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coleção

artefíssil

H a n s U lrich G umbrecht

Atmosfera,

ambiência,
Stimmung
Sobre um potencial
oculto da literatura

TRADUÇÃO

Ana Isabel Soares

COBITRAPOnTO

E di to r a

PUC
R IO
© 20 11 , C arl Hanser Ver lag München
Título srcinal: Stimmungen Lesen: über eine verdeckte
Wirklichkeit der Literatur

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Preparação de srcinais: César Benjamin


Revisão tipográfica: Tereza da Rocha
C apa e projet o gráfico: A line Paiva e And réia Resende

Coleção dirigida por Tadeu Capistrano


E scola de B elas A rtes / U niversi da de F e deral do R io d e J an ei r o

Ia edição: maio de 20 14
Tiragem: 1.200 exemplares

CIP- BRASI L. CATALOGA ÇÃO-NA-PUBLICAÇÀO


SINDI CATO NA CIONA L DOS EDITORES DE LIVR OS, R J

G9S4a
Gumbrecht, Hans Ulrich, 1948-
Atmo sfera, ambiência, Stimmung : sobre um potencial oculto da literat ura / Hans
Ulrich G um brech t; tradução Ana I sabel Soares - 1. ed. - R io de Janeiro : Contrapon 
to : Editora l’UC Rio, 2014
176p. ; 2 lcm

Tradução cie: Stimmungen Lesen: über eine verdeckte Wirklichkeit der Literatur

ISBN 978-85-7866-097-0
ISBN (PUC-Rio) 978-85-8006-132-1

I. Filosofia. 2. Literatura. I. Título.

14-11253 CDD: 833


CDU: 821.112.2-3
Ler em busca de Stimmung:
como pensar hoje na realidade da literatura

Ao longo dos dez últimos anos, a ligação do mundo acadê


mico com a literatura - ou com a “ciência da literatura”,
como se diz em alemão - tem sido marcada por um am
biente de incerteza. Em rápida sucessão e com diferentes
níveis de produtividade intelectual, os estudos literários
foram dominados durante a segunda metade do século
XX por uma grande variedade de paradigmas teóricos.
O “new criticism ” deu lugar ao estruturalismo, que, por
sua vez, cedeu o passo ao marxismo. Marxismo e estru
turalismo abriram passagem para o desconstrucionismo e
para o novo historicismo. Essas duas correntes viriam a ser
substituídas pelos estud os culturais e pel os estudos de iden
tidade. A n orma pass ou a ser a mudança quase comp assada
dos pressupostos básicos acerca da interpretação literária.
Mas desde o começo da década de 1990 não surgiu nenhu
ma nova teoria da literatura que trouxesse um verdadeiro
desafio intelectual ou institucional. Isso não significa que
faltem publicações interessantes, nem que sejam poucos os
pensadores de respeito, nem que escasseiem as discussões.
Pelo contrário: agora que relaxou um pouco a pressão de
rever constantemente cada epistemologia, muitos de nós
encontramos tempo, mais do que nunca - além de mais
inspiração -, para nos concentrarmos nas literaturas das
diferentes épocas e para olhar para as complexas realida
des históricas que lhes deram o eco do tempo. Não é por

Atmosfera, ambiência, Stimmung 9


acaso que testemunhamos hoje um regresso às obras literá
rias mais canon izadas e mais clássicas. Em n ossos dias, sem
sacrificarmos a honra acadêmica, podemos até admitir que
lemos essas obras pelo puro prazer de as ler.
Libertou-se espaço para novas pesquisas. Este fato é
ainda mais notável porque durante muito tempo esse espa
ço pertencia a figuras cuja imponência levava os seus con
temporâneos a se declararem apoiadores ou opositores das
suas ideias. Que não se encontrem mais personagens assim
é ao mesmo tempo sintoma e causa da mudança que se foi
operando. Os estudos literários não podem, pura e sim
plesmente, manter-se inalterados com o desaparecimento
de professores tão distintos e tão intelectualmente vivazes
quanto Erich Auerbach, Kenneth Burke, Paul de Man, Jac-
ques Derrida, Lucien Goldmann, Wolfgang Iser, Claude Lé~
vi-Strauss, Wolfgang Preisendanz, Richard Rorty, Edward
Said ou Raymond Williams.
Hoje, após essas faltas, essas reorganizações e meta
morfoses (as quais, em regra, não foram geradas por ne

nhum
encararprojeto ou programa
profundas diferençasexplícito),
- quantasdamos
vezes por nós a
aparente
mente inconciliáveis e mutuamente exclusivas - entre os
pressupostos básicos relacionados com a ontologia da li
teratura. (Desnecessário referir que a atual paisagem inte
lectual é bem mais complexa, mas creio que sua estrutura
começa com uma divisão básica.) O que quero dizer com
“ontologia da literatura” é o conjunto de modos funda

mentais como os mundos


riais e enquanto textos literários - enquanto
de sentido fatos mate
- se relacionam com
as realidades que existem fora deles.
De um lado, o desconstrucionismo. Apesar de insisten
temente se proclamar inovador, ele sempre pertenceu àque
la “virada linguística” da filosofia. Isso significou - e, para

