra ele. Ele parecia cansado. Olhei de volta pra foto
e fiquei mais um pouco. A foto era linda. "Me leva de volta, amigo", falei. Minha

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garganta estava seca e meus olhos, molhados. Ele nem puxou papo. Acho que estava
com medo do que eu podia falar. "Vai que essa esquisitice pega", imaginei ele
pensando. Ele me deixou em casa, paguei. Deu mais caro que se eu fosse pra casa da
Vanessa.
Minha cabeça girava, quase me faltava ar. Eu não pensava direito, mas tinha
consciência disso. Liguei o "foda-se" e resolvi falar com a Cla. Não queria saber de
nada. Só ouvir a voz dela e soltar o que estava preso em minha garganta no momento.
Ela me assombrava. Muito.

– Alô – ela atendeu com uma voz curiosa e confusa. Não respondi. Havia ar,
eu conseguia respirar fundo.
– Rico? Alô?
– Ei.
– O que aconteceu?
– Nada.
– Você tá me assustando. Tá tudo bem?
– Tá tudo bem, sossega. Como você tá?
– Tem certeza?
– Não. Eu sinto sua falta.
– Ah, Rico. Essa história de novo?
– Você nunca me disse o que aconteceu.
– Eu disse, Rico. As coisas passam.
– Eu fiz algo, não foi? – me vinha um nó na garganta.
– Você tá bêbado?
– Só me fala o que foi que eu fiz.
– Você não fez nada, Rico. Para com essa história.
– Vai fazer algo hoje?
– Vou.
– Tudo bem.
– Tchau, Rico. Se ajeita.
– Beijo.

Um jeito bom de superar alguém era tomando raiva, mas ainda levaria tempo
até eu conseguir isso com ela. Outro jeito era esse:

– Alô.
– Ei, Louise.
– Fala, Rico.
– Tá na festa?
– Tô sim.
– Como tá aí?
– Tá legal.
– Vai sair daí que horas? Tô indo pra rua. Queria te encontrar.

Ela demorou um pouco pra responder, talvez cochichasse com as amigas


abafando o telefone com a mão.

– Não demoro. Quer fazer o quê? – isso salvaria a minha noite.


– Qualquer coisa. Se tiver cansada a gente pode ver um filme aqui em casa, se
quiser.
– Não, prefiro sair.

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– Então me avisa quando acabar aí, daí a gente vai pra algum lugar. Espero
notícias.
– Tá bem, beijo.
– Beijo.

Ainda pensava na Cla, inevitavelmente. As pessoas entram fácil nas nossas


vidas, mas pra sair é uma merda. Comecei a beber água pra amenizar o porre, não
queria chegar chapado demais no encontro com Louise. Mandei uma mensagem pra
Vanessa dizendo que não daria pra eu ir e pedi desculpas. Sacanagem com ela, mas a
vida é sacanagem com todo mundo, paciência. Não demorou muito e recebi uma
mensagem da Louise. Marcamos de nos encontrar num boteco no centro. Chamei
outro táxi, já era tarde pra ônibus. Em pouco tempo o taxista buzinou e eu desci. Era o
mesmo cara, quais as chances? Entrei no carro:

– Mudou de ideia de novo, chefe?


– Não, é pra outro canto agora.
– Tá tudo bem? – ele tinha tirado a foto do console. Acho que ficou assustado
pela forma que eu encarei ela da outra vez.
– Tudo. Noite complicada.

Daí ele começou com o papo de que sabia como era ter dias complicados e
toda aquela baboseira pra demonstrar empatia. Não dei muita conversa. No caminho
recebi uma mensagem. Era a Cla:

"Ei, Rico. Me desculpa pela frieza. Eu também sinto sua falta mas acontece
que a gente simplesmente não tá no mesmo barco. Eu não tô num momento bom,
nada foi sua culpa. Eu preciso de um tempo meu e sei que qualquer esperança que eu
te der, vou te magoar. Me desculpa. Beijo."

"Vai tomar no cu. Eu quero ser magoado, se for esse o preço pra ter sua
companhia, sua maldita", pensei, já quase chorando de novo. Quem era ela pra decidir
o que era melhor ou não pra mim? Eu tava era bravo agora. Chegamos ao boteco,
paguei o táxi e saí procurando Louise. Ela estava sentada numa mesa bem no meio do
boteco. Um bêbado tentava puxar papo com ela, mas ela não dava a mínima. Não era
muito sociável. Ao me avistar, ela sorriu e levantou a mão. Não sei pra quê. Eu já a
tinha visto. Achei meio idiota ela levantar a mão. Me sentei e ela bebia um drinque
esquisito. Acho que era de morango com alguma frescura.

