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Jornal de Estudos Espíritas 3, 010207 (2015) - (8 pgs.) Volume 3 – 2015

Allan Kardec, a ciência e o racismo


Adolfo de Mendonça Junior1,a
1
Franca, SP.
e-mail: a adolfo.de.mendonca.jr@gmail.com
(Recebido em de 1 de Setembro de 2015, publicado em 04 de Outubro de 2015).
Artigo apresentado no 11o ENLIHPE, ocorrido nos dias 29 e 30 de Agosto de 2015, em São Paulo, SP.

R ESUMO
O presente artigo tem como objetivo analisar a construção dos conceitos de raça, racialismo e racismo; fazer um de-
bate acerca dos termos selvagem, primitivo e civilizado e investigar se Allan Kardec, o codificador do espiritismo,
foi influenciado pelos fundamentos do racismo científico. Para tanto, vamos estudar o século XIX, no contexto
europeu que vivenciava o positivismo, o evolucionismo, o darwinismo social, os avanços da segunda Revolução
Industrial e o imperialismo. Alguns pensadores como Herbert Spencer, Darwin, Malthus, Galton e Gobineau, con-
temporâneos de Kardec, exerciam forte influência nos homens da ciência, norteavam políticas de Estado e serviam
para justificar práticas de dominação imperialista. Tais teorias foram a base científica do racismo. Os críticos de
Kardec apontam excertos em algumas de suas obras que seriam apócrifos ou contraditórios, para acusá-lo de ra-
cista. A metodologia utilizada é a análise bibliográfica, através da verificação e comparação de textos de livros e
artigos científicos. Com este trabalho, pretendemos responder às seguintes indagações: Allan Kardec teria sido
racista? Seu pensamento precisaria ser revisado?
Palavras-Chave: Allan Kardec; racismo; racismo científico.

I I NTRODUÇÃO II A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE


‘ RAÇA’
O presente artigo tem como objetivo analisar a cons-
trução dos conceitos de raça, racialismo e racismo; fazer O conceito de raça é um dos assuntos mais comple-
um debate acerca dos termos “selvagem”, “primitivo” e xos, não apenas na sociedade, mas na ciência. Não pos-
“civilizado”, e investigar se Allan Kardec, o codificador sui um único ponto de origem, não tem uma definição
do Espiritismo, foi influenciado pelos fundamentos do ra- homogênea e mesmo antes de ser relacionado a qualquer
cismo científico. conotação biológica, ele está associado a “um grupo de
O século XIX foi marcado pelo desenvolvimento pessoas conectadas por uma origem comum”. (BANTON,
do conhecimento científico. No contexto europeu 1994 apud PALÚ, 2011, p. 73). Atualmente, há um con-
vivenciava-se o positivismo, o evolucionismo, o darwi- senso entre antropólogos e geneticistas de que, do ponto
nismo social, os avanços da segunda Revolução Indus- de vista biológico, não existem raças humanas.
trial e o imperialismo. Teorias racialistas inspiradas em Na Idade Média, embora não houvesse descrições so-
fundamentos ditos “científicos” foram criadas e afetaram bre os semelhantes a partir da raça, havia estratégias
a mentalidade do Ocidente com demonstrações de into- etnocêntricas de inferiorização para justificar invasões e
lerância e violência, devido à crença da superioridade pilhagens, como foi o caso de judeus e muçulmanos, ou
de uma raça sobre a outra. O racismo ganhava status de africanos e indígenas.
científico. Na Idade Moderna, o termo “raça” apareceu nas Ci-
As teorias evolucionistas de alguns pensadores como ências Naturais. François Bernier usou o termo “raça” na
Herbert Spencer, Darwin, Malthus, Galton e Gobineau, França, no sentido moderno da palavra, em 1684, para
exerciam forte influência nos homens da ciência, nortea- classificar a diversidade humana em grupos e justificar as
vam políticas de Estado e serviam para justificar práticas relações de dominação e poder da nobreza em relação à
de dominação imperialista na Ásia, na África na América plebe.
Latina e Oceania, criando as condições para o aumento Para o autor Munanga (2004) etimologicamente, o
do preconceito contra os povos desses continentes. Tais conceito de raça veio do italiano razza, que por sua
teorias foram a base científica do racismo. As ideias do vez veio do latim ratio, que significa sorte, catego-
racismo científico impregnaram na sociedade, na cultura, ria, espécie. Na história das ciências naturais, o con-
na política, na filosofia, na religião e na literatura jurí- ceito de raça foi primeiramente usado na zoologia e
dica. na botânica para classificar as espécies animais e ve-
A metodologia utilizada é a análise bibliográfica, atra- getais. O autor ainda define que o conceito de raça
é morfobiológico e o da etnia é sociocultural, o his-
vés da verificação e comparação de textos de livros e ar-
tórico e o psicológico descrevendo como exemplo que
tigos científicos. Com este trabalho, pretendemos res- um conjunto populacional dito raça “branca”, “ne-
ponder às seguintes indagações: Allan Kardec teria sido gra” e “amarela”, pode conter em seu seio diversas
racista? Seu pensamento precisaria ser revisado? etnias. (OLIVEIRA, 2012, p. 22).

