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Em primeiro lugar, devemos fazer uma distinção entre literatura e estudos literários.

As duas são
atividades distintas: uma é criadora, é uma arte; a outra, se não exatamente uma ciência, é uma espécie de
conhecimento ou saber. (Wellek; Warren, 2003, p. 3)

A “intuição” pessoal pode levar a uma “apreciação” meramente emocional, à subjetividade completa.
Enfatizar a “individualidade” e mesmo a “singularidade” de toda obra de arte - embora saudável como
reação a generalizações simplistas - é esquecer que nenhuma obra de arte pode ser inteiramente

“singular”, já que, se fosse, seria completamente incompreensível. (Wellek; Warren, 2003, p. 8)

Além disso, todas as palavras, em toda obra literária, são, pela própria natureza, “gerais”, não
particulares. A disputa entre o “universal” e o “particular” na literatura vem acontecendo desde que
Aristóteles proclamou que a poesia era mais universal e, portanto, mais filosófica do que a história, que se
interessava apenas pelo particular, e desde que o dr. Johnson afirmou que o poeta não devia “contar as
listas da tulipa”. Os românticos e os críticos mais modernos nunca cansam de enfatizar a particularidade
da poesia, a sua “textura”, a sua concretude. (Wellek; Warren, 2003, p. 8-9)

Mas devemos reconhecer que cada obra de literatura é tanto geral como particular ou - melhor, talvez -
tanto individual como geral. A individualidade pode ser distinguida da particularidade e da singularidade
completas11. Como todo ser humano, cada obra de literatura tem as suas características individuais mas
também compartilha propriedades com outras obras de arte, assim como todo homem compartilha

características com a humanidade. (Wellek; Warren, 2003, p. 9)

A crítica literária e a história literária tentam caracterizar a individualidade de uma obra, de um autor, de
um período ou de uma literatura nacional. Mas essa caracterização só pode ser obtida em termos
universais, com base em uma teoria literária. A teoria literária, um órganon dos métodos, é a grande
necessidade da pesquisa literária hoje. (Wellek; Warren, 2003, p. 9)

O estudo de “grandes livros” isolados pode ser altamente recomendável para fins pedagógicos. Todos
devemos aprovar a idéia de que os estudantes - e, particularmente, os principiantes - deviam ler grandes

livros ou, pelo menos, bons livros, não compilações ou curiosidades históricas. (Wellek; Warren, 2003,
p. 13)

Na história da literatura imaginativa, a limitação aos grandes livros torna incompreensível a continuidade
da tradição literária, o desenvolvimento dos gêneros literários e, na verdade, a própria natureza do
processo literário, além de obscurecer o pano de fundo das circunstâncias condicionantes sociais,

lingüísticas, ideológicas e de outros tipos. (Wellek; Warren, 2003, p. 13)

O termo “literatura” parece melhor se o limitamos à arte da literatura, isto é, à literatura imaginativa. Há
certas dificuldades no emprego desse termo mas, em inglês, as outras possibilidades, como “ficção” ou
“poesia”, já estão ocupadas por significados estritos ou, como “literatura imaginativa” ou belas-letras, são
desajeitados e enganosos. Uma das objeções a “literatura” é a sugestão (na etimologia de litera) de
limitação
à literatura escrita ou impressa pois, sem dúvida, qualquer concepção coerente deve incluir a “literatura

oral”. (Wellek; Warren, 2003, p. 14)

A maneira mais simples de solucionar a questão é distinguir o uso particular dado à língua na literatura. A
língua é o material da literatura, como a pedra ou o bronze são o da escultura, as tintas o da pintura, os
sons o da música. Devemos perceber, porém, que a língua não é mera matéria inerte, como a pedra, mas

é, ela própria, uma criação do homem e, assim, carregada com a herança cultural de um grupo lingüístico.
(Wellek; Warren, 2003, p. 14)

O problema é crucial e não é, de maneira nenhuma, simples na prática, já que a literatura, ao contrário das
outras artes, não possui um veículo exclusivo e já que, sem dúvida, existem muitas formas mistas e
transições sutis.
Comparada com a linguagem científica, a linguagem literária parecerá, de certas maneiras, deficiente. É
abundante em ambiguidades; como qualquer outra linguagem histórica, é cheia de homônimos, categorias
arbitrárias ou irracionais, como o gênero gramatical; é permeada de acidentes históricos, lembranças e
associações. Em uma palavra, ela é altamente “conotativa”. Além disso, a linguagem literária está longe
de ser meramente referencial. Ela tem o seu lado expressivo; ela comunica o tom e a postura do falante ou
escritor. E ela não apenas formula e expressa o que diz, mas também quer influenciar a postura do leitor,
persuadi-lo e, por fim, modificá-lo. Há mais uma importante distinção entre a linguagem literária e a
científica: na primeira, o próprio signo, o simbolismo sonoro da palavra, é enfatizado. Todos os tipos de
técnicas foram inventados para chamar a atenção para ele, tais como a métrica, a aliteração e padrões

sonoros. (Wellek; Warren, 2003, p. 15)

o padrão sonoro será menos importante em um romance do que em certos poemas líricos, de tradução
adequada impossível. O elemento expressivo será bem menos importante em um “romance objetivo”, que
pode disfarçar e quase ocultar a postura do escritor, do que em um poema lírico “pessoal”. O elemento
pragmático, leve na poesia “pura”, pode ser grande em um romance com um propósito ou em um poema
satírico ou didático. (Wellek; Warren, 2003, p. 15)

