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DE INTERPRETATIONE RECTA

LEONARDO BRUNI ARETINO

L EONARDO BRUNI (1374-1444), escritor, político, filólogo,


filósofo, historiador, professor de retórica, tradutor, é conside-
rado o mais talentoso e versátil dentre os jovens que pertenciam
ao círculo de Coluccio Salutati (1331- 1406), por volta do ano de 1400, e, sendo
um dos primeiros seguidores de Petrarca (1303-1374) a possuir um verdadeiro
conhecimento da língua grega, ajudou a direcionar o movimento humanista para
o interesse do helenismo, o que teve importantes conseqüências na evolução do
pensamento europeu.
O texto De interpretatione recta, datado entre os anos de 1420 a 1426,
foi anexado a sua tradução da Ethica Nicomachea (1414-18), de Aristóteles
(384-322), como conseqüência dos problemas suscitados por sua tradução em
confronto com uma antiga tradução existente. Esse famoso texto é considerado
o primeiro tratado moderno em apresentar de forma independente reflexões so-
bre a tarefa de traduzir, em especial sobre a tradução literária. Folena (1991)
situa o tratado de Bruni, “il più meditato e penetrante di tutto l’umanesimo eu-
ropeo”, no ponto de inflexão entre a história medieval e moderna da tradução e
de sua teorização. Com ele se inicia a história dos manuais de tradução. Não em
vão, em seu ensaio se documenta por primeira vez a palavra traduco.
O pensamento de Bruni é a concreção de um desenvolvimento na con-
cepção do modo de traduzir que começara ao menos um século antes e que de
alguma maneira tem sua origem ainda entre os romanos. É possível reconhecer
no texto bruniano as opiniões de Cícero (106-43) sobre tradução, ou certos as-
pectos da estética horaciana, ou mesmo a retomada de alguns pensamentos de
São Jerônimo (ca. 348-420), além de insistir nos três requisitos para uma boa
tradução expostos anteriormente por Roger Bacon (ca. 1220-1292): o conheci-
mento da língua de partida, da língua de chegada e da matéria envolvidas na
tradução. Porém, mais do que um simples retomar de alguma concepção antiga,
as idéias de Bruni a respeito da tradução – pode-se de certa forma generalizar –
são as idéias que o Humanismo vai desenvolvendo e exercitando nesse campo.
Além dos elementos lingüísticos, o tratado bruniano insiste sobre os aspectos
retóricos de uma tradução. E é aqui onde se encontra certamente o maior valor
da teorização bruniana e a base da fundação da moderna tradução literária. Há
no tratado uma exigência da reprodução da arte literária para a tradução correta,
o que é possível via o uso dos recursos que oferecem a retórica e a oratória,
além do conhecimento lingüístico e filológico de ambas as línguas.

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O capítulo I de seu tratado é sem dúvida o mais importante do tratado


bruniano com respeito à sua concepção e teorização da tradução. Na primeira
oração apresenta uma definicão da arte de traduzir: quod in altera lingua scrip-
tum sit, id in alteram recte traducatur, “o que tenha sido escrito em uma língua
seja traduzido corretamente a uma outra.” É uma concepção hermenêutica da
tradução pois supõe uma interpretação correta do original, e, dirá em seguida
seu autor, não apenas com relação ao conteúdo mas também à forma e ao estilo
de cada texto e escritor. A tradução é uma “arte que exige talento”, ars, quae
peritiam flagitat, “uma empresa grande e difícil”, magna res ac difficilis, e ao
tradutor pede-se-lhe uma “formação técnica e literária”, disciplina et litteris,
“instrução e refinamento”, doctum et elegantem. Essa concepção se fundamenta,
grosso modo, em quatro aspectos:
I. Conhecimento da língua de partida ou ‘compreensão’. Este conhe-
cimento, que deve ser grande, exercitado, refinado, de todos os níveis e em seus
mecanismos mais peculiares, modismos, figuras de linguagem, expressões me-
tafóricas de pensamento, etc., se adquire através da leitura das boas obras literá-
rias, seja da filosofia, da poesia, da oratória, e de todos os gêneros. Conhecer a
língua significa para Bruni, mais que apenas o relativo à lingüística, estilos e
gêneros, também o conhecimento de sua sociedade de origem, sua cultura, his-
tória e política. Isto se encaixa bem dentro da metodologia dos studia humanita-
tis (gramática, retórica, história, poesia e filosofia moral), que se enriqueceu
com as contribuições de métodos filológicos bizantinos, e com novas perspecti-
vas de compreensão da história – além da proposta de Petrarca de uma nova di-
visão da história em períodos antigo, médio e moderno, a qual comparte Bruni,
este revela uma consciência de periodização na história cultural, em que os pe-
ríodos culturais são períodos lingüísticos (Griffiths et al. 1987: 11). Conhecer
para compreender. O tradutor deve contextualizar com conhecimento a obra que
traduz para entendê-la desde seu meio de procedência, e entendê-la não apenas
em seus aspectos extrínsecos mas também nos intrínsecos, como as característi-
cas e estilo de seu autor, os tropos e figuras utilizados.
II. Conhecimento da língua de chegada ou ‘expressão’. Esse é o se-
gundo requisito fundamental para o tradutor. Não basta com conhecer a língua
de partida e entender a obra que vai ser traduzida; é mister também dominar a
língua de chegada com todo seu leque de matizes semânticos e de conotações
sinonímicas para fazer um correto e pleno uso de suas potencialidades, expres-
sando na tradução o que havia no original. Isso implica também um grande co-
nhecimento da história, da cultura, da literatura da língua de chegada em gêne-
ros, estilos e recursos. Conhecer para expressar. O tradutor deve reproduzir na
tradução tanto o conteúdo como a forma e o estilo do original. Tradução é co-
municação.
III. Conhecimento da matéria. O tradutor que não conhece a matéria, o
assunto de sua tradução, não pode traduzir corretamente. Não basta dominar as
línguas de partida e de chegada, não basta ser linguista para ser bom tradutor.
Deve-se conhecer a matéria sobre a qual se traduz. Essa concepção de Bruni,
que perpassou a Idade Média, faz eco do pensamento de Catão (234-149 a.C.),
em Ad Marcum filium (Frag. 371), também presente na Ars poetica de Horácio
(vv. 40-41; 310-311): rem tene, uerba sequentur, “domina o assunto e as pala-
vras o seguirão”. O conteúdo condiciona a expressão.

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IV. Possessão e uso do ouvido ou ‘ritmo’ e ‘harmonia’: A reprodução


do estilo. Esse requisito diz respeito à compreensão e reprodução artística do
original. O conhecimento de ambas as línguas e da matéria associado ao bom
ouvido deve oferecer ao tradutor a capacidade de captar as belezas artísticas do
original até em seus matizes rítmicos e harmônicos para reproduzi-los na tradu-
ção. O ritmo pode ser captado pelo ouvido na leitura atenta e respeitosa dos
membros, incisos e períodos da oração (cola et commata et periodos… observa-
re). O bom conhecimento de ambas as línguas inclui, pois, a prosódia. Tradução
é ritmo e textualização. Com os requisitos já mencionados, o tradutor deverá fa-
zer uma imitatio do estilo pessoal do autor traduzido. A imitatio que propõe
Bruni é análoga à da pintura. – A comparação entre a pintura e a poesia é clássi-
ca (Vt pictura poesis, “a poesia é como a pintura”, em Horácio, Ars poetica, v.
361): além de Horácio utilizá-la algumas vezes em sua poética, aparece freqüen-
temente na Poetica de Aristóteles.
O tradutor, em sua tarefa, se conveterá em co-autor do original, expres-
sando como o poeta, o escultor e o pintor a figura, o gesto, o movimento, a cor e
todos os matizes do discurso. Adaptando-se a cada tradução, emulará o estilo de
cada autor, conservando a propriedade de sua linguagem, a beleza do discurso e
o aspecto do texto original, com todos seus adornos. O adorno consiste em figu-
ras de dicção (estruturas rítmicas) e de pensamento. Tradução é retórica e arte.

Mauri Furlan
maurizius@gmail.com
Universidade Federal de Santa Catarina

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DE INTERPRETATIONE DA TRADUÇÃO
RECTA1 CORRETA
(1420) (2011)

Cum Aristotelis libros ad Ni- Tendo vertido da língua grega


comachum scriptos e Graeca lingua à latina os livros de Aristóteles es-
in Latinum uertissem, praefationem critos a Nicômaco, acrescentei um
apposui, in qua per multos errores prefácio, no qual refutei discorrendo
interpretis antiqui disserendo re- por numerosos erros do antigo tra-
dargui. Has redargutiones meas dutor. Alguns, segundo tenho ouvi-
nonnulli, ut audio, carpunt quasi do, criticam estas minhas refutações
nimium inclementes. Aiunt enim: como demasiado impiedosas. Di-
etsi errores inerant, tamen illum, zem, pois, que, ainda que haja erros,
quantum intellexit, bona fide in ele, contudo, divulgou de boa fé o
medium protulisse, nec pro eo re- quanto entendeu, e por isso não me-
prehensionem mereri, sed laudem. rece repreensão, mas louvor; que os
Consueuisse moderatos disputato- críticos moderados não têm o cos-
res etiam manifesta errata non us- tume de expor deste modo nem
que adeo aperire, sed factis potius mesmo os erros evidentes, mas an-
redarguere quam uerbis insectari. tes que censurar com palavras, refu-
tam com fatos.
Ego autem fateor me paulo Admito, pois, ter sido um tan-
uehementiorem in reprehendendo to veemente ao repreendê-lo, mas
fuisse, sed accidit indignatione aconteceu que, por uma indignação
animi, quod, cum uiderem eos li- da alma, como eu vira os livros em
bros in Graeco plenos elegantiae, grego plenos de elegância, de sua-
plenos suauitatis, plenos inaesti- vidade, e de um inestimável ornato,
mabilis cuiusdam decoris, dolebam por certo me condoía comigo pró-
profecto mecum ipse atque angebar prio e me angustiava ao ver os
tanta traductionis faece coinquina- mesmos livros em latim emporca-
tos ac deturpatos eosdem libros in lhados e desfigurados por tamanha
Latino uidere. Vt enim, si pictura escória de tradução. Assim como se
quadam ornatissima et amoenissi- eu me deleitasse com uma certa pin-
ma delectarer, ceu Protogenis aut tura finíssima e belíssima, como as
Apellis aut Aglaophontis, deturpari de Protógenes, Apeles ou Aglaofon-
illam grauiter ferrem ac pati non te 2 , indignar-me-ia e não poderia
possem et in deturpatorem ipsum suportar que a desfigurassem, e me
uoce manuque insurgerem, ita hos insurgiria com palavras e atos con-
Aristotelis libros, qui omni pictura tra o desfigurador, do mesmo modo
nitidiores ornatioresque sunt, coin- me atormentava na alma e me co-
quinari cernens cruciabar animo ac movia veementemente ao ver serem
uehementius commouebar. Si cui emporcalhados estes livros de Aris-

1
O texto latino aqui utilizado foi estabelecido por Hans Baron, 1928, mas com alterações na di-
visão de parágrafos, realizadas pelo tradutor.
2
Protógenes, Apeles e Aglaofonte, célebres pintores gregos, sendo Apeles (séc. IV a.C.) o mais
conhecido por ter retratado Filipe II e Alexandre Magno. Nenhuma de suas pinturas chegou até
nós.

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ergo uehementiores uisi sumus, tóteles, que são mais belos e elegan-
hanc nos causam nouerit permouis- tes que qualquer pintura. Se a al-
se, quae profecto talis est, ut, etsi guém parecemos um tanto veemen-
modum transgressi fuissemus, ta- tes, saiba que nos perturbou esta
men uenia foret nobis haud imme- causa, a qual por certo é de tal mon-
rito concedenda. ta que, ainda que tivéssemos extra-
polado o limite, contudo, deveria
ser-nos concedida vênia não imere-
cidamente.
Sed non sumus transgressi Mas não extrapolamos o limi-
modum iudicio nostro, sed quamuis te, a nosso ver, e, embora indigna-
indignantes modestiam tamen hu- dos, conservamos a moderação e a
manitatemque seruauimus. Sic humanidade. Reflita, pois, assim:
enim cogita! An ego quicquam in Acaso eu disse algo contra os cos-
mores illius dixi? An in uitam? An tumes dele? Acaso, contra sua vida?
ut perfidum, ut improbum, ut libi- Acaso o censurei por pérfido, ím-
dinosum illum reprehendi? Nihil probo, libidinoso? Nada disto, por
profecto horum. Quid igitur in illo certo. O que, portanto, censurei ne-
reprehendi? Imperitiam solummo- le? Apenas sua imperícia nas letras.
do litterarum. Haec autem, per Por Deus, que repreensão é esta,
deum immortalem, quae tandem ui- afinal? Acaso não pode alguém ser
tuperatio est? An non potest quis um bom homem, e contudo não co-
esse uir bonus, litteras tamen aut nhecer profundamente as letras ou
nescire penitus aut non magnam il- não possuir aquela grande perícia
lam, quam in isto requiro, peritiam que reclamo para isto? Eu não disse
habere? Ego hunc non malum ho- que ele era um mau homem, mas
minem, sed malum interpretem es- um mau tradutor. O que igualmente
se dixi. Quod idem fortasse de Pla- talvez eu dissesse de Platão, se qui-
tone dicerem, si gubernator nauis sesse ser timoneiro de um navio e
esse uellet, gubernandi uero periti- não tivesse perícia para timoneá-lo.
am non haberet. Nihil enim de phi- Eu não depreciaria nada de sua filo-
losophia ei detraherem, sed id so- sofia, mas apenas criticaria que fos-
lummodo carperem, quod imperi- se um timoneiro imperito e inepto.
tus et ineptus gubernator esset.
Atque ut tota res ista latius E para que tudo isso possa ser
intelligatur, explanabo tibi primo, mais amplamente entendido, expla-
quid de hac interpretandi ratione nar-te-ei em primeiro lugar o que eu
sentio. Deinde merito reprehensio- penso sobre o método de traduzir.
nes a me factas docebo. Tertio me Em seguida, mostrarei as repreen-
in reprehendendo illius errata doc- sões merecidamente feitas por mim.
tissimorum hominum morem obse- Em terceiro lugar, mostrarei que, ao
ruasse ostendam. repreender os erros dele, observei o
costume de homens doutíssimos.