Seção 02: Artigos Regulares 010207 – 1 Autor(es)


c
Allan Kardec, a ciência e o racismo

O biólogo Carolus Linnaeus ou Car Von Linné, conhe- uma construção conceitual da academia, raça é um termo
cido no Brasil como Lineu, fez uma divisão classificatória assumido pelo senso comum, mesmo com a contestação
da humanidade em quatro grandes grupos: africano, da ciência. O termo raça ainda persiste fundamentado
americano, asiático e europeu. Apesar de Lineu ter feito por ideologias racistas ou por movimentos sociais na de-
a divisão da humanidade, quem aplicou essa classificação fesa dos direitos dos marginalizados e excluídos
foi George Louis Leclerc, o Conde de Buffon, quem utili-
zou o termo “raça”, aos seres humanos.
No século XVIII, a cor da pele foi considerada o cri-
tério fundamental entre as raças, ficando a espécie hu- III R ACIALISMO NÃO É RACISMO
mana dividida em três raças: amarela, branca e negra. A
preocupação da biologia em classificar as espécies serviu Racismo2 designa comportamento discriminatório de
para os naturalistas utilizarem o termo como critério de um indivíduo ou grupo de indivíduos contra um ou mais
classificação para hierarquizar as raças, através da com- indivíduos pertencentes ao um grupo racial diferente, e
posição biológica e de qualidades culturais, intelectuais, racialismo, ou “racismo científico”, corresponde às diver-
morais e psicológicas. sas doutrinas sob a temática racial.
No século XIX, acrescentou-se ao critério da cor ou- O racialismo é uma filosofia biológica, cultural e so-
tros critérios morfológicos como a forma do ângulo fa- cial. É uma atitude e um sistema social que propôs, entre
cial, do crânio, dos lábios, do nariz, do queixo, etc., para o final do século XVIII e meados do século XIX, a exis-
aperfeiçoar a classificação e as características culturais, tência, o respeito e a preservação de todas as raças em
intelectuais, morais e psicológicas de determinadas raças. voga. Ele é a “teoria científica das raças humanas”, ou
Foi o naturalista francês Georges Cuvier (1769-1832), das diferenças raciais. Segundo essa teoria, existem di-
pesquisador produtivo e influente, que introduziu no versas raças que constituem toda a espécie humana, ne-
meio científico o termo raça e a classificação dos ne- nhuma superior à outra, apenas diferentes umas das ou-
gros como raça inferior. Os negros podiam ser ob- tras. Esta filosofia acredita que todas as raças possuem
servados somente nas tribos primitivas da África ou diferenças relevantes entre si que podem ser verificadas
entre os escravos trazidos para as Américas. Nos re- nas diferenças culturais, econômicas e políticas, e que es-
latos dos observadores, eram evidentes e indiscutíveis sas diferenças devem ser mantidas para que cada raça não
as diferenças entre a civilização moderna e culta da perca a sua identidade. O racialismo é a base considerada
Europa e os hábitos, costumes e limites culturais e “científica” do racismo.
tecnológicos dos povos africanos. Desse modo, o con-
ceito de raça e a superioridade da caucasiana passa-
ram a ser aceitos pela totalidade dos pesquisadores
europeus. (FIGUEIREDO, 2005, p. 34). As doutrinas racialistas têm três pressupostos: 1)
os homens se diferenciam em grandes grupos chama-
Em meados do século XIX, o conceito de raça mi- dos raças, os quais possuem certa unidade física, que
grou das Ciências Naturais e alcançou as Ciências Soci- lhes confere determinadas características psicológicas
ais. Herbert Spencer pode ser considerado o fundador do e culturais; 2) o predomínio do grupo sobre o indiví-
racismo científico, a partir de seus estudos sobre o evo- duo (isso significa supor que o comportamento do in-
divíduo é determinado, em grande medida, pelo grupo
lucionismo social, onde criou a noção de ‘diferenças en-
racial ao qual ele pertence); 3) as ‘raças’ não seriam
tre povos e as sociedades’. Outros teóricos corroboraram apenas diferentes, mas também desiguais. (TODO-
com suas ideias como Conde Gobineu, Francis Galton e ROV, 1993, p. 206).
Thomas Malthus.
A partir da década de 40 do século XX, o conceito
de raça ficou marcado não por suas referências à aparên- O conceito de racismo surgiu na segunda década do
cia física e sim, por uma maior ênfase à cultura, razão século XX. Ele não tem fundamentos “científicos”, di-
pela qual alguns sociólogos descartam completamente o ferente do racialismo, cuja teoria pode implicar ou não
conceito de “raça” em favor de “etnia”1 . As hierarquias em comportamentos racistas. Neste artigo, adotaremos
raciais que dividiam o mundo em raças superiores e in- a distinção entre “racismo” e “racialismo”, a partir das
feriores, aos poucos, foram sendo desafiadas por teorias referências utilizadas pelo historiador Teveztan Todorov.
antropológicas que enfatizavam a importância da cultura
na compreensão das especificidades grupais.
No final do século XX, a biologia cada vez mais aderia A palavra “racismo”, em sua acepção corrente, de-
à hipótese de que não existem raças na espécie humana. signa dois domínios muito diferentes da realidade:
A genética derrubava a crença de que se pode definir ge- trata-se, de um lado, de um comportamento, feito,
neticamente as diferenças raciais na humanidade. o mais das vezes, de ódio e desprezo com respeito
Hoje, o conceito de raça se aproxima do conceito de a pessoas com características físicas bem definidas e
etnia, com uma diferença significativa: enquanto etnia é diferentes das nossas; e, por outro lado, de uma ideo-
1 A palavra Etnia está associada a “aparência física, língua, nacionalidade, parentesco, religião e território compartilhado.” (Cf. SANTOS

et al., 2010). O conceito de etnia ganhou espaço nas Ciências Sociais com a partir das críticas ao conceito de raça.
2 O racismo foi criado por volta de 1920, enquanto conceito e realidade, e foi objeto de diversas leituras e interpretações.

