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“A loucura é fato da cultura e não da natureza”

Michel Foucault (1926-1984)


“História da Loucura na idade clássica” (1961)

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 Nesta obra, Foucault se propõe a estudar os saberes sobre a
loucura, para estabelecer o momento exato e as condições de
possibilidade do nascimento da Psiquiatria.

 Marca o início da fase arqueológica da obra de Foucault.

 Foucault não se limita ao nível do discurso para dar conta da


formação histórica da psiquiatria, centrando-se também nos
espaços institucionais de controle do louco.

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 Recuperar um processo em que a loucura, que até
então era livre e audível, passa, no início do
Renascimento (século XV), a ser emudecida pela era
clássica (séculos XVI e XVII).

 A experiência trágica e cósmica da loucura viu-se


mascarada pelos privilégios exclusivos de uma
consciência crítica.

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Com este livro, Foucault atinge diretamente a Psiquiatria, que ele chamou de
“monólogo da razão sobre a loucura”. Para Foucault, o discurso da
Psiquiatria veio não suprimir, mas ocultar a loucura.

Foucault não está em busca da verdade psicológica da loucura e sim de uma


verdade ontológica da loucura.

Ontologia: parte da filosofia que trata do ser enquanto ser, isto é, do ser
concebido como tendo uma natureza comum que é inerente a todos e a cada
um dos seres.

Por isso, História da Loucura não é uma obra de história, e sim de filosofia.

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A EXPERIÊNCIA TRÁGICA (OU CÓSMICA) DA
LOUCURA.

Antes de ser dominada, (o que ocorre por volta do século


XVII) a loucura estava associada a todas as experiências
maiores da Renascença.

A figura mais simples e mais simbólica dessas experiências


é a Nau dos Loucos, que foi imortalizada pelos artistas da
época, como podemos ver na obra de Hieronimus Bosch.

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É difícil saber o sentido exato dessas naus.

É possível que tenham sido:

Naus de peregrinação de insanos em busca da razão.

Naus em que os loucos eram levados por mercadores, nas cidades


importantes, lá sendo “perdidos”.

Pode ser ainda que esses lugares tenham sido confundidos com lugares
onde os insanos eram levados a título de cura, com a exclusão no espaço
sagrado do milagre.

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 Mas, essa circulação e o gesto que os escorraça não tem todo seu
sentido ao nível da utilidade social ou da segurança dos
cidadãos e sim se inscreve nos exílios rituais.

 A água leva embora, mas faz mais do que isso – ela purifica.

 Seguram o insano no lugar de passagem, no limiar, ele é colocado


no exterior do interior e inversamente.

 Ele é o passageiro por excelência.

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CONSCIÊNCIA CRÍTICA DA LOUCURA

Daí em diante, a loucura passa a ser objeto do


discurso.

Um marco dessa passagem é o livro de Erasmo de


Rotterdam, “O elogio da loucura” (1509), em que a
loucura é colocada no âmago da razão e da verdade.

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 Tudo o que havia de manifestação cósmica obscura na
loucura, tal como Bosch a via, desapareceu em Erasmo. A
loucura não está mais à espreita do homem pelos quatro
cantos do mundo, ela se insinua nele, ela é um sutil
relacionamento que o homem mantém consigo mesmo.

 De fato há apenas loucuras, formas humanas da


loucura.

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Experiência trágica: Consciência crítica:

De um lado, temos então, os pintores, como Bosch, e Do outro lado, com Brant, Erasmo e toda a tradição
todo o silêncio das imagens. É no espaço da pura visão humanista, a loucura é considerada no universo do
que a loucura desenvolve seus poderes. A loucura tem discurso. Ela pode ter a última palavra, mas não é nunca a
uma força primitiva de revelação: revelação de que o última palavra da verdade e do mundo. O discurso com o
onírico é real, de que a delgada superfície da ilusão se qual se justifica resulta apenas de uma consciência crítica
abre sobre uma profundeza irrecusável, e que o brilho do homem. Enquanto Bosch, Brueghel e Durer eram
instantâneo da imagem deixa o mundo às voltas com espectadores terrivelmente terrestres, e implicados nessa
figuras inquietantes que se eternizam em suas noites e, loucura que viam brotar à sua volta, Erasmo observa-a a
revelação inversa, mas igualmente dolorosa, de que uma distância suficiente para estar fora do perigo,
toda a realidade do mundo será absorvida um dia na observa-a do alto de seu Olimpo.
imagem fantástica, no delírio da destruição pura.

