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 Teatro na Praia/ Textos Criativos Edição N. 015 Carta de Bruno Schulz a Stanisław Ignacy Witkiewicz – Tradução de Lu
CONTATOS

Carta de Bruno Schulz a Stanisław Ignacy Profa. Dra. Aurora Bernardini


(USP)

Witkiewicz – Tradução de Luiz Henrique E-mail: bernaur2@yahoo.com.br

Budant Profa. Dra. Dirce Waltrick do


Amarante (UFSC).
E-mail:
Início
waltrickdoamarantedirce@gmail.com
“… à procura de
autor”/Entrevistas » Uma entrevista sem perguntas. Prof. Dr. Sérgio Medeiros (UFSC).
E-mail: panambi@matrix.com.br
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Boca de
Ouro/Comentários
Como é/Ensaios »
A produção epistolar de Schulz é vasta e capaz de despertar interesse proporcional à sua vastidão. Muito foi
Conselho Editorial
perdido nos anos da Segunda Grande Guerra, mas o que restou tem força bastante para suscitar re exões
Contato acerca não apenas de Schulz como autor, mas também como pensador e crítico literário. O texto a seguir é
Editorial tradução por nós proposta à resposta dada por Bruno Schulz ao genial polímata Stanisław Ignacy Witkiewicz,
Fascículo Atual conhecido também como Witkacy. Em sua publicação original, não consta a carta enviada por Witkacy, de
modo que decidimos assim manter o texto: uma entrevista sem perguntas.
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ISSN 2237-0617

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Qualis (CAPES) – B4
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(Universidade de
Alberta/Canadá)

Sobre

Teatro na Praia/
Textos Criativos » Bruno Schulz

Bruno Schulz a Stanisław Ignacy Witkiewicz[1]

Tradução de Luiz Henrique Budant

Os princípios e meus desenhos perdem-se na neblina mitológica. Ainda não sabia falar quando já cobria
todos os papeis e margens de jornais com rabiscos que despertavam a atenção daqueles ao redor. Eram, em
princípio, apenas carruagens com cavalos. O andar de carruagem parecia-me cheio de signi cância e
simbologia. Por volta do sexto, sétimo ano de vida voltaram aos meus desenhos mais uma vez a imagem do
coche com a capota levantada e lâmpadas chamejantes, saindo de um bosque noturno. Essa imagem
pertence à reserva de capital da minha fantasia, ela é algum ponto nodal de muitas linhas partindo às
profundezas. Até o dia de hoje não exauri seu valor metafísico. A visão do cavalo do coche não perdeu, ainda
hoje, para mim, em fascinação e poder de pungência. Sua anatomia esquizoide cheia em todas as
extremidades de chifres, nós, galhos e pináculos foi como que retida em seu desenvolvimento no momento
em que quis ampliar-se e rami car-se ainda mais. Também o coche é uma criação esquizoide, resultante da
mesma regra anatômica – plurimembre, fantástico, feito de folhas de metal dobradas como nadadeiras, de
pele de cavalo e imensas rodas-tinintes.

Não sei a partir de onde na infância chegamos a certas imagens com um sentido para nós determinado.
Cumprem elas papel desses lamentos numa solução, ao redor dos quais se cristaliza para nós o sentido do
mundo. A essas imagens ainda pertencem, em mim, a imagem de um lho carregado pelo pai pelo espaço de
uma imensa noite, conversando com a escuridão. O pai o aconchega, aperta nos braços, defende-o da
intempérie que fala e fala, mas para o lho esses braços são translúcidos, a noite o alcança neles e, por
através das carícias do pai, ele escuta incessantemente sua persuasão. E atormentado, cheio de fatalismo,
responde às indagações da noite, com trágica prontidão, inteiramente entregue à grande intempérie da qual
não há fuga.

Há conteúdos de algum modo predestinados para nós, preparados, esperando por nós no prólogo mesmo da
vida. Assim recebi a balada de Goethe aos oito anos com toda sua metafísica. Por meio do alemão apenas em
parte compreendido, capturei, pressenti o sentido e estremecido até o fundo chorava, quando minha mãe a
lia para mim.

Tais imagens constituem um programa, estabelecem a reserva de capital da alma, é-nos dado muito cedo na
forma de pressentimentos e experiência parcialmente conscientes. Parece-me, que passamos todo o resto da
vida a interpretar essas introvisões, superá-las em todo conteúdo que conquistarmos, guiá-las por todo a
extensão do intelecto de que formos capazes. Essas imagens precoces delineiam aos artistas as fronteiras de
sua criação. Sua criação é dedução de premissas prontas. Depois já não descobrem nada de novo, tão-
somente aprendem a cada vez melhor entender o segredo que lhes fora con ado na entrada e sua criação é
incessante exegese, um comentário a esse mesmo verseto que a eles foi entregue. Contudo a arte não desata
esse segredo até o m. Resta ele amarrado. O nó no qual a alma foi atada não é um nó falso que se desfaz ao
puxar a extremidade. Ao contrário, aperta-se ainda mais. Manipulamos junto a ele, seguimos o curso dos os,
buscamos o m e dessas manipulações surge a arte.

À pergunta se nos meus desenhos já se antevê o mesmo traço que na prosa, responderia a rmativamente. É
essa a mesma realidade, apenas distinto seu recorte. O material, a técnica aqui funcionam como regra de
seleção. O desenho realça fronteiras mais estreitas com seu material do que a prosa. Por isso julgo que na
prosa confessei-me mais plenamente.