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Junior, A. M.

logia, de uma doutrina referente às raças humanas. seres vivos. Sua pesquisa chamou a atenção de Darwin
As duas não precisam estar necessariamente presentes
para a ideia de “sobrevivência dos mais aptos”.
ao mesmo tempo. O racista comum não é um teórico,
não é capaz de justificar seu comportamento com ar-
gumentos “científicos”; e, reciprocamente, o ideólogo Charles Darwin3 , autor da obra A origem das espécies
das raças não é necessariamente um “racista” no sen- (1859), explica a diversidade de espécies de seres através
tido corrente do termo, suas visões teóricas podem da seleção natural, ou seja, as espécies se adaptam ao
não ter qualquer influência sobre seus atos; ou sua meio natural, por meio de mutação. As espécies dão ori-
teoria pode não implicar na existência de raças in- gem a novas espécies, de modo que as espécies mais aptas
trinsecamente más. (TODOROV, 1993, p. 107). seriam as vencedoras e as outras seriam extintas. Embora
Darwin tenha tratado apenas de organismos “inferiores”,
Após a 2a Guerra Mundial, a UNESCO (Organização não humanos, a expressão “raças favorecidas na luta pela
das Nações Unidas para a Escola, a Ciência e a Cultura), vida” foi empregada por ele.
constituiu uma comissão de antropólogos, biólogos, etnó-
grafos e sociólogos, pesquisadores de vários países, para
estudarem o conceito de raça. Os resultados dos tra- Herbert Spencer criou antes de Darwin aquilo que
balhos desse grupo foram condensados na “Declaração posteriormente ficou conhecido como o “Darwinismo So-
Comum sobre a Raça e as Diferenças Raciais”, quando cial”, uma teoria da evolução humana. Segundo Spencer,
o mundo se refazia da catástrofe e do terror nazista. Foi o homem evoluía por meio de sua natureza hereditária,
nesta época, que o termo etnia surgiu como alternativa ou seja, ele preconizava a “sobrevivência dos mais ap-
para substituir o termo raça. tos”. Acreditava que os mais aptos continuariam a se
aperfeiçoar e que os menos aptos se tornariam mais in-
A Declaração da UNESCO afirmava que:
capazes. Dizia ele: “Todo o esforço da natureza é para
se livrar desses (incapazes) e criar espaço para os melho-
[...] O racismo engloba as ideologias racistas, as ati-
tudes fundadas nos preconceitos raciais, os compor- res [...]. Se eles não são suficientemente completos para
tamentos discriminatórios, as disposições estruturais viver, morrem, e é melhor que morram [...]. Toda im-
e as práticas institucionalizadas que provocam a de- perfeição deve desaparecer.” (BLACK, 2003, p. 54). O
sigualdade racial, assim como a falsa ideia de que darwinismo social defendia a ideia da existência de ca-
as relações discriminatórias entre grupos são moral e racterísticas biológicas e sociais que determinam a supe-
cientificamente justificáveis; manifesta-se por meio de rioridade de uns sobre outros. Com o darwinismo social,
disposições legislativas ou regulamentárias e práticas o conceito de raça transcendeu os problemas biológicos,
discriminatórias, assim como por meio de crenças e adentrando questões culturais e políticas. O darwinismo
atos antissociais; cria obstáculos ao desenvolvimento social é uma abordagem científica de comportamentos
de suas vítimas, perverte a quem o põe em prática,
humanos e do desenvolvimento das sociedades como pro-
divide as nações em seu próprio seio, constitui um
cessos de evolução biológico-racial.
obstáculo para a cooperação internacional e cria ten-
sões políticas entre os povos; é contrário aos princí-
pios fundamentais ao direito internacional e, por con- Joseph-Arthur de Gobineau, ou Conde de Gobineau,
seguinte, perturba gravemente a paz e a segurança escreveu em 1885, o Ensaio sobre a desigualdade das ra-
internacionais. (UNESCO, 1978). ças humanas: raça branca, amarela e negra. Ele defen-
dia a superioridade dos brancos em relação às outras ra-
ças. Em sua concepção, a “raça ariana”, supostamente
IV J USTIFICATIVAS CIENTÍFICAS DO RA -
mais pura, dominaria a inteligência. É atribuída a Go-
CISMO bineau a frase “Eu não acredito que viemos do macaco,
Thomas Malthus escreveu em 1798, o Ensaio Sobre mas creio que estamos indo nessa direção” (Cf. SCHI-
o Princípio da População. Ele afirmava que a relação AVONI, 1977). Os arianos seriam, no entender de Go-
entre a quantidade de habitantes no mundo era despro- bineau, os responsáveis por todo o progresso humano.
porcional à quantidade de alimentos e recursos naturais A ideia de Gobineau, de degeneração da raça provocada
disponíveis, de modo que o crescimento populacional se- pela miscigenação, revela um raciocínio “segundo o qual
ria muito mais intenso que a oferta de alimentos, ou seja, os europeus do Norte tinham atingido poder econômico
no futuro não haveria comida para todos. A consequência e político devido à hereditariedade e ao meio físico favo-
seria a fome e a miséria. Segundo Malthus, a população ráveis” (SKIDMORE, 1976, p. 44). Para Gobineau, o
cresceria de tal forma, que seria impossível gerar recur- maior entrave ao progresso seria a miscigenação racial,
sos de vida para todos, de modo que a pobreza seria o pois a mistura de raças constituiria um perigo à raça ari-
“fim inevitável do homem”. Ele acreditava na necessidade ana. Gobineau cunhou a primeira concepção de mundo
do controle populacional, para evitar o caos. Sua teoria racista “cientificamente fundamentada”. Ele é conside-
ficou conhecida como malthusianismo e foi a primeira te- rado o Pai do racismo moderno.
oria demográfica a relacionar crescimento populacional
com a fome. Para Malthus, a humanidade estava subme- Em 1883, sob influência das ideias de Darwin e Men-
tida às mesmas leis gerais que regem as outras espécies de del, Francis Galton criou a expressão “Eugenia”:
3 Inspirado nas teorias populacionais de Thomas Malthus.

