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LOGOS

Nietzsche, precursor
da pós-modernidade
Maria Nelida Sampaio Ferraz*

RESUMO
Este trabalho ressalta aspectos da filosofia
de Nietzsche, relacionando-os ao pensa-
mento da pós-modernidade. A tensão caos-
“ O homem moderno acabou
por ter o estômago car-
regado de uma massa
enorme de conhecimentos indigestos
que, como diz o conto, se chocam e
pela razão doente. Foi Schopenhauer,
talvez, o primeiro filósofo a perceber
a depravação em jogo, graças à nova
racionalidade instrumental, a serviço
do egoísmo possessivo e aniquilador.
ordem mostra-se como um grande desafio entrechocam em seu ventre.[...] Sem Por trás deste quadro de horror, o filó-
para o autor, que acaba por resolvê-la, dúvida, o sentimento permanece fe- sofo cético intuía, angustiado, as for-
concebendo-a como teoria do eterno re- chado na interioridade como a serpen- ças da vida, do corpo e do desejo.
torno. Partindo da vontade de potência, o te que, após ter engolido alguns coe- Estas forças, naturais e inconscien-
filósofo ganha domínio sobre ela, afirman- lhos vivos, se espicha tranqüilamen- tes, permaneciam, contudo, doloro-
do-a como motor das transmutações indis- te ao sol, evitando se mexer além do samente irrepresentáveis para ele.
pensáveis à conservação da vida. necessário {...} Quem quer que ve- Bem antes disso, no despontar da
Palavras-chave: caos-ordem; positivismo;
nha a passar por isso não deseja Modernidade, entre os séculos XVI e
pós-modernidade.
senão uma coisa: que uma tal cultu- XVII, surgiram “intuitivos”, para os
SUMMARY ra não morra de indigestão.” quais o pensamento se dá num outro
This work emphasizes some aspects of registro de sensibilidade, como Inácio
Nietszche’s philosophy, relating them to “Eu vos digo: é preciso ter ainda de Loyola - muito embora, como bem
post-modern thought. The chaos-order caos dentro de si, para poder dar à notou Barthes (1977), estivesse o fun-
tension presents itself as a great luz uma estrela dançante.” dador da Societas Jesu, pragmatica-
challenge to the author, who finally finds Nietzsche mente ligado ao cálculo e às intenções
a solution which he conceived as the contra-reformadoras -; ou Teresa
eternal return theory. Out of the will to A sociedade industrial, que surge d’Ávila, cujo misticismo dirigia-se ao
power the philosopher gains control over na Europa e logo depois se expande êxtase e ao arrebatamento; ou São
such tension, and asserts it as the motor
para a América do Norte, vai exibir João da Cruz, imerso na noite escura;
of transmutations which are indispensable
to life preservation.
sua face brutal, plenamente e sem ou ainda o quietismo de Mme. Guyon,
Keywords: chaos-order; positivism; post- sutilezas, ainda no século XIX. Os de quem Schopenhauer (e o próprio
modernity. espíritos mais sensíveis contem- Nietzsche) foi grande admirador.
plam, então, o mundo do interesse e Assim, antecedendo Nietzsche,
RESUMEN das trocas onde excede o individua- Schopenhauer toma suas distâncias do
Este trabajo señala aspectos de la lismo burguês. Um desses espíritos mundo da razão e do capital onde reina-
filosofía de Nietzsche, relacionándolos al foi Schopenhauer, para cujos olhos o va o valor de troca, em benefício de
pensamiento de la post-modernidad. La ocidente civilizado aparecia como, uma salvação radicada na negação
tensión entre caos y orden se muestra esteticamente, uma taberna repleta do mundo e no niilismo ascético.
