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teóricas da musicoterapia no
Brasil
E-ISBN: 9781945411625
Barcelona Publishers
10231 Plano Rd.
Dallas TX 75238
Website: www.barcelonapublishers.com
SAN 298-6299
ii
DEDICATÓRIA
iii
AGRADECIMENTOS
Acima de tudo, agradeço a Deus por essa conquista e por me dar saúde e força
para organizar este livro. Agradeco especialmente ao Dr. Kenneth Bruscia
pela oportunidade de publicar este livro pela editora Barcelona Publishers. O
seu trabalho sempre foi uma grande inspiração para mim e a pulicação deste
livro em português pela Barcelona Publishers representa a realizacao de um
sonho. Quero agradecer a todos os autores que acreditaram nesta proposta,
mostrando o seu esforço e dedicação desde o início deste projeto. O meu
profundo agradecimento ao colega musicoterapeuta Renato Tocantins
Sampaio que aceitou o convite para escrever o prefácio desta pulicação.
Agradeço às musicoterapeutas Lia Rejane Mendes Barcelos e Cláudia Regina
Oliveira Zanini pelo estudo e análise do projeto deste livro. Ainda, quero
agradecer especialmente às musicoterapeutas Maria de Fátima de Almeida
Baia, Cláudia Reis e Salomé Ferreira pelas suas revisões técnicas e/ou
gramaticais realizadas dentro da obra. Quero ainda agradecer a todos os
meus colegas musicoterapeutas da Universidade de Aalborg por sempre me
ajudarem e me apoiarem nas minhas iniciativas acadêmicas. Por fim,
agradeço a todos os meus alunos e pacientes, pois vocês são a razão pela qual
devo continuar esta jornada dentro da musicoterapia.
iv
COLABORADORES
v
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
vi
CONTEÚDOS
Dedicatória......................................................................................iii
Agradecimentos...............................................................................iv
Colaboradores..................................................................................v
Prefácio: Construções brasileiras em musicoterapia ouconstrução
de uma musicoterapia brasileira?..................................1
Renato Tocantins Sampaio
Unidade 1
Aspectos Introdutórios
Unidade 2
Perspectivas Práticas
vii
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Unidade 3
Perspectivas teóricas
viii
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Unidade 4
Outras considerações sobre as perspectivas
teóricas e práticas em musicoterapia
ix
Prefácio
CONSTRUÇÕES BRASILEIRAS EM
MUSICOTERAPIA OU CONSTRUÇÃO DE
UMA MUSICOTERAPIA BRASILEIRA?
1
Prefácio
desenvolvimento de crianças a partir da educação musical e a educação
musical especial. Já para Kenneth Aigen (2014), mesmo em uma rápida
aproximação com a História da Musicoterapia, podemos verificar que a
origem temporal da Musicoterapia baseada somente numa perspectiva
biomédica é controversa e que, com o passar do tempo, várias perspectivas
diferentes surgem e ganham força.
Se, no início da segunda metade do século XX, uma abordagem
mais científica foi necessária para a valorização da Musicoterapia como
um campo de conhecimento autônomo (não subordinado a outros
campos, por exemplo, à Psicologia ou à Medicina), a partir dos anos 1980
vimos o crescimento de uma abordagem mais próxima às ciências
humanas e o reconhecimento de práticas de encantamento e cura (como o
xamanismo e outras) como parte de uma pré-sistematização da
Musicoterapia. No Brasil, estudos como o de Mário de Andrade (1939,
1983), dentre outros, corroboram a existência de tal tipo de práticas.
Em sua pesquisa histórica sobre a Musicoterapia no Rio de
Janeiro, Clarice Moura Costa (2008) descreve ainda como a educação
musical e a educação musical especial também podem ser consideradas
como precursoras da Musicoterapia. Segundo Costa, a primeira pessoa a
ser contratada no Brasil com um registro como musicoterapeuta1 foi Ruth
Parames, em 1954, para integrar a equipe da Dra. Nise da Silveira no
atendimento a pacientes com transtornos mentais no Hospital Pedro II.
Ruth Parames era educadora musical e tinha feito um curso de
aperfeiçoamento com a também educadora musical Liddy Mignone, curso
no qual estudou como trabalhar com crianças com distúrbios do
desenvolvimento, dentre outras populações.
Ao lado das três vertentes mencionadas por Costa, talvez
possamos incluir atualmente um quarto eixo, as práticas musicais
cotidianas e seus efeitos benéficos para a Saúde. Mesmo em textos que
relatam como antecedentes da Musicoterapia as práticas em medicina e
área afins (por exemplo, Horden, 2000) ou que simplesmente falam da
História da Música (por exemplo, Grout; Palisca, 1994), é comum
encontrarmos referências a práticas musicais cotidianas, como cantar para
um bebê adormecer ou cantar para amenizar o desgaste de atividades
físicas. Tais tipos de intervenções não são exatamente práticas de cura
numa perspectiva biomédica, mas sim usos cotidianos da música muito
1
O nome do cargo assumido por Ruth Parames foi Técnico em Musicoterapia.
2
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
difundidos e que demonstram seu potencial para promoção e manutenção
de Saúde2.
Porém, para além de termos alguma delimitação temporal da
Musicoterapia como campo de conhecimento e praxis, é interessante
observar como a Musicoterapia vai deixando de ser somente aplicações de
técnicas para se constituir em um campo de conhecimento relativamente
autônomo. Assim como uma teoria científica corresponde a um modelo
explicativo de mundo, o conhecimento científico necessita de uma
explicação lógica e uma conexão com a realidade (evidências) para ser
validado (Maturana; Magro; Paredes, 2001; Prigogine; Stengers, 1996;
Stengers, 2002). Segundo Ernest Nagel (1968), as explicações científicas
podem ser classificadas em 4 modelos lógicos: 1) explicações dedutivas,
nas quais o produto é resultado das premissas; 2) explicações
probabilísticas, quando as evidências corroboram apenas parcialmente as
premissas e, portanto, elas são submissas às várias; 3) explicações
funcionais ou teleológicas, quando o sistema explicativo está fundado
sobre o papel instrumental explicativo de um ou mais de seus elementos
funcionais; e, 4) explicações genéticas, que se baseiam na sequência de
evolução de um objeto ou sistema originário a partir da transformação de
seu predecessor. Num primeiro momento histórico da Musicoterapia,
talvez a primeira explicação, dedutiva, de relação causal tenha sido
utilizada para reforçar o uso da música como meio de promover saúde.
Porém, quando obtemos evidências contrárias, podemos ter passado para
explicações probabilísticas, nas quais somente em algumas ocasiões os
efeitos terapêuticos foram alcançados. E assim por diante...3
Aigen (2014) classifica o desenvolvimento das teorias da
musicoterapia em três estágios. O primeiro estágio, que vai da década de
1940 a meados da década de 1960, se configura com ideias e princípios
importados em sua maioria da Psicologia, e, portanto, com uma fraca
conexão entre a Teoria e a Prática. Segundo Aigen, nessa época quase não
há constructos próprios da Musicoterapia, embora alguns deles tenham
2
Sobre como as práticas musicais cotidianas podem auxiliar a promover saúde,
sugiro a leitura de “Music in Everyday Life” (DENORA, 2000) e “Music, Health
and Wellbeing” (MACDONALD; KREUTZ; MITCHELL, 2012).
3
Sugiro a leitura da palestra proferida em 1998 por Lia Rejane Barcellos, “Da
Prática Clínica à Sistematização” (BARCELLOS, 2004), na qual Barcellos
descreve um percurso possível para ir da Prática Clínica à uma sistematização do
pensar e fazer musicoterapêutico, isto é uma teoria a partir da prática.
3
Prefácio
sido revolucionários, como o Princípio de ISO, desenvolvido por Ira
Altshuler no final dos anos 1940.
No segundo estágio, que vai de meados dos anos 1960 ao início
dos anos 1980, diversos modelos de tratamento são desenvolvidos e
sistematizados a partir da prática clínica, guardando uma forte conexão
entre a teoria e a prática. Ainda, temos nesse período teorias próprias da
Musicoterapia sendo desenvolvidas para dar suporte e direcionar modelos
clínicos, como podemos observar nos cinco Modelos Clínicos
Internacionais de Musicoterapia chancelados pela Federação Mundial de
Musicoterapia em 1999 (o Modelo Benenzon, o Modelo
Comportamental, o Modelo Bonny de Imagens Guiadas e Música, a
Musicoterapia Criativa de Nordoff e Robbins e a Musicoterapia Analítica
de Mary Priestley).
O terceiro estágio, que teve início no princípio dos anos 19804 e
perdura até hoje, corresponde ao surgimento de modelos teóricos
especificamente musicoterapêuticos. Aigen considera que
[...] com exceção de Thaut (2008), todos os modos de pensar sobre
Musicoterapia que emergiram neste estágio seguiram (um)a ética de
desenvolver a teoria que explica a prática mais do que uma teoria que a
dita. Esta abordagem pragmática – que prioriza o serviço aos clientes
sobre a fidelidade com agendas ditadas por sistemas conceituais
abstratos, questões sociais pragmáticas como as relacionadas ao
financiamento de serviços, ou posições epistemológicas estreitamente
definidas em relação à pesquisa e a os cuidados de saúde – está
fortemente enraizada nos valores da musicoterapia como uma profissão
de cuidado. Ao mesmo tempo, é uma indicação da epistemologia, da
filosofia da ciência e de um sistema de valores fortemente influenciados
pelas humanidades, que têm sido adotados por um grande número de
proeminentes teóricos em Musicoterapia. (Aigen, 2014, p.219,
tradução nossa)
4
Um dos marcos temporais para a passagem do segundo para o terceiro estágio
foi o “II Simpósio Internacional de Musicoterapia”, realizado em 1982 na
Universidade de Nova York, no qual foi discutido sobre “o passado e o presente
da Musicoterapia, alicerçando o futuro na solidificação da identidade da área. A
Musicoterapia, apesar de seu nascimento e desenvolvimento interdisciplinar,
possui algo que é único: a potência clínica da Música” (BRANDALISE, 2001, p.
18).
4
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
No Brasil, apesar de podermos considerar como marco da carreira
a contratação de uma musicoterapeuta em 1954 (Costa, 2008), há
também registros de uma pesquisa desenvolvida por Clotilde Leinig, pelo
menos desde 1952, sobre a “terapêutica da música”. Assim, a prática
profissional foi buscando encontrar seu lugar durante muitos anos de
modo paralelo aos estudos científicos. As primeiras Associações
Profissionais surgiram no final da década de 1960 no Rio Grande do Sul e
no Rio de Janeiro e os primeiros cursos de formação acadêmica de
Musicoterapia começaram suas atividades em 1969 no Paraná (como
especialização) e, em 1972, no Rio de Janeiro (como graduação)
(Barcellos; Santos, 1993). É possível observar uma forte influência do
Modelo Benenzon de Musicoterapia na formação e nas práticas clínicas
dos primeiros musicoterapeutas brasileiros5. Porém, com o passar dos
anos, outras abordagens foram sendo estudadas e colocadas em prática,
bem como novas abordagens, modelos clínicos e teorias foram
desenvolvidas por musicoterapeutas brasileiros.
Além do fato da música brasileira ser muito diversa e rica, temos
no Brasil uma pluralidade de práticas musicoterapêuticas que leva ao
desenvolvimento de novas formas de pensar e agir, que vão incorporando
outras teorias, outras tendências, outras perspectivas, além de constituir
teorias, tendências e perspectivas próprias. É importante ressaltar que,
embora este movimento de crescimento e amplidão tenha se intensificado
a partir dos anos 1990, com o avanço tecnológico que permitiu maior
agilidade de comunicação e intercâmbio de ideias, a Musicoterapia
Brasileira sempre foi marcada por processos de colaboração internacional,
como o contato da musicoterapeuta carioca Gabriele Souza e Silva com o
médico austríaco Andreas Rett, apesar das barreiras linguísticas que ainda
hoje encontramos para uma melhor comunicação e intercâmbio com
profissionais e pesquisadores de outros países.
E é neste solo fértil em termos de cultura, de criatividade e de
interação que vêm sendo desenvolvidas muitas das construções teóricas
dos musicoterapeutas brasileiros, no contexto do terceiro estágio descrito
5
Tal fato pode ser verificado na terminologia utilizada por muitos
musicoterapeutas brasileiros que, para se referir à avaliação diagnóstica
musicoterapêutica utilizam o termo “Testificação”, nome dado à avaliação
diagnóstica musicoterapêutica do Modelo Benenzon (Benenzon, 1988, dentre
outros), mesmo quando tais musicoterapeutas não seguem tal modelo.
5
Prefácio
por Aigen, como as que temos neste livro. Os trabalhos aqui apresentados
não apenas retratam uma pequena, mas relevante e substanciosa parte da
pluralidade, diversidade e amplitude de construções teóricas como
também das práticas clínicas de musicoterapeutas brasileiros. O fato de
estes textos estarem juntos, compondo um livro coeso, pode nos auxiliar a
compreender que estamos em um percurso de edificar uma Musicoterapia
propriamente e tipicamente brasileira.
Renato Tocantins Sampaio
Janeiro de 2021
REFERÊNCIAS
7
Unidade 1
Aspectos Introdutórios
Capítulo 1
INTRODUÇÃO
9
Aspectos introdutórios sobre as perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
“pensar”, “sentir”, “agir” permitem compreender o que representa uma
perspectiva de modo didático. O “pensar” se refere a como entendemos os
fenômenos ou conceitos nos quais estamos imersos. O “sentir”, aqui,
representa emoções e sentimentos relacionados ao que entendemos. Por
sua vez, o “agir” se relaciona às nossas ações sobre algo. Ao longo deste
livro, esses três elementos serão considerados. No entanto, o “pensar” terá
um destaque principal, já que a ideia é mostrar como os musicoterapeutas
raciocinam em diferentes contextos dentro da disciplina no Brasil.
Historicamente, as publicações da musicoterapia brasileira, que
compilam textos de diferentes autores dentro da mesma obra, apresentam
um foco maior em perspectivas centradas no “agir” e no “sentir”. Há uma
prática de mostrar o trabalho que é desenvolvido em diferentes áreas de
atuação, focando principalmente nas ações e sentimentos atrelados a essa
prática. Um exemplo de publicação nesta área é o livro “Vozes da
Musicoterapia Brasileira”, organizado por Barcellos (2007). Esse livro
mostra a diversidade das áreas de prática desenvolvidas no Brasil, bem
como apresenta alguns aspectos teóricos e históricos da musicoterapia
brasileira. Ainda que essa publicação seja um marco por reunir diferentes
perspectivas brasileiras, ela não é focada no “pensar” da musicoterapia
brasileira.
Nesse sentido, esta publicação tem a intenção de apresentar de
forma explícita como os musicoterapeutas no Brasil “pensam”, em termos
teóricos ou práticos, suas diferentes realidades dentro da disciplina. Existe
uma tradição no cenário internacional de mostrar como os
musicoterapeutas “pensam” as suas práticas em diferentes contextos,
principalmente nos manuais internacionais de musicoterapia (Jacosben,
Bonde & Pedersen, 2018; Edwards, 2016, Wheeler, 2015). Nessas
publicações, os musicoterapeutas dão a conhecer suas práticas por
diferentes conceitos, teorias, modelos, métodos, procedimentos ou
técnicas. No entanto, poucos desses manuais possuem seções exclusivas
para apresentar o “pensar” em termos teóricos dentro da musicoterapia
(Jacosben, Bonde, & Pedersen, 2018). Aliás, são poucas as publicações no
cenário mundial que discutem de forma clara teorias ou questões
metateóricas (teorias preocupadas com a investigação, análise ou descrição
da própria teoria) (Bonde, 2001). Entre essas poucas publicações, é
possível citar o livro Readings on Music Therapy Theory (Leituras sobre
Teoria em Musicoterapia) (2012) e o livro The Study of Music Therapy:
Current Issues and Concepts (O Estudo da Musicoterapia: Tópicos e
10
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Conceitos atuais) (Aigen, 2013). Na primeira obra, Bruscia (2012) faz
uma compilação das principais teorias de musicoterapia utilizadas no
mundo, apresentando de forma didática cada uma delas. No caso do livro
de Aigen (2013), o autor traz considerações sobre a construção das teorias
em musicoterapia e ainda faz uma revisão sobre como foram entendidas e
desenvolvidas ao longo da história.
11
Aspectos introdutórios sobre as perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
musicoterapeuta, bem como sobre o músico-centramento. Nesse mesmo
período, há uma aproximação dos musicoterapeutas no Brasil com os
conceitos da Teoria Ator-Rede (TAR), das teorias antropológicas e das
ciências sociais, bem como da teoria da complexidade para explicar
diferentes fenômenos em musicoterapia (Cunha, 2006; Piazzetta &
Craveiro de Sá, 2005; Morais & Silva, 2007). Entre 2010 e 2020, o pensar
da musicoterapia esteve atrelado principalmente ao desenvolvimento da
musicoterapia em áreas até então pouco descritas (musicoterapia
organizacional, musicoterapia para famílias, uso da mesa lira em
musicoterapia). Ao mesmo tempo, esse período também permitiu o
desenvolvimento de reflexões mais profundas sobre áreas nas quais já
existia um determinando pensar, porém que não havia sido explorado de
modo sistemático, como é o caso da Neuromusicoterapia, da
Musicoterapia Social e Comunitária, da Musicoterapia na Educação, bem
como da avaliação em musicoterapia (Arndt & Maheirie, 2020; Moreira
et al., 2012, Gattino, 2020). Mesmo que a descrição acima seja
extremamente linear e sintética a respeito da forma de pensar em
musicoterapia da brasileira ao longo da história, ela resume a riqueza de
áreas e assuntos abordados no Brasil no que se refere às perspectivas
centradas no pensar.
12
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
a apresentação do modelo de musicoterapia músico-centrada (Brandalise,
2001). Nessa publicação, o autor define o que é único e essencial sobre o
modelo e caracteriza de que forma são usados os diferentes métodos,
procedimentos e técnicas para a sua aplicação. No segundo, o
musicoterapeuta tem o intuito de mostrar como uma determinada prática
ocorre, abordando principalmente as suas características. Esse é o caso da
publicação de Petersen (2012), a qual descreve a musicoterapia no
contexto dos cuidados paliativos. Na terceira situação, o musicoterapeuta
está interessado em entender relações específicas da prática
musicoterapêutica. Carpente (2013) apresenta os círculos de
comunicação de uma interação através da música em musicoterapia,
descrevendo como esses círculos se iniciam e terminam. No quarto caso, o
musicoterapeuta realiza uma reflexão sobre a prática para poder moldar
suas intervenções futuras. Esse é caso do modelo de decisão proposto por
Gattino, Jacobsen e Storm (2018) para a escolha de um método de
avaliação em musicoterapia. Nesse texto, a partir das experiências práticas
dos autores no campo de avaliação em musicoterapia, apresenta-se uma
proposta em diferentes estágios para se optar por um método de avaliação
em musicoterapia a ser aplicado pelo musicoterapeuta em um contexto
específico de atuação.
As perspectivas teóricas estão relacionadas a formas específicas de
pensar sobre um determinado tema em musicoterapia, de um modo
abstrato ou filosófico. Dentro das perspectivas teóricas, o musicoterapeuta
pretende:
1) Estabelecer relações entre diferentes conceitos ou teorias;
2) Explicar teoricamente determinados fenômenos;
3) Descrever uma teoria;
4) Fazer considerações metateóricas.
No primeiro item, o musicoterapeuta está estudando um
determinado conceito e pretende analisar como outros conceitos ou
teorias podem estar relacionados a ele. Esse é o caso da publicação de
Sampaio (2005), na qual o autor estabelece relações sobre a definição de
música em musicoterapia a partir da concepção de Delleuze e Guatarri no
contexto da Esquizoanálise. Na segunda situação, o musicoterapeuta
busca explicar teoricamente o que ocorre na prática musicoterapêutica.
Um exemplo é a publicação de Cirigliano (2019), que utiliza o referencial
teórico lacaniano de pulsão invocante para compreender as observações de
13
Aspectos introdutórios sobre as perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
atendimentos musicoterapêuticos com crianças e adolescentes autistas.
No terceiro caso, o musicoterapeuta apresenta uma teoria com o objetivo
de definir e delimitar as características únicas e essenciais de um
determinado conhecimento a ser estudado. Um exemplo seria o conceito
teórico de metáfora narrativa em musicoterapia criado por Barcellos
(2009). Nessa publicação, a autora apresenta as bases teóricas que
sustentam esse conceito, define e delimita, apontando, ainda, situações
práticas nas quais esse conceito pode ser entendido. No quarto contexto, o
musicoterapeuta está teorizando sobre o processo de criar, analisar e
comparar diferentes teorias. Para esse exemplo, cito o texto de Bruscia
(2005), o qual reflete no que consiste e como podem ser categorizadas as
diferentes teorias em musicoterapia.
Ainda que as perspectivas teóricas e práticas tenham distintas
finalidades em musicoterapia, elas estão conectadas por uma forma
sistematizada de pensar. Essa forma sistematizada normalmente se traduz
por conceitos, teorias, modelos, abordagens e orientações. Isso significa
que as perspectivas práticas também estão atreladas a entendimentos
teóricos, da mesma forma que as perspectivas teóricas. Para que se possa
explicar uma prática, normalmente são apresentadas ideias teóricas que
permitem um entendimento do que ocorre na prática. Caso contrário, se a
prática for entendida apenas por exemplos práticos sem uma organização
teórica, torna-se meramente empírica. Segundo Aigen (2013), a prática
clínica que não é guiada pela teoria não tem justificativa para os
procedimentos realizados. Resumidamente, então, tanto a perspectiva
teórica quanto a perspectiva prática são baseadas em teorias, pelas quais
serão explicadas. A perspectiva teórica, naturalmente, tem foco na teoria, e
a perspectiva prática, na prática.
15
Aspectos introdutórios sobre as perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
16
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
musicoterapia (Aigen, 2013). Nesse sentido, uma orientação não contém
intervenções, procedimentos e objetivos específicos. As orientações são
baseadas em valores, conceitos e fundamentos filosóficos generalizados.
Em síntese, esta obra irá tratar, de modo direto e indireto, dos
conceitos apresentados acima. Alguns capítulos estão mais centrados em
conceitos, por exemplo, enquanto outros se voltam a teorias, orientações
ou modelos. Da mesma forma, é importante não confundir modelos com
os conceitos de abordagem e orientação, pois ainda que haja semelhanças,
existem também diferenças significativas.
18
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
usuários do serviço musicoterapêutico, pois permite uma reflexão mais
profunda sobre a musicoterapia enquanto processo por meio de diferentes
entendimentos.
19
Aspectos introdutórios sobre as perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
considerações sobre a musicoterapia organizacional, tendo a autoria de
Alexandre Ariza. O 6 apresenta o uso da mesa lira em musicoterapia, e foi
escrito por Tereza Raquel Alcantara-Silva. O Capítulo 7 compartilha ritos
de passagem em cuidados paliativos, trazendo a improvisação musical para
celebrar a vida à beira da morte, e tem a autoria de Elizabeth Petersen. O 8
integra música e cores, abordando proposta de interpretação musical em
musicoterapia a partir da ótica de Igor Ortega Rodrigues. O 9 traz a
musicoterapia e a doença trofoblástica gestacional relatando a atuação do
coletivo MT-DGT como corpo terapêutico; foi escrito por Martha
Negreiros de Sampaio Vianna, Ana Carolina Arruda Costa, Alice Sales
Rangel, Laura Tinoco de Paula Ramos, Rosana Cardoso Lopes Pereira e
Yuri Machado Ribas. O Capítulo 10 traz a proposta de musicoterapia
músico-centrada, e tem a autoria de André Brandalise.
A terceira unidade, denominada “Perspectivas teóricas em
musicoterapia”, contém também nove capítulos e tem o intuito de
apresentar as perspectivas brasileiras centradas em pensamentos
essencialmente teóricos. O Capítulo 11 descreve os ambientes sonoros em
musicoterapia a partir das pesquisas de Ana Léa Maranhão. O 12 discute a
musicoterapia e a abertura de canais de comunicação, e tem como autora
Clarice Moura Costa. O 13 apresenta um pensar sobre música e
musicalidade na musicoterapia segundo a proposta elaborada por
Gregório José Pereira de Queiroz. O Capítulo 14 debate as relações entre
musicoterapia e bioética e foi escrito por José Davison da Silva Júnior. O
15 reflete sobre quando o silêncio se faz presente nas sessões, segundo a
ótica de Lilian Monaro Engelmann Coelho. O 16 discute a concepção da
canção-âncora como uma jornada na musicoterapia, e tem autoria de
Marcia Cirigliano. O Capítulo 17, por sua vez, aborda o pensar da vida
redefinida em um corpo mutilado, e tem como autora Maristela Smith. O
18 aborda a musicoterapia no foco da produção da subjetividade e da
contribuição filosófica de Deleuze e Guattari e tem a autoria de Marly
Chagas. O Capítulo 19 entrecruza musicoterapia, sons sociais e o atual
momento de pandemia, segundo a visão de Raquel Siqueira da Silva.
A quarta e última unidade, intitulada “Outras considerações
sobre as perspectivas teóricas e práticas em musicoterapia”, é composta
por dois capítulos e tem o objetivo de trazer relações entre as 18
perspectivas apresentadas, descrevendo também perspectivas não
abordadas nas unidades anteriores. O Capítulo 20, denominado
“Perspectivas teóricas e práticas da musicoterapia brasileira: uma análise
20
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
comparativa” foi escrito por Gustavo Schulz Gattino, Lázaro Nascimento
e Maria de Fátima Almeida, e reúne comparativamente as diversas
perspectivas a partir de uma visão musicoterapêutica e também segundo a
ótica da linguística. O 21 tem o título “Outras perspectivas teóricas e
práticas da Musicoterapia no Brasil” e foi escrito pelo editor da obra. A
proposta é realizar uma síntese de perspectivas importantes da
musicoterapia brasileira não descritas nas unidades 2 e 3.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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25
Unidade 2
Perspectivas prátic
Capítulo 2
A ‘MUSICOTERAPIA INTERATIVA’
INTRODUÇÃO
6
Grifo dos autores.
27
A ‘musicoterapia interativa’
No entanto, raramente se relatava ‘como’ um musicoterapeuta se
aproximava de um paciente ou ‘como’ utilizava a música para isto.
Também não eram explicados quais eram os poderes ‘curativos’ da
música. Assim, como não era possível demonstrar esse ‘poder’, os autores
passaram a se concentrar nas atividades musicais e a colocar a atenção
principalmente sobre o desenvolvimento das relações interpessoais ou,
mais especificamente, na importância da relação terapeuta-paciente.
Desta forma, a musicoterapia em seus primeiros vinte e cinco anos
passou pelas três etapas já bem conhecidas: a primeira, a importância se
dirigia ao efeito que a música exercia, não sendo a função do
musicoterapeuta levada em consideração. Isso se devia, talvez, ao fato de a
principal experiência utilizada à época ser a audição musical, ou seja, a
música não era feita pelo musicoterapeuta, mas, sim, veiculada por este: a
denominada musicoterapia receptiva; a segunda: quando outras
experiências musicais que necessitam da atuação do musicoterapeuta
passaram a ser utilizadas como a recriação, a improvisação e a composição,
deixando-se de prestar atenção só à música: a relação musicoterapeuta-
paciente se tornou o centro. Já na terceira fase tomou-se uma posição
intermediária entre os extremos das duas posições anteriores: o
musicoterapeuta passa a utilizar a música, assumindo uma atuação da
forma mais conveniente para possibilitar o estabelecimento do vínculo,
imprescindível para facilitar o desenvolvimento de qualquer processo
terapêutico.
No que concerne à aplicação da musicoterapia, as suas origens, a
sua caminhada histórica e as teorias e práticas atuais existentes também
em outros países do mundo ratificam a existência de duas formas, como
pode se ler ainda no Tratado de Musicoterapia: a Musicoterapia Receptiva
e Musicoterapia Ativa. (In Gaston, 1971, p. 23).
Entende-se que a prática da musicoterapia ativa “só começou
quando já se dispunha de pessoas treinadas e em condições de ajudar os
pacientes a satisfazerem não só as suas necessidades físicas como também
as psíquicas” (Schneider, E; Unkefer, R. e Gaston. T, In Gaston, T. &
outros, 1971, p. 21 e 22). Nessa prática o paciente está ativo no processo
de fazer música e acredito que nunca se entendeu a musicoterapia ativa
como sendo aquela onde só o paciente faz música, mas, sim, tendo o
musicoterapeuta também implicado nesse processo. No entanto, isto não
fica claro nas primeiras explicações sobre essa forma de musicoterapia.
28
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Contudo, embora se fale das implicações do musicoterapeuta
desde o princípio, e da sua participação musical para estabelecer o vínculo
terapêutico, a minha prática me mostrou que deve ser mais do que isto, ou
seja, deve haver a busca de um verdadeiro ‘encontro’ terapeuta paciente,
uma ‘interação’ entre os dois, e que é essa interação -- que pode ser de
elementos musicais, extramusicais e, certamente de afetos, -- que vai
potencializar esse encontro e propiciar o estabelecimento da relação que
vai possibilitar o desenvolvimento do processo terapêutico.
Neste tipo de aplicação da musicoterapia, na qual a música é feita e
vivida tanto pelo musicoterapeuta quanto pelo paciente (quando este tem
condições), há uma forma de ‘inter-ação’, transformando-se num
processo ‘interativo’, possibilitado, facilitado e potencializado pela música
e pelo fato de esta acontecer no tempo, ou seja, ser uma arte temporal.
A partir de então (década de 1980), comecei a investigar se algum
autor se referia a esse tipo de aplicação da musicoterapia e, não
encontrando nada a respeito, decidi me debruçar sobre o que denominei
musicoterapia interativa, objeto central deste artigo e cujas sementes
foram plantadas na minha prática clínica e a partir do II International
Symposium on Music Therapy (1982).
A Prática clínica
29
A ‘musicoterapia interativa’
perceber as diferenças entre a busca de interação nestas três áreas de
atuação. Também atuei como musicoterapeuta com Meninos de Rua, no
morro do Pavão- Pavãozinho, situado entre Copacabana e Ipanema, dois
importantes bairros da Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro; numa
Clínica de Diálise, com crianças e adolescentes no momento em que eram
submetidas a esse procedimento e, recentemente (2017), como
musicoterapeuta do “Centro Municipal de Saúde Dom Helder Câmara”
(Posto de Saúde Pública), com um grupo de mulheres no climatério e
menopausa, além de 14 anos em um Consultório particular, atendendo a
crianças com todos os tipos de diagnósticos. Também tive experiências
durante mais de cinco anos, na década de 1980, em atendimentos
domiciliares com vítimas de traumatismos: por queda, e por mergulho.
Ainda cabe registrar um fato de relevância que se refere à prática
clínica: desde a minha participação como estagiária, iniciada em 1973, até
meu último trabalho como musicoterapeuta clínica, finalizado em
dezembro de 2017, registrei por escrito todas as sessões de todos os
pacientes atendidos individualmente ou em grupo, e muitas também em
fitas K7 ou em vídeos, tendo um acervo que me permite, ainda hoje,
consultar qualquer atendimento, acessando informações desde a
entrevista inicial até a alta. Além disto, também foram registradas por
escrito, todas as reuniões realizadas com os outros profissionais que
atendiam aos mesmos pacientes que eu: médicos, psicólogos,
fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais e fonoaudiólogos, assim como os
professores dos pacientes que frequentavam escola. Estes profissionais
trabalhavam na mesma instituição onde esses pacientes eram atendidos
por mim ou em outras instituições/escolas. Quando não estavam nas
mesmas instituições onde os pacientes eram atendidos por mim, eu os
denominava como participantes de uma “equipe não formal” (Barcellos,
1986, publicado em 1994, p. 11).
Cabe registrar que a interlocução com estes profissionais foi de
extrema relevância para pensar muitos dos aspectos da clínica que viriam
mais tarde a se constituir como parte da Musicoterapia Interativa.
Reconheço que no início dessa prática comecei a perceber o que
acontecia no momento em que eu atendia principalmente crianças
autistas e portadoras de Encefalopatia Crônica da Infância (paralisia
cerebral), mas, também, idosos com sequelas de Acidente Vascular
Cerebral (AVC). Crianças que não falavam, e que eu utilizava algumas
30
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
‘ações musicais’ como ‘provocação’, acabavam por completar uma palavra
que eu começava e interrompia fazendo uma terça menor, por exemplo,
por ser da etapa do desenvolvimento musical desse paciente. Ainda
cantava qualquer outro elemento rítmico melódico que eu percebia que
podia ajudar nessa “provocação”. Ou seja: a música possibilitava/facilitava
a fala, tendo como resultado, quase sempre, a resposta dessa provocação.
Isto resultava numa ‘inter-ação’ musical que podia ser sucessiva ou uma
‘interação’ simultânea, possibilitada pela temporalidade da música. Em
geral começava sendo sucessiva e, pouco a pouco, transformava-se em
simultânea.
A partir daí comecei a pensar e estudar como podia se dar essa
‘inter-ação’, que acabava possibilitando a ‘interação’ entre
musicoterapeuta e paciente, e qual era a sua importância em
musicoterapia.
31
A ‘musicoterapia interativa’
Em segundo lugar, cada convidado tinha como condição escrever
um texto que deveria ser enviado à Universidade de N. York três meses
antes do evento e, daí, os mesmos seriam encaminhados para todos os
participantes para serem lidos, pois seriam objeto de discussão no evento.
São textos que ainda hoje consulto porque muitas das ideias aí veiculadas
ainda podem ser consideradas atuais. No entanto, depois do Simpósio
fomos informados que os textos eram propriedade da Universidade de N.
York e que não poderiam ser divulgados por nós porque seriam utilizados
para a publicação de um livro7.
Devo assinalar que no texto escrito por mim para esse evento já
existe uma primeira referência à Musicoterapia Interativa, onde se lê:
“...resultando em uma interação rítmico-sonora entre o terapeuta e o
paciente, bem como uma compreensão dos múltiplos aspectos dessa”
(Barcellos, 1982, p. 1). Esta frase demonstra que a questão já era objeto de
estudos e, certamente por isto, eu tenha escolhido participar do grupo que
discutiria: “A música no tempo e o tempo na música”, ratificando o meu
interesse e se constituindo como uma das sementes para o
desenvolvimento dos estudos em torno da Musicoterapia Interativa, pois,
nesse evento, as minhas ideias e os desdobramentos sobre a música como
uma arte temporal e, por isto, a possibilidade de interação, tiveram o aval
do grupo de profissionais experientes e renomados.
Ainda no texto acima referido se encontra mais um indício da
Musicoterapia Interativa na frase seguinte: “antes de as crianças se
comunicarem através de palavras, conseguem a interação através de sons”
(Barcellos, 1982, p. 6).
Em terceiro lugar, a dinâmica do Simpósio foi organizada de uma
forma muito específica: uma reunião inicial, na qual todos os
participantes se apresentaram e momento em que foram expostos cinco
temas e cada participante poderia escolher um deles e se dirigir para a sala
do tema escolhido. Assim, cinco grupos foram formados e trabalharam
por cinco dias sobre o mesmo tema escolhido no início do evento.
Trabalhávamos de 8h da manhã às 18hs. em pequenos grupos, com
intervalos pela manhã e à tarde, momentos em que todos nos juntávamos
7
Só recentemente foi publicado um livro eletrônico sobre o Simpósio, mas os
textos escritos pelos participantes não foram nele incluídos e sim fotos e
comentários sobre o evento.
32
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
e havia uma apresentação musical. Nos almoços e jantares sempre
estávamos todos juntos. Algumas noites íamos a concertos, e estávamos
todos hospedados no Hotel da Universidade de N. York, o que vale dizer
que o formato do evento permitia que sempre estivéssemos falando ou
discutindo sobre música e/ou musicoterapia. Além disto, ao final de cada
dia tínhamos que escrever sobre o que acontecera durante as discussões do
dia, e dar sugestões para o dia seguinte.
Também é relevante a informação sobre a constituição do grupo
do qual participei, durante os cinco dias do evento: as musicoterapeutas
Helen Bonny (USA); Carol Robbins (casada com Clive Robbins) (USA);
Chava Sekeles (Israel); Edith Lecourt (França); Lia Rejane Mendes
Barcellos (Brasil). Musicólogos: Alf Gabrielson (Universidade de Upsalla,
Suécia, considerado ainda hoje uma das maiores autoridades mundiais em
ritmo) e David Burrows (musicólogo da Universidade de N. York). A
líder do grupo era a Musicoterapeuta Carol Robbins8.
Cabem algumas observações: à época eu conhecia de nome
somente Edith Lecourt, dentre os convidados para o evento; no Brasil, até
então, não se conhecia Métodos/Abordagens de Musicoterapia como o
Método GIM (Bonny Method of Guided Imagery and Music), ou a
Abordagem Nordoff-Robbins (os dois únicos existentes naquele
momento).
Torna-se importante mencionar o tema do grupo que escolhi para
participar: “A música no tempo e o tempo na música”, já que as discussões
sobre o aspecto temporal da música e a possibilidade de simultaneidade de
ação musical (interação) entre musicoterapeuta e paciente mostraram a
viabilidade de uma contribuição importante para o desenvolvimento e
fundamentação da Musicoterapia Interativa, já objeto de estudos à época.
Por isto, considerei este Simpósio como grande contribuição para a o
8
Os participantes do Simpósio eram os Musicoterapeutas: Austrália: Ruth
Bright; Áustria: Alfred Schmoltz; Canadá: Fran Herman e Susan Munro;
Inglaterra: Sybil Beresford-Peirse e Rachel Verney; França: Edith Lecourt; Suíça:
Madeleine Muller; Estados Unidos: Barbara Hesser; Carol Bitcon; Helen Bonny;
Kenneth Bruscia; Charles Eagle; Carolyn Kenny; Clifford Madsen; Carol e Clive
Robbins; Frederick Tims e Barbara Wheeler. Alemanha Ocidental: os
musicoterapeutas Merete Birkebaeck e Johannes Eschen, e o neurologista Konrad
Schilly. Antiga Iugoslávia: Darko Breintelfeld.
33
A ‘musicoterapia interativa’
desenvolvimento do tema, fundamentação e como a segunda semente da
Musicoterapia Interativa.
Ainda se deve salientar que na volta do Simpósio a então Associação
Brasileira de Musicoterapia (RJ) organizou uma palestra onde, pela
primeira vez, foram apresentados no Brasil o Método GIM e a
Abordagem Nordoff-Robbins (1982).
Foi ainda nesse evento, da New York University, no meu primeiro
encontro com Even Ruud, que ouvi falar sobre as muitas possibilidades da
utilização de teorias de fundamentação da musicoterapia9 e isto foi o que
me fez, logo após a minha chegada ao Rio, em julho de 1982, criar a
disciplina de “Teorias e técnicas em musicoterapia”, que foi organizada e
passou a ser ministrada por mim desde agosto de 1982, no Curso de
Musicoterapia do CBM, tendo o aval da Diretora do Curso, a Profa.
Cecília Conde, e utilizando como principal fonte o primeiro livro do
citado musicoterapeuta10.
