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Corporeidade e preconceito através do pensamento de Jean-Paul Sartre

Corporeality and prejudice through Jean-Paul Sartre’s thought

Resumo

Este artigo consiste em uma oportunidade que nos permite compreender o modo pelo qual Jean-
Paul Sartre articula sua teoria da liberdade e a conecta à análise das dimensões corporais. De
acordo com isso, amparados por uma filosofia existencial do corpo, seremos capazes de
verificar como o racismo se manifesta ontologicamente, bem como as necessárias condições
para superá-lo. Nesta perspectiva, este texto também revela que uma filosofia existencialista, tal
como a elaborada por Sartre, aponta para as dificuldades inerentes à realidade humana e,
quando possível, tenta encontrar as devidas soluções sem recorrer a um contexto metafísico e
distante da concretude da realidade. Por fim, esta discussão também enfatiza que a liberdade é
absoluta e, consequentemente, jamais poderá ser eliminada da estrutura ontológica do indivíduo.

Palavras-chave: Liberdade. Corpo. Racismo. Filosofia existencial. Realidade humana.

Abstract

This article consists of an opportunity which allows us to understand the way in which Jean-
Paul Sartre articulates his theory of freedom and connects it to the analyses of the body
dimensions. According to that, supported by an existential philosophy of the body, we will be
able to verify how racism manifests itself ontologically, as well as the necessary conditions to
overcome it. In this perspective, this text also reveals that an existentialist philosophy, such as
the one developed by Sartre, points to the difficulties inherent to human reality and, when
possible, tries to find out the appropriate solutions without resorting to a metaphysical context
that is far from the concreteness of reality. Finally, this discussion also emphasizes that freedom
is absolute and, consequently, can never be eliminated from the ontological structure of the
individual.

Key-words: Freedom. Body. Racism. Existential philosophy. Human reality.

1 Introdução
O papel desempenhado pelo filósofo é, muitas vezes, confundido com o de uma
perspectiva complexa e distante dos problemas inerentes ao seu meio social; ou seja, a
tarefa relacionada ao filosofar adquiriu conotação de ser um tanto abstrata e de difícil
compreensão. No entanto, a filosofia é feita pelo ser humano e para o ser humano; em
outras palavras, proporciona uma análise crítica que não se limita às camadas mais
superficiais da cotidianidade. Ora, é exatamente nesse sentido que a reflexão onto-
fenomenológica de Jean-Paul Sartre (1905-1980) busca trazer à tona as dificuldades
fundamentais que envolvem o indivíduo e, consequentemente, escancara os medos, os
preconceitos, a angústia e a liberdade.
O pensamento de Sartre reflete a preocupação existencial de que o
homem deve fazer uma opção sempre que a sociedade, a política, a
família, a educação, os hábitos adquiridos o coloquem numa
encruzilhada de múltiplos caminhos. Pois, o homem pode escolher
entre ser covarde ou corajoso, cúmplice ou denunciador de crimes que
não praticou, acomodar-se a uma determinada situação, aceitar
determinada realidade que torna a aceitar ou combater, mas de
qualquer maneira deve afirmar-se nesta ou naquela situação e assumir
a responsabilidade da opção, atuando e participando, mesmo que tal
atuação e participação se tornem inquietantes e incômodas. (GILES,
1975, p. 293).
Amparando-nos nesses breves comentários, estamos aptos a indicar a finalidade
do presente texto; isto é, se dedicará a estabelecer, por meio da ótica sartriana, uma
reflexão acerca da corporeidade e, ao mesmo tempo, delineará os contornos que
permitem visualizar certa ligação junto ao tema do preconceito. Esta abordagem surge
em um momento bastante oportuno, pois as mais variadas formas de discriminação
estão cada vez mais presentes em nosso meio social e, frequentemente, são ignoradas
enquanto tais. Assim sendo, não incorreríamos em erro caso afirmássemos que
a insensibilidade é produto do racismo. Um mesmo indivíduo, ou
coletividade, cuidadoso com a sua família e com os outros
fenotipicamente parecidos, pode angustiar-se diante da doença de seus
cachorros, mas não desenvolver qualquer sentimento de comoção
perante o terrível quadro de opressão racial. (MOORE, 2007, p. 23).
Não obstante, antes mesmo de darmos continuidade, precisamos fazer uma breve
ponderação. A análise que aqui nos propomos não limitar-se-á a um tipo específico;
melhor dizendo, por se tratar de uma reflexão ontológica, nos esforçaremos no intuito
de captar os elementos que podem ser constatados nas mais diversas formas de
preconceito. Isso ocorre porque, mesmo aparentemente distintos, os tipos de
discriminação apresentam uma base comum que se manifesta por meio dos caracteres
ontológicos da intersubjetividade.
Findadas essas observações, para que seja possível a visualização da trajetória a
qual nos propomos trilhar, faz-se necessário traçar um roteiro que permita, ao mesmo
tempo, observar como o problema se insere e, de igual maneira, vislumbrar possíveis
soluções. Deste modo, em primeiro lugar, elucidaremos as três dimensões ontológicas
da corporeidade, tal como Sartre as propõe. Na sequência, ao passo que essa descrição
for se consolidando, estabeleceremos as devidas conexões que propiciarão compreender
a gênese do preconceito e, se possível, a maneira de enfrentá-lo.

