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O Real na Clínica

Reflexões para a Sessão de Estudos da Assembleia mensal do Traço


por Pedro Gabriel

Trataremos hoje sobre o Real: conceito fugidio como um cometa, viscoso como o mel e
tão doce quanto uma pedra. Sua perigosa semelhança fonética com a realidade (coisa
que o Real, por certo, não é, visto que ele não se articula a nada na chamada "realidade
exterior") nos impõe uma dificuldade adicional: garimpar o ouro do conceito e da
novidade que carreia, separando-o da pirita do falso sentido de realidade que o léxico
indevidamente lhe empresta. No trato do Real, a realidade é portanto uma palavra que
opera como armadilha. Em verdade, tratar do Real exige não somente que nos
afastemos da palavra "realidade" em específico, mas, de certo modo, exige também que
nos afastemos das palavras como um todo, das palavras como cestos de sentido. Em
uma representação borromeana, coube ao "sentido" (esse mesmo que a Palavra
produz) ocupar o lugar da intersecção entre o simbólico e o imaginário. Podemos
portanto definir negativamente o sentido como sendo do nó aquilo que é nada de Real.
Se é dela, da palavra, dela e somente dela de que dispomos para a transmissão, como
então apontar com palavras aquilo que está fora delas? Eis a nossa primeira
obscuridade. Como se aproximar desse Real que é delicado como uma macambira,
prima-irmã do cacto mandacaru: "Macambira das estrelas, quem te deu tantos
espinhos?" (se pergunta nosso Guimarães Rosa no Grande Sertão). Mas o analista que
se enfronhou com seu próprio fantasma com afãs de atravessamento não haverá de
desistir de escapar dessas mordidas e é ele quem entoa o canto dos Gerais na voz do
Cego Borromeu declarando seu amor resoluto ao maior dos enigmas do Sertão:

Macambira das estrelas,


xique-xique resolveu:
Quixabeira bem me queira
Quem te ama? Bem sou eu.

O Real é nossa macambira das estrelas, nosso espinhoso porquanto amado caminho.
Nossa esfinge que nos ameaça com o enigma: como, por meio das palavras maculadas
do inconveniente sentido, poder, não sem elas, desenhar, indicar, definir o Real que é,
ele mesmo, sem palavras, sem inscrição, sem falta e sem sentido? Há algo de impossível
no trato do Real, impossível mesmo de se definir (visto que incessantemente não se
inscreve) e isso já marca em princípio uma borda, um horizonte de nosso mistério. E eis
aqui a nossa segunda dificuldade: a primeira é a que o Real não designa nada de
realidade, a segunda é precisamente esta: a insuficiência das palavras para descrevê-lo.

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À guisa de algumas definições:

“O simbólico remete simultaneamente à linguagem e à função


compreendida por Claude Lévi-Strauss como aquela que
organiza a troca no interior dos grupos sociais; o Imaginário
designa a relação com a imagem do semelhante e com o "corpo
próprio"; o Real, que deve ser distinguido da realidade, é um
efeito do simbólico: o que o Simbólico expulsa, instaurando-se.
Essas definições antecipam o que Lacan propõe em 1953. Elas
serão desenvolvidas e precisadas na sequência da obra.” (Allain
Vanier, p. 19-20 nota 5, Lacan - Ed. Estação Liberdade)

"(...) nestes meus Gerais, onde eu era o sumo tenente? Não me


respondiam. Ninguém mesmo ninguém. A gente vive não é
caminhando de costas? Rezo. O que é, o que é: existível como
fundo d’água. Agora eu cismo que o cego Borromeu também só
do que já sabia era que indagava. Se não, se não, o senhor verse,
como bula santa; a cita não é revelável?” (Guimarães Rosa –
Grande Sertão Veredas)

“O Imaginário é, seguramente, guia de vida para todo o campo


animal, (...) o simbólico é o nosso (...) isso é capital. As imagens
que captamos (...) e tudo o que apreendemos estão sempre mais
ou menos integradas a essa ordem simbólica que, recordo-lhes,
se define no homem por seu caráter essencialmente, a saber, de
estrutura organizada.” (Lacan, Seminário III)