21

Ela olhava pro fundo do copo enquanto mexia com um canudo. Parecia um
pouco bêbada. Era por volta de duas da manhã e achei legal eu não ser o único
bêbado. Começamos a conversar. Não parecíamos tão íntimos. Ela aparentava vestir
uma armadura esquisita apesar de deixar vazar sinais de que estava a fim de mim.
Estranhei aquilo. Pedimos batata frita. Eu não gostava muito, mas é sempre bom pedir

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batata frita. Além disso, não podia fumar lá dentro e isso satisfazia minha fixação
oral. A dela também, aparentemente. Ela continuava na defensiva. Eu atirava umas
investidas eróticas, mas eram todas defletidas. Tava tudo estranho pra caralho.
Continuamos bebendo até começarmos a falar engraçado. Eu sempre fui muito aberto
em conversas, cheguei ao limite da minha curiosidade sobre aquele comportamento.

– Aconteceu algo? – perguntei.


– Não, nada. Por quê?
– Você tá meio introvertida, calada. Sei lá.
– Nada mesmo. Tá tudo bem.

Deixei quieto. Ficou um silêncio incômodo entre a gente por um tempo, mas o
silêncio fazia com que ela ficasse agitada mais e mais a cada segundo até não
aguentar:

– Quem é Cla? – ela perguntou, mas foi uma pergunta do fundo da alma. Dava
pra notar. Quase uma tosse de engasgo.
– Como assim?
– Só responde, Rico.
– É minha ex, como você sabe disso?
– O disco que você me emprestou, tem uma dedicatória "linda" – disse ela em
tom cínico.
– É passado, Louise. Esquece isso.
– Foi por isso aquele desconforto todo quando escolhi ele pra tocar?
– Não, tá louca? Eu só não gosto muito desse disco.

Ela baixou a cabeça envergonhada pelo ataque de ciúme.

– Me desculpa – disse ela – você não me deve satisfações, mas me senti parte
disso tudo.
– Olha, Louise. É passado. Não se preocupa.

Parece que depois dessa conversa ela baixou a guarda e começamos a nos
entrosar. Em pouco tempo estávamos rindo sobre coisas bobas. O tempo voou depois
disso e, logo, o boteco começou a fechar.

– Quer ir lá pra casa? – perguntei.


– Não, acho que não estou no clima. Me desculpe.
– Não precisa se desculpar. Clima é clima.

Fiquei chateado. Eu não queria ela se sentindo assim por conta da Cla.
Imaginei o que ela sentiria se soubesse da história toda. Torci para que nunca
chegasse ao ouvido dela.

– Olha, dona. O Rafael e a Letícia chamaram a gente pra sair junto e eu adorei
a ideia. Gostaria da sua companhia com o meu melhor amigo e a garota dele.

Ela sorriu contidamente e seus olhos brilharam. Parecia que tinha superado
toda aquela crise boba por conta da dedicatória da Cla no CD.

– Vou chamar um táxi pra você, amanhã a gente marca isso, tá bom? –
continuei.

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– Tudo bem. Desculpa de novo pela cena.
– Esquece isso, tá tudo bem. Quer ficar com o CD?
– Não, obrigado. Eu compro outro. Esse faz parte da sua história, né? – ainda
bem que ela rejeitou.