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A experiência trágica e cósmica da loucura viu-se mascarada pelos

privilégios exclusivos de uma consciência crítica.

É por isso que a experiência moderna da loucura não pode ser considerada

como figura total, que finalmente chegaria, por esse caminho, à sua verdade
positiva, é uma figura fragmentária que, de modo abusivo se apresenta
como exaustiva. Sob a consciência crítica, uma abafada experiência trágica
não deixou de ficar em vigília.

É o que podemos entrever no pensamento de Nietzsche, Van Gogh e Freud.

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 A experiência da loucura, que se estende do século XVI até hoje, deve sua
figura particular e a origem de seu sentido a essa ausência e a tudo o que a
ocupa.

 A bela retidão que conduz o pensamento racional à análise da loucura


como doença mental deve ser reinterpretada numa dimensão vertical, e
neste caso, verifica-se que, sob cada uma de suas formas, ela oculta de uma
maneira mais completa e também mais perigosa, essa experiência trágica que
tal retidão não conseguiu reduzir.

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Foucault postula a necessidade de uma revisão radical da maneira
como a Psiquiatria e a Psicopatologia haviam pensado a loucura até
então:

O surgimento da parafernália conceitual da Psicopatologia não permitia


explicar a presença da loucura na natureza humana, pois foi construído
sobre a ilusão retroativa de uma loucura previamente existente na
natureza.

A loucura não é um fato de natureza, mas de cultura, e sua história é a


das culturas que a dizem loucura e a perseguem.
Consequentemente, a ciência médica só intervém como uma das
formas históricas da relação da loucura com a razão.

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 Mas como se constituíram, no século XVI, os privilégios da reflexão
crítica? O que se passou para que as imagens trágicas se dissipassem na
sombra?

 O que acontece é que a partir de agora, a loucura torna-se uma forma


relativa à razão. A loucura não tem mais uma existência absoluta na
noite do mundo, existe apenas relativamente à razão.

 A razão descobre a loucura como uma de suas próprias figuras, o que é


uma maneira de conjurar tudo o que pode constituir-se em poder
exterior, em hostilidade irredutível, em signo de transcendência.

 Erasmo descobre uma loucura inerente à razão.

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Segundo Foucault, a problemática da loucura, tal como era colocada por Montaigne na Idade Média, vê-se
modificada com Descartes:

“A Não-Razão do século XVI constituía sempre uma espécie de ameaça aberta cujos perigos podiam sempre,
pelo menos de direito, comprometer as relações da subjetividade e da verdade. O percurso da dúvida cartesiana
parece testemunhar que no século XVII esse perigo está conjurado e que a loucura foi colocada fora do
domínio no qual o sujeito detém seus direitos à verdade: domínio que, para o pensamento clássico é a própria
razão. Doravante, a loucura será exilada. Se o homem pode sempre ser louco, o pensamento, como exercício de
soberania de um sujeito que se atribui o dever de perceber o verdadeiro, não pode ser insensato. Traça-se uma
linha divisória que logo tornará impossível a experiência, tão familiar à Renascença, de uma Razão irrazoável,
de um razoável Desatino”. (Foucault, 1989, p.47-48).

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Podemos compreender melhor essa passagem recorrendo à
obra de Pelbart, “Da clausura do fora ao fora da clausura”
(1989):

Pelbart afirma que o encobrimento da distinção entre


Loucura e Desrazão não é um problema meramente
vocabular nem mesmo só conceitual.

Segundo Pelbart, essa é a questão sobre a qual Foucault se


debruçou sem, no entanto, tê-la explicitado por completo. A
respeito da tese formulada por Foucault, Pelbart afirma:

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“Trata-se da hipótese de que o surgimento da própria loucura enquanto fato social, objeto de exclusão, de
internamento e de intervenção, já seria o encobrimento e o desvanecimento de uma alteridade todavia mais
extrema e irredutível – a Desrazão. A Desrazão, entenda-se, não era esse Exterior confinado a um personagem
social recluso, como foi a loucura a partir da Idade Clássica, mas simplesmente o Exterior, isto é, o exterior do
homem, e isto sob as mais diversas formas que a história lhe emprestou, seja como Caos no Mundo, Aventura
da Linguagem, Estranheza da Natureza, Transcendência do Divino, Fúria da Morte, Sagrado dos Elementos,
Bestialidade do Humano, estas são algumas das diferentes maneiras através das quais o homem se relacionou,
ao longo da história, com aquilo que não era ele, num vaivém que hoje nos parece quase impensável. É que a
modernidade, tornando tudo familiar, aprendeu a domesticar o estranho, seja sob a tutela clínica, da dominação
técnica ou da oposição antitética”. (Pelbart, 1993, p. 94-95).

