Você está na página 1de 3

AUGUST WILHELMSCHLEGEL DOUTRINA DA ARTE

marfíffl. Outis. Ésquilo. Aristófanes. Sófocles. Ajax. ObjeçÕes falsas contra eles. A Isso aponta para uma época do espírito humano em que a fantasia é dominante, mas

capacidade de estimulação da mente na paixão para as mais finas relações sensíveis. não pode chegar à consciência plena de seu domínio, porque ainda não ocorreu uma

Amclinação de Platão para o jogo de palavras. Sofistas e retores. Cícero. A poesia separação pura entre ela e o entendimento, como a força propriamente oposta. Nós

moderna, Petrarca. Cervantes. Os espanhóis estão aqui expostos ao excesso, devido podemos tornar essa época e a criação mítica do mundo muito clara pela imagem do

à sua grande virtuosidade no que é rico de sentido. Na Galateia: blanca. O jogo com sonho, pois durante o sonho nunca surge uma dúvida acerca da realidade das ima-

palavras de Lope: cielos, ceio, o nariz comprido. Os italianos não exageram tanto gens que passam diante de nós, por mais desconectadas que elas sejam e inclusive

em epigramas. Shakespeare é mestre em jogos de palavras de todo tipo. O emprego contraditórias. Moritz aplicou isso de maneira excelente sobre a mitologia antiga e

trágico~sério. Gaunt. Meine. Cômico. Fallstaff. No Minnesinger [canção medieval] mostrou porque justamente por isso a falta de método e de sistema não interferia

alemão: lobelich tobelich, ritterlich hinderlich. Hans Sachs. Lutero. WeckherlÍn, Fle- nela de maneira incomoda e podiam subsistir o aparentemente caótico com sua har-

ming. Desvio por causa da impotência do espírito, ausência de fantasia. Renovação^ mania interior e consistência poética. O momento temporal em que cessa a crença

Goeïhe. Tornar branco. Abraham a Santa Clara. Schiller no WallensteÍn. Tieck. O mítica e em seu lugar entra uma visão prosaica das coisas, de acordo com isso, pode

Juízo final. Errar o alvo. Emprego polémico. Lichtenberg. To báh or not etc. Schelling. ser comparado ao acordar, que suspende o domínio da fantasia por meio de preo-

cupações e de ocupações, onde o entendimento possui a precedência. A poesia é


uma reconstituição artística daquele estado mítico, um sonhar arbitrário e desperto.

Sobre a mitologia Por todos os lugares onde a natureza humana se desenvolve com necessidade.

sem interferências possíveis de um arbítrio errôneo, ela não pode errar. A mitologia

Alguns acenos gerais sobre a essência da mitologia já surgiram na introdução è uma criação essencial da fantasia no curso da cultura humana, e não intencional:

à poesia.-A tradução escolar tradicional da palavra é doutrina da fábula. No entanto, a verdade, portanto, deve-lhe estar à base. O elemento fabuloso, portanto, não foi

é notório que nem tudo o que é da fábula pertence à mitologia; por exemplo, aqui tornado apenas por verdadeiro, e sim é verdadeiro em um certo sentido; aliás, po-

não podem ser incluídas as fábulas de Esopo, que foram dadas e acolhidas logo no demos dizer que no espírito de poemas autênticos se encontra confinada toda a ver-

início como invenções poéticas intencionais, a fim de exemplificar um enunciado dade. Pois, o conhecimento de acordo com o entendimento e a descrição do mundo

moral. Pois, reside no conceito que o fabuloso, em algum lugar e em algum mo- não e mais uma representação, uma visão a partir do todo da mente humana, e sim

mento, foi tornado por verdadeiro. E, na verdade, os mitos não alcançaram esse é mediada por uma força isolada da mesma, com a máxima suspensão daquela que

crédito aos poucos, e sim o tiveram originariamente: são poemas que, segundo sua sozinha concede realidade, a fantasia. Se, portanto, foi perdida a crença na mitolo-

natureza, reivindicaram realidade. Como eles puderam fazê-lo, se depois tiveram, gia, então é por falta de sentido para tanto, e cada revitalização poética é um reco-

todavia, de ser reconhecidos por aquilo? Isso apenas pode ser explicado pelo fato nhecimento do conteúdo verdadeiro que nela reside.

