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O ser humano é uma animal que sonha.

Somos dotados de uma


prodigiosa capacidade de fabulação, e é através dela que melhor
expressamos nossas dúvidas, anseios e descobertas. Fabular está
no cerne das nossas disposições anímicas. Fabulamos em literatura,
em cinema, em teatro, no dia a dia, quando transformamos cenários
em mundos, atores em personagens, enredos em destinos. Não à
toa, o mito é considerado como sonho coletivo: porque como os
sonhos, expõe nossos conflitos, elabora nossa buscas e atualiza
nossos encontros; é a grande forma do drama universal.

O mito, no entanto, não se limita a dramatizar um conteúdo sob os


termos de qualquer procedimento, mas cria toda uma nova
linguagem ao fazê-lo. Para isso, depende do símbolo. Uma
articulação de ações e procedimentos simbólicos compõe um mito.
Podemos entender o símbolo como um ponto de conexão entre a
realidade factível, inteligível, e algo cujo sentido nos escapa, mas
que deixa um rastro a ser perseguido.

Podemos dizer que há, como fundamento intrínseco da psique, duas


tendências: numa delas, tudo é indizível, no sentido de que em seu
fundamento, um fato sempre terá na sua origem gravado um
mistério. A segunda tendência é que todas as coisas querem falar.
Eis o campo de onde brotam os símbolos. Nesse entre-choque do
querer expressar contra a inexpressabilidade, surge o símbolo como
mediador, para estabelecer a ponte onde as tensões dessas duas
tendências buscarão se equilibrar.

Em um curso sobre Mitologia Afro-Brasileira, recebi um número


variado de pessoas das mais distintas ocupações e idades, sem
nenhum envolvimento com estudos dessa espécie. Estávamos, no
momento, debruçados sobre a figura de Iemanjá, deusa do panteão
Yorubá que no Brasil é amplamente cultuada como a Rainha do Mar.
O mar é sua morada e é ela mesma. Uma senhora pelos 70 anos
apresentava um comportamento incontinente diante das minhas
tentativas de expor uma visão a respeito do motivo mitológico do
parto da virgem. Para ela, não fazia o mínimo sentido e ela se
colocava frontalmente a respeito disso. Pedi-lhe um pouco de
paciência e prosseguimos com a aula; pretendia conduzir a aula de
modo a alcançá-la em sua perplexidade, que é a mesma de todos
cuja natureza excessivamente atada à lógica não conseguem uma
abertura imediata para que o paradoxo do mito possa ser
experimentado. Ela estava impaciente e tive de prometer-lhe que no
fim da aula, depois de exposto todo o conteúdo, voltaríamos ao
assunto. Confiei na intuição de que conseguiria pelo menos fornecer
alguns dados para que ela construísse sua própria experiência do
paradoxo, que o pudesse experimentar segundo suas próprias
disposições. Num dado momento mencionei que o nome Iemanjá
decompõe-se em três étimos: Ie-mo-já, cuja tradução pode ser: a
mãe cujos filhos são peixes. Os primeiros filhos que Iemanjá gera
são os Orixás, potências divinas responsáveis pela vida no Ayié
(Terra). Num exercício de comparação, que exige aproximação do
símbolo com outras ocorrências em contextos diversos, chamei a
atenção para o símbolo do peixe: sendo os únicos animais que não
precisaram entrar na arca de Noé, representam, de certa forma, uma
condição perene do instinto. Os peixes não precisaram do
salvamento que Yaveh ordena que Noé realize, porque já são eles
mesmos aquilo que habita a fonte primeira da destruição e da
recriação, que é o mar, são um símbolo do fluxo imutável da vida.
Mencionei de passagem o milagre da multiplicação dos peixes pelo
Cristo, como de certa forma esta é uma maneira de simbolizar o seu
sacrifício em nome do fundamento primeiro da existência que a tudo
anima e que não necessita de transformação, a própria vocação
crística da psique para a auto-realização. Num gesto metonímico,
Cristo dá a si mesmo quando distribui os peixes. Imediatamente o
semblante daquela senhora se iluminou: “Tudo pra mim são os
peixes. Pinto peixes, sonho com peixes, vejo peixes em todo lugar,
gosto deles de qualquer forma. A noite passada sonhei que tomava
nas mãos dois peixes mortos e os depositava no aquário, depois os
pintava com um pincel usando as cores primárias e eles voltavam à
vida. Uma vez me disseram que eu desenhava e tinha essa
obsessão por peixes porque sou uma pessoa infantil. Isso me
entristecia muito, porque essa pessoa dizia infantil em um sentido
muito ruim, como alguém atrofiado, que não se desenvolveu. Agora
você me diz isso. Estou aliviada!

Vibramos todos com o desfecho da história e a aula pôde prosseguir


até voltarmos ao tema do parto em virgindade, que ela recebeu com
bem menos defesa e impaciência. No fim da aula a aluna veio me
cumprimentar pela aquisição dessa nova linguagem.