un gran desafío para el autor, que acaba de bêbedos; intelectualmente, um Como os místicos dos séculos XVI e
por resolverla, concibiéndola como teoría
asilo de loucos; e, moralmente, um XVII, Schopenhauer rende-se à ani-
del eterno retorno. A partir de la voluntad
de potencia, el filósofo gana dominio so-
antro de malvados. Se o mundo é a quilação ou sublimação do eu domi-
bre ella, afirmándola como motor de las representação da vontade, então nela nador. Nada pode o pensamento con-
transmutaciones indispensables a la reside a fonte do mal. De outro lado, tra os poderes da vontade cega, em
conservación de la vida. porém, desponta, para este mesmo sua ânsia irrefreável de tudo subme-
Palabras-clave: caos-orden; positivismo; filósofo, o mundo impessoal do de- ter. Com Schopenhauer, porém, o pen-
post-modernidad. sejo, mundo não menos assustador, samento ocidental configura-se como
que não se comunicava com aquele crítica romântica e radical da história
outro, dominado pelo frio cálculo e e da modernidade. A partir dele, o

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niilismo surge, ao mesmo tempo, estar amarrado a outra coisa. O valor exprimem pelo eterno retorno do
como verdade filosófica e como de troca imposto pelo capitalismo mesmo como um outro, na história.
impasse contraposto ao pensamento. aparece, então, como um deus cruel É nesse ponto que a vontade requer
Que se entende, porém, por “afogando os tremores sagrados do uma estética (e, portanto, uma éti-
niilismo? Para o filósofo francês êxtase religioso, do entusiasmo ca- ca): cabe ao vivente sentir até quan-
Badiou (1989), esta atitude intelectual valheiresco, da sentimentalidade pe- do uma representação é boa e útil o
representa, antes de tudo, o rompi- queno-burguesa, nas águas geladas bastante para a vida; cabe-lhe ava-
mento das figuras tradicionais do vín- do cálculo egoísta”. (Marx apud liar até que ponto se deve permitir a
culo. Surgem, então, ainda no século Badiou, 1989, p.25) O capital tornou- conservação de uma “ilusão do ser”,
XIX, os restauradores, tomados pela se, na leitura de Marx, o dissolvente possibilitando, então, a transmutação
nostalgia daquilo que se perdeu. En- universal das representações sagra- de valores, de modo que a afirmação
tre estes filósofos das suturas, das e dos valores. O caos vai domi- da vida venha a ser o único compro-
Badiou situa Hegel, os positivistas e nando os diversos campos de rela- misso do homem com a história que
o próprio Nietzsche. Anunciando a ção, em benefício do poder de elites inventa: “Só alguns são suficiente-
morte de Deus, Nietzsche enuncia a consagradas. Em lugar da vontade mente serpentes para se despojarem
verdade essencial de nosso tempo: cega e aniquiladora de Schopenhauer, desta pele: no momento em que, sob
a perda dos fundamentos metafísicos o capital surge agora como a potên- este invólucro, a sua primeira nature-
que apoiavam, até então, o pensa- cia niilista da qual os homens são za morreu já”. (s/d, p.209) Assim
mento. Mas, ao se tornar “filósofo da tanto os inventores quanto as vítimas. também, os espíritos que não mudam
suspeita” de uma fraqueza do pen- Mas, para Marx, este niilismo promo- de opinião deixam de ser espíritos.