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I. I.

Dico igitur omnem interpre- Afirmo, pois, que toda a natu-


tationis uim in eo consistere, ut, reza da tradução consiste em que o
quod in altera lingua scriptum sit, que tenha sido escrito em uma lín-
id in alteram recte traducatur. Rec- gua seja traduzido corretamente a
te autem id facere nemo potest, qui uma outra. Ninguém, porém, que
non multam ac magnam habeat não possua muito e grande domínio
utriusque linguae peritiam. Nec id de ambas as línguas pode fazê-la
quidem satis. Multi enim ad intelli- corretamente. E, em verdade, nem
gendum idonei, ad explicandum isso basta. Muitos, pois, são idôneos
tamen non idonei sunt. Quemad- para entender, e, contudo, não o são
modum de pictura multi recte iudi- para explicar; assim como muitos
cant, qui ipsi pingere non ualent, et avaliam corretamente a pintura, eles
musicam artem multi intelligunt, mesmos não sabendo pintar, e mui-
qui ipsi sunt ad canendum inepti. tos entendem de arte musical, eles
mesmos sendo ineptos para o canto.
Magna res igitur ac difficilis Grande e difícil empresa é,
est interpretatio recta. Primum por isso, a tradução correta. Primei-
enim notitia habenda est illius lin- ramente deve-se ter conhecimento
guae, de qua transfers, nec ea parua daquela língua da qual se traduz, e
neque uulgaris, sed magna et trita não pouco nem ordinário, mas
et accurata et multa ac diuturna grande, exercitado, apurado e muito,
philosophorum et oratorum et poe- e adquirido com uma leitura contí-
tarum et ceterorum scriptorum om- nua dos filósofos e oradores e poe-
nium lectione quaesita. Nemo tas e todos os demais escritores.
enim, qui hos omnes non legerit, Ninguém, pois, que não tenha lido,
euoluerit, uersarit undique atque penetrado, revolvido por todos os
tenuerit, uim significataque uerbo- lados e compreendido todos eles,
rum intelligere potest, praesertim pode entender a força e os signifi-
cum Aristoteles ipse et Plato cados das palavras, especialmente
summi, ut ita dixerim, magistri lit- quando Aristóteles mesmo e Platão
terarum fuerint ac usi sint elegan- foram, como eu diria, os maiores
tissimo scribendi genere ueterum mestres das letras e usaram de um
poetarum et oratorum et historico- elegantíssimo modo de escrever de
rum dictis sententiisque referto, et antigos poetas e oradores e historia-
incidant frequenter tropi figuraeque dores cheio de ditos e sentenças,
loquendi, quae aliud ex uerbis, onde aparecem frequentemente tro-
aliud ex consuetudine praeiudicata pos e figuras de linguagem, que sig-
significent. nificam uma coisa literalmente, ou-
tra segundo o costume preestabele-
Qualia sunt apud nos: gero cido. Estas coisas estão em nosso
tibi morem et desiderati milites et meio: gero tibi morem [faço o que
boni consule et operae pretium fue- desejas], desiderati milites [solda-
rit et negotium facesso et milia dos mortos], boni consule [aprova;
huiuscemodi. Quid enim sit gerere tem por bem], operae pretium fuerit
et quid mos, etiam rudis lector in- [terá valido a pena], negotium fa-
telligit; quod uero totum significat, cesso [crio problema] e milhares
aliud est. Desiderati milites cen- deste tipo. O que seja gerere [gerar,

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tum, si uerba attendas, aliud, si fazer] e mos [uso, costume] sabe até
consuetudinem, perierunt. Idem est mesmo o leitor inculto; o que, po-
de ceteris, quae supra posuimus, rém, significa o todo, é outra coisa.
cum aliud uerba, aliud sententia ue- Desiderati miles centum, se te aténs
rborum significet. Deprecor hoc às palavras, é uma coisa [cem sol-
negationem dicit. Rudis autem lec- dados desejados], se ao uso, “pere-
tor et inexercitatus perinde capiet, ceram”. O mesmo acontece às ou-
quasi illud uelit, quod deprecatur, tras que colocamos acima, quando
etsi interpretandum sit: contrarium as palavras significam uma coisa,
mihi dicet, quam littera habeat, de outra, a sentença das palavras. De-
qua transfert. precor hoc [afasto isso por meio de
rogos] quer dizer negação. Um lei-
tor inculto e inexperiente, porém,
entenderá exatamente como se se
desejasse aquilo que se rejeita, e se
tiver que traduzir me dirá o contrá-
rio do que contem a obra da qual
traduz.
Iuuentus et iuuenta duo sunt, Iuuentus e iuuenta são duas
quorum alterum multitudinem, alte- palavras, das quais uma significa
rum aetatem significat. “Si mihi fo- “multidão”, a outra, “idade”. “Si
ret illa iuuenta”, inquit Virgilius; et mihi foret illa iuuenta”3 [Se eu ti-
alibi: “primaeuo flore iuuentus vesse aquela juventude], disse Vir-
exercebat equos”; et Liuius: “arma- gílio; e em outra passagem: ‘pri-
ta iuuentute excursionem in agrum maeuo flore iuuentus exercebat
Romanum fecit.”– Deest et abest: equos”4 [na primeva flor a juventu-
Alterum uituperationem, alterum de se exercitava nos cavalos]; e Tito
laudem importat. Deesse namque Lívio: “armata iuuentute excursio-
dicimus, quae bona sunt, ut oratori nem in agrum Romanum fecit” 5
uocem, histrioni gestum; abesse [com a juventude armada fez uma
autem uitia, ut medico imperitiam, incursão em território romano]. –
causidico praeuaricationem. Poena Deest [falta] e abest [está ausente]:
et malum affinia uidentur; sunt au- um implica reprovação, o outro,
tem longe diuersa. Nam dare poe- elogio; dizemos deesse [faltar] às
nas: subire est ac perpeti; dare au- coisas que são boas, como a voz de
tem malum est: alteri inferre. Con- um orador, o gesto de um ator;
tra uero: Quid alienius uideri potest abesse [estar ausente], porém, aos
quam recipio et promitto. Sunt ta- defeitos, como a imperícia de um
men interdum eadem. Cum enim médico, a prevaricação de um ad-
dicimus recipio tibi hoc, nihil aliud vogado. Poena [pena, castigo] e ma-
significamus quam promitto. Pos- lum [desgraça, mal] parecem afins;
sem innumerabilia paene huius ge- são, contudo, em muito diferentes.

3
Virgílio, Eneida, V, 397-398: “si mihi quae quondam fuerat quaque improbus iste / exsultat
fidens, si nunc foret illa iuuentas”.
4
Virgílio, Eneida, VII, 162-163: “ante urbem pueri et primaeuo flore iuuentus / exercentur equis
domitantque in puluere currus”.
5
Tito Lívio, História de Roma, III, 8,7: “Fabius praeerat urbi; is armata iuuentute dispositisque
praesidiis tuta omnia ac tranquilla fecit.”

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neris commemorare, in quibus, qui Pois dare poenas [sofrer um casti-


non plane doctus sit, perfacile aber- go] significa subire [suportar] e
ret. Qui ergo ista non intuitus fue- perpeti [sofrer pacientemente]; po-
rit, aliud pro alio capiet. rém, dare malum [maltratar, dar um
castigo] significa alteri inferre [in-
fligi-lo a alguém]. Por outro lado, o
que pode parecer mais distinto do
que recipio [receber] e promitto
[prometer]? São, contudo, por ve-
zes, a mesma coisa. Quando, pois,
dizemos: “recipio tibi hoc” [guardo
isto para ti], o que estamos dizendo
é “prometo isto para ti”. Eu poderia
mencionar quase inúmeros outros
deste tipo, com os quais facilmente
se equivoca quem não for altamente
intruído. Quem, portanto, não con-
siderar atentamente isto, tomará
uma coisa por outra.
Saepe etiam ex uno aut altero Às vezes expressamos pensa-
uerbo totas sententias significamus; mentos inteiros com muito poucas
ut “actoris Aurunci spolium”, quod palavras, como “actoris Aurunci
ridicule de speculo poeta dixit; et spolium”6 [o espólio do ator Aurun-
illud “utinam ne in nemore Pelio”, cio], que ironicamente o poeta disse
quod originem causamque mali sobre o espelho daquele, e em outra
primaeuam ostendit. Haec apud passagem, “utinam ne in nemore
Graecos frequentissima sunt. Nam Pelio”7 [tomara que nunca no bos-
et Plato multis in locis talia interse- que peliano], que indica a origem e
rit –, et Aristoteles crebro his uti- a causa primeva de um mal. Essas
tur. Vt: “duo simul euntes”, quod coisas são muitíssimo frequentes
ab Homero sumptum ad uim ac entre os gregos. Pois tanto Platão
robur amicitiae transfert. Et “de insere-as em muitas passagens,
surreptitio repulso”, quod ab Achil- quanto Aristóteles serve-se delas
le in oratione ad legatos dictum in copiosamente, como “duo simul
Politicorum libris expressit. Et “de euntes” 8 [dois que caminham jun-
Helenae pulchritudine et gratia”, tos], que, tomando de Homero, o
quod a senioribus Troianorum sa- transfere à força e ao vigor da ami-
pienter dictum transfert ad naturam zade; e o dito por Aquiles em dis-
uoluptatis. curso aos embaixadores sobre o
“surreptitio repulso”9 [o sem-pátria
excluído], que reproduziu nos livros
da Política; e o dito sabiamente pe-
los troianos mais velhos sobre “He-
lenae pulchritudine et gratia” 10 [a

6
Juvenal, Sátiras, II, 100, a partir de Virgílio, Eneida, XII, 94.
7
Início do prólogo da Medéia de Ênio, citado pelo autor da Rhetorica ad Herennium, II, 22, 34.
8
Aristóteles, Ética a Nicômaco, VIII, 1, a partir de Homero, Ilíada, X, 224.
9
Aristóteles, Política, III, 1278a, 9. Homero, Ilíada, IX, 648.
10
Aristóteles, Ética a Nicômaco, II, 9, 1109b10. Homero, Ilíada, 3, 156-160.

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beleza e a graça de Helena], que


transfere à natureza do desejo.
Latus est hic ad dicendum Este é um amplo campo para
campus. Nam et Graeca lingua discorrer. Pois tanto a língua grega é
diffusissima est, ac innumerabilia muitíssimo rica, e inumeráveis são
sunt huiusmodi apud Aristotelem et os usos deste tipo em Aristóteles e
Platonem de Homero, de Hesiodo, Platão tomados de Homero, Hesío-
de Pindaro, de Euripide ac de cete- do, Píndaro, Eurípedes e outros poe-
ris ueteribus poetis scriptoribusque tas e escritores antigos; quanto,
assumpta, et alioquin crebrae inter- além disso, são tantas as figuras in-
seruntur figurae, ut, nisi quis in seridas que, a não ser quem for ver-
multa ac uaria lectione omnis gene- sado em muitas e variadas leituras
ris scriptorum uersatus fuerit, per- de todo tipo de escritores, facilmen-
facile decipiatur ac male capiat, te se engana e entende mal o que se
quod est transferendum. há de traduzir.
Sit igitur prima interpretis cu- Seja, portanto, a primeira pre-
ra linguam illam, de qua sumit, pe- ocupação do tradutor conhecer com
ritissime scire, quod sine multiplici suma perícia a língua da qual tra-
et uaria ac accurata lectione omnis duz, algo que nunca conseguirá sem
generis scriptorum numquam asse- uma leitura multíplice, variada e
quetur. cuidadosa de todo gênero de escrito-
res.
Deinde linguam eam, ad Em seguida, possua de tal
quam traducere uult, sic teneat, ut forma a língua para a qual quer tra-
quodammodo in ea dominetur et in duzir que, de certo modo, a domine
sua totam habeat potestate; ut, cum e a tenha toda em seu poder; que
uerbum uerbo reddendum fuerit, quando uma palavra tiver de ser
non mendicet illud aut mutuo su- transferida por outra palavra, não a
mat aut in Graeco relinquat ob ig- mendigue ou a tome emprestada ou
norantiam Latini sermonis; uim ac a mantenha em grego por ignorância
naturam uerborum subtiliter norit, da língua latina; que conheça acura-
ne modicum pro paruo, ne iuuentu- damente a força e a natureza das pa-
tem pro iuuenta, ne fortitudinem lavras, e não diga modicus (pouco)
pro robore, ne bellum pro proelio, em vez de paruus (pequeno), nem
ne urbem pro ciuitate dicat. Praete- iuuentus (jovem) em vez de iuuenta
rea inter diligere et amare, inter (juvenil), nem urbs (cidade) em vez
eligere et expetere, inter cupere et de ciuitas (cidadania). E ademais,
optare, inter persuadere et perora- distinga entre diligere (apreciar) e
re, inter recipere et promittere, in- amare (amar), entre eligere (esco-
ter expostulare et conqueri et lher) e expetere (cobiçar), entre cu-
huiusmodi paene infinita quid in- pere (desejar) e optare (pedir), entre
tersit, discernat. Consuetudinis ue- persuadere (persuadir) e perorare
ro figurarumque loquendi, quibus (advogar), entre recipere (receber) e
optimi scriptores utuntur, nequa- promittere (prometer), entre expos-
quam sit ignarus; quos imitetur et tulare (reclamar) e conqueri (quei-
ipse scribens, fugiatque et uerbo- xar-se), e entre inúmeras outras des-
rum et orationis nouitatem, praeser- te modo o que as diferencia. De
tim ineptam et barbaram. forma alguma desconheça o modo

