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Análise do Filme “Stalker” de Andrei Tarkovsky

O filme “Stalker” corresponde diretamente à definição de filme filosófico aprendida neste curso, pois é
“formado por conceitos – imagens capazes de afetar o espectador”, já que instiga nossa sensibilidade e
nos provoca questionamentos profundos acerca da realidade que nos cerca e de nossa própria
existência.

Andrei Tarkovsky é o meu diretor preferido e concordo com Ingmar Bergman, quando disse que era o
maior deles, por isso escolhi este filme maravilhoso para o trabalho, e até me prolonguei muito mais do
que deveria, peço perdão se ficou longo demais.

É possível dizer que este é um filme filosófico , ou melhor, ontológico, por excelência, pois sua grande
motivação são os temas metafísicos, transpassados por pura arte. A história em si era uma mote, ou
uma desculpa, para o diretor ir direto ao ponto: as questões filosóficas transmitidas através da
sensibilidade artística. (“Em Solaris , Stanisław Lem quase não permitiu a adaptação de Tarkovsky, uma
vez que o diretor russo inicialmente insistia em retirar do roteiro toda a alusão à ficção científica. Para
Tarkovsky o filme poderia dispensar todo o aparato da ficção científica, "para que o essencial fosse
expressado com muito maior clareza". Já em Stalker, o filme tem pouco a ver com o original romance
“Roadside Picnic,” no qual o filme é baseado, tendo muito mais força as idéias do diretor)

Segundo o próprio diretor: “O objetivo de toda arte...é explicar ao próprio artista, e aos que o cercam,
para que vive o homem, e o significado da sua existência” (Tarkovsky p.38)

Neste filme temos um exemplo magistral de como, através da arte , pode-se tentar compreender ou
representar o questionamento metafísico da própria existência.

A análise que farei a seguir tem a ver com meu ponto de vista pessoal, ou seja , o que eu captei ao ver
este filme, e as relações que pude estabelecer entre as questões e emoções que ele desperta. O diretor
Tarkovsky sempre preza por deixar ao espectador muito trabalho para fazer suas próprias conexões.

Após rever cuidadosamente este filme ( já tinha visto há algum tempo atrás), minhas impressões foram
as seguintes:

O filme diz respeito à contradição entre fé e materialismo na busca da Verdade. Pode se traçar um
paralelo com a busca por Deus ou pela Luz, ou qualquer nome que queira se usar. A palavra Verdade
aqui está além da especulação mental e científica, seja ela de humanas (representada pela personagem
do escritor, que também pode representar a figura do artista) ou de exatas (representada pela
personagem do professor). Citando o diretor: “ a arte, como a ciência é um meio de assimilação do
mundo, um instrumento para conhecê-lo ao longo da jornada do homem em direção ao que é chamado
“verdade absoluta”....no momento , é muito mais importante perceber a divergência, a diferença de
princípio entre as duas formas de conhecimento: o científico e o estético”(Tarkovsky, p. 39). O ponto
central entre estas duas energias é justamente o Stalker, que que representa o homem de fé, o homem
espiritual. Porém, justamente ele, sofre uma grande transformação devido aos questionamentos dos
outros dois personagens materialistas.

A Verdade aqui perseguida é mais profunda do que o mero pensar, ela inclui pensar, sentir e querer,
está inserida no próprio sentido de tempo, o tempo meditativo. Sendo que os três sempre estão
“integrados” nos momentos onde existe o puro silêncio.

O filme se inicia em preto e branco, numa cena num bar. Um texto explica para nós que a Zona é um
local , isolado por ter sido atingido por um meteoro, e entrar lá é proibido. Dizem que lá todos os
desejos podem se realizar.

Acredito que representa um local simbólico, um local onde os seres humanos se integram ao seu Self no
sentido de realizarem sua essência mais profunda, conseguindo assim realizar seus desejos. . Um local
onde se pode encontrar Deus ou o Sagrado, um lugar onde existem Milagres. A Zona é ela própria uma
“entidade “ viva, algumas leituras dizem que a Zona é a “Grande Mãe” , pois as personagens sempre se
mergulham em suas águas ou deitam na terra (Terra e Água são dois elementos que costumam
representar o feminino. A “mãe terra” ou a “grande água” nas mitologias de povos indígenas costumam
ser representadas por deidades femininas, um grande útero para o qual as personagens querem
retornar). Esse local depende diretamente da própria fé de cada um para se concretizar. (“E ele lhe
disse: Filha, a tua fé te salvou; vai em paz, e sê curada deste teu mal. Marcos 5:34”)

A próxima cena ocorre na casa do personagem central, chamado “Stalker” responsável por levar
pessoas até a Zona .( Stalker quer dizer perseguidor, podemos interpretar como o que persegue a
verdade e leva as pessoas .Em Roadside Picnic, "Stalker" era um apelido comum para homens
envolvidos na empresa ilegal de prospecção e contrabando de artefatos alienígenas para fora da
"Zona").

O Stalker é aquele que faz a ponte entre a Zona ( que é representada em película colorida) e o mundo
comum (filmado em preto e branco, ou melhor, sépia), poderia dizer que ele pode representar um
padre , ou pastor, ou sacerdote, alguém que crê em milagres, crê no local mágico, crê no bem, e
acredita que pode salvar as pessoas e ajudá-las e realizar seus desejos. Em vários pontos do filme se
pode conectar este personagem à questão religiosa, como observaremos mais para frente. Porém, ele
mesmo também está buscando, tem dúvidas, dores e aflições.