Caminhemos pois, de costas, como sugere o cego Borromeu. Um antigo provérbio


chinês diz que "o Real é o que está no meio das coisas". O mesmo Guimarães Rosa, no
Grande Sertão e também em Tutameia, retoma esse meio das coisas e se vale do mesmo
significante. Nos diz que o Real é o que nos atravessa no "entre", no caminho, justo no

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momento da travessia, no instante em que não vemos. Não está na partida e nem na
chegada, mas no meio, no trânsito. Fernando Pessoa pergunta-se sobre o Real diz que é
uma teia intecível, uma teia que ninguém tece, é "quem me roubou a minha dor antiga
e só a vida me deixou por dor" é "quem entre o espelho e o incêncio da alma entre o ser
periga". A estas definições informais eu acrescentaria uma canção de Chico Buarque que
sempre me lembrou essa tentativa de dizer do Real: "junto à minha rua havia um bosque
que um muro alto proibia, lá todo balão caía, toda maçã nascia e o dono do bosque nem
via". O Real é um balão soltado por Freud e caído no quintal de Lacan:

“Mas quanto ao que chamo de real, eu inventei, porque se impôs


a mim.(...) É na medida em que Freud fez verdadeiramente uma
descoberta supondo-se que essa descoberta seja verdadeira que
podemos dizer que o real é minha resposta sintomática."(Lacan,
Seminário XXIII p. 128)

Mas isso ainda diz pouco. São generalidades que precisam acrescentar algo de específico
ao nosso ofício, algo que nos lance no caldeirão fervilhante da clínica com algum sabor.
Em quê a noção de Real nos ajuda no progresso da clínica, sobretudo quando o
significante parece vacilar. Notem que não pergunto se o Real funda em uma eventual
NOVA clínica, uma clínica "do Real". Questiono o que ele acrescenta na nossa mesma
clínica e velha clínica, a da palavra: a única de que dispomos.

São duas maneiras inteiramente diferentes de colocar a questão: o Real funda uma nova
clínica? Há uma segunda, uma terceira, uma última clínica? Há um ultimíssimo Lacan?
Talvez um ultimississíssimamente último Lacan? Um velho e às vezes negligenciado
postulado Freudiano pode aqui nos fornecer alguma luz diante dessa necessidade de
supor que a Psicanálise é algo sujeito ao tempo e que deve se reinventar ao sabor do
contexto imediato. Diz Freud que o Inconsciente é o indiscernível. O que isso significa?
Significa que ele não distingue a passagem do tempo ou pessoas e com as novas
relaciona-se à moda das antigas. O Inconsciente relaciona-se com o colega de trabalho
como se ele fora o irmão caçula que nos subtraiu o seio ou com o policial ou o juiz como
se este fora o pai canastrão, eleito pela mãe, para encarnar sua própria insuficiência.

Em 1911 Freud afirma que não existem novidades sintomática: em nosso projeto de
humanização fomos em algum tempo perversos polimorfos, criaturas alucinatórias e
ocupamos posições feminina e masculina de modo que, no dizer de Freud, "tudo o que
aparece como sintoma, já existiu antes como estrutura" ou, como lê Lacan, “tudo o que
se nega no simbólico reaparece no Real”. "Nada há de novo debaixo do sol", diz o
Eclesiastes. Não há nada de novo no pretensioso contemporâneo, há somente um
esquecido que reaparece encontrando um novo giro. Como então, diante dessa
atemporalidade e impessoalidade do Inconsciente, podemos falar de coisas como
"clínica hoje"? "Novos sintomas"? ou outras formulações que soam como um empuxo à
atualização como se a Psicanálise fosse atualizável? Como se perguntar sobre o sujeito
a partir de emergências que não são elas mesmas sem sujeito. Há aqui uma clara tomada
de um sintoma por causa. Estendendo apenas um pouco mais o parêntesis sem
pretensão de esgarcá-lo, quando Lacan formula seus 4 discursos cria o discurso do
analista ele o pensa como uma fábrica de S1, uma fábrica de significantes mestres (eles

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mesmos materializados, não sem elas, por palavras) agenciada pela divisão subjetiva: o
agente é o $ e a produção o S1. O discurso do Universitário não é agenciado pela falta,
mas pelo seu suposto preenchimento, é agenciado pelo S2 (pelo saber). Ele sim é
atualizável e hierarquizável. Ao se pretender atualizar a Psicanálise não se está tentando
submetê-la ao saber? Não se resiste aqui ao Inconsciente em toda a radicalidade do que
inaugura?

