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Curso de Pós-Graduação ECA-USP

Cena e Narração Audiovisual


Professores: Rubens Arnaldo Rewald, Roberto Franco Moreira e Luiz Fernando
Ramos
Aluno: Giuliano Maurizio Ronco

Análise de uma cena em 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick

"Tudo o que é mostrado na tela tem portanto um


sentido e, na maioria das vezes, uma segunda
significação que só aparece na reflexão; poderíamos
dizer que toda imagem implica mais do que explicita".
Marcel Martin1

PRIMEIRAS PALAVRAS

O filme 2001, Uma Odisséia no Espaço, foi escrito, produzido e dirigido por
Stanley Kubrick. É considerado uma obra marcante não apenas para a ficção
científica mas também para toda a história do cinema. O diretor teve tempo e
liberdade para trabalhar temas complexos que envolvem os limites do conhecimento
humano. Para isso, contou com a parceria do escritor inglês Arthur. C. Clarke.
Durante o processo de escrita do roteiro, pesquisaram livros de ciência e antropologia,
além de se aprofundarem na literatura de Joseph Campbell, reconhecido por seu
trabalho em mitologia e religião comparada.
A dedicação de Kubrick converteu-se na realização de um filme considerado
uma obra-prima, explorado em livros, ensaios, críticas e artigos ao longo dos anos.
Este trabalho não tem a pretensão de abordar o filme como um todo, nem mesmo a
presunção de contribuir com uma crítica original à extensa literatura que existe ao
redor da obra. A proposta é nos concentrarmos em torno da análise de uma única cena
e relacionar sua inserção dentro do filme.

1
MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. Brasiliense: São Paulo, 2003, p. 92.
ANTES DA CENA

A cena que este trabalho se propõe a analisar está inscrita dentro do trecho do
filme intitulado "Aurora do Homem". Como o próprio nome já diz, este trecho
descreve o período de existência de uma proto-humanidade. Um momento em que
estes primatas ainda não dominavam o fogo, tampouco a caça. Juntavam-se em
bandos, coletando alimentos, num modo de vida absolutamente rudimentar. É neste
contexto que um grupo destes hominídeos despertam do sono tendo à sua frente a
surpreendente materialização de um monólito de formas retas, de cor negra,
impenetrável e indecifrável. Uma verdadeira aparição mágica. Os proto-homens
acordam assustados com a presença de algo que não estava lá na noite anterior, ficam
agitados, promovem urros e uma série de movimentos hostis. Aos poucos, vão se
acalmando e, ao final, parecem fascinados com essa presença enigmática, chegando
ao ponto de acariciar aquilo que antes causava histeria. Esta cena do surgimento do
monólito é anterior à cena que analisaremos, mas sua descrição é importante porque a
sua última imagem é resgatada na cena seguinte em forma de insert. E a imagem que
finaliza o primeiro contato dos hominídeos com o monólito mostra o estranho objeto
em contra-plongée numa composição com um pedaço do Sol e da Lua.
MITO DE HERMES E SIMBOLOGIA