de que reconhecemos que a fantasia é a força fundamental do espírito humano, para O homem permanece para si mesmo sempre o ponto central de tudo, de onde

o que já apontamos com frequência. O ato mais originário da fantasia é aquele por ele deve partir e para onde ele tem de retornar de novo. Ele pode se representar em

meio do qual nossa própria existência e todo o mundo exterior ganham para nós rea- sua mitologia como um ser sensível e como uma parte da natureza, ou segundo uma

lidade. Que essa seja um produto de nossa própria atividade, isso pode apenas ser aspiração, que o torna independente desta e a ultrapassa. Aquilo resultará numa

apresentado por meio da especulação, mas nunca entrar na consciência. O extremo religião terrena e natural (compreendo com isso uma religião que se ocupa com a

oposto é a eficácia artística da fantasia, que é consciente de si e é conduzida com natureza); isso resultará numa religião sagrada e espiritual. Uma vez que o homem

um propósito. Essa eficácia, em relação a seus produtos, é puramente ideal, isto^è, é de início um ser sensível, a primeira espécie de religião se apresentará por todos

ela não coloca para eles nenhuma reivindicação por realidade e não necessita dela. os lados em primeiro lugar e nascerá como religião natural de todos; ao contrário,

Entre ambos os momentos reside no centro a realidade de onde nasce a mitologia. uma vez que a segunda é apenas difundida por meio da influência de homens iso-

Ela dá a seus produtos, por conseguinte, uma realidade ideal; isto é, para o espírito lados de uma sabedoria superior, ela conquistará com isso o caráter de uma relí-

eles são realmente, embora não possam ser comprovados na experiência sensível. gião revelada. O princípio duplo no homem, o realista e o idealista, na verdade, se

282 283
AUGUST WILHELM SCHLEGEL DOUTRINA DA ARTE

exteriorizará em ambas, contudo tornará um caminho apropriado de acordo com a


^manifestar sob uma figura rude, permanece, porém, reconhecível o princípio.
direção principal. Lá se mostrará por si mesma, corporal mente, a aspiração pelo Ma intuição interior, que disso provém, em sua peculiaridade é verdadeÍrapam'0
infinito, por meio do delírio e da tensão; aqui se mostrará espiritualmente a carência homem::no qual ela nasce> e nes_sa medida de modo algum é verdade q"e-to'da"op^
da sensibilização e da presença corporal: aquela produzirá orgias, essa sacramen- mão religiosa deve ser superstição. Na verdade, não há nenhuma superstição^sa
tos, os quais se podem considerar como os pontos culminantes místicos opostos palavra pode apenas significar uma crença que não se compreende a si mesma ou
dos dois tipos de religião. uma crença sem uma^autoatividade da fantasia, aceita por meio da mera tradição,
Conhecemos uma grande quantidade de mitologias realistas, de diferentes por assim dizer, uma falsa crença. O que, ao contrário, se chama comumente de Ílu-'
épocas e nações, mais rudes e mais desenvolvidas, mais escassas e mais ricas. Mas, minismo pode antes ser considerado como um verdadeiro obscurecimento, a saber.
a mais universal e interessante, que também passou de modo mais completo para como apagamento da luz interior e limitação à existência material, que desse modo
a poesia e a arte e por elas foi eternizada, é a mitologia grega, onde tudo se deixa perde igualmente seu significado mais elevado.
apresentar, o que em outras muitas vezes apenas se encontra indicado. Por conse-
Passamos agora para a consideração da mitologia grega, na qual se podem
guinte, queremos levá-la aqui de maneira especial em consideração. De uma espécie distinguir três estágios distintos: o estágio físico, míticos 'ideal. Compreende-Te
oposta apenas nos é conhecida inteiramente a religião cristã, segundo sua essência; que eles não estavam rigorosamente separados segundo épocas, e sim fluíram um