22

Louise era muito divertida e, como eu previa, meio tantã. Eu amava isso.
Continuamos nos encontrando; sem intenção de parar. Rafael mandava mensagem
nos chamando pra sair, às vezes. Eu sempre inventava alguma desculpa esfarrapada.
Julia só perguntava como eu estava. Talvez me conhecesse melhor ou tivesse menos
fé em mim. Eu concordava.
Passou mais ou menos um mês nessa toada. Eu percebi começar um apego ou
vício, da minha parte. Pode ser que apego seja um tipo de vício, sei lá; mas eu gostava
de como ia. Lembrei-me de uma música que tinha uma linha: “I’m an addict for
dramatics; I confuse the two for love(...)”. A música se chamava Liar.
Eu ainda não entendia como Louise funcionava, mas também não era muito de
me esforçar. Uns chamam de falta de interesse, eu acreditava que o preservasse. É
difícil enjoar de alguém se você não conhece suas manias. Eu gostei muito dela, mas
amor... amor eu não sei, não. Líquido, serve?... Saúde!
Era um sábado qualquer de algum mês no inverno. Eu só me preocupava em
saber o dia da semana, normalmente. Exceto quando era verão e outono, pois eu
precisava lembrar o aniversário de Rafael, que fazia dia 5 de janeiro, e da Julia, que
fazia na metade de maio; mas eu sempre consultava uma agenda antiga, pra lembrar.
E sim, eu não esquecia o da Cla. Também não dá pra esquecer o aniversário de
alguém que faz no dia 29 de fevereiro. Eu sempre brincava com ela dizendo que eu
namorava uma menina de 7 anos. Ela não achava muita graça pois devia ouvir essa
piada sempre que falava a data de nascimento, mas ria pra me agradar. Eu achava
graça e sabia que ela não. Rafael me ligou, nesse dia:

– Fala, Bebel, tá sumida.


– Idiota. Vai passar mais dois anos sumido com outra mulher?
– Não seria uma má ideia, mas tô com saudade de você.
– Hm, tá de coração mole.
– E pau duro.

Rafael ria de qualquer besteira que eu falasse ou fizesse. Enquanto eu


esperava ele se recompor, Louise, ao meu lado: “Quem é Bebel?”. Fingi não ouvir. E
continuei com Rafael:

– Quando vamos sair, gata? – Louise claramente ruborizava.


– Na hora que você quiser, seu puto.
– Pois hoje. Vê aí o que você quer fazer: cineminha, show, qualquer besteira
me diverte. Vou levar outra mina pra a gente fazer um bem bolado – tomei um socão
que demorou a passar a dor. Na verdade eu meio que assustei, pois não foi um
daqueles soquinhos de quem sabe que você tá provocando de brincadeira. Ela levou a
sério.
– Tá, seu doente. Vou ver algo. Bem bolado é seu cu.

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– Beijo, tchau.

Louise havia se trancado no quarto depois dessa e fazia barulho de quem


juntava as coisas. Tá aí um lado dela que eu não queria conhecer. Bati na porta:

– Ô, o que foi?

Continuavam os barulhos de maquiagem fechando, caixinha de escova de


dente, laptop batendo, essas coisas que mulher carrega pra passar mais de 20 minutos
na casa de alguém.

– Que porra é essa Louise?


– Vai se foder – ela tava chorando e eu não podia acreditar.
– Tá brava por causa da minha conversa com Rafael? – ela demorou um
tempinho, sem barulhos, pois não se lembrava sobre eu ter conversado com Rafael,
além de mensagens.
– Não, por causa dessa puta que você teve a coragem de falar desse jeito na
minha frente. Eu não ligo se você recebe essa vagabunda naquele carro velho escroto
dela em casa quando não estou, mas isso é demais pra mim.

É. Aconteceu que Vanessa não havia parado de aparecer, eventualmente,


durante o último mês; e, às vezes, gritava meu nome, já que eu morava no primeiro
andar. Só que eu acreditava que, pra minha sorte, nenhuma das vezes Louise estava
em casa comigo. Quem demorou pra responder dessa vez, fui eu:

– Não sei do que você tá falando.


– Eu não acredito que você tem a capacidade de mentir na minha cara.
– Na sua cara não, na porta. E eu não tô mentindo.
– Vai ser escroto assim na puta que te pariu.
– Você pode me explicar isso direito? Eu tava falando com Rafael agora, pode
ligar pra ele.
– Não muda o fato de você estar mentindo.
– É verdade, era o Rafael.
– Você sabe do que eu tô falando, não se faz de sonso – eu sabia mesmo, mas
vai que cola, né?
– Tá, mas eu não sei o porquê de você estar brava. Essa menina que você tá
falando é uma maluca que eu fiquei antes de te conhecer, nunca mais rolou nada.
– Então você tá assumindo que mentiu pra mim.
– Mais ou menos, porque não a recebo em casa.
– Foram pra casa dela, então?
– Oi?

Ela abriu a porta com a cara encharcada de lágrimas e os olhos vermelhos,


quais sinais de trânsito:

– Ela me contou tudo. Eu vim te fazer uma surpresa e a encontrei gritando seu
nome. Eu falei que era sua namorada e ela me disse que ela tava lá embaixo, pois
vocês ficavam e você tinha chamado ela.