agente/verdade --- outro/produção

Apenas com isso, na maneira de pôr as questões, já nos situamos em relação ao


Inconsciente e à Psicanálise mesma. Talvez aqui a noção de Real já comece a plantar
seus frutos e um ou outro balão possa cair do lado de cá, em nosso próprio quintal: a
Psicanálise só será atualizável, engajada, prática, implicada, útil, verdadeira, política, se
ela ocorrer dentro do registro do imaginário que, longe de ser algo a ser desprezado, é,
no entanto, a instância da suficiência: é o imaginário quem plasma o mundo e lhe
empresta um sentido e uma densidade, é o imaginário quem dá inteligibilidade às coisas
e produz demandas de atualização. A Psicanálise toda ela se orienta a um Real indizível
que é quem nos faz falar, isso não somente descarta as Psicanálises do imaginário,
aquelas que acreditam que existe um objeto a ser repartido paritariamente entre os
irmãos, como nos faz pensar: qual é, então, afinal de contas, essa novidade que a clínica
do Real vem apontar? Não seria, ao invés disso, o Real na Clínica?

“Lá está o Real que comanda, mais que qualquer outra coisa,
nossas atividades, e é a psicanálise que o designa para nós.”
(Lacan, Seminário 11, p.61)

“Nenhuma práxis, mais do que a análise, é orientada para aquilo


que no coração da experiência, é o núcleo do Real.” (Lacan,
Seminário 11, p.55)

É certo, certíssimo, que o Real era uma espécie de primo pobre no início da Psicanálise.
Existe desde os fundamentos: já aparece na tese de 1932 sobre a Psicose Paranóica e
também no brilhante artigo de 53 (O Real, O Simbólico e o Imaginário), o primeiro RSI,
foi escrito concomitantemente à exposição do primeiro seminário. Desde então, Lacan

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mal o citava e não definia o Real sem relação às demais instâncias. No seminário 3 chega
a aproximá-lo conceitualmente ao imaginário (em oposição à dimensão lacunar do
simbólico) e sempre se escusava a falar em profundidade a respeito. É certo que as
referências ao Real e sobretudo às referências ao gozo vão demarcando uma presença
cada vez maior desse conceito na Psicanálise lacaniana, mas isso equivale a uma nova
clínica? Equivale ao estabelecimento de uma câmara de iniciados que somente recebem
segredos após transpostos alguns graus? Existem os psicanalistas do Simbólico, do
significante e acima deles os Psicanalistas do Real e escondidos no Tabernáculo do Santo
dos Santos o analista do ultimíssimo Lacan? Por certo que não.

Entendo que o aparecimento mais frequente do tema do Real e do gozo não aponta
para uma nova clínica. Esse aparecimento mais frequente é par de uma afirmação
reiterada de Lacan de que a clínica de Freud não se fazia sem Real. Ele, Freud, é o
descobridor do além das palavras e "daquilo que sempre volta ao mesmo lugar - ao lugar
onde o sujeito, enquanto cogita (...) não o encontra" e as repetições inauguradas por
Freud em 1920 em "Além do Princípio do Prazer" são a certidão de nascimento da
formulação do Real (que já era manejado por Freud desde as histéricas).

Já havia Real quando um pai sonha com seu filho interpelando-o, o mesmo filho morto
em decorrência de uma febre, dizendo: "Pai, não vês que estou queimando?" enquanto
seu cadáver queima na sala onde deveria ser velado. Para Lacan o fogo se refere ao que
foi separado dos próprios significantes, o que foi peneirado do Real: o sofrimento pela
morte, sua culpa e seu desejo de que o filho ainda vivesse. Da mesma forma, no sonho
da injeção de Irma, há uma reinterpretação de Lacan, mas este o faz para evidenciar o
Real que ali já carreava a clínica de Freud: claro que o sonho é o avatar do imaginário
que o sujeito projeta na forma de personagens, com a confusão própria dos mecanismos
da sobredeterminação. Entretanto, Lacan evidencia que esse sonho termina com uma
fórmula química que Freud vê diante de seus olhos com letras em destaque (a
trimetilamina que em sua materialidade de letra, não no seu sentido, remetia a uma
inscrição judaica). Ela indica a presença do simbólico e obriga Lacan a afirmar que ela
aparece para Freud como defesa, para aplacar a sua angústia diante da visão desse Real
que aparece.