parecem haver diferentes mitologias, de espírito aparentado, no Oriente, a partir das no outro e subsistiram um ao lado do outro; todavia, a ordenação indicada é certa-
quais, aliás, chegou até nós o Cristianismo, e talvez devamos mesmo incluir nelas a mente aquela na qual eles primeiramente apareceram. Os primeiros dois estágios a
religião dos brâmanes, apesar de seu politeísmo variegado; aliás, ela poderia, talvez, mitologia grega tem em comum com muitas outras, o último praticamente apenas
por ter nascido sob um céu que, na receptividade a mais estimulante, convida a um se desenvolveu neles até a suprema consumação.
repouso contemplativo, ser a configuração mais perfeita delas. Tal como já observamos junto à origem da linguagem, é impossível ao ho-
Hume escreveu uma história natural das religiões: eu gostaria que alguém es- mem infantil representar outra espécie de efeito do que aquela que'ele sente em si
crevesse um dia uma história religiosa delas. Naquela história, que também foi cul- mesmo. Por conseguinte, cada causa de modificações torna-se para ele um ser agen-
tivada por outros filósofos que quiseram ser antirreligiosos, tudo se encaminha para te, dotado de vontade e paixões, ele humaniza todas as forças'naturais percebidas.
o fato de que toda a assim chamada superstição teria decorrido de paixões egoístas, Essas^forças são intransítórias e, sob a alternância dos fenómenos que produzem,
do temor e da esperança; essas inclinações teriam então sido empregadas por sacer- todavia imutáveis, imperscrutáveis, incomensuravelmente poderosas, se compara^
dotes para iludir e subjugar a razão humana. Mas, antes teria de se explicar como dançam os homens, são, em suma, deuses. Assim, o céu e a terra são povoados por
essas paixões puderam tomar uma tal direção para além do visível a algo invisível, variadas figuras de deuses. Os elementos são pe.rsonificados de diferentes modos
quando o homem, como eles sustentam, seria uma criatura assim táo inteiramente com determinações peculiares. Assim, Zeus significou no mito grego o ar elevado.
sensível. Ele não iria então acreditar em nada, aliás, nem aceitar de modo algum Juno o ar baixo; o fogo do raio era atribuído a Júpiter, o do sol~a Apoio, já o fogo
algo que não residisse na simples experiência; e uma vez que isso certamente não das queimadas terrestres e era geral o emprego terreno do mesmo tem como repre-
se deixa prescrever pelo conceito da divindade, a esperteza dos sacerdotes nem teria sentante Vulcano. Da mesma forma há mais de uma divindade da água, segundo
nenhum expediente para se apoderar de seu espírito. Devemos certamente admitir as massas e perspectivas sensíveis da mesma: o oceano, na medida em que ele en-
que a religião é justamente um elemento tão originário de nossa existência como a volve a terra firme; Netuno como o mar móvel e formador de ondas; Nereu parece
poesia, porque jamais algo pode entrar no homem, e sim tudo se desenvolve a par- designar as profundezas calmas do mar. A água ainda se individualiza, além disso.
tir dele mesmo. Não é o temor material diante de determinados objetos que move em uma quantidade de divindades submarinas, Nereidas no mar aberto, deuses de
para uma veneração dos deuses; e sim um pavor espiritual secreto indeterminado e nos, ninfas das fontes e assim por diante. Afora a divindade geral da terra existem
ilimitado, que nenhuma segurança corporal pode superar. Tampouco o pode fazer os deuses locais das montanhas, dos vales, das florestas, dos campos, das areadas,
a esperança por bens meramente terrenos, e sim uma saudade nunca satisfeita por napeias, dríadas e assim por diante, de modo que nenhuma parte da natureza cir-
estes, em uma palavra, o impulso pelo infinito. Por mais que as duas coisas possam cundante permanece inanimada.