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Allan Kardec, a ciência e o racismo

[...] o qual utilizou pela primeira vez na obra, Inqui- V R ACISMO E IMPERIALISMO
res Into Human Faculty and Development, de 1883
[Cf. BLACK (2003)]. Eugenia deriva do grego eu- O termo raça só começou a ser usado com um sentido
genes, boa origem (eu - boa, gene - origem). Nesta biológico entre o final do século XVIII e início do século
obra, conceitua eugenia como “ciência do melhora- XIX. Os naturalistas estabeleceram uma hierarquia entre
mento racial”, ou ainda “[...] ciência que trata de as raças, legitimando as ideias de superioridade de alguns
todos os influxos que melhoram as qualidades inatas grupos humanos sobre outros e encetaram justificativas
de uma raça; portanto, daquelas que desenvolvem as
para a dominação colonialista.
qualidades de forma mais vantajosa”. Para Galton, a
evolução da raça humana, segundo a seleção natural Assim, os indivíduos da raça “branca” foram decre-
das espécies, deveria ficar sob o controle do próprio tados coletivamente superiores aos da raça “negra e
homem, sendo que a reprodução humana deveria ser amarela” e, consequentemente, mais aptos para diri-
realizada com planejamento e não por simples impul- gir e dominar as outras raças, principalmente a negra,
sos instintivos. (TEODORO, 2005, p. 102,103). a mais escura de todas, consideradas, por isso, como
a mais estúpida, mais emocional, menos honesta, me-
Segundo Galton, a família e a sociedade poderiam ser nos inteligente e, portanto, a mais sujeita à escravi-
comparadas a um jardim, onde as “ervas daninhas” de- dão e a todas as formas de dominação. (MUNANGA,
veriam ser destruídas para o cultivo de “plantas úteis”. 2004, p. 22).
Para Galton, a inteligência dos homens de uma família
se transmite hereditariamente. Seu objetivo era o ca- No século XIX, em virtude do processo de industriali-
samento dos “bem-dotados biologicamente” como forma zação, a Europa passou a necessitar de algumas matérias-
de aperfeiçoamento social. A eugenia pretendia ofere- primas que não existiam em seu território, passando a ex-
cer uma seleção eficaz e rápida. Galton inspirou-se nas plorar novas áreas. As teorias racialistas, acompanhadas
descobertas de Gregor Mendel4 , o fundador da genética. do desenvolvimento tecnológico e industrial, justificaram
Ao comparar os resultados das pesquisas de Mendel, com a dominação imperialista europeia, ou seja, o racialismo
as suas, considerou necessário manter as “raças” puras. compôs a ideologia justificadora do imperialismo. Com
Para Galton, a capacidade humana varia em função da isso, observava-se, na Europa, uma corrida colonial, vi-
herança genética e não da educação. sando à África, Ásia e Oceania. Sobre a dominação im-
Assim, durante o final do século XIX, comparavam-se perialista, Arendt afirma que:
e contrastavam-se raças, etnias e costumes, fomentando-
[o] imperialismo teria exigido a invenção do racismo
se o racismo social que tão bem se ajustava à tendên- como única ‘explicação’ e justificativa de seus atos,
cia individualista da época. No século XX, com a evo- mesmo que nunca houvesse existido uma ideolo-
lução do pensamento científico e tecnológico, a biologia gia racista no mundo civilizado. Mas, como exis-
reclassificou o ser humano, na condição de “raça” única, tiu, o racismo recebeu considerável substância teó-
abolindo à conceituação de raças. rica. (ARENDT, 1989, apud PEREIRA, 2013, p.214).