10 Hans Ulrich Gumbrecht


os seus defensores, cont inua a significar - que não pode
existir contato entre a linguagem e a realidade que existe
fora dela; as sugestões em contrário são vistas como ingê
nuas e logo descartadas com desprezo. Paul de Man, o ami

go
riu de Derrida,
- como maisdado
se fosse do que nenhum- que
adquirido outro, foi as
todas quem suge
funções
da literatura e dos modos de relacionamento com os textos,
por sere m “ alegorias da l eitura” , demonstram qu e a lingua
gem jamais se refere ao mundo.
Do outro lado estão o s estudos culturais. Pel o menos em
parte, eles compartilham os pressupostos metodológicos
(talvez fosse melhor dizer: ideológicos) do marxismo, que
consideram seu precursor e seu ponto de partida. Ao con
trário do desconstrucionismo, os estudos culturais - tal
como surgiram na Grã-Bretanha e vieram a transformar-se,
na Alemanha, em Kulturwissenscbaften (sem grandes dife
renças) - nunca foram céticos quanto à relação da literatu
ra com realidades extralinguísticas. Quando muito, os pes
quisadores nessa área de estudos fundiram de tal maneira
sua fé na validade da pesquisa quantitativa e empírica e sua
atitude de despreocupação relativa à epistemología, que os
modestos resultados filosóficos desta convergência fazem o
desconstrucionismo, com sua rejeição do referente, parecer
quase sedutor, ao menos em termos filosóficos.
Acredito que o campo dos estudos literários, no qual se
combinam diferentes forças intelectuais, arrisca ficar estag
nado enquanto permanecer empacado entre essas duas po
sições, cujas tensões e contrastes podem anular-se mutua
mente. Para ultrapassar tais perigos - que, em parte, já se
material izaram -, precisa mos de “ tercei ros” . A palavra ale
mã Stimmung
“terceiro” que eu(muito difícil
gostaria de traduzir)
de defender. exemplifica
Por analogia comum
a
noção de “ler para conhecer a intriga”, desenvolvida por

Atmosfera, ambiênci a, Stimmung 11


Peter Brooks já há alguns anos, eu gostaria de propor a ideia
de que os intérpretes e os historiadores da literatura leem
com a atenção voltada ao Stimmung. Uma das razões pelas
quais recomendo tal abordagem é que esta é a orientação de
grande número de leitores não profissionais (que não estão
- e, claro, não têm de estar - consc ientes dess e fato).

2
Para podermos ter consciência e perceber o valor dos dife
rentes sentidos e das nuances de sentido invocados pelo
Stimmung, será útil pensar nos conjuntos de palavras que
servem para traduzir o termo em algumas línguas. Em in
glês existem mood e climate. Mood refere-se a uma sensa
ção interior, um estado de espírito tão privado que não
pode sequer ser circunscrito com grande precisão. Climate
diz respeito a alguma coisa objetiva que está em volta das
pessoas e sobre elas exerce uma influência física. Só em ale
mão a palavra se reúne, a Stimme e a stimmen. A primeira
significa “voz”; a segunda, “afinar um instrumento musi
cal”; por extensão, stimmen significa também “estar corre
to”. Tal como é sugerido pelo afinar de um instrumento
musical, os estados de espírito e as atmosferas específicas
são experi mentados num continuum, como escalas de mú
sica. Apresentam-se a nós como nuances que desafiam
nosso poder de discernimento e de descrição, bem como o
poder da linguagem para as captar.
Interessa-me muito a componente de sentido que rela
ciona Stimmung com as notas musicais e com escutar os
sons.
vidos Einterno
bem sabido que não
e externo. escutamos
O sentido apenas com
da audição é umaoscom
ou
plexa forma de comportamento que envolve todo o corpo.
A pele, assim como modalidades de percepção baseadas no

12 Hans Ulrich Gumbrech t


tato, tem funções muito importantes. Cada tom percebido
é, claro, uma forma de realidade física (ainda que invisível)
que “acontece” aos nossos corpos e que, ao mesmo tempo,
os “ envol ve” . Outra dimensão da realidade que acont ece
aos nosso s corp os de modo semelhante é o clima atm osféri
co. Precisame nte por isso , mu itas veze s as referências à m ú
sica e ao tempo atmosférico aparecem na literatura quando
os textos tornam presentes - ou começam a refletir sobre -
os estad os de espírito e as atm osferas. Ser afetado pelo som
ou pelo clima atmosférico é uma das formas de experiência
mais fáceis e menos intrusivas, mas é, fisicamente, um
encontro (no sentido literal de estar-em-contra : confrontar)

muito
Toniconcreto comganhadora
Morrison, nosso ambiente
de umfísico.
Nobel de literatura,
descreveu uma ve z esse fenômeno atr avés do pa rad ox o e xa 
to de “ser tocado, como que de dentro”. No caso, interes
sava-lhe, creio, uma experiência comum a todos: que as
atmosferas e os estados de espírito, tal como todos os mais
breves e leves encontros entre nossos corpos e seu entorno
material, afetam também as nossas mentes; porém, não
conseguimos explicar a causalidade (nem, cotidianamente,
controlar os seus resultados). Não quero afirmar que com
preendo a dinâmica que aqui está em causa, nem que con
sigo fazer dela uma imagem completa. Ainda assim, a cir
cunstância não é motivo para não se chamar atenção para
o fenômeno e descrever as suas variantes.

À primeira vista, poderia parecer que a música e o clima


atmosférico não seriam nada além de metáforas para aquilo
que chamamos de “tom”, “atmosfera”, ou mesmo o Stim-
mung de um texto. Mas o meu argumento é que esses tons,

Atmosfera, ambiênci a, Stimmung 13


atmosferas e Stimmungen nã o existem nunca completamente
independentes das componentes materiais das obras -
principalmente da sua prosódia. Então, os textos afetam os
“estados de espírito” dos leitores da mesma maneira que o
clima atmosférico e a música. Por essa razão acredito que a
dimensão de Stimmung abre toda uma nova perspectiva so
bre - e a possibilidade de ex istir - a “ ontologia da literatu
ra”. Na já mencionada oposição entre o desconstrucionis-
mo e os estudos culturais, ambas as partes fazem afirmações
sobre a ontologia dos textos em termos do paradigma da
“representação”. Pressupõe-se que os textos “representem”
uma realidade extralinguística (ou, dito de outro modo,
“queiram” fazê-lo, mesmo que tal seja impossível). A prin
cipal diferença entre o desconstrucionismo e os estudos cul
turais tem a ver com a rejeição ou a afirmação da capacida
de que os texto s têm de se ligar a out ras co isas. Ao con trário,
uma ontologia da literatura que depende de conceitos resul
tantes da esfera do Stimmung não põe o paradigma da re
presentação no centro da questão. “Ler com a atenção vol
tada ao Stimmung ” sempre significa prestar atenção à
dimensão textual das formas que nos envolvem, que envol
vem nosso s corp os, enquanto realidade físi ca - algo que
consegue catalisar sensações interiores sem que questões de
representação estejam necessariamente envolvidas. De ou
tro modo, seria impensável que a declamação de um texto
lírico, ou a leitura em voz alta de uma obra em prosa, com
ênfase na componente rítmica, alcançasse e afetasse mesmo
aqueles leitores ou ouvintes que não compreendem a língua
das obras em questão. De fato, existe uma afinidade especial
entre
Sema performance
exceção, todoseoso Stimmung.
elementos que contêm textos po
dem contribuir para produzir atmosferas e ambientes, o
que significa que obras ricas em Stimmung não terão de ser