284 285
AUGUST WJLHELM SCHLEGEL DOUTRINA DA ARTE

Uma vez que a personificação, como vimos, é a forma universal da linguagem irte.smïicas: por •ss°-,VUICano é ° de"^ da ferraria, como se diz usualmente, ou
originária, também o endeusamento não permanece estacionado junto às massas e mïor:de toclos os trabalhos artific'als em matérias S6ud^. Como deu^'d"olfo,
forças da natureza material, e sim passa para o âmbito ideal, e as constituições ou subterrâneo foram-lhe atribuídos os ciclopes, gigantes provocadorerdo'mesmo'"nuZ
os eventos, que se encontram junto ao homem, mas ultrapassam o arbítrio do indi- outra relação eles se tornam também os ajudantes de seu trabalho.
víduo singular e pertencem a todo o género, são elevados à divindades, segundo a ^ Desse modo, as divindades antigas não eram incorporações de conceitos nso-
analogia das forças da natureza. Tais divindades são disposições humanas, estados, I,ÏMente Trados e exaustiTOS-mas corresPondia'" a massas plenas daïntuiçío,
ocupações, paixões, aliás, relações éticas. Assim, por exemplo, o sono e a morte fo- que foram apreendidas a partir de um ponto de vista determinado para a^onsÏd^a-'
ram com razão considerados divindades: o homem sentiu que não podia subtrair-se çâodanatoeza e da vida e reunidas de modo indissolúvel. Assim,7a7possu°em7o
à sua força, no sono reconheceu a carência que sempre retorna, na morte a necessi- mesmo tempo a validade universal de ideias e a presença viva de ind,vÍduos:Mes~
dade inevitável, sem, todavia, apreender a ambos: ele viu essa lei perpassar por toda moa"..ODCleas díferentes relações'nas quais é c°l°^dauma div,ndade,pa7eçam''as
a natureza e, portanto, atribuiu-lhe como um ente a onipresença e a onipotêncm, isto mais distantes e heterogêneas, encontra-se, numa consideração mais precisa7a"maïs'
é, a divinidade. Que o sono e a morte sejam irmãos e filhos da noite torna essa visão t unidade, em um desdobramento multifacetado. Desse modo. Mercúrio'é o"rï
natural consumada no mais belo mito. Da mesma maneira, o amor sexual e o dese- presentante do comércio entre os homens e, por isso, é representado como o mensa-
jo por ele domina todos os seres vivos: eles são venerados sob a imagem de Amor ëelro.l°envlado dos deuses; no comércl° e na tT^ ^o exercidos com frequência
e de Vênus. A guerra é certamente um empreendimento que depende dos homens: a.aÏclaeo.logr0' por conseêuinte' ^ é ° Protetor dos ladrões; a linguagemïo
mas, uma vez estando em curso, ela não é mais senhora do sucesso, o destino do mstrumento mdispensável de todo o comércio humano, por conseguinte é-lh7atn';
indivíduo isolado é arrebatado na agitação universal: a guerra é, por conseguinte, buída sua ^descoberta; porque nesse caso se revela de modo maisoevÍdenteTma^
uma divindade. Mas, os antigos não a tornaram desse modo universal, e sim a fixa- nca propriedade de sentido do espirito humano, ele é o representante dela e,'como
ram sob diferentes perspectivas de diferentes seres, justamente como o elemento da lalLe:?lat"bu!do amvenção da múslca e-além disso- da ginástica (as~duas'paZ
água. Marte é a divindade das batalhas, na medida em que nelas se encontram uma pnncipazs da formação grega). Apoio é originariamente o símbolo do que brilhai
rápida mudança da sorte, Minerva é a bravura racional, Belona é o ódio selvagem étíaro, o que de modo mais forte é algo próprio ao sol: por conseguinteïeïelno
pela luta. A poesia e a música, desde os tempos primitivos, possuem em si mesmas mais.das vezes? ao mesmo temp0' 0 deus SOL embora este muitas ve^s7eja'ta~mbém
mais inspiração entusiasmada do que arte consciente: não é de se admirar, por con- pensado distinto dele. O tipo de efeito dos raios é representado sob a imagem"das'
seguinte, que o dom da canção é atribuído a Apoio e às musas; mas também outras setas, segundo as quais lhe são atribuídos novamente eventos repentinos, por exem^
artes passíveis de aprendizado não são inventadas de imediato por qualquer um, e Pio, uma morte rápida. Como calor escaldante do sol ele suscita apesteo^ehmZa
sim ele as herda de gerações anteriores, e os hábitos e intervenções estabelecidos por meio da seca da moresta os monstros que apenas podem morar ali, coma'
junto a isso determinam sua atividade. Assim, a Minerva é a divindade dos trabalhos exempk'.a cobra píton; mas como calor benéfico ele P°ssui. a° contrário, forçai
femininos, Ceres da agricultura, Baco do cultivo do vinho e assim por diante. Uma ^ra:Mluto belamentea poesia e ° canto são Piados como sendo seus dons,Tpo^
vez que tais atividades são exercidas em objetos naturais, assim os símbolos desses que exigem uma claridade interior e serenidade da mente, e devido ao parentesco
se tornaram ao mesmo tempo os símbolos daquelas. Daqui nasceu uma complica- desse efeito entusiástico com a capacidade de pressentimento da a7ma"emgeraÍ7eÍ^
cão no significado das divindades: Baco não designava apenas o cultivo do vinho, também é o deus do presságio. Assim como a luz e o sol nunca envelhecem"é-lhe
mas também o próprio vinho e seus efeitos; Geres era igualmente a representante próprio a eterna beleza e juventude, da qual o sempre verde loureiro é o símbolo
da agricultura, o cereal personificado ou a fertilidade produtiva pela terra. E para que lhe é dedicado.
isso que aponta a fábula de sua filha raptada para o mundo subterrâneo: Proserpi- ^ ^Nesses exemplos vemos que, na designação mítica, assim como nos exemplos
na é a semente colocada na terra, motivo pelo qual ela passa metade do tempo no ^ linguagem originária, valem os tropos; e por meio dessas traduções; muÏto^m^
mundo subterrâneo, a outra no mundo terrestre. Através da mediação do fogo, o disseminadas na mitologia, do sensível no espiritual, é colocado logo no
homem trabalha os metais e se coloca desse modo na posse de uma quantidade de inicio o fundamento para a polissemia futura e uma plasticidade que pode satisfazer

286 287

Você também pode gostar