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O TEXTO NOS ESTUDOS DA LINGUAGEM: ESPECIFICIDADES E LIMITES

Freda Indursky
UFRGS

Introdução: situando a reflexão


Falar em texto consiste em uma tarefa bastante complexa, pois, desde os bancos escolares,
ouvimos falar de texto e com ele trabalhamos. Este fato, de certa maneira, naturaliza esta noção e
ela passa a fazer parte do senso comum - todos sabem o que é texto: sabemos, desde sempre, que
texto é verbal, que deve apresentar-se de forma escrita, que esta forma deve apresentar clareza, e
precisa ter começo, meio e fim. Este é um pré-construído, da ordem do todo mundo sabe o que é.
Meu propósito, neste ensaio, será colocar este pré-construído sob observação, com o intuito de
desfazer esta naturalização de sentido. Para tanto, proponho-me fazer uma reflexão sobre a
categoria texto. Esta passagem do texto empírico para a categoria texto me possibilita sair do pré-
construído, do senso comum, e iniciar uma reflexão que leva em conta diferentes enfoques teóricos,
todos inscritos nos estudos da linguagem.
Pensar a categoria texto vai permitir-me salientar que, dependendo da concepção teórica,
texto pode ser entendido diferentemente, suas propriedades textuais podem ser mais ou menos
numerosas e, inclusive, diferentes. Ou seja: desejo deixar de lado o que todo mundo já sabe para
passar a examinar o texto à luz de diferentes teorias. Este é o propósito deste ensaio. Mais
exatamente: vou examinar a noção de texto pelo viés da Lingüística Textual, da Teoria da
Enunciação, da Semiótica e da Análise do Discurso. Tomo estas quatro diferentes teorias que
estudam a linguagem e que, por conseguinte, pensam direta ou indiretamente sobre a categoria texto
para desnaturalizar o entendimento que se tem sobre esta noção, já que ele não é concebido de
forma idêntica nesses quadros teóricos. O sentido de texto muda de acordo com o aparato teórico de
que nos cercamos para concebê-lo. E, se a concepção de texto não é a mesma para todos, também
não é idêntico o trabalho que sobre ele pode ser realizado. Para trilhar este caminho, vou interrogar
cada um destes quadros teóricos para deles apreender o que é texto.

1. Entrando no túnel do tempo


Antes de começar, porém, desejo fazer um outro tipo de viagem. Quero entrar no túnel do
tempo, em busca de um possível momento em que a noção de texto começou a ser formulada. Este
passeio me levou a Quintiliano, que tomo, para os propósitos deste trabalho, como efeito de
discurso fundador (ORLANDI, 1993, p. 7) de uma reflexão sobre o texto. Para tanto, vou referi-lo
através de Adam (1999) que, por sua vez, remete aos estudos de Barbotin e de Rigolot.
Adam registra que o conceito de ´texto` começou a tomar consistência a partir das reflexões
de Quintiliano. Assim, lendo Quintiliano através de Adam, e das relações que este autor estabelece
com outros teóricos, podemos ver que esta é uma preocupação que tem atravessado muitos séculos.
Vejamos a citação:
No Livro IX da Instituição Oratória, Quintiliano associa o texto – textus e textum – a
compositio, isto é, a inventio (escolha dos argumentos), a elocutio (colocação em palavras) e a
dispositio (colocação em ordem ou plano do texto), todas reunidas. O textus (IX, 4, 13) está
próximo da bela conjunctura1 (...), é o que reúne, junta ou organiza elementos diversos e mesmo
díspares, o que os transforma em um todo organizado` (Vinaver, 1970). Esta ´conjunctura` é a
tradução do latim junctura da Ars Poetica de Horácio (verso 47-48 e 242-243). Quanto a textum
(IX, 4, 17), ele está mais próximo da ´infinita contextura dos debates` dos Essais (livro II, 17)
de Montaigne, isto é, da idéia de composição aberta e menos acabada. O texto é assim definido

1
Conjointure, em francês.
desde a origem, tanto por sua unidade quanto por sua abertura e compete a nós não esquecer
deste duplo funcionamento constitutivo (ADAM, 1999, p.5-6; a tradução é minha).
Seguindo as pistas deixadas por Adam, na citação acima, decidi ir ao dicionário Latim-
Português (FARIA, 1956), para examinar os termos latinos por ele citados e alguns outros que me
parecem vinculados a este mesmo objeto que estou investigando, o texto. E, esta ida ao Dicionário
Latino me mergulhou no mundo clássico onde me deparei com um resultado bastante instigante.
Vejamos, um a um, os termos que pesquisei nesta minha garimpagem inicial. Comecei por
conjunctura. A primeira palavra latina que encontrei foi conjuncte, advérbio, que significa
conjuntamente, ao mesmo tempo. Continuando minha busca, selecionei conjunctim, também
advérbio, que significa conjuntamente. Continuando, localizei conjunctio, ones, um substantivo
que, em seu sentido próprio, significa união, ligação, mas que, na Retórica, pode assumir outros
sentidos, dos quais vou reter apenas um, o de ligação harmoniosa das palavras na frase, tal como
foi usado por Cícero. Depois tomei a palavra junctura, substantivo. Para este termo, encontrei
juntura, cujo sentido próprio é lugar em que duas partes se juntam, segundo o uso que Virgílio fez
na Eneida (12, 274). E Horácio, em sua Ars Poetica (47), tal como já havia sido registrado por
Adam, na citação acima, utilizou-o também para falar de estilo, significando ligação, conexão,
composição, combinação (de palavras). Vejamos, a seguir, o termo textus, substantivo masculino.
Para ele, encontrei contextura, encadeamento, conforme uso que dele fez Lucrécio (4, 728). Já para
Textum, substantivo neutro, há um registro bastante significativo em Metamorfoses, de Ovídio:
tecido, pano de onde, por extensão, Virgílio, na Eneida (8, 625) vai usar com o sentido de obra
formatada de várias partes reunidas, decorrendo daí o sentido de contextura. Mas, se há contextura
em Português, me indaguei se também haveria em Latim e qual seria seu significado. Eis o
resultado de minha busca. Inicialmente, me deparei com contextus, substantivo masculino que
remete, em Cícero, para dois sentidos diversos. O primeiro, (em De Finibus Bonorum et Malorum,
5, 32), corresponde a reunião e o segundo, (em Partitiones Oratoriale, 82) remete a contextura de
um discurso. Então, por fim, fui buscar a palavra textura. Substantivo que significa, segundo o uso
que dele faz Plauto (Stichus2, 348), tecido, contextura, encadeamento.
Como é possível verificar, esta minha garimpagem inicial revela que a questão do texto é
bem antiga e era pensada por autores clássicos do mundo romano que se ocupavam de Oratória, de
Filosofia e de Gramática. Sobre esta questão, vale explicitar que Cícero (106-43 a.C.) deixou uma
vasta obra que pode ser dividida em duas grandes partes: tratados de argumento retórico e tratados
de argumento filosófico, no interior das quais refletiu, dentre muitas questões de natureza política,
filosófica, religiosa, moral, sobre a retórica e, neste âmbito, refletiu sobre a questão que aqui nos
mobiliza, o texto. Cabe também destacar que Quintiliano (30-96 d. C) estudou e, posteriormente,
ensinou retórica. Sua obra mais importante, De Institutione Oratória (95 d.C.), se ocupa da
linguagem, mais exatamente, da gramática e da retórica. Para Quintiliano, segundo Pereira (2000), a
Gramática se divide em duas partes: a arte de falar corretamente e a explicação dos poetas, sendo
que as regras da escrita devem se combinar com as do falar. Ou seja, cabia à gramática determinar,
a partir dos autores que formavam o cânone clássico, os usos da língua considerados “legítimos” e
cabia à retórica atualizar, no discurso, aqueles usos, com o objetivo de convencer.
Se me detive tão longamente sobre estes dois retóricos romanos, foi para mostrar que a
gramática daqueles tempos clássicos se interessava pela arte de bem falar e de bem escrever, o que
conduzia a pensar necessariamente no texto, como foi possível verificar pelas citações que fiz mais
acima e pelas citações feitas por Adam. Ainda segundo este autor, (idem, ib.), na França, durante o
Renascimento, o interesse pelo texto era muito grande.
E se esta preocupação se fazia presente entre os romanos e, posteriormente, na Renascença,
cabe questionar o que determinou seu desaparecimento dos estudos que se seguiram. Qual o
acontecimento que vai determinar o declínio da reflexão em torno do texto é a questão que desejo

2
Este é o título de uma imitação, assinada por Plauto, de uma comédia de Menandro.
formular, neste momento em que aponto para os antecedentes dos estudos textuais. Para respondê-
la, vou formular três diferentes hipóteses.
A primeira, e, para mim, muito forte, é a passagem dos estudos em Latim para os estudos
nas diferentes línguas neolatinas. Na França, esta passagem determinou o surgimento da
“Gramática Geral e Razoada”, a Gramática de Port-Royal (1775/1783) e, em Portugal, a
“Grammatica philosóphica da língua portuguesa; princípios da gramática geral applicados a
nossa linguagem”, de Soares Barboza, nos 1800. Estas gramáticas destinavam-se a descrever as
novas línguas, examinando suas letras e sons, sua composição silábica, as palavras, as diferentes
categorias gramaticais, tal como estas ocorrem ainda hoje nas gramáticas contemporâneas. Ou seja:
entre a gramática de uma língua clássica, como o Latim, e a Gramática das novas línguas,
mudanças ocorreram, as quais refletem a conjuntura política, econômica e lingüística dos novos
tempos.
Enquanto em De Institutione Oratória, Quintiliano trabalhava com uma língua de tradição e
de erudição, buscando nos grandes mestres que dela se serviram os exemplos para ensinar oratória a
seus discípulos, nas novas gramáticas que vão surgindo após o declínio do uso do Latim como
língua de Cultura, o trabalho é outro: é preciso estabelecer as novas línguas, fixar suas regras
fonéticas, morfológicas e sintáticas. É preciso descrever a nova língua para que ela possa prestar-se
às mais diferentes manifestações da comunidade que a utiliza. O surgimento destas novas línguas
está, pois, diretamente relacionado com o declínio do Império Romano, o que determinou, por sua
vez, o declínio do uso do latim. Esta conjuntura determina uma nova tarefa aos gramáticos:
descrever as novas línguas.
Esta passagem não se faz sem transformações fortes, sem deslocamentos importantes. Nesta
passagem da gramática da Institutione Oratória para as Gramáticas Razoadas ocorre uma perda
importante: não mais se fala em oratória e em retórica. Por um lado, não mais havia uma tribuna a
ocupar. Por outro, objetivos mais prementes se impunham. Mas a arte de falar bem parece que fica
como uma presença ausente, pois ela ainda é mencionada, mas isto deve se dar pela simples
aprendizagem das regras da língua. Os gramáticos formulavam regras que pudessem dar conta do
bom uso da língua. Aquele que as dominasse, teria a sua disposição a arte de falar bem, mas sem
entrar na Oratória ou na Retórica. Diria que, com o desaparecimento da Retórica e da Oratória,
inicia o apagamento do texto no interior da gramática.
É sabido que os grandes gramáticos das línguas modernas não tomaram o texto como objeto
de análise. E isto se dá porque eles entendiam que se um falante domina as regras gramaticais e
sabe fazer frases bem formadas então também sabe compor textos bem formulados, porque os
textos são constituídos pela combinação de sílabas, palavras e frases. Para isto, basta remontar aos
sentidos pesquisados, mais acima. Considero que os gramáticos entendiam texto a partir de seu
sentido latino textus: contextura, encadeamento. Ou seja: texto, para os gramáticos, tanto os
romanos como os que se lhes seguiram, consiste em um encadeamento de frases, e a gramática
ensina a compor frases bem formadas e a encadeá-las em períodos igualmente bem constituídos.
Por conseguinte, cabe àquele que produz o texto simplesmente seguir as regras da gramática. Se o
fizer, estará apto a construir um bom texto: um conjunto de frases bem formadas. Decorre daí,
segundo hipótese minha, a primeira causa para tomar o texto como um objeto empírico, concreto,
que não precisa ser teorizado: um texto é o que todo mundo sabe o que é e se todo mundo sabe o
que é ninguém o problematiza nem o toma como objeto de observação. Tudo isto
retardou/dificultou a constituição do texto como objeto de estudo, e solidificou os estudos do objeto
gramatical, a frase e o período.
É neste estágio do conhecimento sobre as questões da linguagem que se instaura minha
segunda hipótese. Para tanto, vou dar um salto no tempo e passar a observar o momento em que se
deu o advento da Lingüística, mais exatamente ao que se passou quando Saussure, em 19163,