14 Hans Ulrich Gumbrecht


primordial mente - e, com certeza , n ão exclusiva mente - de
natureza descritiva. Existe uma relação entre certas formas
de narração e determinadas atmosferas específicas (por
exemplo, a convergência entre um ambiente elegíaco e a
estrutura de Memorial de Aires , de Machado de Assis, que
se discute em um dos capítulos deste livro). O cânone da
literatura mundial oferece uma série de exemplos de prosa
narrativa que, sem hesitar, poderíamos associar ao Stim-
mung. Veja-se o caso de Morte em Veneza , de Thomas
Mann. Não consigo pensar num único leitor conhecedor
desse texto que alguma vez se tivesse surpreendido com o
fato de Aschenbach e Tadzio nunca ficarem juntos; ou de
que a exist ência de Aschenbach - pelo menos desde que
chegam a Veneza - seja a de um ser-para-a -morte . O livro é
mesmo a evocação de uma decadência fin-de-siècle, em
toda a sua complexidade - em nuances, odores, cores, sons
e, acima de tudo, nas dramáticas alterações do clima at
mosférico, que tanta fama deram a essa obra. Em outras
palavras (e dito de um modo mais filosófico, ao menos na
perspectiva de Nietzsche e de Eleidegger), o que de mais
fascinante há nesse livro énuma
pode ser experimentada uma atmosfera específica,
consciência que só
historicamente
específica da presença da morte em vida.

4
Numa nota à margem, alguns dos meus bons amigos fize
ram-me ver - e revelo-o aqui para não deixar nada de fora
- que devo apontar a relação entre minha defesa do Stim-
mung e o objetivo mais amplo, mais ou menos filosófico,
de tornar os efeitos de “presença” um objeto de pesquisa
nas humanidades. Na relação que mantemos com as coisas-
-no-mundo (e isso é uma consequência do processo de mo-

Atmosfera, ambiência, Stimmung 15


dernização), consideramos a interpretação - a atribuição
de sentido - um processo da maior importância. Por oposi
ção, eu gostaria de sublinhar que as coisas estão “sempre-
-já” - e simultaneamente ao nosso hábito irrefletido de atri
buir significações a respeito do que as coisas supostamente
implicam - numa relação necessária com os nossos corpos.
A essa relaç ão chamo “ presença” . Podemos tocar os obje
tos ou não. Os objetos, por seu turno, podem nos tocar (ou
não), e podem ser experimentados como coisas que se im
põem ou como coisas inconsequentes. Tal como aqui as
descrevo, as atmosferas e os ambientes incluem a dimensão

física dos fenômenos;


articulação pertencem inequivocamente, as suas
à esfera da experiência formasPer
estética. de
tencem, sem dúvida, àquela parte da existência relacionada
com a presença, e as suas articulações valem como formas
de experiência estética. (Claro que isso não significa que
cada articulação da presença que vale como “estética” va
lha também como atmosfera ou como ambiente.)
Em termos conceituais, tudo fica mais complicado.

Contra
luta, o pano considerar
podemos de fundo histórico da modernização
que “a experiência estética”abso
con
siste numa muito carregada simultaneidade de efeitos de
sentido e efeitos de presença (por oposição à experiência
cotidiana, que apenas registra os primeiros). Pode dar-se o
caso de agora prestarmos mais atenção às atmosferas, aos
climas e à dimensão da presença em geral do que se presta
va há cinquenta, duzentos ou quinhentos anos. Escusa di

zer que isso não


de presença (e, significa que atmosferas
entre estes, ficou mais fácil causarEm
e climas). efeitos
vez
disso, poderá ter alguma coisa a ver com um modo c otidia
no de ser-no-mundo que, para a maioria de nós, funde
consciência com software - um modo que, por assim dizer,
suspende a experiência da presença. Talvez esse estado de

16 Hans Ulrich Gumbrecht


retirada tenha provocado uma necessidade aumentada - e
um maior desejo - de encontros com a presença.

5
Numa brilhante contribuição para o dicionário Ästhetische
Grundbegriffe, David Wellbery recentemente reconstruiu -
pela primeira vez - a história do Stimmung e explorou as
várias camadas históricas e semânticas do termo. Gostaria
de revisitar alguns pontos-chave desse artigo, principal
mente porque ilustram o modo como a abertura às atmos
feras e aos climas pode engrandecer nossa experiência da
literatura, mas também porque seus métodos de pesquisa
nos incitam a refletir sobre a forma específica da historici
dade própria ao Stimmung. Wellbery começa por e xamin ar
o ensaio “Falconet”, de Goethe, publicado em 1776; esse
texto põe em discussão a sensação de unidade e harmonia
que tudo abarca, frequentemente vivenciada em contextos
absolutamente triviais (por exemplo, na loja do sapateiro).
Os artistas, observou Goethe, procuram dar forma objetiva
- num texto, por exemplo - às coisas intangíveis que en

contram.
StimmungPouco
viria tempo depois daum
a desempenhar publicação do ensaio, ono
papel determinante
início do discurso da estética filosófica, que começava a
surgir naquela altura; esse fato sugere que a homogeneida
de das situações e das experiências tinha se transformado
num tema para a sociedade contemporânea, que rapida
mente se via sujeita à diferenciação interna. Na Crítica do
juízo - em que a metáfora de referência é a afinação de um
instrumento musical -, Kant afirmava que “um Stimmung
equilibrado” é condição necessária às faculdades emocio
nais e racionais da compreensão humana quando se combi
nam em juízos de gosto. A interseção de sentimento e razão