Na casa do Stalker se nota o chão molhado e escorregadio , o elemento alquímico água é sempre
presente no filme , remete à emoção, que pode ser confortável ou desconfortável, fluida ou parada,. No
quarto , há uma bacia, o chão molhado. Numa bandeja, um copo com água se move (contrapondo a
cena final), há uma seringa e algodão (alguém usa drogas?)e uma maçã mordida ( “a partir do exato
momento em que Eva comeu a maçã da árvore do conhecimento, a humanidade foi condenada a uma
busca sem fim da verdade “(Tarkovsky p.38) ).

Ao lado da cama duas muletas( que mais tarde saberemos que pertecem à filha de Stalker, que não
pode andar ). Sempre presentes água no chão e portas que se abrem.

No seu quarto dormem sua esposa e filha, na primeira aparição do Stalker, a música com viés oriental se
transforma na Marselhesa. Ele acorda antes, querendo deixá-las dormir. A família do Stalker tem 3
pessoas, assim como o grupo de 3 que vai se juntar para ir à Zona. (o 3 é um símbolo de completude,
equilíbrio entre os opostos ( 2).

No outro ambiente o Stalker acende o fogo (outro elemento alquímico, talvez anunciando a viagem) e a
esposa acorda, acendendo a luz e fazendo-a piscar. Ela sofre pela falta dele e por não poder ir .
(Simboliza que a alma do Stalker ainda não está integrada, pois ele quer deixar a sua esposa “dormir” ,
no caso a esposa simboliza a “anima”, ou a própria integração do Ser). Também pode-se concluir isso,
pois é a esposa que acende a Luz da sala, e ela pisca, esta cena está espelhada com a cena do final do
filme onde o escritor acende a lâmpada e ela pisca. As lâmpadas e luzes vão ser uma espécie de guia que
vão acompanhar os personagens até a entrada da Zona.

Stalker , que havia estado na prisão, diz que precisa ir pois para ele tudo é uma prisão ( ou seja, o mundo
sem o que está na Zona é uma prisão, então não se importa aonde está). A esposa chora, e toca o tema
da opera Tanhäuser (em cujo enredo, “o sacrifício feminino espia os pecados masculinos. O dilema entre
o amor profano, carnal e o amor casto associado ao casamento, é uma questão central”).

A próxima cena nos apresenta o personagem do escritor cético, que conversando com uma moça rica
argumenta como este mundo é chato, concreto, que nada de mágico , que Deus não existe e tudo é frio
e sem sentido, diz que sente falta da idade média onde Deus era parte da existência. Ele quer levá-la
para a Zona, mas Stalker não concorda.

Novamente vemos os temas das portas , luzes e do chão molhado, eles vão ao bar, Stalker entra pela
porta com facilidade, mas o escritor escorrega no chão (fato que se repetirá ao decorrer do filme.). No
bar da primeira cena., ele bebe , talvez querendo iludir a própria mente, entorpecer-se. Stalker diz que
até lá vai passar a bebedeira (por que entorpecido ele não seria capaz de aproveitar sua jornada) . É
apresentado então o novo personagem, o professor de física. Na conversa dos 3, podemos ver que cada
um representa uma maneira de buscar a verdade, o professor pela ciência, enquanto o escritor diz que
escreve sobre os leitores e quando investiga o que é humano, mais porcarias sempre acha, e nenhuma
resposta ou verdade, nisto inveja o professor, que encontra respostas exatas para suas buscas.

Eles saem então para sua jornada, novamente as luzes por todas as ruas vazias, como se fossem um
“guia”, e os faróis do carro fazem par com estas luzes.. Muitas poças de água permeiam todo o chão, e
o elemento terra , representado na lama se faz presente. O elemento ar também se faz presente, tudo
está sob uma forte neblina, como se revelasse uma prisão num mundo enevoado. São perseguidos
pelos seguranças da zona.

Eles conseguem se refugiar dos guardas em uma construção escura, e lá o professor e o escritor tem um
interessante diálogo, na escuridão: O escritor diz que na verdade não sabe o que quer, está confuso,
pois sempre que nomeia algo, aquilo perde o sentido, deixa de sê-lo (ou seja, o objeto quando
representado por uma palavra, perde a realidade da mesma. Exemplo, falar a palavra limão e descrever
o limão é muito diferente de provar o limão). Ele diz também que seus desejos racionais não
correspondem aos emocionais ( e dá o exemplo que queria que o mundo fosse vegetariano, enquanto
ele deseja na verdade carne).

Esta passagem me fez recordar fortemente este trecho do primeiro verso do Tao te Jing:

“O Tao que pode ser ensinado


não é o Tao eterno.
O nome que pode ser falado
não é o nome eterno.

O inominável é o eternamente real.


Nomear é a origem
de todas as coisas separadas.

Livre do desejo
você percebe o mistério.
Preso no desejo
você vê apenas as manifestações.

No entanto, mistério e manifestação


surgem da mesma fonte.
Essa fonte é chamada escuridão.

Escuridão dentro da escuridão.


O portal para todo o entendimento.”

Continuam a caminhada e agora aparece uma linda cena onde o trem que entra e sai da zona , cercado
pelas luzes , entra nela, e a luz de seu farol cresce, simbolizando o “entrar na Luz”. Com o carro seguindo
o trem, eles conseguem entrar, mas são alvejados e perseguidos pelos guardas. Estes guardas podem
simbolizar os sentidos humanos, e os pensamentos cristalizados nos sentidos, que preservam o senso
de “realidade” do mundo, que prendem o homem na sua mente cotidiana, e não o permitem
aprofundar-se no conhecimento. Porém, um momento eles param de perseguí-los, pois “sentem muito
medo”(eles não podem entrar na Zona).

Se deparam com um lago, enquanto o cientista vai procurar um vagão para eles se locomoverem na
Zona. Ele tem que atravessar o lago e passar por um grande ambiente alagado. Isso pode simbolizar a
purificação da consciência pela qual eles devem passar antes de entrar na Zona. O vagão começa andar
no trilho que está sobre o rio, como se estivesse na água.