3
Data da publicação póstuma do Curso de Lingüística Geral, organizado por seus discípulos Ch. Bally e A. Sechehaie.
instituiu a Lingüística como ciência, ao proceder ao famoso corte saussuriano, que cindiu a
Linguagem em Língua e Fala, separando, com este gesto, o que entendia como social e passível de
descrição, a língua, do que era individual, marcado pelo idiossincrático e, por isto mesmo, acidental
e acessório, a fala, não podendo, por suas próprias características, ser descrita e sistematizada.
Vejamos brevemente o que sucedeu e de que forma isto afeta a nossa questão.
Interessa aqui entender quais as conseqüências que o corte saussuriano trouxe para a questão
que aqui nos mobiliza, ou seja: em que a instituição da língua como objeto de estudo da lingüística
pode desfavorecer a tomada do texto como objeto de estudos. Para chegar a esta resposta é
suficiente verificar quais os limites da ação da própria lingüística. Para tanto, a primeira constatação
nos leva a observar o que estava sendo analisado no Curso. E a resposta nos chega com rapidez:
Saussure estava interessado no que faz de uma língua uma língua. E, para tanto, formula um
conjunto significativo de conceitos tais como sincronia/diacronia, sintagma/paradigma, signo
lingüístico e valor lingüístico, os quais mostram com clareza como é possível estudar o objeto
língua: esta deve ser tomada em sua totalidade, deve ser vista como um todo sistêmico e
homogêneo, em que cada elemento constituinte se relaciona com todos os demais constituintes, de
tal forma que cada signo é o que o outro não é. O sistema lingüístico, assim compreendido, é um
conjunto de puras diferenças, de puras oposições (SAUSSURE, 1974).
Este modo de entender a língua aponta para uma primeira observação: Saussure vislumbrava
a língua como constituída de signos. Entretanto, elaborou conceitos como o de sintagma e o de eixo
sintagmático que prepararam o caminho para as futuras gerações de lingüistas que se identificaram
com esta concepção de língua sistêmica, porém ampliaram um pouco mais o observatório montado
para o seu estudo. Refiro-me aqui à passagem do signo para a frase que foi feita, primeiramente
pelos estruturalistas, de modo geral e, logo depois, por Chomsky e todos os lingüistas que trabalham
com seu modelo.
A segunda observação, que também deriva desta visão sistêmica de língua, de fato é
conseqüência do que foi dito mais acima: se, na visão de Saussure, a língua deve ser vista como um
sistema de signos, em que um elemento é o que o outro não é, podemos verificar que os elementos
constituintes da língua têm como contexto o próprio sistema, nunca podendo dele se afastar. Com a
passagem do signo para a frase, este preceito é fortemente observado: a frase, para os estruturalistas
e os gerativistas, toma como contexto os elementos do entorno frasal. Ou seja: a frase institui como
seu contexto não mais necessariamente todo o sistema lingüístico, como é o caso dos signos ou dos
fonemas, mas os elementos que estão presentes na frase, elementos estes que precedem ou que
seguem um determinado constituinte frasal. Vale dizer: o contexto da frase é estritamente
lingüístico, constituído de relações internas ao sistema e/ou à frase.
A terceira observação vai nos mostrar que Saussure e, posteriormente, os estruturalistas e os
gerativistas tomam a língua em diferentes níveis. Para descrevê-la, e esta era a tarefa dos
estruturalistas, e descrevê-la e/ou interpretá-la, e esta é a tarefa dos gerativistas, os lingüistas vão
trabalhar nos níveis fonológico, morfológico e sintático da língua. Este é o limite do objeto da
lingüística. Ele não pode expandir-se para além da frase, seu observatório natural.
A estas observações, de caráter geral sobre o objeto Língua, vou acrescentar uma quarta
observação que diz respeito especificamente ao corte saussuriano. A exclusão da Fala traz várias
conseqüências, mas para o que me move neste ensaio, vou fixar-me exclusivamente em uma delas:
a exclusão do falante e de sua atividade linguageira. Isto foi muito bem registrado e discutido por
Benveniste (1966, 1974) e não pretendo repeti-lo neste momento. Apenas retomo a questão do
falante, neste ponto de minha reflexão, pois entendo que uma das decorrências desta exclusão incide
diretamente sobre a problemática que aqui está em pauta: esta, no meu entender, é uma das causas
de o texto, enquanto categoria teórica, não ter sido mobilizado, pois o texto remete para a atividade
de um sujeito.
Estas observações que acabo de fazer mostram que, se o gramático Dionísio de Trácio
pensava que “a arte gramática (das Letras) é o trato das coisas ditas com mais freqüência nos
poetas e prosadores” e se, muito tempo depois, em 1775, os gramáticos de Port-Royal entendiam
que “a gramática é a arte de falar” (ARNAULT e LANCELOT, 1992, p. xxxv), os lingüistas se
distanciaram da prática e do uso da língua, a performance, como a denominou Chomsky, para se
fixar exclusivamente no sistema lingüístico. Eles não ignoram que há falantes que usam a língua,
mas necessitam abstrair o uso, vale dizer a fala, segundo Saussure e a competência, conforme
Chomsky, para fixar-se apenas na língua sistêmica, como um todo, sem considerar nada que lhe seja
exterior, e o falante é um dos elementos exteriores ao sistema, bem como os usos que da língua ele
faz para produzir suas práticas, entre elas, a produção textual. Por conseguinte, o texto, enquanto
objeto de estudo, continua fora do escopo dos lingüistas.
Neste ponto de minha reflexão, cabe referir dois lingüistas e o modo muito particular como
eles pensam o texto. O primeiro deles é o dinamarquês Hjelmslev (1943). E o segundo é Jakobson
(1956). Seria de se esperar que eu obedecesse ao critério cronológico, mas não vou respeitá-lo por
razões que se farão perceber pela exposição que faço a seguir.
Inicio, pois, examinando o pensamento de Jakobson (1956)4. Para tanto, vamos observar a
seguinte citação, extraída de seu artigo “Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia”,
especificamente da seção em que o lingüista trata do duplo caráter da linguagem, numa clara
releitura dos eixos sintagmático e paradigmático, tal como foram formulados pelo mestre
genebrino, mas deslocando-os para a atividade linguageira do falante, o que mostra que sua releitura
traz implicações teóricas importantes, pois vai deslocar a aplicação dos dois eixos saussurianos para
a prática do falante, ou seja, este deslocamento vai por em cena o falante que tinha sido
cuidadosamente excluído por Saussure, como vimos em minha quarta observação, mais acima.
Vejamos a citação em questão:
Existe, pois, na combinação de unidades lingüísticas, uma escala ascendente de liberdade. Na
combinação de traços distintivos em fonemas, a liberdade individual do que fala é nula; o
código já estabeleceu todas as possibilidades que podem ser utilizadas na língua em questão. A
liberdade de combinar fonemas em palavras está circunscrita; está limitada à situação marginal
da criação de palavras. Ao formar frases com palavras, o que fala sofre menor coação. E,
finalmente, na combinação de frases em enunciados, cessa a ação das regras coercitivas da
sintaxe e a liberdade de qualquer indivíduo para criar novos contextos cresce
substancialmente, embora não se deva subestimar o número de enunciados estereotipados
(JAKOBSON, 1969, p. 39; os destaques são meus).
Como já afirmei anteriormente, Jakobson fez uma releitura de Saussure. O que nos autoriza
esta afirmação são duas questões que se fazem presentes na citação anterior. A primeira refere-se à
combinação de unidades lingüísticas que Jakobson, ao contrário de Saussure, atribui à atividade do
falante. Então, em que pese todo o esforço de Saussure em retirar o falante de dentro de seu objeto,
contra-argumentando que o sintagma seja da ordem da fala (SAUSSURE, 1974, p. 144) e
apontando que, ao contrário, “é preciso atribuir à língua, e não à fala, todos os tipos de sintagmas
construídos por formas regulares (...) acontecendo exatamente o mesmo com as frases regulares...”
(idem, ib., p. 145), Jakobson inverte este tipo de argumento, ao apontar para o trabalho de
combinação das unidades, ao referir a coerção de natureza sintática sofrida pelo locutor ao formar
frases. Este é o ponto em que este lingüista produz seu deslocamento teórico. Por outro lado, esta
citação indica o limite de tal coerção, pois Jakobson sinaliza para a liberdade de que goza o locutor
quando este passa da organização da frase para a combinação de frases em enunciados.
Esta é uma releitura que, ao mesmo tempo em que mobiliza as formulações de Saussure,
redireciona-as para um outro patamar teórico em que o falante não só não é mais excluído como é
explicitamente convocado, na qualidade de locutor, para mostrar que ele é submetido a um duplo
funcionamento da linguagem: ao mesmo tempo em sofre coerções provenientes da língua, também
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A primeira publicação deu-se em Fundamentals of language (LaHaye, 1956). A segunda datação remete para a
tradução francesa de Adler e Ruwet, que foi publicada em 1963, no livro Essais de Linguistique Générale, da Éditions
de Minuit, que reunia vários textos dispersos de Jakobson. E, finalmente, em 1969, é traduzido por Isidoro Blikstein e
José Paulo Paes e publicado no Brasil pela Cultrix.
é colocado em posições não-coercitivas. Ou seja: sob o domínio do que provém do sistema
lingüístico, o locutor, longe de ser livre, é totalmente submetido ao sistema. Mas, à medida que
ultrapassa o limiar da frase, conquista sua liberdade. Deste modo, Jakobson trabalha com a
oposição coerção / liberdade, que poderia ser assim parafraseada: a coerção remete ao sistema, que
determina a atividade propriamente lingüística do locutor no interior dos limites da frase, enquanto
a liberdade conduz à produção textual do locutor, porém, em ambas as situações o locutor se faz
presente.
Com base no que precede, diria mais: só é possível postular a liberdade porque os lingüistas
consideram o texto como algo que não se encaixa em seu objeto de estudo, como algo que está para
além das fronteiras da frase, como algo que não foi teorizado e pertence ao mundo empírico, ao
mundo não-teórico. E isto vai se tornar muito claro um pouco mais tarde, quando será feita a
ultrapassagem teórica que leva da frase ao texto. Aí, então, muitas coerções vão se fazer perceber e
serão descritas, como veremos na seção em que será examinada a primeira perspectiva teórica que
reflete sobre texto.
Vejamos agora o modo como Hjelmslev, ainda em 19435, vai posicionar-se face à categoria
texto. Para tanto, vou começar fazendo uma citação.
A teoria da linguagem se interessa por textos e seu objetivo é o de estabelecer um procedimento
que permita a descrição não-contraditória e exaustiva de um texto dado. Mas esta teoria deve
também mostrar como se pode, da mesma maneira, abordar qualquer outro texto de mesma
natureza, e fornecer-nos os instrumentos utilizáveis para estes textos. [...] deve poder descrever
de forma não-contraditória não apenas um determinado texto dado, mas também todos os textos
franceses existentes, e não apenas estes, mas ainda todos os textos franceses possíveis e
concebíveis, mesmo aqueles de amanhã, mesmo aqueles que pertençam a um futuro não
definido. [...] Estes conhecimentos dizem respeito aos processos ou aos textos aos quais eles se
aplicam; mas este não é seu único e essencial interesse: estes conhecimentos se referem também
ao sistema ou à língua que preside à estrutura de todos os textos de mesma natureza, e que nos
permite construir novos textos. Graças aos conhecimentos lingüísticos assim adquiridos,
poderemos prever, para uma mesma língua, todos os textos concebíveis ou teoricamente
possíveis.
Entretanto, não é suficiente que a teoria da linguagem possa descrever e prever todos os textos
possíveis de uma dada língua; é preciso ainda que, sobre a base de um conhecimento da
linguagem, ela possa fazer o mesmo para os textos de qualquer língua [...] (HJELMSLEV, 1968,
p. 31-2; a tradução é minha; os destaques são do autor)
Inicialmente, cabe destacar que Hjelmslev conhece bastante bem a obra de Saussure, sobre a
qual se debruçou neste e em outros livros, chegando a propor algumas releituras que ficaram
bastante conhecidas, como é o caso da discussão sobre a arbitrariedade do signo e sobre a própria
natureza do signo lingüístico, sobre cuja constituição refletiu bastante, propondo uma releitura do
signo bastante sofisticada. Nunca se apartou da concepção sistêmica de língua, tal como a concebeu
Saussure. Ao contrário. Colocou ainda mais ênfase sobre a questão da auto-suficiência da língua no
que diz respeito a possíveis relações com a exterioridade. Mas não é isso que me conduz a trazer
Hjelmslev para esta discussão. Vejamos alguns pontos que parecem de suma importância para o
nosso propósito, neste ensaio.
O primeiro destes pontos diz respeito ao fato que, para este lingüista, é importante falar em
linguagem. Em outras palavras: está propondo uma teoria que trate não apenas da língua, mas da
linguagem. Ou seja: não acompanha o argumento saussuriano de que não é possível estudar a
linguagem porque ela heteróclita e heterogênea. Ao contrário. Entende que se faz necessária uma
teoria da linguagem e é sobre esta teoria ainda a construir que ele está refletindo. E mais: é
justamente porque mobiliza a linguagem que existe espaço, em sua reflexão, para pensar o texto,

5
A obra Prolégomènes à une théorie du langage, publicada originalmente em Copenhagen, em 1943, foi traduzida para
o francês, em 1968.
porque a linguagem não está encerrada no interior do sistema. O enclausuramento sistêmico diz
respeito exclusivamente à língua. E é no âmbito da linguagem que é possível refletir sobre o texto,
já que este corresponde a uma das manifestações do sujeito que utiliza a língua, mas não se
confunde com ela.
O segundo ponto a ser considerado é que o lingüista em exame não está se referindo ao texto
empírico, não está mais considerando ser o texto aquilo que todo mundo já sabe o que é. Longe
disso. Para Hjelmslev, o texto é uma categoria teórica que deve ser descrita. E esta descrição deve
ser tão fina que seja capaz de dar conta de todos os textos, os existentes e os que ainda não existem,
mas podem vir a existir. Ou seja: com isto, diria que ele lança um verdadeiro programa a ser
realizado. E esta proposta tira o texto do senso comum, do empirismo e convoca os lingüistas a
tomarem posição face ao texto, a considerarem o texto como um objeto de estudo. Ou seja: para
este lingüista, trata-se de produzir teoria sobre o texto. E, ao propor isto, na verdade, já está
teorizando. Está propondo que o texto saia do senso comum em que ele se encontrava, inclusive
com Jakobson, como vimos nos comentários antecedentes, e passe a constituir uma categoria de
análise, tal como ocorreu com a frase, anteriormente. Entretanto, em que pese os deslocamentos
teóricos que produziu, sua reflexão não o colocou em reta de colisão com Saussure. Ao contrário. E
isto sinaliza que sua reflexão sobre o texto situa os estudos textuais como uma extensão da teoria da
língua. E isto vai se refletir, sem dúvida alguma, nos primeiros estudos de texto, como veremos
mais adiante: diferentes vertentes de estudos textuais vão requisitar o pensamento hjelmsleviano
como o momento teórico fundador de um novo objeto.
Foi isto que determinou minha decisão de examinar o pensamento de Hjelmslev depois de
passar por Jakobson, embora o texto deste último seja posterior. Enquanto, para Jakobson, o texto
era o tão sonhado espaço de liberdade, depois das duras coerções impostas pelo sistema lingüístico
até chegar à frase, Hjelmslev tinha a clareza que este era um objeto que esperava descrição e
tratamento teórico. Ou seja: que esta atividade também é lingüística e que apresenta sua própria
ordem coercitiva também. Como se vê, já em 1943, este lingüista antevia questões que se tornariam
candentes nos anos que se seguiram.
Com estas duas visões lingüísticas sobre o texto, encerro este passeio pelo túnel do tempo.

2. Saindo do túnel
É neste estado do conhecimento que chegamos aos anos 50/60. Aí vamos nos deparar com
uma grande divisão entre os lingüistas. Por um lado, vamos encontrar aqueles que estão
absolutamente convictos de que o objeto da lingüística é a frase. Dentre eles, encontram-se
lingüistas como Jakobson, de quem acabamos de analisar uma citação na seção anterior e lingüistas
como Chomsky, que assumem que o objeto da lingüística é a frase. De outro lado, encontram-se
lingüistas que estão perturbados por um conjunto de perguntas que não cessam de se formular e que
não conseguem ser respondidas no quadro teórico da lingüística, tal como ela se consubstanciou na
primeira metade do século XX.
A seguir, vamos examinar alguns destes questionamentos para percebermos o tipo de
inquietação que se fazia sentir e para onde ela conduziu. Na verdade, havia uma dupla inquietude
que já sinaliza que os rumos não seriam únicos. Na verdade, tais questionamentos iam delineando
novos objetos. Entretanto, diria que estes caminhos de mão dupla surgem de uma inquietação
comum: como pensar teoricamente o que está para além da frase. E havia uma pergunta básica e
comum a estas duas tendências: um texto é uma simples soma de frases? Partiam de uma hipótese
comum: pensavam que deveria existir uma organização na seqüência das frases que seria decorrente
de um conjunto de regras que não se reduzem às coerções sintáticas frasais. Ou seja: percebiam que
havia coerções, mas entendiam que estas não eram de mesma natureza para a frase e para o texto.
Havia, pois, consciência de que era preciso ultrapassar os rígidos limites impostos pela lingüística
frasal para que tais perguntas pudessem ser respondidas.
Mas, se havia consenso sobre a hipótese acima exposta, havia também fortes divergências, ou
seja: havia perguntas que sinalizavam interesses antagônicos. Por um lado, lingüistas formulavam
questões que poderiam ser entendidas como da ordem de uma sintaxe do texto, enquanto outros
formulavam perguntas que eram da ordem da significação, do contexto situacional, do sujeito
falante. Interesses diversos que já sinalizavam objetos igualmente diferentes. De um lado, pode-se
ver nascer o objeto texto e, por outro, vê-se despontar o objeto discurso. Ou seja: questionamentos
diferentes dirigidos ao texto vão construindo dois objetos de estudo distintos, confirmando o que
Saussure já havia enunciado em seu Curso: é o ponto de vista que cria o objeto (SAUSSURE, op.
cit., p.15).
E já que esta inquietação se fazia presente durante boa parte da primeira parte do século XX, é
de se perguntar por que demorou tanto para que este novo campo do conhecimento se constituísse
enquanto um corpo conceitual. Cito, a seguir, uma passagem de Catherine Kerbrat-Orecchioni,
bastante interessante para iluminar este questionamento:
A unidade-texto pertence de pleno direito à lingüística: mas essa evidência verdadeira só foi
reconhecida há muito pouco tempo, e este não é um dos menores paradoxos desta ciência – que
ela tenha se preocupado apenas em último lugar deste objeto que, entretanto, funcionalmente é o
primeiro (nós nos comunicamos apenas por textos). É que quanto mais a dimensão das unidades
a serem descritas se estende, mais difícil se torna dar conta de seu funcionamento semântico.
(KERBRAT-ORECCHIONI, Encyclopaedia Universalis, p. 607, apud ADAM, 1999; a
tradução é minha).
Como se vê, a metodologia construída pela lingüística foi suficientemente forte para sustar
e/ou retardar as novas indagações que se colocavam sobre o texto, nível que ainda não havia sido
investigado pela lingüística. E a problemática em torno da questão semântica, instituída pelo corte
saussuriano, que excluiu de seu objeto a fala e o falante, também impediu a reflexão sobre o texto
que faz intervir, em maior ou menor escala, os sentidos.
Retomando o que disse mais acima, posso dar a entender que estamos diante de apenas duas
perspectivas teóricas diversas. Mas não é este o caso. A mão dupla a que me referi aponta para os
diferentes interesses e questionamentos dos lingüistas que desejavam examinar o texto, ou seja, dois
pontos de vista diferentes de onde deriva a constituição de dois objetos de análise distintos – o texto
e o discurso. Mas, a partir desta dupla constituição de objetos, vão surgir várias perspectivas
teóricas para observá-los. A seguir, vou examinar quatro delas: a Lingüística Textual, a Teoria da
Enunciação, a Semiótica e a Análise do Discurso. E justifico: ao abordar estes quatro referenciais
teóricos estarei apontando para quatro perspectivas teóricas diversas de conceber o texto. Por outro
lado, se estas quatro perspectivas não esgotam as discussões, elas são bastante representativas de
cada uma das diferentes tendências teóricas que se abrem diante de nós, nos estudos da linguagem.
Cabe ainda dizer que não pretendo examinar em detalhes as teorias que serão mobilizadas, a
seguir. O que vou buscar em cada uma delas é a concepção de texto que seu aparato teórico permite
projetar. Então, com esta indagação na cabeça, inicio o exame de meu primeiro referencial teórico.