2 A primeira dimensão ontológica da corporeidade: o corpo como ser-Para-si


No terreno filosófico, uma reflexão que pretenda estabelecer as relações que o
corpo mantém com a consciência se encontra dificultada porque o corpo adquiriu status
daquilo que possui leis próprias e, além disso, que pode ser definido unicamente por
caracteres externos. Em contrapartida, a consciência surge sob a necessidade de ser
descrita por fatores de absoluta interioridade. Esse é o ponto sobre o qual, pelo menos
inicialmente, iremos nos debruçar. Em face daquilo que Sartre nos informa, nota-se que
o problema do corpo e de suas relações com a consciência é
geralmente obscurecido pelo fato de começarmos considerando o
corpo como certa coisa dotada de leis próprias e susceptível de ser
definida do lado de fora, enquanto a consciência é alcançada pelo tipo
de intuição íntima que lhe é própria. (SARTRE, 2012, p. 385, grifo do
autor).
Essa dificuldade que acabamos de anunciar tem sua origem no pensamento
cartesiano, de modo mais evidente nas famosas Meditações metafísicas. De acordo com
isso, na segunda parte das referidas Meditações, Descartes (1596-1650) assume que a
alma é mais fácil de conhecer do que o corpo e, consequentemente, opera a completa
cisão entre aquilo que é uma característica corporal em oposição ao que pertence à
alma. Seguindo os passos do filósofo racionalista, podemos compreender o seguinte:
Considerava-me, inicialmente, como provido de rosto, mãos, braços e
toda essa máquina composta de ossos e carne, tal como ela aparece em
um cadáver, a qual eu designava pelo nome de corpo. Considerava,
além disso, que me alimentava, que caminhava, que sentia e que
pensava e relacionava todas essas ações à alma; mas não me detinha
em pensar em que consistia essa alma, ou, se o fazia, imaginava que
era algo extremamente raro e sutil, como um vento, uma flama ou um
ar muito tênue, que estava insinuado e disseminado nas minhas partes
mais grosseiras. (DESCARTES, 1973, p. 101).
Tendo estado diante dessa dificuldade, nossa ocupação mais urgente visa buscar
uma solução que evite cair num dualismo abissal e impossível de ser superado. Para
tanto, devemos fundamentar nosso caminho seguindo a proposta sartriana da
fenomenologia. Em razão disso, Sartre aponta que alguns fenômenos parecem estar
ligados ao corpo, tais como: a dor, o prazer, o mal-estar etc. Caso optemos por manter o
projeto cartesiano, ancorado na dualidade, esses fenômenos serão compreendidos como
signos ou afecções que, de alguma maneira, passam a habitar a consciência. Contudo, é
importante destacar que o arcabouço fenomenológico condena as teorias representativas
que advogam a favor da possibilidade de a consciência servir como um espaço capaz de
alocar as sensações corporais. Tal equívoco é por Sartre qualificado como ilusão de
imanência.
Husserl não cansa de afirmar que não se pode dissolver as coisas na
consciência. Vocês veem esta árvore aqui – seja. Mas a veem no lugar
exato em que está: à beira da estrada, em meio à poeira, só é curvada
sob o calor, a vinte léguas da costa mediterrânea. Ela não conseguiria
entrar em suas consciências, pois não é da mesma natureza que elas.
(...) A consciência e o mundo são dados de uma só vez: por essência
exterior à consciência, o mundo é, por essência relativo a ela.
(SARTRE, 2005, pp. 55-56).
No contexto em que nossa abordagem se insere, percebemos que não há
possibilidade de concebermos o Para-si e o mundo como dois polos hermeticamente
fechados em si mesmos. O Para-si, por meio de sua atitude de negação, é
intencionalmente relação com o mundo. Por um lado, ao negar-se como ser, faz com
que exista um mundo; por outro, ao assumir suas possibilidades, descobre o mundo
como utensilidade. Assim, podemos claramente afirmar que Sartre opera a
fenomenologia com amplo caráter de abertura; em outras palavras,
o objeto se encontra fora da consciência, não há mais representação,
assimilação ou nutrição (em nós) entre o objeto e a consciência; há,
agora, a presença do objeto como aparição porque já estamos diante
das coisas: a consciência e o mundo são dados de uma só vez, isto é, a
Fenomenologia exige uma aparição simultânea e interdependente da
consciência e do fenômeno. (FUJIWARA, 2020, p. 70, grifos do
autor).
A partir do que acabamos de entrever, caso concebamos o mundo desprezando
sua relação com o Para-si, estaríamos tratando de conceitos puramente abstratos que,
por sua vez, funcionariam em plena relação de exterioridade. Apenas por haver um
mundo, as relações nele encontradas dependem e se orientam em função dos projetos
inerentes à realidade humana. Vejamos um exemplo: ao observar um objeto qualquer,
com o auxílio de um telescópio, percebo que sua velocidade é bem maior se comparada
à percepção que eu possuía quando me abstinha de recorrer à ajuda do equipamento. Na
verdade, com ou sem o telescópio, a velocidade é a mesma; porém, o que muda é a
relação determinada pelo surgimento do Para-si. Portanto, é uma necessidade ontológica
que o conhecimento do mundo apareça comprometido em função daquilo que foi
estabelecido pelo indivíduo.
Ao considerar o corpo em sua modalidade Para-si, devemos dotá-lo de duas
contingências: em primeiro lugar, há a necessidade de o Para-si surgir como ser-aí. Isso
se justifica pelo fato de não haver, na realidade humana, o fundamento de seu próprio
ser. Em segundo lugar, se há a necessidade de comprometimento em um determinado
ponto de vista, é contingente que só possa sê-lo unicamente através de um ponto e que,
consequentemente, exclua os demais1. Essa dupla contingência faz com que o Para-si
seja, ao mesmo tempo, responsável por seu modo próprio de ser e totalmente
injustificável. Em resumo, “é esta dupla contingência, encerrando uma necessidade, que
denominamos facticidade do Para-si” (SARTRE, 2012, p. 391, grifo do autor).
Colocando-se em posição contrária à radical cisão cartesiana, o corpo não se
distingue de sua situação, uma vez que se identifica com o mundo inteiro. Em vista
disso, não seria correto afirmar que o ser humano experiencie o seu corpo para que
somente depois o mundo possa existir, ou vice-versa. Em síntese, o que ocorre é a
vivência da situação tendo como perspectiva uma unidade plena, unidade tal que o
vivido não se diferencia do vivente e o corpo se identifica com o mundo todo.
Seguindo essa toada, podemos igualmente mencionar que faz parte da estrutura
ontológica do Para-si o fato de que ele seja corpo, pois é por meio desse corpo mesmo
que haverá seu comprometimento no mundo. Em decorrência disso, nos encontramos
em condições de afirmar que a estrutura corpórea corresponde à individualização do
Para-si em seu livre projeto de vivência. Portanto,
o corpo é uma característica necessária do Para-si: não é verdade que
seja produto de uma decisão arbitrária de um demiurgo, nem que a
união da alma e do corpo seja a aproximação contingente de duas
substâncias radicalmente distintas; mas, ao contrário, advém
necessariamente da natureza do Para-si o fato de que ele seja corpo,
isto é, que seu escapar nadificador ao ser seja feito em forma de
comprometimento no mundo. (SARTRE, 2012, p. 392).
Apesar dos pontos levantados, ainda precisamos abordar um tema bastante
pertinente; dizendo mais assertivamente, se faz necessário observar a maneira pela qual
a configuração ontológica do corpo se liga ao problema do conhecimento sensível. Ora,
a urgência desse assunto ocorre porque o conhecimento sensível está intimamente
relacionado ao aparecimento dos sentidos. Eis o assunto que analisaremos em seguida.
Ao tratar do tema da corporeidade, Sartre percebe que a dificuldade inerente ao
conhecimento sensível se torna inevitável porque ela nos coloca perante dois objetos do
mundo: de um lado, temos o estimulado; de outro, o utensílio que serve como
estimulante. Ao mesmo tempo, essa dupla relação objetiva se expande e passa a

1
É interessante observar que essa noção contingencial de apreensão da perspectiva por apenas um ponto
já se encontra nos escritos husserlianos. O próprio Husserl afirma que, do ponto de vista material
(corpóreo), um determinado objeto é percebido somente de um modo. De acordo com o filósofo alemão,
“um vivido não se perfila. Não é um capricho casual da coisa ou uma casualidade de ‘nossa constituição
humana’ que ‘nossa’ percepção só possa se aproximar da própria coisa através de meros perfis dela. É, ao
contrário, evidente e se pode depreender da essência da coisa espacial (mesmo no sentido mais amplo,
abrangendo as ‘coisas visuais’) que um ser de tal conformação só pode ser dado, por princípio, em
percepções por perfil” (HUSSERL, 2006, p. 101, grifos do autor).
comportar quatro elementos: em primeiro lugar, como dissemos, temos o corpo a ser
estimulado; em segundo, há o estimulante; em terceiro, surge o Outro como objeto
psíquico, visto que o estimulante vai agir sobre o corpo do Outro 2. Finalmente, em
quarto lugar, nos deparamos com a linguagem, visto que se refere à maneira pela qual o
Outro pode nos informar a respeito das manifestações causadas pelo estimulante.
Dando sequência à linha de raciocínio do parágrafo anterior, é importante
destacar que não podemos conhecer, da mesma forma como o observador o faz, o órgão
que está sendo estudado. Assim, estamos diante de duas realidades distintas: meu
mundo e o modo como meu mundo aparece ao observador. Aos poucos, Sartre deixa
entrever o crescente papel que passa a ser desempenhado pelo Outro, papel esse que
dedicaremos especial atenção mais adiante.
Nesse contexto, o filósofo francês destaca que, em meio à experiência do
observador, aquilo que se encontra no meu mundo e no mundo do Outro não é uma
correspondência entre o objetivo e o subjetivo. Para facilitar nossa compreensão,
lancemos mão de um exemplo envolvendo um recipiente com água a uma temperatura
de 50º C. Ao colocarmos a mão em contato com a água, percebemos que apresenta uma
temperatura elevada. No entanto, procedamos ao segundo experimento: antes de
mergulhar minha mão no referido recipiente contendo água a 50º C, deixo minha mão
em repouso dentro de uma bacia com outra água, um pouco mais quente, a 60º C. Após
isso, retiro minha mão e a mergulho novamente no recipiente a 50º C. Notoriamente,
sentirei que a água a 50º C está fria. Trata-se de uma mudança subjetiva? A resposta é
não. O que se pode constatar é uma modificação objetiva no mundo; isto é, podemos
admitir que “essas leis nada nos informam sobre aparências, mas concernem a
estruturas sintéticas. Eu só intervenho aqui na medida em que meu surgimento no
mundo faz nascer o estabelecimento de relações entre os objetos” (SARTRE, 2012, p.
396, grifos do autor).
A contradição constatada nas diferentes temperaturas da água faz parte
unicamente do mundo objetivo. O grande problema surge ao se tentar compreender
mudanças objetivas como se fossem pertencentes às qualidades sensoriais. De fato, o
que ocorre é que a realidade humana intervém ao estabelecer as necessárias relações