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de dizer e as figuras de dicção que


os melhores escritores usam; aos
quais imite também ele mesmo es-
crevendo, e evite sobretudo a novi-
dade inepta e bárbara tanto das pa-
lavras quanto da oração.
Haec omnia, quae supra di- Todas estas coisas que disse-
ximus, necessaria sunt. Et insuper mos acima são necessárias. E, além
ut habeat auris seuerumque iudi- disso, que possua ouvido e uma ca-
cium, ne illa, quae rotunde ac nu- pacidade de avaliar com rigor, para
merose dicta sunt, dissipet ipse que ele mesmo não destrua e nem
quidem atque perturbet. Cum enim deturpe o que foi dito harmoniosa e
in optimo quoque scriptore et prae- ritmicamente. Como, pois, há
sertim in Platonis Aristotelisque li- igualmente em um bom escritor, e
bris et doctrina rerum sit et scri- sobretudo nos livros de Platão e
bendi ornatus, ille demum probatus Aristóteles, tanto o ensinamento das
erit interpres, qui utrumque serua- coisas como a ornamentação da es-
bit. crita, somente será um tradutor
excelente, o que conservar ambas as
coisas.
Denique interpretis uitia sunt: Em suma, os defeitos de um
si aut male capit, quod transferen- tradutor são: se entende mal ou re-
dum est, aut male reddit aut si id, produz mal o que deve ser traduzi-
quod apte concinneque dictum sit a do, ou se, o que foi dito apropriada
primo auctore, ipse ita <conuertit>, e harmonicamente pelo autor pri-
ut ineptum et inconcinnum et dissi- meiro, traduz de modo a torná-lo
patum efficiatur. Quicumque uero inapropriado, desarmônico e destru-
non ita structus est disciplina et lit- ído. Em verdade, todo aquele que
teris, ut haec uitia effugere cuncta não esteja instruído na matéria e nas
possit, is, si interpretari aggreditur, letras, a fim de poder evitar todos
merito carpendus et improbandus esses defeitos, se chegar a traduzir,
est, uel quia homines in uarios er- deve ser repreendido e rejeitado
rores impellit aliud pro alio affe- com razão, seja porque induz os
rens, uel quia maiestatem primi homens a vários erros apresentando
auctoris imminuit ridiculum absur- uma coisa por outra, seja porque
dumque uideri faciens. Dicere au- diminui a majestade do autor pri-
tem: non uituperationem, sed lau- meiro fazendo-o parecer ridículo e
dem mereri eum, qui, quod habuit, absurdo. Dizer, contudo, que não
in medium protulit, nequaquam re- merece repreensão mas louvor
ctum est in his artibus, quae periti- aquele que divulgou o que podia, é
am flagitant. Neque enim poeta, si de forma alguma correto nestas ar-
malos facit uersus, laudem meretur, tes que exigem perícia. Nem mesmo
etsi bonos facere conatus est, sed um poeta, se faz maus versos, mere-
eum reprehendemus atque carpe- ce louvor, embora tentasse fazê-los
mus, quod ea facere aggressus fue- bons, mas o repreendemos e o cen-
rit, quae nesciat. Et statuarium ui- suramos porque terá empreendido o
tuperabimus, qui statuam deforma- que não sabe. E criticaremos o es-
rit, quamuis non per dolum, sed per cultor que tiver deformado uma es-
ignorantiam id fecerit. Vt enim ii, cultura, embora o tenha feito não

Scientia Traductionis, n.10, 2011


26 LEONARDO BRUNI, MAURI FURLAN

qui ad exemplum picturae picturam por dolo, mas por ignorância. Co-
aliam pingunt, figuram et statum et mo, pois, os que pintam um quadro
ingressum et totius corporis for- a imitação de outro quadro tomam
mam inde assumunt nec, quid ipsi dele a figura, a postura, o movimen-
facerent, sed, quid alter ille fecerit, to e a forma do corpo inteiro, e não
meditantur: sic in traductionibus refletem sobre o que eles mesmos
interpres quidem optimus sese in fariam, mas sobre o que um outro
primum scribendi auctorem tota fez, assim nas traduções, o bom tra-
mente et animo et uoluntate co- dutor, contudo, se converterá no au-
nuertet et quodammodo transfor- tor primeiro do escrito com toda sua
mabit eiusque orationis figuram, mente, espírito e vontade, e de certo
statum, ingressum coloremque et modo o transformará, e refletirá so-
liniamenta cuncta exprimere medi- bre como expressar a figura, a posi-
tabitur. Ex quo mirabilis quidam ção, o movimento e a cor da oração
resultat effectus. e todos os traços. Disto resulta um
certo efeito admirável.
Nam cum singulis fere scrip- Com efeito, uma vez que qua-
toribus sua quaedam ac propria sit se todos os escritores têm um certo
dicendi figura, ut Ciceroni ampli- estilo seu e próprio, como Cícero a
tudo et copia, Sallustio exilitas et magnificência e a abundância, Sa-
breuitas, Liuio granditas quaedam lústio a secura e a brevidade, Tito
subaspera: bonus quidem interpres Lívio uma sublimidade algo áspera,
in singulis traducendis ita se con- o bom tradutor, contudo, se confor-
formabit, ut singulorum figuram mará assim a cada um a ser traduzi-
assequatur. Itaque, siue de Cicero- do, de modo a seguir o estilo de ca-
ne traducet, facere non poterit, quin da um. Por isso, se traduzir Cícero,
comprehensiones illius magnas não poderá agir de modo a não to-
quidem et uberes et redundantes mar seus longos períodos ricos e re-
simili uarietate et copia ad supre- dundantes com similar variedade e
mum usque ambitum deducat ac abundância até a última frase, e ora
modo properet, modo se colligat. acelerá-los, ora restringi-los. Se ver-
Siue de Sallustio transferet, necesse ter Salústio, terá por obrigação so-
habebit de singulis paene uerbis iu- pesar quase que cada palavra indi-
dicium facere proprietatemque et vidual e perseguir sua propriedade e
religionem plurimam sequi atque máxima exatidão e, por conta disso,
ob hoc restringi quodammodo at- restringir-se de certo modo e anular-
que concidi. Siue de Liuio traducet, se. Se traduzir Tito Lívio, não pode-
facere non poterit, quin illius di- rá agir de modo a não imitar seu es-
cendi figuram imitetur. Rapitur tilo. O tradutor é, pois, arrastado pe-
enim interpres ui ipsa in genus di- la própria essência para o modo de
cendi illius, de quo transfert, nec dizer daquele do qual traduz, e não
aliter seruare sensum commode po- poderá de outra forma preservar
terit, nisi sese insinuet ac inflectat adequadamente o sentido se não pe-
per illius comprehensiones et ambi- netrar e se retorcer através das ora-
tus cum uerborum proprietate ora- ções e períodos daquele com a pro-
tionisque effigie. Haec est enim op- priedade das palavras e a imitação
tima interpretandi ratio, si figura do discurso. Este é um excelente
primae orationis quam optime con- método de traduzir: preservar ao

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27 DE INTERPRETATIONE RECTA

seruetur, ut neque sensibus uerba máximo o estilo primeiro do texto,


neque uerbis ipsis nitor ornatusque de modo a não apartar dos sentidos
deficiat. as palavras, nem às próprias pala-
vras o brilho e o adorno.
Sed cum sit difficilis omnis Mas, uma vez que toda tradu-
interpretatio recta propter multa et ção correta é difícil por causa dos
uaria, quae in ea (ut supra diximus) muitos e vários requisitos que, co-
requiruntur, difficillimum tamen mo acima dissemos, são exigidos, é,
est illa recte transferre, quae a pri- contudo, dificílimo transladar corre-
mo auctore scripta sunt numerose tamente aquilo que foi escrito ritmi-
atque ornate. In oratione quippe camente e ornadamente pelo escri-
numerosa necesse est per cola et tor primeiro. Frente a um texto ob-
commata et periodos incedere ac, viamente rítmico, é necessário
ut apte quadrateque finiat com- avançar através dos membros, inci-
prehensio, diligentissime obserua- sos e períodos da oração, e prestar
re. muitíssima atenção de maneira a
que o conjunto resulte adequado e
esmerado.
In exornationibus quoque ce- Também em outros ornatos a
teris conseruandis summa diligen- serem conservados deverá ser em-
tia erit adhibenda. Haec enim om- pregada suma diligência. Se o tradu-
nia nisi seruet interpres, prima ora- tor, contudo, não preservar todas es-
tionis maiestas omnino deperit et tas coisas, a majestade primeira da
fatiscit. Seruari autem sine magno obra se perde e se pulveriza comple-
labore magnaque peritia litterarum tamente. Não podem, porém, ser
non possunt. Intelligendae sunt preservadas sem um grande labor e
enim ab interprete huiuscemodi, ut um grande conhecimento da litera-
ita dixerim, orationis uirtutes ac in tura. As qualidades da obra, por as-
ea lingua, ad quam traducit, pariter sim dizer, devem, pois, ser compre-
representandae. Cumque duo sint endidas desse modo pelo tradutor, e
exornationum genera – unum, quo ser igualmente reproduzidas na lín-
uerba, alterum, quo sententiae co- gua para a qual traduz. Uma vez que
lorantur –, utrumque certe difficul- são dois os tipos de ornamentos –
tatem traductori affert, maiorem um, pelo qual se dá brilho às pala-
tamen uerborum quam sententi- vras, outro, aos pensamentos –, am-
arum colores, propterea quod saepe bos, por certo, causam dificuldade
huiusmodi exornationes numeris ao tradutor, maior, contudo, a do
constant, ut cum paria paribus re- brilho das palavras que a dos pen-
dduntur aut contraria contrariis uel samentos; porque, muitas vezes os
opposita inter se, quae Graeci “an- ornamentos deste tipo consistem em
titheta” uocant. Frequenter enim estruturas rítmicas, como quando os
uerba Latina uel plus uel minus termos são restituídos por seus se-
syllabarum habent quam Graeca, melhantes, ou por seus contrários ou
neque par sonus auribus faciliter opostos entre si, que os gregos cha-
correspondet. Iacula quoque, quae mam antitheta. Com efeito, as pala-
interdum iacit orator, ita demum vras latinas têm frequentemente ou
fortiter feriunt, si numeris contor- mais ou menos sílabas do que as
quentur. Nam fluxa et decurtata uel gregas, e nem o som ecoa facilmen-
inepte cadentia minus confodiunt. te de igual modo aos ouvidos. Tam-

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28 LEONARDO BRUNI, MAURI FURLAN

Haec igitur omnia diligentissime bém os dardos que, por vezes, o


cognoscenda sunt ab interprete et orador lança, ferem por certo forte-
seruatis ad ungem numeris effin- mente se são atirados de forma rít-
genda. mica, pois os débeis e os defeituo-
sos ou os que caem ineptamente
transpassam menos. Por isso, todas
essas coisas devem ser conhecidas
com toda a diligência pelo tradutor
e reproduzidas à perfeição com as
estruturas rítmicas preservadas.
Quid dicam de sententiarum Que direi dos ornamentos dos
exornationibus, quae orationem pensamentos, que ilustram em mui-
illustrant plurimum et admirabilem to a obra e a tornam admirável? E
reddunt? Et tam hae quam superio- tanto estes quanto os anteriores são
res frequenter ab optimis scriptori- frequentemente utilizados pelos me-
bus adhibentur. An poterit interpres lhores escritores. Ou poderá o tradu-
eas sine flagitio uel ignorare uel tor ignorá-los ou preteri-los ou tra-
praeterire uel non seruata illarum duzi-los sem torpeza não preservan-
maiestate transferre? do sua majestade?
De quibus omnibus, quo A fim de que possam ser me-
melius ea, quae dixi, intelligantur, lhor entendidas todas essas questões
exempla quaedam adscribere libuit, sobre as quais falei, aprouve-me
ut conspicuum sit non ab orationi- adscrever alguns exemplos, para
bus modo, uerum etiam a philoso- que fique claro que ornamentos des-
phis huiusmodi exornationes fre- te tipo são empregados não somente
quentari et maiestatem orationis to- por oradores, mas também por filó-
tam perire, nisi seruata earum figu- sofos, e que toda a majestade da
ra transferantur. obra perece se não são traduzidos
com toda sua forma preservada.
Plato philosophus in eo libro, O filósofo Platão, no livro in-
qui dicitur Phaedrus, ornate sane ac titulado Fedro [237c-238c], expõe
numerose locum quemdam pertrac- certa passagem de modo completa-
tat. Verba illius hic adscripsi paulo mente ornado e rítmico. Transcrevo
altius repetita. Sunt autem haec: aqui palavras dele que serão reto-
madas um pouco mais à frente.