Veja que problema um símbolo mal interpretado pode causar! O


peixe tinha uma importância fundamental para a vida criativa da
mulher e, no entanto, disseram a ela que se tratava de uma
expressão de infantilismo. Esse é o problema de tentar reduzir um
símbolo à uma única possibilidade: corre-se o risco de impedir o
desenvolvimento de ideias que de outra maneira poderiam ser muito
melhor aproveitadas. O fluxo saudável do inconsciente é aquele que
transita em direção à consciência como revelação de si mesmo, e
com isso, atingindo a conscientização de si, age plenamente na
manutenção do equilíbrio psíquico.

Devemos procurar enxergar o símbolo sempre como uma invenção


cuja utilidade total nos é desconhecida. Só assim podemos manter
uma relação aberta, que comporte acréscimos e articulações.

O mito, como expressão do inconsciente coletivo, e elaborado em


linguagem simbólica, guarda noções que não estão acessíveis por
uma via lógica única, exige elaboração, aprofundamentos. Quer
expressar os fluxos energéticos da psique, e com isso, percorre
instâncias opostas da verdade, e nos apresenta noções que
desafiam nosso modo de ver o mundo. É daí que se revela o seu
potencial curativo, ordenador, centralizador. O mito se expressa a
partir de noções paradoxais (o parto da virgem, o Trickster, a
Criação a partir do caos, a Jornada do Herói etc.) porque se refere à
alma total, que comporta todos os pares de opostos. Às vezes pares
lutam, às vezes pares dançam, e há quem veja na luta uma dança,
ou mesmo na dança um símbolo para a luta.

Quando dizemos que um símbolo ou um mito é universal, não


queremos dizer que em toda e qualquer cultura ele terá os mesmos
significados. Interpretar um símbolo significa dispor de ideias
herdadas e de ideias construídas, e sobretudo, levar em
consideração o seu contexto histórico e a sua aplicabilidade
psíquica, de tal modo que seria impossível fechar uma interpretação
como mais correta que outra. Pode parecer óbvio à mente moderna
tudo isso, mas lembremos que neste momento há gente morrendo e
matando por acreditar que os mitos e símbolos de sua cultura ou
religião são mais verdadeiros que os das outras. Não são poucos os
perigos da unilateralidade. Há uma tendência a se pensar que numa
discussão de fundo simbólico, alguém precisa ter razão, e toda sorte
de absurdos já foram e são cometidos em nome dessa vaidade. A
razão é só uma parte do entendimento total. Há uma outra, de
tamanho e abrangência desconhecida, em relação ao qual o mito e o
símbolo devem o seu caráter misterioso e revelador: essa dimensão
é o inconsciente coletivo, repositório das nossas disposições
anímicas universais, fonte de toda vida psíquica.

Joseph Campbell, em Isto és Tu, no capítulo Metáfora e Mistério


Religioso, fala sobre a validade das metáforas religiosas:
A metade das pessoas do mundo pensa que as metáforas de suas tradições
religiosas, por exemplo, são fatos. E a outra metade sustenta que não são, de
modo algum, fatos. O resultado é que temos pessoas que se consideram
crentes porque aceitam metáforas como fatos, e temos outros indivíduos que
se classificam como ateus porque acham que as metáforas religiosas são
mentiras. […] Há um perigo real quando as instituições sociais inculcam nas
pessoas estruturas mitológicas que não combinam mais com sua experiência
humana. Por exemplo, quando se insiste em certas interpretações religiosas
ou políticas da vida humana, pode ocorrer uma dissociação mítica. Pela
dissociação mítica, pessoas rejeitam ou são apartadas de efetivas noções
explicativas a respeito da ordem de suas vidas. […] Como, no período
contemporâneo, podemos evocar o imaginário que comunique o mais
profundo e mais ricamente desenvolvido sentido de experiência de vida?
Essas imagens devem apontar além de si mesmas para aquela verdade
definitiva que é imperioso exprimir: que a vida não possui nenhum
significado absolutamente fixo. Essas imagens têm de apontar para além de
todos os significados dados, além de todas as definições e relações, para
aquele mistério realmente inefável que é justamente a existência, o ser de
nós mesmos e de nosso mundo. Se atribuímos a esse mistério um significado
exato, reduzimos a experiência de sua real profundidade. Mas quando um
poeta transporta a mente para um contexto de significados e a arremessa
adiante deles, conhece-se o maravilhoso arrebatamento que advém de ir
além de todas as categorias de definição.

A linguagem simbólica é aquela em que a natureza pode revelar-se


sem esgotar-se em significados. Mantém uma abertura para novas
possibilidades de sentido e transformação, porque o símbolo, e suas
articulações no tecido mitológico, expressa a vida em sua totalidade.
Não pode por isso se deixar petrificar, sob perigo que a própria vida
com isso também se petrifique.

 Se você deseja entender mais sobre o assunto, pode participar do


curso de Introdução ao Mito, em que exploramos os principais temas
nas mitologias do mundo. Abaixo, você tem a ementa do curso e os
demais dados:
INTRODUÇÃO AO MITO

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