Vem então uma linda cena, onde eles são filmados em close, com a paisagem passando, cheia de
neblina, eles estão no vagão fazendo sua jornada, sua travessia. A sensação de desconexão entre os
sons e as imagens no filme, assim como o uso das cores, criam uma sensação de “sair da realidade” (ou
entrar?). O som dos trilhos, que se estabelece, é uma espécie de mantra. A sensação de passagem de
tempo é alterada, como uma meditação.

Koan zen:

“Certa vez, um buddhista foi às montanhas procurar um grande mestre, que segundo acreditava poderia
lhe dizer a palavra definitiva sobre o sentido da Sabedoria.
Após muitos dias de dura caminhada o encontrou em um belo templo à beira de um lindo vale.
“Mestre, vim até aqui para lhe pedir uma palavra sobre o sentido do Dharma. Por favor, faça-me
atravessar os Portões do Zen.”
“Diga-me,” replicou o sábio, “vindo para cá vós passastes pelo vale?”
“Sim.”
“Por acaso ouvistes o seu som?”
Um tanto incerto, o homem disse:
“Bem, ouvi o som do vento como um suave canto penetrando todo o vale.”
O sábio respondeu:
“O local onde vós ouvistes o som do vale é onde começa o caminho que leva aos Portões do
Zen. E este som é toda palavra que vós precisais ouvir sobre a Verdade.”

Chegam então a uma mata, e neste momento o filme passa a ser colorido. (Como no mito da caverna de
Platão, o mundo anterior eram “sombras da realidade”, e agora a realidade passou a ter outra
profundidade e dimensão, passou a ter “cores”). E eles, extasiados, dizem: “Estamos no lar...quão quieto
é aqui...é o lugar mais quieto do mundo...”

Nesta cena , crucial para a interpretação do filme, os três se sentam juntos, e ela irá se repetir, no final
do filme, quando os três sentados juntos novamente comentam sobre o silêncio.

Me fez lembrar a frase da Bíblia “Aquietai-vos e sabei que eu sou Deus”( Salmos 46:10). Ou as tradições
espirituais orientais hinduístas , taoístas ou budistas, que dizem que a verdade só pode ser encontrada
no silêncio da meditação, quando cessam os barulhos dos pensamentos.

Dentro da Zona, Stalker fala de seu mestre, que o mostrou aquele local, chamado de Porco –espinho,
que conhecia muito bem , mas que foi punido por ter permitido que algo se quebrasse dentro dele, e as
flores que foram pisoteadas pelo Porco espinho perderam seu cheiro.

Stalker se afasta dos dois para ir até um local que observa de longe, o objetivo deles, uma construção
que lembra um templo ou igreja abandonada, com uma árvore na frente. Neste local se deita no chão ,
em prostação (nos remete uma sensação de prece ou profundo respeito ou reverência). Entendemos
que neste local fica a “Sala” que realiza todos os desejos.

Enquanto isso, os dois conversam sob uma paisagem de mata mesclada com postes caídos, que
lembram imensamente cruzes. O professor então conta que por causa da Zona a filha de Stalker nasceu
sem pernas (por isso as muletas, mas depois veremos que ela tem pernas, mas não pode andar). E o
porco espinho enriqueceu de repente, depois se enforcou. Diz que o meteorito pode não ser verdadeiro
e que existe um lugar na Zona onde todos os desejos se tornam realidade, e é neste local onde as
pessoas querem chegar. Ele amarra então porcas em lenços, que servirão de guias para o caminho, que
Stalker joga para receber a indicação da Zona para descobrir para onde se deve ir.

Stalker retorna e ouvimos um uivo , e o escritor pergunta se há mais alguém lá, Stalker diz que não.
Manda o vagão de volta, e descobrimos que na Zona, como na vida, não se pode voltar pelo mesmo
caminho. E para seguir, não podem ir pelo caminho óbvio. Tem que fazer algumas voltas.
Koan Zen:

“Certa vez, um homem encontrou Joshu, que estava atarefado em limpar o pátio do mosteiro.
Feliz com a oportunidade de falar com um grande Mestre, o homem, imaginando conseguir de Joshu
respostas para a questão metafísica que lhe estava atormentando, lhe perguntou:
“Oh, Mestre! Diga-me: onde está o Caminho?”
Joshu, sem parar de varrer, respondeu solícito:
“O caminho passa ali fora, depois da cerca.”
“Mas,” replicou o homem meio confuso, “eu não me refiro a esse caminho.”
Parando seu trabalho, o Mestre olhou-o e disse:
“Então de que caminho se trata?”
O outro disse, em tom místico:
“Falo, mestre, do Grande Caminho!”
“Ahhh, esse!” sorriu Joshu. “O grande caminho segue por ali até a Capital.” E continuou a sua tarefa.”

Por alguns instantes, o escritor assobia o “Erbarme dich” da Paixão segundo São Mateus de Bach. (a Aria
que Pedro pede perdão a Cristo por tê-lo negado três vezes, talvez anunciando a negação da Zona por
seu personagem mais para frente). O escritor também conta uma história sobre São Pedro: este , ao ver
Jesus caminhar sobre as águas, achou possível que ele mesmo pudesse caminhar, e conseguiu. Mas
como a fé de Pedro estava somente baseada no fato de ter visto Jesus caminhar anteriormente, ele logo
caiu. Com certeza uma referência aos três momentos que ele cai no filme, no último deles, é salvo pelo
Stalker.

Quando o escritor tenta arrancar uma planta, Stalker o repreende, diz que a Zona deve ser respeitada
ou o punirá. O escritor então pega sua bebida, mas Stalker joga fora. Ele desobediente, diz que seguirá
pelo caminho mais curto, e o faz. Chegando próximo da construção, podemos ver na sua frente uma
frondosa árvore (Seria uma citação a Kalpavriksha, a árvore Hindu que satisfaz todos os desejos? Mais
para frente retornarei neste tema). Ouve-se um forte vento, e alguém o chama. Ele então volta
correndo, mas não foi nenhum dos dois que o chamou.

