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Claude Zilberberg *
A mestiçagem pode ser tudo, menos moderna. Quanto à palavra em si, o Grand Robert traz
como étimo o baixo-latim mixticus, de mixtus “misturado”, e data seu aparecimento do século
XII. Seja para os pecuaristas e jardineiros de ontem, seja para os biólogos de hoje, a
mestiçagem na ordem humana, o cruzamento na ordem animal e a hibridação na ordem
vegetal são práticas antigas e recorrentes, constituindo, como tais, objeto de uma rigorosa
gramática. Reduzida a seu étimo e a sua genericidade, qual seja, a mistura, a mestiçagem é
portanto uma prática semiótica figural, alheia em si mesma à temporalidade, e esta última só
reaparece no campo discursivo sob duas restrições: a novidade, aparente ou efetiva, de alguma
mistura em um certo domínio e, eventualmente, o estilo da mistura efetuada, se um dia for
proposta uma tipologia analítica das misturas.
1. TONICIDADE E MISTURA
ascendência
intensidade
decadência
triagem mistura
[concentração] extensidade [difusão]
A constituição do sentido estaria situada na junção entre uma medida intensiva e um número
extensivo. Em nome da “exigência de simplicidade”, terceiro e decisivo componente do
“princípio de empirismo” de Hjelmslev, admitimos que o afeto, aqui considerado como
unidade de contagem imaginária do sensível, é definido em primeiro lugar por sua valência
intensiva vivenciada. Para dizê-lo sem rodeios: se, de acordo com Cassirer, “a dificuldade é
menos o conteúdo da mitologia do que a intensidade com a qual ele é vivido [...]” 3 , não se vê
bem como o afeto poderia, desse ponto de vista, permanecer relegado ao segundo plano,
quando comparado ao mito. O presente do afeto é sua medida constatada e proclamada pelo
sujeito. Com isso, nada fazemos senão transpor e ampliar a noção de “regulação” concebida
por Greimas acerca das paixões, nas páginas finais do texto intitulado “De la colère” 4 . A
nosso ver, o número está para a extensidade assim como a medida está para a intensidade.
A extensidade verifica a divisão das grandezas em classes enumeráveis e a instabilidade
dessa divisão. Uma dada classe compreende [n] termos, mas pode “ganhar” outros e passar a
valer como [n + 1] ou, ao contrário, “perder” outros e apresentar-se então como [n – 1],
enquanto permanecer potencializada a situação anterior. Como aponta o Dicionário de
semiótica: “Na lingüística, as coisas se sucedem de outro modo: aí o discurso conserva os
traços das operações sintáxicas anteriormente efetuadas [...]” 5 . Em nossa opinião, a divisão
em classes deve ser tratada pelas categorias com que Saussure especifica sua concepção do
signo no Curso, a saber, a arbitrariedade e a mutabilidade; isso equivale a assumir que uma
dada classe é efetiva, da ordem do é assim e não de outro modo! Uma classe pode então ser
comparada a um recinto bem guardado, ou ainda a um templum, na acepção etimológica do
vocábulo, que veda a saída para aqueles que estão dentro, bem como proíbe a penetração
daqueles que estão fora. A composição de uma classe em uma determinada cultura revela-se
3
E. Cassirer, La philosophie des formes symboliques, tomo 2, op. cit., p. 20.
4
A. J. Greimas, “De la colère, étude de sémantique lexicale”, in Du sens II, Paris, Les Éditions du Seuil, 1983, p.
241.
5
A. J. Greimas & J.Courtés, Dicionário de semiótica. Trad. Alceu Dias Lima et al., São Paulo, Cultrix, s. d.
[1983], p. 366. Essa temporalização, por sua vez, pede uma aspectualização complexa na qual se encadeiam:
memória → memória do esquecimento → esquecimento do esquecimento → esquecimento. A concessão
permite postular, como um possível, a reminiscência.
um dado de fato – na acepção do termo em Valéry 6 – e os discursos míticos de legitimação,
os argumentos em seu favor, as demonstrações com vistas a dissimular o fato em direito,
longe de levar até ela, procedem dela. Nessa matéria, a intersubjetividade, isto é, o olhar
surpreso, primeiro dos missionários, e depois dos antropólogos e etnólogos, cumpre o papel
de um acelerador, de um catalisador – e não mais que isso. Um exemplo tomado a Cassirer
elucida esse comércio da arbitrariedade e da motivação: “As línguas banto também fazem
uma distinção rigorosa, em seu sistema de classificação, entre os homens, vistos como
personalidades que agem de maneira autônoma, e toda espécie de ser animado que não seja
pessoal. Por isso, elas empregam um prefixo particular para os espíritos, na medida em que
estes não são pensados como personalidades autônomas, e sim como aquilo que anima um
homem ou se apodera dele, de tal forma que esse prefixo se acrescenta, em especial, aos
nomes de enfermidades e, além disso, à fumaça, ao fogo, às correntes fluviais e à lua, na
qualidade de forças naturais [...]” 7 . A partir de tal exemplo, que poderia ser amplamente
multiplicado, fica claro que só se fazem distinções, de um lado, à custa de misturas, do outro!