Este Simpósio foi de extrema importância para o meu
desenvolvimento na área, pois aí conheci as mais importantes figuras da
musicoterapia mundial – Helen Bonny, Clive e Carol Robbins, Edith
Lecourt e outras que viriam a se tornar os grandes expoentes da área
como, por exemplo, Kenneth Bruscia, Carolyn Kenny, Even Ruud,
Barbara Wheeler, Barbara Hesser, e tantos outros!
Também se deve observar que a partir desse Simpósio grandes
amizades se construíram nestes 36 anos que transcorreram como com
Carol e Clive Robbins, Edith Lecourt, Carolyn Kenny, Kenneth Bruscia,
Barbara Hesser, Barbara Wheeler e Even Ruud, o que me possibilitou,
desde então, a comunicação com estes expoentes da musicoterapia
mundial.
A primeira ‘consequência’ da minha participação no Simpósio foi o
convite para publicação do artigo intitulado Qu’ est-ce que c’est la musique
9
Nas aulas de musicoterapia do CBM, no 4o ano (1975), tínhamos estudado
somente a Teoria Humanista.
10
Ruud, Even: Music Therapy and its relationship to current treatment theories
(1980).
34
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
en Musicothérapie?11 (1984), no qual discuto sobre a Musicoterapia
Interativa.
Desde então comecei não só a pensar seriamente na “interação em
musicoterapia”, mas, também, em incluir o tema em palestras como na
que proferi em 1991, na abertura do II Congresso Brasileiro de
Psicopatologia da Expressão12, em Belo Horizonte, texto publicado no
Caderno n. 1 (Barcellos, 1992, p. 20). A partir daí, o termo e observações
sobre ele são recorrentes na mesma obra, num artigo sobre Musicoterapia e
Cultura, às páginas 39, 40 e 42, onde se lê: a “Musicoterapia Interativa
permite ao musicoterapeuta uma ‘inter-ação’ com o paciente, também
‘comprometido’ no processo de ‘fazer música’, o que mais facilmente nos
leva a uma ‘interação’” (Barcellos, 1992, p. 40). E, logo depois, à página
41: “Na medida em que eu compartilho o meu momento de ‘fazer música
com o outro’, que eu tenho condições de ‘interagir’ com ‘o outro’, eu sou
trazido ‘para fora de mim mesmo’, para a realidade” (Barcellos, 1992, p.
42), podendo-se dizer que a “inter-ação” possibilita e potencializa a
“interação”.
A MUSICOTERAPIA INTERATIVA
11
“O que é a música em musicoterapia”? (La Revue Française de Musicothérapie,
Barcellos, L.R.M, 1984, v. IV, n. 4, p. 37-48),
12
Música e Terapia. Belo Horizonte, 1991, publicado em Cadernos de
Musicoterapia, n.1, (Barcellos, 1992, pp. 9 a 30).
35
A ‘musicoterapia interativa’
primordial”, (citado por Maiello, In Nöcker-Ribaupierre, 2004, p. 52).
Este estado se caracteriza pela fusão e suspensão em um conglomerado
indistinto de sensações táteis e auditivas feitas de líquido e movimento,
ruídos rítmicos e não rítmicos e sons vocais.
Com relação à percepção desses sons, as pesquisas neurofisiológicas
demonstram que a capacidade auditiva do feto está totalmente
desenvolvida aos quatro meses (Tomatis, 1981; Prechtl, 1989, citados por
Maiello, In Nöcker-Ribaupierre, 2004).
Assim, sabe-se, ainda que de forma resumida, da relevância da
‘interação’ desde a vida intrauterina e vários são os autores que se referem
ao desenvolvimento social do recém-nascido, considerando que a
atividade social é parte do desenvolvimento infantil. Scheler, segundo
Ajuriaguerra (1976, p. 66) sublinha, enfaticamente, que o recém-nascido
já é um ser “profundamente social”.
Mas, ainda nos interessa o pensamento da psicóloga alemã
Charlotte Bühler, referida por Ajuriaguerra (1976, p. 72), que afirma que
o choro dos bebês seriam “gritos de chamada” que vão se diferenciando e
passam a servir, inconscientemente, para o estabelecimento de contato
com os que os rodeiam. A autora ainda menciona o sorriso – que aparece
por volta do terceiro mês, como sendo uma clara mostra de contato social.
Para Ajuriaguerra (1976) muitos são os estudiosos da área que se
posicionam com relação às formas de interação: Scheller foi o primeiro a
enfatizar que o olhar é a experiência fundamental da alteridade e, para H.
L. Rheingold, o contato através do olhar “constitui a raiz da sociabilidade
humana e a exploração infantil do entorno é uma atividade primária
básica”, (1976, p. 71). Ainda muitos estudos indicam que o olhar fixo
representa uma interação mútua entre a ação da mãe e o recém-nascido e J.
Bowlby, também citado por Ajuriaguerra, (1976, p. 72) considera que o
olhar “tem valor de autênticos encontros, ou de diálogo pré-verbal,
enormemente significativo”. Assim, para consubstanciar a importância do
olhar e do sorriso como raízes de interações em terapia, invoca-se, por fim,
Winnicott, que denomina ‘espaço potencial’, aquele em que “a
experiência atual equivale a voltar a viver novamente relações anteriores”
(Ajuriaguerra, 1976, p. 72).
Já o sorriso, que aparece duas semanas antes do nascimento, é
considerado como uma reação característica da espécie e parte integrante
de modos de conduta do ser humano. Mas, ainda que o sorriso seja
36
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
imitativo, pode se converter em uma forma antecipatória de relação de
onde podem se originar as primeiras comunicações e o diálogo.
Ainda vale invocar o pensamento do psicólogo neozelandês
Colween Trevarthen que observou como “as mães e os bebês ajustam o
tempo, a forma emocional e a energia de suas expressões para obter inter-
sincronicidade, transições harmoniosas e complementaridade de
sentimentos entre eles numa pareceria emocional de ‘confluência’”, ou
seja, interação (referido por Maiello, In Ribaupierre, 2004, p. 55).
Desse modo, constata-se que a interação se faz desde a vida
intraútero bem como após o nascimento, momento em que a interação
interpessoal é considerada um assunto de tal importância para o
desenvolvimento infantil que em 1997 a Organização Mundial de Saúde
decidiu elaborar o Programa sobre Saúde Mental para Melhorar a
Interação Mãe/filho para Promover Melhor o Desenvolvimento Psicossocial
em Crianças.
Assim, por ser fundamental para o desenvolvimento humano, a
interação é objeto de estudo de grandes estudiosos que participam de
várias áreas do conhecimento como: comunicação (Watzlawick, Paul;
Beavin, Janet Helmick; Jackson, Don D., 1967); psiquiatria infantil
(Bowlby, citado por Ajuriaguerra, 1976); psicologia (Stern, 1985; e
Trevarthen, desde 1979); música e educação musical, (Beyer, 2003;
Iazzetta, Fernando; s/d) e em várias formas de terapia (Bettelheim, 1967;
Winnicott, de 1958 a 1996), para citar apenas áreas que interessam neste
contexto.
Sabe-se que experiências de mutualidade, contato e ressonância
tornam-se a base para um melhor desenvolvimento que vai contribuir
para a interação das crianças com o adulto e com outras crianças, pois com
essa vivência elas crescem cognitivamente, obedecendo aos estágios do
desenvolvimento.
A partir destas breves considerações, pode-se considerar que estas
duas manifestações: o olhar e o sorriso podem ser vistas como sementes de
interação e comunicação.
Em musicoterapia é muito comum se constatar o que foi aqui
comentado, e a análise de um fragmento de uma sessão a ser apresentada
neste capítulo pode ratificar estas afirmações.
37
A ‘musicoterapia interativa’
Muitos são os estudos que têm por objetivo conhecer o cérebro de bebês
com o propósito de investigar se os recém-nascidos estabelecem interações
quando olham para os rostos humanos e, também, quais são as suas
preferências entre estes e brinquedos, por exemplo.
Utilizando novas ferramentas computacionais também avaliam as
preferências entre dois tipos de imagens como a figura de brinquedos
mecânicos coloridos em movimento e a de rostos humanos ou, ainda
assistindo a clips como A Charlie Brown Christmas (um filme animado).
Este foi utilizado por Frank, M.; Vul, E.; e Johnson, S., (2009), em um
experimento gravando o movimento de olhos de bebês de três, seis e nove
meses. Neste estudo, os autores chegaram à conclusão que dos três aos
nove meses de idade, os bebês gradualmente concentram a sua atenção nos
rostos e que a tendência a olhar para estes, aumenta com a idade.
Os autores ainda discutem que podem existir várias interpretações
possíveis para esta mudança ou que elas podem ser vistas como resultado
do desenvolvimento social, da integração intermodal, e do controle da
atenção /execução.
Foi testada, também, a preferência entre um brinquedo colorido,
em movimento e um rosto. Inicialmente estes foram apresentados
separadamente e, posteriormente, juntos, sendo que pode-se inferir, no
traçado das respostas apresentadas pelo bebê, que há uma diferença
significativa, na preferência do rosto, em detrimento do brinquedo. Ou
seja, o que as respostas comprovam é que o cérebro do recém-nascido se
‘movimenta’ ou funciona muito mais quando lhe é apresentado um rosto,
sendo que isto significa uma maior quantidade de sangue indo para o
cérebro, o que é indicativo de atividade cerebral.
Este estudo demonstra que os bebês interagem mais facilmente
com pessoas do que com outros objetos, mesmo que estes sejam coloridos
e se movimentem o que, num primeiro momento, pareceria ser mais
atraente que um rosto.
Estes resultados ratificam a importância da busca de contatos
através do olhar e do sorriso e, certamente, de interação através destes.
38
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Embora a música não seja vista como linguagem pela maioria dos
musicólogos, neste contexto vai ser considerada como uma espécie de
linguagem emocional, como a ela se refere o musicoterapeuta Even Ruud
(1990, p. 89), por possibilitar uma ‘situação comunicacional’, isto é, por
ser um elemento facilitador de comunicação entre musicoterapeuta e
paciente, desde que a sua utilização seja de forma adequada para
possibilitar o desenvolvimento do processo terapêutico.
39
A ‘musicoterapia interativa’
E, utilizar essa linguagem no processo musicoterapêutico é
percebê-la como meio de comunicação, interação, pensamento e
subjetividade, o que facilita o desenvolvimento do trabalho. Enfim, cabe
ao musicoterapeuta dialogar com o paciente em um mesmo nível, ou seja,
ir em busca do paciente onde ele estiver, percebendo o que está nos
comunicando do seu mundo interno, visto que a música pode provocar
diversos efeitos tanto no nível fisiológico como neurológico e psicológico.
Então é aproveitar a potência da linguagem musical para desenvolver o
trabalho musicoterapêutico de maneira eficiente e de qualidade, sempre
buscando auxiliar o paciente no que o mesmo necessita para que possa
alcançar os objetivos propostos.
Os seres humanos formam sistemas abertos que podem ser
pessoais, interpessoais e sociais e que entram em interação entre si e
com o meio ambiente. Quando os sistemas pessoais entram em
contato entre si, constituem sistemas interpessoais que se valem de
mecanismos para se estabelecer, sendo a comunicação o que vai
possibilitar a interação e a transação. (King I, Talento BJW. In:
George JB, et al., 2000).
As interações são definidas pelos autores acima como relações que
se estabelecem entre uma pessoa e o ambiente e entre duas ou mais pessoas
entre si, através da comunicação verbal e/ou não verbal, sendo que à
medida que mais pessoas interagem, a complexidade das interações
aumenta. Percebe-se que sem comunicação, a interação não ocorre. Assim,
a comunicação precede a interação.
As interações fazem parte de muitas áreas do trabalho em saúde
que têm por objetivo estabelecer relações interpessoais do tipo produção
de vínculo, acolhimento, gestão e que utilizam, frequentemente, as
‘tecnologias leves’, como a música, porque são estas tecnologias que
facilitam/proporcionam o acolhimento indispensável no momento de
‘encontro’ entre o cliente e o profissional. (Barcellos, 2015).
Na musicoterapia a interação tem uma especificidade decorrente
da natureza temporal da música que é uma arte que acontece no tempo e
que é utilizada como “objeto intermediário” (Benenzon, 1985) entre
terapeuta e paciente para inicialmente se estabelecer o vínculo terapêutico.
Este poderá ser facilitado/construído pela interação que, aqui, pode ser
entendida de duas formas: a inter-ação, que, como a palavra sugere, é
40
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
formada por ações sucessivas entre duas pessoas, como, por exemplo: o
musicoterapeuta toca e depois o paciente responde, ou vice-versa.
Ainda no mesmo artigo refiro-me aos dois tipos de inter-ações,
aqui já grafadas entendidas como em musicoterapia, mas, segundo o
pensamento de Paul Watzlawick (1967) que estudou a comunicação: as
inter-ações simétricas e as complementares, que são descritas como
baseadas na igualdade ou na diferença. Na musicoterapia, as inter-ações
simétricas são aquelas nas quais o musicoterapeuta repete o que foi feito
sonoro/musicalmente ou através de aspectos extra-musicais pelo paciente,
ou vice-versa, e nas interações complementares, onde não se imita mas,
sim, complementa o que foi trazido pelo paciente ou pelo
musicoterapeuta, ou seja, a participação do segundo é de forma diferente
daquela trazida pelo primeiro.
O que se quer significar é que em musicoterapia, frequentemente,
no início de um processo, as ações que começam a ser trocadas entre
musicoterapeuta e paciente são sucessivas ou inter-ações.
Já a interação é caracterizada por uma ação simultânea, ou seja: os
dois tocando juntos, no mesmo momento, o que é possibilitado pelo fato
de a música ser uma arte temporal, isto é, acontecer no tempo e não
ocupar o espaço. Pode-se, aqui, utilizar o exemplo de uma orquestra, onde
muitas pessoas tocam juntas e têm que ter interação, pois, caso contrário,
o resultado estético será desastroso. No entanto, na musicoterapia não se
busca o resultado estético como na execução de uma orquestra, mas, sim, o
que denomino de “estado de atenção à estética” (Barcellos, 2007, p. 4).
Este conceito foi cunhado comparando a diferença do termo em
Educação Musical e na Musicoterapia: na primeira existe uma preocupação
com a estética e na musicoterapia pode-se dizer que o musicoterapeuta
deve ter um “estado de atenção à estética”, isto é, “o musicoterapeuta deve
estar atento às mudanças estéticas na produção do paciente porque estas
podem significar uma mudança interna do mesmo” (Barcellos, 2007, p.
4).
O que aqui se quer evidenciar é que o musicoterapeuta deve estar
atento à música que o paciente faz/cria porque, geralmente, quando a sua
música se modifica, pode evidenciar uma mudança interna.
Resumindo: na musicoterapia propõe-se “inter-ação” como ações
sucessivas, através dos elementos da música ou extramusicais: olhares,
sorrisos, gestos e afetos, que podem trazer em si uma potência que pode
41
A ‘musicoterapia interativa’
transformar isto em uma “interação”, que poderá ser potencializada pelo
‘encontro’ na simultaneidade de ação musicoterapeuta-paciente: tanto
‘encontros musicais’ através de sons, ritmos, melodias, harmonias,
timbres, andamentos -- e tantas outras possibilidades que o ‘tecido
musical’ permite, como pelo ‘encontro’ de elementos extra-musicais como
já acima referidos.
É importante frisar que se entende que os conceitos de inter-ação
e intervenção são centrais na Musicoterapia Interativa.
No trabalho apresentado no VI Congresso Mundial de
Musicoterapia, realizado no Rio de Janeiro, em 1990, afirmo que
“Quando estamos ativos no processo de ‘fazer música’ e quando
partilhamos essa experiência com o outro, somos puxados para fora de nós
mesmos” (Barcellos, 1992, p. 7). Aqui se deve observar que quando o
paciente traz um som o musicoterapeuta pode e deve aproveitar,
respondendo, repetindo o que foi feito fazendo alguma variação ou outro
som.
Voltando no tempo e revivendo as inter-ações/interações na
clínica, sempre vêm à memória ações com um caráter provocativo, onde
era dado um tempo ao paciente para responder, sendo que, em geral, no
início do processo sempre havia uma demora na resposta.
Nesse tempo, parecia se perceber que aquela ação estava
percorrendo as vias aferentes, até chegar ao Sistema Nervoso Central, estava
sendo ‘processada’ e voltando, como resposta, pelas vias percorrendo as
vias eferentes13.
No entanto, o paciente tem que ter o tempo necessário para que
possa responder e, gradativamente, deve-se tentar diminuir esse tempo de
resposta. Assim, entendo que as inter-ações são anteriores às interações,
tanto no desenvolvimento humano normal como em pacientes que têm
lesões cerebrais.
Isto ficava muito claro na clínica, quando o trabalho estava sendo
feito com crianças com problemas graves e com pacientes com Acidente
Vascular Cerebral ou Acidente Vascular Encefálico (AVC e AVE). Por
13
As vias aferentes são receptoras que captam os impulsos nervosos e os levam até
o Sistema Nervoso Central para serem processados. Após esse processo, o sistema
nervoso central manda uma “mensagem” como resposta, pela via eferente.
(Kandel, Eric R.; Schwartz, James H. e Jessel, Thomas M.. (2000).
42
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
exemplo: no trabalho clínico com crianças com Paralisia Cerebral14 às
vezes parecia que se podia ver o caminho que a ‘ação sonora’ do
musicoterapeuta percorria e o tempo que a criança levava para processar e
responder. E, muitas vezes se percebia que se dava um som, por exemplo, e
não se esperava o tempo suficiente para o “processamento” e se respondia
sem esperar pela criança. A sensação que se tinha era que o som do
musicoterapeuta ainda estava percorrendo as vias aferentes, ainda estava
no caminho para chegar ao Sistema Nervoso Central e ser processado, e já
se dava a resposta, por considerar que a criança não tinha como responder.
Por que a criança não respondia? Evidentemente, às vezes porque
realmente não tinha condições para isto. Mas, em outros momentos,
quando um tempo maior era dado e se esperava, a resposta vinha.
A forma como se podia entender este episódio isto era que a
primeira mensagem dada ainda devia estar percorrendo as vias aferentes e,
provavelmente, não tinha chegado ao Sistema Nervoso Central, não
sendo respondida por não ter ainda sido processada. E no momento em
que se dava a segunda mensagem, sobre a que ainda não tinha sido
respondida, a criança ainda estava tentando responder à primeira. Por
isto, também não respondia à segunda! Assim, concluía-se que se devia
esperar o tempo necessário para que a recepção desse som fosse processada
e, provavelmente, respondida, ou seja, dando-se tempo para que o
processo fosse completado. Assim, esperando-se um tempo maior muitas
vezes se obtinha uma resposta. Isto nos leva a observar que o
musicoterapeuta, quando pretende uma resposta na inter-ação, tem que
respeitar o tempo do paciente, ou do processo vias aferentes-eferentes.
Como informa Kandel, (1998, 1999), citado por Haase e
Lacerda (2004, p. 29), é importante se entender que
Todo o processo de reabilitação neuropsicológica, assim como as
psicoterapias de um modo geral (vide Kandel, 1998, 1999), se
baseiam na convicção de que o cérebro humano é um órgão
dinâmico e adaptativo, capaz de se reestruturar em função de
novas exigências ambientais ou das limitações funcionais
impostas por lesões cerebrais.
14
Encefalopatia Crônica da Infância.
43
A ‘musicoterapia interativa’
Portanto, o paciente tem que ter o tempo necessário para que
possa responder e, gradativamente, deve-se tentar diminuir esse tempo de
resposta.
A partir deste raciocínio pode-se supor que as inter-ações sejam
anteriores às interações, tanto no desenvolvimento humano normal como,
provavelmente, em pacientes que tenham lesões cerebrais.
Mas, fala-se, aqui, de inter-ações em musicoterapia o que significa
que a música intermedia esse processo, sendo vista como uma potência
que pode desencadear uma inter-ação/interação. E, quando se fala de
música em musicoterapia, evidentemente se pensa em ruídos, sons, ritmos,
melodias, que podem vir ou não acompanhados pela harmonia. Ou seja,
desses elementos utilizados isoladamente, ou combinados, bem como de
músicas e canções já existentes, dependendo da situação, do paciente, dos
objetivos, enfim, do que se quiser conseguir com essas inter-ações e
interações.
Ainda se entende que as inter-ações podem ser provocadas pelo
musicoterapeuta através das várias técnicas existentes como: audição,
recriação, improvisação, composição e provocativa (Barcellos, 2008), para
levar o paciente às várias experiências musicais disponíveis, como as
acimas citadas, acrescidas da exploração musical (Barcellos, 2016, p. 65).
Nos casos clínicos acima referidos foram utilizados sons, ritmos, melodias
e harmonias simples, aos quais foram, eventualmente, adicionadas
palavras.
Sem dúvida, o som, o ritmo, ou mesmo uma simples melodia
podem potencializar a inter-ação ou, ainda, a interação, desde que
utilizados adequadamente.
Pela primeira vez pesquisadores foram capazes de demonstrar que
os cérebros de um paciente e terapeuta se sincronizam durante uma sessão
de musicoterapia, o que pode melhorar futuras interações entre terapeutas
e pacientes.
Um estudo recente do conhecido musicoterapeuta pesquisador
Jörg Fachner (2019), da Universidade Clemens Maidhof (UK), e um
grupo de terapeutas especializados no Método de Musicoterapia Guided
Imagery and Music, de diferentes universidades, liderados por Denise
Grocke, da University of Melbourne, investigaram e demonstraram a
sincronicidade dos cérebros do musicoterapeuta e do paciente, ou a
existência de ‘interações cerebrais’ musicoterapeuta-paciente, durante
44
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
uma sessão do Método GIM. Nesta, terapeuta e paciente ouvem uma
mesma música, sempre erudita. A sessão objeto do estudo teve como
terapeuta GIM uma das mais experientes musicoterapeutas no método: a
australiana Denise Grocke.
O objetivo do estudo foi, através da utilização do hiperscanner --
que já é muito utilizado para experiências de interações com crianças --
detectar a existência de “interações cerebrais” entre musicoterapeuta e
paciente, ambos utilizando capacetes de EEG.
Este foi o primeiro estudo de musicoterapia que utilizou o
hiperscanner para registrar a atividade de dois cérebros ao mesmo tempo,
para permitir que pesquisadores entendam melhor como as pessoas
interagem. No entanto, ainda não se tem notícias de que estudos como
este tenham sido utilizados para entender as interações em musicoterapia,
além do GIM.
No entanto, a declaração de Fachner posterior ao estudo é de
extrema importância porque aponta para futuros estudos em
musicoterapia, e não só no GIM. O autor acredita que futuras descobertas
também podem ajudar a entender melhor o processamento emocional em
outras interações terapêuticas, já que a relação terapêutica é essencial para
a ação da musicoterapia, como a ela se refere Fachner. Assim, investigar a
correlação cerebral dos processos terapêuticos é crucial para entender e
explicar como musicoterapia funciona.
Sobre as intervenções
45
A ‘musicoterapia interativa’
O que se quer enfatizar aqui é que o musicoterapeuta tem um
arsenal de ferramentas para instigar o paciente ao contato, isto é, à inter-
ação/interação, que caracterizam a Musicoterapia Interativa, que é
uma forma de aplicação da musicoterapia na qual a experiência
musical é partilhada entre Musicoterapeuta(s) e paciente(s),
ambos ‘ativos’ no processo de fazer música. É a possibilidade de
inter-ação sucessiva e interação simultânea, musical, extra musical
e de afetos, facilitadas pelo fato de a música acontecer no tempo,
e construídas pelas intervenções, que promovem o
estabelecimento do vínculo que, consequentemente, possibilita o
desenvolvimento do processo terapêutico (Barcellos, 1984,
modificada em 2019).
Sabe-se que a construção do vínculo terapêutico se constitui
como um dos aspectos principais de uma terapia, senão o principal, pela
importância que tem no desenvolvimento de um processo desta natureza,
tanto com um paciente como com grupos.
Na Musicoterapia Interativa o musicoterapeuta se vale de
estratégias para potencializar e facilitar a construção desse vínculo através
da música e das intervenções que podem provocar as inter-
ações/interações que vão contribuir para o estabelecimento do vínculo e,
consequentemente, para a possibilidade de mudanças que, em última
análise, é o grande objetivo das terapias sendo que, na musicoterapia, a
música pode ser considerada uma poderosa ferramenta de mudanças.
Além disto, o musicoterapeuta deve estar atento para a
compreensão dos fenômenos da clínica, e para uma observação constante
e uma escuta que, para o musicoterapeuta canadense Colin Lee é “o
coração das relações humanas” (2003, p. 87). Essa escuta é por ele
denominada escuta clínica e definida como sendo “A arte da sintonia do
terapeuta aos sons do cliente escutando a realidade e além dela; escutando
cada nuance desde as primeiras expressões até os sons finais da sessão”
(ibid.).
A partir de 1982 (1982, 1994, 2004 e 2009) desenvolvo o
conceito de ‘análise musicoterapêutica’, a partir do Modelo Tripartite
Molino/Nattiez. Para a análise da música do paciente, (considerado nesse
modelo o ‘nível imanente, que é aquele onde está a música), recomendo e
utilizo o ‘Método Paradigmático’ de análise musical, do belga Nicolas
46
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Ruwet (1966), considerado por mim como sendo o mais adequado para
ser utilizado em musicoterapia, por levar em conta as recorrências.
47
A ‘musicoterapia interativa’
Um método detalhado para investigar microprocessos que são
processos e mudanças/progressões dentro de uma sessão de
musicoterapia. A quantidade de tempo pode ser um minuto
(momento) ou cinco minutos (um evento terapêutico) de uma
sessão, uma improvisação clínica (episódio), ou uma sessão
completa. Para analisar o processo, ao longo do tempo, muitas
microanálises dos eventos podem ser realizadas (2007, p. 22).
Assim, na musicoterapia, a microanálise é utilizada para se ter
uma compreensão melhor dos movimentos musicais ou extramusicais
tanto do paciente como do musicoterapeuta, cabendo ao último escolher
a melhor forma de análise para ajudar nessa compreensão.
No entanto, sabe-se que a utilização de métodos, para analisar e
documentar os processos clínicos na musicoterapia, raramente mereceu a
atenção necessária. Wosch e Wigram (2007, p. 13) consideram que isto
provavelmente aconteceu por duas razões: a primeira delas porque “o
período de desenvolvimento desde 1945 teve como centro principalmente
a experiência clínica empírica”. E, em segundo lugar, “havia uma
relutância em empregar o processo mais difícil de analisar e documentar o
trabalho clínico sistematicamente, em especial, através de ferramentas
padronizadas para as quais todos deviam ser treinados” (ibid).
Contudo, deve-se registrar que Paul Nordoff e Clive Robbins
(1977, p. 92) podem ser considerados uma exceção e, também, os
precursores do que hoje se denomina microanálise em musicoterapia. Os
referidos autores começaram a gravar as sessões em fita K7 e criaram o que
pode ser denominada uma “folha de índice”, numa tradução livre (Index
Sheet) (1997, p. 92). Nessa folha eles descreviam o desenvolvimento da
sessão, listando cada detalhe clínico significativo e registrando o momento
exato onde isto acontecia na fita, ou seja, o número do contador do
gravador. Assim, eles podiam quantificar e qualificar os eventos mais
importantes da sessão que é exatamente o que a microanálise tem por
objetivo.
Já Wosch e Wigram (2007), ancorando-se na American Music
Therapy Association (2000), afirmam que na musicoterapia Norte-
americana sempre foram utilizadas ferramentas não musicais para analisar
os tapes.
Segundo a musicoterapeuta Sul Africana Mercédès Pavlicevic (In
Wosch & Wigram, 2007) “A insistência de Paul Nordoff e Clive Robbins
48
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
em escutar e documentar rigorosamente o conteúdo musical das gravações
de sessão levou a uma prática na qual a escuta intensiva e sintonizada é
uma parte tão importante da prática clínica quanto à sessão real” (p. 178).
Numa entrevista histórica concedida à Revista Brasileira de
Musicoterapia (Ano V – N. 6, 2002) – Clive Robbins -- falando sobre o
trabalho desenvolvido por ele juntamente com Paul Nordoff -- refere-se à
compra de um gravador e à gravação de todas as sessões realizadas,
considerando essas gravações como indispensáveis, como se lê nessa
afirmação a seguir: “Tínhamos criado um instrumento de percepção, um
instrumento para pesquisa clínica. Elas [as crianças] estavam nos guiando
a um mundo totalmente inexplorado de resposta humana, através de
experiências e atividades musicais” (p. 68).
Os autores consideravam que essa escuta e o registro minucioso
podem dar instrumentos para que o musicoterapeuta formule um
pensamento musical-clínico e que tenha condições de avaliar o que está
acontecendo, percebendo as mudanças e o desenvolvimento do processo.
Deve-se sinalizar que isto tudo era ressaltado pelos autores, na década de
1970.
Essas observações de Nordoff & Robbins fazem parte da
microanálise que é utilizada em áreas como psicologia, psicologia da
música, pedagogia e muitas outras, e que pode ser definida como as
“mudanças mínimas em relações ou interações entre pessoas, ou as
mudanças mínimas na música e em forças dinâmicas” (Wosch & Wigram,
2007, p.14). Ou seja, na musicoterapia, a microanálise pode ajudar na
habilidade de melhor fazer uma análise crítica do processo terapêutico, a
“reagir mais apropriadamente às pequenas mudanças no comportamento
social, musical e emocional e nas experiências dentro do contexto
terapêutico” (ibid.).
Neste capítulo, a microanálise é utilizada para uma melhor
compreensão das intervenções feitas pela musicoterapeuta, para provocar
inter-ações e interações, ajudar na construção do vínculo terapêutico e,
consequentemente, no desenvolvimento do processo musicoterapêutico,
o que foi observado por Nordoff e Robbins que entendiam que “a
atividade musical constrói a relação terapêutica”! (1977, p. 190).
Inclui-se abaixo a tela inicial do vídeo da sessão de musicoterapia
que foi objeto da microanálise aqui incluída, para que se perceba o cenário
onde a sessão analisada foi desenvolvida: dentro de uma sala de diálise: no
49
A ‘musicoterapia interativa’
momento em que a paciente de três anos está sendo submetida aos
procedimentos: dialítico e musicoterapêutico ao mesmo tempo;
puncionada no braço direito, que não aparece por estar debaixo do lençol;
aqui acenando para a enfermeira que estava num balcão à frente, mas que
se mantinha introjetada quando tocando um chocalho confeccionado
pelos próprios pacientes da enfermaria (sete pacientes) com garrafas de
plástico, com contas de plástico que em geral são utilizadas para a
confecção de bijuterias.
Esta imagem é posterior à sessão de musicoterapia n. 3, mas foi
aqui inserida para dar uma ideia do cenário onde eram realizadas as sessões
de musicoterapia, objeto da referida análise: uma sala de diálise, enquanto
a paciente recebia o tratamento dialítico.
50
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
51
A ‘musicoterapia interativa’
4 48” a Essa acentuação leva 49” olha para a mt. e - Interage através
1’15” a mt. a mudar para o mantém o olhar por do
acompanhamento 3”; -olhar
batido 52” olha para o - olhar e sorriso
chocalho; - olhar
54” olha e sorri para - musicalmente
a mt., canta junto
com ela;
1’2” olha pa a co-
terapeuta. Retira o
chocalho do foco do
olhar;
1’7” acentua o - introduz a
tempo 1 do mudança no
compasso; andamento e na
1’15” bate com acentuação.
chocalho no tempo 1
do comp. no braço
da poltrona de
diálise e toca junto;
52
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Novas intervenções Após as
7 2’01” musicais: Lento, e intervenções, a
arpejado paciente olha
para a mt., olha
para as mãos da
mt. tocando,
volta a olhar nos
olhos, até o
momento em que
Reage à
a mt. faz um acorde dissonância,
8 2’ 08’’ de 7a da dom., no levantando o
tom em que vinha braço, mostrando
tocando desde o visualmente a
início: Lá M tensão que a
dissonância lhe
produz. Mantém
o braço assim e
olha para a mt.
A mt. vai Olhando para a
9 2’11” diminuindo o mt. A paciente vai
and. e a abaixando o
intensidade e braço, lentamente,
finaliza. diminuindo a
tensão.
15
É mandatório se entender que aqui, quando se fala em música pode ser através
de um único elemento que a constitui como, por exemplo, o som. Assim, muitas
vezes um único som, ou ruído, pode ser o ‘fator desencadeante’ da inter-ação, até
se chegar à interação: musicoterapeuta e paciente tocando juntos.
54
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
seguindo uma do musicoterapeuta ou vice-versa), a fim de que se possa
chegar ao paciente e, consequentemente, conseguir a interação com o
mesmo, para se chegar ao estabelecimento da relação terapêutica e, assim,
facilitar o desenvolvimento do processo terapêutico.
Sabe-se que a música é uma ferramenta potente para provocar e
trazer o paciente à inter-ação, inicialmente a partir: de intervenções,
geralmente musicais, (Barcellos, L. R. M., 1994) e buscando a interação
pelas inúmeras possibilidades que se tem através dos diferentes elementos
que a constituem (som, ritmo, melodia e harmonia); de diferentes
parâmetros de cada um destes elementos: altura, intensidade, timbre e
duração do som; da riqueza de distintos ritmos; do enriquecimento da
melodia através de ‘notas melódicas’ como: notas de passagem,
apogiaturas, bordaduras, escapadas (quando se utilizando um instrumento
melódico, harmônico ou voz); de diferentes formas de execução como
ligado ou stacatto; das possibilidades de execução em diferentes
andamentos, diferentes harmonias, enfim, quando o paciente ‘se
familiariza’ com uma melodia e passa a não mais dar atenção a ela, a
inserção de uma apogiatura, por exemplo, pode causar uma surpresa,
produzir tensão e, consequentemente, chamar a atenção do paciente para
estar na música e, por conseguinte com o musicoterapeuta.
Deve-se observar que hoje a pesquisa sobre as interações entre
duas pessoas é comum. Assim, ainda cabe consubstanciar a discussão com
os achados do musicoterapeuta alemão Jorg Fachner et al. (2019, p. 4),
que ratificam a compreensão que os terapeutas têm de um processo
terapêutico afirmando que “Como a relação terapêutica é essencial para a
ação da musicoterapia, investigar a correlação cerebral dos processos
terapêuticos é crucial para entender e explicar como funciona a
musicoterapia”.
Com esta frase se configura a importância de se explorar as
atividades cerebrais dinâmicas entre dois ou mais indivíduos em interação
e seus mecanismos neurais subjacentes. A abordagem para explorar essas
atividades entre dois ou mais indivíduos em interação e seus mecanismos
neurais subjacentes, tem sido a utilização do EEG-based hyperscanning.
Esta vem sendo utilizada para estudar diferentes aspectos das interações
sociais desde 2010 sendo que, recentemente, tem havido um aumento da
pesquisa sobre o tema entendendo-se quando os indivíduos interagem
com outros, a informação percebida é transmitida entre seus cérebros.
55
A ‘musicoterapia interativa’
CONSIDERAÇÕES FINAIS
56
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Contudo, há que se ter um repertório de intervenções musicais
ou extramusicais mais adequadas para se trabalhar os aspectos desejados, a
fim de alcançar as mudanças adequadas /necessárias. Finalmente, é nas
interações e nessas trocas afetivas que se dão os acontecimentos
permeados e sustentados pela música, ou seja, que se dá a terapia que pode
transformar pessoas e vidas, motivo principal da Musicoterapia e,
evidentemente, da Musicoterapia Interativa!
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60
Capítulo 3
MUICOTERAPIA SOCIAL
COMUNITÁRIA: PARTILHAS E
CONTRACANTOS
Rosemyriam Cunha
Andressa Dias Arndt
Sheila Beggiato
61
Musicoterapia social comunitária: partilhas e contracantos
INTRODUÇÃO
62
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Foi justamente esse cenário sociopolítico que nos conduziu a
pensar e praticar uma musicoterapia que, inserida no contexto vivencial
das realidades cotidianas, se colocasse a favor das demandas dos/as
participantes. Estava evidente que não poderia ser uma musicoterapia
convencional, reclusa em uma sala e dedicada a problemáticas
particularizadas. Havia a necessidade de sair a campo, acolher grandes
grupos, afetar-se com ambientes e histórias distintas, buscar o ponto em
comum na diversidade de condições. Era preciso abrir espaços de
participação, de fazeres musicais, de expressões coletivas de ser no mundo.
Motivadas por essas questões, temos nos aproximado de uma perspectiva
social e comunitária em musicoterapia, em uma postura crítica que visa o
constante diálogo com teóricos que contribuem com nossos pensares e
fazeres. Entendemos essa aproximação como um processo de construção
da nossa profissão. Esse movimento, por estar situado em uma realidade
socioeconômica e cultural, não é neutro. Ao contrário, sua complexidade
demanda por partilhas teóricas que constantemente alçam vozes em
paralelo. As ressonâncias desses contracantos têm nos impulsionado a
revisitar práticas, remodelar posturas, na busca por abrir espaços à
diversidade e necessidades que se presentificam nas arenas vivenciais da
MTSoCom brasileira.
TRAJETÓRIA HISTÓRICA DA
MUSICOTERAPIA SOCIAL COMUNITÁRIA
63
Musicoterapia social comunitária: partilhas e contracantos
pessoas que demandam pela grupalidade, ou que dela já fazem parte, para
existirem em contextos mais amplos.
Reflexo dessa modificação epistemólogica, que se distancia do
modelo biomédico, para se fundamentar mais na filosofia e na sociologia
a partir da década de 1990, alguns relatórios de pesquisa e estudos de caso
foram publicados tanto no exterior como no Brasil. Em 2013, Oselame e
Carvalho apresentaram um estudo em que indicam que até o ano de 2011,
os temas e/ou perspectivas sociais e comunitárias ocupavam apenas 4% do
total nas pesquisas brasileiras sobre musicoterapia. A partir de então,
outros trabalhos foram publicados no Brasil, entre os quais podemos
mencionar os de Cunha et al. (2014); Passos e Wawzyniak (2016); Santos
(2016); Andrade e Cunha (2015); Cunha (2016a); Cunha (2016b);
Arndt, Cunha e Volpi (2016); Arndt e Maheirie (2016); Arndt e
Maheirie (2017); Arndt e Maheirie (2019). Alguns trabalhos em língua
espanhola também chegaram a nós, em publicações nacionais, como os de
Restrepo (2017); Agudelo e Morales (2017); Vasco e Güiza (2018).
Analisamos que o movimento de construção teórico-prática tem
sido tímido, porém contínuo, de forma que tem servido de fundamento
para as ações que se denominam por MTSoCom no Brasil. Tal
movimento já traz impactos nas formas de pensar e teorizar musicoterapia
em nosso país. Exemplo disso é a recente definição de musicoterapia no
Brasil que inclui o trabalho com coletivos e a atuação em contextos sociais
e comunitários em seu texto (UBAM, 2018)16.
Buscando rastrear traços embrionários de uma perspectiva social
e comunitária para a musicoterapia, encontramos na obra de E. Thayer
Gaston (1968) uma musicoterapia voltada à comunidade. O autor
apresenta uma narrativa sobre um tipo de prática em centros de saúde
comunitários, em parceria com a psiquiatria comunitária e a psicologia
clínica, cujo objetivo era a reabilitação social. A musicoterapeuta brasileira
Clarice Moura Costa (1989), por sua vez, ao discorrer sobre as bases
epistemológicas da musicoterapia menciona, entre outras, a vertente
sociológica. Na literatura da musicoterapia, até o final da década de 1990,
percebemos o predomínio de uma orientação biomédica e uma prática
centrada no indivíduo, focada na remissão de sintomas de uma patologia
16
A definição brasileira de Musicoterapia pode ser encontrada em
https://ubammusicoterapia.com.br/institucional/o-que-e-musicoterapia/ Acesso
em 25 de fevereiro de 2020.