Mais difícil de estabelecer é a distinção entre a linguagem cotidiana e a linguagem literária. A linguagem
cotidiana não é um conceito uniforme: ela inclui variantes tão amplas como a linguagem coloquial, a
linguagem do comércio, a linguagem oficial, a linguagem da religião, o jargão dos estudantes. [...] A
linguagem cotidiana também tem a sua função expressiva, embora esta varie [...] A linguagem cotidiana
está cheia de irracionalidades e mudanças contextuais da linguagem histórica, embora existam momentos
em que almeje quase a precisão da descrição científica. [...] Apenas ocasionalmente existe a consciência
dos próprios signos na linguagem cotidiana. Contudo, tal consciência realmente surge - no simbolismo
sonoro de nomes e ações ou em trocadilhos. [...] Sem dúvida, a linguagem cotidiana quer, com muita
freqüência, obter resultados, influenciar ações e posturas. Mas seria falso limitá-la meramente à
comunicação. (Wellek; Warren, 2003, p. 16)

Assim, é quantitativamente, antes de tudo, que a linguagem literária deve ser diferenciada dos vários usos
do cotidiano. Os recursos da linguagem são explorados de modo muito mais deliberado e sistemático.
(Wellek; Warren, 2003, p. 16)

Certos tipos de poesia usarão o paradoxo, a ambiguidade, a mudança contextuai de significado, até
mesmo a associação irracional das categorias gramaticais, como o gênero ou o tempo, de modo
inteiramente deliberado. A linguagem poética organiza, comprime os recursos da linguagem cotidiana e,
às vezes, até comete violência contra ela, em uma tentativa de forçar a nossa consciência e atenção. [...]
Em certas literaturas altamente desenvolvidas e especialmente em certas épocas, o poeta limita-se a usar
uma convenção estabelecida: a linguagem, por assim dizer, poetiza por ele. Ainda assim, toda obra de arte
impõe uma ordem, uma organização, uma unidade aos seus materiais. Essa unidade às vezes parece
frouxa, como em muitos sketches ou histórias de aventuras, mas aumenta até a organização complexa e
cerrada de certos poemas, na qual pode ser quase impossível mudar uma palavra ou a posição de uma
palavra sem prejudicar o seu efeito total. (Wellek; Warren, 2003, p. 17)

A distinção pragmática entre linguagem literária e linguagem cotidiana é muito mais clara. Rejeitamos
como poesia ou rotulamos como mera retórica tudo que nos persuada a uma ação exterior definida. A
poesia de verdade afeta-nos com mais sutileza. A arte impõe certo tipo de estrutura que tira o enunciado
da obra do mundo da realidade. Na nossa análise semântica podemos, portanto, reintroduzir algumas das
concepções comuns da estética: “contemplação desinteressada”, “distância estética”, “estruturação”.
(Wellek; Warren, 2003, p. 17)

Em diferentes períodos da história o domínio da função estética parece se expandir ou se contrair: a carta
pessoal, às vezes, foi uma forma de arte, como foi o sermão, enquanto hoje, em concordância com a
tendência contemporânea contra a confusão de gêneros, surge um estreitamento da função estética, uma
marcada ênfase na pureza da arte, uma reação contra o pan-esteticismo e suas afirmações tal como
proclamadas pela estética de fins do século XIX. (Wellek; Warren, 2003, p. 18)

Parece melhor, porém, considerar como literatura apenas obras em que a função estética é dominante.
(Wellek; Warren, 2003, p. 18)
A natureza da literatura, porém, surge com mais clareza sob os aspectos referenciais. O centro da arte
literária deve obviamente ser encontrado nos gêneros tradicionais da lírica, da epopéia, do drama. Em
todos eles, a referência é a um mundo de ficção, de imaginação. Os enunciados em um romance, em um
poema ou em um drama não são literalmente verdadeiros, não são proposições lógicas. Há uma diferença
central e importante entre um enunciado, mesmo em um romance histórico ou em um romance de Balzac,
que parece comunicar “informação” a respeito de acontecimentos concretos, e a mesma informação,

surgindo em um livro de história ou sociologia. (Wellek; Warren, 2003, p. 18)

Mesmo na lírica subjetiva, o “eu” do poeta é um “eu” ficcional, dramático. Um personagem de romance
difere de uma figura histórica ou de uma figura na vida real. Ele é feito apenas das sentenças que o
descrevem ou que são colocadas na sua boca pelo autor. Ele não tem nenhum passado, nenhum futuro e,

às vezes, nenhuma continuidade de vida. (Wellek; Warren, 2003, p. 18)