Atmosfera, ambiênci a, Stimmung 17


também determinava o sentido do termo para os filósofos
do idealismo alemão (que muitas vezes faziam equivaler
sentimento e razão a subjetividade e objetividade). O con
ceito é importante até hoje. De modo semelhante, lê-se na
vigésima carta de Schiller, Da educação estética·.
Para passar da sensação ao pensamento, a alma atra
vessa uma posição de equilíbrio na qual a sensibilidade
e a razão atuam simultaneamente. Sensibilidade e razão
combinam-se para suspender a energia que determina
ambas; isto é, o antagonismo delas gera a sua negação.
Essa situação de equilíbrio - em que a alma não está
constrangida nem física nem moralmente, mas está ati
va de duas maneiras - merece ser chamada de estado de
liberdade.

Friedrich Hõlderlin propô s um a concepção de Stimmung


que divergia da visão dos seus amigos e dos seus contempo
râneos. Para ele, a palavra referia-se aos sons que eram dife
rentes daqueles que existiam no seu tempo e no seu espaço,
que ele acreditava ter encontrado no mundo - e nas o bras

-postulava
da Grécia antiga.
uma Setenta
conexão e cincoem
semelhante anos depois, mas
estrutura, Nietzsche
mui
to mais especulativa. Para Nietzsche, a palavra Stimmung
designava as memórias e intuições das fases primordiais da
existência humana. Essas maneiras de empregar o conceito
de Stimmung produziram um novo sentido, cuja complexi
dade ia muito além das tarefas de mediar entre posições
opostas (inclusive as radicalmente contraditórias) e de forjar
unidade e harmonia. Agora, Stimmung passava a significar
uma existência completa, unificada - um estado impossível
de atingir na idade moderna. A p artir d essas reflexões, Alois
Riegl estava convencido de que o Stimmung teria boa fortu
na no século XX como “princípio de nostalgia”. Duas cor

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rentes intelectuais seguiram-se a tal previsão. Enquanto
princípi o de nostalgia com “ fut uros” (isto é, “ esco lhas” ),
Stimmung tornou-se o objeto de pensamento que se pode
considerar como pertencente à filosofia da história. Ao m es
mo tempo, a ligação entre Stimmung e as fases pré-históri
cas da evolução humana sugeriam que o futuro da humani
dade passava por ceder às forças do irracionalismo.
Tomando como ponto de partida principalmente o últi
mo sentido dessa plêiade (e deixando de fora os conceitos
arcaizantes), Heidegger concede ao Stimmung um papel
fundamental em Ser e tempo (1927), sua obra mais impor
tante. Nessa obra, Stimmung é descrito como parte inte

grante
bientes da condição variados
e atmosferas existencial de constante
- e em “estar-lançado”. Am
mutação -,
escreve Heidegger, condicionam nosso comportamento e
nossas sensações na existência do dia a dia; não somos li
vres para os escolher. E certo que esse aspecto da obra de
Heidegger - seu entendimento da noção de Stimmung -
não foi muito difundido. Mais importante para a sua re
cepção, no século XX, foi um uso do conceito que, de
modo paradoxal, confirmou a anterior previsão de Riegl
sobre o futuro. Essa confirmação era paradoxal porque a
carga de sentido que Riegl atribuíra a Stimmung demons
trava, por um lado, com o essa sua defini ção ti nha se torn a
do um ponto de referência na filosofia da história; por ou
tro lado, fez que surgissem influentes vozes que negavam
sua aplicabilidade no presente.
Era desse modo que Leo Spitzer (judeu nascido em Vie
na e filólogo das línguas românicas) concluía o seu Ideias
clássicas e cristãs sobre a harmonia do mundo - Prolegó
menos para uma interpretação da palavra “ Stimmung ”
(publicado em duas partes, em 1944 e 1945, depois de o
autor ter emigrado para os Estados Unidos): com a afirma

Atmosfera, ambiênci a, Stimmung 19


ção de que, em vista da Gu erra M undial que então termina
va, a “harmonia” perdera para sempre o lugar enquanto
enquadramento potencial para a cosmologia e a existência
humana. Durante os meses finais do conflito, o poeta ale
mão (e médico militar) Gottfried Benn também sublinhou
- quase com uma nota de desdém - que o Stimmung , enten
dido como mediação entre contrários, tinha ali o seu fim.
Haveria de escrever depois - e não fica claro se essa contra
dição aparente foi proposital ou se escapou à sua atenção
- que a atmosfera e o ambiente do seu tempo se caracteri
zavam pela frieza e a sobriedade do “existencialismo”.
Nessa altura, deu-se uma viragem na história do conceito;
a partir
ções daí, Stimmung
semânticas - mais
da palavra - prec isamente
deixou , uma
de exerc er odas varde
papel ia
“mediação” e de “harmonia”.

6
Desde que Stimmung deixou de implicar qualquer form a de
reconciliação ou de harmonia - inflexão totalmente incom
patível com seu sentido srcinal -, ou seja, desde que a au
sência de Stimmung no sentido clássico passou a valer
como uma das formas de Stimmung , o conceito ficou dis
ponível para uso universal. Hoje não existe situação sem
sua atmosfera própria, sem seu ambiente “próprio”, o que
significa que é possível procurarmos o Stimmung caracte
rístico de cada situação, obra ou texto. Por isso, o livro que
o leitor agora tem em mãos não se limita a contextos histó
ricos em que o desejo de mediação e de harmonia ocupe
lugar central. Na verdade, acontece o contrário: o Stim
mung é explorado como categoria universal. Não há cultu
ra nem época que não admita a questão universal das at
mosferas e dos ambientes específicos.