Aqui já há, portanto, o Real em seu enodamento com o simbólico e com o imaginário.
Se esse Real nasce com Freud não há como falar em uma novidade conceitual que
refunda ou atualiza a clínica, há que se falar, talvez, da velha resistência dos analistas
em reconhecer seu trabalho que é o de inventor e não de criador. Para Lacan, no
seminário VII, a arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno do
vazio, do Real. (p. 162). Para Lacan e Heidegger o Oleiro é o paradigma do artista porque
ele contorna o vazio. Um vaso é um objeto feito para representar a existência do vazio
no centro do Real que se chama a Coisa, esse vazio" (Lacan, Seminário VII, p. 153).

Nesse contexto, a religião é uma negação desse vazio. Na arte engajada não há a
dimensão de vazio, a arte resume-se ao aspecto de divulgação de ideias e de políticas e
sua implantação no mundo: nesse contexto a arte moderna e suas instalações dotadas
de extensas explicações são modos de recusar o vazio da castração com a construção de
um saber absoluto e salvador a ser implantado no mundo a fim de esclarecê-lo. No

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seminário da Ética Lacan diz que na Psicanálise Pastoral (naquela que se orienta para o
mundo e seu bem) não há um Real. A arte engajada no sentido é criação, a análise, na
margem oposta, é invenção.

Para caminhar para um fim, considerar o Real na clínica sugere atentar-se para o "entre",
para a Travessia do Rosa, para a Grande viagem. Significa passar da lógica dos objetos,
para a da fantasia. A política e a religião (irmãs siamesas) se perdem nos objetos,
propõem que o mundo se resume a reparti-los com equidade. A Psicanálise nos aponta
o contrário, aponta para a diferença que faz com que nenhuma conta feche de maneira
justa ou paritária visto que os próprios sexos não são paritários ou relacionáveis. O Real
faz falir a lógica da parte pelo todo e inaugura a lógica do não todo, uma lógica que se
recusa ao protocolo e só ocorre de modo feminino: no caso a caso.

O Real na clínica é uma aposta radical na falência do mundo, uma crença radical na
fórmula do fantasma que nos conta que NADA de realidade participa do sintoma. Nos
artigos sobre a técnica, Freud comenta que os analistas iniciantes pensam que o mais
difícil da clínica é o desafio da interpretação, quando na verdade o mais difícil de nosso
trabalho reside no manejo da transferência real, ou seja, o mais difícil é manter-se na
Psicanálise e em seu campo, no campo do Real que não é o da cura da impotência (com
o oferecimento de potência), mas o do tratamento impossibilidade (oferecendo um
saber-fazer).

O Real na clínica é o que nos impede à tagarelice, o que nos diz que não é a interpretação
em seu furor de tornar consciente o inconsciente (a falha aposta da IPA) que levará uma
análise a termo. O gozo é um processo primário e, enquanto tal, é um processo lógico e
não fluídico. Toda produção de sentido é, necessariamente, uma maneira de soterrar o
Real, de velá-lo. Eis a mensagem que tento transmitir hoje. Uma análise que se orienta
para o Real não pode se orientar para o esclarecimento ou para a construção de uma
moral superior, mas para um saber-fazer com o núcleo do sintoma. Um Escritor produz
sentidos, um poeta consegue demolir sentidos e fazer criação alçando-nos a um novo
nível de experiência. Schereber é um Escritor, Joyce um poeta. Há algo na formação que
surge como uma travessia entre o Escritor que a Universidade produz e termina no
Poeta que só a experiência analítica é capaz de formar. Um poeta inventa, inventa
sobretudo o que fazer quando Outro desmorona, quando ninguém mais sabe sobre o
sintoma. O fim de análise é uma forma de ateísmo radical: ateísmo em qualquer
instância salvadora ou garantidora. Ateísmo em relação a qualquer cura possível, na
verdade nem na doença mesmo se acredita. No fim, no fim de tudo, resta somente um
Naufrágio, um Naufrágio total e profundo onde submergem o navio... e também as
águas1.

Talvez esteja aí o Real.

1
Essa metáfora do naufrágio diz respeito à definição de “morte” dada pelo filósofo e cineasta Evaldo
Coutinho.

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