3. A categoria texto pelo filtro teórico da Lingüística Textual


Falar em Lingüística Textual não garante homogeneidade a este recorte de campo teórico
que se interessa pelo texto. Também não tenho a pretensão de dar conta de tudo o que este campo já
produziu desde que surgiu até nossos dias. Não é este o propósito deste ensaio. Mas desejo apontar
alguns caminhos trilhados por lingüistas que se inscrevem neste campo de conhecimento.
Os precursores deste campo tinham como objetivo entender as regularidades que transcendem
a frase, sem, no entanto, a pretensão de abandonar os estudos frasais nem de criar um novo objeto
de estudo. A evidência disso é que entendiam o texto como uma seqüência coerente de frases,
considerando o texto como uma extensão da frase. Esta fase dos estudos textuais, por esta razão,
ficou conhecida como transfrástica, caracterizando-se por se inscrever numa extensão aos estudos
frasais.
Num segundo momento, os pesquisadores deste campo de conhecimento buscaram o
entendimento do texto, pretendendo descrevê-lo por si mesmo e em sua totalidade. Esta fase
denominou-se de gramática de texto e caracterizou-se por apresentar-se como um prolongamento
da lingüística descritiva, indo para além dos limites descritivos de uma única frase. Para tanto,
estudavam relações de tipo referenciais, co-referenciais e de pronominalização, por exemplo.
Como se vê, buscavam transferir para o objeto texto o conhecimento que já havia sido construído
antes sobre o objeto frase. Ou seja: pretendiam escrever uma gramática que desse conta do texto. O
que determinou este caminho foi o desejo de compreender os fenômenos lingüísticos que não
podiam ser respondidos por uma gramática interna à frase: buscavam explicar certos fenômenos
que se instauravam para além do limite frasal, chegando, desta forma, ao texto propriamente dito.
Para tanto, questionavam os princípios de constituição do texto, os fatores de sua coerência, de sua
coesão e de sua textualidade, formas de delimitação dos textos, pois estes devem apresentar
completude, vale dizer, ter começo, meio e fim. Tais interesses mostram que os lingüistas textuais
buscavam apreender o texto como um todo. Entendiam que a significação do texto diferia da soma
das significações das frases. Mais exatamente, diziam que havia uma diferença qualitativa de
significação que derivava do todo textual da qual a soma de frases não dava conta. Via-se aí os
contornos de uma gramática textual que visava a uma sintaxe textual, produzida por diferentes
operações coesivas das quais derivaria o sentido do texto, concebido como uma unidade de
significação.
Logo os gramáticos textuais se deram conta de que não seria possível dar conta de uma
estrutura profunda do texto que estivesse na base da realização de todo e qualquer texto. Esta
constatação conduziu os estudiosos da lingüística textual para uma nova etapa, a qual perdura até os
nossos dias e se caracteriza pela proposta de junção do processamento do texto, cujos estudos já
estavam, de fato, em andamento, como pudemos apreciar pelo que precede, e seu contexto
pragmático, buscando fazer associações que viessem melhor iluminar a compreensão e a
significação do texto.
Apresentadas, assim, brevemente, as diferentes fases que caracterizam os estudos do texto na
abordagem da Lingüística Textual, passo a examinar um pouco mais detalhadamente cada um
destes três diferentes momentos.
Para tanto, vou verificar como os teóricos que se inscrevem neste campo teórico definem
texto. Inicio com a definição já clássica de Weinrich (1964), que se inscreve no primeiro momento
anteriormente descrito:
Texto é uma rede de determinações. É manifestamente uma totalidade onde cada elemento
mantém com os outros relações de interdependência. Estes elementos e grupos de elementos
seguem-se em ordem coerente e consistente, cada segmento textual contribuindo para a
inteligibilidade daquele que segue. Este último, por sua vez, depois de decodificado, vem
esclarecer retrospectivamente o precedente (WEINRICH, 1973, p. 174).
A partir desta concepção de texto, podemos entender como a categoria texto foi inicialmente
entendida pela Lingüística Textual. Podemos compreender melhor, também, o que se entendia por
lingüística transfrástica. Dito de outra forma: a lingüística tradicional toma como objeto de análise
a frase. E a Lingüística Textual, percebendo que um texto não é uma soma de frases, propõe uma
lingüística transfrástica que contemple os fenômenos lingüísticos para além da frase, tomando o
texto como uma frase estendida.
Se observarmos bem a definição de Weinrich, veremos que são examinadas as relações de
interdependência que se estabelecem entre os elementos do texto, onde os primeiros iluminam os
seguintes e os últimos explicitam os que antecedem. Este modo de examinar o texto permite
concebê-lo como um todo, onde os elementos constitutivos se relacionam entre si, do mesmo modo
que os elementos constitutivos da frase se relacionam entre si, também. É deste conjunto de
relações que deriva o que os lingüistas textuais denominam de significação do texto. Por
conseguinte, é das relações internas que se estabelecem no interior do texto que deriva sua
compreensão.
Mais: se uns elementos textuais se relacionam com os outros, então estamos diante de uma
rede textual de relações que alguns entendiam como uma sucessão de unidades lingüísticas
constituída mediante uma concatenação pronominal ininterrupta (HARWEG6, apud Fávero &
Koch, p. 13, 1988). Ou seja, o texto, nesta acepção teórica, repousa sobre um conjunto de conexões
que poderiam ser entendidas, de acordo com Charolles, como “marcas instrucionais que têm por
função sinalizar ao destinatário que esta ou aquela unidade deve ser tomada em sua relação com
esta ou aquela outra [unidade textual]” (CHAROLLES, 1993, p. 311). Nesse sentido, este autor
propõe que sejam descritas as categorias que permitem estabelecer as referidas conexões. E esta é
uma tarefa importante que os lingüistas textuais precisam cumprir porque, de acordo com
Combettes (1992), não há correspondência exata entre as categorias morfossintáticas definidas
pelas teorias lingüísticas tradicionais e a coerência do texto. Segundo ele, “a coerência do texto não
resulta de fatos de gramaticalidade” (COMBETTES, 1992, p.113). Por conseguinte, os domínios
textual e morfossintático são diferentes e bastante independentes. Em função disso, este lingüista
propõe que sejam elaboradas unidades intermediárias entre a língua e o texto (idem, ib., p. 107).
Para cumprir este programa, os dois autores acima citados trabalham separadamente e também em
conjunto. Charolles (1995) distingue quatro tipos diferentes de conexões textuais: os conectores, as
anáforas ou as cadeias de referência, as expressões introdutórias e as marcas de segmentação. Já
Combettes propõe cinco categorias, algumas delas idênticas ou muito próximas das propostas por
Charolles: os conectores, os substitutos anafóricos, as posições tema/rema, os dêiticos e os
modalizadores (a tradução é minha).
Estes estudos, com maiores ou menores semelhanças, realizados por diferentes
pesquisadores e situados em diferentes centros de pesquisa, foram construindo a Gramática de
Texto, fase em que os lingüistas textuais propunham-se a descrever as relações entre frases, mais
exatamente, verificar que tipo de relação se estabelecia entre as diferentes frases que constituem o
texto e apurar a existência de uma seqüência coerente e significativa de frases e, ainda, se tais
relações poderiam ser pensadas como uma sintaxe textual. Ou seja: passa-se da sintaxe frasal para a
sintaxe textual. Estas relações passam a ser conhecidas como relações coesivas, mais exatamente,
coesão textual. Isto permite sublinhar que, para esta perspectiva teórica, passa-se naturalmente da
observação das relações internas da frase para as relações internas ao texto. E, deste conjunto de
relações textuais, decorre o sentido do texto, isto é, se ele se apresenta como uma unidade
semântica, então ele é dotado de coerência. (HALLIDAY & HASAN, 1976; a tradução é minha).
Como é possível perceber, estamos longe da propalada liberdade de que falava Jakobson
(1969, p. 39), ao referir-se à passagem da frase para o texto, como já sublinhei mais acima. Decorre
daí que as tramas de um texto também estão sujeitas a regras coercivas, embora a natureza da
coerção seja diversa em cada um dos níveis considerados.
De tudo quanto precede, pode-se afirmar que há três conceitos fundamentais formulados
pelos lingüistas textuais que sempre devem ser considerados: Inicialmente, é necessário examinar a
textualidade de um texto que consiste em sua propriedade intrínseca. E para avaliá-la é preciso
analisar este texto a partir de sua coesão e coerência. Ou seja: estes três conceitos representam o
cerne dos estudos textuais para esta área do conhecimento. E é através das relações internas,
coesivas, que se realiza o que Ingedore Koch, estudiosa brasileira que inscreve sua reflexão sobre
texto na Lingüística Textual, chama de “processamento do texto” e, através dele, chega-se à
operação semântica que determina a unidade de significação que um texto deve apresentar para ser
entendido como texto, a coerência.