2
Por razões de padronização terminológica, toda vez que o conceito “Outro” for utilizado, optaremos por
grafá-lo com letra maiúscula. Essa decisão não é arbitrária, visto que há momentos em que Sartre, bem
como os principais comentadores, divergem quanto à grafia. Assim sendo, sempre que a palavra “Outro”
for relativa à dimensão ontológica da intersubjetividade, daremos preferência ao maiúsculo.
entre tais objetos. Se a objetividade está escancarada, precisamos também apontar o que
se entende por subjetividade.
Com a finalidade de explicar o desenvolvimento do núcleo subjetivo, Sartre
lança mão do termo “inerência mágica”. Isso quer dizer que vivido e vivente são apenas
um; ou seja, a consciência é suas próprias sensações, mesmo que essas não derivem
daquela. Como consequência disso, podemos afirmar que, apoiando-se na
transcendência, o modo-de-ser-intencional-da-consciência vive o mundo a partir de uma
unidade sintética e a aparente dualidade que envolve mundo e consciência desaparece.
Em relação a isso,
a consciência não é o instrumento do corpo e Sartre afirma
explicitamente que o corpo não é o instrumento da consciência. (...) A
consciência existe incorporada. Sartre nos diz que o corpo é a
facticidade do Para-si, o fato de que seu ser exista situado no mundo.
(HOWELLS, 1999, p. 20, tradução nossa).
Tendo em vista a rejeição ao projeto dualista entre consciência e corpo, ainda
nos encontramos em meio a questionamentos que carecem de respostas. Quanto a isso,
o próximo passo de nossa investigação consiste em buscar elementos que nos ajudem a
melhor compreender os sentidos e o papel por eles desempenhados.
Sartre evidencia que os sentidos estão em toda parte porque, como ser-no-
mundo, a manifestação sensorial se apresenta em termos intencionais sob a definição de
consciência (de)3. Se percebo, por exemplo, que sobre minha mesa há um computador,
essa apreensão do objeto à visão se explica como consciência (de) computador.
Todavia, o olho, enquanto abertura à consciência, não se deixa conhecer; isto é, os
órgãos sensíveis, quando vistos por mim, são percebidos como objetos. Poder-se-ia
argumentar o seguinte: não posso ver e tocar meus dedos enquanto eles tocam alguma
coisa? A resposta é simples: tal possibilidade existe unicamente se assumo o ponto de
vista do Outro. Sempre que observo meu olho, minha mão ou meus dedos, o faço a
partir da perspectiva do Em-si, como se se tratassem de objetos. De tal modo, enquanto
Para-si, o sentido se torna inapreensível e se apresenta como unidade do vivido. Por fim,
se adoto sobre minha consciência um ponto de vista reflexivo,
encontrarei minha consciência de tal ou qual coisa-no-mundo, não
3
A utilização dos parênteses foi necessária porque a fenomenologia sartriana pressupõe uma ausência de
dualidade e, consequentemente, a preposição “de” foi utilizada apenas respeitando as normas sintáticas.
Ao afirmarmos que toda consciência é consciência (de), pode parecer que o ser-consciente se posicione
frente ao mundo sob a perspectiva dual. Na verdade, “compreendemos agora por que a consciência
primeira de consciência não é posicional: identifica-se com a consciência da qual é consciência. Ao
mesmo tempo, define-se como consciência de percepção e como percepção. (...) (Daqui por diante
colocaremos o ‘de’ entre parênteses, para indicar que satisfaz apenas a uma imposição gramatical)”
(SARTRE, 2012, p. 25).
meu sentido visual ou tátil; enfim, se posso ver ou tocar meus órgãos
sensíveis, tenho a revelação de puros objetos no mundo, não de uma
atividade reveladora ou construtora. E, contudo, o sentido está aí: há a
vista, o tato, o ouvido. (SARTRE, 2012, p. 400, grifos do autor).
Ao passo que logramos êxito em visualizar a dimensão Para-si dos sentidos,
recusamos sua compreensão como se fossem somente a soma das sensações. Devido a
isso, precisamos considerá-los como orientações. Ora, os objetos que compõem o
mundo aparecem de forma orientada. Imaginemos uma cena qualquer: ao lado do meu
computador, há um calendário feito de papel e, debaixo do calendário, há alguns livros
empilhados. Ora, a relação que une tais objetos é apenas de exterioridade e, por
conseguinte, a orientação deve se apresentar como estrutura constitutiva desses objetos.
Dessa maneira, as regras de aparição dos istos – objetos – não correspondem às
estruturas psicológicas, mas indicam relações que derivam das próprias coisas4.
Se o tinteiro me esconde um pedaço da mesa, isso não provém da
natureza de meus sentidos, mas sim da natureza do tinteiro e da luz.
Se o objeto diminui ao afastar-se, isso não deve ser explicado por não
sei qual ilusão do observador, mas sim pelas leis rigorosamente
externas da perspectiva. (SARTRE, 2012, p. 401).
O complexo que compõe o mundo é uma completa remissão a um conjunto de
coisas-utensílios. Percebemos, com isso, que o mundo não é um todo fechado em si
mesmo, mas sim uma abertura sempre indicativa de um conjunto. Como tivemos a
oportunidade de observar, um instrumento sempre remete a outro e, consequentemente,
há a necessidade de uma chave comum para que possamos estabelecer algum tipo de
compreensão, pois, do contrário, o mundo desvanecer-se-ia em indiferenciação.
Claro está que o mundo, em seu contexto conjuntural, é um complexo de
remissões. Entretanto, Sartre lança mão do conceito de corporeidade anímica; isto é, o
corpo-Para-si consiste na suspensão de todo ato remissivo. Isso significa que ele é o
objetivo de toda a ação. Imaginemos uma escrivaninha: sobre ela, há um computador
cujas teclas utilizo para digitar este texto. Podemos afirmar que a mesa indica o
4
No ponto em que nossa discussão se insere, a influência heideggeriana pode ser notada ao observarmos
a explicação de Sartre a respeito do ser-no-mundo e na maneira como a consciência intenciona os objetos.
Segundo Heidegger, o fenômeno da mundanidade é conjuntural; isto é, esboça uma relação entre
possibilidades que estão se descobrindo. Assim, a totalidade é a condição de manifestação das coisas e,
por sua vez, a vivência empreendida pela realidade humana se desvela em relação ao fundo de
possibilidades que advém do próprio mundo. Diante disso, o modo como a consciência vive o mundo não
descarta seu aspecto de abertura que, por princípio, é remissão e circunvisão – o horizonte humano é um
todo. Além disso, a mundanidade se desenrola como referência e, como deixamos evidente, leva em conta
os diversos objetos que compõem a realidade. Utilizemos, uma vez mais, outro exemplo: se o teclado do
computador me esconde os detalhes da superfície da mesa, isso não acontece por uma falha relacionada
ao modo pelo qual percebo o mundo, pois o próprio mundo se revela por conjuntura. Portanto, “embora
não de forma temática, o mundo já se descobre antecipadamente em todo encontro” (HEIDEGGER, 2014,
p. 133).
computador que, por sua vez, indica o teclado. Não obstante, não posso captar minha
mão como produto de uma remissão a mais; em outros termos, meu corpo é o ponto
final de uma atitude remissiva. Dito tudo isso, nos resta concluir que, através de uma
ação unívoca, eu-sou-minha-mão-no-ato-de-escrever; isto é, “minha mão é a suspensão
das remissões e seu ponto de chegada” (SARTRE, 2012, p. 408).
O conceito que empregamos no parágrafo anterior, corporeidade anímica,
distingue que há uma unidade relacional entre consciência e corpo. Ainda assim, é
preciso estabelecer uma característica importantíssima: se corpo e consciência se
integram em unidade absoluta, não sou capaz de adquirir qualquer tipo de conhecimento
em relação ao meu corpo. Isso acontece porque o viés epistemológico é possibilitado em
razão de um elemento que seja capaz de fazer com que eu adquira uma postura reflexiva
com relação a mim mesmo. Trataremos disso mais adiante e, no momento, convém
apenas ter em mente “que a consciência existe seu corpo como consciência; por isso, de