Alguns biólogos antirracistas chegaram até sugerir


que o conceito de raça fosse banido dos dicionários e
VI C RÍTICAS AO PENSAMENTO DE A LLAN
dos textos científicos. No entanto o conceito persiste K ARDEC
tanto no uso popular como em trabalhos e estudos
Para entendermos qualquer processo histórico,
produzidos nas áreas de estudos sociais. Estes, em-
bora concordem, com as conclusões da atual biologia devemo-nos “despir” de nossos preconceitos, e nos ves-
humana sobre a inexistência científica da raça e a ino- tir de conceitos relativos ao contexto histórico a ser es-
peracionabilidade do próprio conceito, eles justificam tudado. Isto é, tentar compreender a sociedade numa
o uso do conceito como realidade social e política determinada época, e como ela entendia sua realidade.
considerando a raça como uma construção socioló- Se não tentarmos “sentir” o que acontecia, nosso traba-
gica e uma categoria social de dominação e de exclu- lho estará comprometido, pois o mesmo será deturpado
são. (MUNANGA, 2006, apud GONÇALVES, 2006, por nossos preconceitos e anacronismos.
p. 43). Os críticos de Allan Kardec, o codificador do Espiri-
tismo, apontam excertos em algumas de suas obras, como
Antropólogos, biólogos, filósofos, historiadores, médi- O Livro dos Espíritos, O Livro dos Médiuns, a Revista
cos, naturalistas, políticos, psicólogos, sociólogos, deba- Espírita, A Gênese e Obras Póstumas, que seriam apó-
teram amplamente, entre os séculos XIX e XX, os con- crifos ou contraditórios, para acusá-lo de racista.
ceitos de raça e racismo, e continuam a fazê-lo mesmo no No cap. V, de O Livro dos Espíritos, destacamos um
século XXI. Um exemplo recente é o polêmico debate so- trecho da pergunta 222: “Por que há selvagens e homens
bre o sistema de cotas raciais nas universidades públicas civilizados? Se tomardes uma criança hotentote5 recém-
brasileiras. nascida e a educardes nos nossos melhores liceus, fareis
dela algum dia um Laplace ou um Newton?” (KARDEC,
4 Em meados da década de 1860, Mendel cruzou pés de ervilhas amarelas com ervilhas verdes. Cada tipo de ervilha jamais havia sido

“cruzada” com outra de cor diferente. Foi o ponto de partida dos cruzamentos. Depois de “cruzar” as ervilhas, ele observou que todas as
ervilhas nascidas desse primeiro cruzamento eram amarelas, ou seja, o amarelo era o gene dominante.
5 Segundo o dicionário Aurélio “Povo da África Meridional (Namíbia)”.

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Junior, A. M.

1997a, p. 126). Para alguns, a própria pergunta demons- também afirma que o Espiritismo pode auxiliar o pro-
tra certo grau de racismo, pois supõe, segundo eles, que gresso “Destruindo os preconceitos de seitas, de castas e
se uma criança africana, que vive uma comunidade iso- de cor, ele ensina aos homens a grande solidariedade que
lada, ainda que estudasse nas melhores escolas, não teria deve uni-los como irmãos.” (KARDEC, 1997a, p. 312).
a possibilidade de alcançar o nível intelectual de um eru- Na pergunta 776 de O Livro dos Espíritos, Allan Kar-
dito europeu. Segundo seus contraditores, Allan Kardec dec faz um comentário sobre a diferença entre O estado
expressa ainda mais o seu racismo na resposta à essa per- natural e A lei natural, demonstrado uma proximidade
gunta, quando afirma: do Espiritismo com o evolucionismo e o progresso:

Em relação à sexta questão, dir-se-á, sem dúvida, que


o hotentote é de uma raça inferior; então pergunta- O estado natural é a infância da Humanidade e o
remos se o hotentote é um homem ou não. Se é um ponto de partida do seu desenvolvimento intelectual
homem, por que Deus o fez, à sua raça, deserdado e moral. O homem, sendo perfectível, e carregando
dos privilégios concedidos à raça caucásica? Se não em si o germe de seu aperfeiçoamento, não está desti-
é homem, por que procurar fazê-lo cristão? A Dou- nado a viver perpetuamente no estado natural, como
trina Espírita tem mais amplitude que tudo não está destinado a viver perpetuamente na infância.
isto. Segundo ela, não há várias espécies de O estado natural é transitório e o homem liberta-se
homens, há apenas homens cujos espíritos es- pelo progresso e pela civilização. A lei natural, ao
tão mais ou menos atrasados, mais suscetíveis contrário, rege a Humanidade inteira, e o homem se
de progresso; isto não está mais conforme a aperfeiçoa à medida que compreende melhor e pratica
justiça de Deus? [...] O homem que trabalhou melhor essa lei. (KARDEC, 1997a, p. 303).
toda a sua vida no seu aprimoramento está na
mesma posição daquele que permaneceu infe-
rior, não por sua culpa, mas porque não teve
Para Kardec, o Espiritismo avança em um campo
tempo, nem possibilidade de se aperfeiçoar? ainda não pesquisado pela ciência, o terreno da espiri-
[...] Essas questões poderiam ser multiplicadas tualidade, ou seja, seu objeto de estudo é o espírito ou
ao infinito, porque os problemas psicológicos e o mundo espiritual. Ele aproximou o Espiritismo da ci-
morais que não encontram solução, senão na ência e acercou-se dos eruditos da academia ao afirmar
pluralidade das existências, são inumeráveis; que:
limitamo-nos aos mais gerais. [...] (KARDEC,
1997a, p. 127, 128, grifo nosso).
A ciência, propriamente dita, tem por missão especial
Allan Kardec é terminante ao afirmar que “não há o estudo das leis da matéria. O Espiritismo tem por
objeto o estudo do elemento espiritual em suas re-
várias espécies de homens”, isto é, só existe uma espécie,
lações com o elemento material, e descobre, na união
a espécie humana. Ele usa o termo “selvagem” para de-
destes dois princípios, a razão de inumeráveis fatos
signar a existência de homens, cujas “almas” estão mais até agora inexplicados. O Espiritismo marcha de par
ou menos atrasadas, mas “todos” com capacidade para com a ciência, no terreno da matéria, admite todas
progredir. Para ele, as diferenças culturais, econômicas, as verdades, que a ciência demonstra, mas onde ter-
sociais, entre o hotentote e um caucasiano são explica- minam as investigações desta, ele começa as suas, no
das pela pluralidade das existências ou reencarnação, um terreno da espiritualidade. (KARDEC, 1985, p. 196,
dos pilares do Espiritismo. “Com a reencarnação desa- grifo do autor).
parecem os preconceitos de raça e de casta, pois o mesmo
Espírito pode renascer rico ou pobre, grande senhor ou
proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, ho- VII ATUALIZANDO O PENSAMENTO DE
mem ou mulher.” (KARDEC, 1985, p. 42). K ARDEC
Allan Kardec se refere às “almas selvagens” como Es-
píritos em evolução e com o tempo, com as sucessivas Para criticar uma obra faz-se mister estudar o todo,
reencarnações, atingirão o mesmo grau de progresso das ou o seu conjunto, e não apenas alguns fragmentos; par-
almas esclarecidas; portanto, ele não trata os “selvagens” tir do conhecido para o desconhecido. Vamos analisar
como raças inferiores. Como em sua época o conceito de alguns excertos de textos publicados na Revista Espírita,
racismo ainda não havia sido cunhado, ele não pode ser de Allan Kardec, com um discurso tido como racista por
assim considerado. parte de seus adversários.
Nas questões 114 a 127, de O Livro dos Espíritos, Na Revista Espírita de 1862, Kardec publicou o artigo
Allan Kardec tratou da evolução dos Espíritos. Ele tam- “Frenologia Espiritualista e Espírita: Perfectibilidade da
bém dedicou um capítulo6 desse livro para tratar da “Lei Raça Negra”, do qual destacamos:
de Progresso”, inserindo o Espiritismo no debate sobre
darwinismo social e evolução7 . Podemos dizer que para
Allan Kardec, todos os homens estão destinados ao pro- Assim, como organização física, os negros serão
gresso e que todas as almas chegarão à perfeição. Kardec sempre os mesmos; como Espíritos, trata-se,
6 Cap. VIII, das Leis Morais, Livro Terceiro, de O Livro dos Espíritos.
7O assunto também é tratado em outras obras de Kardec.