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 Nasce a experiência clássica da loucura. Não existe mais a
barca, mas o hospital. No lugar da Nau dos Loucos, surgem as
casas de internamento. Além da experiência filosófica e dos
desenvolvimentos do saber, outros signos traem a existência da
passagem da experiência trágica para a crítica.

 Casas de internamento que se criam no século XVII em toda a


Europa onde se abrigam os pobres, os desempregados e os
insanos e nas quais se trata de recolher tanto os que se
apresentam de forma voluntária como os que são encaminhados
pela autoridade judiciária ou real.

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 A partir de Pinel, sabe-se que é lá que os loucos foram colocados
durante um século e meio. É entre os muros do internamento que
Pinel e a Psiquiatria do século XIX encontrarão os loucos, e é lá
que os deixarão, não sem antes se vangloriarem por terem-nos
libertado.

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 Casas de internamento: uma data de referência importante
é a do decreto da Fundação, em Paris, do Hospital Geral,
em 1656.

 O Hospital Geral não é uma instituição médica e sim uma


instância da ordem monárquica e burguesa que faz ao
mesmo tempo assistência e repressão.

 O Hospital Geral é um estranho poder que o rei estabelece


entre a polícia e a justiça, nos limites da lei, é a terceira
ordem da repressão.

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 Idade Média – inventou os leprosários.

 Classicismo – casas de internamento, que desempenham, ao mesmo tempo, o


papel de assistência e repressão, socorrendo os pobres, mas comportando, ao
mesmo tempo, celas e casernas nas quais se encerram pensionários pagos pelas
famílias ou pelo rei.

Nessas novas instituições de internação que são inventadas, se misturam:

 Os velhos privilégios da Igreja na assistência aos pobres e na hospitalidade


 A preocupação burguesa de colocar em ordem o mundo da miséria
 O desejo de ajudar e a necessidade de reprimir
 O dever de caridade e a vontade de punir

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 Trata-se de uma nova reação à miséria.

 Na Idade Média: a miséria era encarada de uma perspectiva religiosa


que a santificava.

 No Renascimento: a miséria é vista sob a ótica da concepção moral que


a condena.

 Na doutrina de Lutero e principalmente na de Calvino, pobreza designa
castigo e o pobre só pode invocar o descontentamento de Deus, pois sua
existência traz o sinal de sua maldição. Nesse sentido, a prática do
internamento vai representar não somente a laicização da caridade, mas
também, de um modo obscuro, um castigo moral da miséria.

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Mas trata-se ainda de uma resposta à crise econômica:

A prática da internação vai se constituir como uma das respostas dadas pelo século XVII a uma crise econômica que
afeta o mundo ocidental em sua totalidade. As profundas alterações sócio-econômicas que ocorrem na Europa neste
período - a ascensão da burguesia mercantilista e o declínio da sociedade feudal e o conseqüente abandono do campo
pelas populações rurais que buscam as cidades atraídas pelas manufaturas – engendram fenômenos que comprometem
a circulação e a segurança das mercadorias.

Além disso, há desemprego, diminuição de salário, escassez de moeda. O internamento vai desempenhar então, do
ponto de vista socioeconômico, uma dupla função: nos períodos de crise prendendo os desprovidos de trabalho, e, fora
desses períodos, dando trabalho aos que haviam sido presos, fazendo-os servir, com isso, à prosperidade de todos. A
alternativa é clara: mão de obra barata nos tempos de pleno emprego e altos salários; e, em períodos de desemprego,
reabsorção dos ociosos e proteção social contra a agitação e as revoltas.

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 Trabalho e ociosidade traçaram, no mundo clássico uma linha de partilha
que substituiu a grande exclusão da lepra.

 O asilo ocupou rigorosamente o lugar do leprosário na geografia dos lugares


assombrados bem como nas paisagens do universo moral. Retomaram-se os
velhos ritos da excomunhão, mas no mundo da produção e do comércio.

