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O passado como peso - 29/06/2018 - Vladimir Safatle - Folha 29/06/2018 16)29

Vladimir Safatle
(/colunas/vladimirsafatle/)

O passado como peso


Há dívidas que foram feitas não para serem pagas, mas para
adormecer a vida

29.jun.2018 às 2h00

EDIÇÃO IMPRESSA (https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2018/06/29/)

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Marcelo Cipis/Folhapress

Friedrich Nietzsche tem algumas passagens célebres a respeito da história


como peso e da importância do esquecimento. Elas estão principalmente
em sua "Segunda Consideração Intempestiva".

Mais de um século se passou após suas críticas da história e da


historicidade e, mesmo assim, ainda difícil para nós entender que nem toda
forma de esquecimento é alienação, nem toda forma de recuperação do
passado é uma apropriação reflexiva que permitiria o redimensionamento
da ação e de suas causas. Há um esquecimento que é a força de desfazer o
acontecido, que é confiança no que virá.

É possível que o tempo se transforme na expectativa de repetição das


violências ocorridas no passado. Ele se torna então o tempo dos danos
sofridos e da reparação impossível. Um tempo no qual nada passa e o

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esquecimento nunca ocorre. Neste horizonte, todo o presente é lido a partir


das defesas que seriam necessárias levantar contra uma violência que pode
se repetir a qualquer momento.

Mas como é o passado de marcas e feridas que comanda a experiência do


tempo, não é exatamente a reparação que se espera. O máximo que se pode
esperar é que nunca mais sejamos vítimas e que estejamos sempre a postos,
sempre em condições de nos defender.

Ou seja, a expectativa da violência irá paralisar o que os sujeitos podem


fazer de melhor, algo que eles fazem bem na infância, mas que acabam por
perder ao acreditar que essa seria uma atividade que não deveria fazer
parte da vida adulta. A expectativa da violência impedirá os sujeitos de
brincar.

Algumas línguas, como o inglês, o francês e o alemão têm uma bela


ambiguidade que, infelizmente, não temos quando falamos "brincar" em
português.

Pois essas línguas permitem usar o mesmo termo para designar jogar, atuar,
tocar um instrumento e brincar. Basta pensarmos na polissemia de "play",
"jouer" e "spielen".

Há uma certa astúcia nesses casos. Eles aproximam alguns dos atos mais
ricos de interpretação, que só adultos conseguem fazer bem, do jogo e da
brincadeira infantil.

Quem brinca não espera violência e medo, mas espera que toda tensão e
impulsos de dominação e destruição terminem na confiança de que é
possível criar um espaço no qual as distinções estritas entre realidade e
imaginação perdem seus contornos.

Um espaço no qual as armas são de plástico, as regras são, na verdade,

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antirregras que portam sempre algo de cômico, de improvável, de criação.

Já há muito se entendeu que as brincadeiras não são desprovidas de


seriedade. Ao contrário, elas têm uma impressionante força de
engajamento, exatamente porque se trata de sustentar um espaço no qual a
imaginação pode exercer sua potência de desfazer o acontecido, de
recompor realidades, de produzir um "livre jogo".

Há certa ironia em compreender que o destino da atividade humana


consiste na recuperação de uma de nossas mais arcaicas e originárias ações,
esta que marca a singularidade do que convencionamos chamar de
"infância".

Mas esta recuperação exige uma aposta que, muitas vezes, parece
impossível à medida que as experiências se acumulam. A saber: a aposta na
força de esquecer e de fazer o passado passar é temerária.

Como toda verdadeira aposta, ela é feita sem cálculo e sem razão aparente.
Pois sua razão efetiva é a simples decisão de acreditar em uma imaginação
coletiva possível ou, ao menos, em uma imaginação conjunta possível.

Marx um dia afirmou que a poesia da revolução só poderia vir do futuro,


não do passado. Pois ele estava a viver em um tempo no qual todos, ao
agirem, pareciam querer reencarnar cenas do passado, reescrever a história
dos danos sofridos.

A inteligência de Marx consistia em dizer que o melhor era deixar os


mortos enterrarem seus mortos. Pois há dívidas que foram feitas para
nunca serem pagas, mas somente para paralisar a vida em sua capacidade
de levar os sujeitos à confiança de brincarem juntos ao construírem um
espaço de imaginação coletiva, a despeito de tudo o que ocorreu.

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Vladimir Safatle
Filósofo, é professor livre-docente do Departamento de Filosofia da USP (Universidade de São Paulo).

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