Referidas umas às outras, as classificações operam decretando ora a identidade dos contrários,
ora a contrariedade dos idênticos. É nesse sentido que consideramos que o número está para a
extensidade assim como a medida está para a intensidade. Falta explicitar sua
interdependência.
separação contigüidade
mescla fusão
Obviamente, várias descrições são sempre possíveis e nada está dado, a não ser algumas
rotinas e a falta de lucidez que elas acarretam. O ponto de vista não intervém sobre um dado
que o preceda: o ponto de vista está na origem. Em conformidade com a dinâmica extensiva
das triagens e misturas, diremos que, no caso da separação – tomando o termo “caso”, aqui,
em sua acepção lingüística –, a valência de triagem [t] é plena [1], o que nos fornece [t1], e
que a valência de mistura [m] é nula [0], o que nos dá [m0] ; a separação será notada como
[t1+ m0]. No caso da fusão, ocorre uma inversão extrema das valências: [t0+ m1]. A
contigüidade e a mescla se apresentam, a partir daí, como dominâncias que administram
valências médias com respeito às anteriores, mas que se encontram em desigualdade, uma em
9
“Suponho ter em mãos um corpo sólido qualquer. Nele distingo, em primeiro lugar, três coisas, extensão,
limites em todas as direções e impenetrabilidade; faço abstração desta última, restam-me as idéias de extensão e
limites, e tais idéias constituem o corpo geométrico [...]. Em seguida, faço abstração da extensão ou do espaço
que esse corpo encerra, para considerar unicamente seus limites em todas as direções; e esses limites dão-me a
idéia de superfície, que se reduz [...] a uma extensão de duas dimensões. [...]”. Le Grand Robert de la langue
française, 2a ed. revista e ampliada por Alain Rey, Paris/Montreal, Le Robert, 1985, verbete “Surface”.
relação à outra. Na contigüidade, a triagem domina a mistura: [t > m] ; na fase da mescla, a
triagem passa de dominante a dominada: [t < m] 10 .
Toda aspectualização de um devir é condicionada pelo andamento, e tanto a análise quanto
a síntese são condicionadas pela lentidão. O processo da mistura pode, conforme o caso, ser
mais lento ou mais acelerado: neste, a síncope da contigüidade e da mescla transformam o
advir em sobrevir, já que o processo passa sem transição, e principalmente sem retardamento
para o observador, da separação à fusão. Sob o ponto de vista da sanção dessa transformação,
a aceitabilidade e em seguida a legalização da mudança são em geral uma questão de tempo,
isto é, de lentidão, ou ainda de paciência.
A essa apreensão sintagmática marcada pela progressividade e pela série, que se desenvolve
por proximidade, pode-se acrescentar e opor uma apreensão paradigmática em rede, sendo
esta última: (i) analítica, pois que aborda cada uma das unidades tratadas como uma
complexidade; (ii) tonalizante, ou tonificante, na medida em que o sensível pode ser visto
como posição em um gradiente, mas sobretudo também como percurso de um intervalo tímico
“tonalizante”, se intervier entre os contrários [s1] e [s4], e “atonizante”, se surgir entre os sob-
contrários [s2] e [s3] 11 . De fato, não concebemos o afeto como um estado, senão, antes de
mais nada, como um transporte 12 , assinalável não como soma, porém como produto vivido da
valência da celeridade pela da tonicidade. A conversão da série em rede, da sintaxe em
morfologia, transformando-se ambas em pontos de vista, apresenta-se da seguinte maneira:
tonicidade
tonicidade atonia
[inerência] [aderência]
junção
com e
conjunção
[fusão] [mescla]
10
Como indica o título do estudo “Structure générale des corrélations linguistiques” (L. Hjelmslev, Nouveaux
essais, Paris, PUF, 1985, pp. 27-66), os dados paradigmáticos mobilizam correlações inversas, tais que, numa
determinada complexidade, se um dos traços aumenta, o outro necessariamente decresce:
separação
1
contigüidade
triagem
mescla
fusão
0
0 mistura 1
11
Pelo menos em uma primeira abordagem, os sob-contrários são distintos dos subcontrários que figuram no
quadrado semiótico greimasiano. Estes últimos se obtêm pelo recurso a operações “lógico-semânticas”, ao passo
que os sob-contrários, tais como são concebidos por E. Sapir, procedem de uma segmentação que resulta em
extremos [s1] e [s4] e intermediários [s2] e [s3], de tal sorte que o intervalo [s2 — s3] fica “contido” dentro do
intervalo [s1 — s4].
12
Na chamada língua clássica, o transporte era definido como um “movimento violento de paixão que nos
arrebata para fora de nós mesmos”. O transporte e o estado constituem sem dúvida alguma duas categorias de
primeira ordem, mas trazem principalmente duas difíceis indagações: (i) se o transporte é da ordem do impacto,
como então ele se temporaliza justamente num estado? (ii) como, por quais meios, um estado, definido por sua
perenidade, chega a sublimar-se num impacto?
sem ou
disjunção
[separação] [contigüidade]
Tal estruturação em rede, baseada, como todo sistema morfológico, na distinção entre
formas ditas fortes e formas ditas fracas, exige duas observações: (i) as comutações, sejam
elas intra- ou intercategoriais, como na passagem da “aderência” para a “inerência”, são
tributárias da tonicidade ambiente, logo, de sua localização no espaço tensivo; (ii) a
ambivalência torna-se constitutiva da estrutura: todo aumento esconde uma diminuição – e
reciprocamente.
2. SINTAXE DA MESTIÇAGEM
A mestiçagem é sem dúvida uma prática semiótica exemplar, tanto é verdade que as
relações de alternância e as relações de coexistência se encontram imbricadas umas nas
outras. A partir dessa constatação desprovida de originalidade, cumpre indagar se o
estruturalismo está bem armado para abordar a questão.
Não é fácil saber se o estruturalismo atualmente praticado aqui e ali é ou não de inspiração
binarista. Como quer que seja, o binarismo “puro e duro”, privilegiando as noções de
“diferença” (Saussure) e “traço distintivo” (Jakobson), não aparenta estar em ressonância
imediata com as preocupações de um sujeito afeito à mistura. No entanto, o binarismo se
mostra, com o recuo esclarecedor do tempo, como uma versão restrita do estruturalismo. Em
uma versão ampliada, o recurso ao chamado termo complexo anula a separação, dando lugar a
um processo cujas fases aspectuais canônicas conjugam os três outros casos anteriormente
examinados:
disjunção conjunção
separação
contigüidade mescla fusão
Mediante recursividade, numa prática minuciosa, codificada, estabilizada, cada uma das
fases conjuntivas pode, por sua vez, ser objeto de uma tripartição, por pouco que sejam
identificados marcadores confiáveis; uma vez satisfeita essa comedida exigência, serão
previstas, por exemplo, dentro da fusão, uma fase incoativa, uma fase progressiva e uma fase
terminativa.