samento (Foucault, 1980), de uma vido pelo capital é também uma ne- Temeroso, mas com descon-
racionalidade doente, que não ousa cessidade, para que se abra ao ho- certante audácia, Nietzsche confes-
contemplar sua própria verdade fun- mem da modernidade a consciência sa, em sua obra mais celebrada:
damental, Nietzsche teria, segundo de que o acesso ao ser e à verdade é “Esse é o meu perigo, que meu olhar
Badiou, infligido ao matema platôni- impossível fora dos limites da histó- se projete para o alto, enquanto mi-
co a mesma atitude que Platão re- ria. O homem deve assumir a dessa- nha mão quer agarrar e sustentar-se
servara ao poema: a exclusão. Re- cralização, pondo a nu, no capital, a no vazio”. (1983, p.153) De grande
cuperar o matema é, porém, uma verdade do múltiplo puro, como fun- beleza, Assim falou Zaratustra pode
tarefa urgente para o pensamento do de apresentação. Portanto, Marx ser visto como uma sinfonia em qua-
contemporâneo: ao se curar do denuncia todo efeito de Um como tro movimentos, composta para can-
antiplatonismo, a filosofia permitiria apenas uma configuração provisória. tar a difícil libertação do indivíduo da
a retomada do desenvolvimento de Espera, desse modo, o fim das repre- história onde se mantém cativo. Ao
um pensamento genérico que conce- sentações metafísicas, para que, en- sustentar-se no vazio e acreditar no
beria a verdade como produção regu- fim, se instale a utopia marxista da eterno retorno como o outro da histó-
lar do múltiplo, sem renunciar à ver- história, a partir do modelo hegeliano. ria e uma história outra, o projeto lan-
dade como resultado dessa operação. Desvencilhar o homem da meta- çado por Zaratustra/Nietzsche surge
Badiou sonha com a reintegração do física da Presença, de suas assom- em oposição ao de Marx. Toda a obra
matema ao pensamento da moder- brações e de todos os seus avatares, de Nietzsche pode ser vista como
nidade, que se constituiria como poe- tais como o budismo ou as utopias diferentes representações dessa que,
ma, o que se devia principalmente a extraterrenas que pretendiam garan- em verdade, foi sua única busca:
Nietzsche e, depois, a Heidegger. tir a substancialidade dos vínculos, desatar o nó em que ficara cativo o
Os filósofos da suspeita não in- causadora da alienação do homem mestre Schopenhauer, devolvendo
sistiram em dar um sentido “novo” na história e a perenidade das rela- aos contemporâneos o amor fati, o
ao que já não tinha sentido. Em vez ções apenas fora dela, também é o querer-viver que o vôo de Zaratustra,
disso, modificaram inteiramente a projeto de Nietzsche. Mas, em lugar aeronauta do espírito, nos ensina: o
natureza do símbolo, ao levar a cabo da utopia marxista, de caráter coleti- paradoxo de ser livre o vôo, justamen-
o desmascaramento de toda profun- vo, ele lança um desafio, no final do te porque sabe que é preso. Sua obra
didade como sendo apenas efeito de século XIX, que permanece atual, em realiza, em Assim Falou Zaratustra,
superfície, uma ruga ou dobra inscri- face do ano 2000: assumir a verdade o entrelaçamento do misticismo
ta pelo jogo da linguagem. (Foucault, de nossa condição como sendo a de schopenhauriano da vontade de po-
1980) O homem erra e o Ocidente meros fabuladores, potentes, ao nos tência com as teorias positivistas do
declina, uma vez que o Um se trans- tornarmos conscientes da verdade do evolucionismo e do heraclitismo,
forma apenas no resultado de opera- ser como ficção, uma criação do ho- retornando ao ponto de partida. É pre-
ções transitórias. O tempo nos é con- mem que, como tal, sempre perten- ciso ressaltar que a concepção da
tado pelos que detêm o poder. Passi- cerá ao âmbito da história. Criação, história como submissão do homem
vo, o indivíduo ocidental perde a ca- contudo, necessária e incessante, ao devir desprega o pensamento de
pacidade de representação. Não pas- cujas condições se acham na aber- Nietzsche de qualquer idéia teleoló-
sa de mero espectador de uma vida tura do indivíduo ao devir - domínio gica de progresso. A história será
que não lhe pertence. Nada existe das intensidades puras -, de onde vai sempre, para ele, energia em ação e
para ele, de fato, porque nada pode haurir a potência e a saúde que se alegre afirmação das transformações.