Isso me lembrou outro koan Zen :

“Dois monges discutiam a respeito da bandeira do templo, que tremulava ao vento. Um deles disse:
– É a bandeira que se move.
O outro disse:
– É o vento que se move.
Trocaram ideias e não conseguiam chegar a um acordo. Então Hui-neng, o sexto patriarca, disse:
– Não é a bandeira que se move. Não é o vento que se move. É a mente dos senhores que se move.
Os dois monges ficaram perplexos.”

Neste momento, eles estão confusos, pois não podem ir direto, tampouco voltar atrás. Estão perdidos
numa dimensão com a qual não sabem lidar.

Ficamos sabendo de algumas regras que regem aquele local: Na Zona o caminho mais longo é o menos
perigoso (o que parece fácil não é, sempre vão ter que fazer percursos inesperados), normalmente a
Zona é só silêncio, mas quando há pessoas é movimentada pelas próprias, se tornando perigosa, por
isso o principal aprendizado é aprender como se comportar, ter autocontrole. Tudo nela depende de
nós, e Stalker nota que ela costuma deixar passar os que não tem esperanças , sejam bons ou maus,,
mas mesmo estes irão morrer se não souberem como se comportar.

Neste momento do filme , pode se comparar à Zona com um local onde o homem não é mais um
escravo das circunstâncias, mas um criador da própria realidade, e justamente isso a torna tão perigosa.
Tudo que estiver por dentro vai aparecer por fora, mudando o caminho. Seguir o Stalker (o portador do
conhecimento) é a única maneira de sobreviver neste local.

Neste ponto pode se fazer uma comparação com a filosofia hindu, que diz que tudo que existe na
matéria são objetos ilusórios, e aprender a movimentar a mente e os pensamentos é o que cria e afeta
a realidade material, pois a realidade que se encontra no interior é maior do que a ilusão de “fora”, do
mundo sensório: “ As escrituras védicas declaram que o mundo físico opera sob uma lei fundamental, a
de maya, ou princípio da relatividade e da dualidade. Deus, a única vida, é Unidade Absoluta. Para
aparecer como manifestações diversas ou separadas da criação, ele usa um véu falso ou irreal. Este véu
dualístico e ilusório é maya”...”não existe unverso material toda sua textura e urdidura é maya, ilusão.
Submetidas a análise , dissolvem-se todas as miragens da realidade.”(Yogananda,p. 327,p. 331)

Fazendo mais um pararelo com a tradição Hindu, existe na India , na literatura védica, uma árvore que
realiza todos os desejos, chamada Kalpavriksha ou Kalpataru . Mas o fato contraditório é que no oriente,
é justamente o fato de não ter desejos que pode levar a pessoa a Iluminação. Para exemplificar. cito um
pequeno texto extraído do vedanta, que fala sobre a árvore dos desejos e o Santo hindu Sri
Ramakrishna.(Vedanta é uma antiga tradição espiritual hindu).

“O kalpataru ou kalpa-vṛkṣa é retratado na mitologia indiana como uma árvore dos desejos. Sob ele,
tudo o que desejamos se torna realidade; tudo o que desejamos, nós obtemos. De fato, um dos contos
populares fala de um homem descansando sob o que acabou se revelando um kalpataru. "Ah, se eu
tivesse uma cama linda para deitar!" ele murmurou para si mesmo enquanto se virava de lado. E qual foi
o seu espanto ao descobrir uma bela cama à sua espera! Ele então pensou em um atendente, e em
nenhum momento um atendente apareceu diante dele. O que quer que o homem desejasse apareceu
diante dele instantaneamente. "E agora se um tigre viesse?" ele meditou. Um tigre apareceu
prontamente e não perdeu tempo em comê-lo.

Agora, Sri Ramakrishna é um kalpataru do tipo tradicional, dando a todos o que desejam? Ele não
parece ser assim. O evento kalpataru em Kashipur confirma isso claramente. Nem todas as pessoas que
receberam a graça de Sri Ramakrishna naquele dia não tinham desejos mundanos de qualquer tipo. No
entanto, não foi a satisfação daqueles anseios mundanos que esse kalpataru trouxe. Para alguns,trouxe
a bem aventurança divina. Foi, na verdade, o extermínio daqueles desejos do mundo em que esse
kalpataru se especializou. “ (vedantasociety.net)

Stalker joga a próxima rosca e eles continuam a caminhada, cansados, se sentam.

Por um momento algo cai em uma poço redondo , branco e preto, (que me lembra imensamente o
símbolo do Tao, Yin-Yang) e a uma voz do Stalker, em oração, pede que eles sejam despegados e
flexíveis como crianças, porque um endurecido nunca poderá chegar. Só o maleável pode aprender ,
como um bambu que enverga mas não se quebra.