O puer, unicum bene consulere uo- Garoto, há um único princípio para


lentibus principium est: intelligere, de quo os que desejam deliberar convenientemen-
sit consilium, uel omnino aberrare neces- te: compreender de que trata a questão, ou
se. Plerosque uero id fallit, quia nesciunt inevitavelmente equivocar-se de todo. Mui-
rei substantiam. Tamquam igitur scientes tos, na verdade, se enganam nisso, porque
non declarant in principio disceptationis, desconhecem a natureza do tema. Assim,
procedentes uero, quod par est, consequi- como se soubessem, não a explicitam no
tur, ut nec sibi ipsis neque aliis consenta- início de uma discussão, e ao avançar – o
nea loquantur. Tibi igitur et mihi non id que é adequado –, resulta que não dizem
accidat, quod in aliis damnamus. Sed cum coisas congruentes nem a si mesmos nem
tibi atque mihi disceptatio sit, utrum aos outros. Por isso, não suceda a ti ou a
amanti potius uel non amanti sit in amici- mim isso que condenamos nos outros. Mas,
tiam eundum, de amore ipso, quale quid como tu e eu levantamos uma discussão
sit et quam habeat uim, diffinitione ex sobre se se deve buscar amizade mais no

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29 DE INTERPRETATIONE RECTA

consensu posita, ad hoc respicientes refe- amante ou no não-amante, depois de ter


rentesque considerationem faciamus, emo- tomado uma definição em comum acordo
lumentumne an detrimentum afferat? sobre o próprio amor, o que é e que força
tem, atentando e reportando-nos a ela, con-
sideremos: causa-nos benefício ou detri-
mento?
Quod igitur cupiditas quaedam sit Com efeito, que o amor seja uma
amor, manifestum est. Quod uero etiam espécie de desejo, é evidente. Que, contu-
qui non amant cupiunt, scimus. Rursus au- do, também os que não amam desejam, sa-
tem, quo amantem a non amante discer- bemos. Por outro lado, porém, convém
namus, intelligere oportet, quia in uno compreender em que diferenciamos o
quoque nostrum duae sunt ideae dominan- amante do não-amante, porque também em
tes atque ducentes, quas sequimur, qua- cada um de nós há duas idéias dominantes
cumque ducunt: Una innata nobis uolupta- e condutoras, que seguimos onde quer que
tum cupiditas, altera acquisita opinio, af- nos guiem: uma é o desejo de prazeres ina-
fectatrix optimi. Hae autem in nobis quan- to em nós, a outra, uma idéia adquirida, que
doque consentiunt, quandoque in seditione busca ansiosamente o melhor. Por vezes,
atque discordia sunt; et modo haec, modo estas idéias em nós concordam, por vezes
altera peruincit. estão em desunião e discórdia; e ora pre-
domina uma, ora a outra.
Opinione igitur ad id, quod sit op- Com a idéia conduzindo-se para o
timum, ratione ducente ac suo robore pe- melhor por intermédio da razão e com o
ruincente temperantia exsistit; cupiditate predomínio de sua força surge a temperan-
uero absque ratione ad uoluptates trahente ça; com o desejo, porém, sem a razão arras-
nobisque imperante libido uocatur. Libido tando-nos para os prazeres e dominando-
autem, cum multiforme sit multarumque nos, chama-se paixão. A paixão, no entan-
partium, multas utique appellationes ha- to, sendo multiforme e de muitas aspectos,
bet. Et harum formarum quae maxime in possui muitos nomes. E dessas formas, a
aliquo exsuperat, sua illum nuncupatione que se sobressai sobremodo em alguém
nominatum reddit nec ulli ad decus uel ad confere-lhe um nome com designação pró-
dignitatem acquiritur. Circa cibus enim pria, mas a ninguém se lho atribui para sua
superatrix rationis et aliarum cupiditatum honra ou dignidade. Em relação aos ali-
cupiditas ingluuies appellatur et eum, qui mentos, porém, o desejo que se sobrepõe à
hanc habet, hac ipsa appellatione nuncupa- razão e a outros desejos é chamado de glu-
tum reddit. Rursus quae circa ebrietates toneria, e o que a possui recebe a designa-
tyrannidem exercet ac eum, quem possi- ção por este mesmo nome. Por outro lado,
det, hac ducens patet, quod habebit cog- o que exerce a tirania em relação à embria-
nomen? Et alias harum germanas et ger- guez, e é visto guiando aquele que o possui,
manarum cupiditatum nomina, semper que nome terá? É claro de que modo con-
quae maxime dominatur, quemadmodum vém chamar a outros desejos irmãos e os
appellare deceat, manifestum est. Cuius nomes destes desejos irmãos, sempre que
autem gratia superiora diximus, fere iam um predomine sobre os demais. O motivo
patet. Dictum tamen, quam non dictum, pelo qual dissemos as coisas acima é já al-
magis patebit. Quae enim sine ratione cu- go evidente. O dito, porém, será mais evi-
piditas superat opinionem ad recta tenden- dente que o não dito. O desejo que, sem a
tem rapitque ad uoluptatem formae et a razão, vence a idéia que tende à retidão, e
germanis, quae sub illa sunt circa corporis impele ao prazer da beleza, predomina e
formam, cupiditatibus roborata peruincit guia reforçado pelos desejos irmãos, que
et ducit, ab ipsa insolentia, quod absque lhe são submissos em relação à beleza do
more fiat, amor uocatur. corpo, chama-se, pelo próprio excesso,
porque se faz sem medida (absque more),
amor.

Totus hic locus insigniter Toda essa passagem foi trata-


admodum luculenterque tractatus da por Platão de forma insigne e bri-
est a Platone. Insunt enim et uerbo- lhante. Encontram-se, pois, tanto re-
rum, ut ita dixerim, deliciae et sen- finamentos das palavras, por assim
tentiarum mirabilis splendor. Et est dizer, como um admirável esplendor

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30 LEONARDO BRUNI, MAURI FURLAN

alioquin tota ad numerum facta dos pensamentos. E, ademais, toda a


oratio. Nam et “in seditione esse obra foi feita com vistas ao ritmo.
animum” et “circa ebrietates tyran- Pois “in seditione esse animum” [a
nidem exercere” as cetera huius- alma está em luta], e “circa ebrieta-
modi translata uerba quasi stellae tes tyrannidem exercere” [exercer a
quaedam interpositae orationem tirania em relação à embriaguez] e
illuminant. Et “innata nobis volup- outras figuras traduzidas deste mo-
tatum cupiditas”, “acquisita uero do iluminam o discurso como se es-
opinio, affectatrix optimi” per anti- pécies de estrelas nele interpostas. E
theta quaedam dicuntur; opposita “innata nobis voluptatum cupiditas”
siquidem quodammodo sunt inna- [o desejo de prazeres inato em nós],
tum et acquisitum, cupiditasque uo- “acquisita uero opinio, affectatrix
luptatum et opinio ad recta conten- optimi” [uma idéia adquirida, que
dens. Iam uero quod inquit “huius busca ansiosamente o melhor] são
germanae germanarumque cupidi- ditas mediante determinadas antíte-
tatum nomina” et “superatrix ratio- ses; uma vez que, de certo modo,
nis aliarumque cupiditatum cupidi- são termos opostos innatum e ac-
tas” et “utrum amanti potius uel quisitum [‘inato’ e ‘adquirido’], cu-
non amanti sit in amicitiam eun- piditasque uoluptatum [‘desejo de
dum?”, haec omnia uerba inter se prazeres’], opinio ad recta conten-
festiue coniuncta tamquam in dens [‘idéia que tende à retidão’].
pauimento ac emblemate uermicu- Além disso, diz: “huius germanae
lato summam habent uenustatem. germanarumque cupiditatum nomi-
Illud praeterea quod inquit “cuius na” [os nomes dos desejos irmãos
gratia diximus, fere iam patet; dic- deste irmão], “superatrix rationis
tum tamen, quam non dictum, ma- aliarumque cupiditatum cupiditas”
gis patebit”, membra sunt duo pa- [o desejo que vence a razão e os ou-
ribus interualis emissa, quae Graeci tros desejos], “utrum amanti potius
cola appellant. Post haec ambitus uel non amanti sit in amicitiam eun-
subicitur plenus et perfectus: “quae dum?” [deve-se buscar amizade
enim sine ratione cupiditas superat mais no amante ou no não-
opinionem ad recta tendentem rapi- amante?], todas estas palavras con-
tque ad uoluptatem formae et a catenadas engenhosamente entre si,
germanis, quae sub illa sunt circa como se num chão de mosaico ver-
corporis formam, cupiditatibus ro- miculado, possuem um encanto ex-
borata peruincit et ducit, ab ipsa in- traordinário. Ademais, também diz:
solentia, quod absque more fiat, “cuius gratia diximus, fere iam pa-
amor uocatur”. Videtis in his om- tet; dictum tamen, quam non dic-
nibus sententiarum splendorum ac tum, magis patebit” [o motivo pelo
uerborum delicias et orationis nu- qual dissemos as coisas acima, é já
merositatem; quae quidem omnia algo evidente. O dito, porém, será
nisi seruet interpres, negari non po- mais evidente que o não dito]: são
test quin detestabile flagitium ab eo dois membros de orações emitidos
commitatur. em intervalos iguais, que os gregos
chamam kola. Depois disso, o perí-
odo se apresenta pleno e perfeito:
“quae enim sine ratione cupiditas
superat opinionem ad recta tenden-

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31 DE INTERPRETATIONE RECTA

tem rapitque ad uoluptatem formae


et a germanis, quae sub illa sunt cir-
ca corporis formam, cupiditatibus
roborata peruincit et ducit, ab ipsa
insolentia, quod absque more fiat,
amor uocatur” [o desejo que, sem a
razão, vence a idéia que tende à re-
tidão, e impele ao prazer da beleza,
predomina e guia reforçado pelos
desejos irmãos, que lhe são submis-
sos em relação à beleza do corpo,
chama-se, pelo próprio excesso,
porque se faz sem medida (absque
more), amor]. Vedes, em todas es-
sas sentenças, o esplendor dos pen-
samentos, os refinamentos das pala-
vras e o ritmo da composição. Se,
porém, o tradutor não preserva tudo
isso, não se pode negar que comete
uma detestável infâmia.
In eodem libro rotunde ad- No mesmo livro [Fedro 257a-
modum et significanter per conti- c], a seguir acrescentou muito ele-
nua-tionem uerba posuit, inquiens: gante e claramente umas palavras,
dizendo:

Hanc tibi, o dilecte amor, nostra A ti, ó dileto amor, cantamos essa
pro facultate, quam pulcherrime optime- palinódia, de um modo quase poético, o
que ualuimus, poetico quasi more palino- quanto pudemos na forma mais bela e ex-
diam cecinimus. Quare et antedictorum celente, segundo nossa capacidade. Por is-
ueniam praesta, et horum gratia mihi pro- so, concede o perdão pelos ditos anterior-
pitius assiste. Tum, si quid indignum tuo mente, e por causa deles assiste-me bene-
numine a Phaedro et me dictum sit, Lysi- volamente. Pois, se algo indigno à tua di-
am huius disputationis patrem accusans, vindade foi dito por Fedro e por mim, que
ab huiusmodi sermonibus desistere facias, possas, acusando Lisias, o pai desta dispu-
et ad philosophiam quemadmodum frater ta, fazê-lo desistir dos discursos deste gêne-
eius Polemarchus uersus est, ita illum co- ro, e, assim, volta-o à filosofia, como seu
nuerte. Haec ipsa et ego deum oro, o So- irmão Polemarco se voltou. Estas mesmas
crates. Tuum uero sermonem iam pridem coisas também eu rogo a Deus, ó Sócrates.
admiror. Quam ualde superiori antecellit; Na verdade, já admiro muito teu discurso.
ut iam uereri incipiam, ne Lysias mihi exi- Quanto supera ao anterior! A ponto de eu
lis exanguisque uideatur si pergat ad hunc começar a temer que Lisias venha a me pa-
tuum alium suum conferre. recer pobre e fraco se continuar a contrapor
a este teu um outro seu.

Totus hic locus in Graeco Toda essa passagem em grego


ualde insignis et numerosus est et é muito insigne e rítmica e agradá-
amoenus. Nos autem in Latinum vel. Nós, porém, não sabemos se, ao
transferentes an seruauerimus mai- passar ao latim, conservamos a ma-
estatem elegantiamque primi aucto- jestade e a elegância do autor pri-
ris nescimus. Conati certe sumus il- meiro. Esforçamo-nos, por certo,
lam seruare. em conservá-la.

