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06/04/2018 Repúdio à impunidade - 06/04/2018 - Vladimir Safatle - Folha

vladimir safatle (/colunas/vladimirsafatle/)

OPINIÃO

 Repúdio à impunidade
Não há democracia liberal quando um chefe militar faz declarações
para chantagear julgamentos

6.abr.2018 às 2h00

EDIÇÃO IMPRESSA (//www1.folha.com.br/fsp/fac-simile/2018/04/06/)

"O Exército brasileiro compartilha com todos os cidadãos de bem o repúdio


à impunidade e o respeito à constituição, à paz social e à democracia", disse
o general Eduardo Villas Bôas (https://folha.com/ycflq5dp), o ocupante do posto mais
alto do Exército horas antes do famoso julgamento do STF a respeito do
habeas corpus pedido pelo ex-presidente Lula.

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06/04/2018 Repúdio à impunidade - 06/04/2018 - Vladimir Safatle - Folha

No que foi seguido por loas de vários outros generais, inclusive o general
Cristiano Pinto, incapaz de esconder sua admiração por um historiador
antissemita e simpatizante do nazismo, Gustavo Barroso, ao citá-lo em sua
afirmação emblemática: "todos nós passamos. O Brasil fica (...) O Brasil é
eterno e o Exército deve ser o guardião vigilante da eternidade do Brasil".

Como se sabe, não há democracia liberal alguma na qual um chefe militar faz
declarações políticas visando chantagear um julgamento da Corte Suprema,
e isso é visto como aceitável. Mas o Brasil não é uma democracia sequer para
os padrões de aparência da democracia liberal.

Ficou claro nesta semana como o país é um Estado tutelado no qual as


Forças Armadas interferem explicitamente na configuração das eleições,
alimentando os processos de depuração de candidatos.

A noção de um transição democrática pacífica criou o paradoxo de uma


transição infinita. Na verdade, transição cujo fim era infinitamente diferida
porque não era transição alguma. Transição sem Justiça de transição, sem
depuração das Forças Armadas de seus elementos criminosos, sem fim do
poder militar, com sua polícia, sem afastamento dos antigos políticos que
deram sustentação à ditadura.

O Brasil não era uma democracia frágil. Ele não era democracia alguma e
sequer a esquerda no governo fez realmente algo para expor e confrontar
este poder autoritário, exterminador e violento que se escondeu durante 30
anos sob a capa de "sociedade democrática".

De toda forma, a declaração do general não deixa de ter sua ironia. É


verdade, há cidadãos neste país que repudiam a impunidade, principalmente
a impunidade de torturadores, estupradores, assassinos que usam fardas
militares e que, até hoje, são louvados pelo general e seus amigos como
heróis.

Responsáveis por crimes contra a humanidade que morrerão tranquilos,


como morriam tranquilos os antigos oficiais nazistas que tiveram a boa ideia
de vir passar o fim de seus dias na América Latina.

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Mas há cidadãos deste país que também não suportam a impunidade,


principalmente a impunidade de casos de corrupção que cresceram como
grama quando os militares resolveram guardar de forma vigilante a
"eternidade do Brasil" de 1964 a 1985.

Há lá a sua peculiaridade de ver cúmplices de criminosos falando alto contra


o crime. Na verdade, essa é uma especialidade nacional praticada há muito.

Que ao menos fique de uma vez claro a todos. Toda essa pantomima não tem
nada, mas absolutamente nada a ver com crimes contra a corrupção.

Quem saiu às ruas nos últimos dias fingindo ser a voz indignada
(https://folha.com/i7y9bsl5) da população pela prisão de um ex-presidente envolvido

em casos de corrupção vive muito bem sob o império do governo mais


corrupto da história brasileira, a saber, este que agora é comandado pelo
investigado Michel Temer.

Eles estão contentes com a "retomada" da economia em direção a uma


sociedade de relações trabalhistas brutalizadas e com 13 milhões de
desempregados.

Há um número tedioso de casos de corrupção que são paulatinamente


deixados de lado pelo simples caso de não estarem no eixo do consórcio
outrora liderado pelo Partido dos Trabalhadores. Eles ficarão impunes e sem
"indignação". Teria sido ótimo uma limpeza da casta política, mas o que
vimos foi o simples sacrifício de seu irmão mais novo.

Diante disso, continuar a apostar em uma democracia farsesca, contar votos


no STF, acreditar em um Estado Cínico de Direito é só uma maneira de
impedir a reflexão sobre as verdadeiras ações para esse novo período no qual
conciliação alguma faz mais sentido.

Vladimir Safatle
Filósofo, é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP (Universidade de São
Paulo).

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