“Talvez essa seja uma das características mais conhecidas do bambu. Os antigos chineses
aprenderam a importância da flexibilidade ao observar como essa planta se comporta numa
ventania. Perceberam que uma árvore rígida quebra-se com um vento muito forte. O bambu não.
Ele se curva e depois que o vendaval passa, volta intacto à posição original. Segundo os sábios
orientais, a rigidez é sinal de morte. Uma pessoa rígida não vive, está morta, é como o tronco de
uma árvore seca. Flexibilidade é sinal de vida. Uma planta viva é flexível, uma planta morta é rígida.
Um bebê é flexível e cheio de vida, o idoso é mais duro e sem a mesma vivacidade da criança.
Flexibilidade também envolve o conceito de não-resistência. No sentido mais profundo, flexibilidade
significa capacidade de não resistir às coisas naturais que nos acontecem. Por exemplo, o bambu
não resiste à força do vento. É a não-resistência que evita danos. No taoísmo, existe a expressão
Wu-wei que se refere à não-resistência. Wu-wei significa deixar-se levar pelo movimento natural.
Tentar evitar alguma coisa natural é se opor aos impulsos da vida.” (Ostu, 1997)

Continuam num caminho onde vão descer por túneis úmidos. O professor esquece sua mochila, e
Stalker diz que ele não pode voltar. Tem que deixar tudo para trás. Ele retorna porém, enquanto Stalker
e o escritor atravessam águas muito turbulentas. Aqui o elemento água ,sempre presente , jorra e flui
livremente, com sua característica flexibilidade. No meio das águas turbulentas , um inusitado chão
com brasa. Conseguem atravessar, pensado que progrediram. Porém na saída, reencontram o professor
com sua mochila , se aquecendo em uma fogueira. Percebem então que era uma armadilha, e que na
verdade voltaram para trás...

Deitam então os três na terra, próximo a um lago, o professor em uma rocha, o escritor sobre a relva,
próxima a água, o Stalker com uma queda de água ao fundo, formando um belo quadro. Pode ser um
“desenho” da realidade de cada um? Um cão desce o rio, correndo na direção deles.. De acordo com o
documentário “Сталкер (1979). Разбор фильма. Скрытый смысл ” (you tube), esta cena reproduz um
ícone do pintor Teófanes o Grego, chamado “Transfiguração de Cristo”, onde cada um representa um
apóstolo e o Cão, do qual já falaremos, está na posição de Cristo:

O professor e o escritor discutem, questionando suas atividades. O escritor diz que como todos, só está
preocupado consigo mesmo, questiona porque deve escrever, porque teria que provar aos outros que é
um gênio? Seria a arte altruísta?

Perguntam a Stalker porque as pessoas vem até a Zona. Ele responde, por felicidade, mas não gostam
de falar dos seus sentimentos mais profundos.

O escritor e o professor brigam, parecem não se compreender.

O cão (será ele o autor dos uivos?), que caminha pelo rio, vem na direção de Stalker. Depois vem deitar
ao seu lado., parece ser um amigo ou um guia para ele. Stalker vai então adormecer. A imagem deste
cão pode ser associada ao Deus Anúbis , que na religião egípcia guia os mortos para o renascimento no
mundo dos Deuses. era, ou ao próprio Cristo, como a referência do ícone mostra. Ele está sempre ligado
ao Stalker, como uma parte da Zona que o acompanha.
Stalker parece ter agora uma experiência de morte e renascimento. Em cores, parece estar morto, e
tudo fica branco e preto, como se fosse o seu sonho, várias imagens se sucedem:

Um voz de mulher, que pode ser a esposa de Stalker, narra um texto do Apocalipse, e podemos ver
objetos na água: – peixes-–algas- moedas – uma arma –engrenagem-espiral- imagem de um São João
Batista-etc...-uma bela música soa.

Stalker toma então uma inspiração e desperta, voltam as cores da Zona.

Sobre a música, o compositor Edward Artemeiv diz, em uma entrevista:

“A história da composição da música para este filme, talvez, foi a mais complicada porque Andrei durante muito tempo
não teve uma compreensão clara de como deveria ser sua atmosfera musical.. No entanto, tendo filmado todo o
material, ele continuou a pesquisar e estava me explicando que precisava de alguma combinação do Oriente e do
Ocidente recolhendo junto com issoa declaração de Kipling sobre a incompatibilidade do Oriente e do Ocidente. Eles
podem apenas coexistir, mas nunca serão capazes de se entender. Andrei desejava que esse
pensamento soasse distintamente em The Stalker, mas não conseguiu chegar a nada bom o suficiente. Então ele me
ofereceu para tentar tocar música europeia nos instrumentos orientais ou, vice-versa, orquestrar uma melodia oriental
para instrumentos europeus e ver no que isso resultaria. A ideia me pareceu curiosa e eu trouxe uma melodia
maravilhosa para Andrei, chamada "Pulcherrima Rosa" de autor anônimo do século XIV - moteto medieval dedicado à
Virgem Maria . Tendo ouvido este tema, Andrei imediatamente decidiu aceitá-lo, mas avisou que, em sua forma
original, era simplesmente inconcebível no filme. Deve ser dado em uma coloração oriental, em uma declaração
oriental. Ele considerou essa condição obrigatória e indiscutível. Mais tarde, quando voltei à discussão da música
para The Stalker, Tarkovsky inesperadamente me disse: "Sabe, tenho alguns amigos na Armênia e no Azerbaijão. E se
convocássemos músicos de lá e você escrevesse a melodia" Pulcherrima Rosa "para eles e eles tocariam
improvisando sobre esse tema?" Nó decidimos tentar. Um artista no piche foi convidado da Armênia....
...O próprio Andrei havia mencionado em sua palestra algo sobre a necessidade de criação de um estado de alguma
calma interior, satisfação interior no filme, sendo semelhante ao que poderia ser encontrado na música indiana. Percebi
imediatamente essa ideia e entendi o método que precisava usar nessa situação.´