vez que não há consciência do corpo, este deve pertencer às estruturas da consciência
não-tética (de) si” (MOUTINHO, 1995, p. 71, grifo do autor).
Com a intenção de clarificar ainda mais a estrutura ontológica do corpo-Para-si,
podemos nos valer de um argumento que nos é oferecido pelo próprio Sartre e, em
consonância com isso, levantamos o seguinte questionamento: como a consciência vive
sua dor? Essa pergunta pode parecer simplória, mas sua resposta servirá para que
possamos verificar que corpo e consciência atuam sob uma perspectiva sintética e que,
consequentemente, exclui qualquer tipo de dualidade.
De início, devemos afirmar que a consciência não vive a dor por meio da
intencionalidade; se assim o fosse, teríamos que admitir a consciência como uma
espécie de atributo que, de alguma forma, viesse a habitar a matéria. Tomemos como
exemplo um fato corriqueiro; isto é, um desconforto nos olhos. Pois bem, se sinto dor
no olho, isso significa que minha consciência existe meu olho como dor. Assim sendo,
em meio à consciência, o fenômeno dor não se diferencia como sendo no globo ocular
ou em qualquer outra parte do corpo. No plano irrefletido, a dor não tem denominação,
pois a consciência apenas a vive. Em suma,
a dor é totalmente desprovida de intencionalidade. Entendamos bem:
se a dor se dá como dor “nos olhos”, não há nisso qualquer misterioso
“signo local” e tampouco conhecimento. Somente que a dor é
precisamente os olhos enquanto a consciência “os existe”. (SARTRE,
2012, p. 419, grifos do autor).
No entanto, precisamos tomar um cuidado especial ao tratar da dor. Agora há
pouco, ao estabelecermos que a consciência vive sua dor, não pretendemos afirmar que
a dor exista enquanto vivido puro. Sartre nos ajuda a compreender que a dor só pode ser
apreendida por meio de uma vinculação com o mundo. Por exemplo: eis que estou com
dor nas costas. Isso quer dizer que a vivencio como devendo andar mais devagar, exige
que eu tenha melhor postura ao utilizar o sofá, indica que preciso ter precaução ao
carregar algumas caixas que são pesadas etc. Diante de tudo que pudemos assinalar, nos
cabe destacar que “este desprendimento de si que caracteriza a consciência dolorosa,
contudo, não constitui a dor como objeto psíquico: é um projeto não-tético do Para-si;
só o apreendemos através do mundo” (SARTRE, 2012, p. 420).
3 A segunda dimensão ontológica da corporeidade: o corpo-Para-outro
Acabamos de descrever o modo Para-si do corpo. Como verificamos, Sartre
desmonta a tese cartesiana de que o corpo atua como um receptáculo para a consciência.
Além disso, ficou igualmente evidente que mundo e consciência não são dois todos
fechados em si mesmos; muito pelo contrário, a consciência não se apodera do mundo a
título de sobrevoo: ela o vivencia. Todavia, da mesma maneira como acontece com o
Para-si, o corpo se manifesta em outros planos ontológicos de existência. Em função
disso, a partir do momento que tenho consciência de mim, adquiro consciência do Outro
e sei que ele, por sua vez, tem consciência de mim.
Ter consciência de mim, por exemplo, encontra-se interligada em ter
consciência do Outro e em ter consciência de que este Outro constrói
uma consciência de mim. O sujeito está consciente de si sujeito e
percebe o Outro construindo uma percepção dele, ou seja, ele existe
para si ao nível da autoconsciência percebendo que existe para Outros.
(MOURA, 2012, p. 19).
A relação original entre os indivíduos não se limita ao fenômeno da
corporeidade. Na verdade, a manifestação fundamental entre meu ser e o ser do Outro
ocorre sob o vínculo de negação interna. Com efeito, o corpo do Outro deve ser
compreendido como uma revelação posterior: primeiro, o outro manifesta sua existência
como consciência; apenas depois é que apreendo sua estrutura corporal. O próprio
Sartre evidencia que
a aparição do corpo do Outro, portanto, não é o encontro primeiro,
mas, ao contrário, não passa de um episódio de minhas relações com o
Outro, e, mais especialmente, do que denominamos objetivação do
Outro; ou, se preferirmos, o Outro existe para mim primeiro, e capto-o
como corpo depois; o corpo do Outro é para mim uma estrutura
secundária. (SARTRE, 2012, p. 427, grifo do autor).
No momento mesmo em que transferimos nossa análise para o campo da
intersubjetividade, nos deparamos com um fator determinante; isto é, trata-se da atitude
de objetivação. Pois bem, o plano ontológico intersubjetivo faz com que duas
liberdades, a minha e a do Outro, convivam em um espaço comum. Devido a isso, “o
ser-visto me constitui como um ser sem defesa para uma liberdade que não é a minha
liberdade” (SARTRE, 2012, p. 344). Ao admitirmos essa mudança ontológica, a
realidade humana tem sua queda, pois percebe que o mundo não se constrói sobre uma
perspectiva unívoca. De fato, o Outro aparece como o organizador de um mundo ao
qual transcendo e utilizo. É exatamente em meio a esse panorama conflituoso que
iremos, agora, inserir as dificuldades relacionadas à corporeidade.
Diferentemente do que tivemos a oportunidade de compreender em relação ao
corpo-Para-si, o corpo do Outro consiste em um tipo de estrutura que me possibilita a
construção de um ponto de vista. Se quisermos ser mais objetivos, é lícito mencionar
que, a partir da captação do Outro como objeto, minha relação com ele se converte na
possibilidade de estabelecimento do ser-aí do conhecimento. Enquanto descrevíamos a
modalidade Para-si do corpo, assinalamos que não havia diferença alguma entre corpo e
consciência e, uma vez caracterizado por um monismo de princípio, o corpo não
consegue se conhecer ao mesmo tempo em que se manifesta como consciência-que-
vivencia-o-mundo. Entretanto,
pelo simples fato de que não sou o Outro, seu corpo aparece-me
originariamente como ponto de vista sobre o qual posso adotar um
ponto de vista, um instrumento que posso utilizar com outros
instrumentos. O corpo do Outro é indicado pela ronda das coisas-
utensílios, mas indica, por sua vez, outros objetos, e, finalmente,
integra-se em meu mundo e indica meu corpo. Assim, o corpo do
Outro é radicalmente diferente de meu corpo-para-mim: é a
ferramenta que eu não sou e que utilizo (...). (SARTRE, 2012, p. 428,
grifos do autor).
Tendo por parâmetro o trecho que acabamos de assinalar, percebemos que o
fenômeno da objetivação alcança um patamar tão elevado que os objetos que perfazem
meu mundo indicam um centro-de-referência-objeto que é o Outro. Seguindo nessa
seara, Sartre nos mostra que o Outro, enquanto indicado pelas coisas-utensílios, tem sua
presença revelada de forma lateral pelos objetos com os quais comumente estabelece
relações. Ora, mesmo que fisicamente esteja ausente, os objetos indicam a possibilidade
que o corpo do Outro pode vir a assumir em um determinado local. Imaginemos a
seguinte situação: eis que decido fazer uma visita a Pedro. Ao chegar em sua casa,
constato que se encontra ausente. Mesmo em face de sua ausência, os objetos que
encontro em seu lar me indicam seu corpo. Por exemplo: a cama é cama-em-que-Pedro-
faz repouso, as janelas são janelas-que-lhe-permitem-enxergar-a-rua, o cinzeiro é o
objeto-no-qual-Pedro-deposita-as-cinzas-do-cigarro-que-fumou-ontem etc. Mesmo que
Pedro, de repente, se fizesse presente, em nada alteraria a disposição do lugar, pois seu
corpo seria simplesmente agregado ali. Portanto, de forma bem simples, “o que define a
contingência de Pedro e a minha não é somente nosso encontro de hoje; sua ausência de
ontem definia igualmente nossas contingências e facticidades” (SARTRE, 2012, p. 430,
grifo do autor).
Acabamos de sinalizar que a súbita aparição de Pedro não altera de modo
significativo o lugar que até então era contemplado em sua ausência. Não obstante, em
nível ontológico, o surgimento de Pedro gera uma mudança fácil de ser percebida; isto
é, sua presença faz com que, na modalidade de objeto, eu possa utilizá-lo diretamente.