O recurso ao termo complexo, todavia, permanece ocasional; este intervém em caráter de
expediente eventual invocado para “domar” esta ou aquela singularidade. Tem-se
reconhecido, de maneira quase unânime, o mérito do estruturalismo por preferir a relação aos
termos que ela compreende. A relação é afirmada como invariante e como condição da
comparação, e os termos, como variáveis, mas, por isso mesmo, a relação se apresenta “fora
do paradigma”: ela conferiria sentido sem deter sentido em si própria! Parece mais judicioso
considerar que a relação, longe de ser inteiramente monopolizada pela oposição, é definida
pela partilha, pela esquizia entre a disjunção, o ou, e a conjunção, o e. O conceito de
oposição, privilegiado durante tanto tempo, parece ter menor pertinência do que o de
correlação, tributário de sua posição em um espaço definido. Em Différence et répétition, G.
Deleuze, discutindo com desembaraço a primazia concedida ao conceito de oposição, saúda
G. Guillaume por tê-lo descartado: “A substituição do princípio de oposição distintiva pelo de
posição diferencial é a contribuição fundamental da obra de G. Guillaume” 13 . Sem tratar aqui
a questão como seria desejável – já que os métodos não passam nunca de aplicações –, um
dos méritos de G. Guillaume reside certamente na aproximação da analiticidade e da
aspectualidade, ou, o que dá no mesmo: reside na integração da aspectualidade à
metalinguagem. Assim, em uma rede elementar, do tipo:
b
a b1 b2
a1 a1 b1 a1 b2
a2 a2b1 a2 b2
as oposições cumprem o papel de discriminantes, isto é, de condições, mas não de razões. Que
não haja vínculo necessário entre os conceitos de diferença e de oposição, é o que demonstra a
obra de Hjelmslev, que deliberadamente ignora o conceito de oposição, preferindo-lhe, de
longe, o de dependência.
Pode-se, por conseguinte, estimar que o termo complexo paira, como uma espada de
Dâmocles, acima da oposição, ameaçando denunciar sua artificialidade. O termo complexo,
quando ocorre, desvenda a “componibilidade” de toda oposição. Um simples exemplo tomado
à indústria automobilística já o demonstra. Essa indústria baseia-se, como qualquer domínio
constituído, em certas categorias, na acepção corrente do termo; tais categorias fazem parte da
onda de mestiçagem peculiar a nossa época, mas há determinadas categorias, reforçadas por
um “coeficiente de exclusividade”, que se mantêm melhor que outras, e em especial as
chamadas categorias “esporte” e “utilitário”. Contudo, no jornal Le Monde de 17 de abril de
2000, lia-se na página dedicada às notícias automobilísticas: “Uma ‘perua esporte’ ao estilo
Alfa-Romeo. O Sportwagon que parece um cupê”. Comenta, mais adiante, o jornalista: “Com
esse produto híbrido de perua e cupê, a Alfa-Romeo pode se vangloriar de contribuir para
dinamitar as categorias tradicionais do universo do carro, lançando no mercado um modelo
marcado pela transversalidade. Note-se, a respeito do Sportwagon, que não se trata de uma
mera versão alongada da Belina, mas sim de uma variação em torno de um tema muito em
voga, principalmente na Itália”. O conceito de oposição parece encerrar uma petição de
princípio: “quente” se opõe a quê? A “ frio”, a “morno”, a “fresco”? Alguém há de responder:
a “não-quente”, mas, nesse sentido, “não-quente” cobre, na terminologia de Hjelmslev, toda a
zona semântica, com exceção de “quente”, de tal sorte que, entre “quente” e “não-quente”, o
que convém postular é tanto uma soma [“quente” + “não-quente”] quanto uma oposição
[“quente” vs “não-quente”]. Assim, a oposição só se sustenta em virtude da síncope dos sob-
13
G. Deleuze, Différence et répétition, Paris, P.U.F., 1989, p. 265.
contrários, cuja existência, aliás, ela nega; ao fazê-lo, ela está negando seu próprio
fundamento 14 .
Reduzir as “grandes” questões a uma alternativa categórica é um gesto cômodo, que se
observa correntemente. No caso que nos interessa, isso equivale a indagar-se: a complexidade
seria primeira ou segunda? A semiótica greimasiana apresenta variações a esse respeito. No
Dicionário de semiótica, Greimas classifica o termo complexo entre os chamados termos de
“terceira geração”, sem negar que sua “formação” permanece bastante delicada. Entretanto,
no estudo intitulado “Analyse du contenu : Comment définir les indéfinis ?” 15 , que data de
três anos antes de Sémantique structurale, Greimas, explorando uma observação “profunda”
de V. Brøndal 16 , lida menos com pares contrastados do que com as combinações e
dominâncias que eles tornam possíveis. O que observa Greimas nesse caso é que os termos
opostos são inicialmente dados juntos, que são passíveis de acentuação e que a acentuação de
um dos termos tende a acarretar a desacentuação de seu companheiro – em nome de um
impensável e impensado princípio de constância. A relação reclama, mediante catálise, a
correlação.