Se reconhecemos a “ficcionalidade”, a “invenção” ou a “imaginação” como a característica distintiva da


literatura, pensamos, portanto, na literatura antes em termos de Homero, Dante, Shakespeare, Balzac,
Keats que de Cícero ou Montaigne, Bossuet ou Emerson. [...] Essa concepção de literatura é descritiva,

não avaliadora. (Wellek; Warren, 2003, p. 19)

Uma incompreensão comum deve ser eliminada. A literatura “imaginativa” não precisa usar imagens. A
linguagem poética está permeada de imagens, começando com as figuras mais simples e culminando nos
sistemas mitológicos de um Blake e um Yeats, que tudo abarcam. Mas as imagens não são essenciais
para o enunciado ficcional e, portanto, de boa parte da literatura. Há bons poemas completamente
destituídos de imagens; há mesmo uma “poesia do enunciado”6. As imagens, além disso, não devem ser
confundidas com a criação de imagens efetivas, sensoriais, visuais. (Wellek; Warren, 2003, p. 19)

Se tivéssemos de visualizar cada metáfora da poesia ficaríamos completamente aturdidos e confusos.


Embora existam leitores dados à visualização e passagens na literatura em que tais imaginações pareçam
exigidas pelo texto, a questão psicológica não deve ser confundida com a análise dos recursos metafóricos
do poeta. Esses recursos são, em grande parte, a organização de processos mentais que também ocorrem
fora da literatura. Assim, a metáfora está latente em boa parte da nossa linguagem cotidiana e é ostensiva
na gíria e nos provérbios populares. Os termos mais abstratos, por transferência metafórica, derivam de
relações físicas, em última análise (abranger, definir, eliminar, substância, assunto, hipótese). A poesia
reaviva esse caráter metafórico da linguagem e nos torna conscientes dele, assim como usa os símbolos e

mitos da nossa civilização: clássicos, teutônicos, celtas e cristãos. (Wellek; Warren, 2003, p. 21)

Todas essas distinções entre literatura e não-literatura que discutimos - a organização, a expressão
pessoal, a percepção e exploração do veículo, a ausência de propósito prático e, naturalmente, a
ficcionalidade - são reformulações, em uma estrutura de análise semântica, de termos bem antigos como
“unidade na variedade”, “contemplação desinteressada”, “distância estética”, “estruturação” e
“invenção”, “imaginação”, “criação”. Cada um deles descreve um aspecto da obra literária, um traço
característico das suas direções semânticas. Nenhum é satisfatório. Pelo menos um resultado deve surgir:
uma obra de arte literária não é um objeto simples mas, antes, uma organização altamente complexa, de

caráter estratificado, com múltiplos significados e relações. (Wellek; Warren, 2003, p. 22)

Além disso, a “identidade de conteúdo e forma” na literatura, embora a expressão chame a


atenção para as inter-relações íntimas dentro da obra de arte, é enganosa por ser excessivamente
simplista. Ela encoraja a ilusão de que a análise de qualquer elemento de um artefato, seja de conteúdo,
seja de técnica, deve ser igualmente útil e, portanto, absolve-nos da obrigação de ver a obra na sua
totalidade. “Conteúdo” e “forma” são termos usados em sentidos muito amplos e diversos para que sejam
úteis meramente justapostos; na verdade, mesmo depois de definição cuidadosa, eles dicotomizam a obra
de arte de maneira demasiado simples. A análise moderna da obra de arte tem de começar com questões

mais complexas: o seu modo de existência, o seu sistema de estratos. (Wellek; Warren, 2003, p. 22)
A natureza e a função da literatura devem, em qualquer discurso coerente, ser correlatas. O uso da poesia
decorre da sua natureza: todo objeto ou classe de objetos é usado com mais eficiência e racionalidade
pelo que é ou pelo que é centralmente. [...] De modo similar, a natureza de um objeto decorre do seu uso:

ele é o que faz. (Wellek; Warren, 2003, p. 23)

As concepções da natureza e da função da literatura mudaram no curso da história? A pergunta não é fácil
de responder. Se recuarmos o suficiente, podemos dizer que sim; [...] Não devemos, por outro lado,
exagerar a diferença feita pelas doutrinas da “arte pela arte” no fim do século XIX ou pelas doutrinas
mais recentes de poésie pure. A “heresia didática”, como Poe chamava a crença na poesia como
instrumento de edificação, não deve ser igualada à doutrina tradicional do renascimento, de que o poema

deleita e ensina ou que ensina através de deleite. (Wellek; Warren, 2003, p. 23)

O trabalho do poeta pode ser uma máscara, uma convencionalização dramatizada, mas, freqüentemente, é
uma convencionalização das suas próprias experiências, da sua própria vida. (Wellek; Warren, 2003, p.
92)

O critério freqüentemente aduzido da “sinceridade” é inteiramente falso se julga a literatura em função da


verdade biográfica, da correspondência com a experiência ou os sentimentos do autor, tal como atestado

por testemunho externo. Não há nenhuma relação entre “sinceridade” e valor como arte. (Wellek;
Warren, 2003, p. 93)

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