64
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
(Arndt, Cunha; Volpi, 2016). No entanto, presenciamos um “crescendo
da atividade profissional musicoterapêutica de base social, desde a última
década do século passado” (Cunha, 2016, p. 243).
Ao perscrutarmos a história da musicoterapia em território
brasileiro, com pessoas em situação de múltiplas vulnerabilidades,
encontramos, no Rio de Janeiro, a atuação da musicoterapeuta Lia Rejane
Barcellos (1994), com crianças em situação de rua. Outro nome relevante
é o da musicoterapeuta Marly Chagas, que, ao desenvolver ações em
contextos sociais e comunitários, passa a alargar as formas de pensar e
fazer musicoterapia, contribuindo para consolidação de vertentes outras
para nosso campo de saber. Exemplo disso é o trabalho que desenvolveu
em parceria com Ronaldo Millecco em um Centro Municipal de
Atendimento Social Integrado (Cemasi), na cidade do Rio de Janeiro
(Chagas, 2014).
Mais para o sul do país, no estado do Paraná, as inquietações
despertadas pelo campo de ação nos conduziram a refletir e agir no âmbito
do que chamamos, em meados da década de 1990, por transgressão. Esse
conceito, que infere “passar além de” (Cunha, 2007), pareceu acolher as
contradições com as quais nos deparamos na realidade profissional.
Nossos fazeres tornaram-se sinônimo da construção de espaços de prática
musicoterapêutica com grandes grupos, heterogêneos e intergeracionais. A
demanda gerou a criação de metodologias de ação que resultaram êxito
nos cenários com os quais dialogamos. De início foram grupos formados
por pessoas idosas com demência e seus cuidadores (Cunha, 2006), idosos
semidependentes e dependentes e seus familiares; comunidade de pessoas
albergadas (Batista; Cunha, 2009); encontros intercomunitários
chamados por Encontros Abertos de Musicoterapia (Cunha, 2017a);
fazeres musicais com mulheres (2017b), intervenções em escolas regulares
(Cunha, 2014; Gomes; Cunha, 2019).
Alguns anos após o início desse movimento, pudemos ouvir
ressonâncias destas iniciativas no contexto da saúde mental. O advento da
reforma psiquiátrica também sugeriu diferentes formas de acolhimento a
uma população que, na concretude de suas rotinas, viu a queda dos muros
que a separava da sociedade. Razões como esta levaram a fazeres que
destacaram uma proposta de espaço outro de atuação em CAPs, junto
com os acadêmicos do curso de Bacharelado em Musicoterapia. Assim
como, um olhar diferenciado para pessoas que se encontravam por muitos
anos invisibilizadas em instituições psiquiátricas (Silva; Volpi, 2015).
65
Musicoterapia social comunitária: partilhas e contracantos
Mais recentemente, pesquisas em contextos socioassistenciais, em
espaços e com parcelas da população usuárias dos serviços vinculados ao
Sistema Único de Assistência Social (SUAS), também marcam presença
(Arndt, 2015; Arndt; Maheirie, 2016; Arndt; Maheirie, 2017). Com tais
experiências, vamos nos aproximando de uma musicoterapia que pretende
mediar processos de emancipação e fortalecimento de vínculos.
66
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
interdisciplinar da área, buscamos aportes para compreender o espaço
relacional que estávamos criando. Encontramos fundamentação em
autores da musicoterapia e em outros mais próximos da filosofia e da
sociologia, em pressupostos que explicavam aspectos da dinâmica social
contemporânea.
Buscamos, então, para a construção de compreensões sobre as
relações que ocorrem nos grupos com os quais trabalhamos, fundamentos
da análise da vida prática ocidental da pós-modernidade do sociólogo
francês Maffesoli (2007). Entendemos que esse autor parte de uma
“fenomenologia social” (LEMOS, 1997, p.15) que nos propõe a imersão
em uma realidade sociocultural para compreender as práticas sociais, ou
socialidades, que acontecem no aqui e agora. Ao considerar a
complexidade, a diversidade dos agrupamentos humanos que se fundam
na afetividade e (re)inauguram uma estética comunal, Maffesoli nos
oferece visões de um jeito de estar junto que valoriza o presente vivido
coletivamente (LEMOS, 1997).
Maffesoli nos provoca a pensar que as manifestações grupais são
comuns no ritmo da vida atual. São formações que comungam de
imaginários e modos de agir semelhantes, de modo que formam um
continente simbólico que favorece “ a expressão das múltiplas
potencialidades” (p. 80), na busca coletiva por representatividade,
visibilidade e soluções para fatos do dia a dia. Até porque, ao experimentar
as carências, misérias e violências da contemporaneidade, as pessoas têm
percebido dificuldades na tradução do significado subjetivo da vida
cotidiana. Na tentativa, então, de religarem-se, tendem a se inclinar ao
agrupamento, ao ideal comunitário para “dizer-se” (p. 10). São, de acordo
com o autor, pessoas que estão juntas e que se organizam a partir de
circunstâncias em comum para “tornar visível uma força invisível” (p. 82).
No exercício profissional, no entanto, nos deparamos com o lado
perverso desta realidade. Há demandas que continuamente se
descortinam em espaços socialmente construídos e denominados por uma
variedade de rótulos estigmatizantes, capazes de isolar/excluir grupos e
pessoas em situação de múltiplas vulnerabilidades, sejam elas pessoas em
situação de rua, desorientados, velhos ou com deficiência. Assim,
assumimos que o fazer musical, as relações sociomusicais e o compartilhar,
seriam ações potentes para a construção de arenas participatórias
(RUUD, 1998), a partir de uma prática da musicoterapia ampliada,
inclinada ao contexto social, cultural e histórico na qual se insere.
67
Musicoterapia social comunitária: partilhas e contracantos
Alterar cursos convencionais de uma profissão nem sempre é
uma iniciativa confortável. Para trabalhar nas realidades que a
contemporaneidade nos ofereceu, foi preciso desviar uma rota
amplamente visitada pelos profissionais da área. Foi preciso abrir as portas
da sala de atendimento e enfrentar espaços e contextos abertos à ecologia
dos participantes, pois a sala fechada onde a díade terapeuta e paciente
interagiam se mostrou insuficiente para algumas situações e demandas.
Foi necessário quebrar tabus de confiabilidade e segredo terapêutico, pois
a comunidade, a grupalidade, era depositária dos assuntos a serem
trabalhados. Foi imperativo abrir o pensamento ao coletivo, ao diálogo,
ao compartilhamento de trilhas sonoras e de biografias. Essa postura tem
nos movido a ficcionar a polifonia como projeto de mundo, ou seja, um
comum partilhado, habitado por diferentes vozes, equipolentes e não
consensuais (Bakhtin, 1929/ 2010).
Para entender as alterações posturais e epistemológicas que nos
levaram a tantas transgressões no caminho da MTSoCom, consideramos
também a dimensão estética que se encrava nos saberes que derivam da
vida. Compreendemos a estética como o campo de configuração do
sensível, ou seja, a arena em que operam as formas de ver, escutar, pensar e
sentir do/o humano (Rancière, 2009). É nesse e com esse território
sensível que atuamos, no sentido de criar fissuras, promover tensões no
instituído, questionando a forma histórica e cristalizada em que os lugares
hierarquicamente se situam. Acreditamos que são nas tensões geradas no
estabelecido que reside a potência de abertura a outros possíveis.
Encontramos em Jacques Rancière, que pode ser considerado um dos
principais nomes da Filosofia Política da contemporaneidade (Marques &
Prado, 2018), pensares povoados de provocações sobre os
engendramentos que disputam as detenções do saber, levando-nos a
assinalar suspeitas diante dos lugares postos. Dedicado a pensar a estética,
a política e a arte, Rancière assina uma Filosofia atenta à vida do sujeito
comum, ou, nas palavras do autor, do homem ordinário.
Na busca por reivindicar outras sensibilidades possíveis,
sintonizamos nossos fazeres com a horizontalidade e a transformação. A
horizontalidade, entendida na escuta “da língua social” (p. 66), no diálogo,
no compartilhamento que abre possibilidades de reflexões, críticas e ações
capazes de instigar a potência da mudança (Maffesoli, 2009).
Transformação, no sentido da palavra latina transformare, significando
mudar, dar nova forma (Cunha, 2007) com base no ato transgressor de
68
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
valorizar as bases, as origens (MAFFESOLI, 2007). Consideramos que as
ações sintônicas com a horizontalidade e a transformação implicam em
resistir, em protagonizar ações conjuntas que fortalecem, que acarretam
em não ceder até que outras realidades possam ser imaginadas e,
posteriormente, inauguradas. O que se pretende é vislumbrar
possibilidades para que as pessoas verifiquem a autoria que têm, no
reconhecimento de que são parte ativa de um todo que se move para
humanizar as relações.
A vida social é criação, experiência em comum. É um composto
de potencialidades que tentam se manifestar e se alargar. É um estar junto
(Maffesoli, 2009) que propicia a continuidade das tradições culturais
revividas nos saberes e fazeres dos grupos. Assim fazendo, as pessoas
marcam que um viver singular e coletivo ainda é possível.
A partir de Spinoza (1663/2013), compreendemos que a
potência de existir dos sujeitos pode aumentar, diminuir ou manter-se
inalterada nos encontros. Assim, é no encontro que as possibilidades de
ser, pensar e agir podem se expandir. Para tanto, é necessária uma dose de
criatividade e imaginação. Nossa aposta é a de que, ao se ficcionar outras
formas de habitar o/no mundo, de narrar a existência, de sentir o outro,
inaugura-se o novo. A arte pode mediar tais processos porque pode abrir
mundos outros possíveis (Rancière, 2009).
Com isso, investimos na criação de espaços que pretendem
favorecer a participação e promoção de processos de emancipação.
Compreendemos que no campo social operam regimes instituídos
historicamente que legitimam algumas vozes como vozes de verdade,
vozes válidas, ao passo que uma parcela da população tem sua existência
invisibilidade e sua voz escutada como ruído (Rancière, 2011). A
promoção de processos de emancipação encarna ações que verificam e
atestam um lugar axiológico de igualdade, todos somos humanos, iguais
no que tange à condição de humanidade e, portanto, aptos a tomar parte
na constante (re)criação da vida cotidiana (Rancière, 2002; 2014).
A partir desses pressupostos, apostamos em uma prática da
musicoterapia comprometida com a vida cotidiana e com a cultura que
nela se cria e recria (Stige, 2002). Essa prática assumiu visões críticas que
se afastaram de rotulações socialmente convencionadas. A busca foi por
uma práxis fundamentada em sensibilidades vividas no momento de estar
junto, no diálogo, no rompimento com estéticas operantes, na liberdade
de criar formas diversas de participação.
69
Musicoterapia social comunitária: partilhas e contracantos
70
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Vinheta17
17
Vinhetas, em geral, são descrições narrativas que pesquisadores utilizam para
retratar situações específicas. Elas apresentam uma descrição curta e compacta de
uma situação, real ou fictícia, usada para passar uma mensagem, detectar
comportamento, atitude e conhecimento. (Galante et al., 2003). Seguindo
preceitos éticos, a coordenadora da instituição onde foi realizado o estágio,
assinou um termo de ciência e autorização para a apresentação dessa vinheta.
71
Musicoterapia social comunitária: partilhas e contracantos
canções e de música instrumental. Após a realização de quatro
encontros, sabíamos que todos eles conheciam mais de uma canção
na íntegra, com ênfase no gênero sertanejo, e já tínhamos noção do
repertório preferido do grupo e de suas rotinas nos espaços da casa.
O encontro que narramos aqui, aconteceu numa manhã de
inverno, em que o raro sol curitibano nos brindou com calor e
luminosidade. Éramos cinco, um aluno e três alunas em estágio do
terceiro ano da graduação em musicoterapia e uma professora
musicoterapeuta orientadora. Como de costume, organizamos a
roda de cadeiras na sala de estar para dar lugar ao sentar e
participar das atividades. Os nove homens estavam no pátio
externo. Nenhum albergado estava presente. Saímos para o passeio
musical convidando os homens para a participação no grupo.
Voltamos para a sala e percebemos que não havia adesão. Parecia
que eles queriam ficar lá fora se aquecendo ao sol. Resolvemos,
então, que seria melhor organizar o ambiente mais perto deles.
Levamos as cadeiras para fora e ajeitamos dois violões, alguns
pandeiros e caxixis no centro da roda, iniciamos a cantar para
chamar cada um pelo nome. Eles vieram, sentaram-se e ficaram
ouvindo a canção Carinhoso (música de Pixinguinha, letra de
Braguinha) que entoávamos. Ao final dessa canção, um dos
presentes iniciou a cantar uma melodia do Roberto Carlos. Em
seguida, como nenhuma outra canção estivesse em pauta, uma das
estagiárias fez uma melodia instrumental. O participante que
tocava sax cantarolou o tema, mostrando que conhecia a melodia.
Outro homem se levantou e saiu da roda, foi seguido de mais um e
mais outro, até que ficamos apenas nós, a equipe de mediadores/as,
na roda. Os/as estagiários/as me olharam indagando o que fazer,
assegurei com a cabeça que continuassem nos seus lugares a cantar.
Continuamos ali enfileirando as canções conhecidas do grupo, uma
após a outra. Os moradores permaneceram no pátio onde nossas
vozes e instrumentos ressoavam. A situação, conforme percebemos,
era bem peculiar: os participantes formaram um ambiente amplo de
escuta, alocando-se, cada qual no espaço que mais gostavam no
pátio. Com esse posicionamento, ficamos no centro do ambiente
72
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
enquanto os participantes se instalaram perifericamente. Mesmo
assim continuamos a cantar e tocar procurando parcerias com o
olhar e a expressão corporal de acompanhamento rítmico das
canções. Pouco a pouco as vozes dos homens começaram a soar e
acompanhar o repertório que executávamos. As canções eram as que
já havíamos cantado em experiências recriativas anteriormente
vividas com os participantes.
Ao final do trabalho daquele dia, estávamos ainda no
centro do pátio cercados de cadeiras vazias e dos homens instalados
pelo pátio. No entanto, cantávamos junto/as, ouvíamos solicitações
de canções vindas de um lado e de outro, e não havia mais a dúvida
nos olhares dos/as alunos/as. Entendemos que, naquele dia, os
participantes do grupo construíram o espaço da musicoterapia
conforme sua disposição e vontade. A nossa intervenção foi
modificada pela autonomia do grupo e não rechaçada ou negada.
Ao final das atividades, ouvimos alguns homens que quiseram falar
do quanto valorizavam a música que juntos/as criávamos naquele
ambiente. Outros vieram nos mostrar trabalhos manuais que
haviam feito no decorrer da semana e o participante que tocava
saxofone pediu que cantássemos juntos/as, ainda mais uma vez, o
Carinhoso.
O fato relatado acima mostrou que o silêncio e o distanciamento
foram estratégias encontradas pelo grupo para assumir o protagonismo, a
superação da contradição colocada pela nossa presença formal e a
participação aberta e livre que o grupo desejava. Nossa tentativa era a de
construir uma arena de participação na qual pudéssemos, a partir das
histórias musicais e existenciais que ressoassem na roda, entender o
imaginário do grupo. Pretendíamos que, ao saber os afetos e anseios em
comum, pudéssemos buscar, juntos, formas de fortalecer as
potencialidades de existir coletivamente naquele entorno, mesmo que
fosse no soar de vozes e instrumentos musicais. Trabalhamos, em alguns
encontro anteriores, no formato de roda, na sala de estar da casa. Mas
nesse dia, os homens sinalizaram suas opções e as efetivaram. Nós as
acolhemos, marcando nosso princípio sintônico com a horizontalidade
nas interações.
73
Musicoterapia social comunitária: partilhas e contracantos
Com esta ação, os participantes reafirmaram suas histórias de
vida. Eram trajetórias matizadas por transgressões de formatos
socialmente convencionados, pois, por uma ou outra razão já haviam
abandonado agendas engessadas e compromissos fixos, para existirem na
liberdade da rua. Nossa presença talvez reavivasse compromissos de
horário e desempenho social formal. Assim, ao redesenhar a forma
possível de estarmos juntos, eles reconfiguraram o espaço e a proposta de
acordo com suas situações existenciais.
Ficou evidenciado que, ao tomarem a iniciativa de abandonar a
situação formal, cada qual se encontrou no outro e o estar junto passou a
ser recriado coletivamente. Para o grupo, compartilhar era mais do que
estar na roda. A música poderia ser feita em outros formatos. O fazer
musical ressoava a cultura e era o recurso comum do grupo, mas as
relações sociomusicais naquele espaço foram vivenciadas conforme as
possibilidades daquela comunidade. Foi na desconstrução da proposta que
eles conseguiram construir outra maneira de compartilhamento. O
diálogo se estabeleceu no movimento dos corpos, nos olhares que não se
encontravam, nas vozes que soavam mais afastadas, na nossa permanência
e no respeito que mostramos pela atitude que expressaram. O fazer
musical, nesse momento, desestabilizou e depois estruturou nossos fazeres
até se tornar a ação em comum. Foi no fazer musical modificado que
encontramos a força geradora da reinvenção, da redescoberta das
potencialidades de compartilhamento do grupo.
É esse deslocamento crítico (porque vivenciado e compartilhado
com os outros presentes) que, acreditamos, leva à libertação de
pensamentos, vontades, sentimentos. É no caldo dessa dinâmica que os
participantes se percebem capazes de se inscrever na realidade e de criar
estratégias para modificar situações a partir da superação da inação.
Estávamos trabalhando com aqueles homens, (não para eles ou por eles),
no diálogo entre o que tínhamos, de ambos os lados, a ofertar para a
realização sonora de maneira a somar liberdades de escolhas, de escutas, de
participações. Assim, construímos um espaço relacional musical diverso
do que pretendíamos e dos que eles já haviam experimentado
previamente. Criamos e descobrimos juntos, em um processo de
encontros sucessivos sintoniozados com a horizontalidade, uma forma de
fazer musical que permitiu revolucionar normas e formatos convencionais
para conquistar a forma de ser e interagir possível para aquele grupo.
74
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
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80
Capítulo 4
CONSTRUÇÃO MUSICOTERAPÊUTICA
INTEGRADA: A MUSICOTERAPIA NA
EDUCAÇÃO CO-CONSTRUINDO
DIÁLOGOS GENERATIVOS DE SAÚDE
COMUNITÁRIA/SOCIAL
18
Nascimento (2010) refere como “comunidade intraescolar” os indivíduos que
se encontram cotidianamente dentro da escola, como os alunos, educadores,
gestor, coordenação pedagógica, coordenação de turno, corpo administrativo,
funcionários da limpeza, porteiros, professores de apoio; diferencia-se de
“comunidade extraescolar”, referindo-se aos sujeitos que podem estar na escola de
forma esporádica ou por breves períodos, como representantes das secretarias de
educação, pesquisadores, familiares, pessoas do entorno da escola, guarda
municipal, policiais, profissionais das instituições públicas, sujeitos da sociedade
civil, estagiários e docentes das universidades, etc. No entanto, para a autora todos
esses sujeitos pertencem a comunidade escolar, visto que realizam movimentações
diferenciadas dentro do espaço escolar.
81
Construção musicoterapêutica integrada
estruturada na investigação do doutorado em 201019, no entanto
construída continuamente em diversas práticas desde 1992 até o presente
momento20. Apresentamos o conceito Construção Musicoterapêutica
19
A pesquisa de Doutorado na Educação, que gerou a tese denominada A escuta
diferenciada das dificuldades de aprendizagem: um pensarsentiragir integral
mediado pela musicoterapia, foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade
Federal de Goiás, em 2008, com anuência da Secretaria de Educação do Estado de
Goiás à exeução em 2009 e 2010.
20
Residente no Municipio de Goiânia no Estado de Goiás/Brasil, nossa jornada
na educação inicia-se com o vínculo de professora de música em escolas públicas
(1986) se estendendo até o ano de 2003, convivendo com situações cheias de
conflitos interrelacionais dentro do ambiente escolar. Trazer o olhar terapêutico
para esse contexto se inicia em 1992 através do estudo sobre as linguagens
artísticas em avaliações psicopedagógicas no processo de ensino-aprendizagem;
avançou, nos anos posteriores, para propostas musicoterapêuticas direcionadas as
diferenciadas e múltiplas demandas emergidas: ressignificação de percepções
docentes e discentes junto ao processo inclusivo de educandos com deficiências
físicas, mentais e sensoriais (1995); ressignificação de comportamentos de alunos
com distúrbios de conduta (1999); estruturação e implementação do
atendimento terapêutico-educacional interdisciplinar e sistêmico para alunos
com TEA e seus familiares, o Programa ABRICOM (1999 a 2014); formação de
educadores à inclusão escolar de alunos com deficiências (2006 a 2009); formação
de educadores sobre a temática da violência escolar e da cultura da paz (2009 a
2013); ações interdisciplinares de promoção da saúde na escola (2011 a 2015);
interação da musicoterapia com grupos multifamiliares à prevenção ao uso de
drogas por escolares (2013). Tangencia as ações musicoterapêuticas na educação,
atuações nos contextos sociais (como: acolhimento interdisciplinar para
moradores em situação de rua, junto ao Consultório na Rua/SMS-Go (2011 a
2012); atuação preventiva de promoção da saúde e redes de apoio junto a idosos
(2013 a 2015); experiências musicoterapêuticas na formação humanizada do
profissional de saúde (2014); jornadas comunitárias entre educaçãoo e saúde
(2015 a 2016), configurando possibilidades de uma atuação sistêmica e
comunitária ao estabelecimento de redes de apoio entre escolas e os atores sociais
e comunitários. Muitas propostas a partir de 2008, foram desenvolvidas através
de ações extensionistas vinculadas a Universidade Federal de Goiás, sendo
algumas financiadas pelos editais do PROEXT/MEC/SESu-Brasil. Dentre os
projetos de extensão realizamos: grupos de estudo com musicoterapeutas
brasileiros sobre a aplicabilidade da musicoterapia na educação (2008 a 2015);
seminários de práticas clinicas de estágio (2006-2013); formação interdisciplinar
de acadêmicos atuantes na extensão (2009 a 2015); experiências acolhedoras na
formação de redutores de danos (2015); jornadas de musicoterapia preventiva
82
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Integrada à aplicabilidade da musicoterapia na educação frente as diversas
circunstancialidades das comunidades escolares, elencando os constructos
básicos que corroboraram à constituição de uma prática
social/comunitária em ambientes educativos.
Nos contextos da educação pública brasileira, desde épocas
remotas e mais presente na atualidade (anterior a 2020), é possível
identificarmos diversas situações que vulnerabilizam seus sujeitos, tais
como: cenas de violência na escola, com atitudes de vandalismo e a
presença do uso de drogas entre alunos; as violências geradas dentro do
ambiente educativo, como os casos de bullying entre alunos e educadores,
o distanciamento dos familiares do processo de aprendizagem associado a
excessiva culpabilização advinda do corpo docente; e os casos cada vez
mais presentes e acentuados de síndrome de burnout em educadores
(Nascimento, 2015); as dinâmicas dos ambientes escolares impactadas por
uma constante imprevisibilidade sob eventos de múltiplas causalidades
não planejados e que incidem em conflitos disciplinares entre alunos e
estresse em docentes.
Considerando os conceitos comunidade e social21, sustentamos
que cada unidade educativa configura-se como uma ‘comunidade’.
Composta de diferenciados espaços, tempos, sujeitos, conformam-se por
grupos intraescolares e extraescolares (Nascimento, 2010), bem como dos
intertextos de suas histórias de vida e dos textos advindos das políticas
públicas. Na constituição das escolas brasileiras esses diversos aspectos
22
Nascimento (2010) refere o termo (re)ações como reações ou movimentos
contrários ou de resistência dos sujeitos frente a fenômenos escolares mas que não
estão conscientes totalmente. Essas (re)ações encontram-se tangenciadas por
aspectos inconscientes e das histórias de vida dos sujeitos.
84
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
discursos que são expressos em manifestações verbais, corporais, silêncios,
sons, objetos apropriados e/ou construídos, entre outras formas
discursivas, que desvelam a influência de narrativas de outros tempos-
espaços-sujeitos, configurando, assim, movimentos de intertextualiades23.
Para Copalbo (2008, p.160-1),
o poder de tornar-se si-mesmo requer o outro, este é o caminho
comum a todos, é uma obra comum a todos, instituinte de
sociabilidade e de intersubjetividade. Dá-se um verdadeiro
movimento circular de um para outro, do Mesmo para o Outro,
sem que este movimento seja de repetição, podendo ele ser de
unificação e de separação. Os modos de vida do ser humano se
realizam, a partir daí, quer como verdadeira união no amor
autêntico, fonte viva da qual nasce toda vida humana, como dom
de si ou partilha, quer como separação, dilaceração. Na realidade,
estes dois processos estão entrelaçados pois se trata de um só e
mesmo movimento circular.
Mediante este movimento de interinfluência ou
intersubjetividade, percebemos que nos contextos educacionais do sistema
de ensino público brasileiro existe uma homogeneidade de discursos verbais
quanto não verbais, ressaltando uma mesmice nas ações cotidianas,
tangenciadas por fenômenos imprevisiveis. Em oposição a esta tendência,
outros movimentos presentes - na maioria dos atores do ambiente
educativo - validam a presença de situações de exclusão quer sobre
discursos, expressões, opiniões ou de atitudes espontâneas e diferentes,
impossibilitando espaços e tempos de escuta sobre si mesmo, escuta sobre
o outro, e escuta mútua e empática.
Harlene Anderson, terapeuta construcionista social, atuante na
23
Segundo Perez (s/d), a intertextualidade, “[...] é a influência de um texto sobre
outro. /.../ pode ser construída de maneira explícita ou implícita. Na
intertextualidade explícita, ficam claras as fontes nas quais o texto baseou-se e
acontece, obrigatoriamente, de maneira intencional./.../ A intertextualidade
implícita demanda de nós um pouco mais de atenção e análise /.../ esse tipo de
intertexto não se encontra na superfície textual, visto que não fornece para o
leitor elementos que possam ser imediatamente relacionados com algum outro
tipo de texto-fonte”. (Disponivel em
<http://www.mundoeducacao.com/redacao/intertextualidade-explicita-
implicita.htm>, Acesso em 29/6/2015).
85
Construção musicoterapêutica integrada
perspectiva das práticas colaborativas e dialógicas em terapias sistêmicas,
afirma que “as palavras que criamos influencia o que podemos fazer ou
não no mundo. Influencia como encontramos as pessoas no nosso
cotidiano. Não podemos fazer diferente se não pensamos diferente”
(Anderson, 2017, p.25).
Ouvindo estas afirmativas, ao perceber as tendências relacionais
dos indivíduos, agregadas aos fenômenos dos ambientes educativos,
sempre nos questionamos: qual(is) realidade(s) escolhemos ao priorizar a
homogeinidade dos discursos em suas diversas formas expressivas de
culpabilização e competitividade? qual realidade estamos criando com o
silenciar das expressões espontâneas, criativas, múltiplas e colaborativas?
como podemos, enquanto musicoterapeutas, colaborar na geração de
novos espaços e tempos dentro do contexto escolar que sejam generativos
de saúde para todos?
Desde 2006 identificamos uma insuficiência de literatura sobre a
aplicabilidade da musicoterapia na educação e ou direcionada para os
contextos educativos junto aos indivíduos normativos e com intervenções
dentro do espaço escolar. A maioria das pesquisas, quando relacionadas à
educação ou aprendizagem de crianças, adolescentes e jovens, se referiam
aos casos de alunos com deficiências ou síndromes pisiquiátricas, levando
a implementação de práticas ou investigações efetivadas dentro de
instituições especializadas ou no contexto clinico privado externos a
escola ou em espaços específicos de apoio educacional dentro destas.
Avançando em nossos estudos identificamos que a temática da
Musicoterapia no contexto escolar ou na educação regular encontrava-se
como um campo de investigação ainda a ser explorado. Inquietava-nos
perceber que a aplicabilidade da Musicoterapia no contexto escolar era
uma ação ainda pouco vislumbrada, tanto pelos profissionais da área
quanto pelos demais sujeitos que constituem a equipe das instituições
escolares e da saúde (Nascimento e Domingues, 2009).
Em 2010, no delineamento metodológico do Doutorado em
Educação, propomos a investigação sobre as dificuldades de aprendizagem
numa escola pública de tempo integral (Nascimento, 2010), uma pesquisa
mista, de campo, do tipo pesquisa-ação integral (PAI) (Morin, 2004),
fundamentada na hiperdialética merleau-pontiana (Merleau-Ponty,
86
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
1999)24 e na fenomenologia existencial. Configurando uma forma
diferenciada de aplicabilidade da musicoterapia no contexto educacional,
denominamos a proposta desenvolvida como Construção
Musicoterapêutica Integrada (Nascimento, 2010). Desenvolver a
investigação possibilitou muito mais que compreender um fenômeno
educativo à luz da musicoterapia e favorecer mudanças. Trouxe-nos
reflexões sobre aspectos importantes à aplicabilidade da musicoterapia na
educação, a serem compreendidos amplamente, explorados sob outras
explicativas e construídos diferentemente.
Considerando algumas especificidades da prática
musicoterapêutica dentro de espaços educativos, apesentamos pontos
importantes à compreensão do conceito apresentado:
1. justificamos esta terminologia pautados no propósito de
diferenciar a prática musicoterapêutica efetivada dentro das escolas,
daquelas práticas existentes no âmbito da educação especial ou
atendimento educacional especializado e de contextos clínicos
relacionadas a aprendizagem e suas problemáticas.
2. a atuação clínica dentro do contexto escolar encontra-se
subsidiada por preceitos da PAI (Morin, 2004), desenvolvendo etapas
24
A PAI centra-se no processo metodológico constituído por uma espiral
concêntrica, em permanente revisão da problemática e do delineamento
investigativo, objetivando a mudança nos discursos e nas percepções dos atores a
partir da implicação entre todos os envolvidos (participantes e pesquisadores),
favorecendo práticas coletivas. Integra diversas disciplinas na busca pela solução
de problemas, favorecendo a interdisciplinaridade, visto que “o paradigma que a
orienta mostra que o conhecimento não se opõe aos problemas de ação e se
enriquecem graças a um constante movimento de vai e vem” (Morin, 2004, p.75).
A utilização de métodos qualitativos e a fundamentação teórica são
reintroduzidos no processo de pesquisa contando com bastante criatividade à
busca de soluções tangenciadas pela compreensão e atitude de compartilhar dos
achados, levando à configuração da “espiral de comunicação ativa”. Optando pela
descrição fenomenológica merleau-pontiana (Rezende, 1990) à narrativa dos
resultados, propondo-nos a conhecer os fenômenos educativos a partir de suas
manifestações, no locus em que se encontravam inseridos. Sustentarmo-nos no
método fenomenológico existencial com vistas à recolha e compreensão dos
sentidos dados, ou melhor, os discursos expressos sobre e junto ao objeto de
estudo, apreendendo os sentidos desse fenômeno a partir de sua “facticidade”
(Merleau-Ponty, 1999).
87
Construção musicoterapêutica integrada
sequenciadas de observação, idenficação de fatores de risco/protetivos,
planejamento, atuação, registro de dados, reflexão e produção de
conhecimento, seguindo-se de novas etapas consecutivamente.
3. partindo da definição dicionarizada de construção - “ação de
reunir diferentes elementos formando um todo” (Houaiss, 2009, p.184)- ,
percebemos que as ações realizadas proporcionam a composição da
aplicabilidade da musicoterapia integrando-se à dinâmica do contexto
escolar e reunindo diversos sujeitos à realização e participação nas ações.
Com a explicativa da PAI (Morin, 2004), a co-gestão e ou a
participação ativa dos sujeitos pesquisados - na proposição e realização das
ações - é fundamental em sua constituição metodológica.
4. as ações não são estruturadas a priori, mas estabelecidas no
continuum das manifestações dos sujeitos. Isto é, ao serem analisadas as
ações/ (re)ações/ reações dos sujeitos, reprogramam-se os objetivos e,
consequentemente, novas ações, configurando a “circularidade das ações
musicoterapêuticas” (Nascimento, 2010).
Através deste movimento de continua observação-reflexão–
planejamento–atuação, percebemos o surgimento de uma demanda por
integralidade, ou seja, a partir das diversas expressões dos sujeitos se faz
necessário propor ações no contexto escolar numa perspectiva integral,
configurando uma proposta sistêmica com atuação multidirecional.
5. atuar terapeuticamente dentro do espaço escolar, no locus de
ações de cada sujeito e ou agrupamento, acolhendo a significação de suas
expressões a partir dos próprios atores e propondo novas experiências
considerando suas particularidades laborais e do contexto, tais como:
encontros musicoterapêuticos com os alunos dentro da sala de aula;
encontros musicoterapêuticos com a professora regente em horários de
planejamento pedagógico; ações interdisciplinares musicoterapêuticas
com o coletivo da escola em diversos momentos (recreios, exposições,
agrupamentos); ações complementares musicoterapêuticas com diversos
atores da comunidade intraescolar (reuniões pedagógicas) e extraescolar
(reuniões de pais); entre outras diferenciadas ações. Inserir-se dentro da
cotidianidade do ambiente escolar é condição sine qua nom nesta
perspectiva musicoterapêutica na educação.
6. a escuta musicoterapêutica ou escuta diferenciada do
musicoterapeuta norteia todas as ações, tanto à coleta dos dados sobre os
sujeitos da comunidade escolar, através de diversas fontes de informações,
88
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
quanto na proposição das ações e nas reflexões e discussões coletivas,
sustentadas na redução fenomenológica (Rezende, 1999).
“A preocupação da fenomenologia é dizer em que sentido há
sentido, e mesmo em que sentidos há sentidos. Mais ainda, nos fazer
perceber que há sempre mais sentido além de tudo aquilo que podemos
dizer”. (Rezende,1990, p.17). Rezende (1990) afirma que,
a fenomenologia prefere uma dialética plurilinear ou polissêmica
e continua afirmando a ambigüidade do fenômeno que nunca se
reduz a um só de seus aspectos, nem a um só tipo de relações
semânticas no interior da estrutura. A conseqüência é que
acabaremos falando também de uma ética da ambigüidade e de
uma ambigüidade radical da ação. A fenomenologia recusa o
dogmatismo em todas as suas formas: no nível da consciência
perceptiva, da consciência cognitiva, da consciência prática
(Rezende, 1990, p.20).
A partir da escuta musicoterapêutica, através de uma abordagem
fenomenológica-existencial, buscamos aportes teóricos à análise dos
fenômenos observados, seguindo-se da etapa de estruturação das diversas
ações com o propósito de gerar movimentos de mudanças intra e inter-
relacionais, tanto nas condutas psico-musicais (Nascimento, 1999) dos
sujeitos participantes das atividades musicoterapêuticas, quanto nos
discursos verbais dos diversos atores da comunidade escolar.
Proporcionando a ampliação desta escuta, frente aos fenômenos
educativos, agregamos um enfoque sistêmico e comunitário com o
protagonismo dos sujeitos da comunidade escolar desde a realização do
levantamento de dados até a socialização de saberes e geração de redes de
apoio. Desvela-se esta escuta diferenciada do musicoterapeuta comunitário,
uma “escucha, intervención, reflexión compartida” (Pellizzari, 2011),
como o eixo norteador de todas as propostas da musicoterapia preventiva
comunitária co-construida nestes 27 anos de atuação musicoterapêutica
dentro da Educação, identificando vulnerabilidades e fatores de risco
psicossocial, bem como fatores protetivos de fortalecimento da saúde intra
e interrelacional dos atores das comunidades escolares.
7. a proposição de ações musicoterapêuticas com grupo de
alunos, objetiva identificar e/ou perceber uma analogia entre as condutas
psico-musicais (Nascimento, 1999) e as circunstacialidades de risco ou
proteção presentes no ambiente escolar.
89
Construção musicoterapêutica integrada
8. as ações propostas às intervenções musicoterapêuticas não se
configuraram como ‘qualquer ação’. Cada ação proposta considera as
percepções (sobre os sujeitos e suas dinâmicas intra e interrelacionais),
quer advindas do pesquisador quanto através dos demais atores presentes
no ambiente escolar. Atuamos na perspectiva de integrar,
interdisciplinarmente, diversos profissionais e áreas do conhecimento na
compreensão e resolutividade dos problemas encontrados. As ações
interdisciplinares são permeadas pela aquisição e trocas de conhecimentos
entre os sujeitos e musicoterapeuta.
Consideramos que todas as ações propostas dentro do contexto
escolar são interventivas, com vistas às mudanças de situações de
vulnerabilidade, percebemos que expandimos a leitura musicoterápica
para além da sala e do grupo de alunos, abarcando as condutas e
transformações (ou não) advindas de todos os sujeitos. A proposta
metodológica ao desenvolvimento de ações e ou intervenções
musicoterapêuticas dentro dos espaços educativos, sustenta-se na
compreensão de que os fenômenos ou circunstancialidades locais – de
cada contexto escolar - devem ser apreendidos em sua múltipla e mútua
constituição.
As ações musicoterapêuticas constituem-se de “experiências
musicais interativas” (Barcellos, 1994), associadas ou não a outros
“Dispositivos Técnicos Expressivos” (Pellizzari, 2011), tais como desenho,
dança, histórias, fotos, videosgravações, pinturas.
9. as respostas dos sujeitos, frente as ações musicoterapêuticas,
não se relacionam apenas aos acontecimentos dentro do setting. Nosso
olhar-escuta atenta busca perceber as reações dos sujeitos manifestados em
diferenciados espaços e tempos do contexto escolar, desde mudanças
verificadas nas interações relacionais dentro da sala de aula, perpassando
pelas modificações nas dinâmicas junto aos demais sujeitos da escola até
chegarmos às mudanças dos discursos (quer verbal quanto não verbal)
destes indivíduos.
Alinha-se com a compreensão realizada por Merleau-Ponty
(1975) sobre as relações entre consciência e natureza, homem e mundo,
saindo das explicações do pensamento causal, tornando inviável separar
aquele que percebe (o sujeito) do que é percebido (as situações).
Conhecer por dentro o contexto onde se manifestam e os
discursos que dizem sobre. Porém, não somente conhecendo-o a
90
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
partir das formas dadas, já categorizadas através de documentos
ou discursos (ação muitas vezes realizada com relatórios, fichas),
mas através de uma atitude observadora, de apreensão pela
própria percepção (ação geralmente desconsiderada). No
entanto, é preciso nos permitirmos estar, com-viver, com-partilhar
espaços e tempos com os sujeitos que cotidianamente constroem
e são construídos. (Nascimento, 2010, p.329).