Felizmente, pode ocorrer que as teorias se superem a si próprias. Uma das contribuições
mais sugestivas sobre o tema ora focalizado se encontra nas páginas que Lévi-Strauss dedicou
à “bricolagem”, no livro O pensamento selvagem 17 . A comparação da mestiçagem com a
bricolagem permite compreender algumas de suas características. Em primeiro lugar, já nos
próprios termos do autor, a bricolagem se mostra simétrica e inversa por relação à
mestiçagem, uma vez que a bricolagem é circunstancial, ocasional e, em última análise,
desprovida de regra, ao passo que a mestiçagem vai progressivamente constituindo, quando
não a possui logo de saída, uma gramática, ou seja, um repertório de formas e um conjunto de
instruções que regulamentam seu uso. Em segundo lugar, concebemos a mestiçagem como
uma mistura de dois termos, embora cada um destes seja extensível: dada uma mistura [a + b]
à qual se pretenda incorporar o elemento [c], não nos parece que o resultado se estabeleça
como [a + b + c], mas de preferência como [(a + b) + c]; em outras palavras, o número de
“grandes” componentes permaneceria idêntico para o observador. Voltando ao exemplo da
indústria automobilística, supondo que o “Sportwagon” oferecido pela Alfa-Romeo seja
misturado a uma outra categoria, o que será percebido pelo observador? A mistura de três
modelos ou a mistura do “Sportwagon” com um outro modelo? Tendemos a crer,
pessoalmente, que, no caso de artefatos associando mais de duas espécies, ocorre um
embaralhamento categorial, um “monstro”, nos termos da língua clássica, e que apenas certas
partes, certos detalhes identitários com valor de assinatura permanecem acessíveis ao
14
De acordo com G. Deleuze, “[...] é apenas quando se examinam os fonemas abstratamente, ou seja, quando se
reduz o virtual a um mero possível, que suas relações têm a forma negativa de uma oposição vazia, em vez de
ocupar posições diferenciais ao redor de um limiar” (op. cit., p. 265).
15
A. J. Greimas, “Analyse du contenu : Comment définir les indéfinis ?” in La mode en 1830, Paris, P.U.F.,
2000, pp. 383-400.
16
O ponto de partida da reflexão de V. Brøndal é uma entidade complexa [γρ], na qual [γ] designa um “grupo
qualquer de conceitos genéricos” e [ρ], um “grupo qualquer de relações”. De acordo com Brøndal, cada um
desses elementos é suscetível de “crescer”, ou seja, de ser beneficiário de uma acentuação, ou de “decrescer”,
gerando assim as classes morfológicas, “cujo número possível dependerá da complexidade da definição
principal”. Brøndal explica que “os dois elementos igualmente necessários de uma palavra (conteúdo e moldura)
são estreitamente ligados e mutuamente inseparáveis, interpenetram-se de maneira tão íntima que uma
determinada relação inerente ao radical (assimetria, por exemplo) realiza-se necessariamente de maneira especial
conforme a natureza geral ou genérica (nominal, verbal, etc.) da palavra, e inversamente, um determinado gênero
inerente à moldura (relação, objeto, qualidade, etc.) precisar-se-á pelo conteúdo especial que ele permita
emoldurar. Em decorrência disso, quanto mais um elemento [ρ ou γ] for fraco ou reduzido, mais ele assumirá a
cor do outro” (“Définition de la morphologie”, in Essais de linguistique générale, Copenhague, E. Munksgaard,
1943, p. 36).
17
C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem. Trad. Maria Celeste da Costa e Souza e Almir de Oliveira Aguiar.
São Paulo: Cia. Editora Nacional/EDUSP, 1970, pp. 37-43.
observador. Evidentemente, a experiência e a atenção, ou seja, a duração potencializada e a
duração atual, permitem a alguns especialistas reconhecer a interseção de um número de
“grandes” componentes superior a dois.
[[C1 → [a, b, c, d]]—[C2 → [e, f, g, h]] → [[C1 → [a, c, d]]—[C2 → [b, e, f, g, h]]
Já nesse estágio surgem dois tipos de mistura: (i) a mistura por privação, que acabamos de
apresentar, na qual a transferência põe fim, pelo menos provisoriamente, à subordinação da
grandeza [b] à classe C1; (ii) a mistura por participação, caracterizada pelo fato de que a
grandeza [b] é transferida para a classe C2, mas sem deixar de pertencer à classe C1. Tudo leva
a crer que essa dicotomia está vinculada às desigualdades inerentes ao espaço tensivo: a
mistura por privação mobiliza os valores de absoluto, dado serem estes concentrados e
tacitamente indivisíveis; a mistura por participação, por sua vez, encontra-se em concordância
com o “estilo” próprio aos valores de universo.
A efetuação de cada uma dessas misturas pressupõe condições bem diversas. A mistura por
privação não pode ocorrer sem a afirmação prévia de uma falta de justeza, sem o sentimento
de uma discordância entre a grandeza [b] e as outras com as quais coexiste, [a, c, d]; a
homogeneidade da classe C1 fica abalada:
18
No capítulo de O pensamento selvagem dedicado à “lógica das classificações totêmicas”, escreve Lévi-
Strauss, acerca do sistema de cores entre os Hanunoo: “[...] [o sistema] distingue as cores, de um lado em
relativamente claras e relativamente carregadas, de outro, segundo são habituais às plantas frescas ou às secas; os
indígenas aproximam, assim, o verde do marrom brilhante de um pedaço de bambu, que acaba de ser cortado,
enquanto que nós o aproximaríamos do vermelho, se devêssemos classificá-lo nos termos da oposição simples
entre as cores vermelho e verde encontrada entre os hanunoo” (op. cit., p. 78). As propriedades não dependem do
objeto, mas sim do ponto de vista.