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Allan Kardec, a ciência e o racismo

sem dúvida, são uma raça inferiora , isto é, Nos excertos acima, Allan Kardec8 , influenciado por
primitiva; são verdadeiras crianças às quais muito
fatores históricos e culturais e pela corrente predominante
pouco se pode ensinar. Mas, por meio de cuidados
na ciência9 da época, que sugeria uma hierarquia das
inteligentes é sempre possível modificar certos hábi-
tos, certas tendências, o que já constitui um progresso raças, apresentou a ideia de evolução biológica da raça
que levarão para outra existência e que lhes permi- negra, que não era uma raça perfeita do ponto de vista
tirá, mais tarde, tomar um envoltório em melhores biológico. Pelo menos essa era a crença da maioria dos
condições. [...]. (KARDEC, 2007b, p. 150, 151, grifo intelectuais da academia, contemporâneos de Kardec.
nosso). No debate acerca do conceito de “selvagem” ou “pri-
a Nota do tradutor: Allan Kardec, por certo, está se
mitivo”, encontramos dois caminhos: um negativo e ou-
referindo aos Espíritos encarnados nas tribos incultas, sel- tro positivo. A palavra “selvagem” caracterizou culturas
vagens, então existentes em algumas regiões do planeta e povos considerados atrasados e inferiores. No séc. XX,
e que hoje, em contato com outros pólos de civilização, contrário a essas ideias, o antropólogo Lévi-Strauss colo-
vêm evoluindo progressivamente, como sói acontecer com cou no mesmo nível, os povos civilizados e as sociedades
as demais raças, seja qual for a coloração de sua pele.
“primitivas”. O “selvagem”, para Lévi-Strauss não era
O excerto abaixo, foi extraído do artigo “Teoria da mais atrasado ou inferior ao civilizado. “Outra Coisa que
Beleza”, publicado na Revista Espírita de 1869: Lévi-Strauss chama a atenção é que um povo primitivo
não é um povo atrasado ou retardado, [...] um
O negro pode ser belo para o negro, como um gato é
belo para um gato; mas, não é belo em sentido abso- povo primitivo não quer dizer que seja um povo
luto, porque seus traços grosseiros, seus lábios espes- sem história, mas que o desenvolvimento dessa
sos acusam a materialidade dos instintos; podem ex- história nos escapa.” (LINDOSO, 2008, p. 38, 39, grifo
primir as paixões violentas, mas não podem prestar- nosso).
se a evidenciar os delicados matizes do sentimento,
nem as modulações de um espírito finoa (KARDEC, São velhas e persistentes as teorias que atribuem ca-
2007e, p. 319). pacidades especíicas inatas a “raças” ou a outros gru-
pos humanos. Muita gente ainda acredita que os
a Na Revista Espírita, há uma nota do tradutor, onde
nórdicos são mais inteligentes que os negros; que os
ele aponta que Kardec foi influenciado pela ciência de alemães têm mais habilidade para mecânica; que os
sua época, principalmente por teorias racialistas como as
judeus são avarentos e negociantes; que os norte-
ideias de Gal e Lavater. Cf. KARDEC (2007e), p. 319,
320. americanos são empreendedores e interesseiros; que
os portugueses são muito trabalhadores e pouco inte-
No livro O Que É o Espiritismo, observamos a ligentes; que os japoneses são trabalhadores, traiçoei-
influência do evolucionismo social na obra de Kardec, da ros e cruéis; que os ciganos são nômades por instinto,
qual destacamos um trecho da questão 143; do item “O e, finalmente, que os brasileiros herdaram a preguiça
dos negros, a imprevidência dos índios e a luxúria dos
homem durante a vida terrena”; do cap. III, intitulado
portugueses. (LARAIA, 2005, p. 19).
“Solução de alguns problemas pela Doutrina Espírita”:
Como progridem e como degeneram os povos? Se a O termo “cultura” teve vários significados ao longo
alma é criada juntamente com o corpo, as dos ho- dos séculos. Por muito tempo ele foi posto de maneira
mens de hoje são tão novas, tão primitivas, como a equivocada e preconceituosa. Acreditava-se que havia po-
dos homens da Idade Média, e, desde então, pergunta- vos mais adiantados que outros e o modelo utilizado para
se por que têm elas costumes mais brandos e inte- comparação era o europeu. Outros povos eram conside-
ligência mais desenvolvida? Se na morte do corpo rados “selvagens”, principalmente as comunidades indí-
a alma deixa definitivamente a Terra, pergunta-se, genas e os povos africanos. Com a antropologia e a socio-
ainda, qual seria o fruto do trabalho feito para me-
logia contemporâneas, “cultura” passou a ter um sentido
lhoramento de um povo, se este tivesse de ser reco-
social. A cultura é um fenômeno característico de todos
meçado com as almas novas que diariamente chegam?
Os Espíritos encarnam em um meio simpático e em re- os povos. Não existe cultura inferior ou superior, existem
lação com o grau do seu adiantamento. Um chinês, culturas diferentes, portanto, não existe povo inferior ou
por exemplo, que progredisse suficientemente superior. Assim, todas as sociedades humanas ligam-se
e não encontrasse mais na sua raça um meio a uma cultura. “Cada cultura segue os seus próprios ca-
correspondente ao grau que atingiu, encarnará minhos em função dos diferentes eventos históricos que
entre um povo mais adiantado. [...]. OBSER- enfrentou.” (LARAIA, 2005, p. 34).
VAÇAO - Essas questões provocam outras que en- Allan Kardec, ao reafirmar o cunho científico do Es-
contram solução no mesmo princípio: por exemplo, piritismo, assim expressou “O Espiritismo marcha de
donde vem a diversidade de raças, na Terra? - Há ra- par com a ciência, no terreno da matéria, admite to-
ças rebeldes ao progresso? - A raça negra é suscetível
das as verdades, que a ciência demonstra [...]” (KAR-
de subir ao nível das raças europeias? - A escravidão é
útil ao progresso das raças inferiores? - Como se pode
DEC, 1985, p. 196). Kardec considera a ciência como
operar a transformação da Humanidade? [...]. (KAR- a única guardiã da verdade, nos estudos sobre a maté-
DEC, 1997b, p. 206, 207, grifo nosso). ria, ou do mundo material. Ele também afirmou que “O
8 Mesmo se referindo a povos que viviam isolados e que não foram aculturados.
9 Fortalecida pelo nascimento da frenologia e da antropometria, ciências que analisavam a capacidade humana com base no tamanho
dos cérebros dos diferentes povos.