Scientia Traductionis, n.10, 2011


32 LEONARDO BRUNI, MAURI FURLAN

Quid Aristoteles? An et ipse E Aristóteles? Acaso não bus-


ornamenta dicendi eodem modo ca também ele, do mesmo modo, os
consectatur? Mirifice profecto at- ornamentos do falar? Maravilhosa-
que creberrime, ut ego ipse inter- mente, com certeza, e muito abun-
dum admirari cogar tantam eius rei dantemente, a ponto de eu mesmo
curam in medio subtilissimarum ser obrigado com frequência a ad-
disputationum philosopho adfuisse. mirar que, em meio às mais sutis
Referam uero unum aut alterum lo- discussões, estivesse presente em
cum exempli gratia. um filósofo tanto cuidado com estas
coisas. Referirei, pois, uma ou outra
passagem a título de exemplo.
Aristoteles in decimo Ethico- Aristóteles, no décimo livro
rum libro, cum de felicitate con- da Ética a Nicômaco [1178b], ao
templatiui hominis loquerentur, sic tratar da felicidade do homem con-
inquit: templativo, fala assim:

Esse uero perfectam felicitatem Que a felicidade perfeita seja, pois,


contemplatiuam quandam operationem uel uma certa atividade contemplativa será
ex eo patebit, quod deos maxime existi- ainda evidente a partir da nossa suposição
mamus felices ac beatos esse. At quas res de que os deuses são ao máximo felizes e
illis tribuimus agendas? Vtrum iustas? At bem-aventurados. Mas quais ações atribu-
erit ridiculum si in contractibus ac redden- ímos-lhes devem-nas realizar? Acaso as
tis depositis et huiusmodi rebus occupati justas? Mas seria ridículo se fossem mos-
dicantur. Sed an fortes in sustinendis ter- trados ocupados com contratos e com de-
roribus et periculis subeundis honesti cau- pósitos de restituição e coisas desse gênero.
sa? At quaenam pericula et qui terrores es- Ou, porém, as corajosas, enfrentando os
se diis possunt? An liberales? At cui da- medos e expondo-se aos perigos por uma
bunt? Et simul absurdum est dicere illis causa nobre? Mas que perigos e que medos
esse nummos uel aliquid tale. An modes- podem existir para os deuses? Acaso as ge-
tas? At quid tandem ista laus est non ha- nerosas? Mas a quem as dariam? E ao
bentibus prauas cupiditates? Ita per omnia mesmo tempo seria absurdo dizer que eles
discurrenti apparebit in rebus agendis têm dinheiro ou algo assim. Acaso as co-
paruum quiddam esse et indignum numine medidas? Mas o que é, afinal, este elogio
deorum. Atqui uiuere illos cuncti existi- para os que não possuem maus desejos?
mant. Et operari ergo. Nam dormire eos Assim, ao que percorre por tudo ficará evi-
dicendum non est, quemadmodum En- dente que há nas ações a serem realizadas
dymionem. Viuenti autem si nec agere algo pequeno e indigno para a divindade
quicquam tribuatur et multo magis nec fa- dos deuses. Entretanto, todos consideram
cere, quid restat tandem praeter contem- que eles vivem, e que, por isso, dedicam-se
plationem? Quare operatio dei beatitudine a alguma atividade. Pois não se há de dizer
praecellens contemplatiua quaedam esset. que eles dormem como Endimião11. Se, po-
Et in hominibus ergo illa, quae huic cog- rém, a um vivente não se lhe atribui ser ati-
natissima est, erit utique felicissima! vo em algo e, ainda mais, produzir algo, o
que lhe resta afinal além da contemplação?
Logo, a atividade de um deus, a qual exce-
de em bem-aventurança, seria algo con-
templativa. Por isso, também entre os ho-
mens, a atividade que for mais próxima
àquela será sempre a mais feliz!

11
Endimião, em versões distintas na mitologia grega, por solicitação da Lua, teria sido agracia-
do por Júpiter com o sono eterno, preservando, contudo, sua juventude. Ou, por ter desrespeita-
do Juno, teria sido castigado por Júpiter com o sono perpétuo.

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33 DE INTERPRETATIONE RECTA

Ne Demosthenes quidem aut Na verdade, nem Demóstenes


Cicero, qui uerborum dicendique nem Cícero, que se sobressaíram
artifices existunt, melius hanc como artesãos das palavras e do fa-
exornationem explicassent, quam lar, teriam exposto melhor esse or-
est ab Aristotele explicata. Idem in namento oratório do que foi exposto
secundo Ethicorum inquit: por Aristóteles. Do mesmo modo,
no segundo livro da Ética a Nicô-
maco [1103a-b], diz:

Non enim ex eo, quia saepe au- Não por termos muitas vezes ouvido
diuimus aut saepe uidimus, sensum acce- ou muitas vezes visto, adquirimos os senti-
pimus, sed contra habentes usi sumus, non dos, mas pelo contário, possuindo-os usa-
utentes habuimus. At uirtutes acquirimus mo-los, e os possuímos não os usando. Mas
operando prius, quemadmodum et in aliis as virtudes, adquirimo-las primeiramente
artibus. Quae enim oportet postquam didi- obrando, como acontece também entre as
cerimus facere, ea faciendo addiscimus, outras artes. Pois, aquilo que é necessário
ceu fabricando fabri et citharam pulsando fazer depois que tivermos aprendido,
citharedi; sic iusta agendo iusti et modesta aprendemos fazendo-o, como os construto-
modesti et fortia fortes efficiuntur. res ao construir, e os citaristas ao tocar a cí-
tara; assim, agindo com justiça se fazem os
justos, com moderação, os moderados, e
com bravura, os bravos.

In eodem quoque libro de No mesmo livro [1105a-b]


hoc ipso loquens sic inquit: ainda, falando sobre o mesmo as-
sunto, diz:

Praeterea nequaquam simile est in Além disso, o caso não é de forma


artibus et uirtutibus. Nam quae ab arte alguma similar entre as artes e as virtudes.
procedunt laudem in se habent, quare suf- Pois as coisas que procedem da arte têm em
ficit illa ita exsistere. Sed quae a uirtute si mesmas motivo de louvor, por isso basta
proficiscuntur, non satis est si ipsa iuste, que existam assim. Mas as que derivam da
quodammodo se habent et modeste agan- virtude, não é suficiente que elas mesmas
tur, sed si agens ita egerit: primo si sciens, sejam feitas com moderação e justiça, co-
secundo si eligens et eligens propter ipsa, mo de certo modo possuem em si, mas que
tertio si certo et immobili iudicio agat. Ad um agente as tenha feito assim: em primei-
ceteras uero artes habendas nihil horum ro lugar sabendo o que faz, em segundo,
requiritur praeter quam scientia. At in uir- escolhendo, e escolhendo por causa delas
tutibus scire ipsum parum est aut nihil. Vti mesmas, em terceiro, agindo com seguran-
uero atque exercere plurimum imo totum ça e com discernimento imperturbável. Pa-
ualet, utpote quae ex frequenti actione ius- ra possuir as outras artes, contudo, não se
torum modestorumque proueniant. Res requer nada disso senão conhecimento.
enim tunc iusta et modesta dicitur quando Mas entre as virtudes, o conhecimento
talis est qualem iustus et modestus ageret. mesmo é insuficiente ou nada. De modo
Iustus autem et modestus est non qui hoc que, importa muito, ou melhor, tudo, o
agit, sed qui sic agit ut iusti et modesti exercitar, uma vez que elas provêm da ação
agunt. Bene ergo dicitur quod quis iusta frequente dos justos e moderados. Uma
agendo iustus fit et modesta modestus, ação é, então, chamada de justa e de mode-
non agendo autem nullus ut bonus sit ne rada quando é tal qual um justo e moderado
curare quidem uidetur. Sed plerique non a realizou. Porém justo e moderado não é
ita faciunt, uerum ad uerba disputatio- quem realiza, mas quem realiza assim co-
nemque conuersi putant se philosophari mo os justos e os moderados realizam. Diz-
atque ita uiros bonos fieri: aegrotos imita- se, portanto, com razão, que alguém, ao fa-
ti, qui uerba medicorum audiunt quidem zer coisas justas, se torna justo, e, coisas
diligenter, faciunt autem nihil ex his quae moderadas, moderado, porém, ao não fazer
sibi praecepta sunt. Vt ergo illorum corpo- nada, ninguém parece preocuparse com ser

Scientia Traductionis, n.10, 2011


34 LEONARDO BRUNI, MAURI FURLAN

ribus non bene erit qui ita curantur, sic ne bom. Mas a maioria não faz assim. Na ver-
illorum animis qui ita philosophantur. dade, voltando-se para as palavras e os de-
bates, pensam que filosofam e que, deste
modo, se tornam homens bons: imitando os
doentes que ouvem atentamente as palavras
dos médicos, mas que nada fazem daquilo
que lhes foi prescrito. Assim como não es-
tarão bem os corpos daqueles que assim se
tratam, do mesmo modo, as almas daqueles
que assim filosofam.

Videtis in his uerbis eleganti- Vedes nestas palavras elegân-


am, uarietatem et copiam cum cia, variedade e riqueza com orna-
exornationibus tum uerborum tum mentos ora de palavras ora também
etiam sententiarum. de sentenças.
In libris uero Politicorum Na verdade, é em muito mais
multo crebrior est. Quod enim ma- frequente nos livros da Política.
teria est ciuilis et eloquentiae ca- Porque a matéria é civil e apta à
pax, nullus fere locus ab eo tracta- eloquência, quase nenhuma passa-
tur sine rhetorico pigmento atque gem é tratada por ele sem ornamen-
colore, ut interdum etiam festiuita- to retórico e cor, de modo que às
tem in uerbis oratoriam persequa- vezes também busca deleite oratório
tur. Quale est illud in septimo Poli- em suas palavras. Tal é aquela pas-
ticorum libro: sagem no sétimo livro da Política
[1323a-b]:

Videmus, inquit, homines acquirere Vemos, ele diz, que os homens não
et tueri non uirtutes externis bonis, sed ex- adquirem e conservam as virtudes mediante
terna uirtutibus, ipsaque beata uita - siue et os bens externos, mas os bens externos me-
gaudio posita est, siue in uirtute, siue in diante as virtudes, e a própria vida feliz –
ambobus - magis existit moribus et intel- encontre-se ela seja na alegria, seja na vir-
lectu in excessum ornatis, mediocria uero tude, seja em ambas as duas – está mais pa-
externa possidentibus, quam his qui exter- ra os adornados ao máximo com caráter e
norum plura possident quam opus sit, mo- inteligência, e que, contudo, possuem mo-
ribus uero intelligentiaque deficiant. destos bens externos, do que para os que
possuem mais bens externos do que seja
necessário, mas carecem de caráter e inteli-
gência.

Et alio loco de magistratu, E em outra passagem [VI,


qui custodiae reorum praesit, sic 1322a] sobre a magistratura, que se
inquit: encarrega da custódia dos réus, as-
sim diz:

Contingit uero, ut boni quidem uiri Acontece, pois, que homens certa-
maxime hunc magistratum deuitent, prauis mente bons evitam ao máximo essa magis-
autem nequaquam tutum sit illum commit- tratura, porém, de forma alguma é seguro
tere, cum ipsi potius indigeant custodia et confiá-la aos perversos, quando eles mes-
carcere, quam alios debeant custodire. mos precisam mais de custódia e cárcere do
que podem vigiar os outros.

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35 DE INTERPRETATIONE RECTA

Pleni sunt Platonis Aristote- Os livros de Platão e Aristóte-


lisque libri exornationum huiusmo- les estão cheios de ornamentos e be-
di ac uenustatum, quas longum ni- lezas deste tipo, e examiná-los deta-
mis foret per singula consectari. lhadamente requereria demasiado
Lector certe, si modo eruditus dis- tempo. O leitor, por certo, se for
ciplina sit, faciliter ea deprehendet. versado na matéria, facilmente os
His uero exemplis abunde patet reconhecerá. Com estes exemplos,
neminem posse primi auctoris mai- no entanto, fica bastante evidente
estatem seruare, nisi ornatum illius que ninguém pode preservar a ma-
numerositatemque conseruet. Dis- jestade do autor primeiro, se não
sipata namque et inconcinna tra- conservar o ornato e o ritmo dele.
ductio omnem protinus laudem et Por outro lado, uma tradução dis-
gratiam primi auctoris exterminat. persa e deselegante destrói conse-
Ex quo scelus quodammodo inex- quentemente todo mérito e graça do
piabile censendum est hominem autor primeiro. Por isso, deve-se
non plane doctum et elegantem ad considerar um crime de certo modo
transferendum accedere. inexpiável que um homem não to-
talmente douto e de bom gosto po-
nha-se a traduzir.

II. II.

Quoniam illa, quae habere Uma vez que apresentamos o


oportet interpretem, ostendimus ac que ao tradutor convém possuir e
reprehensiones artificum ex opere mostramos que as críticas a estes
ipso, si non recte fecerint, merito trabalhadores surgem, com razão,
nasci docuimus, uideamus nunc de sua própria obra, se não a tive-
tandem unum aliquem locum illius rem feito corretamente, vejamos
interpretationis. Ex eo namque to- agora, por fim, certa passagem da-
tum genus translationis eius pote- quela translação. A partir dela, po-
rimus intelligere et, utrum re- deremos entender todo o modo de
prehensionem aut laudem merea- sua tradução, e julgar se merece crí-
tur, iudicare. tica ou elogio.
Aristoteles in libro Politico- Aristóteles, no quarto livro da
rum quarto (utriusque enim operis Política (pois foi o mesmo tradutor
idem fuit traductor, nec refert, ex de ambas as obras, e não importa
illo uel ex hoc exempla sumantur), que sejam tomados exemplos de
Aristoteles ergo in libro Politico- uma ou de outra12), Aristóteles, por-
rum quarto docet: tanto, no quarto livro da Política
[1297a], expõe:

12
Bruni possivelmente se equivoca, pois uma das hipóteses contemporâneas de maior peso so-
bre as traduções de Aristóteles aponta o nome de Roberto Grosseteste (1168-1253) como tradu-
tor ao latim da Ética a Nicômaco (a tradução mais criticada por Bruni), e o de Guilherme de
Moerbeke (1215-1286) como o tradutor da Política, em 1260. Mas tal equívoco também pode
ser explicado pelo fato de que a tradução realizada por Roberto Grosseteste foi revisada por
Guilherme de Moerbeke.