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Portanto, não-terminalidade, inaca- história ou pós-modernidade. Caos de e desvantagem da história para a


bamento, tentativa, errância, enfim. Nis- e ordem apresentam-se como novos vida”, [1874]) e o grupo de obras que
so reside o trágico e a beatitude. desafios para o pensador contempo- se inicia com Humano, Demasiado
Nos anos 90, o conflito das inter- râneo que pretenda chegar a uma Humano [1878], seguindo-se Aurora
pretações, sua pluralidade e conse- compreensão fiel dos paradoxos des- [1881] e A Gaia Ciência [1882]. Mas
qüências para o pensamento filosó- te novo tempo no qual algo resiste e de que positivismo se trata nesta
fico, visto por Nietzsche, ao afirmar, se conserva, enquanto algo irreme- nova metamorfose do filósofo? Lú-
de um lado, a verdade da perda de diavelmente desaparece. cida, animada de espírito crítico, após
fundamentos, de outro, a força eter- Para alcançar sua liberdade de ter constatado a morte de Deus, a fi-
na do devir e a perda da noção de pensamento, simbolizada tanto no losofia de Nietzsche empreende, ago-
origem, torna-se uma questão tanto afastamento do misticismo de ra, a difícil jornada crítica, através da
mais pertinente, quanto mais se Wagner - que por tanto tempo o se- história ocidental, durante a qual des-
avança na experiência da globa- duzira -, quanto do niilismo de mascara o racionalismo platônico (e
lização cultural, conseqüente à revo- Schopenhauer, foi necessário que não o indivíduo Sócrates) e a moral
lução operada no seio da informática. Nietzsche vivesse a grande crise que judaico-cristã, herdeira daquele
Tecnologias que não cessam de se corresponde à fase intermediária de racionalismo (e não o Cristo). Confir-
transformar trouxeram consigo pro- sua obra, fase tradicionalmente con- ma ainda a morte da razão, procla-
fundas alterações no panorama de siderada como positivista. Tal crise mada por Kant, reafirmando, a cada
uma sociedade convulsionada por coloca-se no espaço entre a 2ª Con- passagem, a fundamental descober-
novos hábitos e costumes, bem sideração Extemporânea (“Da utilida- ta da intuição por Schopenhauer. E,
como por um modo absolutamente
novo de relação do indivíduo consi-
go mesmo e com o outro, a partir
das novas concepções de tempo e
de espaço impostas pela telemática
e de uma nova linguagem cada vez
mais disponível para muitos. Esse
“novo mundo”, de navegações ou-
tras, tornou-se de fato ilegível para
os que insistem em abordá-lo, a par-
tir das categorias de entendimento
ditas modernas, herdadas do Ilumi-
nismo. Embora não sejam poucos
os que insistem na redução da com-
plexidade contemporânea ao funcio-
namento dos princípios da razão
iluminista (se assim se pode deno-
minar a ideologia neoliberal em
ação), os espíritos mais sensíveis
percebem que estamos cruzando,
nesse momento, uma outra era.
Como resultado, vivemos na deses-
tabilização, na incerteza, na flu-
tuação e fragmentação cotidianas, no
caos, a bem dizer. É o fim, portanto,
de todo um sistema de pensamento
em que se fundamentava a moder-
nidade histórica. O homem contem-
porâneo não passa sem perceber
diariamente, em volta de si, “frag-
mentos e membros avulsos e hor-
rendos acasos”. Mas, ao mesmo
tempo, este mesmo homem exige
a redenção do disperso: “Eu cami-
nho entre os homens como entre
fragmentos de futuro: daquele futu-
ro que descortino”. (1983, II, p.150)
Acasos sem nome e ocasos nostál-
gicos chocam-se como fenômenos
próprios desta, assim chamada, pós-

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acima de tudo, desmascara a lingua- tado e imóvel, ele se vê constrangi- rora é uma afirmação da vida como
gem como pretensa ciência, como do ao movimento interior de um devir e transformação permanente,
fundamento de verdades absolutas. espírito fecundo que teima em bro- exigindo um espírito aventureiro,
Nas Considerações Extempo- tar. Nietzsche busca, então, a me- como o de Colombo, para que se
râneas [1873-1876], colocava-se o tamorfose daquele caos interior em venha, como um navegador, a
impasse contra o qual, logo depois, luz e forma. Dedica-se, então, à fi- descortinar um “novo mundo”, para
ele se lançaria: história, palavra que losofia, à medicina e às ciências lá do mar, a salvo do perigo de “en-
designa a vida do pensamento, isto naturais. O amigo, ensaísta e com- calhar perante o infinito”? (s/d,
é, as leis rígidas segundo as quais positor Peter Gast foi o redator do p.252) As linhas finais deste livro,
a vida é interpretada, transmitida e texto que um imobilizado Nietzsche tão importante no conjunto das
conservada, por oposição à própria lhe ditava: Humano, Demasiado Hu- obras de Nietzsche, cheias de emo-
vida como instinto e experiência. A mano [1878-79]. Esta obra foi ção, revelam o desejo de descor-
história, ele conclui, deve, pelo con- dedicada a Voltaire, espírito ilumi- tinar um mundo novo, para lá de
trário, servir à vida. Isto, porém, só nado e implacável, que ele tanto onde estivera talvez encalhado o
poderia se realizar, quando as facul- admirava e que ele exaltará, mais mestre Schopenhauer.