“...Repensando sua abordagem, eles finalmente encontraram a solução em um tema que criaria um estado de calma
interior e satisfação interior, ou como Tarkovsky disse "espaço congelado em um equilíbrio dinâmico". Artemyev
conhecia uma peça musical da música clássica indiana em que um tom de fundo prolongado e inalterado é executado
em uma tambura . Como isso deu a Artemyev a impressão de um espaço congelado, ele usou essa inspiração e criou
um tom de fundo em seu sintetizador semelhante ao tom de fundo executado no tambura. O alcatrão (Tar) então
improvisou no som de fundo, junto com uma flauta como instrumento europeu ocidental. [20]Para mascarar a
combinação óbvia de instrumentos europeus e orientais, ele passou a música de primeiro plano pelos canais de efeito
de seu sintetizador SYNTHI 100 . Esses efeitos incluíam a modulação do som da flauta e a redução da velocidade do
alcatrão, de modo que o que Artemyev chamou de "a vida de uma corda" pudesse ser ouvido. Tarkovsky ficou
maravilhado com o resultado, gostando principalmente do som do alcatrão, e usou o tema sem nenhuma alteração no
filme.” (Fonte : http://www.electroshock.ru/eng/edward/interview/egorova/)

Ao acordar, silêncio. Os dois , professor e escritor, agora dormem juntos (Teriam se compreendido?).
Stalker recita então um trecho do texto bíblico (Lucas 24-13,32):

“13 Nesse mesmo dia, iam dois deles para uma aldeia chamada Emaús, que distava de Jerusalém
sessenta estádios;

14 e iam comentando entre si tudo aquilo que havia sucedido.

15 Enquanto assim comentavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou, e ia com eles;

16 mas os olhos deles estavam como que fechados, de sorte que não o reconheceram.

17 Então ele lhes perguntou: Que palavras são essas que, caminhando, trocais entre vós?”

Neste momento podemos reforçar a conexão da personagem de Stalker como a fé e a religião.Quando


diz,” viram o Cristo, mas não o reconheceram”, ambos abrem os olhos, observando o Stalker. Stalker
então se integra aos dois , agora participando de sues assuntos, e se deixando afetar por eles. Fala sobre
altruísmo da Arte, e fala sobre a música :
“A música penetra como por milagre em nosso coração... O que é isso que ressoa em nós, que
transforma ruídos em harmonia, sendo a fonte de maior prazer... que nos aturde e nos reúne?...Quem
precisa dele? Vocês diriam, Ninguém, e por nenhuma razão...de maneira altruísta. Não, eu creio que
não, no fim de tudo, tudo existe por algum sentido. Sentido e razão”

Agora, a caminhada vai prosseguir, e as personagens devem entrar em um cano, um túnel escuro e
úmido, que vai levá-los a um local conhecido como “moedor de carne” , e depois até a “Sala”.

O próprio nome “Moedor de Carne “ faz alusão direta à morte. Para decidir quem entra primeiro, tiram
a sorte nos palitos (depois ficaremos sabendo que na verdade Stalker já sabia que deveria ser o
professor a entrar primeiro e lhe dá o palito maior). No túnel, o escritor escorrega novamente,
espelhando a cena do início, onde escorrega antes de entrar no bar. ( a segunda queda ).

Ao fim do túnel, há uma porta, e o escritor pega uma arma para atirar nela. Stalker suplica que jogue a
arma fora. O escritor obedece, e Stalker a joga na água. Atravessam então uma pequena sala com muita
água suja, e vão parar numa enorme sala cheia de areia, com colunas, com o aspecto um templo da
antiguidade. Duas águias passam voando. O escritor se apressa e chega a um tonel que se parece um
poço (o “moedor de carne” ), e deita, como se estivesse morto.

Encontrei uma parábola que cita duas águias, na bíblia, um presságio da morte:

A parábola das duas águias (Ez 17)


8
17“Uma grande águia, com asas grandes e penas longas, embora já estivesse plantada em boa terra
coberta com plumagem de várias cores, e tivesse água com fartura,
veio ao Líbano. para que crescesse e se transformasse numa bela videira
Agarrou a ponta de um cedro e produzisse ramos e frutos.
4
e arrancou seu galho mais alto.
Levou-o para uma terra de comerciantes 9
“Agora, portanto, assim diz o SENHOR Soberano:
e plantou-o numa cidade de mercadores.
5 Acaso essa videira prosperará?
Também levou da terra uma semente
Não! Eu a arrancarei pela raiz!
e a plantou em solo fértil.
Cortarei seus frutos
Colocou-a junto a um rio largo,
e deixarei que suas folhas murchem.
onde pudesse crescer como um salgueiro.
6 Eu a arrancarei facilmente;
A planta criou raízes, cresceu
não será necessário um braço forte nem um grande
e se tornou uma videira baixa, mas espalhada.
exército.
Os ramos se voltaram para a águia, 10
Mas, quando a videira for replantada,
e as raízes se aprofundaram no solo.
acaso florescerá?
Produziu ramos fortes
Pelo contrário, murchará
e deu brotos.
7 quando o vento do leste soprar contra ela.
Então, surgiu outra águia,
Morrerá na mesma terra
com asas grandes e muita plumagem.
onde havia crescido”.
A videira lançou raízes e ramos
na direção dela, em busca de água,

O escritor então acorda, e como a personagem mais falante do filme, faz uma espécie de crítica às
classes intelectuais e diz que o presente e o futuro deveriam ser uma coisa só. Stalker, surpreendido por
ele ter sobrevivido àquele local, diz que ele viverá por cem anos, O escritor responde, porque não para
sempre?

Stalker diz que sabia que só ele poderia passar por aquele teste (na minha interpretação, devido ao seu
próprio comportamento sem apego ou esperanças), e recita o poema do irmão do Porco espinho, que
morreu naquele local:

O poema foi escrito por Arseny Tarkovski, pai do diretor:

“O Verão partiu Será quente o sol

E nunca devia ter vindo. Mas não pode ser só isto.


Tudo veio para partir, Agarra-me a vida

Nas minhas mãos tudo caiu, Sob a sua asa intacto,

Corola de cinco pétalas, Sempre a sorte do meu lado,

Mas não pode ser só isto. Mas não pode ser só isto.

Nenhum mal se perdeu, Nem uma folha se consumiu

Nenhum bem foi em vão, Nem uma vara quebrada...