A partir dessas considerações, propomos a utilização da
terminologia Construção Musicoterapêutica Integrada definindo-a
como:
a proposição e desenvolvimento de experiências
musicoterapêuticas, a partir da escuta musicoterapêutica
sustentada na redução fenomenológica-existencial e da
interlocução com os intertextos da comunidade intra e
extraescolar, com ações orientadas ou efetivadas pelo
musicoterapeuta, dentro do contexto escolar, com vistas ao
auxílio de mudanças quer nas percepções, representações e ações
dos indivíduos, quanto junto aos multifatores interinfluentes que
impedem ou dificultam o processo ensino-aprendizagem e a
formação integral do ser humano (Nascimento, 2010, p. 52-3).
Posterior ao nosso estudo, aprofundamos nossa compreensão em
outros aportes teóricos ao participarmos de outros contextos de atuação.
Verificamos que nossa proposta se assemelha com a Metodologia da
Problematização ou Arco de Manguerez, definido por Colombo e Berbel
(2007), e a Musicoterapia Preventiva Psicosocial, posta pelos
musicoterapeutas argentinos Patricia Pellizzari e Ricardo J. Rodríguez
(2005). Ambas apresentam, em sua constituição, etapas executivas
semelhantes a circularidade que evidenciamos presente na PAI e na
metodologia que estruturamos, trazendo novos textos ou subsídios
teóricos. A Metodologia da Problematização ou Arco de Manguerez
(Colombo e Berbel, 2007) apresenta as seguintes etapas bem definidas e
sequenciadas: observação da realidade; reflexão sobre pontos chaves;
planejamento; realização das ações e registros; reflexão pós ação, sendo
muito utilizada junto aos profissionais da saúde vinculados a programas
de Estratégia da Saúde da Familia/Ministério da Saúde/Brasil, com o
objetivo de identificar a priori as dificuldades das populações para
posteriormente elaborarem estratégias de educação em saúde pautadas em
91
Construção musicoterapêutica integrada
orientações ou ações de saúde coletiva. A perspectiva da Musicoterapia
Preventiva Psicosocial (Pellizzari e Rodríguez, 2005), que posteriormente
estruturam a Metodologia Puente Sistematizada (Pellizzari, 2011),
apresenta etapas bem definidas à proposição da musicoterapia em espaços
sociais e comuntários, iniciando com a escuta, seguida do planejamento
participativo e posterior execução e registro das ações.
Destacamos a premissa posta por Pellizzari e Rodrígues (2005),
na qual a musicoterapia procura promover processos que gerem
“[...]espacios de expresión, recuperación y creación; encuentro y diálogo
interior y con los otros; lazos y redes sociales entre colegas y demás actores
de la comunidad[...]” (Siccardi, apud Pellizzari e Rodríguez, 2005, p. 92).
Sustentam que “[...]la musicoterapia comunitaria contiene intervenciones
específicas que surgen de la escucha y consideración de las necessidades y
deseos de la comunidade (formada o en gestacíon) de la que el
musicoterapeuta forma parte[...]” (Siccardi, apud Pellizzari e Rodríguez,
2005, p.90). O objeto de intervenção deixa de ser um paciente com
determinada história clinica e passa a ser o “sujeito social”, que demanda
uma resposta por parte de todos os seus membros. É neste momento que o
musicoterapeuta assume uma nova dimensão em seu exercício, já que,
como sujeito da cultura, estará, também, implicado de modo direto com a
realidade que se deseja transformar, na qual ele mesmo está imerso
(Pellizari e Rodrigues, 2005).
Atuando na promoção da saúde, a atitude do musicoterapeuta
centra-se em potencializar os aspectos saudáveis das pessoas ou de grupos
de pessoas, através de atividades musicais expressivas e criativas que
colaborem com os sujeitos à tomada de consciência de suas próprias
fortalezas, seus desejos e das ferramentas necessárias para aproxima-las da
realidade almejada. Centra-se no conceito de saúde positiva, percebida
como fonte de riqueza na vida cotidiana das pessoas e partindo da
premissa da resolutividade de problemas sociais através do enfoque
comunitário, ou seja, quando as pessoas se reúnem, proporcionam espaços
e tempos de reflexão e encontram, juntas, suas alternativas de solução
(Pellizari e Rodriguez, 2005). Como prevenção primária, o
musicoterapeuta detecta zonas ou situações de risco biopsicossocial,
refletindo, junto com as pessoas, sobre os riscos que determinadas
situações podem gerar para sua integridade biopsicosocioemocional,
instrumentalizando-os para que desenvolvam o enfrentamento
salutogênico destas situações.
92
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
No diálogo com estes textos, observamos uma caraterística
singular em nossa proposta metodológica à implementação da
musicoterapia na educação: não é traçada a priori e nem construída
linearmente, mas efetivada através de um ‘movimento circular-espiral’
constante, qual seja:
- as vezes por movimentos concêntricos, indo nas especificidades
das vulnerabilidades manifestadas para compreendê-las em sua
profundidade a partir dos próprios sujeitos;
- outras vezes por movimentos centrífugos, indo às extremidades,
fronteiras ou campos (isto é, os professores, a escola, os demais
atores da comunidade escolar, os pais, os demais alunos,
constituindo-se como fatores circundantes), que
(inter)influenciam as dinâmicas relacionais e (re)ações dos
sujeitos com problemáticas, para observer suas dinâmicas
relacionais;
- ou ainda por movimentos centrípetos, partindo das
extremidades e fronteiras (que influenciam os alunos) em direção
às especificidades vivenciadas nas salas de aula e seus atores.
A partir destes movimentos multidirecionais gerados no
continuum das ações musicoterapêuticas realizadas, é possível conhecer os
diversos “multifatores interinfluentes” (Nascimento, 2010) que estejam
presentes na constituição das dificuldades presentes no processo ensino-
aprendizagem e em outras situações de vulnerabilidade do e no contexto
escolar.
As ações musicoterapêuticas propostas devem emergir da
observação atentiva das ações e (re)ações dos atores do contexto escolar.
O musicoterapeuta precisa desenvolver e obter uma escuta ampliada e
diferenciada dentro do espaço escolar, como condição sine qua non à sua
prática neste contexto, não somente escutando sons e músicas mas sendo
capaz de ouvir-ver os silêncios e sons ambientais, os conteúdos proferidos
e as entonações dos discursos, as representações sociais e as expressões
corporais dos sujeitos, as estéticas dos espaços, isto é, escutar o “homem e
o mundo” (Merleau-Ponty, 1999).
Priorizamos acolher as diferenciadas significações dadas pelos
diversos sujeitos da comunidade intra e extraescolar sobre as
circunstancialidades vividas. Sustentamos que ouvir os sujeitos por eles
93
Construção musicoterapêutica integrada
mesmos, proporcionando outras formas de ver e dizer sobre os fenômenos
presentes neste contexto, tangencia todas as nossas ações em
musicoterapia na educação. Esse aspecto é muito importante, pois
evidencia uma atitude de atenção cuidadosa do musicoterapeuta,
observando a disponibilidade interna de cada sujeito à proposição ou
aceitação de transformações, considerando a abertura (ou não) às
mudanças e os tempos de cada contexto.
Com muita propriedade, Morin (2004) afirma que devemos
respeitar o rítmo das atividades vivenciadas pelas pessoas e a complexidade
da sua realidade, visto que a PAI, objetivando a mudança do contexto e
das ações dos sujeitos, enfoca com maior relevância a implicação dos
sujeitos e do pesquisador em seus locus, numa perspectiva auto e
heteroformadora, onde a mudança (nas e das ações) sobrevirá da
transformação das percepções dos sujeitos e de seus discursos. O autor
ainda sustenta:
uma ação que ultrapassa as possibilidades de realização dos atores
desanimará mais que estimulará. Nesse sentido, é importante que
ela esteja ligada ao vivido das pessoas ou as suas experiências.
Alíás, certo nível de organização parece importante para os
atores. Parece uma verdade de senso comum o fato de que o
campo de ação deva corresponder às capacidades dos
participantes. (...) Na medida das capacidades ou das
responsabilidades dos atores pesquisadores, trata-se-á de planejar
ações, indicando suas possibilidades de realização com base na
reflexão sobre as circunstâncias que as favorecem. (Morin, 2004,
p.86).
O fator que possibilita a conexão de todas as ações realizadas será
a escuta musicoterapêutica integrada, onde se faz necessário ouvir-ver os
fenômenos observados e analisados a partir da atitude fenomenológica
existencial merleau-pontiana, constantemente revendo as significações
presentes nos e através dos discursos singulares de cada sujeito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
94
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
quanto a realidade escolar e as manifestações de seus sujeitos, levando à
proposição de uma atuação musicoterapêutica multidirecional e sistêmica.
Com a Construção Musicoterapêutica Integrada, as ações
musicoterapêuticas dentro do espaço escolar, essencialmente
multidirecionais, favorecem possíveis transformações nos multifatores
interinfluentes vinculados e/ou que configuram as situações de
vulnerabilidade dos sujeitos, proporcionando mudanças nas percepções,
nos discursos e nos espaços-tempos educativos, tanto da comunidade
intra-escolar como extra-escolar. Resulta numa atuação musicoterapêutica
compreendendo os diversos discursos proferidos, cada qual em seus locus,
como fontes de informações sobre as fragilidades humanas, evidenciando
as subjetividades e formas perceptivas de cada sujeito.
Com as ações musicoterapêuticas, possibilitamos a modificação e
compreensão de alguns aspectos que influenciam, consideravelmente, ao
aparecimento/minimização ou manutenção dos fatores de
vulnerabilidade, fazendo emergir diálogos generativos de saúde
comunitária. A perspectiva das práticas colaborativas e dialógicas,
agregada a construção de nosso perfil de musicoterapeuta, nos
proporciona alcançarmos resultados significativos na co-construção de
ações, dentro dos contextos sociais/comunitários – como as escolas-,
generativas de novos discursos, novos significados e novas realidades.
Devemos proporcionar espaços-tempos diferenciados aos sujeitos
participantes das realidades comunitárias e educacionais, estimulando-os a
“saber pensar” (Demo, 2011), para alcançarem a compreensão de que são
parte da realidade e que quando a estudamos, “de certa maneira,
estudamos a nós mesmos, como somos, como funcionamos, nossas
entranhas e desejos”. (Demo, 2011, p.56).
Como um som que vibra permanentemente ressoando com
nossas ações, as vozes de Patricia Pellizzari e Ricardo Rodríguez (2005)
afirmam:
Todos somos potencialmente sujeitos transformadores de la
realidade cotidiana. Reinventamos en cada acto la voluntad de ser
coerentes con nosotros mismos y con nuestros semejantes. Aun
creemos en la potencia de la salud, de la dignidade, de la
solidaridad. En el desafio de vencer el aislamiento para
integrarnos en metas comunes. (Pellizzari e Rodríguez, 2005,
p.10).
95
Construção musicoterapêutica integrada
Soma-se a essas vozes, as sonoridades aa voz de Paulo Freire,
construindo um diálogo generativo de múltiplas possibilidades, ao afirmar
que
a existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem
tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras
verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir,
humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo
pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos
pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar.[...] não é no
silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na
ação-reflexão” (Freire, 1970, p.92 apud Nascimento, 2010,
p.317).
Outras palavras reverberam na voz de Anderson, ao dizer que
“confiar na incerteza envolve arriscar confiar no processo de colaboraçãoo
e diálogo e na sua natureza transformadora. Isto envolve estar aberto a
mudanças não previstas” (Anderson, 2017, p.32).
Em minhas próprias palavras faço ressoar: muito ainda podemos
dizer/cantar/expressar sobre nossos mundos conhecidos ou esperados. Ao
somarmos nossas sonoridades discursivas com outras já existentes - e
também outras em construção, nossos alunos-, novos dizeres podem ser
expressos levando a geração criativa e colaborativa de novas realidades,
quiça mais saudáveis para todos nós.
REFERÊNCIAS
97
Construção musicoterapêutica integrada
https://ubammusicoterapia.com.br/anais-do-xv-simposio-
brasileiro-de-musicoterapia/
Pellizzari, P. C. e Rodríguez, R. (2005). Salud, escucha y Creatividad.
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Pellizzari, P. C. (2011). Crear Salud. Aportes de la Musicoterapia
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Educação. (No. 0, Set/Out/Nov/Dez, pp.63-82).
http://educacao.uniso.br/pseletivo/docs/FRAGO.pdf
98
Capítulo 5
MUSICOTERAPIA ORGANIZACIONAL
UMA TEORIA EM CONSTRUÇÃO
INTRODUÇÃO
O contexto organizacional
99
Musicoterapia organizacional uma teoria em construção
sistemas que interagem entre si (Chiavenato, 2002). Os sistemas dentro
das organizações podem ser entendidos como unidades operacionais.
Essas unidades devem se apoiar umas às outras de maneira que o resultado
de seus esforços satisfaça a necessidade a que se propõe, seja ela a
necessidade de indivíduos ou grupos sociais.
As organizações servem para atender necessidades externas, mas
também precisam atender demandas necessárias à sua subsistência. Assim,
funcionam como organismos vivos que interagem com o meio passando
por estágios de desenvolvimento, adaptação e extinção (Chiavenato,
2002). O conjunto de seus elementos constitutivos determinará seu nível
de funcionalidade e sua sobrevivência (Castro, 2010).
De maneira prática, uma empresa pode ter como objetivo
produzir sapatos, por exemplo. Os sapatos atendem a necessidade de as
pessoas andarem calçadas para protegerem seus pés. Para produzir os
calçados diversos sistemas ou unidades operacionais estão envolvidas.
Seguindo o modelo de design organizacional de Mintzberg (2009) temos:
o nível estratégico que envolve a direção da empresa que determinará o
tipo de sapato a ser produzido, a clientela a ser atendida, o mercado a ser
atingido, etc.; o nível gerencial ou linha média, no qual os gerentes
orientarão e supervisionarão a linha de base; linha de base ou centro
operacional, responsável pela transformação da matéria prima no produto
final; a tecnoestrutura que visa a melhoria contínua da estrutura da fábrica,
composta pelos engenheiros de produção, os analistas de pessoal,
treinadores e recrutadores, e por fim; a assessoria de apoio ou logística que
realiza atividades especializadas como assessoria jurídica, controle de
finanças, analistas de pessoal, treinadores, recrutadores, etc. Além desses
parâmetros temos também a ideologia da empresa que permeia todas as
instâncias e processos.
Os Recursos Humanos ou Gestão de Pessoas são uma dessas
unidades que funciona como órgão de staff - como elemento prestador de
serviços que cuidará para que as pessoas entreguem resultados melhores e
mais rápidos (Chiavenato, 2010). A Gestão de Pessoas (GP) exerce
também um papel fundamental na integração das partes da empresa, pois
é através da interação humana que os diversos setores comunicam suas
necessidades e se apoiam em prol de um resultado comum.
À medida que as interações acontecem nas organizações surgem
padrões que vão se sedimentando ao longo do tempo. Esses padrões se
100
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
transformam no que chamamos de cultura organizacional. A cultura
organizacional engloba todos os costumes, atitudes, crenças, expectativas e
valores (idem) praticados na organização.
Além de transmitir padrões de comportamento por meio de
papéis sociais, a cultura influencia os processos psicológicos de
seus membros. A motivação, a percepção, o pensamento dos
indivíduos são influenciados por uma cultura (Aguiar, 2005, p.
269).
Dessa maneira, compreender a cultura de uma organização é
fundamental para sabermos suas potencialidades e limitações. Um dos
principais aspectos da cultura é o clima organizacional, que está mais
relacionado às percepções e interpretações comuns às pessoas no ambiente
da organização (Brown & Leigh, 1996; Martins, 2000; Tamayo, 1999
como citado em Martins, 2008). O clima organizacional afeta o
comportamento e as atitudes das pessoas no ambiente de trabalho e
interfere na qualidade de vida e no desempenho da organização (Martins,
2008). Se por um lado o clima está voltado para as percepções, a cultura é
algo mais amplo que compreende o sistema de valores e normas
compartilhados.
Apesar da cultura ser um agente influenciador da motivação,
percepção e do pensamento dos indivíduos (Aguiar, 2005, p. 269) ela
também é passível de mudança. A cultura organizacional se relaciona com
a individualidade dos funcionários, recebendo interferências das
percepções pessoais e esse diálogo entre as singularidades e o coletivo
constitui a identidade organizacional (Freitas, 2002). A identidade
engloba as instâncias individuais e coletivas, sendo o conjunto desses
elementos percebidos externamente como um todo, também passível de
mudança só que com menor flexibilidade.
A identidade organizacional deriva da cultura organizacional que
também dialoga com a cultura nacional na qual está inserida, uma vez que
essa última exerce maior influência sobre empregados (Robbins, 1999
como citado em Castro, 2010). Assim, observamos que em diferentes
culturas empresas multinacionais assumem diferentes nuances em sua
identidade, de acordo com o local. Ao longo do tempo também
observamos diferentes tendências em termos de mudança cultural dentro
das organizações, originadas a partir de mudanças culturais em um nível
macro.
101
Musicoterapia organizacional uma teoria em construção
Desde a revolução industrial a visão do ser humano dentro das
organizações, mais especificamente das empresas, tem mudado bastante.
Inicialmente as pessoas eram vistas meramente como peças de uma
máquina desempenhando uma função mecânica. À medida que o tempo
foi passando, o trabalho se tornou mais complexo e as pessoas passaram a
ser vistas como recursos dos quais eram extraídos os resultados desejados.
Com a intelectualização do trabalho, elas hoje estão sendo vistas como
parceiros capazes de investir no desenvolvimento da organização,
possuindo talentos que fornecem as competências essenciais ao sucesso da
empresa (Chiavenato, 2010).
Decorrente dessa mudança de perspectiva, hoje vemos um
aumento em termos de investimento na integração entre as partes
interessadas – stakeholders. O principal elemento de ligação dos
stakeholders é o propósito da organização. As empresas que seguem essa
tendência não vêm o lucro como seu único fim (Begnini et al, 2019), elas
vão além e por isso são entendidas como empresas humanizadas. Pesquisas
apontam que esse tipo de perfil organizacional traz benefícios em termos
de sustentabilidade, bem-estar social e também de geração de valor
financeiro (Paro, Caetano e Gerolamo, 2019).
A essa tendência, Mackey e Sisodia (2009 como citado em
Begnini et al, 2019) dão o nome de Capitalismo Consciente. No
Capitalismo Consciente as empresas buscam resultados positivos para a
empresa e para a sociedade como um todo. Está fundamentado em quatro
pilares fundamentais: propósito maior, integração de stakeholders,
liderança consciente e cultura e gestão consciente (idem).
Apesar dos estudos apontarem as vantagens de uma visão de
longo prazo que preze pelo coletivo, muitas organizações, por falta de
visão, ainda se mantêm presas a modelos retrógrados. Visam o máximo
lucro a curto prazo sem fazer investimentos nas pessoas. Algumas dessas
empresas, ao perceberem dificuldades para lidarem com o cenário atual de
mudanças aceleradas, buscam por ferramentas que supram suas
deficiências em termos de gestão de pessoas e na visão estratégica. É
comum observar nessas empresas alto índice de turnover, absenteísmo,
conflitos, dificuldade na seleção de pessoal, dentre outros problemas.
Nesse ponto, as consultorias e ferramentas como o coaching e a
musicoterapia organizacional são solicitadas para redirecionar as
interações humanas, trabalhar o clima organizacional e ajustar as diretrizes
102
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
da empresa, visando maior sustentabilidade. Vejamos agora porque a
musicoterapia é uma ferramenta desejável para esse tipo de mudança.
104
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Quadro1 – Aplicações da Musicoterapia Organizacional de
acordo com o foco
Foco no Ambiente de Trabalho Foco na Prevenção de Doenças
do Trabalho
- Processo Seletivo - Atendimento aos colaboradores
- Treinamentos para Desenvolvimento - Musicoterapia Organizacional
de Equipes Receptiva
- Treinamentos - Musicoterapia laboral
- Workshops - Vivências
- Palestras - Palestras
- Música em ambientes de trabalho - Workshops
- Palestras
105
Musicoterapia organizacional uma teoria em construção
Até aqui tivemos uma noção ampla do contexto organizacional e
do papel que a musicoterapia desempenha nele. Vejamos agora um
exemplo prático para depois fazermos uma reflexão a respeito de alguns
aspectos teórico sobre essa prática.
Contexto:
O treinamento foi realizado em um centro de reabilitação em que eu já
atuava como musicoterapeuta clínico e hospitalar, mas onde ainda não
tinha sido feita nenhuma intervenção organizacional de duração maior.
Apresentação da demanda:
Em conversa informal com o coordenador das recepções foi-me dito que
uma das recepções estava com problemas na equipe. O clima entre as
recepcionistas estava ruim, pois havia um conflito entre elas. Segundo ele,
uma das recepcionistas era colocada como bode expiatório da situação,
recebendo a culpa por não querer atender o telefone e sobrecarregar as
outras. As outras recepcionistas, por sua vez também não cumpriam com
suas tarefas, além de repassarem informações divergentes para o público.
Ele percebia falta de boa vontade no atendimento e falta de proatividade
para solucionar problemas por parte delas.
Apresentação da solução:
Eu comentei com esse coordenador a respeito de um treinamento que
havia estruturado com o objetivo de desenvolver habilidades de escuta nos
participantes visando melhoria na produtividade. Esse treinamento era
aplicável ao caso e poderia solucionar o conflito. Ele gostou da ideia e com
106
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
autorização da minha gestora organizamos os horários e iniciamos o
trabalho.
Anamnese ou avaliação inicial:
Antes de começarem os encontros com o grupo realizei uma entrevista
estruturada com o coordenador e outra com a encarregada da recepção
para levantar mais dados. Foram encontradas 3 demandas/expectativas
principais: redução da competitividade entre as recepcionistas, resolução
de conflitos interpessoais, e desenvolvimento de senso de unidade do
grupo. Também conversei com as recepcionistas participantes do
treinamento para ouvir seu ponto de vista e foram encontradas 3
demandas/expectativas da parte delas: resolução de conflitos
interpessoais, espaço para expressão de insatisfações, e alívio de estresse.
Nessa conversa também foi aplicada uma escala de medida de clima
organizacional (Martins, 2008) e solicitada uma autorização de uso de
imagem feitas durante o treinamento.
Estrutura do treinamento:
O treinamento estava estruturado inicialmente com a carga horária total
de 8 horas, distribuídas em 8 encontros de 1 hora semanal, ou seja, dois
meses de trabalho. Cada encontro seguia a seguinte estrutura:
acolhimento, aquecimento, aplicação de técnicas - ativas e receptivas - da
musicoterapia, reflexão teórica e fechamento, podendo ter ou não exercícios
para aplicação prática no dia a dia do trabalho. É importante ressaltar que
o treinamento não ficava fechado em torno da musicoterapia, ele incluía
também outros elementos que favoreciam o alcance do objetivo principal,
tais como desenvolver habilidades de escuta visando maior produtividade.
Contudo, a musicoterapia era sempre o principal meio para despertar as
habilidades de escuta e estimular a transformação de atitudes nas pessoas.
No treinamento foi desenvolvido o seguinte conteúdo: - Ouvir x Escutar;
- Percepção e Relações; - Escuta Empática; - Comunicação Não Violenta; -
Escuta e Produtividade.
Execução do treinamento:
No início do treinamento, nos 3 primeiros encontros, o grupo apresentou
interação e expressão musicais mais contidas, com baixa intensidade e
poucas variações rítmicas, refletindo a formalidade e distanciamento de
sua relação de trabalho. Elas não demoraram para começar verbalizar a
respeito do conflito no grupo, mas se referiam a ele como algo externo a
107
Musicoterapia organizacional uma teoria em construção
elas e de responsabilidade de ‘alguém’ – insinuando ser a colega que era
colocada com bode expiatório. Essa colega, por sua vez, se justificava da
mesma maneira falando do restante do grupo. À medida do
desenvolvimento do treinamento, começaram haver mudanças na
interação musical com maior interação rítmica, mais variações – não
foram grandes variações, mas significativas – e aumento da expressão de
emoções intensas como riso e choro. Foi possível a ampliação do espaço
para expressão de insatisfações e a assertividade na comunicação pôde ser
ampliada. As resistências também se apresentaram, no início uma das
participantes não queria participar do treinamento, em um dos encontros
o grupo todo se atrasou para chegar, em outros momentos houve recusa
para participar da produção musical, além outras atitudes de evitação.
No final do treinamento, nos 2 últimos encontros, o grupo já se
mostrava bem mais integrado em termos musicais. As participantes
passaram a se escutar mais ao tocar e na conclusão fizeram uma
composição na qual relatavam que aprenderam a se comunicar melhor e
percebiam melhora na produtividade. No dia do fechamento, elas foram
todas vestidas de preto e disseram que era para simbolizar luto pelo fim do
treinamento.
Resultados
Após o fechamento do grupo, foram feitas novas entrevistas com as
participantes, com a encarregada e o coordenador da recepção. As
participantes relataram diminuição de erros por falhas de comunicação,
melhoria no ambiente de trabalho e redução de conflitos. A encarregada e
o gestor disseram ter percebido melhora no clima da equipe, aumento da
disponibilidade das recepcionistas para atenderem solicitações da chefia e
desenvolvimento da capacidade de gerenciar conflitos. A escala de clima
organizacional foi novamente aplicada ao final do treinamento e, apesar
dos relatos de melhora na equipe, houve piora na maioria dos índices
analisados. Essa piora nos índices aconteceu porque o sistema de gestão da
recepção foi mudado, o que gerou muita insegurança, impactando na
percepção do ambiente de trabalho.
Feedback para a empresa:
Os resultados do treinamento foram apresentados para a empresa no
formato de um relatório entregue para o coordenador das recepções. Foi
feita também uma apresentação dos resultados em um evento, no qual
participou a alta direção da instituição. O treinamento, por fim, foi
108
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
estendido aos colaboradores das outras recepções e se repetiu em 6
edições.
109
Musicoterapia organizacional uma teoria em construção
Venda ou Anamnese ou
Pós-Venda ou
Captação do Avaliação Execução Fechamento
Feedback
Trabalho Inicial
110
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
percepção. Para isso é preciso mobilizar emocionalmente as pessoas para
haver algum ganho perceptivo. Quando utilizamos as técnicas da
musicoterapia, muitas vezes evocamos a história pessoal e às vezes
emergem dores profundas. Algumas vezes isso gera resistências, como no
caso da colaboradora que não queria participar do treinamento. Nesses
casos é importante dar liberdade para as pessoas irem até onde se sintam
seguras. Entretanto, também ocorre de a pessoa querer aproveitar o
momento da musicoterapia para trabalhar questões pessoais, perdendo o
foco do trabalho. Nesses casos, é preciso oferecer limites e, se for o
necessário, encaminhar a pessoa para uma terapia individual. O foco é
sempre o desenvolvimento profissional, então o musicoterapeuta precisa
saber dosar a intensidade das atividades para não perder de vista o objetivo
maior do trabalho.
Para garantir que o objetivo final do trabalho seja atingido é
preciso também avaliar o desenvolvimento das pessoas no processo
musicoterapêutico. A musicoterapia tem ampliado suas ferramentas de
avaliação e algumas delas – por exemplo as IAP’s (Bruscia, 2000 como
citado em Gattino et al., 2016) e o IMTAP (Silva, 2012) - podem ser
adaptadas ao contexto organizacional. Essas ferramentas permitem
observar, através da observação dos aspectos musicais, o desenvolvimento
de aspectos não musicais como as relações intra e interpessoais. É muito
rico para o contexto das organizações ter esse tipo de ferramenta, pois isso
possibilita compreender as melhores maneiras de intervir em prol de uma
melhora no ambiente de trabalho. Nossas ferramentas de avaliação, no
entanto, são estruturadas para um processo musicoterapêutico tradicional.
Para avaliar questões relacionadas à organização em si existem algumas
escalas específicas. Algumas da psicologia organizacional, que não são
exclusivas para uso de psicólogos (Martins, 2008; Martins, 2014), podem
ser utilizadas como no caso do treinamento aqui apresentado. No
entanto, podem ser construídas ferramentas próprias para observação dos
resultados da musicoterapia organizacional.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
112
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
REFERÊNCIAS
113
Musicoterapia organizacional uma teoria em construção
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15.
Steinberg, M. (2006). Musicoterapia organizacional. XII Simpósio
Brasileiro De Musicoterapia. Goiânia. Anais, 1-15.
114
Capítulo 6
25
Musicoterapeuta de Brasília – DF, Brasil, com mais de 10 anos de experiência
com a ML em musicoterapia.
115
Mesa lira na prática clínica musicoterapêutica
indescritível que me motivou a buscar maiores informações sobre aquele
instrumento e o desejo de adquirir uma, consumado em 2016. Nesse
mesmo ano, recebi o treinamento para utilização da ML em
musicoterapia, com a citada musicoterapeuta. A partir de então, além do
uso clínico, comecei a buscar na literatura, fundamentos científicos para
respaldar aquela modalidade de intervenção. Pela ausência de publicação
relacionada à ML, especificamente, incorporei outros temas similares,
entre os quais o Monochord Table.
A título de curiosidade, a Mesa Lira (ML), de acordo com
Petraglia (2008), é também é conhecida como Monochord Table ou
Klangliege ou Behandlungsmonochord. Ela foi introduzida no Brasil por
Marcelo Petraglia26, em 2002, e, possivelmente, tem as suas origens no
Monocórdio, cuja provável autoria é atribuída a Pitágoras, por volta do
século VI a.C, na Grécia Antiga, com o intuito de estudar a associação
entre a matemática e a música. O Monocórdio era um instrumento de
uma única corda, estendida entre dois cavaletes fixos sobre uma prancha
ou mesa, e um cavalete móvel colocado sob a corda para dividi-la em duas
sessões para que pudessem relacionar os intervalos musicais ao conceito de
frações (Gomes da Silva & Viana Barros, 2018; L. Teixeira, Lisete, &
Groenwald, 2018). O Monochord Table foi desenvolvido pelo músico e
musicoterapeuta suíço Joachim Marz em 1989 (Petraglia n.d.).
A ML é constituída por uma caixa de ressonância de madeira,
com 1,90 m de comprimento por 85 cm de largura, sustentada por quatro
pés, também de madeira. Abaixo da caixa de ressonância, estão localizadas
42 cordas de aço, presas em dois cavaletes localizados nas extremidades,
afinadas na mesma frequência (aproximadamente 72Hz). Essas cordas,
quando tocadas, produzem uma sonoridade rica em harmônicos. Além
disso, uma de suas principais funções, segundo o fabricante, é a de
promover relaxamento e bem-estar, podendo ser utilizada em vários
contextos, inclusive no terapêutico, conforme informações do fabricante
(Petraglia, n.d.).
Continua explicando, o referido fabricante, que a ML é uma
abordagem vibracional e que uma de suas funções é a dita e usada
26
Marcelo Petráglia educador musical, especialista em musicoterapia, fundador
do Instituo OuvirAtivo acessado em: www.ouvirativo.com.br.
116
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
“Massagem Sonora”. Em relação a isso, gostaria de tecer algumas
considerações. Primeiramente, a ML, de acordo com meu entendimento,
é um instrumento musical e não uma abordagem. Sendo um instrumento
musical, ela pode ser incluída no contexto musicoterapêutico como
qualquer outro tipo de instrumento, isto é, pode ser utilizada como um
recurso terapêutico nas sessões de musicoterapia. Em segundo lugar, faço
referência ao uso da expressão “massagem sonora”, que, sob meu ponto de
vista, é inadequado no meio musicoterapêutico, pois em musicoterapia a
ML lira pode ser utilizada para alcançar objetivos terapêuticos para além
do relaxamento, com fundamento científico e temas correlatos, devido à
escassez de estudos específicos com o instrumento. Evidências
neurocientíficas mostram que os estímulos acústicos produzidos pelas
cordas da ML, ao serem captados pelo sistema sensorial da pessoa, cujo
corpo está em contato direto com a superfície de madeira do instrumento,
são processados em diferentes regiões corticais e subcorticais cujas
respostas podem ocorrer em nível motor, cognitivo, emocional, entre
outras, à semelhança daqueles produzidos por outros instrumentos
musicais (Russo, Russo, Gulino, Pellitteri, & Stanzani, 2017; H. Sandler
et al., 2016; Hubertus Sandler, Fendel, Peters, et al., 2017; Sanyal et al.,
2019; Zhao, Lam, Sohi, & Kuhl, 2017). Quero esclarecer que o
comentário acima, sobre o uso da expressão “massagem sonora” se trata de
uma posição pessoal e não tem, em absoluto, o intuito de confrontar,
desrespeitar ou ofender ponto de vista contrário.
Feitas essas considerações, vamos retomar o tema principal que é
o uso da ML na clínica musicoterapêutica. Confesso que, por muito
tempo, tentei responder a uma “pergunta interna” sobre como classificar a
experiência com a ML. O resultado das minhas longas reflexões vou
apresentar no tópico que se segue.
117
Mesa lira na prática clínica musicoterapêutica
produto da terapia e ao contexto, sendo que tais interações ocorrem ou
fazem parte do processo terapêutico como um todo. As experiências
musicais elencadas por Bruscia, na citada obra, são nominadas como:
improvisacionais, composicionais, recriacionais e receptivas. Segundo o
autor, elas possuem características próprias, como o comportamento
sensoriomotor distinto, que se manifestam por meio de diferentes
habilidades e podem evocar variadas formas de processos interpessoais.
Segue afirmando Bruscia (2000, 2016) que, quando esses elementos agem
conjuntamente, representam grande potencial terapêutico, tanto na
modalidade ativa como na receptiva.
Na musicoterapia ativa, o cliente participa do fazer musical. Na
musicoterapia receptiva, a pessoa escuta música - ao vivo ou gravações - e
recebe sons e vibrações no corpo com objetivo de evocar respostas
corporais específicas, estimular ou relaxar, dentre outros apontados pelo
autor. A experiência receptiva possui variações e uma delas é a Escuta
Somática, definida como o uso de vibrações, sons e música com o intuito
de influenciar diretamente o corpo do cliente. Essa escuta somática possui
submodalidades, sendo a Música Vibroacústica uma delas elencadas
nesse rol. Ela consiste na administração de frequências vibracionais por
meio de música ou padrões vibracionais de música diretamente no corpo
do cliente (Bruscia, 2000, 2016). Uma das formas de aplicar essas
vibrações no corpo do cliente é por meio da Terapia Vibroacústica
(TVA) (Hooper, 2001). Seguindo esse pensamento, Grocke & Wigram
(2007) consideram a vibroacústica uma das formas de escuta somática e a
Terapia Vibroacústica é entendida como um termo genérico, o qual é
utilizado para o uso do fenômeno acústico com finalidade terapêutica,
mediada por um musicoterapeuta.
Dessa maneira, sendo a ML um instrumento musical, por meio
do qual se aplicam vibrações no corpo da pessoa, ela é uma forma de
experiência receptiva da modalidade escuta somática e da submodalidade
música vibroacústica, semelhantemente a Terapia Vibroacústica (TVA),
resguardando suas respectivas diferenças. Por essa razão, convido você a
conhecer um pouco do que vem a ser a TVA.
A Terapia Vibroacústica consiste no uso terapêutico de um
equipamento de vibroacústica, juntamente com um software que emite
sinais sonoros de baixa frequência, associadas com áudios/músicas
gravadas. As vibrações são aplicadas diretamente ao corpo, na forma de
ondas senoidais de baixa frequência em combinação com a música
118
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
selecionada (Hooper, 2001). A primeira ideia de Terapia Vibroacústica
foi desenvolvida por Olav Skille e Juliette Alvin em 1968. Nesse mesmo
ano, Skille e Juliette Alvin definiram três princípios universais que
orientavam a base da seleção da música para a Terapia Vibroacústica. Em
1997, Olav Skille (Skille, 1989) publicou um artigo que trazia
informações e descrições sobre a aplicação e resultados da terapia
vibroacústica, desde os estágios iniciais de desenvolvimento. Em 1991, o
mesmo autor publicou o “Manual de Terapia Vibroacústica”; em 1980,
desenvolveu a Terapia Vibroacústica, que combina vibrações físicas para
relaxamento com vibrações musicais de baixa frequência, em sons
senoidais. Em 1982, Skille definiu a TVA como ondas senoidais, de baixa
frequência (30 – 120 Hz), ondas de pressão sonora rítmicas associadas
com música, para fins terapêuticos, e observou que o uso da TVA reduzia
dor e sintomas relacionados ao estresse (Hooper, 2001; Skille, 1989;
Punkanem & Ala-Ruona, 2012). Outros pioneiros da TVA foram Tony
Wigram, Petri Lehikoinen, Saima Tamm, Riina Raudsik e Eha Rüütel
(Punkanen & Ala-Ruona, 2012).
Tony Wigram, professor, pesquisador e musicoterapeuta clínico
de Londres, Reino Unido, em seus primeiros programas de TVA
denominados “Música Vibroacústica”, utilizou uma mistura de música e
sons de baixa frequência (Punkanen & Ala Ruona, 2012). O
musicoterapeuta percebeu que a TVA seria um grande recurso para a
musicoterapia, o que despertou grande interesse em aprofundar seus
conhecimentos nessa prática. Sua motivação pelo tema teve como base o
fato de que na musicoterapia tradicional era comum utilizar audição de
música gravada para produzir efeito fisiológico e psicológico, mas o uso
simultâneo de um tom senoidal, pulsado em baixa frequência e associado
ao efeito vibracional da música tocada em uma cama ou cadeira projetada
para promover uma sensação de vibração ao paciente, normalmente, não
se enquadrava no tratamento musicoterapêutico tradicional. O
pesquisador propôs um experimento que culminou na sua tese intitulada
“The effects of vibroacustic therapy on clinical and non-clinical
populations”, na qual demonstrou que a terapia com vibroacústica trata-se
de um tratamento promissor em musicoterapia e continua sendo aplicada
em todo mundo (Wigram, 1996.).
A terapia vibroacústica foi descrita, por alguns pesquisadores,
como “estimulação vibroacústica: “Body Monochord” (H. Sandler et al.,
2016; Hubertus Sandler, Fendel, Buße, et al., 2017; Hubertus Sandler,
119
Mesa lira na prática clínica musicoterapêutica
Fendel, Peters, et al., 2017), Monochord Table e Monochord Chair
(Warth, Kessler, Kotz, Hillecke, & Bardenheuer, 2015). Todos esses
modelos, assim como a ML, são feitos de madeira. A vibração das cordas
sendo tocadas pode ser percebida pelo corpo da pessoa que está em
contato direto com a superfície de madeira do instrumento.
27
Instituto OuvirAtivo. Acessado em www.ouvirativo.com.br
120
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Escola de Música e Artes Cênicas, da Universidade Federal de Goiás,
Brasil (EMAC/UFG), instituição da qual faço parte. Havíamos recém-
adquirido uma ML com parte dos recursos oriundos de um projeto de
extensão (contemplado em edital público), coordenado pela professora
Sandra Rocha28, como o propósito de usá-la tanto nos atendimentos
clínicos realizados nos estágios da graduação como para as pesquisas. O
curso, ministrado pela musicoterapeuta Delia Matos29, foi dividido em
duas partes, a saber, uma teórica e outra prática. Iniciou-se com um breve
histórico do instrumento, aplicações clínicas, finalizando com prática,
momento em que os participantes tiveram a oportunidade de manusear o
instrumento e experimentar as vibrações geradas pela ML. Participaram
da capacitação musicoterapeutas e estudantes de graduação e pós-
graduação em musicoterapia em nível de estágio obrigatório. Em 2019, a
convite da professora Fernanda Valentin30, ministrei o segundo curso de
ML em musicoterapia, com enfoque na neurociência, incluindo
apresentação das pesquisas de graduação (Santos, et al, 2019) e pós-
graduação (Teixeira et al., 2019) com a ML, ambas orientadas por mim.