Sob um andamento acelerado, a grandeza [b] pode vir a sofrer uma violenta rejeição, uma
expulsão que opera a síncope da fase intermediária: [C1 → [a, c, d] + [b]], de tal modo que,
para o observador, o processo passa, “arremete” diretamente de [C1 → [a, b, c, d]] para [C1 →
[a, c, d]] vs [b], sem se deter na fase mediana: [C1 → [a, c, d] + [b]]. A rapidez contraria a
progressividade do aspecto, ao passo que a lentidão, por sua vocação a alongar-se, não apenas
observa cada fase, como também, a exemplo do pormenor em pintura, faz de cada fase um
todo que por sua vez se presta à análise. A aspectualização do desprendimento da grandeza
[b] a partir da classe C1, sob um andamento que consideraremos neutro, apresenta a seguinte
declinação:
Ao cabo do processo, a identidade da grandeza [b] é dupla: (i) emancipou-se da classe C1, o
que significa que as operações incidentes sobre C1 já não a afetam; (ii) diremos familiarmente,
no entanto, que a grandeza [b] “não se livrou de C1”, ou seja, sua subordinação a C1 fica – por
um tempo ou para sempre – potencializada, já que o discurso compõe-se a todo instante com
sua memória. A grandeza [b] pode permanecer “extra-classe” e passar a constituir uma classe
por si só, isto é, uma singularidade à parte ou, ao contrário, ser atraída por outra classe. É o
que vamos examinar agora.
Dada a classe C1 , uma grandeza [ω] penetra em sua vizinhança e suscita uma tensão entre o
fato, a proximidade surgida, e o direito, a não-subordinação a C1. Admitiremos estar em
presença da seqüência incoativa da adjunção. A grandeza [ω], por ora, está definida por sua
contigüidade posicional. Na fase seguinte, ela será amalgamada, de acordo com a definição de
amálgama proposta pelo Micro-Robert: “mistura de elementos que não combinam bem”. Em
certo sentido, tal discordância semântica prova a solidez sintagmática; para reproduzirmos o
comentário de Baudelaire acerca do “belo”, a presença de [ω] no interior de C1 é “bizarra” ou,
de modo mais familiar, “esquisita”. Voltaremos a esse ponto em breve. Obviamente, toda
progressividade é passível de ser interrompida, à espera de uma resolução. A esta última
atribuiremos a denominação de liga, para a qual o Micro-Robert propõe a seguinte definição:
“produto metálico obtido pela incorporação de um ou mais elementos a um metal”.
Suspendemos o traço isotopante /metal/ para destacar, a propósito da passagem do amálgama
para a liga, apenas a reabsorção da pluralidade inerente ao amálgama em “um produto”. Em
nossa simbolização rudimentar, isso significa que a grandeza [ω] tende, na medida em que
toda contigüidade durável atualiza uma similaridade, a assumir uma identidade disponível no
interior de C1 , como por exemplo [e]: [ω → e].
incoatividade adjunção
[C1 → [a, b, c, d]] r [ω]
impactante área do
“bizarro”
intensidade
área do
“tédio”
fraco
amálgama liga
extensidade
Sob o ponto de vista figural stricto sensu, a promoção do “bizarro” vale como contra-
[contra-programa] dentro de um algoritmo simples:
axiologia
melhoração pejoração
operação
Tais operações sintáxicas, dado que ultrapassam esta ou aquela semiótica particular –
culinária, química, industrial ou outra –, assumem ou atualizam uma coloração religiosa,
compreensível se levarmos em conta que o religioso tem no seu étimo, no seu âmago, a
junção em si mesma. Para nós, o religioso tem como paradigma básico a tensão entre o
sagrado e o profano; essas duas categorias pertencem a estilos axiológicos distintos, que por
sua vez podem ser compreendidos em termos de valências. A prevalência das operações de
triagem leva à afirmação e à adoração do sagrado como resultante incomparável e
inapreciável das eliminações operadas; a prevalência das operações de mistura leva à
24
A. J. Greimas, “A sopa ao ‘pistou’ ou a construção de um objeto de valor”. Trad. Edith Lopes Modesto.
Significação – Revista Brasileira de Semiótica, 11-12, setembro de 1996, pp. 7-21.
afirmação e ao reconhecimento do profano como resultante aberta e dilatável dos
enriquecimentos efetuados.
No entanto, se tais estilos costumam pensar-se em termos de exclusão mútua, e por vezes
até de aniquilação – quando os sujeitos, seus adeptos, acreditam deter os meios físicos para
tanto –, julgamos mais razoável concebê-los em termos de dominâncias. Os estilos
axiológicos aparecem como decisões referentes à coexistência da homogeneidade e da
heterogeneidade; em outras palavras, tais estilos definem a proporção que convém conceder a
cada uma dessas dimensões semânticas. O sagrado impõe a prevalência da heterogeneidade,
da dissociação, de tal sorte que esta, portadora daquilo que Cassirer designa pela feliz
expressão de “acento mítico”, domina e desqualifica a homogeneidade. O profano, sobretudo
em razão dos excessos temporal e espacial que ele se permite dia após dia, deixa prevalecer a
homogeneidade e marca toda distinção como secundária, depois como não-pertinente, por fim
como nula. Subsiste, contudo, uma assimetria importante entre as operações de triagem e as
de mistura: umas e outras são por certo recursivas, conforme o modelo das chamadas formas
verbais supercompostas (surcomposées) na língua francesa: avoir marché → avoir eu marché.
Mas, se as operações de triagem encontram um limite “natural” – a ausência de qualquer
“impureza”, de qualquer “intruso” e, num outro plano, de qualquer “bastardia” –, as operações
de mistura têm um limite, de certa forma, provisório: a uma dada altura, é preciso impedir
qualquer adição suplementar, a fim de não obliterar, de não “desnaturar” a identidade da
mistura desejada.
Não podemos escamotear a difícil questão: quem “tira proveito” da mistura de duas classes?
A nosso ver, a resposta depende do tipo de valores dominantes no universo de discurso
considerado. Já demonstramos em outros estudos que dois tipos de valores disputam a
preferência dos homens: os valores de absoluto, voltados para a exclusividade e a unicidade, e
os valores de universo, voltados para a difusão e a universalidade. O exemplo que
mencionaremos agora não chega a reunir as condições corriqueiras da mestiçagem, pois diz
respeito a um simulacro, qual seja, o uso recente da função presidencial nos Estados Unidos.