 O fato de os loucos terem sido envolvidos na grande proscrição da ociosidade


não é indiferente, nos ateliês em que eram confundidos com os outros,
destacavam-se por si sós através de sua incapacidade para o trabalho e de
seguir os ritmos da vida coletiva.

 Portanto, antes de ter um sentido médico, o internamento teve como


imperativo o trabalho e a condenação da ociosidade.

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 Se o louco antes aparecia de modo familiar na paisagem da Idade Média, agora ele vai
se destacar sobre um fundo formado por um problema de “polícia”, referente à ordem
dos indivíduos na cidade. Outrora ele era acolhido porque vinha de outro lugar, agora ele
é excluído porque vem daqui mesmo, e porque seu lugar é entre os pobres, os miseráveis
e os vagabundos.

 Até a Renascença, a sensibilidade à loucura estava ligada a transcendências imaginárias,


a partir da era clássica e pela primeira vez, a loucura é percebida através de uma
condenação ética da ociosidade e numa imanência social garantida pela comunidade de
trabalho.

 Essa comunidade adquire um poder ético de divisão que lhe permite rejeitar, como num
outro mundo, todas as formas da inutilidade social. É nesse outro mundo que a loucura
vai adquirir o estatuto que lhe reconhecemos.

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 A internação é uma criação institucional própria ao século
XVII. Como medida econômica e precaução social ela tem
valor de invenção. Mas na história da loucura, ela designa
um evento decisivo: o momento em que a loucura é
percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade
para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo,
o momento em que começa a inserir-se nos problemas da
cidade.

 Não há muito tempo ela se debatia em plena luz do dia: é o Rei


Lear, em Shakeaspeare, é Dom Quixote, em Cervantes. Mas em
menos de meio século, ela se viu reclusa, e, na fortaleza do
Internamento, ligada à Razão, às regras da moral e a suas noites
monótonas.

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 As diferenças nessa população que se confinou nas casas de
internamento agora, são claras para todos, e essa mistura hoje pode nos
parecer um tanto quanto confusa.

 Mas, aquilo que para nós parece apenas uma sensibilidade


indiferenciada, era, no homem clássico, uma percepção claramente
articulada.

 Não é, portanto, o nosso saber que temos que interrogar e sim essa
experiência, a respeito do que ela sabe sobre si mesma, pois o
internamento não significou apenas um ato negativo de exclusão, mas
também um papel positivo de organização.

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O livro sofreu crítica virulenta e ambivalente de psiquiatras, psicólogos e historiadores da psicopatologia.

Foi lançado num momento em que a comunidade dos historiadores da psiquiatria havia deixado de lado o mito da libertação dos loucos
por Pinel, e começava a estudar a história das ferramentas conceituais utilizadas na Psiquiatria em suas diferentes construções nosológicas.
Nessa perspectiva, a loucura, “natural” ao homem, fora arrancada do olhar lançado sobre ela pelo pensamento mágico, para se tornar o
objeto de uma ciência. Foucault denunciava todos os ideais sobre os quais repousava seu saber e destroçava a prolongada permanência do
humanismo pineliano, declarando guerra a todas as formas de reformismo institucional.

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A defesa do saber psiquiátrico tornava-se ainda mais difícil porque as teses de Foucault se
aproximavam das do movimento antipsiquiátrico. A crítica à noção de doença mental e a
contestação de uma psiquiatria considerada patogênica havia começado em 1959,
percorrendo caminhos totalmente diferentes dos seguidos pelo autor de História da Loucura.
Na Inglaterra, na Califórnia e na Itália, a contestação da psiquiatria surgira nos domínios do
asilo e na prática, e ocupava o lugar que, na França, cabia à psicoterapia institucional e à
renovação lacaniana.

Mas este já é um outro tema, que fica para uma outra aula...

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FOUCAULT, M. História da Loucura na idade clássica. 2. ed. São
Paulo: Perspectiva, 1989.
___________Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1975.
MACHADO, R. Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, M.
Microfísica do poder. 11ª. Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
PELBART, P.P. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e
desrazão. São Paulo: Brasiliense, 1989.
ROUDINESCO, E. et. Al. Foucault: leituras da história da loucura.
Rio de Janeiro: Relume-Durmará, 1994.

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