À luz clara tudo arde Vidro límpido é o dia,

Mas não pode ser só isto. Mas não pode ser só isto.”

Neste momento, a reflexão que faço é, por mais desejos que possam se realizar, nenhum será o
suficiente, pois todos os eventos da vida são passageiros, e ninguém poderá escapar da morte que a
todos espreita. Porém, a esperança do homem de fé se sustenta, “não pode ser só isso.”

Estão agora numa pequena sala com um telefone e uma lâmpada. O escritor está imensamente
ofendido com Stalker, que confessa ter recebido pistas da Zona de que era ele quem deveria passar
primeiro. O escritor acha que ele tem a presunção de decidir sobre quem vive e quem morre no moedor
de carne, e questiona que direito ele pensa que teria sobre a vida alheia.. O telefone toca e o professor
atende.

Neste momento, o professor tem uma conversa muito estranha sobre um laboratório 9, imaginamos ter
a ver com o seu passado. Após a inusitada conversa começa um diálogo que é um questionamento
direto ao Stalker. Como ele pode saber se as pessoas que trás para lá são boas e não vão desejar coisas
terríveis como delírios de poder, se tornar tiranos ou ditadores? estaria o Stalker realmente fazendo
bem para as pessoas? O Stalker não pode saber o que as pessoas levam e trazem da Zona.

Escritor diz que uma ideologia não são mais do que desejos, as pessoas desejam coisas e conseguem
outras...Ele acende a luz da sala que pisca, como no início do filme. Acredito que o escritor tenha
encontrado o ponto fraco do Stalker. A luz, o ponto que ele deve estar atento. O mundo dos desejos não
tem a ver com o mundo da realização.

Stalker quer demonstrar compaixão, mas o escritor não parece crer na verdade dele. Ele , culpando
novamente o Stalker, diz que o compreende, colocando uma coroa de espinhos como o Cristo, que viu
sua declamação do poema como um pedido de perdão, mas não irá perdoá-lo. Neste momento , ele
olha para o cão de Stalker, que está deitado no chão, ao lado de uma garrafa e em frente a um casal de
esqueletos sobre o qual nasce uma planta. ( O amor da matéria é finito, assim como os desejos. Os
corpos irão dar origens a outras vidas , no caso a planta. No filme Samsara, de 2001, de Pan Nalin, no
minuto 44:40, há uma cena que me remeteu a esta, quando um velho monge budista mostra para o
noviço figuras eróticas que se transformam em esqueletos quando iluminadas pelo fogo.)

Irão agora para o local denominado a “Sala”, o centro da construção, que parece muito o salão de uma
igreja, onde está, o limiar da Zona, onde os desejos mais sinceros poderão se realizar.

Stalker diz aos dois que para isso tem que relembrar o seu passado,e acreditar. O escritor diz que não
quer relembrar o passado ,que pode ser uma vergonha.

O professor então será o primeiro. Com ele traz uma bomba, e vai armá-la pois seu plano era destruir a
Zona. Para ele, os desaparecimentos das pessoas e a realização dos desejos é algo perigoso, ele precisa
destruir aquele local. Stalker tenta arrancar a bomba do professor, diz que é um local para ajudar os que
não tem esperanças. O escritor o impede.
Neste momento o escritor começa a fazer uma grande crítica ao Stalker, que pode ser observado
também como uma crítica à própria religião. O acusa de demagogia e diz que entende porque o próprio
Stalker não entra na habitação, pois se sente poderoso com a angústia alheia, decidindo sobre suas
vidas. Diz que Stalker é um palhaço de Deus, e é incapaz de compreender, tendo julgado até o Porco
Espinho, que segundo o escritor se enforcou na verdade por não ter conseguido trazer o próprio irmão
da morte, tendo conseguido somente enriquecer. Percebeu que na verdade não havia realidade nos
desejos, somente os mais internos: “ Tua essência, que você não conhece, está aí, te dirigindo por toda
tua vida”., diz ao Stalker.

Neste momento crucial do filme, o escritor vai questionar a própria Zona, e o motivo de sua existência.
Seu materialismo e sua crença no vazio do sentido da existência fazem o Stalker realmente refletir. O
escritor diz que não vai entrar na sala, pois não quer derramar sua sujeira sobre a cabeça de alguém
(com seus desejos?). “E porque você acredita que aquele lugar pode fazer alguém feliz?” Pergunta ao
Stalker. Então, questionamos, o quanto a realização dos desejos tem a ver com a realização do ser? Para
o escritor, que preferia ficar do jeito que estava, nada daquilo fazia sentido.

O escritor sofre agora sua terceira e maior queda, quase caindo para fora da sala onde estavam. Desta
queda, Stalker o segura, o puxando novamente para dentro. Aqui, vejo um símbolo de fé, remetendo de
novo à figura de São Pedro, que por três vezes negou Cristo, mas o Stalker, mesmo tendo sido ofendido,
continua a se preocupar com eles, e “segurá-los”.

Toca novamente o telefone. O professor desarma então a bomba e a joga no rio. Fica então a reflexão,
se não há sentido ir até a Zona, se aquele local não funciona, também não faz o menor sentido explodí-
la. A magia da sala acabou quando a crença deles também acabou.

Agora, uma cena muito bem feita, que novamente lembra uma pintura, centralizados, os três sentam
juntos como quando chegaram na Zona. No alto da “tela”, acima dos personagens, um símbolo fechado,
retangular, cria uma éspecie de “ centro” , como em uma mandala. Para Jung, a integração da
totalidade psíquica pode ser representada por figuras que levam a um centro, e por isso as mandalas
são terapêuticas, são a representação do Self. Na frente deles um calmo lago, onde o professor atira
pedras, agora com liberdade de não precisar mais agradar a Zona ou obedecer ao Stalker.