28
Musicoterapeuta, docente do curso de graduação em Musicoterapia da
EMAC/UFG.
29
Profissional de Brasília – DF, com experiência clínica de uso da ML em
Musicoterapia por mais de 10 anos.
30
Musicoterapeuta, coordenadora da graduação em Musicoterapia da
EMAC/UFG.
121
Mesa lira na prática clínica musicoterapêutica
história da doença atual (HDA), antecedentes pessoais e
familiares, uso de medicamentos, dentre outros;
2. Entrevista Musicoterapêutica: específica do musicoterapeuta –
para identificar a relação do indivíduo com o mundo sonoro
musical, incluindo preferências e rejeição a sons e músicas
específicos, práticas musicais formais e/ou informais etc;
3. Contrato musicoterapêutico: por meio do qual terapeuta e
paciente estabelecem direitos e obrigações entre as partes
(terapeuta, cliente e/ou familiares). Cabe aqui definir frequência,
duração das sessões, valores das sessões, forma de pagamento, local
de atendimento, dentre outros. O contrato pode ser verbal ou
escrito, e em ambos os casos ele deve ser observado com zelo;
4. Objetivo terapêutico: significa, em linhas gerais, o que se
pretende alcançar com o tratamento, sob o ponto de vista do
cliente e/ou familiares. Ele é identificado a partir das informações
coletadas na anamnese e entrevista musicoterapêutica. Para ser
alcançado, necessita ser planejado;
5. Projeto terapêutico: constitui as etapas a serem seguidas para que
o objetivo terapêutico seja alcançado. Deve ser elaborado
conjuntamente com o paciente e/ou familiares, de acordo com a
abordagem de tratamento centrado no paciente. As etapas são
definidas como Metas de Longo Prazo e Metas de Curto Prazo;
6. Metas: são as etapas a serem perseguidas para se alcançar o
objetivo. As metas são propostas com definição de prazo e
resultado esperado. Precisam ser claras, objetivas e realísticas, e são
alcançadas por meio de estratégias;
7. Estratégias: são procedimentos, entendidos como pequenas ações
que precisam ser realizadas de maneira regular, planejada,
organizada com vistas às metas. Devem ser adaptadas à realidade
de cada pessoa. A escolha demanda reflexões relacionadas ao
quadro clínico do paciente, sustentadas por arcabouço teórico-
científico.
Especificamente em relação a ML, ela será o recurso, ou seja, o
procedimento, por meio do qual se pretende alcançar as metas
estabelecidas para atingir objetivo terapêutico. Considerando que o
tratamento com a ML, como qualquer outro, é individualizado, isso
significa que a forma de usar a mesa pode diferir de caso a caso. Significa,
122
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
ainda, que é importante ter embasamento teórico e científico para usá-la
em musicoterapia.
Vale enfatizar que cabe ao musicoterapeuta proporcionar ao
paciente condições seguras e confiáveis para o desenvolvimento do
tratamento, importantes para a formação e fortalecimento do vínculo
terapêutico, sendo este imprescindível para adesão e continuidade do
tratamento. Condições seguras e confiáveis se referem, principalmente, ao
espaço físico, nele incluídos os recursos materiais a serem utilizados pelo
terapeuta, bem como o preparo técnico e segurança do musicoterapeuta
no manuseio da ML.
Sobre a questão da segurança, quero chamar a atenção para os
possíveis efeitos das vibrações acústicas sobre o próprio musicoterapeuta
(durante e após a intervenção), tais como: sonolência, rebaixamento do
tônus muscular, diminuição do nível de atenção, entre outros. Ademais, o
manuseio pode interferir no desempenho motor (intensidade, velocidade)
ao tocar as cordas da ML, como também no nível de atenção do
musicoterapeuta e, consequentemente, influenciar na resposta do
paciente.
Feitas essas considerações, seguimos para o planejamento das
sessões de musicoterapia, de forma cuidadosa, pois elas serão
fundamentais para que os objetivos terapêuticos, esperados com o
tratamento, possam ser alcançados.
Sessão com Mesa Lira em Musicoterapia
Como o objetivo do capítulo é falar sobre a ML na clínica
musicoterapêutica, vou sugerir um formato de sessão em que a ML é usada
como principal recurso terapêutico. Seguem algumas dicas baseadas na
minha prática clínica e em pesquisas das quais participei, as quais serão
apresentadas oportunamente. Cada sessão deve ser estruturada e
cuidadosamente preparada, incluindo a leitura dos relatórios das sessões
anteriores ou os apontamentos do primeiro encontro e avaliação inicial.
1. Formato da sessão: por questões óbvias deve ser individual;
2. Duração da sessão: em média 30 minutos;
3. Mesa Lira: antes de cada sessão, deve-se conferir a afinação do
instrumento. Por questões de segurança, é importante ajustar os
parafusos, quando necessário, pois podem ceder com o tempo. A
mesa e as almofadas devem ser higienizadas antes e depois de cada
123
Mesa lira na prática clínica musicoterapêutica
atendimento, de acordo com as recomendações das autoridades
de saúde;
4. Ambiente: ajustar a luminosidade e temperatura para cada
paciente, de maneira que se sintam confortáveis e seguros;
5. Acolhimento: deve acontecer no início de cada sessão. É
fundamental que o paciente seja acolhido, pois ajuda a fortalecer
o vínculo terapêutico a cada dia. Cada profissional pode adotar a
sua própria maneira de acolher, desde que seja espontâneo e
verdadeiro. O Acolhimento do primeiro encontro deve incluir a
apresentação da mesa ao paciente, explicar como se realiza o
procedimento, como as vibrações são percebidas pelo corpo
(sugiro que ele experimente colocando a mão sobre o tampo de
madeira, sobre a posição que ficará na mesa durante a sessão). Isso
torna o instrumento mais familiar e próximo, como também
pode ajudar a diminuir o receio do “novo” e do nível de
ansiedade, quando presente;
6. Intervenção com a Mesa Lira: ajudar o paciente a sentar e se
posicionar na mesa antes de deitar em decúbito dorsal.
Certifique-se de que está confortável e, se necessário, utilize
pequenas almofadas. Apesar das orientações iniciais quanto à
vestimenta, algumas pessoas chegam com roupas que podem
deixá-las constrangidas, como é o caso de saia, vestido etc. Nesse
caso, aconselho cobrir as pernas da pessoa com toalhas
descartáveis. Antes de iniciar o procedimento, peça ao paciente
que retire relógio, cinto, pulseiras, brincos ou qualquer outro
acessório. Por precaução, pois não encontrei nada na literatura a
respeito, se o paciente usa aparelho auditivo, peço para que retire
também. Cuidados devem ser tomados no momento em que o
paciente vai descer da mesa. Terminada a intervenção, o paciente
deve ser orientado a se sentar lentamente e relatar como se sente.
Ao musicoterapeuta cabe a responsabilidade de verificar as
condições físicas e emocionais do paciente e, se necessário,
oferecer suporte terapêutico. É necessário que, antes de liberá-lo,
esteja seguro de que se encontra em plena condição de sair ou
recorrer ao acompanhante, se este for o caso. Ainda sobre a
intervenção, é comum que durante as primeiras sessões o paciente
não sinta as vibrações no corpo. Isso pode ocorrer por causa da
tensão gerada pelo desconhecido e pela ansiedade que pode servir
124
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
como distrator, o que, de certa maneira, interfere no nível de
atenção e percepção;
7. Processamento: momento aberto para reflexões e avaliação da
sessão;
8. Finalização da sessão: segue o mesmo padrão das sessões de
musicoterapia com recomendações quanto aos possíveis efeitos
decorrentes da intervenção com ML, como sonolência, sensação
de fraqueza devido ao estado de relaxamento, dependendo do
tipo de intervenção e objetivo. Esses sintomas podem ocorrer de
imediato e perdurar por horas ou período maior de tempo. Até o
presente momento, não tivemos relato de desconfortos ou outros
efeitos adversos.
Finalmente, não custa reforçar que toda sessão deve ser planejada
para ter começo meio e fim, de preferência que ela seja sistematizada,
porém flexível para ajustes necessários. No início, você acolhe o paciente
para o encontro terapêutico, e, ao final, acolhe as palavras do paciente
sobre a sessão como um todo, para que, juntamente com as suas
observações clínicas, possam refletir e juntos tomar as decisões cabíveis
para direcionar o tratamento e alcançar os objetivos pretendidos.
Avaliação
125
Mesa lira na prática clínica musicoterapêutica
pois ela servirá como parâmetro para as avaliações sobre a evolução do
paciente, as quais ocorrerão no decorrer do processo.
Na avaliação inicial, utilizo, de maneira geral, o mesmo protocolo
para a musicoterapia31, pois é o momento destinado a identificar as
necessidades do paciente bem como suas habilidades preservadas para
definirmos os objetivos terapêuticos e todas as informações colhidas nessa
fase, as quais são necessárias para desenvolver qualquer plano terapêutico
centrado no paciente.
Avaliações periódicas ou Evaluations - são aquelas que ocorrem
no decorrer do processo. Elas proporcionam critérios para avaliar as
respostas do paciente em relação ao tratamento e orientam nas tomadas
de decisão quanto à mudança de estratégia, quando por ela apontada. Em
outras palavras, a Evaluation é, portanto, um processo dual que avalia o
progresso do paciente e determina a eficácia de distintas intervenções e
estratégias de tratamento como também as distintas etapas do tratamento
(Bruscia, 2003, 1999).
As avaliações periódicas para o tratamento com a ML também
seguem os mesmos procedimentos, pois trata-se de um processo
musicoterapêutico. É recomendado que sejam usados os mesmos
instrumentos avaliativos utilizados na avaliação inicial, acrescidos da
observação sistematizada e do feedback do paciente e/ou
familiar/cuidador após cada sessão, e ainda outros que se fizerem
necessários no decorrer do processo, de acordo com percepção do
musicoterapeuta. É importante estabelecer no projeto terapêutico o
momento em que essas avaliações serão realizadas. A padronização dos
eventos avaliativos facilita a avaliação do processo de maneira geral. Vale
ressaltar que as avaliações programadas não impedem que outras sejam
realizadas no interstício entre uma e outra. Cabe ao musicoterapeuta
avaliar a necessidade e o momento delas acontecerem.
É relevante dizer que as avaliações (inicial ou periódicas) são
imprescindíveis para o processo musicoterapêutico de qualquer
abordagem, e que a seleção dos processos avaliativos pelo musicoterapeuta
31
Anamnese, entrevista musicoterapêutica, entrevista com familiares e/ou
cuidadores (se necessário), instrumentos específicos de musicoterapia e de uso
multiprofissional, informações de prontuário (paciente institucionalizado) e da
equipe (no caso de tratamento multiprofissional) conforme contexto clínico do
paciente.
126
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
deve levar em consideração a coerência e adequação ao quadro clínico,
como também o contexto da pessoa que está em tratamento
musicoterapêutico.
Indicação para o tratamento com Mesa Lira em
Musicoterapia
Por analogia, dadas as semelhanças e resguardadas as especificidades, sigo
as recomendações da Terapia Vibroacústica, propostas por Tony Wigram
(1996) para: a) redução do tônus muscular, no caso de espasticidade e
melhora da amplitude de movimentos em pacientes com paralisia
cerebral; b) alívio de dor relacionada a cefaleia, fibromialgia, dentre
outras; c) redução do nível de ansiedade e abertura de canal de
comunicação em pacientes com TEA.
Na minha singela experiência clínica com a ML associada a outras
intervenções para pacientes com doença de Alzheimer, para treino de
habilidades cognitivas como atenção, memória, praxias e redução da
agitação, observei melhora que também foi relatada pelos pacientes e
familiares. No entanto, foram poucos casos e não tive a oportunidade de
investigar melhor as respostas. Para os pacientes com doença de
Parkinson, tratados com a ML, foi possível um acompanhamento mais
prolongado e me permitiu observar importantes resultados na melhora da
rigidez, fadiga, bradicinesia (lentidão de movimentos), sintomas
depressivos e qualidade do sono. Esses resultados clínicos me levaram à
condução de uma pesquisa que será apresentada no próximo tópico.
Mesa Lira na clínica musicoterapêutica como objeto de
pesquisa
A prática musicoterapêutica deve ser baseada em evidência. Contudo, a
ausência dela não impede o exercício da clínica musicoterapêutica. Ao
contrário, deve sim, abrir caminho para novas investigações e a ML faz
parte, de certa maneira, dessa trajetória. A partir de 2016, quando passei
usar a ML na clínica musicoterapêutica, comecei a buscar estudos em
bases de dados que pudessem me oferecer suporte científico para a minha
prática com o instrumento. Diante da escassez de estudos relacionados
especificamente com a ML, me senti motivada a estudar o tema, de
maneira mais sistematizada. Como projeto piloto, em 2017, juntamente
127
Mesa lira na prática clínica musicoterapêutica
com o professor Eduardo Lopes32, desenvolvemos uma investigação na
modalidade estudo de caso.
O citado estudo teve como objetivo comparar as experiências
receptivas com audição musical de música gravada e o trabalho com a ML.
O estudo teve como objetivo reduzir o nível de ansiedade dos
participantes. Cada participante realizava três sessões individuais em dias
diferentes, sendo duas por audição musical de música gravada e uma com
mesa vibroacústica. A ordem das intervenções (música gravada ou ML) foi
randomizada para cada participante. Cada experiência tinha duração
média de 30 minutos. Para coleta de dados foram utilizados os seguintes
instrumentos avaliativos: a) Entrevista musicoterapêutica breve33;
“IDATE” (Inventário de Ansiedade Traço-Estado) (Biaggio & Natalicio,
1979; Spielberger & Lushene, 1970) para avaliar o nível de ansiedade, a
Escala de Avaliação Subjetiva do Nível de Relaxamento34; e o mapa de
localização da sensação/percepção corporal das vibrações produzidas pela
ML35. As escalas foram aplicadas no início e final das três sessões
realizadas. Participaram do estudo três pessoas (dois homens e uma
mulher). Os resultados mostraram que a intervenção com a ML foi a
escolhida pelos participantes, quando comparada com a da audição
musical. Foram observados, ainda, melhores resultados para a intervenção
com a ML para redução da ansiedade e aumento do relaxamento corporal.
Claro que o número de sujeitos foi pequeno e outros estudos necessitam
ser realizados, mas podemos sugerir, por amostragem, que a intervenção
com a ML é segura e pode confluir para bons resultados clínicos
(Alcântara-Silva & Lopes, 2018).
“Musicoterapia receptiva com a Mesa Lira no período de
desintoxicação em dependentes químico” foi um estudo randomizado,
controlado, de abordagem quantitativa, e fez parte do um projeto de
pesquisa de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Música da
32
Músico, docente da Universidade de Évora, Portugal que esteve como professor
visitante na EMAC/UFG durante o ano de 2017.
33
Elaborada especificamente para o estudo de caso, com o intuito de acessar
informações sobre o nível de conhecimento da/do participante sobre a
musicoterapia e a ML.
34
Adaptada da adaptada da “Escala Visual Analógica Musical” (Alcântara-Silva et
al., 2018; Alcântara-Silva, 2012)
35
Elaborado para uso no estudo em questão.
128
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
UFG. Nessa pesquisa, conduzida pela musicoterapeuta Andressa Toledo
de Teixeira, sob a minha orientação e coorientação do professor Eduardo
Lopes. Ela teve como objetivo investigar se a Musicoterapia Receptiva
com a ML pode reduzir os níveis de ansiedade de dependentes químicos
em um programa de desintoxicação em regime de internação. Foram
testados dois protocolos distintos para as sessões de musicoterapia com a
ML. Participaram do estudo, 40 sujeitos alocados randomicamente em
quatro grupos (dois experimentais e dois controles). Esse estudo nos
permitiu afirmar que a musicoterapia por meio da ML foi pouco eficaz na
redução da ansiedade de usuários de droga na fase de desintoxicação, mas
foi efetiva na promoção do relaxamento e consequente bem-estar dos
usuários, ajudando-os a enfrentar os sintomas da abstinência, bem como a
diminuir o desejo incontrolável para usar a droga, além de aumentar o
nível de adesão ao tratamento. Vale dizer que esse foi o primeiro estudo
randomizado com a ML em Musicoterapia (Teixeira et al., 2019).
Como parte da pesquisa, foi proposta uma revisão narrativa com o
título “Terapia Vibroacústica e Monochord”, utilizando os
descritores music and vibroacustic table, music and vibroacustic
therapy, monochord, monochord and music e monochord and therapy,
nas diferentes bases de dados (Scopus, PubMed, CINAHL, NJMT,
Voices e SciELO), com objetivo de investigar, principalmente, o uso
da TVA e do Monochord no que se refere à duração e frequência de
sessões, como também sua indicação clínica. Essa revisão ainda não
foi publicada, mas está descrita na íntegra na referida dissertação
(Teixeira et al., 2019). Em relação aos resultados, ela mostrou que,
independente do modelo de monocórdio utilizado (Monochord
Table, Monochord Chair, Body Monchord), os resultados
encontrados a partir dos quatro artigos incluídos indicaram que a
estimulação vibroacústica com Monochord produziu efeito benéfico
para alívio da dor, diminuição do nível de ansiedade, relaxamento,
melhoria do bem-estar, salvaguardando as limitações descritas pelos
autores quanto aos estudos. A revisão confirmou o tempo de sessão
utilizado na nossa prática clínica e nos deu alguns direcionamentos
quanto ao protocolo que usamos no próximo estudo.
Realizamos outra pesquisa, em forma de estudo de caso
quantitativo, que foi apresentada como Trabalho de Conclusão de curso
129
Mesa lira na prática clínica musicoterapêutica
de graduação em Musicoterapia da EMAC/UFG, cujo objetivo foi
investigar se a Musicoterapia Receptiva, por meio da mesa vibroacústica,
podia melhorar os sintomas motores e não-motores da pessoa com doença
de Parkinson. Na pesquisa, orientada por mim e coorientada pelo
professor Eduardo Lopes em coloraboração Dr. Delson José da Silva36,
foram avaliados fadiga, sono e nível de relaxamento. Foram incluídos no
estudo três pessoas com doença de Parkinson. Os resultados mostraram,
tanto pelos scores das escalas avaliativas como pela percepção dos sujeitos
em relatos, que a ML proporcionou melhora tanto nos aspectos motores
como nos não-motores (fadiga e sono). Ademais, apesar da ML ser um
instrumento pouco conhecido e não convencional, não foi obstáculo para
a adesão ao tratamento, que teve duração de três meses. Todos
frequentaram assiduamente, mesmo em condições limitantes quanto à
motricidade, principalmente para dois deles (Santos, Alcântara-Silva,
Lopes, & Silva, 2019). O protocolo dessa pesquisa está em fase de ajuste
para ser aplicado em um próximo estudo.
Considerações Finais
36
Médico, neurologista, chefe do Serviço de Neurologia e Neurocirurgia e
coordenador do Ambulatório de Parkinson e Desordens do Movimento do
Núcleo de Neurociências do Hospital das Clínicas da UFG (HC/UFG).
130
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
clínica e científica sobre a ML seja continuada com novas descobertas e
perspectivas diferentes, lembrando que a clínica e a pesquisa precisam e
devem andar lado a lado.
Por último, não se assustem se daqui algum tempo eu apresentar
outras opiniões a respeito da ML, pois a ciência é dinâmica e pretendo
continuar minha jornada ao lado dela, com humildade suficiente para
adequar ou até mesmo mudar meus pensamentos acerca desse
instrumento em busca de mais evidências e benefícios clínicos, ...
REFERÊNCIAS
131
Mesa lira na prática clínica musicoterapêutica
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134
Capítulo 7
PRELÚDIO
37
Refiro-me aqui ao Núcleo de Cuidados Paliativos do Hospital Universitário
Pedro Ernesto (UERJ), onde atuei como musicoterapeuta contratada, no período
de 2011 a 2015.
135
Ritos de passagem em cuidados paliativos
enfrentamento do câncer em estágio avançado, em sua experiência da
finitude com dignidade, humanidade e arte, no confronto com o
sofrimento, permitiu-me construir bases mais sólidas de minha proposta
de Musicoterapia em Cuidados Paliativos, priorizando a abordagem
Interativa (Barcellos, 1994), com ‘música viva’38, para promover conforto
e alívio de sintomas, auxiliar no processo de comunicação e expressão de
sentimentos, até o nível mais elevado de transformação pessoal na
exploração das questões espirituais e existenciais.
Um dos desafios foi a redefinição do conceito de processo
musicoterapêutico, pois, no contexto ambulatorial, adquire um foco
singular, pontual, com início-meio-fim nos atendimentos diários aos
pacientes (Petersen, 2012a), durante as consultas médicas mensais. Dadas
as condições da doença, a garantia de retorno é incerta. Outro desafio foi a
adequação ao ambiente físico, compartilhado por todos os profissionais,
pacientes e familiares, destinado aos diversos tipos de procedimentos. O
que garantia o ‘espaço sagrado’ durante as intervenções da musicoterapia
era a escuta ativa às necessidades do momento, para o possível e mais
perfeito encaminhamento à expressão musical, fosse com a recriação de
canções, o acompanhamento instrumental ou a improvisação musical. A
interação paciente-música-musicoterapeuta tornava-se possível, e
produzia encontros repletos de beleza e significado.
Refletindo sobre o trabalho desenvolvido nesses anos, sinto quão
importante foi ter acompanhado a jornada final de cada uma dessas
pessoas, na experiência compartilhada do fazer musical em rituais de
despedida, no encontro da espiritualidade expressa em ritos de transição
da vida para a morte. Um desses honoráveis momentos será aqui
apresentado.
38
Todas as intervenções eram feitas por mim utilizando o violão, e
disponibilizando instrumentos de percussão de pequeno porte para os pacientes,
familiares, cuidadores e profissionais que participassem.
136
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
doença até o processo de luto. O tempo de acompanhamento dessas
pessoas sofre influência direta dos gráficos de evolução de cada patologia
abrangida pela definição da Organização Mundial de Saúde, destacando
que as doenças oncológicas ainda são as de pior prognóstico, sobretudo
pelo diagnóstico tardio. Por Cuidados Paliativos compreende-se: a
promoção da melhor qualidade de vida, a prevenção e o alívio do
sofrimento através de identificação precoce39, a avaliação e o tratamento
preciso da dor e outros sintomas físicos, psicossociais e espirituais, de
forma que os pacientes possam viver o mais plenamente possível até sua
morte, considerando esta como uma etapa natural da vida (Who, 2020).
Destaco essa última referência a respeito da morte, pois é o evento que
representa a finalização do processo do morrer, e será presenciado em
muitos dos nossos trabalhos, temas para os quais os profissionais
paliativistas precisam estar capacitados para vivenciar na prática clínica.
A literatura da Musicoterapia Médica (Dileo, 2015), com
enfoque em Cuidados Paliativos e em cuidados de Fim de Vida, apresenta
as contribuições das experiências musicais no alívio de sintomas
biopsicossociais e espirituais às pessoas em Cuidados Paliativos
(McConnell & Porter, 2016; Clements-Cortés, 2016; Dileo & Dneaster,
2005), numa proposta de cuidados para uma vida mais plena e ativa, o
quanto possível, até a terminalidade.
Aliviar o sofrimento, mantendo o sentido de palliare40, deve ser o
norte das ações dos cuidados de fim de vida, como destaca Marie de
Hennezel em seu livro “A Morte Íntima”: “Diante da angústia dos outros,
é preciso acolher o sofrimento e depois oferecer toda a confiança e
serenidade que se pode encontrar em si mesmo (...) e permitir que a
39
Idealmente, os Cuidados Paliativos deveriam ser iniciados a partir do
diagnóstico de sérias doenças crônicas que ameacem a continuidade da vida, e
aumentar seu espectro de ação na medida em que os tratamentos de cura
diminuem sua efetividade. Na prática, a maioria das pessoas é encaminhada aos
serviços especializados para os cuidados exclusivos de terminalidade, abrangendo
um tempo médio dos últimos 6 (seis) meses de vida.
40
O termo palliare derivado do pallium (latim), que significa "manto", deu
origem à filosofia dos Cuidados Paliativos: atos que ‘cobrem’ e acolhem,
amparam, cuidam do paciente portador de doença crônico-degenerativa, para
aliviar a dor, os sintomas e o sofrimento decorrentes desse enfrentamento (Melo,
2004).
137
Ritos de passagem em cuidados paliativos
angústia, o desespero, a dor, possam falar e gritar” (Hennezel, 2004,
pp.123, 131).
A morte é, pois, a última crise a ser enfrentada e a última
oportunidade para o crescimento espiritual, sendo seu grande desafio o de
manter íntegra a identidade da pessoa diante da desintegração total
(Hinshaw, 2004 como citado em Saporetti & Silva, 2012).
No contexto do setting musicoterapêutico, acolher o ser humano
em seu sofrimento, com sua história e sua música, recriada ou
improvisada, pode permitir reviver/atualizar/ressignificar situações e
emoções, explorar e expressar sentimentos e pensamentos indizíveis,
reafirmar crenças religiosas, vivênciais espirituais e transcendentes
(Petersen, 2012b), além de refletir sobre o ‘sentido da vida’ (Frankl, 2003)
no transcurso da doença. Consonante com essa ideia, Aldridge (1999) vê
na musicoterapia a possibilidade de encorajar os pacientes que estão
morrendo a manterem algum bem-estar “em face da iminente perda
biológica e social [pois] em meio ao sofrimento é possível criar alguma
coisa que é bela” (Aldridge, 1999, p.20).
A experiência da improvisação musical na etapa da terminalidade
pode proporcionar um fenômeno único - o encontro de paciente e
musicoterapeuta no ato da criação estética -, num interjogo de
subjetividades que conduz a ambos ao aprofundamento no processo
terapêutico (De Backer & Foubert, 2016).
Esse fenômeno, ao qual De Backer e Foubert (2016) se referem,
eu pude vivenciar durante os atendimentos ambulatoriais. Ao se
permitirem participar das improvisações musicais por mim propostas, os
pacientes se surpreendiam e se encantavam com os caminhos produtivos,
inimagináveis, que puderam ser percorridos. Em uma nova perspectiva de
produção musical, eram eles acompanhados por mim, a musicoterapeuta,
numa experiência única, íntima, ambos carregados pela música que ia se
construindo no tempo, como também relatado por Hartley em sua prática
clínica (2001). Lee (2003) afirma que a improvisação pode incorporar o
inesperado da existência humana e refletir a natureza transcendente da
vida, na transição do viver para o morrer.
A Musicoterapia em Cuidados Paliativos adquire, deste modo,
uma função de suporte existencial psicoespiritual, quer seja para os
pacientes e/ou para os familiares, promovendo qualidade do viver no fim
da existência (Petersen, 2012b). As necessidades espirituais tornam-se
138
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
mais presentes, e facilitam a comunicação com os outros acerca da
aproximação dos momentos finais, dos inevitáveis rompimentos de laços
afetivos, das despedidas e ritos de passagem para outra dimensão. Como
expressão simbólica, a música produzida no espaço sagrado da produção
compartilhada evoca outros sentidos pessoais e existenciais, um senso
estético de beleza e de conexão com o Divino (Salmon, 2001; Kenny,
2006). A busca do sentido da vida, do sofrimento e da própria morte
associa-se ao sistema de crenças religiosas, acolhendo a angústia
existencial. Para muitas pessoas, no contexto dos atendimentos, a música
de conteúdo religioso adquire a função de fortalecimento; conforme as
tradições de cada religião, pode ser considerada como agente curativo do
sofrimento41, pois traz alívio e conforto. A fé é um componente
importante na constituição de um macro-conceito de saúde.
Durante minha atuação profissional no ambulatório de
Cuidados Paliativos, diversas foram as oportunidades de estar junto aos
pacientes nas consultas médicas, em dias que antecederam sua morte. A
cena clínica que se segue é (foi) uma delas. Na observação da equipe,
momentos como o relatado transcendiam ao tempo e à situação, eram
repletos de energia e mostravam toda a potência da musicoterapia em
preparar a todos – pacientes, familiares e profissionais do cuidado – para a
ruptura dos vínculos de afeto, de cuidados e de trabalho.
A beleza do último encontro de JD42 com a equipe do NCP
ilustra o acolhimento do sofrimento, na voz do próprio paciente e na
construção conjunta comigo - a musicoterapeuta - no campo da
Improvisação Musical. Uma análise da significação do fenômeno de sua
última produção criativa como experiência reveladora será conduzida para
a necessária compreensão do ser humano JD em sua relação de entrega ao
processo de exploração dos sentidos do viver e morrer como também da
41
Cada religião tem seu sistema de crenças e valores religiosos. As religiões de
fundamentação judaico-cristã depositam no mistério da Ressurreição, na vida
pós-morte no Reino Divino, a resposta para o fim do sofrimento a que as pessoas
são submetidas na vida. Vale ressaltar que todas as vertentes religiosas são
respeitadas e valorizadas nos atendimentos de Musicoterapia, sem distinção.
42
Quando possível, os atendimentos são gravados em vídeo, com autorização de
paciente e familiar, e representam valiosíssimo material de estudo para
aprimoramento da minha prática clínica e reflexões teóricas. O relato clínico aqui
apresentado teve sua permissão concedida por Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido.
139
Ritos de passagem em cuidados paliativos
simbologia expressa nas mensagens sobre a autopercepção da aproximação
da morte, no que se configurou um ritual de despedida da vida, ou Rito de
Passagem, repetindo o processo de Morte-e-Renascimento estudado por
Kenny (2006).
Último Atendimento
43
Os serviços de cuidados paliativos utilizam escalas de avaliação de sintomas
(ESAS) - mensurados pela própria pessoa, e da vida funcional (KPS) - calculado
pelos profissionais a cada consulta, para acompanhar a evolução do quadro e
melhor planejar as estratégrias de cuidados (Maciel, 2012).
140
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
dor, agitação, ansiedade, aumento do tumor cervical, dificuldade para
alimentar-se, crises convulsivas e sonolência. O paciente apresenta bom
controle de dispneia. Além disso, nega cansaço e tristeza. Há relato, no
entanto, de alteração de comportamento e agressividade no período de
internação no hospital de onde veio. Chegou acompanhado da esposa,
que vive um luto antecipatório (Fonseca, 2004 como citado em Petersen
& Araujo, 2012) e dificuldade de aceitação do estado crítico do paciente.
Cabe destacar que a abordagem de todo profissional paliativista é
centrada na pessoa, o melhor narrador do que lhe causou estar-no-aqui-e-
agora. É a ele que nos dirigimos sempre, em primeiro lugar, perguntando-
lhe ‘de que forma podemos lhe ajudar hoje?’. O relato no prontuário é um
guia para avaliarmos a correlação entre o escrito e o que vemos/ouvimos.
Cena Clínica:
Chego ao consultório em que JD aguarda atendimento. Ele está em silêncio,
na maca, olhos fechados.
Estão presentes o enfermeiro da ambulância e dois residentes de medicina.
A esposa conversa com a Psicóloga em outro consultório.
Aproximo-me de JD, portando o violão e alguns instrumentos de percussão.
Pergunto-lhe se gostaria de cantar. Ele responde que sim, e vira-se na maca
para alcançar os instrumentos que lhe apresento, escolhe um e distribui
outros a cada um dos que estão no setting.
Embora nos encontros anteriores eu tenha utilizado a recriação musical de
seus Hinos Evangélicos preferidos, opto agora pela Improvisação Musical com
propósito de avaliar o curso do pensamento, o nível de percepção do momento
vivido (tensão) e as possibilidades de resolução interna frente ao
agravamento do quadro clínico.
Minhas experiências anteriores com pacientes em situação
semelhante mostraram-me que a Improvisação Musical pode criar algo
novo no contexto de perdas e dissoluções, ao estabelecermos um diálogo
musical de forma livre. Lee (2003) e Aldridge & Aldridge (1999) afirmam
que essa experiência musical pode despertar-lhes uma nova potência
criadora, criativa e de vida. A participação do musicoterapeuta nesse
momento da vida “revive (simbolicamente) a velha noção do terapeuta
que assiste às necessidades do viajante (...) e o acompanha em parte da
jornada” (Aldridge & Aldridge, 1999, p.92).
141
Ritos de passagem em cuidados paliativos
Com a Improvisação Musical, eu objetivo estabelecer um contato
mais profundo e encorajar uma escuta ativa e consciente aos
conteúdos que JD quisesse ou pudesse expressar. Ofereço-lhe um
‘holding musical’ (Loewy & Stewart, 2005, p.144), para trazer
conforto. Escolho uma tonalidade maior (A), compasso ternário,
andamento moderado. Toco suavemente, estruturando o
acompanhamento numa sequência de baixo-acorde-acorde,
harmonia bem simples I-IV-V, e começo cantando as notas da
tríade de (A). Busco desenvolver um diálogo, ou, como define
Kenny (2006), um jogo musical. Inicio com uma frase
incompleta, deixando em suspenso (grande fermata, em tensão
harmônica – V7) a terminação – “Senhor JD quer......” – e faço
uma intervenção verbal: “O que o senhor JD quer?”. Para minha
surpresa, imediatamente ele responde: “VOAR”.
Este símbolo aparecia com frequência nas improvisações que eu
realizava com os pacientes na proximidade da morte – o desejo de VOAR.
Henderson (1964) descreve a relação de símbolos míticos com o desejo de
libertação, de transcendência. Um deles tem a forma de Pássaro, que
“conseguiu separar-se do corpo para voar pelo universo” (Campbell, 1958
como citado em Henderson, 1964). Sabedora dessa relação, resolvo
insistir no tema, tentando aprofundar o entendimento daquilo que JD
vive no instante da improvisação, confirmando ou não a relação mítica
descrita acima.
Vou desdobrando o diálogo. JD mantém-se de olhos fechados. A
cada resposta sua, um espelhamento meu, para confirmar suas
ideias, seguindo-se nova pergunta: “para onde ele quer VOAR?”.
Mantenho o contorno melódico com mínima variação. “Pra um
lugarzinho todinho meu”, responde ele em notas mais agudas.
“Como será esse lugar?”, pergunto. “É um lugarzinho todinho
meu....”, responde, ainda de olhos fechados. JD toca com mais
intensidade o chocalho e canta notas mais agudas. Abre os olhos
logo em seguida vivamente, enquanto canta “... que eu não posso
contar”. Olha-me e sorri. Entendo como uma provocação, sorrio
e entro no jogo. Eu continuo: “não pode contar? Por que? Não
quer nos levar?”. Voltando sua cabeça para o alto, JD responde:
“Ah... é que é um segredo... tão lindo... maravilhoso”. São
pequenos trechos, com pausas maiores, melodia com intervalos
curtos.
142
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Destaca-se aqui outro símbolo associado à morte e à libertação do
sofrimento – “a jornada solitária”. É preciso abandonar-se para “aprender
a dar sozinho os primeiros passos decisivos para uma nova experiência - o
além-morte” (Henderson, 1964, p.152). A Jornada Solitária conduz a um
lugar Sagrado, onde “em estado visionário ou de transe [o viajante] vai
encontrar seu espírito protetor na forma de um animal – uma ave – e
viver seus últimos dias em harmonia com uma lei humana eterna”
(Henderson, 1964, p.154). Confirma-se para mim a relação entre os dois
símbolos.
Seguem-se três vocalizações muito longas “Ah.......Ah.....Ah....”, em
registro mais grave, notas repetidas.
Entendo suas vocalizações como a necessidade de restaurar o
equilíbrio do corpo, para um “encontro físico, emocional e espiritual no
aqui-e-agora”. Austin (2008) descreve desta forma a técnica “Toning” –
uma das possibilidades clínicas de utilização de experiências sonoras, a
vocalização consciente de sons vocálicos sustentados (Austin, p.29, 31).
JD estaria buscando um acalmamento, um retorno talvez à dimensão
presente, após realizar seu voo desejado.
Espelho suas vocalizações, enquanto ele vai intensificando seu
acompanhamento, com movimentos mais enfáticos, olhos
abertos, ainda fitando o alto. Entendo que estamos chegando ao
clímax, e finalizo com “ah, ele quer voar”. E imediatamente JD
conduz o fechamento, com gestos largos, como o maestro da
‘nossa obra’.
Duração: 1min45seg
143
Ritos de passagem em cuidados paliativos
estado!’”. Volta à postura inicial e mantém os olhos fechados.
Pergunto qual o sentimento, ao querer ir para esse lugar sozinho.
“Uma Alegria”. Retorna ao silêncio, olhando fixamente para o
alto. Busco aprofundar mais: “está chegando a hora de ir para esse
lugar?”. Responde-me, enfático: “Está!!!”. JD sorri, e eu lhe
asseguro que deve ser um lugar lindo mesmo, pois é possível ver
nos seus olhos. JD volta a me olhar e retorna à sua contemplação
para o alto. Completo: “neste lugar não tem dor, nem luto”. JD
responde: “Não há sofrimento”, e volta a fechar os olhos.
Permanecemos em silêncio.
Inicia-se uma 2ª Improvisação, oferecida por mim. JD mantém-se
apenas receptivo. Repousa os braços, deixa de tocar o chocalho,
embora o mantenha em suas mãos. Com a minha voz, vou
delineando um contorno musical, trazendo para a canção todo o
conteúdo expresso, aproveitando que JD está recolhido,
meditativo, talvez em contato com sua realidade. Sigo o mesmo
campo tonal da improvisação anterior, mas opto por um
acompanhamento arpejado, dedilhando as cordas do violão com
intensidade bastante suave, em 12/8, como um acalanto. A
canção vai ratificando todas as ideias apresentadas por JD. ‘É um
lugar onde não há dor, medo, e para lá ele quer ir’. Minha
melodia quase não se desloca, permanecendo em notas graves. As
frases são repetidas para intensificar ou fazer evocar os
pensamentos expressos anteriormente. Observo alguma alteração
de respiração e agitação. Mudo o rumo da improvisação,
produzindo vocalizações (ah, ah), como sons de lamento, em
registro mais agudo, em intervalos ascendentes e prolongamento
dos finais de frases musicais. JD alterna momentos de alerta e de
recolhimento.
Quando finalizo, JD se vira em minha direção, sorri e agradece,
enviando um beijo.
Duração: 2min50seg
Incorporar as características do acalanto na improvisação
mostrou-se uma positiva condução da forma de lidar com as perdas da
vida, com sentido de “ressonância restaurativa” (O’Callaghan, 2008), que
se traduz na satisfação e gratidão alcançadas pelo investimento do
paciente na produção musical num contexto criativo. Essa segunda
improvisação adquire forma bem distinta da primeira e propicia uma
144
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
abordagem mais espiritual – um possível encontro com o Sagrado. A
melodia tenta representar simbolicamente o movimento de passagem de
um plano para outro, da dimensão terrena para a transcendente. Ao final,
a busca por um contato mais presente comigo representou o ‘retorno’ de
JD ao campo do jogo da improvisação (Kenny, 2006), demonstrando um
ganho de potência de vida.
JD recupera energia, posiciona-se melhor na maca e pede para
cantar outra música, ‘mais animada, para dançar’. Está sorridente.