Antes de prosseguir com a análise da cena, torna-se importante resgatar o


símbolo atribuído ao planeta Mercúrio, nome que os romanos atribuíram ao deus
grego Hermes. Segundo conta a tradição, Hermes era filho de Zeus e de Maia, uma
das 7 plêiades. Ao nascer, no seu primeiro dia de vida, Hermes fugiu do berço e foi
até a Tessália, onde se encontrava o seu irmão Apolo. Hermes se aproveitou de um
momento de distração do irmão e roubou parte de seu rebanho. Para esconder os
rastros do gado, Hermes amarrou ramos de árvores nas suas caudas, o que confundiu
quem foi atrás do ladrão. Parte das vacas e bois roubados foram negociados, parte foi
sacrificada e outra parte Hermes levou de volta para a Grécia. Ao chegar na caverna
em que nasceu, encontrou e matou uma tartaruga. Com as tripas do gado sacrificado e
o casco da tartaruga, construiu uma lira. Ao ser desmascarado, Hermes foi levado à
presença de Zeus pois o gado de Apolo era sagrado e o crime, portanto, grave. Para se
defender, contou uma história tão fantástica que provocou risos no pai, que se viu
incapaz de castigá-lo.
Esta síntese da narrativa que conta as aventuras de seu primeiro dia de vida é
apenas um fragmento que explica porque Hermes ficou conhecido como o padroeiro
dos viajantes, dos mentirosos, dos ladrões e dos comerciantes. Mais do que isso, as
peripécias de seu primeiro dia de vida explicam porque se atribui a habilidade das
mãos e a capacidade de manipular os elementos na construção de objetos ao deus
Hermes.
Mais tarde, a mitologia grega foi absorvida pela cultura romana e o deus
Hermes foi renomeado para Mercúrio. Esse nome também serviu para batizar o
primeiro planeta do nosso sistema solar, aquele que está mais próximo da nossa
estrela. Na simbologia planetária, o planeta Mercúrio é representado pela combinação
de três figuras que já eram usadas desde antes dos filósofos pré-socráticos. As três
figuras são: a cruz, o círculo e a meia-lua.
A atribuição simbólica para cada uma dessas figuras varia conforme o
contexto em que elas estão inseridas mas, de forma geral, a cruz representa a matéria,
a meia-lua representa a alma e o círculo o espírito. O símbolo de Mercúrio é formado
tendo a cruz da matéria embaixo, sustentando o círculo do espírito e acima dos dois,
posiciona-se a meia lua voltada para o alto, como uma espécie de antena parabólica.

Este posicionamento das figuras já nos fornece uma chave de entrada para a
interpretação simbólica da imagem. A meia-lua voltada para o alto está apta para
receber as intuições provenientes de um plano sensível, elevado, metafísico, ou
qualquer outro termo apropriado que entenda que o plano superior funciona como
uma espécie de repositório das idéias, da utopia, da sublimação. Pois bem, a meia-lua
cumpre essa tarefa de captar, sintonizar, sua própria figura assemelha-se ao contorno
de uma cuia, uma vasilha. Captada a informação, ou a inspiração, esta é transmitida
para uma instância mais perene: o espírito representado pelo círculo. Sem começo e
sem fim, o círculo é uma das figuras, se não for a mais empregada, para representar a
eternidade. Por isso a idéia de espírito, algo que está além das vicissitudes do tempo
ou do espaço. O espírito seria a essência, seria a idéia de que há algo por trás do
vivente, que deixa de ser vivente se abandonado por este que o compõe e o vivifica.
Já a cruz está numa posição abaixo, isto seria dizer que ela está a serviço do espírito.
O espírito, guiado pela alma, conduz a matéria, transforma-a por meio da sua vontade.
Esta matéria pode ser tanto a mais densa, como a madeira e metal, ou sutil como o
som que forma as palavras.
Percebemos que o símbolo de Mercúrio possui uma relação intrínseca com o
mito de Hermes. No fundo, os dois representam as mesmas idéias e potencialidades.
Afinal, a habilidade de transformar o mundo por meio da habilidade manual e da
inteligência, de comunicar-se, de locomover-se são faculdades atribuídas tanto a
Hermes, quanto a Mercúrio.
DESCRIÇÃO DA CENA

Depois destes preâmbulos essenciais, podemos voltar para a análise da cena


em questão, que tem pouco mais de dois minutos de duração. Ela começa com um
plano bem aberto que mostra um grupo de hominídeos vasculhando o terreno em
busca de alguma coisa, provavelmente alimento. Depois de alguns segundos entra em
quadro um hominídeo mais próximo da posição de câmera. O quadro se fecha um
pouco e mostra esse hominídeo sem a presença do grupo, ou seja, destaca-o. Ele
também está de cócoras procurando algo pelo chão com a cabeça voltada para baixo.