Em decorrência disso, nos vemos perante duas consequências imediatas: em primeiro
lugar, o Outro manifesta explicitamente a contingência de seu ser; ou seja, percebo que,
tal como eu, ele existe como Para-si coagulado. Em segundo lugar, a presença tem a
capacidade de presentificar as características que até então haviam sido verificadas por
meio das coisas-utensílios.
Nesse contexto, a aparição imediata do Outro me permite captar seu corpo como
um Em-si. Trata-se de um objeto em meio a outros objetos que, consequentemente,
posso utilizar de acordo com as possibilidades próprias de meu ser. Contudo, mesmo
que o corpo alheio se enquadre na categoria de Em-si, não pretendemos afirmar que
tenha perdido sua capacidade de ser um polo reorganizador de uma realidade que me
pertença. Assim, por estar vivo, o corpo do Outro não pode ser concebido como um
objeto isolado e que mantenha apenas relações de exterioridade com os demais
utensílios. Tal fato acontece apenas com o cadáver. Perante o olhar-objetivador, claro
está que ocorre uma modificação de ordem ontológica e, assim, o Para-si se coagula em
uma opacidade; porém, não se trata de uma opacidade plena, tal como aquela que
encontramos em um indivíduo sem vida, pois o circuito de ipseidade daquele que é
vitimado pelo olhar pode reagir e lutar para reconquistar seu ser. Em se tratando disso,
Sartre deixa claro que
o Outro faz de mim mero instrumento de seus possíveis, se assim o
desejar. O Outro, se o quiser, nega os meus possíveis e faz de mim um
simples meio para realizar os fins que pretender. Se alguém me
surpreende espiando por um buraco de fechadura e tento escapar à
vergonha, escondendo-me em um canto escuro, o Outro pode
adiantar-se a mim e iluminar o local com sua lanterna. (PERDIGÃO,
1995, p. 146).
O Outro é originariamente corpo em situação. Isso significa que ele é um centro
de referência que organiza as mais diversas situações. Logo, não há possibilidade de
conceber o corpo do Outro apartado de uma relação. Ora, pretendemos afirmar que a
perspectiva intersubjetiva relacionada à corporeidade é significante; ou seja, não há
meios de visualizá-la isolada da situação geral. Perceba, por exemplo, uma pessoa
qualquer jogando futebol: seria um equívoco tratar de um pé que chuta uma bola como
se fosse uma relação isolada e fechada em si mesma. Na verdade, trata-se de uma
conjuntura pé-bola-gol e toda a situação se desenrola tendo em vista essa perspectiva
global. Em síntese,
o corpo é totalidade das relações significantes com o mundo: nesse
sentido, define-se também por referência ao ar que respira, à água que
bebe, à carne que come. O corpo, com efeito, não poderia aparecer
sem manter relações significantes com a totalidade do que é.
(SARTRE, 2012, p. 433).
Em seus escritos, Sartre se esforça para manter uma clareza em sua análise da
ontologia do corpo-Para-outro. Com a intenção de explicar como a percepção do corpo
do Outro se distingue daquelas relacionadas aos demais objetos do mundo, o filósofo
nos coloca diante de duas assertivas: em primeiro lugar, como já evidenciamos, não
podemos captar o corpo do Outro fora da totalidade de uma situação; em segundo lugar,
não é possível apreender isoladamente um órgão ou parte isolada do corpo do Outro, de
modo que cada parte e cada órgão são indicados pela totalidade sintética da vida.
Vamos, agora, nos aprofundar um pouco mais em relação ao que acabamos de assinalar.
No tocante ao primeiro ponto, o movimento inerente ao corpo do Outro se dá
dentro de limites espaciais e temporais. Utilizemos, outra vez, mais um exemplo para
facilitar nossa compreensão. Imaginemos alguém esboçando o movimento de pegar um
copo d’água. É esse copo mesmo a significação do gesto que consigo captar quando um
determinado indivíduo se põe a fazê-lo. Em relação ao aspecto temporal, sempre
apreendo aquilo que é presentemente revelado a partir de termos futuros; isto é,
compreendo o corpo por aquilo que ele está prestes a executar, mesmo que ainda não o
tenha feito. Em se tratando disso,
o corpo do Outro é percebido de modo totalmente diferente dos
demais corpos; porque, para percebê-lo, vamos sempre do que está
fora dele, no espaço e no tempo, a ele mesmo; captamos sua atitude “a
contrapelo” por uma espécie de inversão do tempo e do espaço.
Perceber o Outro é fazer anunciar através do mundo aquilo que ele é.
(SARTRE, 2012, p. 434).
No que diz respeito ao segundo ponto, ao contemplar o corpo do Outro, um
órgão qualquer não é percebido isoladamente; ou seja, percebe-se um corpo que, ao
fundo, utiliza determinados órgãos para executar tal ou qual ação. Isso explica o horror
que sentimos quando presenciamos uma cena de assassinato, na qual o corpo da vítima
fora esquartejado. Em outras palavras, o pavor ocasionado pelo esquartejamento tem
sua origem no fato de que somos obrigados a perceber o corpo do Outro separado de sua
totalidade sintética. Portanto, “jamais percebo um braço erguendo-se em um corpo
imóvel: percebo Pedro-que-levanta-a-mão. (...) Aqui, o todo é que determina a ordem e
o movimento das partes” (SARTRE, 2012, p. 435).
Tendo como foco o delineamento da unidade sintética corporal, Sartre não aceita
a tese criada pelo psicologismo clássico de que o corpo esconde fenômenos que
ocorrem em seu interior. Na verdade, as expressões corporais não correspondem à
manifestação de sentimentos ocultos; ou seja, elas são esses sentimentos. Eis que
estamos caminhando pela rua e nos deparamos com alguém que, com os punhos
fechados, discute agressivamente com outra pessoa. O resultado da cena que acabamos
de presenciar é bastante claro, visto que não há diferença alguma entre o punho fechado
e o sentimento de raiva expresso pelo indivíduo. No exemplo que acabamos de
verificar, o objeto psíquico, a raiva, consiste na própria manifestação corporal, punho
fechado e voz alterada. Em suma, “o corpo é o objeto psíquico por excelência, o único
objeto psíquico (SARTRE, 2012, p. 436, grifos do autor).
Nos parágrafos anteriores, deixamos claro que, diferentemente do corpo-Para-si,
o corpo-Para-outro se adequa às estruturas do conhecimento. De modo geral, enquanto
vivo meu corpo, não posso me colocar diante dele assumindo uma perspectiva
epistemológica. Todavia, uma vez que a intersubjetividade tenha sido firmada, sou
capaz de conhecê-lo. É exatamente neste momento que podemos tratar do conceito de
caráter.
De acordo com a ontologia de Sartre, o caráter só pode se tornar objeto do
conhecimento em função do Outro. Quando excluímos a abertura intersubjetiva, a
consciência não mantém uma vinculação cognoscitiva junto ao modo de ser de si
mesma. Com isso, Sartre pretende nos informar que a consciência conhece seu caráter
unicamente por causa da intervenção de outrem. O próprio filósofo é bastante
contundente ao mencionar tal ponto. Para ele,
a consciência não conhece seu caráter – salvo determinando-se
reflexivamente a partir do ponto de vista do Outro; ela existe seu
caráter em pura indistinção, não tematicamente e não teticamente, na
experiência que faz da própria contingência e na nadificação pela qual
reconhece e transcende sua facticidade. Daí por que a pura descrição
introspectiva de si não manifesta qualquer caráter (...). (SARTRE,
2012, p. 438).
Ao final da descrição da segunda modalidade ontológica do corpo, quais
novidades surgiram? Primeiramente, conseguimos perceber que o corpo-Para-si é
radicalmente distinto do corpo-Para-outro. Essa diferenciação não se limita ao aspecto
comportamental e pode ser explicada unicamente por fatores ontológicos. Em segundo
lugar, a abertura intersubjetiva nos permitiu compreender que corporeidade e
objetividade são conceitos inseparáveis. Portanto, “algo do que posso saber de mim
somente se cristaliza pelo Outro. Porque o modo como sou não é em geral objeto de
consciência tética para mim mesmo” (SILVA, 2004, p. 188).