Com propósito de oferecer-lhe outros caminhos musicais, ainda
com a Improvisação, decido utilizar o gênero do Coco
Nordestino, compasso binário, andamento mais vivo. A melodia
ganha contorno mais amplo, menos pausas, ritmo com síncopes,
harmonia um pouco mais elaborada. JD retoma o chocalho e me
acompanha, movendo braços e cabeça. Marca o pulso de forma
estruturada. Dada a mudança em sua performance, eu retorno à
temática inicial, no intuito de observar se haverá mudança
também em suas intenções de ‘Voar’. Inicio nosso diálogo
musical a partir do desejo confesso no início deste 3º momento –
“eu quero dançar”. Inicialmente JD me segue, mas, apesar da
mudança do suporte musical (rítmico, harmônico), logo retorna
ao tema eleito – “voar pra bem longe daqui, para um lugar que é
bem longe daqui”. Repetimos várias vezes, especialmente “voar”,
em registro mais agudo, e intervalos ascendentes.
O som atrai outras pessoas para o consultório. A médica se
aproxima de JD e ele lhe entrega um instrumento, num claro convite a
que ela participasse. Outros profissionais chegam. JD quer ver todos,
busca-os com dificuldade, pois se encontra na maca. Sua fisionomia, no
entanto, não demonstra desconforto. Sorri. Toca com energia o chocalho
que, a essa altura, passou para o membro superior parético. Mas não altera
sua performance.
Inicio uma paródia para traduzir o momento que todos nós
estamos compartilhando, sem alterar o acompanhamento do
Coco: “olha, que isso aqui está muito bom, olha que isso aqui está
145
Ritos de passagem em cuidados paliativos
bom demais, olha que isso aqui está muito bom44, mas JD quer...”,
e JD completa imediatamente com “voar”.
Volto à improvisação e faço mais uma tentativa de desvio de
rumo, testando JD. “Agora eu quero...” , e ele inova: “cantar”.
Mas quando tento expandir a questão para novas possibilidades -
“eu quero cantar e também eu quero agora...” – JD ratifica seu
desejo manifesto durante todo o atendimento: “voar”
Chegam ainda mais dois profissionais e a esposa. Faço uma
pequena pausa para identificá-los, e comento que está parecendo
uma festa. Observo que o atendimento adquire ares de
celebração. Menciono que é “Dia de São João”, e introduzo a
canção junina “Pedro, Antônio e João”45. JD canta a música
inteira e, ao final, troca o objeto a que se entrega um dos
personagens (fogueira, ao contrário de bebedeira).
A sessão se encerra com risos, e JD agora conversa com a médica.
Duração: 5 min
Foi um momento de transcendência, de Renascimento, do ponto
de vista energético. Houve mais presença, mais participação interativa
inclusive corporal. Mas a temática, apesar de alguns pontos de fuga,
manteve a intenção inicial: voar para outro lugar, ‘bem longe daqui’.
Destaco, ainda, o último símbolo que aparece na improvisação: a
Fogueira, no final da música46. Na situação pessoal de JD, podemos pensar
ter sido um ato falho não mencionar a ‘bebedeira’ (última palavra da
canção), como uma forma de evitar a associação a um elemento que lhe foi
prejudicial no passado47. Ou talvez a escolha por ‘fogueira’ poderia
expressar um desejo do inconsciente em substituir o ‘proibido’ (ou
mundano) pelo símbolo mais sagrado?
Explorando o simbolismo da fogueira, encontro em Saporetti e
Silva (2012) referências que apontam seu significado dual: é um símbolo
44
Refrão da canção junina “Isso Aqui Tá Bom Demais”, composição de
Dominguinhos (1985).
45
“Pedro, Antônio e João”. Compositores: Benedito Lacerda e Osvaldo Santiago.
1943. Muito popular, cantada e dançada nos festejos juninos.
46
As duas últimas frases da canção são: “João consolava Antônio, que caiu na
bebedeira.”. JD troca ‘bebedeira’ por “fogueira”.
47
JD declarou-se ex-elitista de cerveja e cachaça, na primeira consulta, no
momento da coleta de dados da sua história pessoal.
146
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
ao mesmo tempo transformador (elemento Divino, libertador,
relacionado ao renascimento) e destruidor (fonte de purificação para uma
nova vida, que queima os pecados e os fantasmas que assombram a vida).
Há outra tradução, ainda, do ponto de vista social, histórico, da reunião
dos povos em torno da fogueira, para aquecer e celebrar momentos
importantes. Esse era um momento importante pra JD, e ele estava
cercado por todos: familiares e profissionais que lhe ofereciam cuidado.
Ao final da sessão da musicoterapia, a médica pergunta a JD: “em
que podemos lhe ajudar?” E JD responde: “Nada. Estou alegre. Vou visitar
o Senhor”. Aqui se entrelaçam os temas de completude no fim da vida, da
alegria da celebração, e das crenças religiosas: ao morrer, o cristão vai para
a casa do Senhor – o Reino dos Céus.
JD morreu três dias depois, no hospital de seu município, ao lado
da esposa.
Cumpriu-se o seu Rito de Passagem.
A construção do Rito de Passagem de JD assemelha-se à
composição de uma Sonata em três movimentos. No primeiro
movimento, em andamento moderato, as ideias são apresentadas e
discutidas, em perguntas e respontas, algumas variações ou
desenvolvimentos. Participação equilibrada de ambos os improvisadores –
JD e eu. Houve total cumplicidade e envolvimento na fruição das ideias.
Poderíamos traduzi-lo como a expressão dos desejos, de alçar voo e se
libertar.
No segundo movimento, mais lento, quase um solo, o andamento
está mais lento, a melodia mais lírica, o acompanhamento mais etéreo;
inspiram a um mergulho na transcendência, na passagem de uma
ambiência anterior para a de agora. O campo tonal não se altera, a métrica
sim. Há um maior número de vocalizações. Pode ser sugestivo de uma
constatação da realidade – da morte, da dor, do sofrimento, do medo –
que exigem recolhimento aos profundos abismos da alma.
O terceiro movimento é mais vibrante, traz novas possibilidades
de viajar pela canção improvisada. Tem um tema inicial, apresenta a seguir
um Divertimento, volta ao tema com variações, e culmina com uma Coda
Re-criativa. A produção musical agrega outros elementos rítmicos,
melódicos, harmônicos. Traz vida a todos. E convoca à comunhão: muitos
são atraídos para estarem junto com JD. É uma Celebração, um marco de
Renascimento – para uma Nova Vida.
147
Ritos de passagem em cuidados paliativos
Kenny (2006) considera que o ‘Mito da Morte-Renascimento’
perpassa as experiências musicais e musicoterapêuticas pelas conexões com
a vida, com os processos de transformação, o interjogo de tensão e
resolução que constroem a produção musical (e a vida também). Para a
autora “cada sessão de musicoterapia é uma jornada, um ritual musical e
mitológico que emprega as artes para descrever os padrões, processos e
símbolos [com objetivo curativo] e efeitos em nível espiritual” (Kenny,
2006, p.40, 53). Nós, musicoterapeutas, somos os guias de nossos
pacientes, viajantes nessa jarnada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
148
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Ross, 2002, p.118). O único sentimento que nenhuma pessoa perde, ao
longo de todo o processo de adoecer e morrer, é a esperança. Esperança de
um amanhã melhor. A cada dia. E para o além dos dias.
Barros (2014), citando Callanam e Kelley (1994), afirma que é
tarefa de todo profissional paliativista manter uma escuta ativa a essas
mensagens, para ter a oportunidade de “se preparar para a perda [daquela
pessoa], para lidar com nossos medos de morrer, para usar bem o tempo
que ainda nos resta ou para participar mais significativamente neste
evento da vida” (Barros, p.22).
A doença e o sofrimento precisam ser reconhecidos sem receio
para que possam ser expressos e ressignificados no fazer-musical criativo,
como seus últimos atos. Essa é a importância e a necessidade de uma
equipe multidisciplinar em seu propósito de oferecer Cuidados Paliativos
de forma integral. E a Musicoterapia, como integrante desse plano de
cuidados, pode contribuir na exploração de expressões de si, de
sentimentos e emoções de forma inovadora, tornando-se efetiva estratégia
de coping (Liberato & Carvalho, 2008) no enfrentamento da aproximação
da morte.
Nos Ritos de Transição da vida para a morte, a experiência
musical, compartilhada entre paciente, musicoterapeuta e familiares, pode
intermediar as despedidas, garantindo a ruptura consentida dos vínculos,
reafirmando as contruções afetivas ao longo da vida (Kellehear & Lewin,
1988 como citado em Lisboa & Crepaldi, 2003), e, ao mesmo tempo,
favorecendo o verdadeiro encerramento do último capítulo da vida da
pessoa amada (Petersen & Araujo, 2012).
Um questionamento meu atravessou toda a escrita desse
trabalho:
Teria sido a Improvisação Musical, na proposta que assumi com
JD, a mais apropriada para auxiliá-lo na resolução de suas necessidades
biopsicossociais, incluindo as questões espirituais e existenciais?
Como proposta inovadora para JD, eu considero que a escolha e
o formato da técnica apresentaram resultado positivo. Houve empatia,
diálogo permanente musical e pessoal, ressonância com o estado do
paciente em cada momento dististo da improvisação, sincronização de
pensamentos e ações, incorporação de ideias e conteúdos trazidos pelo
paciente, respeito ao seu tempo, dificuldades e possibilidades, uma
149
Ritos de passagem em cuidados paliativos
resposta reflexiva ao humor, atitudes e sentimentos ao longo da sessão
(Bruscia, 2016, p.87).
A apresentação da situação clínica aqui protagonizada pelo Sr.JD
ofereceu muitas reflexões e aprofundamentos acerca da riqueza que
representou, para mim, cada uma dessas oportunidades de Fim de Vida,
vivenciadas durante os anos de minha atuação clínica no ambulatório de
Cuidados Paliativos, como companheira e guia musical da jornada final
daqueles pacientes - o momento mais importante de fechamento de suas
vidas: sua morte.
Causou-me grande emoção rever os vídeos e retornar aos escritos
– notas e relatórios, depois do tempo transcorrido, podendo olhar com
distanciamento o campo desse rico fazer-musical conjunto. JD já era
sabedor da aproximação da sua morte, sem que precisássemos perguntar
diretamente. Imbuído do desejo de atravessar para outra dimensão,
empodera-se no instante final, e lidera, musicalmente, o processo de
apaziguamento da angústia da partida, da separação - de sua esposa,
tomada por sofrimento incontrolável, da equipe e de si mesmo. Agenciou
com sua improvisação, ouvida ao longe, a compreensão do necessário
desapego, permitindo que a psicóloga clarificasse com sua esposa o
momento vivido por ele, quando expressou com tranquilidade estar
preparado para se despedir. Carecia, no entanto, da aceitação dela e de sua
“permissão” para partir. Assume o caráter de uma grande celebração à
Vida.
A improvisação musical no atendimento final a JD, desse modo,
provou ter sido a escolha mais acertada para a sessão final, tal como já
indicado por Aldridge & Aldrige (1999): “para transcender o momento
do sofrimento, uma nova consciência é criada e realizada concretamente
na performance musical” (Aldridge & Aldridge, p.85).
Retornando à improvisação como obra completa, é gratificante
notar a confiança de JD ao aceitar meu convite a se reinventar, apesar dos
agravos do seu quadro clínico, renovando suas energias, e monstrando-se
potente durante a toda produção musical. Acolhido e apoiado
musicalmente pela minha presença como musicoterapeuta, ritualizou
simbolicamente através da música a sua passagem para outro plano, dias
depois, dando sentido à vida, ao sofrimento, à morte. Kenny (2006)
lembra que os rituais - de iniciação, de transformação ou de criação,
sempre acompanharam a humanidade, assim como a ideia do mito
heróico. Todos estão relacionados à díade morte-renascimento. “Na
150
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
morte há vida; sem vida, não há morte” (Kenny, p.26). A cada etapa da
existência humana, surgem situações difíceis a serem enfrentadas e, para
seguir, é preciso deixar ir (ou morrer) parte de si (de nós) ou do Outro,
para que haja transformação e renascimento em novas circunstâncias.
Celebramos os nascimentos, mas não a morte. Como afirma Kelleman
(1974 como citado em Kenny, 2006, p.26), “descobrir nossa morte é um
ponto de partida. (...) Morrer, nessa perspectiva, é um lugar de transição”.
A transcendência, aspecto prioritário do processo de fim de vida,
manifestou-se no decorrer do atendimento a JD através dos símbolos.
Henderson (1964) afirma que, sobretudo em fases críticas da vida e por
representarem a luta do homem para alcançar seus objetivos, eles são
evocados por meio da expressão ativa de conteúdos inconscientes que são
trazidos ao nível da consciência. O autor acrescenta que, desde as mais
remotas tradições dos povos antigos, cada cultura possui símbolos que
regem os períodos de transição da vida humana, cuja finalidade é auxiliar o
homem em seu processo de libertação – ou de transcender uma forma de
vida restritiva (a doença? o sofrimento? a finitude?) para alcançar um
estágio superior de evolução.
Diante de tais considerações, após toda a análise do material
coletado e dos constructos teóricos em que sustentei a reflexão da minha
prática como profissional dos Cuidados em Fim de Vida, na possibilidade
de estar-com-JD-naquele-lugar-naquele-momento, conclui que a melhor
definição para o último atendimento de JD é compreendê-lo como Rito
de Passagem da Vida para a Morte, facilitado pela música improvisada.
“A busca de sentido, por algo em que confiar, pode ser expressa
de muitas formas, diretas ou indiretas, em metáfora ou silêncio,
em gesto ou símbolo ou, talvez acima de tudo, na arte e no
inesperado potencial para a criatividade no final de vida”
(Saunders, 1996, p.1600)
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Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
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Capítulo 8
INTRODUÇÃO
158
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
das notas é representada por gotas com variados tamanhos. Na fase um
(partitura de arco-íris), a partitura está representada em um diagrama
vertical e as notas musicais são representadas por cores. Cada cor
representa a posição da nota em relação à posição na escala (tônica,
supertônica, mediante etc.). Na fase dois (partituras cartesianas coloridas),
utiliza-se o diagrama no sentido vertical. Na fase três (partituras modelas
por cores), as gotas são substituídas pelas figuras musicais (semibreve,
mínima etc.), mantendo as cores. Na fase quatro (partituras tradicionais),
o diagrama se refere à partitura convencional ocidental.
O trabalho de Wilmer é direcionado à pedagogia musical, ou seja,
ao ensino de música e ao entendimento da leitura musical diante de uma
partitura.A ideia deste estudo foi adequar a partitura tradicional e, assim,
oferecer uma fácil ligação do estudante com a simbologia musical já
estabelecida, que para Wilmer é abstrata.
Com base nas teorias de aprendizagem (níveis de abstração) de
Jean Piaget (1896-1980), o trabalho de Wilmer procurou colocar a
partitura musical, já existente, dentro da representação gráfica.
Em um artigo em coautoria com outros profissionais, por meio
de figuras, Wilmer (2009, p. 7) explica que:
Pautando-se na busca por uma “autoevidência visual” como
filosofia de criação, o sistema assumiu estas características: (1) a
pauta é um eixo Cartesiano; (2) escolha de um símbolo visual
para a duração dos tons, em forma de gota, com a duração sendo
o comprimento dela; (3) adoção da pauta vertical, consistente com
o sentido esquerda-direita (e não baixo-alto) adotado no piano,
para variação de altura; (4) uma representação gráfica próxima do
nível da experiência concreta (de gotas caindo), facilitando a
abstração; (5) altura das notas é informada, não apenas pela
posição da nota na pauta (como é tradicional), mas também por
um modelo cromático para tons.
159
Música e cores: uma proposta de interpretação musical em musicoterapia
160
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Maior, a nota mais grave sendo o roxo, sobre fundo azul, indica o tom do
baixo na terça do acorde (Mi em Dó).
Como resultado disso, a seguir serão apresentadas as quatro fases
das partituras coloridas. A música utilizada como exemplo é a
“Greensleeves”, do século XVI.
161
Música e cores: uma proposta de interpretação musical em musicoterapia
162
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
163
Música e cores: uma proposta de interpretação musical em musicoterapia
48
De acordo com Celso Wilmer, a fórmula de compasso, nesse sistema, consiste
em um número (2, 3, 4...) seguido de uma gota de determinado comprimento. O
164
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Sistemas de codificação
166
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
167
Música e cores: uma proposta de interpretação musical em musicoterapia
Quadro 1 – Escala funcional e combinação das cores
GRAU DISTÂNCIA COR / RGB*
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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171
Capítulo 9
MUSICOTERAPIA E DOENÇA
TROFOBLÁSTICA GESTACIONAL:
A CONSTRUÇÃO DO COLETIVO MT-
DTG COMO CORPO TERAPÊUTICO
172
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Social e Comunitária (Arndt & Maheirie, 2019; Arndt, Cunha & Volpi,
2016; Arndt &, Maheirie, 2020; Cunha, 2016; Andrade & Cunha, 2015),
o que denota o caráter híbrido da intervenção. Porém, para um primeiro
estudo sobre esse trabalho, neste capítulo a interface predominante
abordada será a biomédica.
A Doença Trofoblástica Gestacional (DTG) é anomalia
da gestação que exibe formas clínicas benignas e malignas (Souza, 2018).
Trata-se de uma gestação atípica que resulta em perda gestacional e inclui
um grupo heterogêneo de tumores com proliferação celular atípica,
originada a partir do sincício e citotrofoblasto humano (Ferraz, et al.,
2018, p. 83). Demais das complicações clínicas associadas a essa doença,
há que salientar o risco imanente de progressão para a neoplasia
trofoblástica gestacional, o “câncer na placenta” (Braga, et al., 2020) que,
sem tratamento apropriado, poderá determinar morte materna.
A DTG envolve, portanto, o luto pela perda precoce de um filho
associado à necessidade de enfrentamento de uma doença rara e
ameaçadora à continuidade da vida. Para além dos riscos clínicos dessa
doença, há implicações psicológicas, sociais e espirituais inequívocas, não
somente para a mulher que recebe esse diagnóstico, mas para todos que
convivem com a doença. Por isso, familiares, membros da rede de apoio
social e profissionais de saúde devem ser incluídos nas estratégias de
atenção terapêuticas; compreendidos como uma “unidade de cuidados”
(Franco, 2008, p. 353).
A complexidade desta clínica justifica a necessidade de um
acolhimento integral, mediante um serviço multiprofissional que torna
oportuno a presença de musicoterapeutas. Esta demanda específica foi
identificada pelo Setor de Musicoterapia da Maternidade-Escola da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (ME/UFRJ), onde funciona o
Centro de Referência em DTG do estado do Rio de Janeiro, desde 2013 -
e motivou, em 2017, a inserção da musicoterapia nessa linha de cuidado.
A ME/UFRJ é a única maternidade pública brasileira a dispor de
um serviço de musicoterapia em sua equipe multiprofissional. Desde a sua
implantação, em 1988, o Setor de Musicoterapia tem acompanhado as
mudanças na assistência e no perfil desta instituição de referência em
ginecologia e obstetrícia no Brasil. O pioneirismo desta atuação na
atenção em saúde perinatal no Brasil levou ao desenvolvimento de
pesquisa e publicações de referência na área, especialmente quanto ao
aleitamento materno (Vianna & Barbosa, 2011; Vianna, Carvalhaes, &
173
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
Barbosa, 2013) e ao acompanhamento em Unidade de Terapia Intensiva
Neonatal (UTIN) (Vianna, Carvalhaes, & Barbosa, 2015; Vianna,
Palazzi, & Barcellos, 2020).
Em 2019 foi criado o Coletivo MT-DTG, um grupo de
assistência, ensino, pesquisa e extensão, relacionado à musicoterapia e
DTG, que reúne seis musicoterapeutas - duas profissionais do quadro
permanente da ME/UFRJ e quatro profissionais voluntários. Os seis são
responsáveis pelos atendimentos de musicoterapia na sala de espera.
Atuam conjuntamente de forma colaborativa e simultânea para assistir
um maior número de pessoas em um ambiente dinâmico com inúmeras
interferências. Assim, buscam acolher com maior eficiência as demandas
deste setting, visto que há mais olhos e olhares, mais ouvidos e escutas,
mais braços e abraços.
A reunião destes profissionais voluntários se deu
espontaneamente a partir da experiência de estágio que tiveram na
ME/UFRJ, ainda no período de formação profissional. Houve uma
identificação imediata com as delicadezas e os desafios impostos por esta
clínica pouco conhecida, que despertou em cada um o desejo de dar
continuidade ao trabalho, voluntariamente, após o fim do estágio. A
incorporação paulatina de cada profissional aos atendimentos permitiu
observar mudanças benéficas nas estratégias de atuação empregadas e nos
resultados obtidos a partir delas. Isto indicou a pertinência deste novo
modelo de atendimento no contexto da DTG e a necessidade de publicar
estudos e pesquisas nesta área. A criação do coletivo deu origem a uma
nova forma de atuação em musicoterapia que visa à promoção de uma
assistência ampliada, com possibilidade de ser replicada em outros
Centros de Referência e outras áreas de atuação.
Para uma reflexão teórica sobre as possibilidades da atuação
específica em musicoterapia do coletivo MT-DTG como corpo
terapêutico, objetivo deste capítulo, foi realizado um levantamento em
diferentes bancos de dados49 sem restrição de idioma. Contudo, não foram
49
Bancos de dados consultados: Ebsco-RLM Abstracts of Music therapy; Ebsco-
RIPM-Retrospective Index to Music Periodicals; Scielo Citation Index (Web of
Science); Science Direct; Science; Scopus; Pubmed; Springer Link; Cochrane
Library; Web of Science; Wiley Library; Google Acadêmico; Scielo; Lilacs;
Harvard Health Publishing. Descritores: gestational trophoblastic disease AND
music therapy: gestational trophoblastic disease AND music AND therapy;
174
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
encontradas publicações sobre a prática musicoterapêutica nesta área em
nenhum país. Por isso, para este capítulo, foram consultadas referências de
áreas afins, como o luto da perda gestacional e a psico-oncologia, que
auxiliam nas reflexões construídas aqui sobre o encontro destas áreas em
uma mesma clínica.
A ausência de estudos prévios sobre DTG relacionados à
musicoterapia e a demanda por publicações que corroborem estratégias de
cuidado integradas ao tratamento curativo revelam a necessidade de trazer
a inserção da musicoterapia nesta clínica inédita e sensível para o debate
acadêmico. Por isso, o contexto deste enquadre clínico e a atuação do
Coletivo MT-DTG são aqui descritos como uma proposta de inovação
em musicoterapia, ainda em construção.
Neste capítulo, as especificidades clínicas da DTG serão
destacadas compreendendo-se suas implicações subjetivas na vida das
pacientes, suas famílias e rede de apoio. A seguir, será apresentada a
gradativa inserção do serviço de musicoterapia da ME/UFRJ nessa linha
de cuidado. Alguns conceitos musicoterapêuticos que fundamentaram
esta nova prática clínica serão aqui apresentados, bem como um exemplo
de uma análise musicoterapêutica50 (Barcellos, 2012) para a compreensão
da dinâmica dos atendimentos. Esse capítulo tem por objetivo construir
uma reflexão sobre a atuação do coletivo MT-DTG como corpo
terapêutico.
ESPECIFICIDADES DA DOENÇA
TROFOBLÁSTICA GESTACIONAL
gestational trophoblastic disease AND music; hydatiform mole AND music therapy;
hydatiform mole AND music AND therapy; hydatiform mole AND music.
50
Análise ou leitura musicoterapêutica foi um conceito cunhado por Barcellos
em 1982 e apresentado no International Symposium on Music Therapy. New
York University. Music Emergences Fund. New York, 1982
175
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
anormal do trofoblasto, com hiperplasia das vilosidades coriais, que
caracterizam as vesículas hidatiformes. Todos os espectros da DTG são
caracterizados pela presença sérica do mesmo marcador biológico da
gravidez, o fragmento beta da gonadotrofina coriônica humana (beta-
hCG) (Braga, Sun, Maestá, & Uberti, 2019, p. 5).
Em geral, a gestação molar se desenvolve com aparente
normalidade no primeiro trimestre até o aparecimento dos sintomas ou a
identificação da doença, através de ultrassonografia. Por meio da análise
de características genéticas e histopatológicas, este espectro benigno da
DTG é classificado como Mola Hidatiforme Completa, sem formação de
embrião, ou Mola Hidatiforme Parcial, quando há formação de embrião,
incompatível com a vida (Braga, Sun, Maestá, & Uberti, 2019). Em cerca
de 5-20% dos quadros benignos pode haver progressão para NTG, cujas
formas clínicas são Mola Invasora, Coriocarcinoma, Tumor Trofoblástico
do Sítio Placentário e Tumor Trofoblástico Epitelioide. (Braga, Sun,
Maestá, & Uberti, 2019).
Segundo a Sociedade Brasileira de Doença Trofoblástica
Gestacional (SBDTG, 2014), a DTG tem altos índices de cura, tanto nos
quadros benignos quanto malignos. Para isso, nas primeiras 24 horas após
o diagnóstico de MOLA, é necessária a realização urgente do
esvaziamento uterino através da técnica de vácuo-aspiração para a máxima
redução do risco de near miss51 obstétrico (Braga, et al., 2020). Dessa
forma, evita-se a multiplicação desordenada das células trofoblásticas que
origina a sintomatologia clínica, que pode agravar a situação materna,
como a pré-eclâmpsia grave precoce, a hiperemese gravídica, a síndrome
de angústia respiratória aguda grave e o hipertireoidismo.
No entanto, por ser uma doença pouco conhecida, é frequente o
relato de mulheres que passam por diferentes profissionais e unidades de
saúde até serem encaminhadas corretamente a um Centro de Referência
de DTG52, presente em todos os Estados do Brasil. Por isso, embora seja
51
“O near miss materno (NMM) é atualmente definido pela Organização
Mundial de Saúde (OMS) como a mulher que quase morreu, mas sobreviveu a
complicações graves durante a gestação, parto ou até 42 dias após o término da
gestação” (Santana et al., 2018, p.189).
52
Centros de Referência são instituições especializadas no atendimento e
pesquisa sobre DTG. No Brasil, atualmente, há 47 Centros, com pelo menos um
em cada estado da Federação (SBDTG, 2014; Braga et al., 2019).
176
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
uma doença curável, a demora no recebimento do diagnóstico correto e
tratamento adequado aumenta os riscos de agravos.
Há, portanto, a necessidade de uma internação hospitalar breve
para a realização do esvaziamento uterino. Em seguida, é feito um
acompanhamento ambulatorial semanal para avaliação clínica e
laboratorial da dosagem quantitativa do beta-hCG. Este retorno é
necessário até que sejam alcançados índices normais por três dosagens
semanais consecutivas (Braga, Sun, Maestá, & Uberti, 2018). O
acompanhamento rigoroso tem por objetivo monitorar uma possível
evolução para uma neoplasia e reavaliar o plano terapêutico estabelecido.
O tratamento pode durar meses, conforme a gravidade e a
evolução ou não para uma neoplasia (Maestá & Braga, 2012). Quando
ocorre o desenvolvimento do câncer, para remissão, há a necessidade de
acompanhamento por um oncologista que realizará o tratamento
quimioterápico apropriado. Nesse caso de pacientes com NTG, a alta do
acompanhamento ambulatorial acontece, no mínimo, um ano após o fim
do tratamento quimioterápico (Ngan, et al., 2015).
No decorrer desse longo processo, diante de respostas positivas ao
tratamento, os sintomas da doença ficam cada vez mais controlados e
menos perceptíveis para as pacientes. A ausência de desconfortos pode
dificultar a compreensão da necessidade de um acompanhamento médico
e laboratorial semanal. Isso intensifica a necessidade de estratégias de
incentivo à adesão ao tratamento, já que a descontinuidade do mesmo leva
ao rápido agravamento de quadros benignos para prognósticos mais
reservados.
Uma vez que o beta-hCG é também o marcador biológico da
gravidez, para melhor identificação precoce de evolução para um quadro
de neoplasia, a contracepção durante o tratamento é imprescindível. Uma
nova gestação é recomendada somente após a alta médica. Quando ocorre
a gravidez pós-molar, é indicado o acompanhamento da gestação e do
período pós-natal pela equipe que foi responsável pelo tratamento da
DTG.
A incidência e os fatores etiológicos que contribuem para o
desenvolvimento dessa doença são difíceis de caracterizar devido a
questões na confiabilidade dos dados acumulados. Há uma variabilidade
177
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
metodológica dos estudos publicados e das diferentes formas de se
expressar a incidência em termos de dados hospitalares ou dados
populacionais. (Lurain, 2010; Brown, Naumann, Seckl, & Schink, 2017).
Entretanto, existem dados suficientes para indicar grandes variações
regionais na incidência de DTG.
Os estudos originados em países desenvolvidos da América do
Norte e da Europa apontam incidência mais baixa variando de um por
500 a 1000 gestações (Seckl, Sebire, & Berkowitz, 2010) e sudeste da Ásia
com relatos de taxas de 2 por 1.000 gestações (Ngan, et al., 2015). No
leste da Ásia é cinco a 15 vezes maior, chegando a um em 120 gestações
(Seckl, Sebire, & Berkowitz, 2010). No Brasil, estima-se que a DTG
acometa uma a cada 200-400 gestações que recebem assistência hospitalar,
com maior risco de ser desenvolvida entre mulheres após os 35 anos e, em
menor proporção, entre mulheres com menos de 20 anos (Braga, Sun,
Maestá, & Uberti, 2019).
Vale ressaltar que existe maior probabilidade de se desenvolver
DTG entre pacientes que já tiveram a doença (Braga, Sun, Maestá, &
Uberti, 2019). Estudos americanos e ingleses têm apontado que mulheres
com precedente de gravidez molar possuem em torno de 1% a 2% de
chance de recidiva em gestações posteriores, enquanto a incidência na
população em geral é de 0,1% (Braga, Sun, Maestá, & Uberti, 2019). Por
essa razão, mesmo após a alta, há a necessidade de uma consulta semestral
ou anual de acompanhamento para identificar possíveis recidivas,
sobretudo para aquelas que desenvolveram a NTG (Maestá & Braga,
2012).
178
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Desde a infância e adolescência é construída nas mulheres a ideia
de que elas precisam ser mães (Oakley, 1979 como citado em Alvares,
2013, p. 29). Por isso, a gestação surge no ideário da cultura patriarcal
predominante como a realização plena do papel social ainda atribuído ao
feminino (Lemos & Cunha, 2015). Logo, a perda gestacional, nesse caso
desencadeada por uma doença, provoca um abalo na percepção da saúde,
da autoestima, da capacidade maternal e da feminilidade com sentimentos
de fracasso, ineficiência e inadequação do papel feminino, além de a morte
do bebê representar também a morte do papel de mãe que seria exercido
(Bartilotti, 2007 como citado em Muza, Sousa, Arrais, & Iaconelli,
2013). Por tudo isso, este evento pode também ser percebido como a
perda de partes de si (Alves, Freitas, Abreu, Coêlho, & Peres, 2017).
O diagnóstico de DTG afeta a percepção da qualidade de vida de
maneira global, com impactos para a vida sexual e reprodutiva da mulher
(Granero, Bonfim, & Santos, 2018). Embora tenha altos índices de cura, o
desenvolvimento de uma DTG traz consigo situações ameaçadoras, como
o desconhecimento da doença, a possibilidade de um tratamento
quimioterápico, de intervenção cirúrgica, o receio da perda do cabelo, o
medo do abandono pelo parceiro, as incertezas sobre a viabilidade de uma
nova gravidez e os riscos de recidiva. São situações que suscitam fantasias
mortíferas e intensificam o medo, independente do prognóstico de cada
caso.
A forma de enfrentar esse momento complexo é individual e se
desenvolve acorde à ordem do vivido (Consonni & Petean, 2013). Por
essa razão, os recursos internos empregados para o enfrentamento da
perda por DTG também sofrerão a influência da ocorrência ou
inexistência da aparência de grávida, do desejo pela gravidez, da formação
do feto, de uma união estável e da possibilidade de realização dos ritos de
despedida.
Socialmente, a perda de um filho é compreendida como um dos
eventos mais dolorosos que podem ser experienciados (Aguiar & Zornig,
2016). Porém, no caso específico da perda gestacional precoce, o que se
perde está na ordem do não vivido, na ordem do imaginário (Vianna,
Costa, & Rangel, 2018). Sendo assim, uma vez que não há um convívio
direto com aquele que morreu durante a gestação, não há um
179
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
reconhecimento social do processo de enlutamento (Parkes, 1998),
identificado por Seftel (2006), como luto invisível53.
No entanto, a dor da perda de um filho que não nasceu é
irreparável. Durante os meses iniciais, em que a gravidez ainda se
desenvolve com aparente normalidade, há um investimento psíquico para
traçar as primeiras formas de relação com o filho e um imediato
desinvestimento imposto pela abrupta descoberta de inviabilidade fetal
(Aguiar & Zornig, 2016). Esta dor intensa das diversas perdas vividas em
uma experiência ameaçadora é uma situação reveladora das fragilidades
humanas. Emergem histórias pessoais, segredos, mágoas e ilusões, que
reativam perdas anteriores e podem levar a uma experiência de fracasso e
ausência de sentido (Py & Oliveira, 2012).
A falta de recordações de uma relação real com o filho gerado
intensifica esta sensação potencialmente traumática de irrealidade e vazio
- sobretudo nos casos de Mola Completa, em que não ocorre a formação
do feto - já que o que foi perdido não é reconhecido como um objeto real,
mas como algo que poderia vir a ser (Aguiar & Zornig, 2016). Estas
representações, projeções e expectativas em relação ao filho que era
esperado levam a uma confusão na identificação do que realmente foi
perdido (Aguiar & Zornig, 2016). Por isso, compreende-se que “o
processo de resolução do luto não se liga ao esquecimento, mas à busca de
um significado para aquela perda” (Lana, 2016, p. 111).
A invisibilidade através da não autorização social da expressão do
luto dificulta esta tarefa de atribuição de sentido ao ocorrido e,
consequentemente, compromete os recursos empregados para lidar com a
situação de perda (Parkes, 1998). Quando a elaboração do luto não ocorre
de maneira satisfatória, há um risco de o enlutamento persistir por mais
tempo e se tornar um “luto complicado”, implicando um agravamento
clínico (Consonni & Petean, 2013, p. 2664), com possibilidade de
evolução para quadros patológicos, sendo prevalente a depressão (Alves,
Freitas, Abreu, Coêlho, & Peres, 2017).
Uma vez que envolve a perda gestacional, os impactos causados
pela DTG, portanto, são subjetivos e podem provocar diferentes reações
influenciadas por fatores como: o sentido atribuído à perda; as relações
sociais estabelecidas; a qualidade do suporte familiar, social e profissional;
53
Tradução livre de Ana Lana (2016) para o termo grief unseen de Laura Seftel
(2006).
180
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
as características individuais, como idade, personalidade, crenças
religiosas, estrutura psíquica prévia; o histórico de experiências anteriores;
a existência ou não de desejo pela gravidez e o investimento emocional na
gestação (Nazare et al., 2010 como citado em Lemos & Cunha, 2015).
São necessárias estratégias de atenção em saúde que contribuam de
maneira global para o processo de enfrentamento de todos os indivíduos
envolvidos.
Com a inviabilidade da chegada do bebê e a não realização dos
papéis sociais que seriam exercidos, o sistema familiar se desorganiza
(Consonni & Petean, 2013). Soma-se a isso a proximidade de um câncer,
que intensifica o impacto transformador na vida de todos aqueles que são
atravessados pela notícia do diagnóstico de DTG. A necessidade de
acompanhamento ambulatorial semanal para monitoramento de uma
possível neoplasia implica mudanças de rotina, comportamentos, hábitos
e emoções. Assim, cada integrante da família poderá apresentar diferentes
reações diante do processo de adoecimento, em acordo com suas próprias
experiências, personalidades e compreensão da doença (OMS, 1998).
Por estas razões, os familiares exercem direta influência no
processo de tratamento e devem receber igualmente um suporte
emocional para proporcionar à paciente o apoio necessário para o
enfrentamento da DTG. Para isso, cada sistema familiar deve ser
respeitado conforme suas formas de enfrentamento, defesa e padrões
interativos, para que cada família seja capaz de lidar com estas questões de
forma tão eficaz quanto possível, dadas as suas capacidades, recursos e
circunstâncias específicas (Turry, 1999).
Características intrínsecas à DTG despertam pacientes e
familiares para a dimensão espiritual, uma vez que é essencial a
manutenção da esperança de cura, durante o longo tratamento médico
(Vianna, et al., 2019). Por isso, é preciso também oferecer um suporte
adequado para as demandas específicas relacionadas à dimensão
transcendente do ser, de forma a favorecer a tarefa de atribuição de novos
sentidos ao vivido e, assim, auxiliar na elaboração da perda.
É preciso oferecer uma assistência ampliada que complemente os
settings tradicionais, como clínicas e consultórios, uma vez que a mulher
que vivencia a DTG carece de um olhar diferenciado para o cuidado das
suas dores físicas, emocionais, sociais e espirituais. Afere-se, com isso, a
existência de demandas acometidas pela DTG que apontam para a
necessidade de uma atuação multiprofissional integral mais abrangente e
181
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
flexível para que todos os envolvidos no processo do adoecer sejam
assistidos ao longo de todas as etapas do tratamento.
54
De janeiro a setembro de 2019, foram realizadas no Ambulatório de DTG,
1943 consultas de DTG, 28 de pós-DTG e 41 acompanhamentos de gestação
pós-molar. Na emergência foram atendidas 181 pacientes e na internação, 122
(ME/UFRJ, 2019).
182
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
de DTG (ME/UFRJ, 2018). As orientações foram traçadas com o
objetivo de nortear e melhorar a qualidade da rotina da assistência
multiprofissional oferecida para acolher as especificidades dessa nova
linha de cuidado. O estabelecimento deste protocolo ainda não contempla
o Setor de Musicoterapia, uma vez que foi elaborado antes de sua inserção
neste serviço.
Hoje, o Ambulatório de Pré-Natal é de alta e média
complexidade, bem como o setor de Medicina Fetal e o Complexo
Neonatal, que atendem gestações de risco e doenças diretamente
relacionadas à possibilidade de perda. Por isso, atualmente a
musicoterapia vem atuando na Unidade de Terapia Intensiva Neonatal
(UTIN), no Ambulatório de Follow-Up, destinado ao acompanhamento
pediátrico de prematuros ou bebês com sequelas neurológicas, nos
Alojamentos Conjuntos, Enfermarias de Gestantes de Risco e a nomeada
“Enfermaria de Finitude” - destinada a partir de 2017 a internação de
mulheres que vivenciam a perda gestacional.
Nos diversos serviços em que está inserido, o Setor de
Musicoterapia acompanha famílias com os mais diferentes desfechos para
suas gestações. Isso permitiu identificar a pertinência da assistência
musicoterapêutica nos cuidados que envolvem a perda de um filho. Com a
implantação desta unidade assistencial para doença trofoblástica
gestacional, houve o consequente aumento do número de famílias
assistidas que vivenciam a perda e luto, associado ao agravamento do
quadro pelo risco específico de uma doença ameaçadora. Assim, foi
identificada a necessidade de inserção do Setor de Musicoterapia na linha
de cuidado de DTG e a criação de um modelo de assistência adequado ao
itinerário terapêutico estabelecido.