Virado para a câmera, num enquadramento que lembra o primeiro cinema, ou


seja, com a visão que o espectador teria se estivesse olhando para um palco com o
ator de corpo inteiro, o hominídeo vai, descompromissadamente, em movimentos
lentos, investigando o terreno à sua frente, que conta com os ossos de algum animal,
inclusive um crânio. Tudo isso é feito em silêncio, sem música, sem barulho, apenas
um som ambiente de grilos, poucos grunhidos e o som da terra sendo remexida. De
repente, um gesto brusco de cabeça marca uma mudança. O hominídeo ergue a cabeça
em direção a um osso, depois ainda a inclina um pouco a mesma cabeça para enfatizar
que algo diferente aconteceu. Mas, aconteceu aonde? Estaria algo acontecendo dentro
da cabeça? Seria um pensamento? Seria possível dizer que ele teve uma idéia? Não há
palavras, tampouco narração. Apenas imagens e gestos.
Ocorre, então, uma intervenção da montagem com um claro propósito
narrativo que une esta cena com a anterior. O que une as duas cenas é o insert da
imagem do monólito, exatamente igual àquela que encerrou a cena em que ele é
apresentado na narrativa pela primeira vez. A pergunta a ser feita é: por que ele
reaparece agora? Assim que a imagem do monólito é inserida começa a música Assim
falou Zarathustra, de Richard Strauss. A música aparece com um som grave, uma
nota única que vai crescendo à medida que o hominídeo começa a se mexer em
direção ao osso, até que o pega com as mãos. A música exerce um papel fundamental
na cena pois é ela quem empresta grandiosidade ao momento. O som ambiente
desaparece. Os metais da orquestra também surgem em três notas constantes até
explodirem junto com a percussão. O hominídeo pega o osso, cheira, dá leves
batidinhas no chão, percebe alguns ossos que se mexem com as batidas, tudo isso no
mesmo enquadramento do início da cena. Então, temos um corte que mostra o céu e a
mão do hominídeo em plano próximo que se ergue segurando o osso. No entanto, a
velocidade da cena foi alterada. Esse levantar do osso para o céu num gesto de quem
vai golpear alguma coisa com força é todo feito em slow motion. Definitivamente
estamos diante de algum acontecimento importante nessa narrativa. São vários os
indicadores: os gestos do ator, especialmente os da cabeça, a música que surge e se
transforma numa explosão triunfal, a mudança de enquadramento depois de um bom
tempo com a câmera parada, o slow motion, tudo isso combinado com a inserção da
imagem do monólito.
O que está acontecendo? A imagem seguinte ao braço levantando e abaixando
é um contra-plongée do hominídeo golpeando os ossos ao redor com força, já não
está mais abaixado, está quase de pé. Golpeia os ossos com fúria, ainda em slow
motion, segurando o osso com uma só mão, até que junta as duas mãos para acertar o
crânio que tem em sua frente com toda a força.
Assim que estraçalha o crânio temos mais um insert. Não se trata de um insert
que faz referência ao passado, agora a referência é ao futuro. A descoberta do osso
como instrumento para golpear e quebrar ossos vai permitir aos hominídeos mudar
sua dieta. O insert que temos agora é o de um animal quadrúpede, semelhante a uma
anta, que cai como se tivesse sido ela mesma acertada pelo golpe que acabara de
espatifar o crânio.

A cena se encerra com o hominídeo em êxtase total. Levanta os braços para o


alto, joga os ossos para longe, abre a boca num grito que só não escutamos porque a
música está no seu auge.

ANÁLISE

Para analisar esta cena é preciso prosseguir com o filme. Nas cenas seguintes,
o grupo de hominídeos que tiveram contato com o monólito e, portanto, pertencem ao
grupo do indivíduo que usou um osso como tacape para acertar um crânio e esmagá-
lo, são mostrados comendo carne, algo que ainda não tinha sido possível. Pelo
contrário, antes da cena com o osso, Kubrick fez questão de ressaltar a fragilidade
desse princípio da humanidade com uma cena em que um primata é atacado por um
leopardo. A transformação do osso em arma de combate altera o status de vítima para
predador. Outra cena que é retomada adiante é aquela em que ocorre uma disputa por
uma fonte de água. O primeiro grupo de hominídeos derrotados volta a confrontar
seus inimigos. Dessa vez eles voltam armados de ossos/tacapes. O grupo
tecnologicamente superior sai vencedor. Um de seus membros joga o osso para o céu.
Acontece o famoso corte do osso para o satélite no espaço. A primeira tecnologia dá
lugar à última, num salto temporal de milhares de anos. O maior corte da história do
cinema.
Esse corte deve muito à cena que estamos analisando e, para nos
aprofundarmos na análise, resgatamos uma passagem do livro A Linguagem
Cinematográfica;