6
A obra de Harweg em referência é de 1968 e foi publicada em alemão, com o título Pronomina und textkonstituition.
É ainda na fase da gramática de texto que alguns teóricos da lingüística textual vão se
interessar por formulações da teoria chomskiana. Interessam-se mais precisamente pela dicotomia
competência/performance formulada por este lingüista, em 1965. E surge, então, a formulação de
mais uma noção deste campo do conhecimento, a competência textual, baseada na competência
lingüística. Trata-se de uma reflexão cognitiva sobre o sujeito falante, anteriormente teorizada por
Chomsky: se ele é competente lingüisticamente para produzir frases também o é para produzir
textos. Sua competência textual lhe permite parafrasear textos, resumi-los, e avaliá-los, isto é,
perceber se são bem formados, se são coerentes e ainda se são completos ou não.
Como se vê, com tais propósitos, a lingüística textual aproxima-se não apenas da lingüística
chomskiana, mas também da lingüística cognitiva, tal como foi desenvolvida pelo campo da
psicolingüística.
Diria que este momento representa para os lingüistas textuais um ponto de ancoragem
teórica bastante confortável, pois isto sinaliza que não houve ruptura com os preceitos da
lingüística. O que a lingüística textual fez foi apenas ampliar sua lente de observação: ampliou o
filtro através do qual é examinada a competência lingüística do falante ideal, tal como foi
introduzida por Chomsky.
Sobre este ponto, abro um parêntese: Saussure havia excluído, juntamente com a fala, o
falante e todas suas atividades linguageiras. Por outro lado, os lingüistas, de um modo geral, sabiam
que não dava para recuperar o falante real porque, juntamente com ele, faria retorno a
heterogeneidade para um objeto que se deseja, desde sua origem, homogêneo. No entanto, sabiam
também que a noção de falante ou de locutor era importante, conforme vimos na seção anterior. O
reparo se operou pelo viés da formulação da noção de falante ideal, construída para representar o
falante real. Esta inteligente manobra teórica de Chomsky permitiu resgatar o falante, mas um
falante bastante particular, totalmente inócuo, por ser imaginário e não real, um falante que domina
o sistema como um todo homogêneo. É ele que está por traz da competência lingüística, não
chegando nunca à performance, espaço de atuação do falante real, que não é convocado nem pela
lingüística de frase, nem pela lingüística de texto.
Como se vê, as combinações continuam pertencendo, de direito, à língua e não à fala,
exatamente como postulou Saussure. Ou seja: todo o esforço de Jakobson de integrar o locutor nas
tarefas combinatórias se desvanece com esta dicotomia chomskiana. E é este falante ideal que está
por traz das reflexões que levam em conta a competência textual, pois se vê claramente que a
lingüística textual não chega à performance textual. Dito em outras palavras: nesta perspectiva, a
Lingüística Textual inscreve-se como um prolongamento da lingüística de frase e considera o texto
como a maior unidade lingüística de análise deste campo do conhecimento. O que ocorre, então, é a
passagem da unidade frasal para a unidade textual.
De tudo quanto precede, pode-se concluir que os estudos da lingüística textual que, de forma
genérica, chamei, nesta seção, até o presente momento de gramática textual, imprimiram dois
movimentos distintos, mas complementares, às pesquisas deste campo de conhecimento: de um
lado, pretendeu-se constituir uma verdadeira gramática de texto, comparável a uma gramática de
frase e, de outro, buscou-se estudar as conexões entre as frases. Seja através de uma, seja através da
outra, é pela análise do texto e de sua coesão que é possível perceber a unidade que dá origem à
coerência.
Vale ressaltar também que, em nenhum momento anterior desta longa jornada, esta teoria
interrogou-se sobre o sujeito que produz o texto ou pensou em formular alguma noção de sujeito.
Nesse sentido, diria que ela ignorou as formulações de Jakobson e de Benveniste, para apenas
apontar dois pesquisadores cujas preocupações precedem ou são contemporâneas ao debate
estabelecido pelos teóricos da Lingüística Textual. Ou seja: do mesmo modo que a lingüística de
frase afasta a consideração do sujeito, a lingüística textual também o fez. Somente quando começou
a aproximar-se da teoria de Chomsky e de sua noção de competência é que surgiu, de forma
implícita, mas incontornável, a noção de sujeito ideal, que já comentei mais acima, e que não
ameaçava em nada os pressupostos da teoria lingüística e os pressupostos da lingüística textual.
É no quadro desta moldura teórica que a Lingüística Textual vai começar a se dar conta que
o texto, além de ser uma superfície textual, que pode ser examinada em relação aos fatores de
coesão e de coerência, também é um ato de comunicação, por conseguinte, é um objeto de natureza
pragmática. Ou seja: este parece ser um momento de inflexão em que os lingüistas textuais vão
passar a defender a idéia de que, para estudar o texto, é preciso examinar, além de suas relações
internas (que remetem para a organização textual e o sentido que daí decorre) outras relações que
ultrapassam o limite do texto propriamente dito. Vários são os pesquisadores que se inscrevem
nessa vertente da Lingüística Textual. Para representá-los, cito inicialmente Siegfried Schmidt
(1973) que se propôs a refletir em uma Teoria do Texto que se colocasse sociologicamente como
uma ampliação da comunicação humana. E ele o faz na esteira do pensamento de P. Hartmann
(apud Schmidt, op. cit., p.50), segundo o qual “o ponto de partida de uma fenomenologia do objeto
lingüístico localiza-se na textualidade do sinal lingüístico original”. Ou seja: toda e qualquer
manifestação lingüística, antes de qualquer outra consideração, inscreve-se no objeto texto. Vale
dizer: surgia aí a proposta de substituição do “sistema lingüístico por uma teoria do texto,
concebida como teoria da comunicação lingüística” (SCHMIDT, op. cit., p. 3). Estava formulada a
proposta de uma lingüística de texto dotada de um componente pragmático. E o autor explicita
como deve ser entendido o texto nesse quadro teórico, como podemos verificar tela citação que
segue:
Os constituintes de um texto (isto é, do conjunto verbal enunciado por ocasião de um ato
comunicativo) funcionam como indicadores, visando a uma determinada interpretação das
instruções manifestadas por meio deste texto. A relevância referencial e comunicativa, então,
realiza-se mediante uma associação a outros sistemas correlatos, ou seja, a elementos verbais e
não-verbais pertencentes à situação de comunicação, ao sistema de comunicação ou a modelos
da realidade vigentes numa sociedade de comunicação.
Visto sob este ângulo, o texto pode ser concebido como um conjunto ordenado de instruções
que se estabelece entre os parceiros de comunicação. É somente nos jogos de atuação
comunicativa que os parceiros realizam efetivamente o conjunto de instruções de um texto, ou
seja, o próprio significado desse texto. Um texto isolado não possui um significado, mas este
significado é adquirido nos jogos de atuação comunicativa. Existem, portanto, dois níveis
distintos de significação para cuja especificação introduzimos aqui os termos de “sentido
textual” e “instrução textual”. O “sentido textual” assinala o papel potencial (determinado pelas
proposições), de ordem informativa e comunicativa, inerentes aos textos sob a forma de
conjunto de instruções; a “instrução textual” refere-se à relevância informativa e comunicativa
dos textos, realizada pelos parceiros nos jogos de atuação comunicativa (= instruções
executadas). (SCHMIDT, op. cit., p. 80; os destaques são do autor).
Como é possível depreender da citação acima, o texto, nesta perspectiva da lingüística
textual, é concebido como uma unidade pragmático-comunicativa, isto é, o autor tem certas
intenções comunicativas que se fazem presentes no texto sob a forma de instruções (referências e
relações) que se encontram marcadas no corpo do texto. Vale dizer: o texto é entendido como uma
unidade pragmática porque procura estabelecer uma comunicação com o seu receptor, o leitor. E
esta comunicação é definida pelo autor do texto, que dá as instruções que devem ser seguidas
corretamente pelo leitor. Se o fizer, terá entrado adequadamente nos jogos de atuação comunicativa
propostos pelo texto. Creio poder afirmar, sem distorcer o pensamento desse autor, que estes jogos
de atuação comunicativa colocam as bases para uma abordagem psicolingüística da leitura, em que
o texto é portador de instruções e o leitor deve decodificá-las para realizar a leitura do texto e
alcançar o “sentido textual”. Ou seja, o sentido já está dado (instruções), mais exatamente
codificado e compete ao leitor decodificá-lo. Este é o sentido que, neste campo do conhecimento,
assume a concepção de texto como unidade pragmático-comunicativa e ele se instaura sobre o
pressuposto de uma língua transparente, sem opacidades. Em suma, a língua é um código.
Alguns anos mais tarde, Beaugrande e Dressler (1981) dão continuidade a esta reflexão.
Segundo estes autores, para que o texto seja uma “ocorrência comunicacional”, ele deve satisfazer
a um conjunto de critérios interdependentes, em que os dois primeiros dão conta do texto
propriamente dito e os cinco seguintes referem-se aos fatores pragmáticos. Vejamos os dois
primeiros: (1) Coesão: perceptível pelo jogo das dependências entre as frases; (2) Coerência:
remete para a intenção global do texto e resulta das relações que atravessam o texto como um todo,
por conseguinte, é o fator fundamental da textualidade. Ou seja: a coerência textual deriva da lógica
interna do texto. Tanto a coesão quanto a coerência promovem a inter-relação semântica entre os
elementos textuais, respondendo pela conectividade textual. Poder-se-ia dizer que a coerência do
texto decorre da rede de significações estabelecidas na superfície textual pelo viés das relações
coesivas que funcionam como a manifestação lingüística da coerência.
Como se vê, os dois primeiros critérios já tinham sido fortemente desenvolvidos
inicialmente pela Linguística Transfrástica e, posteriormente, pela Gramática de Texto, as duas
primeiras abordagens da Lingüística Textual, como vimos mais acima. A estes critérios semântico-
formais, os autores acrescentam cinco outros critérios de natureza pragmática. Antes de enumerá-
los, entretanto, creio que se faz necessário e urgente destacar que são estes dois primeiros critérios
que vão dar conta da textualidade, qualidade intrínseca ao texto e que faz com que um texto seja
entendido como texto. O que vem depois, representa conseqüentemente um acréscimo e remete às
qualidades pragmáticas do texto. Vejamos, então os cinco critérios pragmáticos: intencionalidade,
aceitabilidade, situacionalidade, informatividade e intertextualidade. Cabe frisar que os dois
primeiros – intencionalidade e aceitabilidade - se referem diretamente aos protagonistas da
ocorrência comunicacional, o texto. Vale dizer, através do fator de intencionalidade o locutor
propõe-se a produzir um texto capaz de desencadear um determinado efeito sobre o interlocutor, ou
seja: a intencionalidade diz respeito ao efeito desejado no jogo de atuação comunicativa, tal como
vimos mais acima. Já a aceitabilidade representa a outra ponta deste jogo de atuação comunicativa:
se, por um lado, o produtor do texto, ao formulá-lo, tinha uma determinada intenção, por outro lado,
na recepção do texto, o receptor do texto precisa demonstrar aceitabilidade no que tange às
instruções que estão expressas pelo texto para que estas sejam adequadamente decodificadas. Vale
dizer, intencionalidade e aceitabilidade representam os dois pólos deste jogo pragmático de atuação
comunicativa mediado pelo texto. O terceiro critério que os autores propõem é a situacionalidade
que aponta para a pertinência e relevância do texto em relação ao contexto em que o texto é
produzido. Ou seja: mais uma vez é o recebedor que está sendo testado, seu maior ou menor
conhecimento do contexto mobilizado pelo texto é determinante na avaliação da pertinência e
relevância do texto. A seguir, é mobilizado o critério de informatividade, através do qual o receptor
vai avaliar o grau de informação nova que o texto veicula. E só por último, entra o critério de
intertextualidade: um texto faz sentido se colocado em relação a outros textos, que funcionam como
seu contexto.
Como é possível perceber, em que pese o desejo dos autores de que estes sete critérios sejam
interdependentes, fica claro que há uma diferença qualitativa bastante forte entre eles, em
decorrência da qual fica estabelecida uma certa hierarquia entre estes diferentes critérios que
pretendem dar conta do texto. Diria que, dos dois primeiros critérios, de natureza semântico-formal,
decorrem as qualidades propriamente ditas do texto que são fundantes de sua textualidade. Estes
são, de fato, os fatores essenciais para refletir sobre o texto, neste quadro teórico. No momento em
que se passa dos critérios semântico-formais aos critérios pragmáticos, inicia uma espécie de escala
descendente de importância que marca que nem todos os critérios pragmáticos têm a mesma
importância e a ordem pela qual estes critérios foram sendo enumerados não é aleatória. É por esta
razão que, em primeiro lugar, aparecem os critérios de intencionalidade e aceitabilidade. Ou seja:
estes dois critérios pragmáticos são os mais importantes para fazer a passagem do lado interno ao
lado externo do texto, pois mobilizam os atores da ação comunicativa. Depois destes dois critérios,
os autores apontam, em escala descendente, o critério de situacionalidade, através do qual o
receptor vai fazer uma avaliação quanto à pertinência e relevância do texto para o contexto
comunicativo em que o texto está inscrito. O quarto critério coloca o receptor novamente em lugar
de avaliador, mas, desta vez, é avaliado o volume de informação nova contida no texto. Diria que
esta atividade é complementar à anterior e está cada vez mais distante da textualidade do texto. Por
último, o receptor vai tomar o texto e relacioná-lo com outros textos, mas esta não é sua atividade
central. Ao contrário. É de fechamento de uma série de tarefas das quais esta é a mais periférica de
todas.
Considero, pois, que os critérios pragmáticos, neste campo do conhecimento, são
secundários e não constitutivos do texto e funcionam como uma espécie de apêndice; por
conseguinte, não são constitutivos da textualidade ou, se/quando o são, não o são com o mesmo
peso, nem com a mesma validade/credibilidade dos dois primeiros. Diria mais: tais critérios
procuram contemplar elementos da exterioridade, mas a vocação clara da lingüística textual não
deixa dúvida de que há uma diferença entre os critérios semântico-formais e os pragmáticos. Ou
seja: estes últimos são mobilizados em ordem decrescente de importância, de tal modo que é lícito
fazer a seguinte distinção: enquanto a coesão e a coerência são constitutivas da textualidade, os
fatores pragmáticos, que são externos, são fatores que, juntamente com os primeiros, desempenham
um papel importante, mas não constitutivo e, por conseguinte, não são essenciais para a construção
da textualidade de um texto.
E o que nos permite asseverar isto é o exame cuidadoso das análises que trabalham com esta
concepção teórica de texto: a grande ênfase é posta nos mecanismos lingüísticos que vão tramando
o texto, em suas tomadas e retomadas e em sua progressão. O que está em jogo, nestes trabalhos,
fundamentalmente, é a trama do texto em sua superfície formal e o sentido que esta trama projeta.
Somente depois disso é que, talvez, haja espaço para contemplar outras questões. E isto é muito
natural também, se observarmos que estes critérios vieram juntar-se aos dois primeiros, muito
tempo depois, e são oriundos de outras áreas do conhecimento, não tendo sido formulados em
decorrência das inquietudes próprias dos lingüistas textuais nas análises que estavam sendo feitas,
mas, ao contrário, foram sendo acoplados à teoria à medida que os estudos apontavam para a
natureza pragmático-comunicativa ou cognitiva do texto.
Uma outra conseqüência desta heterogeneidade teórica também se faz sentir nas noções que
esta teoria mobiliza. Se, em seu início, falava-se em texto, com o passar do tempo e, em decorrência
de seu contato com outros quadros teóricos, de quem toma emprestados alguns conceitos, a teoria
passa a mencionar também discurso. Entretanto, esta última noção é inserida no corpo teórico da
Lingüística Textual sem nenhum propósito teórico, sem buscar alterar seu objeto ou introduzir
alguma distinção entre os dois termos. Ao contrário. Texto e discurso passam a conviver e a serem
utilizados um pelo outro, numa espécie de relação sinonímica. No âmbito da Lingüística Textual,
discurso equivale a texto.
Quero deter-me um pouco mais sobre esta questão: a Lingüística Textual formulou muitas
noções teóricas que lhe são próprias, (tais como coesão, coerência, textualidade, sentido textual,
unidade de significação etc.), mas muitas outras noções vieram se juntar posteriormente, num
movimento de empréstimo de noções que foram tomadas a outros campos de conhecimento, tais
como a Lingüística, a Pragmática, a teoria dos Atos de Fala, a Análise do Discurso e a Teoria da
Enunciação, mais particularmente, a Semântica Argumentativa, sem, entretanto, serem submetidas
a nenhuma teorização. Ou seja: o trabalho de teorização das noções emprestadas pertence ao campo
em que foram formuladas e não à Lingüística Textual. Se, por um lado, todos estes empréstimos
vão dando uma nova feição à Lingüística Textual, uma aparência mais conectada com o outro e
com os sentidos, por outro lado, estes empréstimos vão formando uma espécie de colcha de retalhos
teóricos, que não se vinculam uns aos outros. Tais empréstimos trazem outra conseqüência: vão
fazendo com que os contornos teóricos específicos da Lingüística Textual fiquem um pouco
embaçados e seu saber próprio vai ficando encoberto pelos saberes que vêem de outros campos,
tornando-se difícil discernir o que lhe é próprio e o que é empréstimo. No interior da
heterogeneidade teórica que reina neste campo do conhecimento, ficam um pouco borrados seus
propósitos, seus limites e suas fronteiras, as fronteiras que a separam de outros campos de
conhecimento afins, vizinhos, mas distintos, porque configurados para examinar outros objetos com
suas próprias especificidades.
Entretanto, em que pesem as observações que aqui estão sendo tecidas, é bom que se frise
que o grande mérito da lingüística textual, o qual nunca deve ser esquecido, foi e sempre será o de
ter ultrapassado as fronteiras da frase e da lingüística convencional e de ter constituído um novo
objeto de análise, o texto.

4. A categoria texto através do filtro teórico da Teoria da Enunciação


Como disse mais acima, havia lingüistas que formulavam questões que remetiam a uma
série de questionamentos formais sobre o texto e, na seção anterior, examinei o modo como estas
perguntas foram sendo respondidas e como elas foram constituindo o que hoje é conhecido como
Lingüística Textual. Mas também apontei que havia questionamentos diversos que remetiam a uma
ordem diferente de preocupações, que mostravam que, além de refletir sobre uma sintaxe textual
também era possível pensar na significação, no contexto situacional e no sujeito falante. As
respostas para este segundo grupo de inquietações vão dar lugar a mais de um objeto de estudo e a
vários aparatos teóricos, alguns dos quais estarão sendo examinados a seguir.
Gostaria de iniciar o exame deste segundo grupo de questionamentos pelo viés da Teoria da
Enunciação. Diria que a questão dos limites da frase também impulsionou as reflexões deste campo
do conhecimento, onde, desde o início, a diferença entre a frase e o além da frase é qualitativa. A
frase trata da língua, enquanto sistema de signos; para além da frase, encontra-se algo diferente (a
fala, para Saussure; o discurso, para Benveniste) e os procedimentos de análise também serão
diversos, conforme se examine uma frase ou algo que a ultrapasse.
Antes de iniciar, porém, cabe fazer uma observação: as primeiras preocupações desta teoria
não conduziam para a noção de texto. Por conseguinte, não é possível nela encontrar, em suas
formulações iniciais, referência explícita a esta noção. Na verdade, seus estudiosos delinearam
como objeto de estudo o enunciado. Pelo viés do enunciado poderiam estudar a Enunciação.
Por que, então, pensar a categoria texto a partir da Teoria da Enunciação? Esta é uma
pergunta que se impõe e que deve ser respondida em primeiro lugar. Do meu ponto de vista, diria
que o que me move, em primeiro lugar, nesta direção é o fato de que a Teoria da Enunciação afasta-
se da noção estrita de língua como sistema, que só considera as relações internas, e passa a
considerar também alguns elementos que não pertencem, de direito, ao sistema da língua. Para
Benveniste (1966), o fundador desta teoria, passa-se da frase para a enunciação, que envolve alguns
elementos externos: aquele que fala, o locutor, o EU, e aquele a quem o locutor se dirige, o
interlocutor, o TU. E este locutor está necessariamente situado em um contexto de situação que
determina o tempo da enunciação (aqui) e o espaço da enunciação (agora), ou seja, a enunciação
supõe sempre os interlocutores e está datada e situada no espaço. Com tais características, podemos
perceber que a enunciação é bastante fugaz, pontual, mas pode ser examinada através de seu
produto, o enunciado, que, em meu entendimento, carrega indelevelmente as marcas de sua
enunciação. É sobre as considerações tecidas sobre o enunciado que ancoro a reflexão sobre o texto,
nesse campo teórico.
Vejamos um pouco mais: para Ducrot,
uma frase é uma unidade lingüística abstrata, puramente teórica, um conjunto de palavras
combinadas segundo as regras da sintaxe, conjunto este tomado fora de qualquer situação de
discurso; o que produz um locutor, o que ouve seu interlocutor, não é pois uma frase, mas é o
enunciado particular de uma frase (DUCROT, 1980, p. 7; a tradução é minha).
Na citação acima, Ducrot estabelece a diferença entre a frase e o enunciado e, no meu
entender, com este gesto, abre espaço para perceber a diferença de texto quando examinado pelo
filtro teórico da Lingüística Textual e pelo filtro teórico da Teoria da Enunciação, pois para pensar o
enunciado, ou seja, o texto, torna-se indispensável que sejam mobilizados os interlocutores e seu
contexto de enunciação.
Segundo Kerbrat-Orecchioni (1980, p. 30), pode-se definir a enunciação como “o
mecanismo de engendramento de um texto, o surgimento, no enunciado, do sujeito da enunciação, a
inserção do locutor no seio de sua fala”. (A tradução é minha.) Ou seja, quando me proponho
pensar o texto à luz da Teoria da Enunciação, o faço pelo viés da noção de enunciado que entendo
como equivalente a texto.
Como veremos a seguir, vários teóricos da Enunciação irão se aproximar do texto por este
viés. Na França, Culioli, em 1973, afirma que é preciso pensar na “faculdade universal de produzir
e interpretar textos” (CULIOLI, 1973, p. 83). E esta afirmação é seguida, no mesmo artigo, por
uma reflexão que, veladamente, em meu entender, faz uma certa crítica ao trabalho que estava
sendo desenvolvido pelos lingüistas textuais em torno do que chamavam de regras de transição7, as
quais deveriam prover satisfatoriamente a passagem da gramática frasal à gramática textual. Culioli
temia que este propósito conduzisse os estudos textuais a uma espécie de arremedo da Lingüística
Frasal. Dito de outro modo: preocupados em examinar as relações entre as frases, ou entre os
enunciados que constituem o texto, os lingüistas correm o risco de escamotear o movimento que, no
texto, revela o relacionamento entre enunciadores. Vejamos o questionamento de Culioli, em suas
próprias palavras:
Não se corre o risco de (...) escamotear a relação do enunciado com a enunciação? E, nesse
caso, teremos linguagem (atividade, texto) sem enunciadores, sem uma situação em que se
insere o ato de enunciação, sem localizações, uma linguagem onde o sentido é separado da
referência. (CULIOLI, 1973, p.85; a tradução é minha).
Como se vê, Culioli está sinalizando que os estudos do texto, enquanto seqüências bem
ordenadas e organizadas de frases, estavam marcando perfeitamente bem a passagem da sintaxe
frasal para a sintaxe textual e, em função disso, os estudos formais sobre a referência estavam já
bem desenvolvidos. Entretanto, o mesmo movimento que os conduzia a estudar formalmente a
referência estava ocultando algo muito precioso que era o movimento que liga os enunciadores
através destas relações referenciais. Ou seja: a referência estava sendo estudada em nível sintático, e
estava sendo negligenciada a consideração da referência em sua outra face, a semântica. Dito ainda
de outra forma: para que haja referenciação é necessário que haja movimentação entre
enunciadores, inscritos em um contexto situacional. E este relacionamento entre enunciadores, pelo
viés da referência, conduz ao sentido. Mais adiante, no mesmo texto, ele acrescenta:
O problema-chave continua sendo o da significação, isto é, o de uma relação complexa entre
enunciados (textos), uma situação de enunciação, um sentido (relação entre objetos lingüísticos
que remetem a objetos extra-lingüísticos com suas propriedades físico-culturais), valores
referenciais (modalidades, tempo, aspecto, quantificação, etc.) (Culioli, 1973, p. 86; a tradução é
minha).
E o autor conclui que “um texto não tem sentido fora da atividade significante dos enunciadores”
(id.,ib.,p.87). Este tipo de atividade linguageira, que se estabelece entre enunciadores, Culioli vai
chamar, em outro texto seu, de co-enunciação e seus participantes de co-enunciadores (CULIOLI8,
apud FUCHS, 1984, p. 80).
Vejamos ainda o que diz Culioli (1984:10), em um outro texto, bem posterior, sobre a
categoria texto:

7
Esta fase da Lingüística Textual foi examinada na seção anterior.
8
Segundo Catherine Fuchs, o texto em que Culioli desenvolve as noções de co-enunciação e co-enunciador chama-se
“La communication verbale” e está publicado na Encyclopédie des Sciences de l´homme, v.4, Paris, Grange Batalière,
1967.
O texto escrito nos força, de forma exemplar, a compreender que não se pode passar da frase
(que está fora de prosódia, fora de contexto, fora de situação) ao enunciado por um simples
procedimento de extensão. Trata-se, efetivamente, de uma ruptura teórica, de conseqüências
incontornáveis (CULIOLI, 1984, p.10; a tradução é minha).
É possível perceber, através da citação acima, o que estou buscando na Teoria da Enunciação:
não basta passar da frase para o texto. Se continuarmos a pensar o texto em seus limites internos, se
continuarmos a pensar o texto exclusivamente a partir de suas relações internas, unicamente pelo
viés de seu contexto lingüístico, estaremos diante de uma concepção que pensa o texto como se ele
fosse uma frase expandida, tal como o fez a Lingüística Textual durante muito tempo. A Teoria da
Enunciação permite-nos ultrapassar os limites internos ao texto, pois ela convoca o contexto
situacional em que o locutor está inscrito ao produzir o texto, bem como leva em conta também o
interlocutor. Ou seja, o texto, nessa concepção teórica, não só considera o contexto situacional,
como também considera que este texto foi produzido por alguém, o locutor, e que se destina a
alguém, o interlocutor. Pode-se, pois, dizer que o texto, nessa perspectiva teórica, ultrapassa seus
limites internos, suas relações internas, seu contexto lingüístico e considera-se, em sua constituição,
a exterioridade, vale dizer: os interlocutores e seu contexto de enunciação. É por isto que Culioli
afirma que a passagem para o texto conduz a uma ruptura teórica incontornável, não mais sendo
possível continuar considerando apenas as relações internas ao texto. A ruptura se dá exatamente ao
nível da natureza do contexto que se leva em consideração para o seu estudo.
No Brasil, Eduardo Guimarães também refletiu e reflete ainda sobre a categoria texto, à luz
da Teoria da Enunciação. Este pesquisador propõe, para que o texto seja pensado como uma
operação enunciativa, que se considere como essencial para a sua textualidade a operação que
conduz a “construir como unidade o que é disperso”. (GUIMARÃES, 1995, p. 65). Para tanto, vai
tomar o texto em suas relações internas, as relações coesivas, portanto, levando em conta o
contexto lingüístico, e em suas relações com a exterioridade, contemplando para além do contexto
lingüístico. Por esta razão, Guimarães substitui a noção de coerência pela noção de consistência. O
que significa esta substituição? Ela implica colocar o texto definitiva e constitutivamente em sua
relação com a exterioridade, significa submetê-lo, sem dúvida alguma, à interpretação. Ou seja, o
sentido não vem posto exclusivamente no texto. É inegável que ele é portador de instruções, como o
quer Ducrot (op.cit., p. 12) e de sentidos pelos quais o locutor se responsabiliza. Mas o sentido
também é da ordem da interpretação e, nesse ponto, entra a exterioridade e, com ela, o interlocutor.
Vale dizer que, para chegar ao sentido do texto, não basta decodificar as diferentes relações
coesivas que se estabelecem na superfície textual, considerando exclusivamente seu contexto
lingüístico. Para chegar ao sentido, passa-se por uma operação que envolve locutor e interlocutor,
pelo viés da consistência. Ir para a consistência de um texto significa remeter às relações que
convocam à interpretação desse texto em sua relação com o acontecimento enunciativo em que ele
foi produzido. Ou seja: para que haja interpretação é preciso passar do contexto lingüístico ao
contexto situacional. Ou, como diz Guimarães (id., ib. p. 65), “a coesão e a consistência são
procedimentos do presente do acontecimento” e, em função disso, estas duas propriedades,
responsáveis pela “operação enunciativa da textualidade”, ao construírem “como unidade o que é
disperso”, produzem “a ilusão de um presente sem memória”, promovendo a “ilusão da unidade”.
Como se vê, pelo que foi exposto nesta seção, os teóricos da enunciação consideram que as
relações externas ao texto são tão importantes como as internas. E isto mostra que ambas são
convocadas, a igual título e sem hierarquização, a participar do trabalho de
constituição/interpretação do texto.
Se compararmos a concepção de texto da Lingüística Textual com a concepção que dele faz a
Teoria da Enunciação, veremos que, na primeira, as relações internas são centrais e a elas se
acrescentam, posteriormente e de forma periférica, as relações externas. Este intervalo entre as
relações internas e externas inexiste na Teoria da Enunciação. Nela, relações internas e externas são
igualmente convocadas, desde o início. Esta forma diferente de conceber as relações que o texto
estabelece explica as diferenças de concepção de texto destes dois campos do conhecimento:
enquanto o primeiro, olhando fortemente para seu interior, fixa-se nas relações formais que aí se
entretecem, construindo uma sintaxe textual, para o segundo, esta separação entre interior e exterior
não se coloca, sendo ambas mobilizadas a um só tempo e suas análises apontam para uma
semântica do texto.
Estas duas perspectivas teóricas permitiram que fossem observadas, nesse ensaio, as
diferentes formas de responder às perguntas que os estudiosos se colocavam quando se
interrogavam sobre o que ocorre quando se ultrapassam os limites da frase. A Lingüística Textual,
ao responder àquelas perguntas, propôs, como solução, que o texto fosse considerado como uma
extensa rede de relações textuais que pode ser considerada como uma sintaxe textual. Já a Teoria
da Enunciação buscou respostas que permitissem pensar o texto como uma rede de relações
semântico-textuais que espera por interpretação.
Mas estas duas perspectivas não esgotam os estudos textuais. Outras concepções teóricas
desta categoria vão mostrar que o texto apresenta propriedades diversas, como veremos a seguir.

5. A categoria texto através do filtro teórico da Semiótica


Antes de abordar o modo como a Teoria Semiótica concebe o texto, vou procurar, de modo
breve, localizar como este campo do conhecimento se instaura nos Estudos da Linguagem. E, para
situar a Semiótica neste espaço de reflexão, é preciso, mais uma vez, remontar ao Curso de
Saussure, mais especificamente ao capítulo III da Introdução, intitulado O Objeto da Lingüística,
em sua seção 3, que leva por título Lugar da língua nos fatos humanos. A semiologia. Aí, lê-se que
a língua é um sistema de signos que exprimem idéias, e é comparável, por isso, à escrita, ao
alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas de polidez, aos sinais militares, etc.
Ela é apenas o principal destes sistemas. Pode-se, então, conceber uma ciência que estuda a vida
dos signos no seio da vida social (...) chamá-la-emos de Semiologia (do grego, semeîon,
“signo”). Ela nos ensinará em que consistem os signos, que leis os regem (...). A Lingüística não
é senão uma parte dessa ciência geral; as leis que a Semiologia descobrir serão aplicáveis à
Lingüística e esta se achará dessarte vinculada a um domínio bem definido no conjunto dos
fatos humanos (...). A tarefa do lingüista é definir o que faz da língua um sistema especial no
conjunto dos fatos semiológicos. (SAUSSURE, op.cit., p.24)
Como se vê, Saussure, desde o início, ao definir a língua como um sistema de signos, não só
reconhecia que existem outros sistemas de signos, como preconizava uma futura ciência que teria
como tarefa fazer o estudo dos sistemas sígnicos na vida social, chegando até a denominar esta
Ciência Geral dos signos. Nos anos que se seguiram a Saussure, os sistemas sígnicos passaram a ser
estudados e sua designação oscilava entre Semiologia e Semiótica, sendo elas mobilizadas sem
maiores distinções. Aos poucos, entretanto, passou-se a teorizar e a discutir certas questões
específicas e as diferenças começaram a se fazer notar. A Semiótica, por seu lado, começou a tomar
um perfil teórico bastante importante e isto foi determinando sua importância no quadro dos
Estudos da Linguagem. Para os objetivos que aqui me fazem abordar este campo do conhecimento,
não cabe aprofundar/discutir as diferenças teóricas que separaram definitivamente a Semiologia9 da
Semiótica10. Entretanto, a este respeito, vale citar Landowski. Segundo este semioticista,
a semiótica não tem por objeto essencial o estudo dos signos; na verdade, ela visa à construção
de uma teoria geral da significação, e nisso há mais do que uma simples nuança. É à semiologia

9
A produção teórica de Barthes pode ser indicativa de trabalhos que procuraram se desenvolver no quadro teórico da
Semiologia.
10
A semiótica, como todos os demais campos examinados anteriormente no presente ensaio, não é um campo
homogêneo e já foi possível perceber isto, ao mostrar seu surgimento associado à Semiologia. Além disso, é preciso
registrar, paralelamente à semiótica greimasiana, a existência de uma outra semiótica, estabelecida a partir da teoria de
Pierce. Mas este é apenas um registro, pois dela não vou me ocupar. Apenas saliento que, a rigor, podemos nos deparar
com variadas propostas semióticas. O que vai distingui-las é sua fundamentação e seu corpo teórico. Saliento,
igualmente, que, a partir deste momento, minhas citações remetem todas para a teoria fundada por Greimas.
que cabe (...) descrever os sistemas de signos, isto é, a organização de um certo número de
“códigos” (códigos de sinais rodoviários, código dos surdo-mudos, etc), que associam de
maneira explicitamente intencional e perfeitamente unívoca – pelo menos para os que têm
conhecimento do sistema de convenções adotado – certas unidades de um quadro
preestabelecido de “significados” (...) a determinadas unidades correspondentes do
“significante”(...) É esta uma das razões do divórcio entre “semiólogos” e “semioticista”
(embora as denominações das duas orientações por vezes se sobreponham.
(...) O objeto da semiótica (...) é a significação. O programa de trabalho do semioticista decorre
disso: será o de dar conta (com ajuda de modelos a construir) das condições da apreensão e da
produção do sentido, quaisquer que sejam os lugares e as formas de sua manifestação
(LANDOWSKI, 199211, p.57-8).
Fica apenas o registro desta dualidade e da não-superposição dos dois campos. Para o que nos
mobiliza neste ensaio, entretanto, é suficiente vislumbrar com precisão qual é o objeto de estudo da
Semiótica e como esta concebe a categoria texto.
Cabe salientar, igualmente, que é Hjelmslev quem vai dar início à fundamentação deste
novo campo, colocando alguns de seus princípios fundadores. Deles, destaco apenas o critério de
cientificidade que determina ser imperioso dispor de uma teoria para sustentar as análises
semióticas, e é à construção dessa teoria que Greimas, um dos mais importantes teóricos da
Semiótica, vem dedicando suas atividades de pesquisa, desde 1966, ano em que publica o livro
intitulado Sémantique Structurale. Depois, em 1970, lança o livro que dá início à construção do
aparato teórico da Semiótica propriamente dita – Du sens. Sua teoria é conhecida, hoje, como a
semiótica greimasiana12 ou semiótica francesa e é nela que vou basear-me para elaborar esta seção.
Para entender melhor os propósitos da Teoria Semiótica, vejamos o que dizem Greimas e
Courtés. Para esses autores, a “teoria semiótica deve apresentar-se ... como uma teoria da
significação” (GREIMAS & COURTÉS, 197913, p.415). Esta breve definição é suficiente para
darmos início a nossa reflexão. De imediato, percebe-se que esta teoria, embora surja juntamente
com o gesto fundador da Lingüística, como pudemos apreciar mais acima, através da citação de
Saussure, ela nasce com uma vocação diferenciada, pois pretende ser uma teoria da significação. A
este respeito, Greimas afirma que o homem vive num mundo significante. Para ele, o problema do
sentido não se coloca, o sentido é colocado, se impõe como uma evidência, como um `sentimento de
compreensão` absolutamente natural. (GREIMAS, 1975, p. 12)14. Creio poder afirmar que a
lingüística prioriza fortemente o significante, a parte formal. Em contrapartida, a teoria greimasiana
propõe-se investigar o significado, o conteúdo. Sobre esta questão, afirma Courtés que
O próprio do fazer semiótico será o abandono (em parte), num primeiro tempo, do plano da
forma lingüística, para trabalhar no campo do significado: o que quer dizer, entre outras coisas,
que não consideraremos aqui o estudo do nível textual” (COURTÉS, 1979, p.50).
Esta citação merece um comentário mais detalhado. Lida, assim, de forma rápida e
descontextualizada, pode-se ser levado a pensar que a Semiótica não se interessa pelo texto. Mas
não é disso que se trata. Vou fazer, abaixo, algumas considerações iniciais. Mas vou voltar a esta
citação, mais adiante, quando estiver tratando da concepção semiótica de texto.