J. Est. Esp. 3, 010207 (2015). 010207 – 6 JEE


Junior, A. M.

Espiritismo, caminhando com o progresso, jamais será tes etnias. Embora não seja mais concebível, do ponto de
ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe mostras- vista científico, falar em raças humanas, temos que reco-
sem que está errado em algum ponto, ele se modificaria nhecer a existência do racismo. Ele continua fortalecido
nesse ponto. Se uma nova verdade for revelada, ele a na forma de ‘senso comum’ pela ignorância, pela força da
aceitará.” (KARDEC, 1985, p. 54). Ao dizer que o Es- repetição, ou por preconceito.
piritismo aceita as novas descobertas científicas, Kardec Sobre as perguntas iniciais que objetivaram a pes-
reitera seu caráter progressista. quisa tratada neste artigo: Allan Kardec teria sido ra-
O Espiritismo não se apartará da verdade e nada terá
cista? Seu pensamento precisaria ser revisado? Dos es-
a temer das opiniões contraditórias, enquanto sua teo- tudos aqui apresentados, e de uma análise crítica sobre
ria científica e sua doutrina moral forem uma dedução essa temática, entendemos que a ciência tornou atual o
dos fatos escrupulosa e conscienciosamente observa- pensamento de Kardec, ou seja, ele não era racista e não
dos, sem preconceitos nem sistemas preconcebidos. É está ultrapassado. As bases do Espiritismo permanecem
diante de uma observação mais completa, que todas sólidas como uma doutrina moderna, porque aceita os
as teorias prematuras e arriscadas, surgidas na origem avanços da ciência.
dos fenômenos espíritas modernos, caíram e vieram
fundir-se na imponente unidade que hoje existe, e con-
tra a qual não se obstinam senão raras individualida- R EFERÊNCIAS
des, que diminuem dia a dia. As lacunas que a teoria
atual pode ainda conter encher-se-ão da mesma ma-
BLACK, Edwin. 2003. Guerra contra os fracos: a eugenia e a cam-
neira. O Espiritismo está longe de haver dito a panha dos Estados Unidos para criar uma raça dominante. A
última palavra, quanto às suas consequências, Girafa Editora, São Paulo, SP.
mas é inquebrantável em sua base, porque esta
CASHMORE, Ellis. 2000. Dicionário de Relações Étnicas e Raci-
base está assentada nos fatos. (KARDEC, 2007c,
ais. Summus, São Paulo, SP.
p. 65, grifo nosso).
COUTO, Rita Cristina Carvalho de Medeiros. 1999. Nos corredo-
O conhecimento científico tem sua história e, por isso, res do Pinel: eugenia e psiquiatria. Tese de doutorado. FFLCH-
algumas “teorias científicas” do passado são contestadas USP, São Paulo, SP.
pela ciência contemporânea, ou seja, “A ciência progride FIGUEIREDO, P. H. 2005. “O polêmico texto de Kardec sobre a
graças à tentativa e ao erro, às conjecturas e às refuta- raça negra”, Revista Universo Espírita 24, p. 32-39.
ções. ‘A ciência progride a golpe de erros’, Popper GONÇALVES, Nancy Silveira Simões. 2006. O princípio da igual-
disse recentemente” (TORRE, 2007, p. 41, grifo do au- dade e a constitucionalidade das cotas raciais para negros e
tor), e assim avança cada vez mais. No século XX, a afrodescendentes nas universidades brasileiras. Dissertação de
mestrado em Direito. UNIFIEO - Centro Universitário FIEO.
ciência demonstrou que não existe raça inferior ou supe-
Osasco, SP.
rior, tornando atual o pensamento de Kardec e de todos
os pesquisadores de sua época sobre o assunto. KARDEC, Allan. 1985. A Gênese: os milagres e as predições se-
gundo o espiritismo. 1a . ed., EDICEL, São Paulo, SP.
Além disso, Allan Kardec esteve à frente de seu tempo
ao avançar em questões como a discriminação das pessoas ——. 1997a. O Livro dos Espíritos. 1a . ed., IDE, Araras, SP.
e os direitos da mulher, numa época em que o preconceito ——. 1997b. O Que É o Espiritismo. 38a . ed.,FEB, Rio de Janeiro,
era considerável. A mulher, tinha o papel de obediente, RJ.
serva e submissa e sofria agressões físicas, psicológicas ——. 2007a. “Frenologia e Fisiognomonia”, Revista Espírita, ano
e sexuais. Segundo Kardec, a igualdade da mulher era III, Julho de 1860, p. 297, FEB, Rio de Janeiro, RJ.
um direito natural e o Espiritismo inaugurou a era da ——. 2007b. “Frenologia Espiritualista e Espírita – Perfectibilidade
emancipação da mulher. da Raça Negra”, Revista Espírita, ano V, Abril de 1862, p. 141,
FEB, Rio de Janeiro, RJ.