20 Hans Ulrich Gumbrecht


No entanto, restam algumas outras questões, de nature
za histórico-filosófica. Que sentidos e dimensões particula
res do Stimmung se obtê m sob determinadas condições his
tóricas e culturais, e por quê? Desse enquadramento faz
parte outra questão coadjuvante: que períodos da tradição
ocidental entenderam o Stimmung (ou seus equivalentes
funcionais) como matéria a ser explicitamente tematizada?
Para ser breve, a seguir proponho três teses como resposta.
Em primeiro lugar, é significativo que, no início da era
moderna, as antologias de narrativas e de poemas literários
fossem acompanhadas de indicações sobre o espaço onde
deveriam ser desfrutadas e sobre a música que deveria

éacompanhar a suaconh
o exemplo mais apreciação. mas aDecameron,
ecido; O de Boccaccio,
obra de Maria de Za yas
(de que falarei adiante) é também exemplar. Niklas Luh-
mann chamou tais instruções de “comunicação compacta”.
Com isso, ele queria dizer que, à medida que a literatura se
autonomizava e se tornava independente dos contextos e
dos lugares específicos da sua performance, os autores iam
definindo enquadramentos de comunicação (eu acrescenta
ria: enquadramentos de atmosfera) para sua recitação e
para sua recepção. Talvez a maior atenção e consciência do
Stimmung tenha se desenvolvido a partir da experiência de
isolamento que condicionou a emergência das modernas
forma s de subjetivida de. O R omantism o é a segunda - e
talvez a mais exemplar - época de atmosfera e ambiente.
Stimmungen que exprimiam nostalgia ou revolta opunham-
-se à monotonia da vida na sociedade “burguesa”.
Vejo o final do século XIX como o terceiro momento
em que o Stimmung ganhou forma condensada e intensi
ficada, quando se tomaram populares a pintura histórica
e a arquitetura historicizante. Foi também quando Riegl
declarou que a atmosfera e o ambiente se desenvolveriam

Atmosfera, ambiência, Stimmung 21


no século XX enquanto apetite crítico de nostalgia - uma
previsão que viria a confirmar-se de modo paradoxal.
O final do século XIX foi um tempo cuja complexidade
parece cada vez mais escapar às formas tradicionais da lite
ratura e da arte; em consequência, tornou-se cada vez mais
pronunciado o desejo de pontos individuais de acesso à
harmonia. N ão por a caso , nesse momento W ilhelm Dilthey
propôs fundamentar os métodos humanísticos de interpre
tação nos encontros pessoais com os textos literários e com
as situações que os tinham srcinado.
Já no tempo de Dil they - embo ra essa tendênc ia se t ives
se acentuado de forma m ais marcante na década de 1 92 0, e
à medida que se aproximava o meio do século (com conse
quências que alterariam para sempre, como vimos, os con
tornos semânticos do termo) - o protesto se fazia ouvir
contra a sobrevalorização da harmonia nas obras culturais.
É interessante notar que, a partir de uma concessão univer
salizada de Stimmung, podemos afirmar que esses mesmos
protestos pertenciam a uma atmosfera particular ou a um
ambiente cultural específico. As reservas críticas sobre a

análise desse
continuam aspectonado
a surgir, fenômeno
medida em queforam
ainda surgindo - e- da
persist em
crença de que o Stimmung só está acessível a partir da
experiência rara e subjetiva. Aliás, esse tipo de objeção
pode mesmo ser formulado contra este livro. Hegel já le
vantara questões sobre a falta de objetividade:
A principal tendência da [...] filosofia superficial é
fundamentar a ciência não no desenvolvimento do
pensamento e do conceito, mas na percepção imediata
e na imaginação contingente; e, do mesmo modo, re
duzir a complexa articulação interna do ético [...] à
arquitetônica da sua racionalidade - que, através de

22 Hans Ulrich Gumbrecht


determinadas distinções entre as diferentes esferas da
(...] vida [...] e através das estritas proporções em que
cada pilar, arco e proteção se sustentam, produz a for
ça do todo a partir da harmon ia de suas partes redu
zir esta refinada estrutura a uma tolice de “coração,
amizade e entusiasmo”.

7
A tese deste livro - e o desafio que nele se apresenta - é a de
que concentrar-se nas atmosferas e nos ambientes permite
aos estudos literários reclamar a vitalidade e a proximidade
estética que, em grande parte, desapareceram. Essa atitude
só será eficaz se tivermos em conta obras determinantes,
como as de Hegel, que ao mesmo tempo nos alertam e nos
motivam. N ão se trata de procurar possibilidades de exi stên
cia há muito desaparecidas, para as quais uma vez ou outra
pudé ssem os querer escapar. (Essa orientaç ão logo seria - ine
vitavelmente - suspeita de i ncentivar os maus hábitos da ilu
são e da compensação.) Em vez disso, o objetivo é seguir as
configurações da atmosfera e do ambiente, de modo a en
contrar, em formas intensas e íntimas, a alteridade.
O ponto de partida e o catalisador da experiência da al
teridade histórica e cultural residem, contra a polêmica de
Hegel, no campo mais fenomenal e objetivo dos textos li
terários: na sua forma prosódica e poética. Sem saber com
rigor do que se tratava, ou de quais “sentimentos” estavam
ali envolvidos, podemos ter certeza de que os dramaturgos,

os atores ecom
obcecados os espectadores da Parisgrave,
o verso fortemente do século XVII
pesado de estavam
páthos,
com a forma que chamavam de “verso alexandrino”. Num
sentido literal, ele fazia parte da realidade material da cidade
naquele tempo. Em vez de revelar o sentido ou os objetos