Falta-lhe a iteração, mas nele misturam-se uma classe finita, com um único elemento, e uma
classe aberta, a dos cidadãos. Perante uma reportagem que mostrava o presidente dos Estados
Unidos “esperando suas roupas na lavanderia automática, maltratando uma indócil máquina
distribuidora de doces, lavando no lava-a-jato sua limusine presidencial, passando o cortador
de grama nos jardins da Casa Branca [...]”, E. Schneidermann escrevia acerca dessas
“imagens”, no suplemento do jornal Le Monde de 7-8 de maio de 2000: “Nada é sério, nada é
sagrado, nem mesmo a função presidencial. E tal revelação não provém de fora, mas de seu
próprio ocupante. [...] Pela destruição dessa mitologia, não é somente o final de seu próprio
reinado que Clinton dessacraliza. Os efeitos colaterais desse bombardeio de imagens atingem
a função presidencial em seu conjunto, e talvez, para além dela, todo poder político”. O ponto
de vista de E. Schneidermann nesse artigo é o mesmo adotado por Tocqueville em seus
escritos, ou seja, a apreensão dos valores de universo em função dos valores de absoluto, mas
a apologia dos valores de universo também poderia ser feita sem qualquer dificuldade,
ressaltando-se então a ausência de presunção do presidente, sua proximidade com a
população, seu desejo de assumir, com toda a simplicidade, sua participação nas tarefas
cotidianas. Conforme veremos adiante a propósito do modelo lévi-straussiano, os valores de
absoluto despertarão sempre a suspeita de projetar um excesso de distância e os valores de
universo, por sua vez, um excesso de proximidade. Sob essas condições, a ausência de
iteração não constitui empecilho. Nada nos impede de pensar que a prática de Clinton poderia
inaugurar um estilo presidencial impositivo para seus sucessores, do mesmo modo como
Louis-Philippe, deixando de ser “rei de França”, isto é, portador de um valor de absoluto,
tornou-se “rei dos franceses”, portador de um valor de universo; tal definição vale para ele
próprio, mas igualmente para seus virtuais sucessores, agora que essa nova acepção lhe foi
imposta.
se suficiência dos
conjunção disjunção
sob-contrários, conjunção disjunção
excessiva excessiva
então
se insuficiência dos
conjunção disjunção
sob-contrários, conjunção disjunção
insuficiente insuficiente
então
É o lado conjuntivo da rede que nos chama a atenção aqui. A mistura de duas classes finitas
pode ser interpretada como suficiente ou insuficiente. No primeiro caso, projeta as duas outras
possibilidades como excessivas; no segundo, se a mistura for denunciada como insuficiente ou
até mesmo arbitrária, ela atualizará como “moralmente” desejável o recurso a uma ou duas
classes abertas. Evidentemente, se o gênero “sair ganhando”, as espécies “sairão perdendo”.
Para esse caso, o discurso é um bom guia, misturando uma classe fechada, a gramática, e uma
classe aberta, o léxico. Nosso segundo exemplo será tomado à pintura representativa de
antigamente. Para um observador sem prevenção nem cultura, deambulando pelas galerias
intermináveis de um museu, é claro que esse estabelecimento “mistura” duas classes: a classe
aberta dos pintores inspirados ou esforçados e a classe fechada dos tipos de quadros, retrato,
paisagem, natureza morta, pintura religiosa com seus motivos obrigatórios, a anunciação, a
deposição da cruz, etc. Essa desigualdade favorece a possibilidade de uma identidade para o
artista, então definido como retratista ou paisagista, e de uma qualidade a ser determinada
para o quadro. Por outro lado, a situação atual, para nosso espectador de boa vontade a vagar
de sala em sala, é bem outra, pois o que “se oferece à vista” mistura duas classes abertas: a
dos pintores, ou seja, dos indivíduos que se declaram pintores, e a dos quadros, que já não são
classificados por tema – porque não existem mais temáticas predefinidas –, e sim por aquilo
que resta quando as particularidades do tema já não guiam do princípio ao fim a execução do
quadro, a saber, o formato, grande ou pequeno. O gênero e a espécie, estruturalmente menos
numerosos, foram virtualizados em proveito dos indivíduos e de sua profusão. Como o gênero
e a espécie já não controlam a emergência dos indivíduos, estes se constituem em classes com
um único elemento, ao modo do cada um por si.
É provável que o lugar ocupado pelo excesso na economia do sentido não fique a dever
nada ao que foi concedido pela semiótica greimasiana à falta. Ambas as noções são solidárias
e tributárias da estesia, seja esta socioletal ou idioletal. A partir da segmentação canônica:
s1 s2 s3 s4
a estesia informa, entre [s1 – s4] e [s2 – s3], qual é o justo intervalo. O que caracteriza o
sensível em seu tumulto é a submissão às coerções paradigmáticas, ou seja, a alternância – de
acordo com O misantropo de Molière – entre o “sistema Alceste”, que prefere o intervalo
definido pelos contrários [s1 – s4], e o “sistema Philinte”, que prefere o intervalo definido
pelos sob-contrários [s2 – s3]. Se, no plano da expressão, os intervalos [s2 – s1] e [s3 – s4]
podem ser preenchidos progressivamente, pacientemente, grau após grau, já não ocorre o
mesmo no plano do conteúdo: uma solução de continuidade veda a passagem do mais para o
demais e, inversamente, do demais para o não demais. O excesso e o déficit comutam entre si:
se a estesia aceitar o intervalo [s2 – s3] como “bom”, isto é, suficiente, então [s1 – s4] surge e
impõe-se como “mau”. Inversamente, se o intervalo [s2 – s3] for denunciado como medíocre,
átono, indigno, então o intervalo [s1 – s4] será modalizado como desejável.