O funcionamento do Ambulatório de DTG acontece uma vez
por semana. De acordo com o histórico da evolução e avaliação médica, as
pacientes são classificadas conforme a gravidade da doença. Assim, o
período da manhã é destinado àquelas com baixo risco e o período da
tarde às de alto risco e às primeiras consultas após o esvaziamento uterino.
Por isso, foi considerada mais pertinente a realização de intervenções de
musicoterapia no período da tarde, uma vez que compreende maior
complexidade e demanda por assistência, tanto para a equipe, quanto para
as famílias assistidas.
183
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
FUNDAMENTOS DA MUSICOTERAPIA NA
LINHA DE CUIDADO DE DTG DA ME/UFRJ
184
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
resultados dos exames; associado ao medo da doença e às preocupações
com gestações futuras, tratamento e estabilização dos níveis do hormônio
beta-hCG. A intervenção da musicoterapia nesse ambiente ansiogênico é
uma estratégia para transformar o tempo ocioso da espera em um espaço
para cuidar de si, marcado pela interação entre diferentes subjetividades e
pluralidades (Pimentel, Barbosa, & Chagas, 2011); com efeito benéfico
para reduzir a ansiedade de pessoas com câncer, comprovado em revisão
sistemática (Bradt, Dileo, Magill, & Teague, 2016).
Compreende-se que este atendimento de musicoterapia em
grupo também atua como uma tecnologia leve e de baixo custo para a
prevenção de agravos e promoção de saúde (Barcellos, 2015). A
constituição de um grupo com uma doença em comum permite uma
identificação maior entre seus integrantes, bem como o favorecimento de
uma melhor percepção e compreensão da doença por meio do
compartilhamento de informações (Mello, 2000 como citado em Teixeira
& Pires, 2010). É uma estratégia que permite a identificação de fatores
subjetivos e objetivos da unidade de cuidados que possam facilitar ou
dificultar o processo de aceitação do diagnóstico e tratamento. Com isso,
há a possibilidade de reduzir dúvidas e acolher sentimentos de medo e
insegurança, auxiliando no processo de enfrentamento e,
consequentemente, favorecendo a adesão ao tratamento ambulatorial
semanal, necessário para o controle da DTG e prevenção do câncer.
É necessário pontuar que também existem demandas próprias de
um ambiente de sala de espera que precisam ser observadas e acolhidas
nesse modelo de assistência. Como não há divisórias, todos os presentes
são afetados pela intervenção musicoterapêutica e, frequentemente,
participam cantando dos seus lugares, sentindo ressoar o que ali se
apresenta. Por isso, também são acolhidos no grupo aqueles que não fazem
parte da assistência do Ambulatório de DTG, mas estão presentes no
momento da intervenção e participam, indiretamente, da musicoterapia -
familiares, acompanhantes, funcionários e alunos.
Nesse contexto, o atendimento acontece uma vez por semana
com duração média de duas horas, variando de acordo com o cenário
encontrado. Há uma rotatividade dos participantes que permanecem no
grupo conforme o tempo de espera de suas consultas médicas e
laboratoriais; alternam-se a cada momento e a cada novo encontro. As
sessões são realizadas em caráter de grupo intergeracional aberto para
beneficiar a participação espontânea do maior número de pessoas do
185
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
público-alvo, conforme o interesse e disponibilidade de permanência de
cada um.
Essa dinâmica e a possibilidade de prolongar a sessão permitem
acolher as diferentes demandas que surgem antes e depois das consultas ao
longo dos distintos estágios da doença e tratamento. Como não há um
processo terapêutico contínuo, estes atendimentos são compreendidos
como intervenções pontuais e não processuais. Por isso, tem-se o cuidado
de promover um acolhimento e fechamento adequado para as questões
abordadas no momento em que elas surgem, uma vez que nem sempre
haverá nova oportunidade para retomá-las.
Em estudo qualitativo sobre a prática da musicoterapia em sala de
espera, foi verificada a pertinência desta atuação como facilitadora da
expressão e de uma maior integração igualitária entre profissionais e
usuários (Pimentel, Barbosa, & Chagas, 2011). A musicoterapia, nesse
enquadre, proporciona o mesmo descrito para grupos de apoio
oncológico, uma vez que é capaz de “fornecer amparo, desmistificar o
preconceito que envolve o câncer e diminuir o nível de ansiedade frente à
doença, tanto da equipe quanto dos pacientes” (Teixeira & Pires, 2010, p.
49).
Pelo exposto acima, a musicoterapia tem por objetivo promover
o acolhimento para auxiliar nos processos de elaboração e enfrentamento
do luto, adoecimento e tratamento. Para o desenvolvimento desta clínica,
foi escolhida a abordagem da Musicoterapia Interativa, descrita em 1984
por Barcellos como:
a forma na qual a experiência musical é compartilhada pelo
musicoterapeuta e paciente(s) - quando em grupo - todos ativos
no processo de fazer música, o que configura uma inter-ação
facilitada pelo fato de a música acontecer no tempo, o que
promove a interação dos participantes e dificulta o isolamento.
(Barcellos, 1984, p.3).
A Musicoterapia Interativa promove o desenvolvimento da
relação terapêutica por meio do fazer musical compartilhado. A escolha
desta abordagem permite que pacientes e musicoterapeutas possam
influenciar o que está sendo produzido em conjunto para contemplar as
necessidades específicas dos acometimentos biopsicossociais e espirituais
produzidos pela DTG. Por meio da interação musical com a unidade de
186
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
cuidados, constrói-se coletivamente um ambiente de acolhimento,
visibilidade, protagonismo e assunção do próprio caminho.
Para a assistência nessa sala de espera, a partir das definições
apresentadas por Bruscia (2000), compreende-se o uso da recriação
musical como mais adequado para oferecer um suporte à intensa
instabilidade emocional ocasionada pela doença. No modelo de
atendimento aqui apresentado, não há um cenário adequado para
produzir a improvisação ou composição musical. A insistência nessas
experiências musicais, inédita para a maioria dos participantes, poderia
desencadear mais ansiedade e instabilidade às pacientes que aguardam
atendimento, inibindo-as em sua expressividade; enquanto a recriação de
músicas conhecidas proporciona uma familiaridade necessária para
favorecer a expressão nesse enquadre.
Neste sentido, foi escolhida a recriação musical como direção de
clínica, tendo como recurso as canções pertencentes à história sonoro-
musical dos participantes (Barcellos, 2007, 2016). A escolha do uso de
canções é feita com base na análise do histórico da cultura musical
brasileira. A canção se desenhou como representação musical mais
significativa, especialmente a partir do século XX e do surgimento do
rádio. Os intérpretes passaram a ser instrumentos de expressividade dos
sentimentos do seu público, construindo no Brasil uma maior
identificação da população com canções, por relatarem suas vivências
(Millecco Filho, Brandão, & Millecco, 2001).
No contexto musicoterapêutico, essa identificação pode ocorrer
entre o que as pacientes estão vivenciando e os sentidos atribuídos por elas
à música e às letras. Cantando canções que lhes são próprias, é
oportunizado expressar o que a linguagem falada não daria conta sozinha
(Barcellos, 1992). Desta forma, abre-se espaço para que sentimentos
latentes venham à tona e possam ser elaborados.
Assim, a previsibilidade e confortabilidade das canções escolhidas
pelas motivações dos participantes podem atuar como holding em
situações de risco emocional (Barcellos, 2007). Devido ao fato de a música
trazer à superfície conteúdos emocionais que remetem a pessoas, lugares,
circunstâncias, opera-se um ressurgimento das vivências sob um novo
enfoque (Petersen, 2012). Com isso, é auxiliada a tarefa de ressignificação
do que está sendo vivido, por meio dos recursos musicais para a atribuição
de novos sentidos.
187
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
Em relação à recriação de canções em musicoterapia, Chagas
(2001) leciona sobre a diferença entre simplesmente cantar uma canção já
existente e recriá-la no atendimento. Isso porque na recriação há o
“aspecto improvisacional da utilização da canção” (Chagas, 2001). No
atendimento, ao cantar, a paciente não está apenas reproduzindo o que
assimilou na gravação ou execução que tem como referência daquela
canção. Não se trata de um processo autômato, mas de um movimento de
apropria-ação. A possibilidade de tomar para si a canção permite que a
paciente entre em contato com sua subjetividade e participe ativamente
da reconstrução de si.
Assim, a autonomia de cada indivíduo é evidenciada em um
contexto que induz a uma postura passiva diante de um tratamento
invasivo e ameaçador. Então, ser ouvida, ser perguntada sobre como se
sente, sobre do que gosta, sobre qual música ouve, é um momento em que
a paciente é convocada para o centro do tratamento. Com isso, busca-se
promover a cada uma um lugar de encontro consigo mesma, com o outro,
com a música e com o sagrado (Petersen, 2012), pois cantar em grupo
promove uma identificação e um senso de pertencimento, em um
contexto de solidão.
A soma das suas individualidades, seus silêncios e sonoridades,
com seus sentidos e significados, compõem um repertório de vida e
musical, compartilhado e construído com os demais integrantes do grupo.
São processos que se destacam, em singularidades, mas também se
coadunam, em semelhanças. Como a canção passa a ser de quem a canta,
com contornos singulares, é relevante a atuação dos musicoterapeutas na
condução da experiência musical em grupo ao encontro dessas novas
possibilidades individuais (Chagas, 2001). Assim, faz-se necessária uma
adaptação da música ao momento da intervenção terapêutica. Arranjo,
ritmo, andamento e interpretação são, então, manejados tecnicamente
para potencializar a inserção da música no contexto clínico.
Para a compreensão deste enquadre clínico ainda em construção,
o Coletivo MT-DTG realizou uma leitura ou análise musicoterapêutica,
estabelecendo a correlação entre letra e estrutura musical com as histórias
de vida, clínica e sonoro-musical, conforme o conceito de autoria de
Barcellos (1994; 2012).
188
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
189
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
Portanto, pensamos o corpo terapêutico como a associação de
potencialidades individuais para a constituição de um corpo híbrido,
ampliado, coeso, que dispõe de novos recursos para atingir os objetivos
terapêuticos traçados. Vale ressaltar que essa proposta não exclui a
possibilidade de uma assistência realizada por um único musicoterapeuta.
O que se compreende aqui é a potencialização dos recursos terapêuticos e
sonoro-musicais, das possibilidades de interação, intervenção e
compreensão clínica promovidas por meio dessa rede composta por
diferentes musicoterapeutas coligados para um atendimento conjunto.
Análise musicoterapêutica
55
Costa (2017) afirma, com base em classificação adotada pelo IBGE, que
evangélico é uma subcategoria de protestante. Portanto, não são sinônimos.
191
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
Na área musical, gravadoras sem vínculo religioso investem na
produção de artistas declaradamente evangélicos (Costa, 2017).
Atualmente, os evangélicos se identificam com sua crença sem excluir as
tendências globais. Com isso, a música gospel foi assumindo formas
múltiplas, estilos e ritmos diversos, novas linguagens e conteúdo, para
além de sua funcionalidade tradicional nas práticas religiosas. (Reck,
2011). Assim, temos no Brasil a emergência da denominada música cristã
contemporânea que, por tais transfigurações, se aproxima musicalmente
da música popular brasileira se inserindo mais facilmente em ambientes
não litúrgicos.
A presença de canções gospel é também recorrente no repertório
musical dos atendimentos de musicoterapia. Acredita-se que essa
prevalência tenha relação com os processos descritos acima, reforçados
pela massificação cultural (Millecco, 1997), associados à dimensão
espiritual evocada pelos atravessamentos subjetivos do adoecimento e
perda (Dionízio & Freire, 2018). Para realizar uma análise dessa dinâmica
de eleição das músicas pelas pacientes e ter uma compreensão da clínica
musicoterapêutica em questão, o Coletivo MT-DTG registrou todas as
canções utilizadas nos 27 atendimentos musicoterapêuticos realizados no
período selecionado para o estudo, classificando-as por gênero.
Segundo esses dados, o primeiro grande grupo de canções é o de
músicas cristãs que corresponde a 51% das canções utilizadas, o que
corrobora o estudo de Dionizio & Freire (2018) cujos resultados também
apontam para essa prevalência em um contexto hospitalar. O termo
música cristã compreende uma classificação abrangente que engloba sub-
gêneros, com características próprias. Ao considerar as proposições
teóricas da musicoterapia para a escolha de canções em uma experiência de
recriação musical, reforça-se a ideia de que essa preferência não está ligada
somente ao aspecto cultural, mas ao quadro clínico das pacientes e à forma
como expressam sua espiritualidade.
Outro grande grupo de músicas, classificado como música
popular brasileira, representa 40% das canções utilizadas no período em
estudo. Apesar da terminologia, este grupo compreende canções que estão
para além da denominada MPB; movimento musical surgido no Brasil na
década de 60. Assim, as canções aqui classificadas, de modo análogo ao
gênero cristão contemporâneo, se utilizam de fagocitar elementos de
gêneros alheios numa tendência antropofágica presente na cultura
brasileira (Pereira, 2011).
192
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Juntos, eses dois grupos de canções totalizam 90,8% daquelas
utilizadas durante o período em estudo. Por esta razão, mostrou-se
imprescindível assegurar, durante os atendimentos, uma abertura na
escolha das músicas que não fosse comprometida por uma cultura
hegemônica. Para tanto, destaca-se que intervenções verbais e o
oferecimento de canções por parte dos musicoterapeutas representaram
estratégias para oferecer novas possibilidades de expressão musical e de
sugestão de repertório.
Outros quatro gêneros foram adotados neste estudo. São eles:
samba; sertanejo; infantil e internacional. No entanto, correspondem a
menos de 10% do repertório utilizado no período em análise. Vale
observar que canções de diferentes gêneros musicais podem possuir
características em comum (Pereira, 2011). Inobstante essa categorização,
elementos como ritmos, cadências harmônicas e estética podem constar
de maneira semelhante nos diferentes gêneros aqui estabelecidos.
Essa aproximação entre esses gêneros e seus diversos sub-gêneros
ainda é intensificada pelo fato de as canções estarem inseridas num
contexto clínico específico. Desse modo, para além dessa análise de
repertório em termos de gênero, assumem relevância a relação entre a
narrativa e a estrutura musical destas canções. Para entender a predileção
das pacientes, a música cristã Jó, do compositor Delino Marçal (2017), foi
eleita para análise musicoterapêutica por ter sido a mais pedida, solicitada
em 20 dos 27 atendimentos.
Essa canção traz na letra o questionamento da manutenção da fé
do personagem bíblico Jó diante das provações a que fora exposto. Sua
história contribui para a desmistificação da doutrina da retribuição, em
que boas atitudes são premiadas, enquanto as más, punidas (Silva, 2012).
Neste sentido, apresenta uma nova forma de fé que nasce do
enfrentamento das adversidades e que se assenta na dor. De alguma
maneira, essa narrativa se assemelha à história clínica das pacientes que
enfrentam perda gestacional, seguida do luto e do acometimento da
doença, com a necessidade de manter a esperança de cura durante o longo
tratamento médico.
Com a análise musicoterapêutica (Vianna, et al., 2019),
percebeu-se a existência de elementos musicais relevantes que
correspondiam à narrativa apresentada. A música, na tonalidade de Sol
Maior e compasso quaternário simples, é executada em andamento lento e
pode ser subdivida em quatro partes: A, B (pré-refrão), C (refrão) e D. A
193
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
harmonia em progressão previsível está dentro do campo harmônico de
Sol maior. Nas partes A e B há um deslocamento do centro tonal,
sugerindo uma melodia modal, que, somado à presença de síncopes, não
produz o conforto esperado pelo clichê harmônico. Esta tensão das partes
A e B converge com o clima de confronto explicitado na letra da música,
na qual Jó tem sua fé testada.
No pré-refrão, ou parte B, a melodia ganha altura, com maior
salto intervalar, servindo de intermediária entre as partes A e C. Há com
isso, uma mudança de intensidade e intenção musical, deslocando-se o
centro tonal para sua posterior resolução no refrão. Observa-se na
narrativa uma mudança análoga onde os questionamentos apresentados se
convertem em certezas e esperança. Na parte C, a reafirmação da nota sol
em apogiaturas ratifica a resolução da tonalidade e associado ao desenho
melódico que se mantém em um registro alto, configura o clímax da
música. Em convergência, a narrativa textual do refrão apresenta a
resignação de Jó e a reafirmação de sua fé na providência divina.
Na parte D há uma modulação para o tom relativo menor.
Apresenta um contraste ao manter um ritmo melódico mais sincronizado
com o pulso e uma cadência harmônica mais previsível e lenta. Contudo,
melodicamente, volta à tensão por não ser resolutiva e modal. No que se
refere à narrativa, observa-se um momento de adoração do personagem,
um estado singular de espírito que é reforçado pelo contexto musical
apresentado. Por fim, há um retorno ao refrão, após uma modulação,
proporcionando a sensação de relaxamento.
Assim, a análise musicoterapêutica desta canção apresenta a
convergência entre a estrutura musical, o conteúdo retratado na letra e a
história clínica vivenciada pelas pacientes. Parâmetros como ritmo,
desenho melódico, cadência harmônica, deslocamento do centro tonal e
modulação atuam constantemente na música para embasar e apoiar o
discurso (Vianna, et al., 2019).
Com a escolha das músicas que lhes são próprias, executadas com
a potência do corpo terapêutico, as pacientes encontram caminhos para
expressar conteúdos internos, de forma que esta convergência ou
correspondência entre música, letra e o momento vivido parece favorecer
este encontro.
194
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
CONSIDERAÇÕES FINAIS
195
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
musicoterapêutica do Coletivo MT-DTG, parece criar condições que
facilitam sua apropriação pelas pacientes.
Assim, é possível afirmar que a musicoterapia favorece o
compartilhamento de sentimentos relacionados às perdas que encontram
ressonância com as canções eleitas. Nestas identificações e no cantar
compartilhado, de forma intensa e expressiva, os participantes parecem
encontrar um alento. Portanto, a musicoterapia é capaz de conectar a
paciente a tudo aquilo que lhe é significativo, contemplar um olhar para a
espiritualidade como parte do cuidado integral; oferecer um suporte
biopsicossocial e espiritual por meio da música e de técnicas específicas e
adequadas para inserção do profissional musicoterapeuta na linha de
cuidado multiprofissional da paciente com DTG.
O exemplo inédito de atuação nessa clínica, trazido por esse
escrito, tem por um dos objetivos anunciar um caminho, que se espera ter
muitas adesões por profissionais musicoterapeutas nos demais espaços de
atendimento à DTG, no Brasil e no mundo. Da mesma forma, pretende-
se que desse compartilhamento possam advir outros questionamentos e
consequentes respostas, novas estratégias e trabalhos de pesquisa para o
aprofundamento sobre essa práxis clínica, não somente como corpo
terapêutico, aqui apresentado, mas também em outras configurações para
atuar nessa linha de cuidado.
É preciso evidenciar que o trabalho aqui descrito surge em um
contexto biomédico de assistência, com demandas e objetivos voltados
para o tratamento de mulheres diagnosticadas com uma doença específica.
Portanto, neste primeiro momento, o estudo realizado está voltado para a
compreensão desse enquadre no que tange à DTG. Contudo,
compreende-se que tanto a configuração do setting em uma sala de espera
quanto o contexto de atenção à saúde da mulher, no qual essa clínica se
situa, indicam a necessidade de ampliar o olhar para as necessidades sociais
que atravessam a comunidade heterogênea que ali se constitui.
Além dos objetivos terapêuticos específicos relatados, voltados
para o tratamento de DTG, faz-se necessário observar que os
atendimentos de musicoterapia contemplam também aqueles destinados
ao acolhimento de demandas territoriais em processo. Na dinâmica de
participação ativa e expressiva da mulher e sua rede de apoio através da
interação musical é viabilizada a identificação dos diferentes territórios
vulnerabilizados que compõem a comunidade envolvida nessa clínica. A
partir desse mapeamento é favorecido o estabelecimento de novas
196
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
estratégias terapêuticas para a ampliação das potencialidades individuais e
coletivas, visando à equidade e integralidade da assistência.
A construção dessa clínica indica que a musicoterapia é capaz de
uma inovação na estrutura biomédica assistencial, uma vez que amplia as
possibilidades da atenção em saúde. Ou seja, a assistência
musicoterapêutica contribui para a subversão da lógica paternalista,
conduzindo a usuária de uma posição passiva para o protagonismo no
próprio tratamento. Atua, portanto, como uma política de afirmação no
acolhimento às singularidades das mulheres e suas demandas, o que
contribui para a ampliação de territórios em comum. Por essa razão, para
estudos futuros, compreende-se a necessidade de estabelecer uma interface
deste trabalho com as proposições da Musicoterapia Social-Comunitária.
As vozes representadas a seguir, recolhidas durante os
atendimentos, fazem ressoar a pertinência da musicoterapia e dos
profissionais musicoterapeutas qualificados para integrarem, de forma
institucionalizada, as equipes de assistência nos Centros de Referência de
DTG distribuídos por todos os estados do Brasil:
197
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
REFERÊNCIAS
199
Musicoterapia e doença trofoblástica gestacional
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204
Capítulo 10
MUSICOTERAPIA MUSICOCENTRADA
André Brandalise
INTRODUÇÃO
205
Musicoterapia musicocentrada
especialização em musicoterapia no Conservatório Brasileiro de Música
(CBM), no Rio de Janeiro, bem como soube que, unido à NYU,
encontrava-se o Nordoff-Robbins Center for Music Therapy (Centro
Nordoff-Robbins de Musicoterapia). Logo, assim que cheguei em Nova
York, iniciei o programa de mestrado na universidade e o estágio neste
Centro, sob a supervisão do musicoterapeuta Dr. Kenneth Aigen.
Esse percurso do mestrado sob a orientação de Hesser e na
Nordoff-Robbins sob a supervisão de Aigen foram me fornecendo
alicerces práticos, teóricos e filosóficos que viriam a ser fundamentais para
a construção da abordagem musicocentrada. Como minha primeira
imersão no modelo Nordoff-Robbins, Aigen me solicitou escutar uma
série de áudios que, viria a saber, eram Talks on Music. Tratava-se das
gravações do curso que Paul Nordoff havia ministrado no ano de 1974
sobre a abordagem que desenvolvera com Clive Robbins. Pela primeira
vez escutava um musicoterapeuta detalhando aspectos da música e das
intervenções associados à demanda de seus pacientes. Descobria que era
exatamente este o meu desejo, o de entender e praticar esta dinâmica,
quando decidi tornar-me musicoterapeuta. A partir do segundo semestre
de 1997, tive a oportunidade de ser apresentado e de estudar uma série de
casos clínicos da abordagem, com Clive Robbins. Meu sentimento inicial,
sobre a música e sobre seu posicionamento na dinâmica terapêutica, ia
ganhando mais significado, maior entendimento. Após o estudo
supervisionado de Talks on Music, imergi no estudo da literatura Nordoff-
Robbins ao mesmo tempo em que era apresentado, na NYU também por
Aigen, a diferentes filosofias da música. Foi então que, via as aulas de
Aigen e o estudo específico da obra Healing Heritage (transcrição de Talks
on Music, realizada em 1996, por Clive Robbins e Carol Robbins),
conheci o filósofo da música Victor Zuckerkandl e descobri que via os
pensamentos deste autor, eu poderia aproximar-me mais intimamente da
musicalidade de Nordoff. O legado de Zuckerkandl e Nordoff passavam a
ser os alicerces teórico-filosóficos do modelo musicocentrado que
começava a desenvolver.
PRINCÍPIOS E CONCEITOS
206
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Robbins (Musicoterapia Criativa) e do método de musicoterapia
chamado BMGIM (Bonny Method of Guided Imagery and Music –
Método Bonny de Imagens Guiadas e Música). Inicialmente, então,
descrevo um primeiro princípio do modelo musicocentrado que
proponho: todo ser humano é um Homo Musicus (Zuckerkandl, 1976) o
que significa, influenciado pela filosofia de Zuckerkandl (1973) e as
práticas e pensamentos de Nordoff, Robbins e Bonny, que todo ser
humano possue, de maneira inata, a sensibilidade e a habilidade para
interagir com sons e com música:
Musicalidade não é propriedade de alguns indivíduos mas um
atributo essencial da espécie humana. Não há seres humanos que
sejam musicais e outros que não sejam. O ser humano está
predisposto à música e a necessita. Trata-se de um ser que
necessita expressar-se através das notas (Zuckerkandl, 1976, p. 8).
Queiroz (2003) amplia este princípio de Zuckerkandl e afirma
que musicalidade não é somente a habilidade que seres humanos possuem,
com as quais realizam interação com sons e com música. Musicalidade, ao
ver do autor, é uma habilidade inata, que todos os seres humanos
possuem, com a qual percebem e inserem-se no mundo.
Um segundo princípio importante do modelo diz respeito ao
posicionamento da música em dinâmica musicoterapêutica. Música por
vezes funcionará como terapeuta principal, ou seja, a relação terapêutica
garantirá a confiança e a segurança para que, no campo tonal (habitat das
notas), a dupla paciente-terapeuta organize melodias, harmonias, ritmos e
parâmetros musicais que escutem, acolham e tratem a demanda do
paciente.
É função dos musicoterapeutas (meu modelo clínico propõe que
o trabalho terapêutico seja realizado por uma dupla composta por
musicoterapeuta e coterapeuta conforme descreverei à frente)
funcionarem justamente como facilitadores com intuito de engajar o
sujeito em experiências criativo-musicais. O modelo propõe a utilização
da música como terapia, na clínica musicocentrada. Penso que “música
trata através de suas qualidades, suas estruturas e formas, com seus grooves
(a essência clínica dos estilos musicais), com sua existência
(BRANDALISE, 2001). Segundo Aigen (2005), “ser musicocentrado
significa posicionar ideias sobre música como centrais na teoria da
musicoterapia” (p. 31).
207
Musicoterapia musicocentrada
Quanto à música, Zuckerkandl (1976) diz que “deveria ser
entendida como necessária de forma que a humanidade sem música se
tornasse impensável (p. 80). A tentativa de definir música é vasta e
percorre várias áreas do conhecimento. Há teóricos que a analisarão via
suas estruturas e parâmetros (melodia, harmonia, ritmo, duração, timbre,
intensidade e altura). Outros a pensarão de acordo com suas
características físicas (i.e., acústica) etc. Para mim e para Queiroz
(comunicação pessoal, 2020), música é um fenômeno que existe. Música é
indefinível.
Para Zuckerkandl (1976), “a vida interna que música revela atrás
das notas é a vida interna das próprias notas. Não da psiquê” (p. 154).
Pensamento que é complementado por Nordoff (1996) que diz: “a escala
musical apresenta self criativo” (p. 3). Esse fenômeno, que é indefinível,
possue vida. Vida esta que dá título à fundamental Exploração 4 de
Healing Heritage e que é o terceiro princípio da abordagem que
proponho: Música tem vida. Vida que acontece a partir dos
relacionamentos dinâmicos entre as notas. Baseado nesta ideia, construo
juntamente com o colega norte-americano John Carpente, o que
chamamos de “Triângulo de Carpente & Brandalise” (2001). A figura 1
ilustra os três agentes envolvidos em dinâmica musicoterapêutica (música-
paciente-terapeutas).
MÚSICA
a música busca contato
PACIENTE TERAPEUTA(S)
a música do paciente a música do(s) terapeuta(s)
buscacontato busca contato
209
Musicoterapia musicocentrada
No entanto, minha proposta difere significativamente desses dois
modelos em alguns aspectos. Apesar de Nordoff-Robbins propor
intervenções através de material pré-existente, o foco prioritário é dado à
utilização dos métodos criativos (i.e.; improvisação e composição). Já o
Método BMGIM prioriza o método receptivo (audição). Em minha
abordagem proponho a utilização dos três métodos, não atribuindo maior
importância a nenhum deles e entendendo que, por exemplo, poderá
haver a utilização dos três métodos (criativo, receptivo e recriativo) em
uma mesma sessão. As escolhas deverão ser feitas pela dupla de terapeutas
de acordo com suas percepções acerca das necessidades de cada paciente ao
longo de cada sessão. A figura 2 ilustra a utilização dos três métodos de
musicoterapia de acordo com minha proposta de abordagem
musicocentrada de musicoterapia.
210
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
recriativo pois a canção agora passa a ser recriada já que não é mais inédita.
Ter-se-á sido feita uma relação entre os métodos de improvisação e
recriação seguindo as necessidades do paciente.
O mesmo pode ocorrer com o método receptivo. O paciente
poderá solicitar ao musicoterapeuta, que toque uma canção que fora
previamente composta, para que escute. Então será, neste exemplo
específico, uma combinação entre os métodos criativo e receptivo.
211
Musicoterapia musicocentrada
dois violonistas. É obrigatório que os integrantes da equipe tenham sido
submetidos a processo terapêutico pessoal e à supervisão. Esta última é
contínua. Isso permite que sempre o paciente esteja no centro das
atenções nos processos terapêuticos, e não as questões relacionadas aos
conteúdos psicológicos pessoais de cada terapeuta. É esperado que todos
os integrantes da equipe sejam e estejam sempre disponíveis criativa e
emocionalmente para o trabalho que relaciona criatividade à saúde de
seres humanos. Por fim, faço uma demanda igualmente obrigatória aos
integrantes da equipe, neste modelo: que sejam também artistas, ou seja,
capazes de ir onde a criança está, onde a criança necessite que o terapeuta
esteja. E, em alguns momentos, o terapeuta terá que deslocar-se do piano
ou do violão e ir ao chão, encontrando a criança em alguma brincadeira
que ela tenha tido a inciativa de iniciar e propor. Robbins (1998)
expressava este sentimento quando falava sobre os desejos iniciais, na
construção da abordagem Nordoff-Robbins.
Para nós, era importante passar a perceber a musicoterapia como
uma nova e significativa arte criativa, e para musicoterapeutas
reconhecerem-se como artistas com o potencial para mediar a
arte das criações musicais espontâneas objetivando acolher e dar
apoio a processos criativos de terapia para seus pacientes (p. 55)
No entanto, é importante clarificar que há diferenças nas funções
entre os dois profissionais da dupla na condução dos processos clínico-
criativos. É o terapeuta que inicia o contato com a família ou com o
paciente diretamente. O terapeuta assume a liderança do processo (não
necessariamente das intervenções, conforme mencionado anteriormente).
É o terapeuta que dá a última palavra em termos dos procedimentos e
principais direcionamentos terapêuticos de acordo com a dinâmica e a
fluência do processo que é proposta pelo paciente em cada período de seu
processo. É também responsabilidade do terapeuta (no CGM-ICD
trabalhamos com crianças que apresentam condições
neurodesenvolvimentais) fazer contatos com as famílias e/ou cuidadores
das crianças. É função do terapeuta acolher, escutar, informar e orientar as
famílias e /ou cuidadores.
Avaliação inicial (assessment)
Dedico-me há trinta anos ao trabalho com crianças que apresentam
qualquer condição atípica do neurodesenvolvimento. Em sua maioria, são
crianças com TEA ou com sintomas similares. Algumas sem diagnóstico
212
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
concluído. No início do processo, converso com os pais ou cuidadores.
Esse encontro antecede a primeira sessão com a criança. Nessa conversa, o
principal objetivo é o de escutar a família. Interessa-me conhecer as
percepções e a maneira como falam sobre a criança, sobre os desafios,
sobre o diagnóstico (se há diagnóstico), sobre as expectativas em relação à
musicoterapia. Também faz parte desta primeira conversa conhecer a
percepção dos pais sobre os interesses sonoro-musicais do(a) filho(a). Os
objetivos terapêuticos não são pré-estabelecidos e a abordagem não
envolve a utilização de um protocolo de avaliação. Cada criança é
monitorada continuamente, através da filmagem de todas as sessões e
posterior análise como também através da observação clínica sistemática,
ao longo de seu processo. Procedimentos que detalharei mais à frente
neste artigo.
Objetivos
213
Musicoterapia musicocentrada
214
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
A composição de canções pode ser utilizada visando o
engajamento dos pacientes em um processo de criação colaborativa. É
processo que tem o potencial de motivá-los às relações, aos vínculos e ao
musicing.
Com frequência, pacientes podem vir as suas primeiras sessões
trazendo um CD de casa. Diferente dos modelos Nordoff-Robbins e
BMGIM, o modelo que proponho acolhe este material entendendo
tratar-se de conteúdo que pode ser bastante útil no sentido de informar
sobre a musicalidade do sujeito, sobre seus interesses e, como
musicalmente, encontra-se naquele momento da sessão. A musicoterapia
é, para quem inicia um processo terapêutico, ambiente desconhecido. Os
terapeutas são também desconhecidos bem como os instrumentos. Esta
situação, que é desconhecida e imprevisível, pode gerar uma diversidade de
sentimentos e sintomas nas crianças com as quais trabalho. Sintomas que,
se não escutados e acolhidos, podem dificultar o vínculo inicial e,
consequentemente, o engajamento da criança na experiência criativa com
música. Logo, o CD que é trazido de casa pode, algumas vezes, ser o objeto
conhecido que funcionará como elemento de transição entre a casa
(conhecida e segura), o setting musicoterapêutico e o vínculo com os
terapeutas. Os CDs podem também oferecer uma transição suave entre o
método receptivo (musicoterapeutas e a criança podem realizar audição
compartilhada do CD trazido de casa) e o método criativo (i.e.;
improvisar e compor). A partir dessa escuta, a dinâmica da sessão pode
torna-se ativa (recriação da canção do clipe, por exemplo).
Quanto ao resultado do processo tornar-se peças teatrais, trago
um exemplo. No trabalho com um determinado grupo, composto por
adolescentes com TEA, notei que um dos integrantes era excelente
imitador de personagens de TV. Outro integrante do grupo criava e
fabricava fantoches e outro membro era ótimo tecladista. Notei que estas
habilidades combinadas poderiam estimulá-los à interação e à produção
criativa em conjunto. Então, baseado nas ideias que eram trazidas em
sessão de musicoterapia, passei a ajudá-los a escrever roteiros de peças
musicais. Criamos uma companhia de teatro, chamada Companhia
Teatro Íntegro, que passou a apresentar musicais inéditos, anualmente,
em teatros na cidade de Porto Alegre.
Outra estratégia criativa que visa o engajamento da criança à
experiência criativo-musical é a utilização de bonecos. Por exemplo, um
paciente de quatro anos de idade, com autismo, cuja sessão ocorria às 9
215
Musicoterapia musicocentrada
horas da manhã, demonstrou resistência a qualquer contato físico e
dificuldades para engajar com música e instrumentos. Tomei a decisão de
utilizar um boneco fantoche chamado “Fulgêncio” (nome dado ao boneco
por outro paciente) objetivando facilitar o vínculo e o engajamento ao
processo. Esperamos, então, o menino criando a história que Fulgêncio
era o prefeito da cidade dos bonecos. Havíamos construído uma pequena
cidade, para uma das peças de teatro, com ruas, edifícios, praças etc.
(anexo A). Fulgêncio, então, movido pelo coterapeuta, foi apresentado ao
menino assim que chegou em uma de suas sessões. Também foi mostrado
ao menino o edifício (maquete, anexo A) onde Fulgêncio morava. O jogo
consistia em o menino acordar Fulgêncio tocando na campainha do
prédio onde o boneco morava (o som era produzido pelo teclado). O
boneco acordava, cumprimentava o menino e pedia a música de chegada
(música de oi). Desta maneira o menino engajava-se, aceitando a música e
a interação com os terapeutas. Conseguia inclusive abrir espaços para que
Fulgêncio solicitasse músicas.
Acredito que todos os sujeitos, independente de suas limitações e
desafios, possuem a capacidade para engajar em experiências criativo-
musicais buscando desenvolvimento. A pergunta que surge: como nossos
pacientes indicam estarem prontos a entrar em uma jornada de relações
criativas e musicais? E, uma vez indicado ao musicoterapeuta, como
acolher e estimular o engajamento e o desenvolvimetno no processo? Uma
das maneiras é via conexão musical, que é realizada por eles, através da
demonstração da experiência de colaboração criativa ou recriativa (se é
sobre um material musical pré-existente), conhecido como Tema Clínico
(TC).
Escutei pela primeira vez sobre o termo “tema clínico” no ano de
1997, durante estágio no Centro Nordoff-Robbins, nas aulas com Clive
Robbins. Não havia, na literatura Nordoff-Robbins, uma definição para o
termo. Minha exploração conduziu-me a uma conversa com os drs.
Kenneth Aigen, Alan Turry e Clive Robbins. Assim, o nascimento de
uma definição ocorreu. De acordo com Turry e Robbins (comunicação
pessoal, 2010), um “tema clínico” é uma recorrente ideia musical que
tornou-se ou vem tronando-se proeminente de sessão à sessão ao longo do
processo musicoterapêutico. Apresenta as seguintes características:
1) oferece ao paciente e aos terapeutas um modo particular de
coatividade que resulta em significativo desenvolvimento;
216
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
2) é de particular importância ao paciente e garante a ele ser uma
fonte clínica significativa de segurança;
3) possue associações importantes ao paciente o que pode resultar
na resolução de algum impasse clínico;
4) material com o qual o paciente identifica-se positivamente
(conteúdo e proposta) e que faz ter sentido a coatividade.
Temas clínicos (TCs) emergem a partir do envolvimento da
relação terapêutica em musicing. Figura 4 ilustra uma interação que
ocorreu com uma paciente chamada Linda56. O processo
musicoterapêutico de Linda, cento e vinte sessões, contribuiu para a
apresentação do modelo que proponho através do livro “Musicoterapia
Musicocentrada” (BRANDALISE, 2001). Linda, na época, tinha 9 anos
de idade e apresentava uma desordem neurológica. Foi encaminhada à
musicoterapia em função de seus pais perceberem seu grande interesse e
conexão com música. Devido a sua condição, Linda era não verbal e não
tinha habilidade para caminhar. Seu processo musicoterapêutico teve
duração de 4 anos.
Em sua décima quarta sessão, meu coterapeuta Tiago Lewis e eu
propusemos improvisação na tonalidade de Ré maior, cantando seu nome
(que contém duas sílabas), explorando intervalos melódicos. Foi então
que percebemos sua resposta a um específico interval: o intervelo de terça
menor descendente Ré-Si (ver Figura 4, retângulo vermelho). Respondeu
sorrindo, movendo seu corpo, enquanto direcionava olhar e gestos a mim.
Na sessão 15, o coterapeuta e eu realizamos intervenção seguindo os
mesmos padrões da sessão anterior, utilizando o mesmo intervalo de terça
menor descendente Ré-Si. Linda repondeu da mesma maneira. Linda nos
estava indicando, através de sua reposta emocional e gestos físicos, que o
intervalo melódico poderia ser um caminho para acessos a experiências
clínico-criativas mais profundas e significativas. Logo, o próximo passo foi
o de desenvolver tema clínico (TC) tendo esta terça menor como a base
fundamental para a construção, oferecemos, via contrução melódica,
suporte às duas sílabas de seu nome (a sessão 16 é ilustrada pelos
compassos 5 e 6 da figura 4). Este viria a ser o primeiro tema clínico de
Linda.
56
O referido caso foi autorizado pelos seus responsáveis para que seja usado para
finalidades acadêmicas.