Atmosfera, ambiência, Stimmung 23


de referência, o tom desses versos é uma componente texto-
-imanente do passado da cidade. Sempre que recitamos os
monólogos ou os diálogos da maneira que Corneille ou Ra-
cine os imaginaram, convocamos esses textos para uma nova
vida. Os sons e os ritmos das palavras são atirados contra
nossos corpos do mesmo modo que eram atirados aos cor
pos dos espectadores naquele tempo. Aí reside um encontro
- um imedia tez, uma objetividade do passado-fe ito-prese nte
- que não pode ser minado por nenhum ceticismo.
Sobretudo nesse sentido, mas claro que não se concen
trando exclusivamente na prosó dia, os capítulos deste livro
revisitam casos de presença, imediatez e objetividade - e
prestam particular atenção aos contextos sempre já asso
ciados com atmosfera e ambiente. Por exemplo, relaciono
o tom surpreendentemente “nervoso” (ao menos da pers
pectiva atual) das cantigas compostas por volta de 1200
por um homem conhecido pelo nome de Walther von der
Vogelwei de com o clima de instabilid ade política e de incer
teza religiosa que deve tê-lo rodeado, e no qual ele dirigiu
suas polêmicas lutas. Através das novelas picarescas do sé
culo XV I, acredito que seja possível viv enciar uma atm osfe
ra de tensão entre a vida do dia a dia e a ortodoxia religiosa
que deve ter sido típica da Espanha da Contrarreforma. Os
sonetos de Shakespeare abrem todo um mundo de dese
jo erótico, inseparável do seu entorno material específico.
O sobrinho de Rameau, de Diderot, através do seu prota
gonista e do ambiente em seu redor, nos confronta com a
rudeza quase asfixiante de uma atitude que deve ter sido
dominante nos anos que antecederam a Revolução Fran
cesa. Mem orial d e Aires - o diário ficcional que Joaquim
Machado de Assis, grande luz das letras brasileiras, escre
veu no começo do século X X - nos conduz à melancolia e
ao vago abandono que deve ter sido o cenário do Rio de

24 Hans Ulrich Gumbrecht


Janeiro no tardo-império. No contexto europeu, Morte em
Veneza, a famosa obra de Thomas Mann, torna presente
esse mesmo período; o texto combina de modo fatal as sen
sações inefáveis do protagonista com o clima atmosférico
da cidade - o seu entorno material.
De maneiras diferentes, por meio de diferentes elemen
tos textuais, todas essas obras permitem que o leitor encon
tre realidades do passado. Temos tendência para desconsi
derar os efeitos de imediatez que provocam; mas, de fato, é
quase uma obrigação profissional, para os acadêmicos e os
críticos de hoje, que os desconsiderem. Essa imediatez na
experiência de presentes passados ocorre sem que seja ne
cessário compreender o sentido das atmosferas e dos am
bientes; não temos de saber quais motivações ou circuns
tâncias os ocasionaram. E que aquilo que nos afeta no ato
da leitura envolve o presente do passado em substância - e
não um sinal do passado, nem a sua representação.

-Uma tendência
espec ialmenterecente nos estudos
as canônicas - comliterários
o se elas séeler as obras
propusessem
enquanto alegorias de argumentos ou agendas filosóficos.
(É evidente que, aqui, não se trata de, uma vez ou outra,
recorrer a conceitos ou argumentos filosóficos para ler lite
ratura.) Tal abord agem parec e procura r libertar o conteúdo
ideacional das entediantes complexidades da forma. Mes
mo no melhor dos casos, esse modo interpretativo é inca
paz de responder à questão sobre o motivo de os escritores
decidirem tão enfaticamente usar formas literárias compli
cadas, complexas, para sugerir afirmações filosóficas. En
contro aqui a confirmação da minha crença de que uma
função mais importante dos textos literários é o potencial

Atmosfera, ambiência, Stimmung 25


contido na sua concretude e na sua imediatez histórica. En
tendo por “concretude” que cada atmosfera e cada am
biente - por m ais semelhante s que sejam a ou tros - têm a
qualidade singular de um fenômeno material. Podemos
apontar para essa singularidade; porém, qua singularidade,
nunca poderá ser definida em absoluto pela linguagem,
nem circunscrita por conceitos.
As leituras que se concentram no Stimmung - por opo
sição aos esforços de encontrar as alegorias dos argumen
tos filosóficos (que, naturalmente, não devem ser rejeitadas
sem mais) - insistem na distância. Isso não significa que
não se possa querer atingir a “presentificação” das atmos
feras e dos
mente. No climas
começododap Segunda
assa do tendo
Guerraobjet ivos filosóficos
Mundial, por exemem
plo, o grande filólogo Karl Vossl er - que na década de 19 20
já tinha escrito uma série de ensaios que podem ser consi
derados reflexões sobre o Stimmung - publicou um livro
sobre a poética da solidão na Espanha do século XVII. Da
sua leitura, pelo menos aos nossos olhos hoje, resultou um
ambiente - e talvez também um sentido de esperança - a
partir do misticismo lírico dos judeus marranos. Acredito
que Vossler compreendeu essa componente dos textos que
analisou como “consolo da filosofia”, que pretendia con
trapor às am eaças e às imposições de si lêncio da Alemanha
do seu tempo. A ênfase da imediatez histórica na leitura
que tem como foco o Stimmung não deveria corresponder
a uma ingenuidade política. No entanto, aquilo que
distingue a leitura voltada para o Stimmung de outros mo
dos de interpret ação liter ária - em muitos dos c aso s - é
uma ausência da distinção entre a experiência estética e a
experiência histórica. A leitura que Vossler faz das obras
espanholas do século XVII torna presente um momento do
passado. Esse passado-tornado-presente se define no seu