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36 LEONARDO BRUNI, MAURI FURLAN

Solere potentes et magnos in ciuita- Os homens poderosos e importantes


te homines simulare interdum quaedam ac da cidade costumam, por vezes, simular e
dolose praetexere ad multitudinem populi encobrir dolosamente algumas coisas para
excludendam a rerum publicarum guber- excluir a maioria do povo do governo das
natione. Esse uero illa, in quius ista simu- coisas públicas. São, por certo, em número
latione utuntur, quinque numero: contio- de cinco as ocasiões nas quais usam desta
nes, magistratus, iudicia, armaturam, exer- simulação: assembléias, magistraturas, tri-
citationem. Poena enim magna constituta bunais, armamentos, exercícios físicos. Ins-
aduersus diuites, nisi contioni intersint, ni- tituiu-se grave punição contra os ricos, caso
si magistratus gerant, nisi in iudicio cog- não participem das assembléias, caso não
noscant, nisi arma possideant, nisi ad bel- exerçam uma magistratura, caso não inter-
licos usus exerceantur; per huiusmodi po- venham nos julgamentos, caso não possu-
enam ad ista facienda diuites compellunt; am armas, caso não se exercitem para as
at pauperibus nullam in his rebus poenam atividades bélicas. Mediante uma punição
constituunt, quase parcentes eorum tenui- desta natureza, impelem os ricos a realizar
tati. Haec enim praetexitur causa; sed re suas práticas; mas, contra os pobres, não
uera hoc agunt, quo illi impunitate permis- instituem nenhuma punição nessas áreas,
sa a gubernatione rei publicae se disiun- como que considerando a indigência deles.
gant. Poena siquidem remota, nec exercere Alega-se, pois, ser esta a causa, mas na
se ad bellicos usus multitudo curabit nec verdade fazem isso para que eles, com tal
arma possidere uolet, cum liceat per legem impunidade permitida, se apartem do go-
impune illis carere, nec magistratum geret verno das coisas públicas. Com efeito, se
pauper, si id putabit damnosum, cum sit in realmente isento o castigo, não cuidará de
eius arbitrio gerere uel non gerere. Onus se exercitar para os usos bélicos, nem que-
quoque iudicandi saepe uitabit, si nequeat rerá possuir armas, uma vez que se lhe
compelli, ac tempus rebus suis libentius permita por lei privar-se delas, nem exerce-
impendet quam publicis consiliis. Atque rá o pobre uma magistratura se o considerar
ita fit, ut tenuiores quidem homines sub prejudicial, uma vez que esteja em seu arbí-
praetextu ac uelamento remissionis poe- trio exercê-la ou não exercê-la. Também
narum sensim ac latenter a re publica ex- evitará frequentemente o fardo de julgar, se
cludantur, apud diuites autem et opulentos não for obrigado, e gastará o tempo de me-
remaneant administratio et arma et peritia lhor grado com suas coisas do que com de-
proeliandi. Ex quibus potentiores facti liberações públicas. E assim acontece que
quodammodo tenuioribus dominentur. os homens mais débeis são, na verdade, ex-
cluídos gradativamente e secretamente da
gestão pública sob o pretexto e a desculpa
do abrandamento dos castigos; com os ri-
cos e opulentos, porém, permanecem a ad-
ministração e as armas e a perícia de lutar.
A partir disso se tornam mais poderosos e,
de certo modo, dominam aos mais débeis.

Haec est Aristotelis sententia, Esse é o pensamento de Aris-


quam prolixius explicare uolui, quo tóteles, que eu quis explicar mais
clarius intelligeretur illius mens. amplamente, para que se entendesse
Nunc autem eius uerba praeclare et de forma mais clara sua reflexão.
eleganter in Graeco scripta que- Agora, porém, observa de que modo
madmodum hic interpres in Lati- este tradutor verteu ao latim pala-
num conuerterit, animaduerte! Ex vras daquele escritas em grego com
hoc enim modus et forma traducti- distinção e elegância; disso se de-
onis, qua ubique usus in transfe- preenderá, pois, com toda a evidên-
rendo est, manifestissime de- cia, o modo e a forma da tradução
prehendetur. Inquit enim interpres que ele, em geral, se serviu ao tra-
noster hoc modo: duzir. Escreve, pois, nosso tradutor
deste modo:

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37 DE INTERPRETATIONE RECTA

Adhuc autem, quaecumque prolo- Adhuc autem, quaecumque prolocu-


cutionis gratia in politiis sapienter loquun- tionis gratia in politiis sapienter loquuntur
tur ad populum, sunt quinque numero: cir- ad populum, sunt quinque numero: circa
ca congregationes, circa principatus, circa congregationes, circa principatus, circa
praetoria, circa armationem, circa exerci- praetoria, circa armationem, circa exercitia.
tia.
[Até agora, porém, o que falam, nos
governos, sabiamente ao povo por motivo
de uma prolocução, são cinco coisas: sobre
as congregações, sobre o principado, sobre
as pretorias, sobre o armamento, sobre os
exercícios.]

Deus immortalis, quis haec Deus imortal, quem entenderá


intelliget? quis hanc interpretatio- isso? Quem chamará isso de tradu-
nem ac non potius delirationem ac ção e não de delírio e barbárie? Que
barbariem uocitabit? Veniant quae- venham, por favor, os defensores
so defensores huius interpretis et deste tradutor e defendam, se pude-
istos, si possunt, defendant errores rem, esses erros ou deixem de se en-
uel desinant mihi irasci, si illum furecer comigo, se o repreendi.
reprehendi.
Primum enim, quod inquit Primeiramente, pois, o que
“prolocutionis gratia sapienter lo- significa “prolocutionis gratia sapi-
quuntur ad populum”: quis est qua- enter loquuntur ad populum” [falam
eso “prolocutionis gratia loqui”? Si sabiamente ao povo por motivo de
enim loquuntur homines ad popu- uma prolocução], o que é, por favor,
lum sapienter gratia prolocutionis, “falar por motivo de uma prolocu-
magnum profecto aliquid debet es- ção”? Se realmente os homens fa-
se prolocutio. Doce me ergo, quid lam sa-biamente ao povo por moti-
tandem sit! Nam ego id uerbum vo de uma prolocução, deve ser algo
numquam audiui hactenus neque certamente grandioso uma prolocu-
legi nec, quid importet, intelligo. Si ção. Ensina-me, pois, o que é afinal.
in extrema barbarie id uerbum in Pois eu nunca ouvi esta palavra até
usu est, doce me, quid apud barba- então, nem a li nem entendo o que
ros significet “prolocutionis gratia significa. Se esta palavra está em
loqui”? Nam ego Latinus istam uso em remotos países bárbaros, en-
barbariem tuam non intelligo. Si sina-me o que significa entre os
prolocutio est ut “prologus” et bárbaros “falar por motivo de uma
“prooemium”, congruere non po- prolocução”. Pois eu, sendo latino,
test. Non enim loquuntur homines não entendo esta tua barbaridade. Se
ad populum gratia prooemii uel prolocutio é o mesmo que prologus
prologi, sed prooemium et prologus ou prooemium, não consegue equi-
adhibetur gratia locutionis. Quodsi valer-se; pois os homens não falam
forsan dicere uis: “prolocutionis ao povo por motivo de um proêmio
gratia” idest gratia “deceptionis” et ou de um prólogo, mas um proêmio
“simulationis”, quodnam tandem e um prólogo são empregados em
malum est haec tan dura inusitata- razão de um discurso. Mas se talvez
que locutio tua! ut “simulationem” queres dizer que prolocutionis gra-
appelles “prolocutionem” et “dolo- tia [por motivo de uma prolocução]
se confingere” interpreteris “sapi- é o mesmo que gratia deceptionis et
enter loqui”. Haec enim omnia sunt simulationis [por motivo de engano

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38 LEONARDO BRUNI, MAURI FURLAN

absurdissima. Atqui quod inquit e dissimulação], que diabos, afinal,


“sapienter loquuntur”, in Graeco é este teu discurso tão duro e inusi-
non est “loquuntur”, sed id uerbum tado, que chamas simulatio de pro-
ex se ipso interpres adiunxit. Dein- locutio e interpretas dolose confin-
de quod inquit “sapienter”, male gere [fingir enganosamente] como
capit. “Sophisma” enim non “sapi- sapienter loqui [falar sabiamente]?
entiam”, sed “deceptionem et cauil- Tudo isso é por demais absurdo! E
lationem” significat. Itaque partim ainda, quando diz sapienter loquun-
adiungit ipse de suo, partim male tur [falam sabiamente], não há um
capit ex Graeco, partim male reddit loquuntur em grego, mas este verbo
in Latino, cum “prolocutionis gra- o tradutor o adjungiu por conta pró-
tia” dixerit, quod dicendum fuit pria. Enfim, quando diz sapienter,
“sub praetextu aliquo et simulatio- compreende mal. Sophisma não sig-
ne”. Praetexitur enim causa et do- nifica, pois, sapientia [sabedoria],
lose confingitur, cum aliud agitur, mas deceptio e cauilatio [engano e
aliud simulatur. Agitur enim re ue- cavilação]. Consequentemente, par-
ra, ut tenuiores excludantur a rei te acrescenta por sua própria conta,
publicae gubernatione; simulatur parte compreende mal do grego,
uero pro eorum commodis illa fieri, parte reproduz mal em latim, como
propter quae excluduntur. ao dizer prolocutionis gratia quan-
do deveria ser dito sub praetextu
aliquo et simulatione [sob algum
pretexto e dissimulação]. Oculta-se,
pois, uma causa e finge-se engano-
samente, quando trata-se de uma
coisa e simula-se outra. Obra-se,
pois, na verdade, de modo a que os
mais fracos sejam excluídos do go-
verno da coisa pública; simula-se,
porém, fazerem-se, em nome dos
benefícios deles, aquelas coisas por
causa das quais são excluídos.
Quod autem postea subicit Totalmente absurdo é o que
“circa congregationem”, absurdis- apresenta depois: circa congrega-
simum est. Verbum enim Graecum tionem [sobre a congregação]. Pois
“contionem” significat, non “con- a palavra grega significa contio [as-
gregationem”. Differunt autem plu- sembléia], não congregatio [con-
rimum inter se. Nam congregatio gregação]. Elas diferem muito entre
est etiam bestiarum; unde “gre- si. Congregatio [congregação] é
gem” dicimus. “Contio” autem também de animais; de onde dize-
proprie est multitudo populi ad de- mos grex [grei]. Contio, porém, é
cernendum de re publica conuoca- propriamente uma multidão de pes-
ta; et ita uerbum in Graeco signifi- soas convocadas para deliberar so-
cat. Itaque non recte transtulit, cum bre uma questão pública; e isso sig-
aliud pro alio posuerit nec uim se- nifica em grego. Por isso não tradu-
ruauerit Graeci uerbi. – Sed hoc ziu corretamente quando transpos
ueniale peccatum est. uma coisa pela outra, nem conser-
vou a índole da palavra grega. Mas

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39 DE INTERPRETATIONE RECTA

esse é um pecado venial.


Ast illud nequaquam uenia Por outro lado, não é digno de
dignum, quod subicit circa “praeto- nenhuma desculpa aquilo que apre-
ria.” Quod enim “praetoria” inquit, senta como circa praetoria [sobre
“iudicia” debuit dicere. “Iudicium as pretorias]. Ao que chamou prae-
enim furti” dicimus, non “praeto- toria devia dizer iudicia [julgamen-
rium furti”, et “res iudicata”, non tos]. Pois dizemos iudicium furti
“praetoriata” et “probationes in iu- [julgamento por furto] e não praeto-
dicio factas” et “iudicium de dolo rium furti [pretoria por furto], e res
malo.” Denique “dicastis” Graece, iudicata [questão julgada], não
Latine “iudex”; “dicastirion” Grae- praetoriata [pretoriada], e proba-
ce, Latine “iudicium”: Hoc est uer- tiones in iudicio factas [provas adu-
bum e uerbo. Iste uero delirat et ea zidas em julgamento], e iudicium de
nescit, quae pueri etiam sciunt. dolo malo [julgamento por dolo
mau]. Enfim, em grego dicastes, iu-
dex [juiz] em latim; dicasterion, em
grego, em latim iudicium [julga-
mento]. Isto é palavra por palavra.
Este, na verdade, delira e ignora o
que até as crianças sabem.
Circa “principatus” inquit: Circa principatus [sobre os
Haec est alia absurditas. Debuit principados] diz ele. Este é outro
enim “magistratus” dicere. Nam absurdo, pois devia dizer magistra-
principatus est imperatoris uel re- tus [cargo público]. Principatus é
gis; praetores uero et consules et próprio do imperador ou do rei; e
tribunos plebis et aediles curules et nunca diríamos que pretores, cônsu-
praefectos annonae et alios huius- les, tribunos da plebe, edis curuis e
modi numquam diceremus “princi- administradores de provisões de ví-
patum habere”, “magistratum gere- veres e outros do gênero principa-
re”. Est enim magistratus potestas tum habere [têm um principado],
uni uel pluribus hominibus a popu- mas que magistratum gerere [exer-
lo uel a principe commissa, princi- cem cargo público]. É, pois, um
patus autem est maior quaedam su- magistratus um poder concedido
pereminentia, cui ceterae omnes pelo povo ou pelo governante a um
potestates parent. Sic Octauianum único homem ou a vários; um prin-
et Claudium et Uespasianum prin- cipatus é um tipo de supereminên-
cipes fuisse dicimus, Senecam ue- cia, à qual todos os demais poderes
ro, qui consul fuit temporibus Ne- obedecem. Assim, dizemos que
ronis, nemo principem appellasset. Otaviano, Cláudio, Vespasiano fo-
Erat enim tunc Nero “princeps”, ram principes; ninguém, porém,
non Seneca; neque consulatus Se- chamaria de princeps a Sêneca, que
necae “principatus” erat, sed “ma- foi cônsul nos tempos de Nero, pois,
gistratus”; neque imperium Neronis então, Nero era o princeps, não Sê-
“magistratus” diceretur, sed “prin- neca; nem o consulado de Sêneca
cipatus”. Haec sunt luce clariora. era um principatus, mas um magis-
Nec quisquam Latinorum, qui litte- tratus; tampouco se diria magistra-
ras nouerit, huiusmodi officia et tus ao imperium [poder supremo] de
potestates ciuibus commissa “prin- Nero, mas principatus. Isso é mais
cipatus” uocauit. Dicimus etiam claro do que a luz. E nenhum dos la-