4 A terceira dimensão ontológica da corporeidade: meu corpo conhecido pelo


Outro
Após termos percorrido as duas modalidades iniciais referentes à corporeidade,
estamos prestes a compreender a maneira pela qual existo meu corpo para mim como
conhecido pelo Outro. A tarefa que agora se impõe tem por meta descrever a relação
existente entre o corpo-Para-si e o corpo-Para-outro e, além disso, é neste exato ponto
que teremos a oportunidade de observar a gênese do problema do preconceito.
Diante da presença do Outro, através do seu olhar, sou capaz de experimentar a
revelação de meu ser-objeto. Em decorrência disso, a captação de minha facticidade não
se dá apenas como existindo, mas encontra-se numa fuga constante em direção a um
ser-no-meio-do-mundo. Esse acontecimento é um tipo que, por princípio, me escapa.
Trata-se da aparição de uma hemorragia ontológica. Com isso, em geral, somos capazes
de notar que “o olhar do Outro se situa além do mundo, isto é, sua presença se ergue
como transcendência onipresente e irredutível à minha. O Outro se impõe como
liberdade infinita, como consciência que subjuga minhas possibilidades” (BORNHEIM,
2011, p. 88).
Tendo em vista a mudança de perspectiva ocasionada pelo olhar, vale enumerar
duas consequências daí decorrentes: num primeiro momento, tal como tivemos a chance
de apreciar, enquanto vivo meu corpo, estou impossibilitado de conhecer meus sentidos.
Todavia, diante do olhar alheio, os sentidos são apreendidos por Outros. Nessa seara,
todo o meu aparato sensorial adquire a característica de um objeto; ou seja, o Outro o
aprecia da mesma forma como percebo a mesa e o caderno que se encontram sobre
minha escrivaninha. Em segundo lugar, meu corpo-para-mim é um instrumento que sou
e que não posso utilizar. Contudo, à medida em que sofro a transcendência oriunda do
Outro, meu corpo se manifesta como uma ferramenta-entre-ferramentas. Isso quer dizer
que há um escoamento do meu ser e que, ao mesmo tempo, não possuo controle algum.
Com efeito, esse escoamento será retomado pelo Outro em sua própria maneira de ser.
Enfim,
este conjunto de sentidos, que não podem captar-se a si mesmos, é
dado como captado em outro lugar e por outros. (...) Para o Outro,
meus sentidos são tal como esta mesa ou esta árvore são para mim;
estão no meio de algum mundo; são no e pelo escoamento absoluto de
meu mundo rumo ao Outro. (...) Da mesma forma, meu corpo é para
mim o instrumento que não sou e não pode ser utilizado por qualquer
instrumento; mas, na medida em que o Outro, no encontro original,
transcende meu ser-aí rumo às suas possibilidades, este instrumento
que sou é presentificado a mim como instrumento submerso em uma
série instrumental infinita, embora eu não possa, de modo algum,
adotar um ponto de vista de sobrevoo sobre esta série. (SARTRE,
2012, p. 442, grifos do autor).
A terceira dimensão ontológica do corpo traz ainda uma característica muito
interessante, pois é por meio dela que temos a oportunidade de adquirir conhecimentos
acerca de nós mesmos. Vejamos como isso acontece. Na primeira dimensão ontológica,
observamos a dor como algo padecido (vivido). Pois bem, em razão disso, todo e
qualquer conhecimento desse mal depende dos aprendizados que pude obter com o
Outro. No intuito de melhor compreendermos tal acontecimento, observemos um
exemplo: a dor de cabeça é um vivido doloroso. No entanto, devido aos conhecimentos
proporcionados pelo Outro, posso apreender essa dor como algo objetivo. Assim, a
referida dor pode se apresentar como uma lesão superficial no cérebro, pode ser
indicativa de um traumatismo craniano e, na pior das hipóteses, pode ser concebida
como um tumor que se forma em sua parte central e que não há cura. O saber que
adquiro sobre o mal, que até então era somente padecido pela consciência, me é
transmitido pelo médico. Em síntese, “a compreensão de si fundamenta-se no
reconhecimento da coexistência e, ao mesmo tempo, como ponto de partida para a
compreensão do Outro” (MOURA, 2012, p. 34).
Ainda na perspectiva que estávamos descrevendo, é por meio do saber objetivo
que tomo conhecimento de minha caixa craniana; ou seja, é assim que entendo que uma
determinada lesão cerebral pode ser grave ou não, é desse jeito que percebo o cérebro
como um órgão dotado de uma forma arredondada e que apresenta ondulações que não
seguem um padrão específico. O conceito qualitativo de enfermidade existe apenas na
dimensão do Para-outro. Isso se deve ao fato de que o mal, até então vivido, se
metamorfoseia em algo objetivamente discernível para os Outros. De modo geral, o
Outro está me ensinando a respeito de minha própria doença. Portanto, em relação a
isso, “os Outros me ensinaram a seu respeito, os Outros podem diagnosticá-la; está
presente para os Outros, mesmo quando não tenho qualquer consciência dela”
(SARTRE, 2012, pp. 446-447).
Apesar de tudo, mesmo que o Outro me ensine a respeito de minha estrutura
corporal, Sartre enfatiza que o ódio, caracterizado pelo preconceito, não se restringe
unicamente ao corpo. De fato, está atrelado ao modo pelo qual a consciência vive o
mundo; isto é, se expande até os confins mais íntimos do ser. Segundo o filósofo, o
preconceito “chega ao corpo pela mente; é um estímulo da alma, mas tão profundo e
total que chega ao plano fisiológico, como ocorre na histeria” (SARTRE, 1995, p. 10).
Levando-se em conta essas circunstâncias, inicialmente, tomemos como ponto
de análise o preconceito direcionado ao povo judeu. No momento em que um
determinado grupo vive sua contingência, seus atributos mais peculiares não passam de
uma massa indiferenciada; em outras palavras, o judeu em meio a outros judeus é
somente um indivíduo a mais. A dinâmica do processo se altera ao passo que o contato
com o Outro, com o diferente, se torna mais acentuado. Devido a isso, o judeu vivencia
sua situação-judaica porque está em uma sociedade que o considera como tal. A
ontologia sartriana da intersubjetividade deixa evidente que,
quanto mais tardia a descoberta, mais violento o abalo: de repente,
percebem que os Outros sabiam sobre eles uma coisa que
desconheciam, que se aplicava a si próprios esse qualificativo
equívoco e inquietante que não se usa em sua casa. (SARTRE, 1995,
p. 50).
Aos poucos, o dilema do preconceito vai tomando forma. Conforme sinalizamos,
uma vez que o judeu esteja sob o olhar do Outro, permanece petrificado na categoria de
objeto. Com efeito, o povo semita aloca-se na posição de um constante interrogar-se
acerca de um personagem que lhe é imposto e tal personagem não detém um roteiro
pronto a ser seguido; na verdade, ele precisa se encaixar ao modo de ser da situação tal
qual se manifesta ou, com esforço, se rebelar e não aceitar como palavra última aquilo
que lhe é atribuído. Acatar a situação como se não houvesse saída é fazer de sua
estrutura ontológica algo engessado e, por si só, contrária à dinamicidade da liberdade.
Estaríamos nos domínios da má-fé. Do contrário, fazer pulsar as escolhas, decidir-se por
um ou outro caminho, questionar e sentir-se angustiado fazem parte de um modo de ser
que exclua o caráter determinístico que, por sua vez, não se justifica em meio ao mundo
humano.
O exemplo que acabamos de utilizar, a respeito do judeu, poderia ser expandido
em direção a outros tipos de preconceito. Para que possamos garantir a validade da
reflexão que aqui estamos construindo, precisamos observar mais dois exemplos: em