11
A edição francesa original é de 1989.
12
É preciso sinalizar que a teoria semiótica pode ser estudada através de várias escolas. Além da semiótica greimasiana,
ou francesa, pode-se sinalizar a americana, que se desenvolveu em torno das teorizações de Peirce; há igualmente a
reflexão de Umberto Eco e de Kristeva, que não se superpõem entre si, nem se identificam plenamente com os escritos
de Greimas.
13
Estou utilizando a edição brasileira do Dicionário de Semiótica, cuja publicação não é datada. Por esta razão, utilizo-
me da data de publicação da edição francesa, 1979.
14
Este livro foi publicado, originalmente, em 1970.
A Semiótica, influenciada pela concepção sígnica de Hjelmslev, que fez uma releitura do
signo saussuriano15, propõe-se formular uma teoria que dê conta do sentido das formas. Greimas
postula “o paralelismo entre a expressão e o conteúdo”, buscando, desta forma, dar conta da
“articulação da significação”. Ele vai mesmo além, ao formular seu princípio de isomorfismo entre
os planos do conteúdo e da expressão, buscando “conceber a estrutura semântica como uma
articulação do universo semântico em unidades mínimas de significação (ou semas),
correspondendo aos traços distintivos do plano da expressão (os femas)” (GREIMAS, 1975, p.37).
E o autor defende o isomorfismo entre as estruturas semânticas e fonológicas, situadas em um nível
profundo da linguagem: “assim como a combinação dos femas produz fonemas, a combinação dos
semas produz sememas .... Continuando a comparação, pode-se observar que combinações de
fonemas constituem as sílabas, enquanto que combinações de sememas produzem enunciados
semânticos” (Id., ib., p.37). Vê-se claramente o propósito de Greimas: enquanto a lingüística
postula os traços (femas, na formulação greimasiana) distintivos que vão, reunidos, constituir os
fonemas, que atuam no nível da forma, Greimas propõe que sejam isoladas as unidades mínimas de
significação, os semas, traços distintivos que, reunidos, constituirão os sememas. É aqui que inicia,
de fato, a tarefa do semioticista, que consiste em
elaborar uma teoria que lhe permita construir os modelos formais correspondentes à estrutura
semântica preexistente (ou suscetíveis de dar conta dos universos semânticos dados)”
(GREIMAS, 1975, p.36).
Há, neste propósito, um claro paralelismo entre os objetivos da lingüística e os da semiótica e,
ao mesmo tempo, percebe-se também, suas diferenças: enquanto a primeira preocupa-se com a
forma, a segunda quer dar conta do plano do conteúdo. É a busca pelo sentido.
Por outro lado, desejo, aqui, salientar um outro aspecto que, momentaneamente deixei de
lado, em duas citações de Greimas que fiz, mais acima, e que retomo, agora. E vou destacar apenas
o tópico específico sobre o qual desejo me deter. O primeiro – o homem vive em um mundo
significante – e o segundo – conhecer a estrutura semântica como uma articulação do universo
semântico. Estes dois fragmentos de citação nos conduzem a perceber a natureza dos objetos que a
semiótica toma para analisar: o mundo e o universo. Como se vê, os objetos desta teoria não se
limitam ao texto lingüístico. Ao contrário: ela trata de abranger todos os sistemas sígnicos,
lingüísticos e não-lingüísticos.
Acompanhemos o raciocínio de Courtés, para melhor entender como a semiótica examina o
mundo. Segundo este autor,
O fazer semiótico, exercendo-se sobre uma coleccção de “objetos” (...) determinados (textos,
narrativas orais, banda desenhada, planos de arquitectura, obras musicais, etc), só os estuda sob
um ângulo particular: a sua análise não pretende restituí-los tais quais, mas dar conta do objecto
que ela se propõe, que ela constrói neles ou através deles (COURTÉS, 1979, p.44).
Pelos diferenciados objetos apontados na citação anterior, percebe-se que a semiótica se
interessa por uma gama muito ampla de objetos. Tanto faz que o objeto seja um texto, uma imagem,
um ritual ou uma música, todos são igualmente passíveis de se constituírem em objetos de análise
no âmbito dessa teoria. Isto sinaliza uma grande e forte diferença com os demais campos de
conhecimento que estão sendo perscrutados nesse ensaio. Entretanto, feita esta observação, faz-se
necessário retornar ao foco específico deste ensaio e buscar entender como a Semiótica entende o
objeto texto.
Para esta teoria, o que interessa examinar é o funcionamento textual da significação. E este
funcionamento é observado internamente ao texto e não a partir do relacionamento do texto com
um referente externo. O sentido é resultante de um jogo de relações sistêmicas que se estabelecem
15
Segundo Hjelmslev, tanto o significado quanto o significante devem ser divididos e devem ambos apresentar um
plano da forma e um plano de conteúdo. Deste modo, o autor propõe que se considere que cada signo possui uma forma
e um conteúdo do significado e uma forma e um conteúdo do significante. Como se vê, desde sua concepção sígnica,
vê-se que Hjelmslev se preocupa com o conteúdo.
entre os elementos significantes de um texto. E o semioticista propõe-se examinar a forma do
sentido, o modo como este se constrói. Mais especificamente: a semiótica dá-se por tarefa construir
a organização e a produção dos discursos e dos textos, vale dizer, a competência discursiva.
Saliente-se, de imediato que a semiótica refere-se a texto e a discurso. É preciso, pois,
verificar se estas noções são usadas de forma sinonímica ou não. Para isto, valho-me, mais uma vez,
de Greimas e Courtés:
Numa primeira abordagem, pode-se identificar o conceito de discurso com o de processo
semiótico e considerar como pertencente à teoria do discurso a totalidade dos fatos semióticos
(relações, unidades, operações, etc.) situados no eixo sintagmático da linguagem.......O discurso
é o objeto de saber visado pela lingüística discursiva. Nesse sentido é sinônimo de texto...Por
outro lado, (...) os termos discurso e texto têm sido empregados para designar igualmente
processos semióticos não-lingüísticos (um ritual, um filme, um desenho animado são então
considerados como discursos ou textos), já que o emprego desses termos postula a existência de
uma organização sintagmática subjacente a este tipo de manifestação (GREIMAS &
COURTÉS, 1979, p.126; os destaques são meus).
A partir da citação acima, percebe-se que minha hipótese inicial de que as noções de texto e
discurso são usadas indiferentemente se confirma. Pelo menos, num primeiro momento, percebe-se
que são sinônimas e que se referem à organização sintagmática de um texto.
Percebe-se, igualmente, que, para esta teoria, um texto ou um discurso abrange tanto as
manifestações semióticas lingüísticas como não-lingüísticas. E só isto já nos mostra que estamos
diante de uma concepção bastante diversa de texto. Muito mais abrangente do que as anteriores, que
se restringem apenas às manifestações lingüísticas. Entretanto, para os propósitos deste ensaio,
daqui para frente, ao falar em texto, estarei sempre me referindo aos processos semióticos
lingüísticos. A discussão sobre as diferenças entre estes dois termos aprofunda-se bastante, no
quadro teórico em exame e foge aos objetivos deste ensaio. Voltemos, então, àquilo que nos move
aqui.
Para a Semiótica, considera-se texto o resultado de um dispositivo estruturado de regras e de
relações, que darão conta do plano da expressão e do plano do conteúdo e estes, por sua vez, são
abordados em dois diferentes níveis, o superficial e o profundo. Esta dupla designação marca, com
clareza, que a Semiótica inspirou-se na teoria gerativa. Vejamos o que dizem a este respeito
Greimas e Courtés:
A teoria semiótica que estamos tentando elaborar, ainda que de inspiração gerativa, dificilmente
é comparável aos modelos gerativistas, e isso porque o seu projeto é diferente: fundamentada na
teoria da significação, ela visa a explicar todas as semióticas (e não somente as línguas naturais)
e a construir modelos capazes de gerar discursos (e não frases). Considerando, por outro lado,
que todas as categorias, mesmo as mais abstratas (incluindo-se as estruturas sintáxicas), são de
natureza semântica e, por isso, significantes, ela não sente nenhum constrangimento em
distinguir, para cada instância do percurso gerativo, sub-componentes sintáxicos e semânticos
(stricto sensu) (GREIMAS & COURTÉS, op.cit., p.207).
Como podemos perceber, a Semiótica, ao mesmo tempo de se inspira na Teoria Gerativa, dela
tomando certas noções como nível superficial e nível profundo, ou ainda a noção de gerativo, vai
procurando se demarcar daquele modelo e tais distinções são produzidas a partir de dois pontos
específicos: pretende produzir um modelo que gere discursos, enquanto a lingüística gerativa
propõe-se produzir um modelo lingüístico que gere frases. E mais: enquanto a lingüística gerativa
ocupa-se com a forma, a Semiótica propõe-se a produzir um modelo que dê conta do percurso
gerativo do sentido de diferentes textos. Guardadas estas diferenças, que não são nada desprezíveis,
é preciso remarcar ainda que esta forte inspiração na lingüística chomskiana vai acarretar-lhe mais
uma herança: o modelo gerativo do sentido se produz sobre o texto propriamente dito e suas
relações internas. Vejamos mais de perto como este modelo foi concebido:
Tal teoria semiótica distingue três campos ... autônomos, que considera como lugares de
articulação da significação e de construção metassemiótica: as estruturas sêmio-narrativas, as
estruturas discursivas e as estruturas textuais. Entretanto, enquanto as duas primeiras formas
podem ser consideradas como dois níveis de profundidade superpostos, a problemática da
textualização é completamente diferente. Com efeito, a textualização, enquanto disposição
linear em texto ... pode intervir a qualquer momento do percurso gerativo: não somente os
discursos figurativos ou não-figurativos (mais ou menos profundos, no quadro da semântica
discursiva) são textualizados, mas estruturas lógico-semânticas mais abstratas (nas linguagens
formais, por exemplo) são igualmente textualizadas; desde o instante em que são “deitadas” no
papel. As estruturas textuais, cuja formulação dará lugar à representação semântica – suscetível
de servir de nível profundo às estruturas lingüísticas geradoras de estruturas lingüísticas de
superfície (na perspectiva da gramática gerativa) – constituem conseqüentemente um domínio
de pesquisas autônomas (...), mas elas se situam, na verdade, fora do percurso gerativo
propriamente dito.
As estruturas sêmio-narrativas, que constituem o nível mais abstrato (...), se apresentam sob a
forma de uma gramática semiótica e narrativa que comporta dois componentes – sintático e
semântico – e dois níveis de profundidade: uma sintaxe fundamental e uma semântica
fundamental (no nível profundo) e uma sintaxe narrativa (no nível de superfície). Quanto ao seu
modo de existência semiótica, essas estruturas são definidas por referência tanto ao conceito de
língua quanto ao de competência narrativa (conceito chomskiano, ampliado para as dimensões
do discurso), pois incluem (...) o conjunto de operações sintáxicas elementares.
As estruturas discursivas, menos profundas, são encarregadas de retomar as estruturas
semióticas de superfície e de “colocá-las em discurso” (...). Distinguir-se-ão (...) o componente
sintáxico, (...) encarregado da discursivização das estruturas narrativas, que comporta os três
sub-componentes: actorialização, temporalização e espacialização; o componente semântico,
com seus sub-componentes tematização e figurativização; a textualização e a manifestação
podem intervir a qualquer momento da geração. (GREIMAS & COURTÉS, 1979, p. 207-8).
A longa citação anterior reafirma, guardadas as diferenças e especificidades que existem
entre a lingüística chomskiana e a teoria semiótica, a forte inspiração desta última no modelo
gerativo. Vê-se, igualmente, que o referido percurso semiótico se estabelece pela articulação de
diferentes componentes e sub-componentes, indo do “mais simples ao mais complexo, do mais
abstrato ao mais concreto” (id.,ib., p. 206). E isto nos mostra que, nesta teoria, entende-se como o
mais concreto, ou estruturas menos profundas, as estruturas discursivas, ou seja, o discurso. De tudo
quanto precede, percebe-se, aqui, com maior clareza, o que Courtés afirmou, em uma citação
anterior - a semiótica não se interessa, num primeiro momento, pelo nível textual. Para melhor
compreendê-la, vale retornar a Greimas e Courtés. Estes autores afirmam que, “o percurso gerativo
é uma construção ideal, independente das línguas naturais e anterior a elas, ou dos mundos
naturais em que esta ou aquela semiótica pode ... investir-se par manifestar-se” GREIMAS &
COURTÉS, 1979, p. 208). Esta idéia de anterioridade, mostra que a Semiótica filia-se à noção de
texto, tal como foi formulada por Hjelmslev e examinada anteriormente, aqui mesmo, neste ensaio
(Cf. a parte final da seção intitulada “Entrando no túnel”).
Esta afirmação de Courtés também pode receber uma outra leitura se a associarmos a uma
citação de Greimas: Hors du texte, point de salut.16 Se observarmos atentamente o percurso gerativo
do sentido, tal como descrito mais acima, vê-se que a Semiótica parte da estrutura profunda para,
somente ao final, alcançar o nível textual. Ou seja: num primeiro momento, a forma semiótica que
assume a manifestação propriamente dita não vai ser objeto de análise. O que interessa,
efetivamente, é aplicar o dispositivo de análise, tal como descrito acima, e esta análise não visa a
processar a superfície textual, mas, a partir dela, atingir o funcionamento do sentido do texto.
Interessa à Semiótica saber como o texto faz para dizer o que diz. Ou, como afirma o Groupe
d´Entrevernes, ela visa “não o sentido, mas a arquitetura do sentido” (op. cit., p.8).

16
Encontrei esta citação de Greimas em uma epígrafe do livro As astúcias da enunciação de José Luiz Fiorin, p.35.
Cabe aqui retomar, mais uma vez, a citação de Greimas: hors du texte, point de salut e,
partir dela, tecer mais algumas considerações sobre o modo como a Semiótica trabalha com o texto.
Sublinho que a Semiótica interessa-se pelas relações internas ao texto, pelo menos em sua forma
padrão e, sobretudo, no âmbito da Semiótica que aqui está sendo examinada e que foi selecionada
em função de ser este aparato teórico o que predomina entre os semioticistas brasileiros que se
dedicam aos estudos da linguagem e que tomam o texto como objeto de estudos.
Cabe, ainda, verificar a natureza do sujeito neste quadro teórico. Segundo Greimas,
semioticamente falando, o sujeito do discurso não passa de uma instância virtual, ou seja, uma
instância construída no quadro da teoria lingüística, para dar conta da transformação da forma
paradigmática em uma forma sintagmática da linguagem. Ainda mais: essa instância mediadora
apresenta-se sob a forma de um sujeito sintático, de um actante que, de posse de categorias
lingüísticas presentes “na língua” como diferenças, como oposições dotadas de uma organização
sistemática, manipula-as de maneira a construir um encadeamento sintagmático que se realiza
como programa discursivo (GREIMAS, 1981, p.4)
A citação acima faz uma explicação clara de como um sujeito falante, que domina um
determinado sistema lingüístico, faz a passagem da língua para a fala, para utilizar a dicotomia
saussuriana, ou, se preferirmos mobilizar a teoria de Benveniste, poderíamos dizer que o sujeito do
discurso a que se refere Greimas, mais acima, é o sujeito que se apropria da língua e articula, num
ato individual, a enunciação. Podemos, ainda, perceber aí a passagem da competência para a
performance de que tratou Chomsky. Ou seja: no meu entender, não se trata uma instância virtual
do sujeito. Ao contrário. Trata-se de um sujeito empírico que procede à passagem do plano virtual
da língua, para sua atualização. Para que possamos entender melhor sua concepção de sujeito,
voltemos a Greimas. Segundo ele,
O que se passa nesse lugar de mediação não é somente uma atualização da língua que se
efetuaria pela convocação, na cadeia sintagmática, de tais ou tais termos virtuais, com exclusão
de outros termos, diferenciais, suspensos e todavia necessários ao processo de significação; é
também a adoção de certas categorias semânticas – como a asserção e a denegação, a conjunção
e a disjunção, para citar as mais evidentes – necessárias para permitir que o sujeito assuma o
papel de operador que manipula e organiza os termos convocados, nem que seja apenas para a
construção de enunciados elementares, por meio de processos chamados de predicação. O
sujeito do discurso é, portando, aquela instância que, segundo a concepção saussureana, não se
limita a assegurar a passagem do estado virtual ao estado atual da linguagem: ele aparece como
o lugar em que se encontra montado o conjunto dos mecanismos de colocação em discurso da
língua. Situado em um lugar em que o ser da linguagem se transforma em um fazer lingüístico,
o sujeito do discurso pode ser chamado ... de produtor do discurso (GREIMAS, 1981, p.5).
Como se vê, na passagem acima, Greimas deixa muito claro o que entende serem as funções
do sujeito do discurso. Se observarmos bem tudo que enumera, percebe-se com clareza que há aí a
retomada das idéias expostas por Benveniste em seu Aparelho Formal da Enunciação: a língua
comporta em seu interior dois diferentes sistemas: o primeiro remete ao sistema lingüístico tão bem
descrito por Saussure; e o segundo que foi claramente delineado por Benveniste: o aparelho formal
da enunciação. Podemos aí vislumbrar, igualmente, a pesquisa de Ducrot que buscou, na língua, os
operadores argumentativos que permitem ao locutor estabelecer as operações enumeradas, na última
citação, por Greimas. Em suma: entendo que o sujeito produtor do discurso a que se refere Greimas
nada mais é do que o sujeito que a lingüística ortodoxa descartou e que a teoria da enunciação, em
suas diferentes abordagens, recuperou, teorizou e designou de locutor. Mas, Greimas vai além e
teoriza sobre o sujeito quando afirma que “o sujeito competente do discurso, sendo uma instância
pressuposta pelo funcionamento deste último, pode também ser considerado como um sujeito em
construção permanente, se não um sujeito a construir” (Greimas, 1981, p.5). E, mais adiante,
Greimas acrescenta que se trata de uma “representação, mesmo que sumária, da instância do
sujeito do discurso” (id.,ib., p.6).
Estes dois últimos fragmentos citados no parágrafo acima são indicativos de como a teoria
semiótica trabalha, em seus textos, com a noção de sujeito: trata-se de uma representação, mesmo
que sumária, da instância do sujeito do discurso. É hora, pois, de mobilizar a noção de actante que,
na teoria semiótica, representa o sujeito do discurso. De um modo geral, Greimas e Courtés (Op.
cit) entendem que o actante pode ser concebido como aquele que realiza ou que sofre o ato. E
acrescentam que,
no interior do discurso enunciado, distinguem-se vários tipos de actantes: os actantes da
comunicação (ou da enunciação) que são o narrador e o narratário, mas também o interlocutor
e o interlocutário (que participam da interlocução de segundo grau que é o diálogo; os actantes
da narração (ou do enunciado): sujeito/objeto, destinador/destinatário; do ponto de vista
gramatical, oporemos actantes sintáxicos (inscritos em um programa narrativo dado), tais como
sujeito de estado e sujeito do fazer, e actantes funcionais (ou sintagmáticos), que subsumem os
papéis actanciais de um determinado percurso narrativo; no que tange às duas dimensões
discerníveis nos discursos, distinguiremos os sujeitos pragmáticos e os sujeitos cognitivos (...).
Levando em conta o papel que ele desempenha, ao nível da semântica discursiva, graças ao
procedimento da figurativização, diremos que o actante é individual, dual ou coletivo. (...) Na
progressão do discurso narrativo, o actante pode assumir um certo número de papéis actanciais,
definidos simultaneamente pela posição do actante no encadeamento lógico da narração...
(GREIMAS & COURTÉS, op.cit, p. 13).
A última citação permite acompanhar como se dá o trabalho de teorização que é feito a partir
do aparelho formal da enunciação. Através dela, pode-se acompanhar de que modo foi esboçada
uma representação do sujeito no quadro teórico da teoria da enunciação. E esta compreensão é
fundamental para que possamos encetar uma série de comparações com os campos de
conhecimentos anteriormente analisados, neste ensaio.
Inicio, pois, um primeiro paralelismo, comparando a Lingüística Textual e a Semiótica.
Como foi possível perceber, a Semiótica, tal como a Lingüística Textual, interessa-se pelo texto. Tal
como a Lingüística Textual, a Semiótica considera-o privilegiadamente a partir de suas relações
internas. Tal como a Lingüística Textual, a Semiótica toma certas noções produzidas pela
lingüística e desloca-as para o seu quadro teórico. Mas estas são as únicas coincidências. E isto
pode ser afirmado porque Lingüística Textual e Semiótica possuem propósitos bem diversos.
Enquanto a Lingüística Textual tem por objeto o texto empírico, a partir do qual fazem o
processamento do texto17, a Semiótica toma o texto para, nele, estudar o percurso gerativo do
sentido. Ou seja: a primeira se interessa pela sintaxe do texto, por seus encadeamentos formais,
enquanto a segunda se mobiliza pela semântica do texto, pela arquitetura de seu sentido. Dito de
outra forma: enquanto a Lingüística Textual trabalha o plano da expressão, a semiótica ocupa-se do
plano do conteúdo, como vimos um pouco mais acima. E mais: as noções que a Semiótica toma do
quadro teórico da lingüística gerativa são, todas, a seguir, teorizadas, o que produz um processo de
apropriação e não de empréstimo. Por outro lado, vale destacar que a Lingüística Textual não se
preocupa particularmente com o sujeito. Já a Semiótica, trabalha com esta noção, criando um
conjunto de papéis a serem desempenhados pelos actantes, simulacros do sujeito no texto.
É preciso também fazer uma comparação entre a Semiótica e a Teoria da Enunciação.
Inicialmente, devo dizer que, em suas primeiras formulações, a Semiótica não transita para fora do
texto – lembremos outra vez a formulação greimasiana: fora do texto não há salvação - e isto a
mantém afastada da Teoria da Enunciação, que reclama para si um contexto situacional. Mais
recentemente, Greimas (1981), como vimos mais acima, aproximou-se da Teoria da Enunciação
para pensar a questão do sujeito. E, ainda mais recentemente, semioticistas brasileiros passaram a
interessar-se pela Teoria da Enunciação e, a este propósito, trago a reflexão de Barros (1988) para, a
partir de seu texto, formular algumas outras considerações. Segundo a autora,
Reconhecendo a pertinência da dimensão histórica para a análise do discurso, mas também as
muitas dificuldades encontradas na determinação das relações entre formações sócio-