Fiquei olhando pra cara dela tentando entender qual das duas era mais doida e
falei sem pensar:

– Mas você não é minha namorada – ela baixou a cabeça, passou pela porta do
quarto me atropelando e foi embora.
Eu acho que devia ter tentado impedi-la dizendo algo mas minha boca havia
acabado de me trair e eu não queria correr esse risco. Deixei-a ir. Eu não encontrava
Vanessa desde o dia que ela cozinhou o molho queimado e me levou pro Rafael. Dia
que conheci Louise. Vanessa trouxe e depois levou Louise embora da minha vida. Eu
estava dividido entre dar um esporro monumental em Vanessa ou arrumar um jeito de

- 42 -
tentar me reconciliar com Louise. Um me traria dor de cabeça após eu fazer, o outro
me faria quebrar a cabeça antes. Não gosto de dor de cabeça, acho que prefiro quebra-
la, desde que não doa.

23

Bem que o pessoal fala que comunicação é importante numa relação. Comecei
a imaginar como teria sido mais fácil se Louise tivesse me perguntado, na hora, se a
loucura que Vanessa disse era verdade. “Não, ela é doida, tenho testemunha e
provas”, eu diria. Mas vai saber se isso funcionaria... Essa história toda me machucou,
mas eu não queria postergar, outra vez, um encontro com Rafael e Letícia. Acendi um
cigarro, botei uma música de fossa e sentei no sofá pra refletir. Não queria ficar
bêbado, exatamente naquele momento, pois haviam muitas cartas horríveis que eu
poderia jogar, já que eu tava com uma das piores mãos possíveis naquele jogo
esquisito. Eu precisava pensar com clareza. Por falar em clareza, meu celular vibrou:
era uma mensagem da Cla. “Não é possível que o universo decidiu me botar de quatro
e me fazer isso tudo hoje”, pensei. Por pouco teria jogado o celular pela janela; ainda
bem que não havia bebido, até então. Daí desisti, decidi beber até morrer e que se
foda. Peguei um conhaque português que a tia do Rafael me ensinou a apreciar. Fui
no bico. Quando a bebida começou a me balançar, tratei de esconder o celular em
algum lugar. E, se era pra machucar de vez, botei a porra do disco que tanto a Cla
quanto a Louise amavam – apesar de Louise tentar esconder gostar, por causa da
dedicatória da Cla –. Fiquei olhando a capa do disco enquanto tocava. Achava
estúpido o fato dos caras se compararem a Elvis Presley mas achei hilário o
casamento do título com a capa. Imaginei que faria mais sentido depois do
aquecimento global foder de vez com todos os ursos polares. Bebi até apagar
enquanto lia as letras das músicas.
O interfone tocou e eu sonhei que a Cla ligava pra mim. Odeio esses sonhos
fast food que acontecem enquanto você tá ouvindo um barulho que está prestes a te
acordar. Sua cabeça incorpora o barulho ao sonho e inventa as coisas mais tristes de
se acordar. Quando acordei me xinguei, depois xinguei o interfone, depois xinguei
Vanessa, por imaginar que fosse ela e tentei voltar a dormir no sofá. Ainda estava
completamente bêbado mas resolvi redosar pra garantir. Talvez eu só tenha piscado,
talvez tenha passado uns 10 minutos mas sei que o interfone ainda tocava e, dessa
vez, eu ouvia o assobio característico de Rafael. Lembrei-me do compromisso que eu
tinha contraído mais cedo com os dois. Fui até a janela pra ter certeza. Rafael estava
sozinho, sem Letícia. Abri o portão pelo interfone.
Rafael entrou pela porta, que ainda estava destrancada desde que Louise se
foi.

– Qual foi, Rico? – ele parecia confuso.


– Sobre o quê?
– Que cara é essa e por que você não atendeu as mil vezes que te liguei e nem
respondeu a nenhuma mensagem?

Contei a história.