A maior parte dos filmes de qualidade admite vários níveis de leitura,


conforme o grau de sensibilidade, imaginação e cultura do espectador. O
mérito de tais filmes está em sugerir, para além do imediatismo dramático
de uma ação, por mais profunda e humanamente apaixonante que seja,
sentimento e idéias de ordem mais geral. (MARTIN, 2003, p. 92)

No caso de 2001, Uma Odisséia no Espaço a leitura da cena se torna ainda


mais completa se relacionarmos o insert do monólito com o restante da narrativa. Isso
porque o monólito aparece em mais dois trechos do filme. Cada um desses trechos
marca um salto na narrativa. O primeiro aparecimento acontece na "Aurora do
Homem". O segundo aparecimento acontece na exploração da Lua. E o terceiro, já na
parte final do filme, está relacionado com a chegada em Júpiter. No entanto, é no
primeiro aparecimento que Kubrick faz uma composição capaz de oferecer algum
subsídio à hipótese deste trabalho.
Se considerarmos o monólito em sua materialidade, denso, intransponível, e
colocarmos a imagem de seu primeiro aparecimento lado a lado com o símbolo de
mercúrio, teremos uma semelhança difícil de não ser notada entre os dois. Na
verdade, o diretor está "desenhando" o significado do monólito para nós. E como num
desenho, numa imagem, há uma abertura poética para sua interpretação. Ainda assim,
os conceitos estão todos lá. É a partir do contato com o monólito que o hominídeo
"tem a idéia" de usar o osso como instrumento. Se a Bíblia diz que a primeira
manufatura do Homem foi transformar folha de figueira em sunga, Kubrick discorda.
Para 2001, Uma Odisséia no Espaço a primeira manufatura humana foi transformar
osso em tacape.
Essa cena é fundamental para a narrativa do filme. Ela representa a
transposição do primeiro degrau tecnológico da humanidade. Ao longo do filme, essa
tecnologia se mostrará insuficiente para a compreensão de alguns enigmas, como a
morte e o nascimento, por exemplo. Um degrau que marca uma jornada, uma
autêntica odisséia.

CONCLUSÃO

Não foi possível encontrar um documento em que o diretor confirma nossa


hipótese. Ainda assim, a cena que analisamos faz uma inequívoca poética citação ao
símbolo de Mercúrio. É difícil imaginar que a posição do Sol e da Lua na composição
do quadro tratou-se apenas de um feliz acidente. Estariam os astros ali apenas para
preencher a imagem? Deixar o quadro mais bonito? As biografias de Kubrick
desmentem esse casuísmo. O diretor era reconhecido por sua fixação aos detalhes.
Todavia, mesmo que o diretor não tenha tido essa intenção de oferecer mais um
parâmetro para nos relacionarmos com a obra, mesmo assim nós o encontramos e ele
está lá. É mais uma camada, mais um pretexto para vermos o filme mais uma vez.
O filme 2001, Uma Odisséia no Espaço é considerado uma obra-prima. Foi
apresentado ao público pela primeira vez em 1968, 53 anos atrás e permanece
considerado um dos maiores filmes de ficção científica de todos os tempos. Ao que se
deve essa atemporalidade? Talvez essa classificação de ficção científica não
contemple a verdadeira natureza do filme e acabe reduzindo-o a uma prateleira ao
qual ele não pertence. Talvez a resposta esteja justamente no minucioso trabalho com
os símbolos. Os mesmos símbolos que vêm sendo trabalhados há milênios pela
humanidade e que não conhecem esse parâmetro temporal.

REFERÊNCIAS

CHEVALIER, Jean. Dicionário de Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2015.

MARTIN, Marcel. A Linguagem Cinematográfica. Brasiliense. São Paulo. 2003

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