Em tais condições, se o sujeito perceber a troca entre duas classes finitas como algo
suficiente, “razoável”, julgará a mistura entre duas classes abertas como excessiva e poderá
condená-la como um disparate qualquer. No entanto, se a mistura entre duas classes finitas
for sentida como estreita, insuficiente ou mesmo injusta, a mistura entre duas classes abertas,
longe de ser motivo de inquietação, será acolhida com fervor. Pela mesma dialética, a mistura,
sob as mesmas condições, rejeita o primeiro como insuficiente. Uma modesta previsão torna-
se possível: dado que assistimos a uma mestiçagem que virtualiza os limites previamente
assumidos, é provável que a mestiçagem seja vista aqui e ali como excessiva, anestesiante,
indiferenciadora, o que qualificaria a modalização, a revivescência de certas triagens como
desejáveis. A passagem de uma a outra dessas posturas afetivas não seria efetuada passo a
passo, mas sim por meio de súbitos arroubos e renegações. Na medida em que conjuga
permanentemente as duas subdimensões da celeridade e da tonicidade, a estesia exige o
impacto e, conseqüente consigo mesma – embora não o seja com a “razão insensata”, que
desconhece tal relação privilegiada com o impacto –, ela não pode parar nunca de jogar no
lixo o que adorava e de adorar o que havia jogado no lixo. Assim fazendo e desfazendo, a
prática estética preserva essa “variedade” e essa possibilidade de “espanto” que Baudelaire
parecia situar acima de tudo o mais: “O espanto, que é uma das grandes fruições produzidas
pela arte e pela literatura, procede justamente dessa variedade de tipos e sensações” 25 . A
fidelidade a si exige a infidelidade ao objeto.
Como julgar a validade de um modelo assim, que privilegia a aspectualidade, já que [s2 – s3]
estabelece um intervalo “imperfectivo” entre graus e [s1 – s4], um intervalo “perfectivo” entre
limites? A semiótica greimasiana dispõe de dois modelos que não se confundem, embora
ambos possam ser projetados no quadrado: (i) um modelo proposicional, que se vale da
afirmação, da negação e, enfim, da negação da negação; (ii) um modelo juncional, que se
pauta pela conjunção e pela disjunção, porém negligencia o valor estésico, afetivo, da
disjunção e da conjunção, seu grau de tensão26 . Quando se observa a prática analítica de Lévi-
Strauss, é fácil perceber que o modelo juncional é muitas vezes solicitado, ora em sua versão
hiperbólica, que consiste na substituição de [s2 – s3] por [s1 – s4], ora em sua versão
temperadora, que consiste na substituição de [s1 – s4] por [s2 – s3]. O estudo intitulado “A
estrutura dos mitos” comporta dois ensinamentos distintos. É bem verdade que propõe uma
“fórmula algébrica” do mito, mas o mito de Édipo em si mesmo é “lido”, talvez para marcar
oposição a Freud, ora em termos de excesso de proximidade, no caso do incesto, ora em
termos de excesso de distância, no caso do crime. Analogamente, as análises de rituais
demonstram a pertinência do modelo juncional: “Enfim, no plano semântico, a mácula, ao
menos no pensamento dos índios da América do Norte, consiste numa conjunção estreita de
dois termos, destinados a permanecer, individualmente, no estado ‘puro’. Se, na caça
imediata, as regras femininas arriscam sempre introduzir um excesso de conjunção, levando,
por redundância, à saturação da relação primitiva e neutralizando sua virtude dinâmica, na
caça à distância é o inverso: a conjunção é deficiente e o único meio de remediar sua fraqueza
consiste em admitir a mácula, que aparecerá como periodicidade no eixo das sucessões ou
como corrupção no eixo das simultaneidades” 27 .
3. MESTIÇAGEM E DISCURSIVIDADE
25
C. Baudelaire, Œuvres complètes, op. cit., p. 691.
26
A esse respeito, Claudel é particularmente lúcido: “Muito se tem falado acerca da cor e do sabor das palavras.
Mas nunca se disse nada sobre sua tensão, sobre o estado de tensão da mente que as profere e de cuja carga as
palavras são o sinal e o índice” (P. Claudel, Œuvres complètes, Paris, Gallimard/La Pléiade, 1973, p. 6).
27
C. Lévi-Strauss, O pensamento selvagem, op. cit., p. 74.
interesses. A questão simples – como pensar a competição entre a virtude conjuntiva do
processo e a virtude disjuntiva do sistema? – mal chega a ser lembrada.
No entanto, a língua francesa, como tesouro de lugares-comuns a serem decifrados, mostra,
em matéria de mestiçagem, um caso particularmente saboroso, ao falar de “casamento entre
uma carpa e um coelho” (“mariage de la carpe et du lapin”) 28 . A virtude didática do lugar-
comum é, nesse caso, claríssima. Em apenas três palavras, ele depreende o quadro
paradigmático, a dinâmica sintáxica e a postulação tensiva da mestiçagem. O paradigma é o
das duas espécies, a dos peixes, ligados à água, e a dos roedores, ligados à terra e, por essa
razão, mutuamente exclusivos: a sintaxe é a da disjunção, pois a carpa e o coelho não têm, por
natureza, qualquer vocação para se casar. Por fim, sob o ponto de vista tensivo, a conjunção é
tacitamente apresentada como impossível: as duas espécies são demasiado diferentes e
distantes para serem unidas uma à outra. Em outras palavras, em virtude das convenções
terminológicas anteriormente instauradas, o senso comum que, a exemplo do coro antigo,
prefere globalmente o estilo temperador ao estilo hiperbólico, estima que a conjunção é
concebível, está a nosso alcance entre sob-contrários, mas é inconcebível entre contrários.