17
Aqui, mesmo, neste ensaio, a Lingüística Textual é examinada com mais vagar.
ideológicas e formações discursivas, propõe-se (...) a hipótese conciliatória (...) de que essas
relações podem e devem ser estabelecidas pela mediação lingüística da enunciação. Tenta-se,
assim, definir enunciação pelo duplo papel de mediação ao converter as estruturas narrativas em
estruturas discursivas e ao relacionar o texto com as condições sócio-históricas de sua produção
e de sua recepção.
O objetivo é integrar, por meio da enunciação, uma abordagem interna do texto, indispensável
para que se reconheçam os mecanismos e regras de engendramento do discurso, com a análise
externa do contexto sócio-histórico, em que o texto se insere e de que, em última instância,
cobra sentido. Para tanto, parte-se da teoria semiótica desenvolvida pelo grupo de investigações
sêmio-lingüísticas, sob a direção de Greimas. A teoria sêmio-lingüística de análise do discurso
está suficientemente avançada para oferecer princípios, métodos e técnicas adequadas de análise
interna do discurso, apreendido em níveis diferentes de geração e de abstração (...); embora a
semiótica não tenha tratado ainda, satisfatoriamente, das relações entre discurso e contexto,
acredita-se que, sem contradições teóricas, o projeto avance nessa direção, já que a enunciação,
mediadora entre formações sociais e discursivas, encontrou, há muito, espaço na proposta
semiótica (BARROS, 1988, p.5-6).
Como é possível perceber, não se trata de fazer uma comparação entre a Semiótica e a
Teoria da Enunciação, mas de registrar que a Teoria Semiótica não previu uma noção teórica que
permitisse ao analista perscrutar o contexto externo imediato dos textos em análise. São os
semioticistas que, ao tomarem como objeto de análise textos não-ficcionais, sentiram a necessidade
teórica de preencher esta lacuna que dificultaria, em muito, o seu trabalho com textos que
estabelecem uma relação explícita com o contexto extralingüístico. Para tanto, Barros, no trabalho
de 1988, lança mão de alguns saberes da Teoria da Enunciação, como sua noção de contexto
situacional, para proceder à análise do percurso gerativo do sentido em textos não-ficcionais18. Ou
seja: estamos face, neste ponto, a um empréstimo teórico.19
Ainda segundo Barros (1990), um texto define-se de duas formas complementares:
inicialmente, pela estruturação que faz dele um “todo de sentido”, e que pode ser examinado em
suas relações internas, para explicar o plano de seu conteúdo. E, em segundo lugar, como um objeto
de comunicação que se estabelece entre um destinador e um destinatário e, neste sentido, sua
análise é externa. Ou seja, para Barros “o texto só existe quando concebido na dualidade que o
define – objeto de significação e objeto de comunicação – e, dessa forma, o estudo do texto ...só
pode ser entrevisto como o exame tanto dos mecanismos internos quanto dos fatores contextuais”
(BARROS, 1990, p.7-8).
Como foi possível perceber através das diferentes etapas do percurso gerativo do sentido,
como formulado pela teoria greimasiana e descrito mais acima, as relações com a exterioridade não
estão previstas como um aspecto a ser considerado no momento da análise. Ou seja: a semiótica
francesa, em sua formulação básica, fica circunscrita, em sua atuação, pelos contornos internos do
texto, do qual examina o plano do conteúdo, visando a apreender como um texto faz para produzir
sentido. Mesmo quando, como vimos mais acima, a semiótica se aproxima da teoria da enunciação
para, através dela, trabalhar a noção de sujeito, ao transpor esta noção para o seu quadro teórico, ele
é construído enquanto um simulacro do sujeito e não para trabalhar com o sujeito propriamente dito.
Passemos, agora, à última concepção teórica que nos propusemos analisar nesta trajetória em
busca do texto.

6. A categoria texto através do filtro teórico da Análise do Discurso


Antes de iniciar esta seção, é preciso fazer um esclarecimento: nos dias de hoje, falar de
Análise do Discurso não é muito esclarecedor, tal a profusão de vertentes teóricas que assim são

18
O texto de onde esta citação foi extraída analisa textos de vestibulandos.
19
Também Fiorin dedicou-se fortemente às relações entre a Semiótica e o aparato formal da enunciação em seu livro
intitulado As astúcias da Enunciação (1996), onde trabalhou fortemente as categorias de pessoa, espaço e tempo.
designadas. É preciso explicitar, pois, qual Análise do Discurso está sendo referida neste ensaio.
Então, adianto que, quando falo em Análise do Discurso, refiro-me à Análise do Discurso tal como
foi proposta por Pêcheux e seu grupo e tal como tem sido praticada por Eni Orlandi e os
pesquisadores por ela formados, os quais, hoje, podem ser entendidos como membros do campo
brasileiro da Análise de Discurso (ORLANDI, 2003)20.
As inquietações dos estudiosos da linguagem, como disse no início deste ensaio, provocaram
respostas diferentes, duas das quais foram examinadas nas duas seções anteriores. Mas, as perguntas
referentes ao sentido, à significação, ao contexto e ao sujeito não foram respondidas unicamente
pela Teoria da Enunciação ou pela Semiótica, nem de uma única maneira. A Análise do Discurso
também produziu respostas que não se superpõem àquelas dadas pelas duas teorias anteriores, pois,
para responder aos questionamentos em questão, realizou uma reflexão bastante interessante e
original que ultrapassa aquelas questões iniciais, associando-as às noções de sujeito, autor, leitor,
condições de produção, ideologia, sentido e historicidade, entre outras. Nesta seção, vou fazer um
recorte na teoria, destacando, para os propósitos deste ensaio, algumas noções que conduzam a
reflexão para a categoria texto, neste enquadramento teórico.
A questão do texto está na origem da fundação da Análise do Discurso e surge de forma
inaugural no âmbito da lingüística distribucional, tal como praticada por Harris. Este autor, em
1963, em seu texto, hoje já clássico, Discourse Analysis, faz duas sugestões bastante importantes. A
primeira propõe que a lingüística trabalhe para além dos limites de uma única frase, utilizando, para
tanto, a metodologia distribucional já empregada para descrever frases. Mais precisamente, ele
afirma que se trata de um “método de análise de um enunciado contínuo (escrito ou oral)” que ele
chamará de discurso (HARRIS, op. cit. p. 8; a tradução é minha, a partir da tradução francesa)
Como se vê, as respostas de Harris às inquietações que estamos examinando são de ordem
lingüística e sua hipótese é que seja possível estudar a distribuição das frases e sub-frases em um
texto. A segunda sugestão propõe que tais estudos sejam feitos, levando em consideração as
“relações entre a cultura e a língua (isto é, entre o comportamento não-verbal e o verbal”) (id., ib.,
p.9; a tradução é minha, a partir da tradução francesa).
Numa primeira visada, a concepção de texto que se depreende do exposto acima não diverge
muito daquela que possuíam os praticantes da gramática transfrástica; o que de fato distingue os
lingüistas textuais da proposta de Harris é a abordagem que, para ele, é de natureza distribucional.
Mas, num segundo momento, passa-se a perceber que a diferença entre a lingüística transfrástica e a
abordagem distribucional do texto vai mais além, pois, deste logo, Harris não separa o texto de seu
contexto, ao vincular a língua à cultura. Ou seja: as reflexões harrisianas dão uma especificidade à
categoria texto que, de plano, esta se distingue daquela formulada pela lingüística textual, mais ou
menos na mesma época. E Harris vai mais além, pois entende que “a gramática expõe a estrutura
das frases; o locutor constrói cada frase particular de acordo com esta estrutura e produz sua
própria seqüência de frases” (id., ib.,p. 9). Ou seja: Harris convoca, para a reflexão sobre a
constituição do texto, uma concepção bastante diversa de língua, não apenas porque para ele são
importantes as relações da língua com a cultura, mas também porque
a língua não se constitui de palavras ou de frases independentes, mas em discurso contínuo, seja
ele um enunciado constituído de apenas uma palavra, ou uma obra de dez volumes, um
monólogo ou uma discussão política (id., ib., p. 10-11; a tradução é minha a partir da tradução
francesa).
Como se vê, Harris concebe uma língua diversa da língua sistêmica, língua esta que convoca
um contexto sócio-cultural, mobiliza um locutor e trabalha com um objeto que ultrapassa os limites
da frase. Vale dizer: distingue-se da Lingüística Textual em três pontos essenciais, a saber, a língua
não está enclausurada no interior do sistema; a língua precisa relacionar-se com o contexto cultural

20
Neste texto, Orlandi vai discutir a diversidade da Análise do Discurso e o modo como os estudos que se desenvolvem
no Brasil, hoje, estabelecem relações de filiação com a Análise de Discurso fundada por Michel Pêcheux. É a esta
filiação e a sua especificidade que me refiro quando aponto para o campo brasileiro da Análise do Discurso.
e o faz pelo viés do locutor que produz as seqüências de frases. Assim, Harris concebe o texto como
uma categoria que apresenta características que vão se fazer presentes na teoria do discurso, que
surgiria em 1969, ano em que o texto de Harris foi traduzido para o francês.
Quando Pêcheux (1969) começa a formular sua teoria para uma Análise do Discurso, ele toma
Discourse Analysis como um texto fundador e o faz justamente porque Harris vinculou sua reflexão
sobre o discurso à língua e ao contexto sócio-cultural em que este é praticado.
E, para melhor entendermos as relações entre interior e exterior da língua, no que diz respeito
a esta área do conhecimento, vale citar uma distinção formulada por Guespin:
Um olhar lançado sobre um texto, do ponto de vista de sua estruturação em “língua” faz dele um
enunciado; um estudo lingüístico das condições de produção deste texto o transforma em um
discurso (GUESPIN, 1976, p. 4; a tradução é minha e os destaques também).
Nesta perspectiva pensa-se o texto como uma unidade de análise, afetada pelas condições de
sua produção. É interessante, já nesse passo, buscar contrastar, a partir desta citação de Guespin, a
concepção de texto da Análise do Discurso com as duas anteriormente analisadas.
Quando Guespin afirma que “um olhar lançado sobre um texto, do ponto de vista de sua
estruturação em ´língua’, faz dele um enunciado”, estamos diante de um olhar que considera as
relações formais, sintáticas, que são internas ao texto e que o tecem enquanto um encadeamento
lingüístico. Esta é a tarefa central que a Lingüística Textual elegeu para o seu fazer. Já quando
Guespin sinaliza que o “estudo lingüístico das condições de produção deste texto o transforma em
um discurso”, ele mostra o ponto de disjunção obrigada que se estabelece entre a Lingüística
Textual e a Análise do Discurso, por um lado, e a Teoria da Enunciação e a Análise do Discurso,
por outro lado. E o divisor de águas é instaurado pela consideração obrigatória das condições de
produção, por parte da Teoria da Análise do Discurso.
Considerar as condições de produção consiste, em primeiro lugar, ultrapassar os elementos
internos ao texto propriamente dito. Para a Lingüística Textual, como vimos anteriormente,
contexto é o que precede e o que segue cada elemento do texto. Assim, podemos acrescentar que o
contexto, nessa teoria, coincide com o próprio texto, de modo que, para distinguir este tipo de
contexto dos demais que aqui estão sendo examinados, pode-se entender o contexto considerado
pela Lingüística Textual como um co-texto, isto é, aquilo que comparece, que se encontra presente
no próprio texto. Nessa perspectiva teórica, a exterioridade é secundária, não é entendida como
constitutiva do texto propriamente dito, conforme explicitei na seção dedicada à Lingüística
Textual, mais acima.
Também sublinhei que a Semiótica tem a mesma postura da Lingüística Textual no que tange
ao contexto. Para esta teoria, o contexto é constituído pelo próprio texto, ou, como disse Greimas,
fora do texto não há salvação. Assinalei, também, que alguns semioticistas são conduzidos,
metodologicamente, a buscar em outras teorias alguma noção capaz de dar conta desta lacuna e,
então, mobilizam a noção de contexto situacional, proveniente da Teoria da Enunciação. Mas isto
não modifica o modelo, apenas mostra o caminho de alguns estudiosos que se inscrevem nesse
quadro teórico.
Já no que diz respeito à Teoria da Enunciação, sabe-se que esta teoria ultrapassa o contexto
lingüístico e convoca a exterioridade. Então a pergunta que cabe neste ponto é: se tanto a Teoria da
Enunciação quanto a Análise do Discurso convocam a exterioridade, em que elas se distinguem?
Para responder esta pergunta, é preciso entender em que consiste a exterioridade para uma e para
outra.
Para a Teoria da Enunciação, conforme foi apontado na seção anterior, a exterioridade
consiste em mobilizar os interlocutores e o contexto de situação (o aqui e o agora) através do qual
eles se relacionam em seu ato de enunciação. Já para a Análise do Discurso, mobilizar a
exterioridade consiste também em ultrapassar os limites do texto e convocar o contexto, mas aqui
iniciam as diferenças: o contexto considerado não é mais o situacional, mas o sócio-histórico. Neste
contexto, se inscrevem os interlocutores, mas eles também são diferentes dos interlocutores da
Teoria da Enunciação. Enquanto os interlocutores da Teoria da Enunciação são indivíduos, os
interlocutores da Análise do Discurso são sujeitos historicamente determinados, em outras palavras,
interpelados pela ideologia. Por conseguinte, as condições de produção de um texto relacionam este
texto a sujeitos históricos, que se identificam com uma Formação Discursiva, e estão inscritos em
lugares sociais, construídos ideologicamente. Vale dizer: as condições de produção são de natureza
sócio-históricas. Dito em outras palavras: ao passar da teoria da Enunciação para a Análise do
Discurso, passa-se do indivíduo para o sujeito social; desliza-se de um indivíduo dotado de
estratégias discursivas, que deixa instruções inscritas no enunciado, as quais devem ser seguidas
pelo interlocutor para proceder à interpretação, para um sujeito afetado pelo inconsciente e
identificado com uma ideologia e estes dois processos regem seu dizer; passa-se de um sujeito que é
centrado e origem de seu dizer para um sujeito descentrado que age sob a ilusão de estar na origem
de seu dizer, mas que, de fato, precisa imergir no interdiscurso para poder dizer, pois aí reside o
repetível, a memória discursiva que lhe permite dizer. Ou seja: para o sujeito da Análise do
Discurso, imergir no interdiscurso é a condição necessária para poder dizer, para poder produzir seu
texto. Esta é a natureza da exterioridade e do que se chama de condições de produção. São estas
propriedades que permitem distinguir a noção de exterioridade nestas duas concepções teóricas a
qual repercute na concepção de contexto e de texto nos dois aparelhos teóricos em comparação21.
E a exterioridade para a Análise do Discurso vai além. Para tanto, pode-se pensar o texto
como um espaço discursivo, não fechado em si mesmo, pois ele estabelece relações não só com o
contexto, mas também com outros textos e com outros discursos, o que nos permite afirmar que o
fechamento de um texto, considerado nessa perspectiva teórica, é a um só tempo simbólico e
indispensável. Nessa concepção, o texto não se fecha em si mesmo, pois faz parte de sua
constituição uma série de outros fatores, tais como relações contextuais, relações textuais, relações
intertextuais, e relações interdiscursivas22, que passo a descrever, a seguir.
Passo brevemente pelas relações contextuais, porque já as examinei detidamente nos
parágrafos precedentes, ao abordar a noção de exterioridade. E o sentido do texto, nessa perspectiva
teórica e à luz de suas condições de produção, resulta da interlocução discursiva estabelecida entre
os sujeitos historicamente determinados. Dito de outro modo: o sentido do texto se estabelece, nesse
quadro teórico, no intervalo entre os sujeitos sociais relacionados pelo viés do texto. Ou seja: o
sentido não pertence, de direito, nem ao texto nem ao sujeito que o produziu, mas é resultado da
relação entre os sujeitos históricos envolvidos em sua produção/interpretação. É efeito de sentido
entre interlocutores socialmente constituídos (PECHEUX, 1969, p.82). Neste ensaio, entretanto,
estou enfocando apenas as relações que se estabelecem entre o sujeito-autor e o texto, pois meu
enfoque é o texto e não a leitura.23
As relações textuais são aquelas produzidas no interior do texto e são resultantes do
trabalho de textualização realizado pelo sujeito que se encontra no exercício da função-autor.
Entendo por textualização o trabalho de “costura” que o sujeito faz entre os diferentes recortes
discursivos (ORLANDI, 1983) trazidos do interdiscurso. Esta costura está na base da produção do
efeito-texto, um espaço discursivo organizado, simbolicamente fechado e ilusoriamente completo
(INDURSKY, 2001).
As relações intertextuais relacionam um texto com outros textos. Estamos aqui face ao que
já estamos habituados a nomear de intertextualidade. Entendo por intertextualidade a
retomada/releitura que um texto produz sobre outro texto, dele apropriando-se para transformá-lo
e/ou assimilá-lo. Dito de outra forma, o processo de intertextualidade lança o texto a uma origem