dades primordiais da alma, ou seja, tarde, em Aurora, juntamente com A Gaia Ciência [1886] é um hino
o mais obscuro de nós, o mais sel- Augusto Comte, como “livres pen- de amor ao espírito provençal, ple-
vagem, logo, o menos humano, opu- sadores franceses”. (s/d, p.92) no de vitalidade e de alegria, onde
sesse resistência à invasão des- Em contrapartida, Humano, De- já aparecem, no prólogo, os temas
trutiva das construções intelectuais masido Humano vai congelando do Assim Falou Zaratustra [1881].
“humanas, demasiado humanas”. aqueles mitos que, fruto do idealis- A fase positivista produziu, portan-
Nietzsche postula, ao lado da de- mo alemão, até então permaneciam to, belos frutos, no espírito de
sordem promovida, na sociedade colados a suas máscaras. À análise Nietzsche, ao discipliná-lo no rigor
decadente, pelas leis da história, química empreendida nesta obra de um pensamento que se ressen-
uma desordem interior, positiva, no acrescenta-se a fidelidade ao espíri- tia de mais realidade. Um novo
entanto, na medida em que se pos- to herdado de Schopenhauer que método de conhecimento permite-
sa mostrar como fonte de saúde. O nada mais desejava senão perseve- lhe afirmar, agora, esta alegre ciên-
caos, tal como fora entendido pe- rar no ser. A vida aspira a entender- cia. É neste livro que ele alerta para
los gregos, surge como legítimo se, a crescer. O positivismo dá ao o perigo de que a própria ciência
princípio provocador do pensamen- filósofo também as condições de venha a se tornar um ídolo dos no-
to e das ações humanas, das artes pensar a conservação da vida e seu vos tempos, tomando o lugar das
em geral, entre as quais as técni- crescimento, na esfera do binômio religiões. Com espírito de festa,
cas científicas. O caos existe em vida-morte. Assim, nas obras se- Nietzsche prepara-se para sua via-
nós como ausência de leis, como guintes, Nietzsche vai resgastando, gem de retorno ao ponto de que par-
não-história. Voltando-se para o através do domínio de si, aquele sen- tira: a Gaia Ciência, com seus poe-
dionisismo, Nietzsche vê, no caos timento humano, demasiado huma- mas às vezes bem acabados, às
de cada um, um envelope protetor no, desmascarado como tal, mas, vezes caprichosos, é, segundo
capaz de libertar o homem da doen- ao mesmo tempo, tão necessário ao Salomé (1983), um caminho de ro-
ça histórica da modernidade: “A his- exercício do pensamento. sas que Nietzsche colhe à medida
tória, na medida em que está a ser- Perto de Gênova, berço de que avança, com pleno conheci-
viço da vida, está a serviço de uma Colombo, outro de seus heróis, mento de que vai tecendo, nesse
potência a-histórica e por isso nun- Nietzsche escreveu Aurora, cuja mesmo movimento, sua coroa de
ca, nessa subordinação, poderá e epígrafe tomada do livro dos vedas espinhos.