primeiro lugar, prestaremos atenção ao caso de Jean Genet (1910-1986);
posteriormente, observaremos o papel desempenhado pelo negro.
Sartre dedica parte de seus escritos a elaborar uma espécie de psicanálise
existencial sobre Genet. Nesse contexto, além de termos a possibilidade de apreciar
passagens da vida do referido intelectual, temos a oportunidade de compreender o
decisivo papel que a intersubjetividade exerce em seu modo de ser. Ainda em tenra
idade, Genet foi pego cometendo o ato de furtar algo; porém, o que foi furtado é o que
menos nos interessa aqui. Ora, nosso objetivo central consiste em compreender a
situação global e, consequentemente, o poder que o Outro exerce nessa ação.
Colhido por um olhar, borboleta espetada num pedaço de cortiça, ele
está nu, todos podem vê-lo e escarrar nele. O olhar dos adultos é um
poder constituinte que o transformou em natureza constituída. Agora,
é preciso viver; no pelourinho, com o pescoço no garrote, é preciso
viver: não somos torrões de argila e o importante não é o que fazem de
nós, mas o que nós mesmos fazemos com o que fizeram de nós. Pela
opção que tomaram sobre o seu ser, as pessoas honestas coagiram uma
criança a decidir prematuramente sobre si mesma; podemos adivinhar
que essa decisão será capital. Sim, é preciso decidir, e matar-se
também é decidir. Ele escolheu viver, disse contra todos: serei o
Ladrão. Admiro profundamente essa criança que se quis, sem
hesitação, na idade em que estamos ocupados apenas em macaquear
servilmente, para sermos agradáveis. Uma vontade tão feroz de
sobreviver, uma coragem tão pura, uma confiança tão louca no seio do
desespero darão seu fruto: dessa resolução absurda nascerá, vinte anos
depois, o poeta Jean Genet. (SARTRE, 2002. p. 61, grifos do autor).
Ao lermos atentamente o trecho acima, percebemos que Genet vive plenamente
a experiência de se tornar objeto. O acontecimento do olhar foi fundamental para que a
criança pudesse construir aquilo que mais tarde viria a ser um intelectual de renome. Por
outro lado, Sartre sublinha que a imposição gerada pelo Outro não é definitiva, de modo
que cabe àquele que é alvo do olhar decidir por qual caminho sua vida irá seguir. A
existência, de forma alguma, deve ser percebida como algo fechado e concluído, pois a
chave para moldar uma determinada situação se encontra nas próprias mãos do
indivíduo. Assim, o Para-si está sempre em aberto, é um livre-projeto que se desdobra e
se modifica dia após dia.
Diferentemente do preconceito sofrido pelo judeu, que pode mascarar sua dor de
forma inautêntica, o negro, por sua vez, é arremessado em sua situação e,
consequentemente, está incapacitado de escondê-la. Se quisermos ser mais objetivos,
poderíamos argumentar que o negro traz no corpo sua própria situação. Contudo, tal
como acontece ao judeu, a diferenciação inerente à cor da pele, quanto ao negro,
adquire seu caráter objetivado unicamente em função do Outro. Em se tratando disso,
Sartre nos permite enxergar que
o preto sofre o seu jugo, como preto, título de nativo colonizado ou de
africano deportado. E, posto que o oprimem em sua raça, e por causa
dela, é de sua raça, antes de tudo, que lhe cumpre tomar consciência.
(...) O negro não pode negar que seja negro ou reclamar para si esta
abstrata humanidade incolor: ele é preto. (SARTRE, 1965, p. 98).
O peso da objetivação que recai sobre o negro, como dissemos, o lança
diretamente em sua situação. Não resta outra saída senão assumir sua negritude.
Todavia, a vivência plena do ser-negro não passa ilesa em meio ao coeficiente de
adversidades que é imposto pelo próprio fenômeno da objetivação; ou seja, a própria
linguagem se apresenta para ele como uma hierarquia que o obriga a pensar a realidade
negra através de um vocabulário branco. Em razão disso, por exemplo,
o negro antilhano será tanto mais branco, isto é, se aproximará mais
do homem verdadeiro, na medida em que adotar a língua francesa.
Não ignoramos que esta é uma das atitudes do homem diante do Ser.
Um homem que possui a linguagem possui, em contrapartida, o
mundo que essa linguagem expressa e que lhe é implícito. (FANON,
2008, p. 34).
Tendo adentrado esse emaranhado de dificuldades, poderíamos levantar o
seguinte questionamento: a possibilidade ontológica de superação do preconceito está
fadada ao fracasso? A resposta é não. Como exaustivamente explicamos nos parágrafos
acima, ao surgir o aspecto objetivador gerado pela intersubjetividade, começamos a
compreender características relacionadas a nós mesmos a partir daquilo que o Outro nos
informa. Por causa disso, se pretendemos, de alguma maneira, superar esse problema,
teremos que retirar das mãos do Outro as características que ele insinua sobre nós
mesmos. Vejamos como isso acontece.
Apoiando-se ainda no preconceito relacionado ao negro, conseguimos verificar
que, ao assumir sua negritude, o negro faz de seu modo de vida algo que se afasta da
passividade e, assim, consciente de sua situação, a assume por completo. Não obstante,
há a possibilidade de o negro recusar sua situação, não se enxergar como negro e até
mesmo admitir a inexistência do preconceito a ele dirigido. Nesses casos, a tarefa é mais
complexa porque o oprimido fez da opressão seu modo particular de vida; por
conseguinte, ao invés de visualizar um agir autêntico que afaste o sofrimento, acaba por
aceitar o ato de sofrer e, então, o normaliza. Se prestarmos bastante atenção,
conseguiremos perceber que, a partir do momento em que o negro assume sua negritude
e suas dificuldades, ele começa a redigir sua própria história. Os efeitos do abandono da
passividade podem ser encontrados no plano ôntico como uma reverberação daquilo que
acontece na dimensão ontológica5; ou seja, os movimentos coletivos, as rodas de
capoeira e o samba nada mais são do que o esforço para solapar o papel de escravo e,
finalmente, a oportunidade de assumir a dimensão de senhor.
A bem dizer, a negritude não é uma passividade, porquanto “fura a
carne do céu e da terra”: é uma “paciência” e a paciência aparece
como uma imitação ativa da passividade. A ação do negro é antes de
tudo ação sobre si. A noite se levanta e se imobiliza qual um
encantador de pássaros e as coisas vêm empoleirar-se nos galhos desta
falsa árvore. Trata-se na verdade de uma captação do mundo, mas
mágica, pelo silêncio e pelo repouso: agindo primeiramente sobre si, o
negro pretende conquistar a Natureza conquistando-se. (SARTRE,
1965, pp. 115-116).
O esforço para tomar as rédeas da situação não se limita às atitudes dos negros,
visto que a sociedade contemporânea está cada vez mais consciente do papel que deve
desempenhar. Nessa perspectiva, por exemplo, o programa desenvolvido pelo
movimento LGBTQIA+ é um processo cuja finalidade está em consonância com aquele
pretendido pelos negros e que tratávamos acima. Poderíamos citar uma série de outros
exemplos. Na verdade, precisamos considerar que a realidade humana é
ontologicamente livre e, como tal, as dificuldades infligidas pelas mais diversas
situações, incluindo as imposições do Outro, demonstram que todo coeficiente de
adversidade se origina unicamente em função de um projeto livremente estabelecido.
Portanto, mesmo frente a um panorama de forte coerção social, a liberdade desponta
como caractere assegurador de um modo de agir autêntico.
O coeficiente de adversidade das coisas, em particular, não pode
constituir um argumento contra nossa liberdade, porque é por nós, ou