21
Nesse ponto da discussão, é preciso salientar que, no Brasil, Guimarães pratica uma Teoria da Enunciação que vai
além dos limites aqui apontados. Para Guimarães, a consideração do interdiscurso é essencial para pensar o sujeito e sua
enunciação. Para maiores esclarecimentos, ler Guimarães (1995a. e 1995b).
22
Estas relações já haviam sido por mim estudadas em 1989 e, posteriormente, em 2001.
23
Em outro trabalho meu (Indursky, 2001) busquei mostrar a relação entre texto, sujeito-autor e sujeito-leitor.
possível. Deslocando esta noção, que nasce na literatura, para a análise do discurso, a
intertextualidade aponta não apenas para o efeito de origem de um texto, mas também para outros
textos que ainda estão por surgir e que se inscrevem na mesma matriz de sentido. Refiro-me aqui às
escrituras, mas também às reescrituras e às paródias já produzidas e também àquelas que ainda
estão por ser produzidas e que, se o forem, estarão vinculadas a uma mesma família textual.
Já as relações interdiscursivas aproximam o texto de outros discursos, remetendo-o a redes
de formulações discursivas tais que já não é mais possível identificar com precisão, como no caso
anterior, a origem de um texto; não é mais possível distinguir o que foi produzido no texto e o que é
proveniente de outros discursos, do interdiscurso, visto que o discurso está disperso em uma
profusão descontínua e igualmente dispersa de textos, relacionando-se com formações discursivas
diversas, e mobilizando posições-sujeito igualmente diferentes. Ou seja: o interdiscurso é o lugar
onde residem múltiplos sentidos, produzidos por vozes anônimas que convivem no que Pêcheux
caracterizou como o non-sens. O non-sens das representações, afirma ele, se configura como o lugar
em que
o sujeito toma posição em relação a elas [as representações], aceitando-as ou rejeitando-as,
colocando-as em dúvida. Em suma, o sujeito se produz nesse não-sujeito constituído por um
amontoado de representações ´desprovidas de sentido´ (PÊCHEUX, 1988, p. 261-2; o destaque
é do autor)
É nesse movimento, na passagem do non-sens para o sentido, que o sujeito-autor se
inscreve na prática discursiva da autoria que o conduz à ilusória imposição de um sentido que, de
fato, se institui porque este sujeito-autor se faz sujeito ao identificar as representações trazidas do
interdiscurso aos sentidos possíveis no âmbito da FD com a qual se identifica. Este movimento de
apropriação, que culmina na atribuição de sentidos, determina a escrita, entendida como a
textualização destas diferentes cadeias discursivas.
Tal fazer conduz o sujeito-autor24 a estabelecer uma trama entre os diferentes recortes
discursivos, provenientes de diferentes textos, afetados por diversas Formações Discursivas e
diferentes posições-sujeito. O que está em jogo, aí, é o modo como o sujeito-autor “costura” e
organiza estes diferentes recortes, para que eles se tornem um texto. Ou seja: o sujeito-autor, neste
movimento, torna interno o que é externo por natureza. Como se vê, nessa concepção teórica,
produz-se um duplo jogo de relações que se instituem concomitantemente no movimento da
constituição do texto e que apontam para o modo como o sujeito-autor “costura” e internaliza as
cadeias discursivas provenientes da exterioridade para que produzam o efeito-texto. É em função
desse duplo jogo que decorre o entendimento de que as condições sócio-históricas de produção de
um texto são constitutivas das significações deste texto, diferentemente do que sucede na
Lingüística Textual, para a qual, como vimos anteriormente, tais fatores são secundários. E
diferentemente, também, da Semiótica para quem fora do texto não há salvação. A noção de sujeito
da Análise do Discurso também é diversa, pois enquanto para a Semiótica são mobilizados os
actantes, que funcionam como um simulacro do sujeito, na Análise do Discurso é mobilizado um
sujeito social que se inscreve em um lugar ideológico e, a partir dele, exerce a função-autor.
Creio que vale igualmente relembrar, neste ponto, o par coerção/liberdade de que tratou
Jakobson e que mobilizei mais de uma vez, neste ensaio. Se, para a Lingüística Textual, como
vimos, a coerção se constrói ao longo do texto, através das relações coesivas que decorrem das
retomadas e conexões que vão sendo tecidas pela sintaxe textual, para a Análise do Discurso a
coerção decorre da consideração obrigada das condições sócio-históricas que são constitutivas da
tessitura do texto. Ou seja: a ilusão de Jakobson, representada pelo par coerção/liberdade se desfaz
e, em seu lugar, fica apenas a coerção que se realiza e significa, no que concerne ao texto, em cada
quadro teórico, de uma forma diferenciada.

24
Orlandi e Guimarães (1988) formularam uma reflexão decisiva para pensar as questões do texto e do discurso.
A diferença que acabo de sublinhar permite-me apontar uma outra marca essencial que
distingue fortemente a Lingüística Textual da Análise do Discurso em suas considerações sobre o
que é texto. Como já vimos anteriormente, o conceito que permite à Lingüística Textual olhar para
o texto como uma trama dotada de unidade é a coesão e esta propriedade é tão forte que ela
imprime direção às pesquisas neste campo teórico, dirigindo-as fortemente para o que chamei mais
acima de sintaxe textual. Ou seja: os estudos do texto, neste quadro teórico, são da ordem do
formal, do sintático. Já as pesquisas no campo da Análise do Discurso não são movidas pela busca
de uma sintaxe textual. Neste quadro teórico, buscam-se as significações discursivas, que podem ser
apreendidas a partir da materialidade do texto, e que são afetadas por condições sócio-históricas de
significação. Em suma: a Lingüística Textual, ao examinar o texto, persegue uma sintaxe textual
que dê conta da superfície textual em análise. Já a Análise do Discurso, ao analisar um texto,
propõe-se um trabalho, cujo exame pode iniciar na materialidade textual, mas que precisa
necessariamente ultrapassar os limites do texto para alcançar o próprio discurso e seus processos de
significação e o próprio do discursivo, que são as relações que o texto mantém com o interdiscurso.
Poderíamos aproximar este fazer a uma semântica discursiva.
Nesse passo, cabe igualmente opor a Semiótica e a Análise do Discurso, pois ambas
apresentam aparentemente o mesmo objetivo: procuram dar conta do sentido de um texto. E ambas
afirmam que fazem Análise do Discurso. Cabe, então, procurar distinguir o tipo de análise de
discurso que praticam e o que buscam quando perseguem o sentido. Enquanto a Semiótica, ao tratar
do sentido, o faz ancorada no próprio texto, a Análise do Discurso toma o texto como a
materialidade que lhe dará acesso ao discurso a seus processos discursivos. A Semiótica busca
examinar o plano do conteúdo de um texto para, assim, descrever o modo como este conteúdo é
articulado no plano da expressão. A Análise do Discurso alcança o sentido de um texto quando o
relaciona às suas condições de produção, o que o remete à exterioridade. E o sentido, neste quadro
teórico, está ancorado às relações que o texto estabelece com a(s) Formação(ões) Discursiva(s) que
o afetam. O texto, para a Semiótica, está circunscrito aos diferentes tipos de relações que, em seu
interior, se estabelecem. O texto, em Análise do Discurso, está totalmente atravessado pelo
interdiscurso. Enfim, a Semiótica faz uma abordagem bastante formal do sentido, seguindo um
modelo previamente bem definido. Já a Análise do Discurso faz uma abordagem totalmente
interpretativa do sentido, não obedecendo a nenhum modelo prévio.
Fechando esta série de contrapontos realizados acima, voltemos à concepção de texto no
âmbito da Análise do Discurso. Com base em tudo o que precede, não é possível pensar o texto
como uma instância enunciativa homogênea. Um texto, em que diferentes contextos, textos,
intertextos são mobilizados, está fortemente atravessado por diferentes subjetividades que nele
fazem ressoar diferentes sentidos inscritos em diferentes formações discursivas. Por conseguinte,
ele só pode ser pensado como um espaço discursivo heterogêneo e simbolicamente fechado pelo
trabalho discursivo do sujeito-autor: ao costurar e organizar os recortes heterogêneos, dispersos e
provenientes de diferentes cadeias discursivas, é produzida a textualização desses elementos, a qual
é responsável pelo efeito de apagamento das marcas de sua procedência, de sua
exterioridade/heterogeneidade/dispersão. Ou seja: ao se constituir, o texto surge como origem. Este
é seu efeito e este efeito resulta da ilusão necessária e indispensável que tem o sujeito-autor de se
perceber como origem do texto.
Esse trabalho discursivo de textualização25, em minha perspectiva, quando bem sucedido, é
o responsável pelo efeito de textualidade26, do qual decorre um outro que lhe é contemporâneo, o

25
A noção de textualização foi introduzida na Análise do Discurso por Solange Gallo em sua tese de doutorado (1994),
referida em nota anterior. Para a autora, quando o autor preenche os espaços cambiáveis deixados em branco no texto,
indicando a hora e o espaço de determinado evento, contextualizando-o e tornando “pública” sua produção, dá-se a
textualização do texto, produzindo o seu fechamento.
26
Chamo de efeito de textualidade para não confundir com a noção de textualidade, entendida como qualidade do texto,
tal como foi formulada pela Lingüística Textual. Para esse campo do conhecimento, a textualidade é decorrência da
coesão e da coerência de um texto, ou seja, é uma qualidade textual que deriva de seu modo interno de organização.
efeito de homogeneidade do texto27. É esse efeito que possibilita ao sujeito-autor se constituir e é
ele que o coloca na função enunciativa da autoria de um texto.
Acrescente-se ainda que, além de apresentar-se como se fosse um texto que está na origem
de seu autor, apagados os vestígios de sua interdiscursividade e demarcando-se de todos os outros
textos, esse efeito-texto traz consigo outra característica. Ele se apresenta, como diz Orlandi
(1995;1996) como “uma peça de linguagem” dotada de completude 28. Ou seja, o efeito-texto
resulta da ilusão de que tudo o que devia ser dito foi dito, nada faltando e nada sobrando. Assim, ele
se apresenta ilusoriamente dotado de começo, meio e fim. O efeito-texto apresenta-se, desse modo,
como uma peça de linguagem completa, acabada, fechada. E o sujeito-autor necessita destas duas
ilusões – completude e fechamento - tanto para dizer como para concluir seu dizer. Em suma: o
texto, para a Análise do Discurso, é um efeito-texto, espaço discursivo, dotado ilusoriamente de
homogeneidade e completude, sendo seu fechamento da ordem do simbólico.

7. Produzindo um efeito de conclusão


Todo trabalho que inicia precisa necessariamente terminar e é chegada a hora de colocar um
“ponto final” nesse ensaio. Mas, como aprendi com Gallo (1994), o ponto final apenas produz o
efeito-fecho, sem o qual não é possível produzir a ilusão, necessária para o sujeito-autor, de
conclusão, que funciona na verdade como um “efeito de conclusão”.
Mas, para que este efeito-fecho se produza, é preciso tecer algumas considerações sobre este
ensaio. E a consideração que mais me interessa aqui é reafirmar explicitamente o que disse de
forma implícita ao longo deste ensaio: é só no espaço da diferença teórica que é possível tentar
recompor a longa trajetória dos estudos textuais no âmbito dos estudos da linguagem. E me explico:
trabalhar na diferença teórica conduz inevitavelmente a tecer um contraponto entre diferentes
perspectivas teóricas que tomam o texto como categoria teórica de reflexão. Só assim é possível ver
as diferenças, os avanços e os limites de cada teoria para estudar/compreender o objeto texto.
Não fui movida, em nenhum momento, pela busca do melhor e/ou do pior modelo ou da
concepção mais correta. Não estou pretendendo uma neutralidade teórica porque sei perfeitamente
bem que isto não existe. Sou teoricamente posicionada. Mas meu objetivo é outro neste ensaio.
Busquei fazer uma espécie de reconstituição da trajetória dos estudos textuais e selecionei, para
tanto, quatro perspectivas teóricas para nelas apoiar este meu gesto de reconstituição. A seleção
destas quatro perspectivas obedeceu ao seguinte critério: acompanhar o processo que vai de um
contexto mais estrito a um contexto mais amplo. Para tanto, iniciei pela Lingüística Textual, cujo
contexto é o co-texto, que é da ordem do lingüístico. A seguir, passei para a Teoria da Enunciação
que associa o contexto lingüístico ao contexto situacional. Após, acompanhei a Teoria Semiótica,
cujo contexto restringe-se ao próprio texto e onde foi possível observar que, face a certas situações,
os semioticistas mobilizam saberes da Teoria da Enunciação, entre eles, sua noção de contexto
situacional. Por fim, tomei a Análise do Discurso que considera o contexto sócio-histórico como
constitutivo do texto. Como se vê, quatro tipos diferentes de contexto para as quatro teorias
mobilizadas, que vão, a cada quadro teórico, tomando mais amplitude e, por conseguinte, alterando
profundamente o modo de considerar o objeto de observação, o texto. É só no contraponto, pois,

Enquanto o efeito de textualidade, por mim proposto (Indursky, 2001) vai muito além da organização lingüística interna
do texto, embora passe por ela também. O efeito de textualidade é uma qualidade discursiva que deriva da inserção e
textualização de recortes discursivos provenientes de outros textos, de outros discursos, enfim, do interdiscurso. É um
trabalho do discurso sobre o discurso, do sentido sobre os sentidos.
27
No momento em que os recortes discursivos são textualizados no texto, eles parecem ali ter sido produzidos e ali
encontram-se de forma tão natural que produzem o efeito de homogeneidade (Indursky, 2001). Ou seja, essa
homogeneidade textual é uma ilusão discursiva resultante do trabalho discursivo de textualização, tal como estou
propondo esta noção.
28
Orlandi (1983) trabalha essas duas dimensões do texto: a completude e a incompletude, bem como opõe, a partir
destas duas propriedades do texto, outras duas noções, a de texto e a de discurso, que no âmbito da Análise do Discurso
não se confundem.
que é possível perceber, em toda sua extensão, as diferenças e os limites de cada teoria para abordar
o texto e sobre ele refletir, no âmbito dos estudos da linguagem. Este foi o meu móvel. Para tanto,
fiz um recorte no interior de cada teoria, nela selecionando os conceitos que cada quadro teórico
formulou e/ou mobilizou para tratar da categoria texto.

PONTOS A RETER
Para melhor visualizar o contraponto feito entre os diferentes aparatos teóricos mobilizados
para analisar a categoria texto, ao longo deste ensaio, elaborei um quadro-síntese.

Linguística Teoria da Semiótica Análise do Discurso


Textual Enunciação
Texto Unidade formal: Texto: Objeto semiótico Unidade significativa
início, meio e fim equivalente ao linguístico e não- Efeito-texto: objeto dotado de
enunciado lingüístico completude: começo, meio e fim
Texto: objeto não-acabado, aberto à
exterioridade.
Relações com a intertextualidade e
a interdiscursividade
Objeto heterogêneo
Textualidade Coesão / Coerência Coesão e Textualização: junção Textualização: tessitura dos recortes
Consistência do plano do conteúdo e das cadeias discursivas, efeito de
com o plano da efeito de efeito de textualidade:
expressão efeito de homogeneidade
Historicidade   - Trabalho dos sentidos no texto
Relações Internas Internas e Internas Textuais
Textuais contextuais Contextuais
Intertextuais
Interdiscursivas
Contexto Lingüístico Situacional Lingüístico Sócio-histórico
(Co-texto) (aqui/agora)
Sujeito  Locutor/ Sujeito do discurso: Posição-sujeito inscrita em uma FD
Interlocutor representação da (sujeito atravessado pelo
instância do sujeito do inconsciente e interpelado pela
discurso: actantes ideologia)
Funções enunciativas do sujeito:
função- autor, efeito-autor, autoria
Sentido Sentido dado pelo Sentido Construção do Sentido intervalar: efeito de
texto construído percurso gerativo do sentidoentre o sujeito-autor e o
pelos sentido sujeito-leitor mediado pelo texto
interlocutores
Texto / Texto/discurso: Texto/ Texto/ Texto: a materialidade do discurso
Discurso equivalentes enunciado/ Discurso:
discurso: equivalentes;
equivalentes Texto: Representação
semântica do discurso
Uma unidade que
deve ser manifestada
por alguma semiótica

Este quadro-síntese não introduz nenhuma nova formulação, não avança nenhum novo
argumento, nem formula nenhuma nova noção. Sua função é apenas de permitir a visualização da
discussão que foi feita ao longo deste ensaio. De fato, pretende mostrar quais as noções que foram
usadas para contrastar a categoria texto e, deste modo, tornar mais perceptível as especificidades e
os limites das teorias que foram contrastadas.
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