VIII C ONSIDERAÇÕES FINAIS ——. 2007c. “O que ensina o Espiritismo”, Revista Espírita, ano
V, Agosto de 1865, p. 303, FEB, Rio de Janeiro, RJ.
Não existem “raças” humanas, ou superioridade de ——. 2007d. “Perfectibilidade dos Espíritos”, Revista Espírita, ano
um povo sobre outro. As “raças” são produto da nossa V, Agosto de 1866, p. 333, FEB, Rio de Janeiro, RJ.
imaginação cultural, um conceito empregado não só para
——. 2007e. “Teoria da Beleza (Obras Póstumas)”, Revista Espí-
estudar populações, mas também para criar esquemas rita, ano XII, Agosto de 1869, p. 311, FEB, Rio de Janeiro,
classificatórios que pareciam justificar a dominação de RJ.
alguns grupos sobre outros. A antropologia, a história e ——. 1987. Obras Póstumas. 8a . ed., Lake, São Paulo, SP.
a etnologia usam o conceito de etnia, ao invés do conceito
LARAIA, R. 2005. Cultura: um conceito antropológico. 14a . ed.,
de raça, para descrever a composição de povos e grupos
Zahar, Rio de Janeiro, RJ.
identitários ou culturais. Os pesquisadores estão conven-
cidos de que as diferenças genéticas não determinam as LINDOSO, Dirceu. 2008. Lições de etnologia geral: introdução ao
estudo de seus princípios; seguido de dois estudos de etnologia
diferenças culturais. brasileira. EDUFAL, Maceió, AL.
Hoje se sabe que só existe uma raça: a raça humana.
MUNANGA, Kabengele. 2004. “Uma abordagem conceitual das
Diversos entre etnias e culturas, somos uma única raça. noções de raça, racismo, identidade e etnia.” In BRANDÃO,
Africanos, árabes, asiáticos, caucasianos, indianos e ju- André Augusto P. (org.). Cadernos Penesb 5 p. 15-34, EdUFF,
deus, não são de diferentes raças, são apenas de diferen- Niterói, RJ.

JEE 010207 – 7 J. Est. Esp. 3, 010207 (2015).


Allan Kardec, a ciência e o racismo

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Title and Abstract in English

Allan Kardec, science and racism

Abstract: This paper aims to examine the fundaments of race, racism and scientific racism concepts; debate about wild,
primitive and civilized terms; and investigate whether Allan Kardec, the codifier of spiritism, was influenced by the foundations
of scientific racism. To this end, an study of the European context of positivism, evolutionism, and Social Darwinism at the
19th century, as well as the advancements of the second industrial revolution and imperialism will be presented. Some thinkers
as Herbert Spencer, Darwin, Malthus, Galton and Gobineau, who were contemporaries of Kardec, had exerted strong influence
on the men related to science, guided state policies and served to justify imperialist domination practices. Their theories have
become the scientific basis of racism. The critics of Kardec have highlighted excerpts of some of his works which seems to be
apocryphal or contradictory, and charged him of racism. The methodology applied in this study is the bibliographical analysis
and comparison of the scientific literature regarding the above concepts as well as some of Kardec’s statements. This work
intends to answer the following questions: would Allan Kardec have been racist? Shoud his thoughts be revised?
Key–Words: Allan Kardec; racism; scientific racism.

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