26 Hans Ulrich Gumbrecht


caráter estrangeiro. Simultaneamente à experiência históri
ca, então, a leitura produz consolo e edifica; e, porque são
de qualidade diferente da alteridade histórica, é correto
chamar esses fenômenos de “estéticos”.
Aquilo que Vossler transformou em objeto de expe
riência - com base num número limitado de obras de um só
gênero - foi a atmo sfera de um mom ento histórico, não o
ambiente de uma situação individual. Além de tornar pre
sente o ambiente de textos particulares, deveríamos tentar
capturar os ambientes predominantes de situações históri
cas mais abrangentes, a partir da análise de obras de dife
rentes srce ns, fo rmas e conteúdos. Foi o que procurei faze r
nos capítulos que escrevi sobre o “surrealismo” do início
da década de 1900, sobre a ausência de representações da
alegria nessa mesma década e sobre o ambiente intelectual
do “desconstrucionismo” no fim do século XX. Ao fazê-lo,
deparei-me com uma curiosa continuidade entre diferentes
sentidos da (suposta) impossibilidade de representar o
mundo. A princí pio - e isso deve ser sublinhado - não exis
te nenhum períod o histórico, nenhum plano fenomenológi -
co, nenhum gênero e nenhum meio que revele uma afinida
de exclusiva em relação ao Stimmung. Um quadro, uma
canção, convenções gráficas, uma sinfonia, qualquer uma
dessas obras pode absorver atmosferas e ambientes e, pos
teriormente, devolvê-las para uma experiência num novo
presente. Por isso mesmo há capítulos deste livro que se
debruçam sobre as telas de Caspar David Friedrich ou Me
and Bobby McGee, a canção de Janis Joplin.

Ainda assim,
caminharmos é importante
para retomar a da
além da objetividade questão:
forma,depois de
ao ten
tar encontrar a atmosfera e o ambiente, como podemos evi
tar nos afogar n a “ tolice do cora ção ” ? N ão há respost a
definitiva a essa pergunta, nem um modo de garantir imu

Atmosfera, ambiência, Stimmung 27


nidade a esse afogamento. Concentrar-se nos fenômenos
formais permite evitar o pior, mas é igualmente importante
não atri buir qualidades a bsolutas - nem fazer af irmações
existenciai s sobre uma supo sta superioridade - ao depar ar-
-se com atmosferas e ambientes de culturas do passado ou
de outras. Ao ser acrescentado à experiência da empatia, o
ato de leitura com foco no Stimmung deveria ser acompa
nhado de uma medida de sobriedade e de moderação ver
bal. Em muitos casos, mais vale apontar na direção de am
bientes possíveis do que descrevê-los em seus pormenores
(muito menos celebrá-los).

Mas como poderemos revelar atmosferas e ambientes,


voltar a percorrer o seu caminho e compreendê-los? Haverá
alguma abor dagem profissional - ou “ cientí fica” ? Preci sa
mente pelo fato de que cad a Stimmung é histórica e cultur al
mente único, e porque os mesmos elementos que constituem
o fenômeno desaparecem quando está em causa o sentido

-estudos
e, com tem
certeza, pelo poucopela
demonstrado interesse que nosso
questão campo
duvido de
do poder
das “teorias” para explicar atmosferas e ambientes, e olho
com suspeição para a vi abili dade de “ mé todo s” que os iden 
tifiquem. Aliás, meu ceticismo quanto aos métodos é mais
forte ainda, pois acredito que os pesquisadores na área das
“ciências humanas” devem confiar mais no potencial do
pensamento contraintuitivo do que em uma “trilha” ou um
“caminho” preestabelecido (ou seja, o sentido etimológico
de método). O pensamento contraintuitivo não receia des
viar-se das normas da racionalidade e da lógica que regulam
o cotidiano. (E isso por boas r azões!) Antes, o seu movi men
to se inicia por “ palpites” . Muitas vez es percebemos um po 

28 Hans Ulrich Gumbrecht


tencial ambiente do texto a partir da irritação ou do fascínio
que uma palavra ou um pormenor nos provoca - o palpite
de uma diferença de tom ou de ritmo.
Seguir um palpite significa confiar durante algum tempo
numa promessa implícita e dar os passos no sentido de des
crever um fenômeno que seja desconhecido - que nos des
pertou curiosidade e, no caso de atmosferas e ambientes,
chega a nos envolver ou até nos encobrir. Quando tal des
crição acontece, referindo-se a uma obra literária, é prová
vel que - até certo ponto - o efeito coincida com o do texto
“ prim ário” . Escrever assim t em algumas semelhanças c om
a ideia do ensaio crítico-literário desenvolvida por Georg
Lukács no seu livro A alma e as formas, de 1911. Lukács
talvez tenha seguido Dilthey no seu desejo de uma expe
riência imedia ta na leit ura de tex tos literários - porém , cer
tamente estava do lado contrário ao da defesa que Dilthey
fazia da “interpretação” como prática central das Geis-
teswissenschaften [ciências do espírito], Lukács reclamava
que os ensaios desviam-se do objetivo “científico” de des
coberta da verdade. “ É corret o que o ensaísta busque a ve r
dade”, em
partiu escreveu,
busca “mas deve fazê-lo
dos burros de seu àpaimaneira de Saul.
e descobriu umSaul
rei
no; assim será com o ensaísta - aquele que é de fato capaz
de procurar a verdade -; encontrar, no final de sua busca,
aquilo que não procurava: a própria vida.”
A distinção que Lukács estabelece entre “a verdade” e
“ a vid a” situa os seus objeti vos num lug ar dif erente daquel e
próprio às questões de “interpretação” - isto é, o da tarefa
de desnudar a “verdade” (isto é, o conteúdo proposicional)
que se presume estar contida nas obras. Um ensaio que se
concentre nas atmosferas e nos ambientes não chegará ja
mais à verdade inclusa num texto; antes, abarcará a obra
como parte da vida no presente. Tal abordagem tem conse-