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40 LEONARDO BRUNI, MAURI FURLAN

“principem” per translationem: ut tinos letrados chamou assim de


“princeps senatus”, idest primarius principatus aos ofícios e poderes
homo in senatu “princeps iuuentu- concedidos aos cidadãos. Dizemos
tis”, qui inter adolescentes fama et também princeps metaforicamente,
honore primarius habetur. Haec est como princeps senatus [príncipe do
consuetudo Latini sermonis. Hic senado], isto é, o primeiro homem
autem interpres noster in aliis for- no senado; princeps iuuentutis
san non indoctus erat; litterarum [príncipe da juventude], quem entre
certe penitus fuit ignarus. os jovens é considerado o primeiro
em fama e honra. Esse é o uso lin-
guístico latino. O nosso tradutor tal-
vez não fosse indouto em outras
coisas, mas foi profundamente igna-
ro das letras.
Deinde subicit “circa armati- Por fim, apresenta circa ar-
onem”, “circa exercitia”. Haec eti- mationem, circa exercitia [sobre o
am duo puerilia sunt: “Armatio- armamento, sobre os exercícios].
nem” enim non satis usitate dici- Essas são duas puerilidades: arma-
mus; “exercitia” uero cuncta peni- tio, porque não a temos muito em
tus opera sine ulla distinctione im- uso; exercitia, porém, indicam todos
portant. Aristoteles autem hoc ita as operações em geral, sem qual-
ponit, ut exercitationes corporum quer distinção. Aristóteles, no en-
ad bellicos usus designet. tanto, o apresenta de modo a desig-
nar os exercícios físicos nos usos
bélicos.
Post haec resumens, quae Retomando depois o que ha-
prius enumerauerat, in hunc mo- via anteriormente enumerado, acres-
dum uerba subicit: centa as seguintes palavras:

Circa congregationem quidem: li- Sobre a congregação: a todos é per-


cere omnibus congregationi interesse, da- mitido participar da congregação; aos ricos,
mnum autem imponi diuitibus, si non in- porém, é imposto um dano, se não partici-
tersint congregationi, uel solis uel multo parem da congregação, ou a eles sozinhos
maius; circa principatus autem: habentibus ou de um modo mais amplo. Sobre o prin-
quidem honorabilitatem non licere abiura- cipado: aos que possuem honorabilidade
re, egenis autem licere; circa praetoria ue- não é permitido abjurar, aos pobres, porém,
ro: diuitibus quidem esse damnum, his au- é permitido. Sobre as pretorias: aos ricos,
tem paruum. Eodem modo et de possiden- por certo, há dano, se não intervêm, aos
do arma et de exercitari leges ferunt: Ege- pobres, porém, há licença, ou, a uns grande
nis quidem licet non possidere, diuitibus dano, a outros, pequeno. Do mesmo modo,
autem damnosum non possidentibus. Et si tanto sobre o possuir armas como sobre o
non exerceantur, his quidem nullum dam- exercitar-se as leis ditam: aos pobres, por
num, diuitibus autem damnosum, ut hi certo, é permitido não possuí-las, aos ricos,
quidem propter damnum participent, hi porém, que não as possuem, é danoso. E se
autem propter non timere non participent. não se exercitam, àqueles por certo nenhum
Haec quidem igitur sunt oligarchica so- dano, aos ricos, porém, é danoso, a fim de
phistica legislationis. que estes participem por causa do dano, e
aqueles não participem por não o temerem.
Por isso, estas, na verdade, são sofísticas
questões oligárquicas da legislação.

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41 DE INTERPRETATIONE RECTA

O Aristotelis elegantiam! qui Oh elegância de Aristóteles!


tanto studio de arte rhetorica que com tanto empenho escreveu
scripsit, qui tanto splendore tanto- sobre a arte retórica, que com tanto
que ornatu libros suos refersit. Is- esplendor e tanto ornato cumulou
tane tam balbutientia, tam absurda, seus livros. São-lhe atribuídas em
tam muta in Latino illi redduntur, latim estas coisas tão balbuciantes,
ut “prolocutiones”, ut “honorabili- tão absurdas, tão inexpressivas, de
tates”, ut “propter non discuti” et modo a que se diga prolocutiones,
“propter non scribi”, ut “oligarchi- honorabilitates, propter non discuti,
ca sophistica legislationis” et propter non scribi, oligarchica so-
huiusmodi portenta uerborum di- phistica legislationis [prolocuções,
cantur, quae uix in pueris primas honorabilidades, por não intervirem,
discentibus litteras tolerabilia fo- por não escreverem, sofísticas ques-
rent? tões oligárquicas da legislação] e,
como esses, outros portentos ver-
bais, que dificilmente seriam tolerá-
veis entre as crianças que aprendem
as primeiras letras?
Sed missas faciamus querelas Mas deixemos os lamentos e
et in illa ineptitudine loquendi erro- vejamos, ademais, entre aquela
res insuper uideamus. Quo inquit ineptidão, os erros de expressão.
“damnum imponi diuitibus, si non Porque disse: “damnum imponi
intersint congregationi”, non “da- diuitibus, si non intersint congrega-
mnum”, sed “poena” dicendum fu- tioni”, [aos ricos, porém, é imposto
it. Licet enim damnatio poenam um dano, se não participarem da
importet, tamen aliud est “dam- congregação] quando deveria ser di-
num”, aliud “poena”. Nam dam- to poena [castigo] e não damnum
num et fures afferunt et aues et [dano]. Embora uma condenação
quadrupedes, poena uero a lege [damnatio] implique um castigo,
imponitur, si contra quis faciat, uma coisa é, contudo, damnum, ou-
quam iussit. Nec etiam “congrega- tra poena. Pois dano causam tanto
tioni” dicendum fuit, sed “contio- os ladrões quanto as aves e os qua-
ni”. drúpedes, porém a pena é imposta
pela lei, se alguém atua contraria-
mente ao que ela determina. Tam-
pouco deveria ser dito congregatio
[congregação], mas contio [assem-
bléia].
Quod uero postea subicit No tocante ao que apresenta
“habentibus honorabilitatem non depois, “habentibus honorabilitatem
licere abiurare principatus”: tria hic non licere abiurare principatus” [aos
sunt – “honorabilitas” et “principa- que possuem honorabilidade não é
tus” et “abiurare” –, quorum singu- permitido abjurar o principado], há
la uitiose sunt posita. De “principa- três termos – honorabilitas, princi-
tu” ostensum est supra euidentis- patus e abiurare – cada um dos
simis probationibus: non “principa- quais colocado equivocadamente.
tus”, sed “magistratus” esse dicen- Sobre principatus foi mostrado
dum. Nunc autem de “honorabilita- acima mediante argumentos muito
te” et “abiuratione” uideamus. evidentes que não deveria ser dito

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42 LEONARDO BRUNI, MAURI FURLAN

Quaero igitur, quid uelit dicere principatus, mas magistratus. Ve-


“honorabilitatem habentibus non jamos, porém, agora sobre honora-
licere abiurare”? Vtrum, si sint per- bilitas e abiurare. Pergunto, portan-
sonae honorabiles ceu equites et to, o que quer dizer “honorabilita-
nobiles, abiurare non possunt, mer- tem non licere abiurare”? Se são
catores autem et populares possunt, pessoas honoráveis, como cavalei-
licet ditiores sint equitibus et nobi- ros ou nobres, não podem abjurar,
libus? Vel quomodo se haec ha- contudo, mercadores e pessoas do
bent? Nam si ad honorem lex res- povo podem, ainda que sejam mais
picit, non ad diuitias, nobiles etiam, ricos que os cavaleiros e os nobres?
si sint egeni, magistratus gerere Ou como se consideram estas coi-
compellentur, ignobiles uero, qua- sas? Mas se a lei considera a honra,
muis sint ditissimi, renuntiare pote- não a riqueza, também os nobres, se
runt. Nam licet diuites sint, non forem pobres, são compelidos a
habent honorabilitatem. Vel dice- exercer cargos públicos, porém os
mus: pauperem quidem habere ho- plebeus, ainda que sejam riquíssi-
norabilitatem, si bonus sit, diuitem mos, poderão renunciar. Pois embo-
autem, si sit improbus, non habere? ra sejam ricos, não têm honorabili-
Atqui honorabilem esse constat dade. Ou diremos que o pobre tem
bonum uirum, quamuis sit pauper, efetivamente honorabilidade, se for
uituperabilem autem malum, qua- bom, mas o rico não tem, se for ím-
muis sit diues. Qui uero honorabilis probo? Contudo, consta que o ho-
est, eum honorabilitatem habere mem bom é honorável, embora seja
negari non potest. Quod si haec ita pobre, porém, o mau é vituperável,
sunt, cur inquit “habentibus hono- embora seja rico. Não se pode, con-
rabilitatem non licere, egenis autem tudo, negar que quem é honorável
licere”, quasi contrarii sint honora- tem honorabilidade. E se isso é as-
biles et egeni? sim, por que diz ele “habentibus ho-
norabilitatem non licere, egenis au-
tem licere” [aos que têm honorabili-
dade não é permitido, porém aos
pobres é permitido], como se hono-
rabiles [honoráveis] e egeni [po-
bres] fossem contrários?
Quid ad haec respondebit in- Que responderá a isso nosso
terpres noster? Nihil profecto, quod tradutor? Nada, certamente, que seja
rectum sit. Nam dato uno incoueni- correto, pois, uma vez cometida
ente plura sequuntur. Interpres uma incoerência seguem-se outras
enim noster propter ignorantiam mais. Pois nosso tradutor, por des-
linguae “honorabilitatem” dixit, conhecimento da língua disse hono-
quod “censum” dicere debebat. Est rabilitas quando deveria dizer cen-
autem census ualor patrimonii, sus [censo]. É, pois, o censo o valor
quem iste stulto et imperito et inu- do patrimônio, que ele, com um vo-
sitato uocabulo “honorabilitatem” cábulo estúpido, inadequado e inusi-
nuncupauit. Ex hoc autem uerbo, tado, chamou de honorabilidade. A
quod inconuenienter ab “honore” partir desta palavra, que inconveni-
traxit, mille, ut ita dixerim, inco- entemente derivou de honor, resul-
nuenientia sequerentur. Sed non tarão, por assim dizer, mil incoerên-

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43 DE INTERPRETATIONE RECTA

“honorabilitas” dicendum fuit, sed cias. Pois devia ser dito census, não
“census”; hoc est enim conueniens honorabilitas; este é o nome conve-
nomen et Graeco proprie corres- niente e propriamente correspon-
pondens, “honorabilitas” autem in- dente em grego; honorabilitas, po-
conueniens ac penitus alienum. rém, é inconveniente e totalmente
Ciuitates enim Graecorum ferme inoportuno. Pois quase todas as ci-
omnes censu moderabantur. Romae dades dos gregos eram governadas
quoque census fuit a Seruio Tullio segundo o censo. Também em Ro-
rege constitutus. Diuisit enim ciui- ma, o censo foi instituído pelo rei
tatem non secundum regiones, sed Sérvio Túlio. Dividiu a cidade não
secundum censum, faciens unum conforme as regiões, mas conforme
corpus eorum ciuium, qui habebant o censo, criando uma só classe da-
censum supra centum milia aeris, queles cidadãos que tinham um cen-
aliud corpus habentium censum a so acima de cem mil asses, outra
centum milibus ad septuaginta classe dos que tinham um censo de
quinque, tertium eorum, qui habe- 100 mil a 75 mil asses, uma terceira
bant censum a septuaginta quinque dos que tinham um censo de 75 mil
milibus ad quinquaginta; et ita des- a 50 mil asses, e assim em escala
cendens usque ad quinque milia pe- descendente até chegar a 5 mil as-
ruenit. Infra eum numerum sine ses. Abaixo deste número deixou
censu reliquit, quasi tenues et im- sem censo, como se fossem fracos e
potentes. Ex censu autem, quae desvalidos. A partir do censo, pois,
domi et militiae subeunda forent estabeleceu os encargos que deveri-
onera, constituit. Quia uero patri- am ser aportados na paz e na guerra.
monia uel minuuntur uel augentur, Contudo, porque os patrimônios
de quinquennio in quinquennium diminuem ou aumentam, estabele-
recenseri constituit. Id quinquen- ceu que se recenseasse de cinco em
nium “lustrum” appellarunt; magis- cinco anos. Chamaram a este quin-
tratus uero, qui censui praeessent quênio de lustrum [lustro]; e os ma-
“censores” dicti sunt. Apud Grae- gistrados que presidissem ao censo
cos uero censores dicuntur “timi- foram chamados censores. Entre os
tae” et census “timima” uocatur. gregos, contudo, os censores são
Sed bonus ille interpres ista non le- chamados timetai, e o censo, time-
gerat. Verum pro censu “honorabi- ma. Mas aquele bom tradutor não
litatem” somniauit, nouum faciens havia lido isso. Na verdade, deva-
uerbum a se ipso, quod nemo ante neou honorabilitas no lugar de cen-
posuerat. sus, criando por si mesmo uma nova
palavra que ninguém antes empre-
gara.
Quod autem inquit “licere E quando disse “licere abiura-
abiurare magistratum”: dubito, ne re magistratum” [é permitido abju-
uerbum “abiurare” non recte sit po- rar o cargo público], duvido que a
situm; praepositio enim ad uerbum palavra abiurare esteja empregada
“iuro” addita “falsum iuramentum” corretamente; pois uma preposição
significare uidetur, ut periurare, adjungida ao verbo iuro parece sig-
deierare, abiurare. Sallustius de nificar “falso juramento”, como per-
Sempronia creditum “abiurauerat”; iurare [jurar em falso], deierare
caedis conscia fuerat. “Abiurare [comprometer-se com juramento
creditum” est: falso iuramento se a falso], abiurare [negar com jura-