deverá tornar-se ciência pura, como, já nos coloca no ambiente de luz A fase seguinte da obra de
digamos, a matemática. Mas a que, segundo Lou Salomé, “não é Nietzsche, qualificada de construti-
questão até que grau a vida precisa uma luz terna, fria e intelectual a ilu- va, é a do pensamento de Zaratustra.
em geral do serviço da história é minar o passado: por trás dela já se O ideal estético buscado na obra ini-
uma das questões e cuidados mais levanta o sol que reaquece e dis- cial é retomado, no mito de Dioniso,
altos no tocante à saúde de um ho- pensa a vida”. (Salomé, 1983, mas agora reunido ao feminino en-
mem, de um povo, de uma civiliza- p.114) Aurora atenta para a neces- carnado em Ariadne. O deus muti-
ção. Pois, no caso de uma certa sidade da redescoberta do corpo e lado parece ter encontrado a reden-
desmedida de história a vida des- para todos os sinais de decadência, ção de seu corpo. O caos afinal se
morona e degenera, e por fim, com impressos na moral judaico-cristã. realiza na luz de uma estrela dan-
essa degeneração, degenera tam- Desmascara-a, então, como resis- çarina, como uma nuvem escura
bém a própria história”. (1974, p.68) tência aos instintos naturais, ruína clareada de súbito por um raio.
Os anos de doença e crise de fisiológica, tramas, enfim, contra o Zaratustra realiza o propósito do
Nietzsche promovem a cura de seu aumento da energia somática ne- querer livre: assumir a aparência,
espírito. Como a cobra espichada cessária à vida. Aurora é o livro que suportando a tensão caos-ordem,
ao sol mediterrâneo, após se em- deplora a renúncia ao mundo, a ati- dominante no pensamento assis-
panturrar de cultura ocidental, dei- tude do santo e o misticismo. Au- temático de Nietzsche.

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Mas, o perfil desse querer livre temido por Schopenhauer. Segundo criador de histórias e, no entanto, cria-
Nietzsche o buscou na segunda fase Vattimo, Humano, Demasiado Hu- dor de um tecido coletivo que sempre
de sua obra, sem a qual ele não po- mano não é somente análise críti- revelará a História. Nietzsche não só
deria retomar aquelas questões de- ca: “não se trata, de facto, de des- nos convida à tarefa difícil, mas afir-
cisivas para o futuro da humanida- mascarar e dissolver os erros, mas mativa de construir pontes e de reunir
de, levando a cabo o jogo que de os ver como a própria nascente fragmentos dispersos, como nos en-
Schopenhauer se vira impedido de da riqueza que nos constitui e que sina a postura a ser adotada por este
jogar. Anuncia, então, a aurora de dá interesse, cor, ser ao mundo” que ele chama de super-homem, já
uma gaia ciência, de uma filosofia (p.132). A obra de Nietzsche é as- que constrói sobre o nada. Estará o
da manhã que significaria o abando- sim toda ela uma profissão de fé no homem contemporâneo pondo mãos
no de tudo que fosse familiar, de toda homem e no ser que ele inventa. É à obra? Será este assumir a criação,
acomodação e decadência, em prol também um convite a que se viva a conforme a proposta de Nietzsche, a
da saúde permanente de um espíri- experiência do erro, abrindo-se, as- pós-modernidade do homem?
to que, sempre insaciável, só pode sim, ao eterno retorno da diferença
existir nômade, curioso e criativo. histórica, graças ao querer, sempre
Como superar os inconvenientes renovado, deste novo homem que,
trazidos por esta velha história oci- tendo aberto mão da metafísica, sela
dental, na qual se agasalham os mi- uma nova aliança com o mais pro-
tos que retiram do homem aquelas fundo de si mesmo, enquanto sonha
energias criadoras, capazes de per- com o vôo das águias. Transforma- Bibliografia
mitir que a história se transforme em se, então, no super-homem, o cons- ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Friedrich
outra? Voltando-se para a não-histó- trutor de pontes sobre o abismo. Nietzsche à travers ses oeuvres. Paris:
ria. Então, surge Nietzsche como Aprende, com Zaratustra, uma dan- Grasset, 1992.