Na perspectiva greimasiana, o discurso possui grande complexidade, por ser o termo ad
quem do percurso gerativo, mas ele é desprovido de motor próprio. Em caráter de hipótese
elementar, J. Fontanille e nós supomos que a bifurcação inaugural põe em confronto o
discurso implicativo e o discurso concessivo; em termos mais eloqüentes, o discurso
implicativo tem como pivô o porque, ao passo que o discurso concessivo tem como pivô o
embora. A retórica argumentativa, desde Aristóteles e talvez principalmente por influência
dele, analisou, articulou e favoreceu o discurso implicativo, ainda que Aristóteles conceda às
“paixões”, no Livro II da Retórica, um lugar determinante.
Discurso implicativo e discurso concessivo não possuem a mesma virtude mítica. O
discurso implicativo sustenta, em nome da razão e da estabilidade das classes em que acredita,
que os contrários são distantes demais entre si para poderem ser aproximados e, ao cabo da
aproximação, misturados um com o outro; por conseguinte, a conjunção só pode se dar entre
sob-contrários. Sendo as coisas aquilo que são, sendo um coelho um coelho e uma carpa, uma
carpa, convém que se permaneça entre pares; o uso corrente e amplamente dominante do
discurso implicativo e, esporadicamente, do entimema, é tendencialmente identitário, e
somente um espírito quimérico pode acalentar o projeto de um casamento que será declarado
“antinatural”. É nesse ponto que a concessão, a desmedida da concessão, intervém,
desarrumando as compartimentações estabelecidas e transgredindo as interdições vigentes:
embora a carpa e o coelho pertençam a espécies distantes, é possível, ainda assim, casar um
com o outro.
Por certo, não é incorreto considerar que a concessão transforma o impossível em possível,
mas essa formulação parece-nos um pouco apressada. Ela esconde o fato de que a concessão
pressupõe a implicação e de que o conteúdo da implicação, seja ele um enunciado de estado,
seja um enunciado de fazer, troca de sinal, como ocorre nas operações elementares da álgebra.
Assim, em nosso exemplo de referência:
implicação concessão
28
[N. dos T.] Expressão familiar francesa, comparável à nossa “misturar alhos com bugalhos”.
com o coelho, porque pertencem a espécies diferentes, é possível seu
espécies diferentes casamento
Parece-nos mais justo considerar que a especificidade da sintaxe concessiva, desde que se
consinta à concessão uma prevalência que é também concessiva, potencializa o possível
afirmado pela implicação e atualiza como possível o impossível que a implicação declara. Em
outras palavras, a implicação estipula como possível e razoável a conjunção dos sob-
contrários, vendo como impossível e insensata a conjunção dos contrários; já a concessão,
como que instigada por essa falta de ardor, considera possível e desejável a conjunção dos
contrários. A implicação opera o fechamento, e não foi sem razão que já se assinalou que a
premissa menor e a conclusão do silogismo nada faziam além de desenvolver a premissa
maior. Inversamente, a concessão é, sob esse aspecto, aquela que efetua a abertura.
Resumindo:
Para melhor compreender tal proposta, lembremos que o gesto de Newton, ao reconhecer,
na queda dos corpos, nas marés e na gravitação dos astros, as conseqüências de um mesmo
princípio, foi, por ocasião de seu surgimento, um gesto concessivo, tendo sido julgado como
contrário à “Razão” pelos físicos franceses, então cartesianos. Isso nos leva a pensar que a
concessão reclama “naturalmente” a metáfora, na medida em que esta suspende a distância
estabelecida entre duas classes. Conforme anotava Claudel em seu Journal: “A metáfora,
como o raciocínio, reúne, porém a partir de mais longe”.
Pessoalmente, consideramos que a pertinência semiótica está em pauta quando temos acesso
à dimensão mítica e fiduciária dos conteúdos. A conjunção entre contrários é heróica,
superlativa e excitante, ao passo que a conjunção entre sob-contrários é prosaica, razoável e
um tanto sem graça... À luz de tal dilema, podemos responder – ou não responder – à pergunta
proposta por L. Hébert, a saber, se é concebível “casar” Hjelmslev com Peirce. Estamos
visivelmente diante de contrários, tamanha é a diferença entre os fins (programas de base) e
os métodos (programas de uso). Embora conheçamos apenas por ouvir dizer a teoria
peirciana, duvidamos que Peirce aderisse, caso a tivesse conhecido, à fórmula de Hjelmslev:
“A língua é a forma mediante a qual concebemos o mundo” 29 . Quanto ao mestre
dinamarquês, caso soubesse do projeto de se ver “casado” com outro teórico, pode-se pensar
que isso o escandalizaria, já que ele só reconhece um precursor, Saussure, não o “nosso”,
autor do Curso, mas sim o autor do famoso Mémoire sur le système primitif des voyelles dans
les langues indo-européennes, obra freqüentada por bem poucos...
Mesmo num breve apanhado, porém, dois casamentos entre sob-contrários, isto é, dois
“casamentos por conveniência”, impõem-se a nossa atenção em razão do caminho seguido
29
L. Hjelmslev, Ensaios lingüísticos. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo, Perspectiva, 1991, p. 184.
pela semiótica. O primeiro diz respeito à obra de G. Guillaume, desde o momento em que a
semiótica deixou de afirmar a acronicidade das estruturas elementares da significação; no
segundo caso, é em Merleau-Ponty que estamos pensando: essa proximidade já havia sido
prevista por Greimas desde 1956, mas a consideração do sensível, precedida pela das paixões,
bem como as referências e reverências de muitos semioticistas das mais variadas tendências à
Fenomenologia da percepção, indicam uma complementaridade a ser meditada, na medida
em que as convergências, pelo menos no atual momento, prevalecem sobre as divergências.
Tradução:
Ivã Carlos Lopes e Luiz Tatit