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– Puta merda! E você tem encontrado Vanessa?
– Não, já disse.
– E por que não falou isso pra Louise?
– Falei, mas parece que uma estranha tem mais credibilidade que eu, pra ela.
– Meio que dá pra entender o lado dela.
– Completamente.
– E você tá gostando tanto dela a ponto de apagar ouvindo essa música chata?
– Né? Sempre falei isso pra Cla.
– Que tá gostando da Louise?
– Que esse som era meio bosta – nem perdi tempo chamando ele de burro.
– Você tá pior que eu imaginava.
– A Cla me mandou mensagem.
– Hm, faz sentido
– Ela me mandar mensagem?
– Não, seu estado. Ela disse o quê?
– Não sei. Não abri a mensagem e não sei onde tá meu celular mais... E
Letícia?
– Resolveu ficar em casa – a gente sabe quando o melhor amigo mente. Eu
nem finjo acreditar.
– Agora fala a verdade.
– Deixa isso pra lá, vou fazer um café pra você. Quer uma outra coisa pra dar
um up?

Fiquei olhando pra cara dele. Não acreditava que ele tava me oferecendo pó –
sabia que não era ecstasy pois não é uma boa ideia misturar com álcool. Pó também
não, eu sei; mas, dadas as circunstâncias, eu já havia entendido qual era a do Rafael e
imaginava o motivo da briga dele com Letícia –.

– Claro. Dá cá.

Fiz uma linha do tamanho de uma faixa de pedestres e só fui. Taquicardia


bateu daquele jeito mas eu sabia como era. Achei gozado eu ter bebido quase um litro
de conhaque e o que me fez parar de ligar pro que me machucava ter sido algo que eu
carregava um tanto de preconceito. Pode-se argumentar que preconceito é baseado em
senso comum, mas senso comum não costumava fazer parte da minha cabeça. Em
menos de um minuto eu tava falando mais rápido que o Eminem, e sem parar.

– Parece ter ajudado, hein, Rico?


– Tá bricando? Tô pronto pra fazer qualquer merda que você animar agora – e
comecei a falar sobre uma ideia aleatória sobre a gente se juntar pra fazer dinheiro
com alguma coisa que jamais daria certo. É cliché mas eu sempre fazia isso chapado
de pó. Cliché deve ser parente do preconceito.

Rafael ria das minhas ideias e fingia botar fé nelas. Eu sabia que ele tava
fazendo isso mas não ligava. Enquanto isso ele procurava um lugar pra a gente ir,
pelo celular.

– Vai ter um forró na praia e vai ter uma banda de rock clássico no pub inglês.
– Pub não. Não quero o risco de encontrar Louise lá e não sou muito de rock
clássico.
– Mas quem vai chapado de pó num forró?
– A gente, Daniel – ele abriu um sorriso de orelha a orelha, mas dava pra ver
os dentes inquietos, por causa do pó.

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– Então toma um banho e vamos, você tá exalando cheiro de álcool.
– Como se banho lavasse por dentro, mas preciso mesmo de um.

Rafael riu e foi trocar a música enquanto eu fui pro quarto resolver meu
banho. Assim que entrei no box do banheiro, comecei a gargalhar. Eu havia
escondido o celular em cima do chuveiro. Por sorte eu havia tirado o modo vibratório
dele, senão teria caído de lá com as ligações. Continuei ignorando aquela peça de
tecnologia endemoniada mas tirei do chuveiro. Tomei um banho gelado, não estava
ligando pra temperatura da água. Saí e me vesti. Passei um perfume forte, mas que eu
gostava, pra ver se disfarçava o álcool.
Enquanto isso Rafael estava ouvindo Bambix, uma banda de punk rock
holandesa que eu adorava. Ele tinha um gosto musical espetacular. O primeiro trecho
que ouvi ao chegar na sala:

“Question 5: how is your beloved wife, still trapped in your thoughts?


Question 6: re-read your books, it just might do the trick.
Tunnel vision;
no remission.”

Cocei minha cabeça, confuso, pois o disco se chamava Leitmotiv e esse trecho
de música ressoou na minha mente. Talvez eu precisasse de uma religião nova pois eu
não gosto de coincidências se sobrepondo absurdamente e culpar o universo. Talvez
botar na conta de um deus me daria paz. Acabamos de beber o conhaque enquanto
Rafael, verborrágico, falava sem parar sobre a tia dele, pois a garrafa o remeteu a ela.
Começou a tocar Summersong: “You said goodbye. I’m giving myself another reason
to stay; you’re giving me another dark blue eye…”. Eu já tava ficando puto de ficar
pensando nas letras das músicas e imaginar que eram pra mim. Desliguei o som e
saímos pra rua.

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