precursor da pós-modernidade na fi- ça cujos compassos são fruto de BADIOU, Alain. Manifesto pela filosofia. Rio
losofia. A modernidade não resiste passos nem sempre desenhados de Janeiro: A Outra Editora, 1991.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São
à análise positivista de Humano, De- com firmeza e cujos saltos configu-
Paulo: Brasiliense, 1977.
masiado Humano. A análise quími- ram risco e salvação, contidos simul- DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio
ca desta época, emprendida neste taneamente num querer-viver como de Janeiro: Editora Rio, 1976.
livro, revela-nos a impossibilidade de niilismo positivo. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx,
a história ocidental traçar a sonhada A pós-modernidade, como fim da Theatrum Philosophicum. Porto: Anagra-
marcha da progressiva iluminação modernidade foi, portanto, anuncia- ma, 1980.
daquela mesma consciência históri- da por Nietzsche como a visão de NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou
ca rumo à absolutização do espírito. um novo dia, de uma Aurora, onde o Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
A própria verdade em nome da qual historicismo, com suas leis preesta- sileira, 1983.
se realiza tal crítica da história é um belecidas perde sua razão de ser _____. Aurora. Porto: Rés Editora, s/d.
valor que se dissolve. Conhecer as para dar lugar à redenção do homem _____. A origem da Tragédia. São Paulo:
Moraes Editores, s/d.a..
coisas em si mesmas, afirmara num novo estilo, numa nova arte de-
_____. A Gaia Ciência. Rio de Janeiro:
Kant, é totalmente impossível. O senhada a partir dos fragmentos que Ediouro, s/d.b.
conhecimento não passa de “uma restaram: “Eu caminho entre os ho- _____. Humain, Trop Humain. Paris:
série de metaforizações: da coisa à mens como entre fragmentos do fu- Gallimard, 1968.
imagem mental, da imagem à pa- turo: daquele futuro que descortino/ _____. Considerações Extemporâneas. Co-
lavra que exprime o estado de espí- E isso é tudo a que aspira o meu leção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril
rito do indivíduo, e desta à palavra poetar: juntar e compor em unidade Cultural, 1974.
imposta como palavra ‘justa’ pelas o que é fragmento e enigma e hor- PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tem-
convenções sociais, e depois de rendo acaso”. (Zaratustra, II) po, caos e as leis da natureza. São Paulo:
novo, desta palavra canonizada à A pós-modernidade, não como o UNESP,1996.
coisa, da qual percebemos só os fim da história, mas do historicismo VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade:
niilismo e hermenêutica na cultura pós-
traços mais facilmente metafo- que se impôs no século XIX, anun-
moderna. Lisboa: Editorial Presença,
rizáveis no vocabulário que herda- cia-se, na obra de Nietzsche, espe- 1987.
mos...” (Vattimo, 1987, p.132) cialmente no Zaratustra, livro que
Revela-se, desse modo, o funda- sela a nova aliança, como o tempo
mento sem fundo em que a “verda- de transmutação de todo “foi as-
de”, essa quimera humana, está sim” num “eu quis assim”. A re-
condenada a deslizar, sempre outra, denção do humano só poderá acon-
e espantosamente, sempre a mes- tecer no âmbito dessa submissão
ma. Não há, portanto, verdade nem do homem à força do devir, o que
erro. Há apenas errância, devires, ele considera como amor fati. Isto
cuja única regra de continuidade his- pressupõe o nascimento de uma * Maria Nelida Sampaio Ferraz
tórica é a força daquela vontade nova consciência histórica e de uma é Doutora em Comunicação e
impelida pelo obscuro desejo, tão estética, próprias de um pequeno Cultura.

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