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44 LEONARDO BRUNI, MAURI FURLAN

pecunia credita defendere. Itaque mento falso]. Salústio escreve sobre


“abiurare magistratum” esset: falso Semprônia que ela creditum abiu-
iuramento magistratum negare, rauerat13 [abjurara uma dívida]; que
quod non cadit in praesenti senten- ela soubera de crimes. Abiurare
tia. creditum significa livrar-se de uma
dívida contraída sob falso juramen-
to. Por isso, abiurare magistratum
seria renegar um cargo público sob
falso juramento, o que não condiz
com a sentença em questão.
Illud autem, quod subdit cir- Aquilo que apresenta equivo-
ca praetoria, “diuitibus esse dam- cadamente sobre praetoria (“diuiti-
num, si non discutiant, egenis uero bus esse damnum, si non discutiant,
licentiam”, satis ostendimus supra: egenis uero licentiam” [aos ricos há
non “praetoria”, sed “iudicia”, ne- dano, se não intervêm, aos pobres,
que “damnum”, sed “poenam” esse porém, há licença]), mostramos su-
dicendum. In quibus adeo turpis est ficientemente acima: deve se dizer
error, ut pueros etiam, qui primas iudicia [julgamentos] e não praeto-
discunt litteras, pudere deberet tan- ria [pretorias], poena [castigo] e
tae ignorantiae ac ruditatis. Deinde, não damnum [dano]. Nos quais o er-
quod inquit “si non discutiant”, ro é tão torpe que, de tanta ignorân-
imperitissimum est. Nam et iudices cia e rudeza, deveria envergonhar
parum diligentes interdum non até as crianças que aprendem as
“discutiunt” ea, de quibus “iudi- primeiras letras. Em seguida, quan-
cant”. Hoc autem pauperi non per- do diz “si no discutiant” [se não in-
mittitur, ut “iudex” sit et non “dis- tervêm] é do máximo desconheci-
cutiat”, sed excusare se potest ab mento. Pois também os juízes pouco
onore “iudicandi”. diligentes por vezes não intervêm
nas questões que julgam. Ao pobre,
porém, não se lhe permite que seja
juiz e não intervenha, mas pode se
excusar pelo ônus do julgar.
Sequitur deinde cetera barba- Seguem-se, então, outras bar-
ries usque ad praeclaram illam baridades até à preclara conclusão,
conclusionem, cum inquit “haec quando diz “haec quidem igitur sunt
quidem igitur sunt oligarchica so- oligarchica sophistica legislationis”
phistica legislationis”. Quae dum [por isso essas são, pois, sofísticas
lego, partim ingemisco, partim ri- questões oligárquicas da legislação].
deo. Ingemisco enim elegantiam il- Enquanto as leio, por um lado la-
lorum librorum in tantam barbari- mento, por outro rio. Lamento que a
em fuisse conuersam; rideo uero, elegância daqueles livros foi trans-
quod uerba illius conclusionis formada em tamanha barbaridade;
tamquam medicinalia quaedam mi- rio, contudo, porque as palavras da-
hi uidentur. Perinde est enim dicere quela conclusão parecem-me como
“oligarchica sophistica legislatio- certos medicamentos. Pois dizer

13
Salústio, A Conjuração de Catilina, XXV, 4: “Sed ea saepe antehac fidem prodiderat, credi-
tum abiurauerat, caedis conscia fuerat, luxuria atque inopia praeceps abierat.”

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45 DE INTERPRETATIONE RECTA

nis”, ac si quis dicat “aromatica “oligarchica sophistica legislatio-


styptica primae decoctionis”. O me nis” é como se alguém dissesse
simplicem! qui cola et commata et “aromatica stypica primae decoctio-
periodos et dicendi figuras ac uer- nis” [adstringentes aromáticos de
borum sententiarumque ornamenta primeira decocção]. Oh, que inge-
seruari postulem ab huiusmodi nuidade a minha pedir que mem-
hominibus, qui, nedum ista non bros, incisos e períodos, e estilos, e
sentiunt, sed ne primas quidem lit- ornamentos de palavras e de pensa-
teras tenere uideantur; tanta sunt mentos fossem conservados por
ignorantia ruditateque loquendi. homens desta natureza, que não só
não percebem estas coisas, como
nem sequer parecem possuir as pri-
meiras letras, tamanhas são a igno-
rância e a rudeza de expressão.
Quid de uerbis in Graeco re- Que dizer das palavras deixa-
lictis dicam, quae tam multa sunt, das em grego, que são muitíssimas,
ut semigraeca quaedam eius inter- a ponto de sua tradução parecer algo
pretatio uideatur? Atqui nihil Grae- semigrega? No entanto, nada foi di-
ce dictum est, quod Latine dici non to em grego que não possa ser dito
possit! Et tamen dabo ueniam in em latim. Concederei, contudo, li-
quibusdam paucis admodum pere- cença para umas poucas palavras
grinis er reconditis, si nequeant demasiadamente estranhas e obscu-
commode in Latinum traduci. Enim ras, se não puderem ser adequada-
uero, quorum optima habemus uo- mente traduzidas ao latim. Sem dú-
cabula, ea in Graeco relinquere ig- vida, é da máxima ignorância deixar
norantissimum est. Quid enim tu em grego vocábulos para os quais
mihi “politiam” relinquis in Grae- temos excelentes correspondentes.
co, cum possis et debeas Latino ue- Por que, pois, me deixas em grego
rbo “rem publicam” dicere? Cur tu politeia, quando podes e deves dizer
mihi “oligarchiam” et “democrati- a palavra latina res publica? Por
am” et “aristocratiam” mille locis que tu me repetes em mil passagens
inculcas et aures legentium insua- oligarchia, democratia, aristocra-
sissimis ignotissimisque nominibus tia, e feres os ouvidos dos leitores
offendis, cum illorum omnium op- com nomes dos mais desaconselha-
tima et usitatissima uocabula in La- dos e desconhecidos, quando temos
tino habeamus? Latini enim nostri em latim vocábulos muitíssimo ex-
“paucorum potentiam” et “popula- celentes e usados para todos eles?
rem statum” et “optimorum guber- Pois nossos latinos disseram pauco-
nationem” dixerunt. Vtrum igitur rum potentia [poder de poucos], e
hoc modo Latine praestat dicere, an popularis status [estado popular], e
uerba illa, ut iacent, in Graeco re- optimorum gubernatio [governo dos
linquere? nobres]. Por isso, é melhor falar
deste modo em latim ou deixar
aquelas palavras em grego como es-
tão?
“Epiichia” est iustitiae pars, Epieikeia é parte da justiça
quam nostri iurisconsulti “ex bono que nossos jurisconsultos denomi-
et aequo” appellant. “Ius scriptum nam ex bono et aequo [do bom e
sic habet – inquit iurisconsultus –, equânime]. Diz um jurisconsulto:

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debet tamen ex bono et aequo sic “A lei escrita é assim, porém deve
intelligi, et aliud ex rigore iuris, ser entendida de acordo com o bom
aliud ex aequitate.” Et alibi inquit: e o equânime, por um lado segundo
“Ius est ars boni et aequi.” Cur tu o rigor da lei, por outro segundo a
ergo mihi “epiichiam” relinquis in equanimidade”. E em outro lugar
Graeco, uerbum mihi ignotum, diz: “A lei é a arte do bom e do
cum possis dicere “ex bono et equânime”. Por que tu, pois, me
aequo”, ut dicunt iurisconsulti nos- deixas em grego epieikeia, palavra
tri? Hoc non est interpretari, sed para mim desconhecida, quando po-
confundere, nec lucem rebus, sed des dizer ex bono et aequo, como
caliginem adhibere. dizem nossos jurisconsultos? Isso
não é traduzir, mas confundir, nem
lançar luz às coisas, mas trevas.
Quid dicam de suauitate ac Que dizer da suavidade e da
rotunditate orationis, qua quidem in harmonia do discurso, nas quais
re plurimum laborasse Aristoteles Aristóteles parece certamente haver
in Graeco uidetur. Hic autem inter- se empenhado muito em grego?
pres ita dissipatus delumbatusque Nisso o tradutor é tão dispersivo e
est, ut miserandum uideatur, tan- desleixado que é lastimável consi-
tam confusionem intueri. Taedet derar tamanha confusão. Cansa-me
me plura referre. Est enim plena in- relatar outras questões. E a tradução
terpretatio eius talium ac maiorum dele está cheia de tais e ainda de
absurditatum et delirationum, per maiores absurdos e delírios, pelos
quas omnis intellectus et claritas il- quais todo entendimento e clareza
lorum librorum miserabiliter trans- daqueles livros são transformados
formatur fiuntque ii libri ex suaui- miseravelmente, e tais livros tor-
bus asperi, ex formosis deformes, nam-se de suaves ásperos, de for-
ex elegantibus intricati, ex sonoris mosos deformes, de elegantes in-
absoni et pro palaestra et oleo la- trincados, de sonoros ábsonos, e em
crimabilem suscipiunt rusticitatem: vez de graça e apuro assumem uma
ut, si quis apud inferos sensus sit rusticidade deplorável, a tal ponto
rerum nostrarum, indignetur et do- que, se alguma sensibilidade há no
leat Aristoteles libros suos ab im- outro mundo com respeito às nossas
peritis hominibus ita lacerari, ac coisas, Aristóteles se indigne e se
suos esse neget, quos isti transtule- condoa de que livros seus sejam as-
runt, ac suum illis nomen inscribi sim maltratados por homens inábeis,
molestissime ferat. Haec igitur ego e negue serem seus os que estes tra-
tunc reprehendi et nunc etiam re- duziram, e suporte com muitíssimo
prehendo. pesar que se escreva seu nome sobre
eles. Isso, pois, eu então lhe criti-
quei, e ainda agora critico.

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47 DE INTERPRETATIONE RECTA

III. III.

Quod autem non alienae sint Que, porém, minhas críticas


reprehensiones meae a consuetudi- não são estranhas ao costume dos
ne doctissimorum hominum, et Hi- homens mais instruídos, compro-
eronymus et M. Cicero probant; vam-no tanto Jerônimo quanto Cí-
quorum reprehensiones si in simi- cero. Se as críticas deles se leem em
libus legantur, uidebuntur meae situações similares, as minhas pare-
tanto clementiores esse, quanto au- cerão ser tanto mais clementes
res nostrae ad huiusmodi corrup- quanto os nossos ouvidos tornaram-
tiones propter saeculi ignorantiam se já, de certa forma, insensíveis às
quodammodo iam occalluerunt. Il- corrupções deste tipo por causa da
lis uero tamquam monstra et inau- ignorância do século. A eles, contu-
dita prodigia uiderentur. do, pareceriam como que monstruo-
sidades e manifestações inauditas.14

Trad. de Mauri Furlan


maurizius@gmail.com
Universidade Federal de Santa Catarina

Fonte: Hans Baron (Hg.).


Leonardo Bruni Aretino, Humanistisch-Philosophische Schriften,
Leipzig-Berlin, B. G. Teubner, 1928.

Referências bibliográficas

BRUNI ARETINO, Leonardo. “De interpretatione recta”, in Hans Baron (Hg.).


Humanistisch-philosophische Schriften. Leipzig: Teubner, 1928.
FOLENA, Gianfranco. Volgarizzare e Tradurre. Turim: Unione Tipografico-Ed.
Torinense, 1991.
GRIFFITHS, Gordon et al. “General introduction”, in The humanism of Leonardo
Bruni. Selected Texts. Binghamton/Nueva York: M&R, 1987.

14
Em todos os manuscritos conservados, o texto é interrompido aqui. A julgar pelo que Bruni
propunha no prefácio, a obra ficou incompleta em sua terceira e última parte.

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