Da pergunta se seria capaz de interpretar loso camente a realidade de Lojas de Canela, de mais bom grado
preferiria esquivar-me. Julgo que a racionalização da visão das coisas que se embute na obra de arte iguala-se
ao desmascaramento dos atores, é o m da diversão, é empobrecimento da problemática da obra. Não
porque a arte seja um logogrifo com uma chave oculta e a loso a esse mesmo logogrifo – solucionado. A
diferença é profunda. Na obra de arte ainda não foi cindido o cordão umbilical que a liga com a totalidade de
nossa problemática, lá ainda gira o sangue do segredo, os ns dos vasos partem na noite circundante e de lá
voltam plenos de escuro uído. Na interpretação losó ca temos apenas um preparado anatômico descosido
da totalidade da problemática. Apesar disso estou eu mesmo curioso sobre como soaria em forma discursiva
o credo losó co de Lojas de Canela. Isso será antes uma tentativa de descrição da realidade lá dada que seu
embasamento.

Lojas de Canela dá certa receita de realidade, estabelece um certo gênero especial de substância. A
substância daquela realidade está em estado de incessante fermentação, de brotamento da vida latente. Não
há materiais mortos, duros, limitados. Tudo difunde para além de suas fronteiras, dura apenas um segundo
numa certa forma, a m de deixá-la à primeira oportunidade. Nos costumes e modos de ser dessa realidade
manifesta-se um certo gênero de norma – a pan-mascarada. A realidade veste uma forma apenas por
aparência, por galhofa, para diversão. Alguém é um homem, e alguém é uma barata, mas essa forma não
alcança a essência, é apenas um papel recebido por um momento, apenas epiderme, que em um momento
será largada. Está aqui estabelecido um monismo radical da substância, para a qual os materiais particulares
são unicamente máscaras. A vida da substância consiste na utilização de incomensurável quantidade de
máscaras. Essa jornada das formas é a essência da vida. Porque dessa substância emana a aura de alguma
panironia. Está lá presente a incessante atmosfera dos bastidores, a parte de trás da cena, onde os atores,
depois de livrarem-se das fantasias, riem-se do páthos de seus papéis. No fato mesmo da existência
individual está contida a ironia, o embuste, a língua mostrada à moda do bufão. (Aqui, parece-me, um ponto
de toque entre Lojas e o mundo das tuas composições pictóricas e cênicas).

Qual seja o sentido dessa desilusão universal da realidade – não sou capaz de dizer. A rmo apenas que seria
ela insuportável, se não obtivesse compensações em alguma outra dimensão. De algum modo
experienciamos profunda satisfação desse afrouxamento do tecido da realidade, estamos interessados nessa
falência do real.

Fala-se sobre uma tendência destrutiva do livro. Pode ser que do ponto de vista de certos valores
estabelecidos seja assim. Mas a arte opera nas profundezas pré-morais, no ponto onde o valor está apenas in
statu nascendi.

A arte como con ssão espontânea da vida impõe tarefas à ética – não o contrário. Se a arte tivesse apenas de
a rmar o que aqui e acolá já fora estabelecido – seria desnecessária. Seu papel é ser uma sonda introduzida
no inominado. O artista é o mecanismo que restaura os processos nas profundezas onde se cria o valor.

Destruição? Mas fato de que esse conteúdo tornou-se obra de arte signi ca que o a rmamos, que nossas
profundezas espontâneas declaram-se em favor dele.

A qual gênero pertence Lojas de Canela? Como classi cá-lo? Entendo Lojas como um romance autobiográ co.
Não somente porque está escrito em primeira pessoa e porque pode-se nele enxergar certos eventos e
experiências da infância do autor. Ele é uma autobiogra a ou mais uma genealogia da alma, genealogia kat’
exochen, pois revela a linhagem da alma até aquelas profundezas onde ela parte à mitologia, onde se perde
no delírio mitológico. Sempre senti que as raízes da alma individual, perseguidas em profundezas
su cientemente longínquas, perdem-se em algum ninho mítico. Esse é o fundo nal, para além do qual não
há mais saída.

Uma imponente realização artística dessa ideia encontrei depois em As Histórias de Jacó de Thomas Mann,
onde ela é levada à escala monumental. Mann mostra como no fundo de todos os eventos humanos, quando
extraídos do joio do tempo e da multiplicidade, revelam-se certos proto-esquemas, “histórias”, nas quais tais
eventos se formam em grandes repetições.

Em Mann essas são as histórias bíblicas, os eternos mitos da Babilônia e do Egito. Eu tentei em minha escala
mais humilde encontrar uma mitologia própria, privada, as próprias “histórias”, uma linhagem mítica própria.
Assim como os antigos retiravam seus ancestrais de casamentos mitológicos com deuses, assim efetuei a
tentativa de estabelecer para mim uma geração mítica de antepassados, uma família ccional, da qual derivo
minha verdadeira estirpe.

De algum modo essas “histórias” são verdadeiras, representam minha maneira de vida, meu destino
particular. A dominante desse destino é a profunda solidão, o afastamento dos assuntos da vida quotidiana.

A solidão é o reagente que leva a realidade à fermentação, à derrubada do depósito das guras e das cores.

[1] Publicado, originalmente, na revista cultural Tygodnik Ilustrowany (Semanário Ilustrado), n. 17, em 1935.
Tygodnik Ilustrowany funcionou entre 1859 e 1939. O texto que nossa tradução tem por base é aquele
disponível em < http://www.brunoschulz.org/1935.htm> (último acesso em 13/11/2014)

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