5
É necessário que tenhamos muito cuidado nessa parte. Ao afirmar que os acontecimentos da dimensão
ontológica reverberam no plano ôntico, não pretendemos postular um modelo que se afigure como se uma
realidade interna fosse capaz de promover mudanças exteriores. Esse posicionamento em favor de uma
dinâmica interior-exterior não faz sentido em se tratando de uma ontologia fenomenológica. Diante do
que aqui estamos discutindo, pretendemos apenas evitar possíveis equívocos e, consequentemente,
apontar que a dimensão ôntica nada mais é do que a explicitação não-dual de uma modalidade ontológica
do ser em geral.
seja, pelo posicionamento prévio de um fim, que surge o coeficiente
de adversidade. (...) É nossa liberdade mesmo que deve constituir
previamente a moldura, a técnica e os fins em relação aos quais as
coisas irão manifestar-se como limites. (SARTRE, 2012, pp. 593-594,
grifos do autor).

5 Conclusão
O texto que acabamos de percorrer nos permite perceber que a reflexão
filosófica está longe de se manter como algo puramente abstrato. Mais especificamente,
a ontologia sartriana reforça que os empreendimentos humanos são o ponto de partida
para que possamos compreender os pormenores que delineiam o horizonte da
existência. Seja em casa, no trabalho ou mesmo nas amarguras de um relacionamento
que terminou em fracasso, o ser humano segue intermitentemente construindo seu modo
de agir. Além disso, essa ação possibilita vislumbrar os caminhos trilhados pela
sociedade, bem como sua constituição histórica.
Ao abordar as dimensões ontológicas da corporeidade, tivemos a chance de
notar que a perspectiva mecanicista não pode ser usada para descrever um tipo de
realidade que, por princípio, seja humana e em constante processo. Da mesma forma, os
sucessos e as mazelas que invadem a cotidianidade não se encontram restritas umas às
outras; ou seja, estão dispostas em meio a um circuito que só pode ser explicado pela
totalidade sintética que encerra o modo próprio de agir do homem. Desse modo, sempre
que nos referimos ao ser humano, estamos igualmente nos referindo ao complexo de
situações que engendram sua existência.
Ora, seja qual for o tema a ser discutido, as dificuldades e suas possíveis
soluções dependem unicamente do vértice que repousa na liberdade. No entanto, a
configuração do problema tende a se dificultar quando nela inserimos a noção de
intersubjetividade, pois, do contrário, tudo se resumiria a um solipsismo radical. Em
face disso, podemos verificar que não basta ser livre, mas é igualmente necessário
perscrutar a existência humana e, se possível, questioná-la a respeito do modo como
essa liberdade se comporta num mundo cada vez mais desafiador, intolerante e
instigador do conflito.
Por fim, não sejamos ingênuos a ponto de pensar que um dado contexto
desafiador implique na restrição do livre agir. Muito pelo contrário, as próprias
dificuldades são necessárias para compreendermos que homem e liberdade não se
diferenciam e, assim, constituem faces da mesma moeda. Portanto, a ontologia de Sartre
nos recorda que o pecado original não é aquele iniciado por Adão e Eva no Jardim do
Éden; em outras palavras, o que diferencia o homem da concepção de uma figura
angelical se resume ao fato de que suas escolhas estão sempre abertas, refletem sua
finitude e significam ainda que consequências imediatas irão surgir dali.

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