Dizem: “ é tão silencioso...podem sentir?”

Novamente no silêncio vem a integração e a paz entre aquelas três figuras.

“A criação artística exige do artista que ele "pereça por inteiro", no sentido pleno e trágico destas
palavras. E assim, se a arte carrega em si um hieróglifo da verdade absoluta, este será sempre uma
imagem do mundo, concretizada na obra de uma vez por todas. E se a cognição científica, fria e
positivista do mundo assemelha-se à ascensão por uma escada infinita, o seu equivalente artístico
sugere, por outro lado, um infinito sistema de esferas, cada uma delas perfeita e auto suficiente. Esses
dois fatos podem se complementar ou contradizer reciprocamente; em nenhuma circunstância, porém,
podem anular um ao outro. Pelo contrário, eles se enriquecem mutuamente e se juntam para formar
uma esfera que a tudo abarca e que se lança para o infinito. Essas revelações poéticas, todas elas válidas
e eternas, testemunham o fato de que o homem é capaz de reconhecer a imagem e a semelhança de
quem o criou, e de exprimir este reconhecimento”(Tarkovsky, p. 42)

As cenas agora voltam a ser em preto e branco (sépia), imagens entre água e peixes, enquanto toca o
“bolero” de Ravel.

Retornaram da Zona, e agora, novamente no bar, os três bebem a bebida que antes havia sido rejeitada,
dando a entender que Stalker não está mais ocupado com as regras da Zona, teve sua fé abalada. O cão
, porém, está com o Stalker. A esposa vem chamá-lo.

A cena que ele sai do bar, acompanhado do cão e de sua família, é de extrema beleza. O cão e a família
“sagrada” caminham juntos, e Stalker carrega sua filha nos ombros, atravessando um rio. Esta imagem
me fez lembrar de São Cristóvão, “aquele que carrega o Cristo nas costas”. Aqui, uma pequena
explicação sobre o Santo:

“Decidiu morar à margem de um rio muito perigoso para fazer a travessia de pessoas, as quais levava
em seus ombros. Certo dia transportou um menino que ficava cada vez mais pesado à medida que o
levava. Sentia estar levando todo o peso do mundo em seus ombros. Ao final da travessia, o menino
revelou ser o próprio Jesus, que confirmou-lhe a fé e a missão humilde de atravessar pessoas no rio
perigoso. Daí o nome "Cristóvão", que significa: "Aquele que carrega Cristo". A partir de então, São
Cristóvão via em todos os que atravessava a pessoa de Jesus.

A menina não pode usar as pernas, não pode se locomover no mundo material, tem que ser “carregada”
pelo Stalker. Por isso ele pode ser a “ponte” entre os mundos. Porém, ao final do filme, Stalker está
repleto de dúvidas. Não pode deixar sua esposa e filha irem a Zona porque não quer ter certeza se irá
funcionar com elas ou não. Os dois personagens materialistas atormentam os seus pensamentos. Ele
diz: “Não acreditam em nada! Têm o órgão da fé atrofiado. Não precisam dele!” ...”em nada crêem ,
mas se denominam intelectuais e escritores”.

Mas sempre estão com ele, sem que ele perceba, dois seres que vem diretamente da Zona: o cão e a
menina. Ao cão, servem leite numa vasilha redonda, e a cor do leite muito branco que transborda da
vasilha contrasta com a coloração sépia da filmagem. A menina, tem os trajes coloridos sobre a cabeça,
como uma parte destacada da Zona.

Na cena final, ela lê, em voz alta um poema de amor de Fyodor Tyutchev, em uma mesa. Na mesa , três
copos, e um deles se move, ao que parece, sob o comando da menina, apesar do tremor do trem. Toca
a nona Sinfonia de Beethoven, a “ode a Alegria”.

“Eu amo os seus olhos, meu amor


Sua esplêndida, radiante chama
Quando por um instante você os levanta,
Ligeiramente para lançar um olhar aconchegante
Como um relâmpago cortando o céu

Mas há um encanto que é ainda maior


Quando os olhos do meu amor estão baixos
No calor de um beijo apaixonado…

E por entre os cílios baixos


Eu vejo a entorpecida chama do desejo”
Citando o próprio Andrei Tarkovsky, em “Esculpir o Tempo”:

“Em Stalker eu fiz algum tipo de declaração completa: a saber, que o amor humano por si só é -
milagrosamente - à prova contra a afirmação direta de que não há esperança para o mundo. Esta é
nossa posse comum e indiscutivelmente positiva. Embora não saibamos mais como amar ...

Neste filme quis assinalar aquela coisa essencialmente humana que não se desmancha nem se desfaz,
que se forma como um cristal na alma de cada um de nós e constitui o seu grande valor. E embora
externamente sua jornada pareça terminar em fiasco, na verdade cada um dos protagonistas adquire
algo de valor inestimável: a fé. Ele se torna consciente do que é mais importante de tudo; e a coisa mais
importante está viva em cada pessoa.”(Tarkovsky)

Bibliografia:

Tarkovsky, Andrei. Esculpir o Tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

Tzu, Lao, trad. Mitchell, Stephen, Tao Te Ching. A new english version, pocket edition, 1988

Tarkovsky , Arseni in “8 Ícones”, tradução de Paulo da Costa Domingos, edição da Assírio & Alvim, 1987.

Otsu, Roberto, A sabedoria da Natureza, Editora Ágora, S. Paulo , 2006

Yogananda , Paramahansa, Autobiografia de um Yogue, Self Realization Fellowship, Los Angeles, 2008

Internet:

vedantasociety.net

documentário da TV russa:

https://www.youtube.com/watch?v=2A9Ig8bYeoE

Koans e contos zen budistas

Entrevista Edward Artemeiv:

http://www.electroshock.ru/eng/edward/interview/egorova/

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