Atmosfera, ambiência, Stimmung 29


quências para este meu livro; em alguns capítulos, começo
por sondar as profundidades, mas é impossível dar conta
das suas reais dimensões. Ler em busca de Stimmung não
pode significar “ decifrar” atm osferas e ambient es, pois e stes
não têm significação fixa. Da mesma maneira, tal leitura
não implicará reconstrui r ou an alisar a sua gêne se histór ica
ou cultural. O que importa, sim, é descobrir princípios
ativos em artefatos e entregar-se a eles de modo afetivo e
corpo ral - render-se a el es e apo ntar na direção deles. Claro
que não há qualquer problema em reconstruir a gênese ou
a estrutura de atmosferas e ambientes particulares, mas
análises assim são secundárias. Acima de tudo, meu in tento
é chamar atenção para os Stimmungen , revelar o seu po
tencial dinâmico e promover - tanto quanto seja possível -
seu tornar-se-presente. Para conseguir realizar esses gestos
expressivos, nem sempre é necessário escrever na escala dos
tradicionais debates acadêmicos, com suas pesadas notas de
rodapé e todo esse aparato. Aliás, não é necessário sequer
acom panh ar o desenrolar d e um amb iente ao longo de toda
uma obr a, conforme esta vai se des envol vendo em toda sua
complexidade. O que estou buscando é uma experiência
em que as certezas e as convenções de como se escreve estão
ainda por definir. A longo prazo, imagino, escrever sob a
influência do Stimmung poderá bem significar atirar os tão
propalados “métodos” no rio do esquecimento.

10

Como já foi dito mais de uma vez, a possibilidade de ir


além dos meros gestos expressivos pode concretizar-se se
seguirmos a emergência histórica das atmosferas e dos am
bientes, e seu modo de articulação textual. Tais exercícios
são o que proponho, por exemplo, nos capítulos sobre a

30 Hans Ulrich Gumbrecht


novela picaresca e sobre a ausência de representações de
felicidade na década de 19 20. A o mesmo tempo, é imp ossí
vel formular uma teoria geral acerca das condições que são
necessárias à produção de Stimmung em geral - ou até em
particular. As circunstâncias favoráveis podem ser cumpri
das por meio de eventos de tipo variado: derrotas ou vitó
rias militares, prosperidade ou pobreza, a construção de
nações ou a frustração de tais esforços. Para que a exigida
densidade de sensações seja articulada nos textos, mais do
que no nível da representa ção - ou seja, par a que as fo rmas
e os tons sejam “carregados”, como se de carga elétrica -, é
necessário que ocorra a habitualização. Em outras pala
vras: sempre que um texto seja penetrado pelo Stimmung,
poderemos assumir que terá ocorrido uma experiência pri
mária, ao ponto de tornar-se reflexo pré-consciente. Algo
semelhante acon tece - em um ní vel mais a bstrato - quando
a sensibilidade ao Stimmung foi refinada, como é o caso do
nosso presente cultural. Este livro, por exemplo, começou
por ser um conjunto de ensaios breves sobre atmosferas e
ambientes literários publicados há alguns anos no comple
mento Geisteswissenschaften do jornal alemão Frankfurter
Allgemeine Zeitung. Essa série viria a fazer amplo sucesso,
e sua recepção foi mais empolgante e mais complexa do que
a de outros textos meus, também com temas específicos e
publicados nas páginas daquele mesmo jornal.
Talvez essa reação fosse um indicador de que qualquer
coisa, entre o que referia Wellbery no final do seu artigo
sobre Stimmung, começara já a tornar-se realidade. Na altu

ra em tempo,
o seu que escrevia, Wellbery
mas admitia que descartava
poderia viraapossibilidade para
se concretizar:
Poderíamos supor que o desaparecimento do Stimmung
dos vocabulários de estética tenha algo a ver com o fato

Atmosfera, ambiência, Stimmung 31


de as metáforas musicais terem deixado de ser autoevi-
dentes enquanto meios de dar às realidades físicas uma
expressão figurativa. Se assim for, terá morrido uma
tradição semântica que data da Antiguidade. Seja como
for, a atual discussão sobre o conceito revela que, na
mudança das noções e dos paradigmas estéticos que en
tretanto ocorreu, a ideia de Stimmung, sempre que pos
sível, comprova a capacidade de revelar novos aspectos
do sentido. Talvez a adaptabilidade do conceito tome
possível ultrapassar a sua atual irrelevância e, em confi
gurações futuras, venha a manifestar-se um inesperado
potencial para o sentido.

Desde então, Wel lbery já alterou sua afir mação - preci


samente, já sublinhou o cumprimento surpreendentemente
veloz de suas previsões.
No que toca ao meu entendimento da situação nos dias
de hoje, gostaria de falar menos no desenvolvimento de um
novo “potencial para o sentido” do que no intensificado
fascínio estético que agora surge associado a Stimmung·,
aqui, são secundárias as questões de sentido e de significa
ção. O que me interessa são os ambientes e as atmosferas
absorvidos pelas obras literárias enquanto forma de “vida”
- ambientes com substância física, que nos toca “como se
de den tro” . A ânsia pelo Stimmung tem aumentado, pois
muitos de nós - talvez principalmente pessoas de mais ida
de - sofrem de uma existência cotidia na que é muitas ve
zes incapaz de nos rodear ou de nos envolver fisicamente.
A ânsia pelo ambiente e pela atmosfera é uma ânsia pela
presença - talvez uma variante dessa ânsia que pressupo
nha o prazer de lidar com o passado cultural.
Para debelar essa ânsia, como sabemos, já não é neces
sário associar Stimmung e harmonia. E, desde que as at

32 Hans Ulrich Gumbrecht


mosferas e os ambientes continuem a nos tocar física e
afetivamente, também é secundário procurar demonstrar
que as palavras que usamos podem designar realidades
extralinguísticas. O ceticismo do “construtivismo” e a
“virada linguística” têm a ver apenas com ontologias da
literatura baseadas no paradigma da representação. Isso
não importa quando estamos lendo com a atenção volta
da às atmosferas e aos ambientes: eles pertencem a subs
tância e à realidade do mundo.

Atmosfera, ambiência, Stimmung 33

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