217
Musicoterapia musicocentrada
218
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
219
Musicoterapia musicocentrada
intervalo de terça menor descendente. Linda novamente respondeu de
maneira relacionada e afetiva quando os dois intervalos foram incluídos
(quinta justa ascendente e terça menor descendente) para criar novo tema
clínico (TC) significativo, utilizado no sentido de engajá-la musicalmente,
apoiá-la e estimulá-la (ver Figure 5, compassos 5 a 8).
Linda, então, mostrava-nos outras posibilidades de caminho para
desenvolvimento musical à medida que o processo avançava e
continuávamos buscando engajá-la e estimulá-la em seus potenciais
comunicacionais na música. Linda foi permitindo uma maior abertura, via
sua musicalidade, para exploração criativa e ampliação de possibilidades de
interação.
As sessões
220
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Como objetivo principal do fechamento da sessão, a dupla de
terapeutas propõe indicar que a sessão está sendo encaminhada para o
final. Frequentemente, através de improvisação, é o momento onde os
terapeutas e o paciente fazem a síntese do que foi feito em sessão e
despedem-se.
O tratamento por esta abordagem implica haver a indicação de
uma pessoa ao processo de musicoterapia. Para a participação segura de
uma pessoa neste processo, destaco alguns pré-requisitos:
- Algumas intruções acerca da utilização de alguns intrumentos
devem ser fornecidas. Por exemplo, um paciente pode vir a
machucar-se através de um mal uso de baquetas;
- Atenção extra é fundamental, por parte dos terapeutas,
trabalhando clinicamente com sujeitos que podem machucar-se
ou machucar a outros;
- O setting de musicoterapia deve estar organizado de acordo com a
condição e possibilidades de cada indivíduo (i.e., posicionamento
de cadeiras de roda) objetivando garantir a segurança dos
pacientes;
- Os pacientes precisam sentir-se seguros emocionalmente, por
isso, a relação terapêutica deve oferecer confiança e
confidencialidade.
Este modelo musicocentrado pode ser utilizado em atendimentos
individuais e grupais. Maior ou menor estrutura é utilizada de acordo com
a demanda terapêutica de cada indivíduo. A abordagem também é
bastante diversificada em termos de uso de tipos de música (i.e., vocal e
instrumental), forma (i.e., canções, músicas instrumentais), estilos
musicais, tonalidades e modos diversos. Para alguns pacientes, a
improvisação é o método mais solicitado. Para outros, a audição (método
receptivo) é o que prevalece. Ressalto que todos os métodos de
musicoterapia podem ser utilizados, dependendo das necessidades de cada
paciente.
As sessões possuem duração de 30 minutos. No entanto, cada
sessão é indexada, ou seja, as filmagens são analisadas e um filme-síntese e
editado seguindo dois critérios básicos: 1) seleção dos momentos que
indicam que algo inédito surgiu em sessão e 2) momentos que indicam
algum desafio relacionado ao desenvolvimento do paciente. Em termos de
221
Musicoterapia musicocentrada
frequência, há pacientes que realizam uma sessão por semana e há outros
realizam duas sessões por semana. A frequência dependerá da motivação
da criança, de sua agenda (há crianças que possuem uma carga bastante
extensa de estimulação, de atividades semanais) e de condições da família
(i.e.; financeira e logística).
Análise da evolução
222
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
A filmagem clínica consiste no processo de gravação das sessões
para posterior análise em uma dinâmica chamada de edição clínica.
Assistindo às filmagens de cada sessão, o terapeuta seleciona momentos
que considera relevantes, seguindo os critérios que já foram mencionados
neste artigo. Um termo de consentimento é assinado pelos pais ou
cuidadores, autorizando as filmagens para fins de monitoramento de
progresso (anexo B). As filmagens são realizadas por tecnologia digital.
São armazenadas em HD externo e as edições clínicas são armazenadas em
um computador com senha. Somente o terapeuta e os familiares
permanecem com as imagens de cada criança.
Havendo temas clínicos signifcativos, são escritos via notação
musical tradicional em partitura, escaneados e mantidos em arquivo
referente ao processo de cada criança. O principal objetivo dessa análise é
o de realizar acompanhamento preciso sobre os interesses musicais de cada
paciente. A escrita musical não é realizada após cada sessão mas quando há
momentos musicais, com temas clínicos de relevância, como o exemplo da
paciente Linda, descrito anteriormente. Terapeutas podem destacar, a
partir da escrita, intervalos melódicos importantes, frases melódicas
relevantes e temas clínicos.
Estratégias clínicas são avaliadas ao longo do processo. São
consideradas apropriadas quando demonstram terem sido eficazes no
sentido de auxiliar os pacientes a alcançarem seus objetivos.
223
Musicoterapia musicocentrada
entendimento por parte da criança. Fica estabelecida a necessidade de uma
comunicação prévia de um mês para que o paciente seja trabalhado para o
desligamento de seu processo e de seus vínculos com os terapeutas. Este
trablho clínico final é feito com o paciente de acordo com seus interesses e
necessidades no término. Pode-se criar ou recriar canções que foram
importantes para o sujeito ao longo de seu processo, pode-se criar canções
inéditas falando sobre despedida, sobre futuro, sobre sentimentos que
envolvem términos e despedidas, para citar alguns exemplos.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
224
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Nordoff, Paul; Robbins, Clive (1977). Creative music therapy. John Day
Company.
Nordoff, Paul; Robbins, Clive (1998). Edward. Nordic Journal of Music
Therapy, 7(1).
Zuckerkandl, Victor (1973). Man the musician. Princeton University
Press.
Zuckerkandl, Victor (1976). Sound and Symbol. Princeton University
Press.
225
Musicoterapia musicocentrada
ANEXO B: Formulário de Termo de Consentimento para filmagem
clínica.
TERMO DE CONSENTIMENTO PARA FILMAGEM CLÍNICA
Nome dos terapeutas:
André Brandalise - email: andre.brandalise@temple.edu
Carolina Veloso – email: carof@terra.com.br
Data: 01 de junho de 2020.
Eu, _______________________________________, permito a
filmagem clínica do processo de musicoterapia do(a) meu (minha)
filho(a) ________________________________. Este filme será
utilizado com os seguintes propósitos:
- MONITORAMENTO DO PROCESSO CLÍNICO DE
MUSICOTERAPIA (FOLLOW-UP)
O filme será utilizado para fins de monitoramento acerca do
desenvolvimento do(a) meu(minha) filho(a) durante o processo
clínico de musicoterapia.
- TRATAMENTO E AVALIAÇÃO (feedback à família)
O filme será utilizado em encontros com a família como o
objetivo de conversar sobre a evolução do processo
musicoterapêutico do(a) meu (minha) filho(a).
Duração do período de filmagem:
Eu concordo que meu(minha) filho(a) seja filmado(a) no período de:
01 de junho de 2020 até o final do processo de musicoterapia (data não
prevista)
Nome da pessoa que preencheu este Termo:
Relação com o paciente:
Assinatura: Data:
226
Unidade 3
Perspectivas teóricas
Capítulo 11
AMBIÊNCIA SONORA EM
MUSICOTERAPIA: TERRITÓRIOS DE
ESCUTA
AMBIÊNCIA MUSICOTERAPÊUTICA
228
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
até que consigamos atingir os objetivos propostos para cada processo
musicoterapêutico.
No prefácio do meu segundo livro ”Acontecimentos sonoros em
musicoterapia – a ambiência terapêutica”, no qual várias ideias
apresentadas neste capítulo foram pensadas, Lilian Coelho (Maranhão,
2007) descreve que
“Entrar no fluxo das multiplicidades musicoterapêuticas ou,
como já dizia a musicoterapeuta Clarice Costa no livro O
despertar para o outro “nas musicoterapias”, é sempre tarefa que
exige encontros de campos heterogêneos. O pensamento
musicoterápico, na sua geografia temporal, já é sensível a tais
encontros que produzem sonoridades por difrações, refrações,
ressonâncias, interferências, contrações, distensões” (p. 11).
Os atendimentos com musicoterapia se dão em processos, das
mais variadas formas, espaços e tempos. Além disso, o material sonoro que
acontece num território musicoterapêutico é potencializado por uma
diversidade praticamente infinita de possibilidades sonoras, podendo ser
produzidas pelo corpo, voz, instrumentos musicais dos mais variados,
reproduções sonoro-musicais - independente do gênero musical, época ou
cultura -, por objetos do ambiente e externos a ele. Smith (2015) descreve
que “em relação ao ambiente, muitas vezes pode se aproveitar e incluir os
ruídos externos dentro do contexto de uma sessão de musicoterapia como,
por exemplo, trinar dos pássaros, ruído de carros, chuva, etc.” (p. 70 apud
Ikuta, 2009, p. 91).
No momento de um atendimento com musicoterapia, uma
ambiência única é criada, não só o ambiente circundante, meio físico ou
moral organizado esteticamente para uma determinada atividade, mas
uma atmosfera que envolve um dado espaço, que
influencia o comportamento e traz em seu
conjunto, características múltiplas, individuais, sociais, culturais, etc., a
ambiência musicoterapêutica.
A ambiência musicoterapêutica, que ocorre num determinado
atendimento de musicoterapia, nunca é exatamente a mesma em todos os
atendimentos, possui características próprias, contém uma atmosfera, um
tipo de organização, mesmo que efêmero, vivências reais ou imaginárias do
musicoterapeuta, do paciente e das músicas, num território inusitado, que
traz movimento, impermeabilidade, incontáveis escutas, e a música como
229
Ambiência sonora em musicoterapia
força extremamente desterritorializante e reterritorializante, fazendo com
que a musicoterapia se apresente e exista. Coelho (Maranhão, 2007) diz,
Tais movimentações colocam em oscilação as bordas do próprio
setting musicoterapêutico (na sua imagem convencional), posto
que passamos a ouvir uma sonoridade inédita: a ambiência
musicoterápica. A sonoridade aqui não se limita ao espaço
tridimensional do setting (música-paciente/grupo-
musicoterapeuta(s), mas ressoa com Carolyn B. Kenny (1989 e
1996) quando esta afirma que em musicoterapia a multiplicidade
de sensibilidade qualitativa do Campo do Tocar faz com que todas
as fronteiras se desloquem e o território seja desconhecido (p. 13).
Outro fator gerador de inúmeras possibilidades sonoras como
forças desencadeadoras de transformações, é a clientela a ser atendida, que
pode ser formada por todas as faixas etárias. Desde o ventre materno
somos influenciados pelos sons e músicas, pode ser paciente um único
indivíduo ou um grupo, com diagnóstico de patologias ou não, visando
prevenção, e nas mais variadas ambiências como comunidades, hospitais,
escolas, empresas, clínicas, consultórios, a domicílio, territórios em
potencial para o aparecimentos de sons e movimentos inusitados, etc. “. . .
todo e qualquer objeto que possa emitir som, mesmo com ajuda do
homem, da natureza, ou de um computador, pode trazer a mensagem
necessária para abrir canais de comunicação e ser o ponto desencadeador
para o desenvolvimento da potencialidade criativa do paciente” (Smith,
2015, p. 70).
Os sons ou músicas resultantes das intervenções sonoras nas
ambiências musicoterapêuticas podem ser considerados bonitos ou feios,
afinados ou desafinados, de boa ou má qualidade, mas isso é indiferente,
pois não são julgados segundo regras estéticas. A intenção do paciente na
produção sonora pode não corresponder à sua expressão, mas esteja o
paciente querendo ou não fazer música, o som que ele produz é a sua
música e se torna o material a ser trabalhado pelo musicoterapeuta
(Maranhão, 1999, p. 10).
O paciente corresponsável pela produção sonoro-musical,
estando ativo no fazer musical, permite que quaisquer sonoridades possam
acontecer, “. . . juntamente com o musicoterapeuta, que recebe essa
produção, interage com o paciente ou intervém musicalmente” (Barcellos,
2012, p. 1), ou numa experiência de escuta, que se baseia em “. . . relações
230
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
entre o ouvinte e a música de um autor ausente” (Santos & Barcellos,
1996, p. 17).
Bruscia (2016) acrescenta a essa questão da pluralidade sonora
num atendimento musicoterapêutico o fato da maioria dos pacientes
serem leigos em música, ou poderem ter algum problema que interfere na
sua capacidade de fazer ou experimentar a música. Segundo o autor:
Algumas vezes os clientes não são capazes de tocar ou cantar com
proficiência técnica; algumas vezes falta em sua música controle
rítmico ou tonal; algumas vezes eles não cantam ou tocam as
notas certas; algumas vezes os clientes se engajam num processo
exploratório, lúdico mais do que num processo artístico ou
criativo e, algumas vezes, os resultados são mais sons do que
música (p. 114).
A música, em sua forma mais tradicionalmente reconhecida, com
seus parâmetros calcados no ritmo, melodia e harmonia, é apenas uma das
formas de acontecimentos sonoros na ambiência musicoterapêutica, e a
depender da forma como os musicoterapeutas atuam, suas abordagens
teóricas, práticas e a clientela, as formas sonoras e musicais apresentadas
podem variar bastante, como por exemplo nas improvisações
instrumentais, que podem proporcionar uma extensa gama de
sonoridades.
Ruídos, a vibração ou apenas sons, são utilizados em muitas
situações clínicas e inúmeras vezes, o corpo do musicoterapeuta e do
paciente são os instrumentos musicais (Benenzon, 1972, p. 31). Os sons
corporais como a respiração, os provocados por movimentos da língua,
lábios e bochechas, os sons guturais e os percutidos através de palmas,
estalar dos dedos e sapateados, são recursos terapêuticos em um
atendimento de musicoterapia (Chagas & Pedro, 2008, p. 40).
Na musicoterapia existe a possibilidade dos pacientes utilizarem,
experimentarem ou explorarem de modo convencional os instrumentos
musicais, mas de acordo com as suas condições físicas e/ou cognitivas, ou
por vontade própria, os instrumentos podem ser manuseados de forma
não convencional: usar o violão como um tambor ou tocá-lo como um
violino, improvisando um arco com uma baqueta qualquer, acariciar a
pele de um pandeiro ao invés de percuti-lo, um teclado pode ser tocado
com a língua ou com o nariz, dentre outros tantos exemplos que
231
Ambiência sonora em musicoterapia
acontecem pelos mais diversos motivos e motivações durante um
atendimento.
Num caso relatado por Barcellos (2012), podemos constatar a
variedade timbrística apresentada:
O vestígio sonoro deixado por Marina era constituído por timbre
s completamente diversos, ritmos aleatórios, irregulares e
intensidades as mais variadas possíveis. Considerando-se as
recorrências, o resultado sonoro poderia ser visto sempre como
‘caótico’; o ritmo sempre irregular e o timbre sempre variado (p.
5).
Craveiro (2001) também assinala a riqueza sonora, múltipla
de possibilidades, nas ambiências musicoterapêuticas ao afirmar que
“Em nosso 'fazer' e 'pensar' musicoterápico, a música apresenta-se
como uma fonte de onde emergem formas, cores, intensidades,
temporalidades, movimentos, gestos, nuanças, repetições,
diferenças, imagens, pensamentos, palavras, etc. Música como um
campo de possibilidades e de virtualidades” (p. 654).
Muitos sons, músicas e movimentos compõem a ambiência
musicoterapêutica, formando uma rede de interações que demarca um
território naquele momento, além das vibrações, sons imagináveis,
audíveis ou não, com os quais nos relacionamos nas escutas, tornando
praticamente infinitas as possibilidades sonoras.
Considero pessoal a busca por bases teóricas que nos levem à
compreensão do que acontece durante os processos musicoterapêuticos e
essas reflexões me fazem crer que os minutos que estamos realmente frente
a frente com nosso paciente ou grupo, é apenas parte de um todo que
começa muitas vezes antes do início desse processo e não termina após um
atendimento, e por vezes, nem quando encerramos um processo
musicoterapêutico, considerando a alta, encaminhamento de qualquer
ordem, desistência por parte do paciente, ou outro tipo de encerramento
do processo.
Buscamos elementos que possam elucidar essas produções numa
ambiência musicoterapêutica, enfocando as escutas e expressões sonoras,
musicais ou não musicais, verificando as implicações dessas ambiências
sonoras nas nossas ações e reações dos pacientes ou grupos, e nas relações.
232
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Benenzon (1988) considera que até as pequenas mudanças no dia
a dia, tendo-se em conta a identidade sonoro-musical de um indivíduo,
podem interferir na ambiência musicoterapêutica, “O ISO
Complementar estrutura-se temporalmente devido às pequenas
mudanças que se produzem a cada dia, por efeito das circunstâncias
ambientais específicas ou psicológicas do indivíduo” (p. 36).
Muitas vezes trabalhamos um determinado repertório, temos
objetivos claros com um paciente ou grupo e, num determinado
atendimento a ambiência sonora muda radicalmente, uma canção, que há
muito temos executado, de repente toma outra significação e a ambiência
musicoterapêutica é transformada.
Santos & Barcellos (1996), revelando a multiplicidade das escutas
de cada ser humano, com suas diversidades temporais e subjetividades,
dizem: ". . . em relação a uma mesma pessoa, em situações diversas, uma
mesma música pode assumir sentidos bem diversos, suscitar sentimentos
contraditórios, propor questões e reflexões e provocar reações, associações
e sensações" (p. 17).
Kenneth Bruscia, no livro “Definindo Musicoterapia” (2016, 3a
ed.), com relação à ambiência sonora na musicoterapia, considera a
utilização de experiências musicais e não simplesmente a utilização da
música, o que significa que o agente da terapia não é somente a música,
mas a experiência do paciente com a música, a interação entre pessoas,
processo, produto e contexto, e ressalta a qualidade que as músicas devem
ter, mesmo numa ambiência sonora caótica:
Isso não quer dizer que a qualidade da música experimentada em
terapia não é importante; isso é da mais alta preocupação, mesmo
quando a prioridade é dada a interesses terapêuticos. . . Qualquer
um que tenha ouvido a musicalidade requintada de Paul Nordoff
dificilmente poderá afirmar que musicoterapeutas não se
preocupam com a qualidade da música... quanto melhor a
música, melhor a resposta do cliente, e mais efetiva clinicamente
a musicoterapia será (p. 115).
Segundo Bruscia (2016), a musicoterapia se dá na utilização de
experiências musicais e ao se adicionar experiência à música as implicações
são sutis mas, de todo modo, importantes, pois o agente da terapia é
entendido não apenas como a música sendo um objeto externo ao cliente,
mas também como a experiência do cliente com a música e diz, “Assim, a
233
Ambiência sonora em musicoterapia
tarefa do musicoterapeuta é mais do que a prescrição e administração da
música mais apropriada; ela também envolve dar forma à experiência
musical do cliente” (p. 118).
Bruscia (2016, pp. 125-132) relata que na música existem quatro
tipos distintos de experiências e cada uma envolve um conjunto diferente
de comportamentos sensório-motores, requer diferentes tipos de
habilidades perceptivas e cognitivas, e evoca diferentes tipos de emoções e
provoca diferentes processos interpessoais. Portanto, cada uma da
experiências tem seus próprios potenciais e aplicações terapêuticas. São
quatro métodos que podem ocorrer numa ambiência musicoterapêutica:
improvisativos, o cliente faz música ao tocar ou cantar, criando
espontaneamente uma melodia, um ritmo, uma canção ou peça
instrumental e pode improvisar sozinho, num dueto ou grupo, incluindo
o terapeuta; recriacionais, o cliente aprende, canta, toca ou executa uma
música previamente composta ou reproduz qualquer modelo musical
apresentado; composicional, o terapeuta pode ajudar o cliente a escrever
canções, letras ou peças musicais instrumentais inéditas; e receptivos, o
cliente ouve música, ao vivo ou gravações, e pode responder às
experiências receptivas em silêncio, verbalmente ou outra modalidade.
Os estímulos na ambiência sonora musicoterapêutica podem se
dar em cinco níveis de experiência, denominados musicais, pré-musical,
musical, extramusical, paramusical e não-musical, e podem ser
insuficientemente desenvolvidos, organizados, completos, ou não
considerados intrinsecamente musicais, de acordo com elementos
musicais básicos, podendo conter aspectos que não possuem intenção ou
significado musical, segundo Bruscia (2016, p. 120).
É a música dando margem aos infinitos sons, criando-os e
emergindo deles, em seus muitos impensáveis acontecimentos,
compondo e decompondo a rede de interações no território
musicoterapêutico. Nesse território não há uma música, mas
músicas, e elas são o material de trabalho do musicoterapeuta
(Maranhão, 2007, p. 35).
234
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
57
Deleuze, filósofo, e F. Guattari, psicanalista e músico, ambos contemporâneos
franceses, se opuseram a uma filosofia da representação, da interpretação, e
235
Ambiência sonora em musicoterapia
territórios musicoterapêuticos, com todas as forças que os desenham,
abarcando a música, o musicoterapeuta, pacientes, os sons da ambiência e
os externos a ele, em tempos e espaços diferenciados, podendo então
emergir plenos de multiplicidades nas ambiências sonoras. Os autores
abordam territórios como um conjunto de forças e não um terreno ou um
domínio qualquer, com muitas trocas, que fazem com que os
agenciamentos decorrentes nunca ocorram do mesmo modo e haja
sempre um território singular formado e muitos agenciamentos que são
únicos e próprios desse território.
É a ambiência sonora que emerge da ambiência
musicoterapêutica, paciente que arrasta musicoterapeuta,
musicoterapeuta arrasta paciente, sons que desterritorializam, outros sons
reterritorializam, conteúdos afloram, fatos que traçam, inesperadamente,
linhas de fuga, lembranças, sentimentos, sensações, materiais, percepções,
pensamentos, músicas e mais músicas, por vezes não audíveis. Deleuze &
Guattari (1997), assim pontuam território:
O território é de fato um ato, que afeta os meios e os ritmos, que
os “territorializa”. O território é o produto de uma
territorialização dos meios e ritmos. Ele comporta em si mesmo
um meio exterior, um meio interior, um intermediário, um
anexado. Ele tem uma zona interior de domínio, limites ou
membranas mais ou menos retráteis, zonas intermediárias ou até
neutralizadas, reservas ou anexos energéticos (Vol. 4, p. 120).
Os componentes de um território são forças com intensidades,
velocidades, aquecimento, resistências, condutibilidade, alongamentos,
dentre outros, e as qualidades expressivas são, por vezes, produzidas
rapidamente, noutras se alongam nessa demarcação.
Para Deleuze & Guattari (1997), um território, ao menos
potencialmente, está sempre em vias de desterritorialização, de passar a
outros agenciamentos, mesmo que o outro agenciamento produza uma
reterritorialização. “Vimos que o território se constituía numa margem de
236
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
descodificação que afeta o meio; vemos que uma margem de
desterritorialização afeta o próprio território.” (Vol. 4, p. 137).
No território musicoterapêutico demarcado no momento de um
atendimento, há muitas forças atuando e o eixo móvel desse território
reflete as relações entre indivíduos e entre indivíduos e a música, podendo
variar de níveis superficiais ou profundos nas interações, podendo fazer
emergir materiais facilitadores ou potencializadores de forças.
A cada novo atendimento são demarcados novos territórios e há
sempre vários territórios demarcados pela música, pelo musicoterapeuta,
pelo paciente, uns arrastando os outros nesse constante jogo de forças,
acionando componentes variados, fazendo com que nunca, nada seja igual
ou possa ser pensado à priori.
Num território não há um foco, algo principal ou central, mas
forças que convergem para determinadas linhas de forças intensificadas,
que são o eixo móvel desse território. Existem vários deslocamentos desse
eixo nos vários momentos durante um atendimento, sabendo que numa
ambiência de multiplicidades como essa, o eixo não se mantém estável,
mas ora está no paciente, ora no musicoterapeuta, ora na música, ora em
outros componentes, ora escapa, demarcando novos territórios. Deleuze e
Guattari (1997) ressaltam essa intensidade que permeia os territórios:
Esse centro intenso está ao mesmo tempo no próprio território,
mas também fora de vários territórios que convergem em sua
direção ao fim de uma imensa peregrinação. Nele ou fora dele, o
território remete a um centro intenso que é como a pátria
desconhecida, fonte terrestre de todas foças, amistosas ou hostis,
e onde tudo se decide (Vol. 4, p. 130).
O tempo de duração de um atendimento com musicoterapia
pode ser de trinta minutos ou menos, em alguns casos como em UTI na
musicoterapia hospitalar, com bebês, ou em outras possíveis situações, a
uma hora e meia com alguns grupos, dependendo do tipo de trabalho, da
abordagem e condução do musicoterapeuta, comportando uma
multiplicidade de acontecimentos humanos, musicais e da própria
ambiência nesse tempo/espaço. Como diz Maranhão (2007), por mais
experiente que seja o musicoterapeuta, é praticamente impossível, que as
atenções estejam todo o tempo voltadas, como foco único para o paciente
ou para a música, pois “... o eixo é dinâmico e recorrentemente se
movimenta em determinadas direções, tentando escapar das linhas de
237
Ambiência sonora em musicoterapia
fuga, mas a escuta, ora escapa para cá, ora para acolá e sempre volta
modificada (p. 49).
Há um processo de desterritorialização, que é desestabilizar a
ambiência com jogadas inusitadas, toda vez que forças do território o
tiram de seu eixo, traçando linhas que levam para fora desse território.
Como desejamos transformações de alguma espécie num processo
musicoterapêutico, os territórios estão sempre em via de ser
desterritorializados, ao menos tem esse potencial. Ferraz (1998), ajuda
entender como podem ocorrer essas instabilidades que produzem
mudanças nos territórios:
Territórios são instabilizados pelas linhas de fuga que emergem
da sobreposição de outros territórios e demarcações – repetições
gestuais, conceituais, as puras repetições de memória e, por fim,
atraem o ouvinte para outros territórios, os quais, também
instáveis, se sobrepõem a outros criando novas linhas de
desterritorialização e novo território (p. 163).
A música tem forte potência de desterritorialização, evidenciada
por Deleuze & Guattari (1997, Vol. 4, p. 103), que dizem que a música,
tambores e trombetas, tem uma força desterritorializante coletiva muito
maior e mais intensa, assim como igualmente a voz, numa corrida que
pode ir até o abismo, e arrastar os povos e os exércitos, muito mais que os
estandartes e as bandeiras, que são quadros, meios de classificação ou de
reunião.
A ambiência sonora musicoterapêutica em sua potência, pode
tornar audível forças inaudíveis e não somente formas sonoras – modais,
tonais, atonais, seriais, arranjos, permutas e harmonias, regras, ou ausência
delas, do qual buracos, silêncios, rupturas e cortes também fazem parte.
E é nesse campo de possibilidades e de virtualidades, permeado de
sons, movimentos, forças e, principalmente, da grande força
desterritorializante da música, não mais da música, mas das
músicas que demarcam os territórios, em todos os momentos do
atendimento, mesmo quando ainda não se chegou a ambiência ou
mesmo depois, quando os acontecimentos ainda ressoam, que se
desenha o processo musicoterápico (Maranhão, 2007, p. 51).
Num território musicoterapêutico, fatores de desterritorialização
acontecem todo o tempo e também reterritorializações, que não são um
238
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
retorno às antigas forças, mas para um novo, pois quando retornam há
uma mudança de natureza, e nada mais é o que era, há um traçado
entreaberto, um chamado de alguém, alguém entrando, que permite que o
paciente possa se lançar, se abrir para um fluir das potencialidades,
produzindo movimentos e acontecimentos que poderão proporcionar as
mudanças desejadas.
No momento de um atendimento não podemos antecipar
acontecimentos e saber em que momento e espaço na ambiência
musicoterapêutica, “quais desejos, lembranças, impressões, afetos,
expressões, reações, emissões, silêncios, pensamentos, sentimentos,
conclusões, observações, falas, cantos, gritos, relações e interações irão se
tocar e que tramas serão armadas” (Maranhão, 2007, p. 53).
Quando o paciente e musicoterapeuta inter-relacionam-se através
de sons, músicas e movimentos, há um jogo de multiplicidades que os
funde com o território, no qual sentimentos, razões e memórias podem ser
transformados numa rede, tornando audíveis forças não sonoras,
acontecendo a ambiência sonora.
Um território pode começar a ser demarcado antes mesmo da
procura por atendimentos num processo com musicoterapia, quando
ocorre uma desestabilização na vida de um indivíduo ou grupo,
questionamentos, desordens de causas diversas, e faz-se necessário
vislumbrar aberturas nessa situação que necessita de transformações,
compondo a ambiência musicoterapêutica em seus vários territórios.
Deleuze & Guattari (1997) traçam um panorama ao qual podemos
recorrer na busca de uma compreensão com relação a esse período
anterior a procura por tratamento:
Ora o caos é um imenso buraco negro, e nos esforçamos para
fixar nele um ponto frágil como centro. Ora organizamos em
torno do ponto uma 'pose' (mais que uma forma) calma e estável:
o buraco negro tornou-se um em-casa. Ora enxertamos uma
escapada nessa pose, para fora do buraco negro (Vol. 4, p. 117).
Nos diferentes momentos que envolvem um processo
musicoterapêutico, um o círculo traçado anteriormente pode ser
entreaberto, permitindo que o indivíduo se lance, como se, em função das
forças em obra que ele abriga, o próprio círculo tendesse a abrir-se para um
futuro.
239
Ambiência sonora em musicoterapia
Esses territórios são de fato um ato, feitos de ações e expressões,
de aspectos ou porções de meios, que criam interfaces todo o tempo, que
se comunicam, e do qual emergem relações, acontecimentos, sons, músicas
e movimentos que são o material de trabalho do musicoterapeuta, nas
ambiências sonoras.
240
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Assim como Smith (2015), mencionando os objetos mediadores
de Benenzon que ajudam na comunicação do paciente com o
musicoterapeuta:
O objetivo do terapeuta é comunicar-se com seu paciente e, para
tanto, Benenzon (2012, p. 289) apresenta alguns mediadores: o
som, os instrumentos musicais, a música, as pausas e o silêncio, os
títeres (marionetes), as máscaras, os lápis e os pincéis, as cores, o
teatro, a pintura e a escultura, a poesia, a dança, a narração, o
canto, o movimento, nosso corpo e sua prolongação. “Mas
também deveríamos incluir todas as expressões do corpo que se
convertem em mediadores, como o olfato, o gosto, a textura e a
temperatura” (p. 73), completa a autora.
Todos os componentes nos territórios demarcados, se
transformando e transbordando sons e músicas e se atualizando nos
acontecimentos, como meio que desenha os territórios, que passa e
perpassa umas nas outras tantas músicas, que desterritorializa com sua
força intensa e coletiva, "que atravessa a natureza, os animais, os elementos
e os desertos não menos do que os homens" (Deleuze & Guattari, 1997,
Vol. 1, p. 103).
Tendo a música como fonte, podem se apresentar e emergir
formas, cores, intensidades, temporalidades, movimentos, gestos, nuanças,
repetições e diferenças. “Música que se apresenta de modo rizomático,
plena de multiplicidades, se atualizando nos acontecimentos sonoros no
território musicoterápico podendo tornar audíveis forças não sonoras”
(Maranhão, 2007, p. 80).
O emergir do som, ao se pensar a música deixando o terreno da
musicalidade para abarcar o das sonoridades, é a ambiência sonora no
território musicoterapêutico, sons que emergem num atendimento e se
apresentam das mais variadas formas e matérias, audíveis ou não, podendo
se fazer notar ou não, aos observadores. Coelho diz, Maranhão (2007):
Desta colisão emerge a matéria sonora complexa que tem força de
duração, de intensidade, de silêncio; ela é autônoma, não
referencial e heterogênea porque não tem mais como unidade o
som, uma vez que ele é um meio de captura para outra coisa.
Assim, Ana Léa nos coloca na proliferação deste encontro,
sonorizando a passagem da música, deixando o terreno da
musicalidade para abarcar o das sonoridades (p. 11).
241
Ambiência sonora em musicoterapia
A ambiência sonora na musicoterapia, plena de sonoridades,
acontece, muitas vezes, de formas diferenciadas dos padrões musicais
tradicionais, e nem sempre é calcada nos parâmetros rítmicos, melódicos e
harmônicos da música tonal ocidental, nos levando a pensar sobre o que é
música em musicoterapia. Iazzetta (2001) é um autor que muito fez o
exercício de pensar e tentar definir o que é música concluindo que,
Decifrar o que é música parece que nada mais resultaria do que
no exercício de criar uma armadilha na qual apreenderíamos
apenas uma parte de nossa questão. Qualquer definição de
música representaria, quando muito, a definição de uma música
em particular, ou ainda, apenas o ponto de vista restrito e
particular sobre o assunto (p. 6).
Um dos aspectos cruciais ao pensarmos a música em
musicoterapia é o aspecto cultural. O modo como definimos o que é
música no mundo ocidental, nem sempre se assemelha a conceituação
dada por outros povos, outras culturas, outras épocas, e devemos,
portanto, tecer considerações, ao chamar de não-música qualquer coisa
que não faça parte de territórios tão rigidamente demarcados,
principalmente pela música tonal ocidental.
Nas ambiência sonoras na musicoterapia nosso pensar sobre a
música acontece de forma ainda mais diferenciada, nos levando a repensar
as definições e conceitos com relação à música, ao qual Bruscia (2016)
apresenta a dimensão do desafio:
O desafio para os musicoterapeutas é que as definições existentes
de música por aqueles que estão fora do campo não captam como
a música é efetivamente concebida e praticada no setting
terapêutico. Existem muitos fatores operando dentro de um
contexto clínico que determinam como a música é usada e
consequentemente o que os musicoterapeutas acreditam que
deveria ser incluído dentro das fronteiras da “experiência
musical” (p. 113).
É importante na musicoterapia, pensarmos e repensarmos as
músicas, e, principalmente, a ideia de música e as histórias da música, para
ampliarmos a escuta da ambiência sonora, refletindo como os sons podem
se dar na ambiência, como se pensa e se escuta a musicoterapia hoje, e o
campo de possibilidades e virtualidades dos territórios
242
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
musicoterapêuticos, permeado de movimentos, forças e sons. “O som é
aquilo que se atualiza como som, mesmo que não seja produzido por
ondas sonoras ou percebido auditivamente” (Ferraz, 1998, p. 158).
Iazzetta (1997, p. 50) nos auxilia a considerar essa questão e
apesar da enorme força que ainda exerce em nossos dias a música tonal,
que acaba por fazer o papel do divisor-de-águas, do isso é, ou não é música,
buscamos na música contemporânea diferenciadas visões de música, novos
conceitos, denominações que ampliem a forma de pensar as sonoridades
nos territórios musicoterapêuticos. A partir do século XX, os
procedimentos musicais tornam-se múltiplos e o material composicional
se expande exponencialmente, podendo-se observar a música não apenas
através parâmetros clássicos (altura, duração, intensidade, timbre), mas
nas transgressões e negações desses parâmetros.
Outro fator a ser considerado na música tradicional, popular, é o
que ouvimos nas rádios atuais, impregnados do hábito de esperar
esquemas identificáveis – ritmos cíclicos, pulsos estáveis, repetição de
formas e cadências, padrões preestabelecidos de composição, que nem
sempre acontecem nas ambiências musicoterapêuticas.
As ideias de música, possíveis e inimagináveis, todo o processo
musical da humanidade, todos os aspectos culturais, têm ressonâncias
diretas e indiretas na musicoterapia; afinal, a música delimitada, ampliada,
recortada, conceituada ou não, é o material de trabalho nas ambiências
musicoterapêuticas, e é nela, com ela, através dela e por ela que o
musicoterapeuta pode demarcar seus territórios.
Algumas experiências musicais como as de Schöenberg, Eric
Satie, Claude Debussy, e posteriormente Igor Stravinsky e Edgard Varèse,
dentre tantos outros, deixaram, ao seu modo, de seguir as regras da música
tonal, nos dando parâmetros para compreender a complexidade das
ambiências sonoras nos territórios musicoterapêuticos.
Com esses e outros compositores a música ocidental toma novos
rumos, desregra, o sistema tonal se rompe e são criados novos conceitos e
denominações de elementos musicais como: “ultracromatismo,
microtons, glissandi (deslizamento de som sem subdivisão cromática),
clusters (aglomeração de notas vizinhas), nebulosas de feixes
probabilísticos, músicas aleatórias e indeterminadas” (Wisnik, 1989, p.
193).
243
Ambiência sonora em musicoterapia
As músicas são muitas, não há mais só uma ideia de música, e
nessa rede vamos compondo as ambiências sonoras da musicoterapia.
Pierre Schaeffer58 (1993, p. 343) e diversos compositores que
seguiram sua linha de pensamento/ação, tinham propostas sonoras
amplas, que abrangiam uma gama de sons que pudesse não só incluir, mas
ir além dos limites musicais tradicionais e seus parâmetros, para poder
classificar os sons da nova música que vinham criando, propondo a escuta
como o princípio gerador do universo sonoro e não como modelo a ser
imitado.
Tais proposições retiraram a questão da escuta do domínio do
senso comum, repensaram a musicalidade passando para o terreno da
sonoridade, ampliaram consideravelmente o material composicional,
vindo à tona silêncios e ruídos, que trazem aos estudos das ambiências
sonoras musicoterapêuticas uma forte base para entender a própria noção
de música implicada nessa questão, não o quadro teórico costumeiro, mas
ampliando teorias e práticas nas experiências musicais.
O grande interesse de Schaeffer, direcionado para o som, pura e
simplesmente, nos dá margem a estudos sobre a matéria sonora presente
nas ambiências musicoterapêuticas. Novos critérios foram identificados
como: massa, grão, fatura, allure e, posteriormente, outras propriedades
foram relacionadas, revelando uma imensa riqueza na matéria sonora,
alterando fundamentalmente a concepção de escuta. Esses critérios,
atualmente, estão integrados à música contemporânea, juntamente com
outros elementos da prática composicional e da percepção musical como:
textura, figura, gesto, tactilidade, impulso, acumulação, dentre outros.
Schaeffer (1993, p. 381) define critérios de matéria, de forma, de
manutenção (ou sustentação) ou variação, que expressam as formas,
durações, dinâmicas, variações, objetos, tessituras, andamentos, uniões e
traços sonoros, voltados para o que ele chamou de objeto sonoro, fazendo
assim com que a ideia de música deixasse o terreno da musicalidade
58
Compositor e pesquisador francês, autor do livro “Tratado dos Objetos
Musicais”, de 1966, no qual propõe um novo sistema musical, baseado na
fenomenologia da escuta. Schaeffer centralizou suas reflexões teóricas em torno
do conceito do objeto sonoro/musical e, com seus colaboradores, criou a música
concreta, mais tarde denominada música eletroacústica.
244
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
(campo das alturas afinadas e da técnica instrumental) para o terreno da
sonoridade.
A partir dessas novas realidades sonoras pode-se chegar a novos
tipos de organização, capazes de incluir todas as categorias de sons
passados e futuros. Isso seria uma organização de energias, de percursos:
percursos entre o som e o ruído, entre relações rugosas e não rugosas de
frequência, entre ritmos periódicos e aleatórios, etc. “As formas musicais
não consistirão mais em estruturas fixas, mas serão forças, dinamismos”
(Murail, 1992, p. 57).
Outras sonoridades que invariavelmente acontecem nas
ambiências sonoras musicoterapêuticas, e precisam ser pensadas, são
o ruído e o silêncio. Barcellos (2012) nos remete à essas
inquietações:
Embora anteriormente ela também cantasse, fazendo
improvisações com letra e com melodia claramente identificáveis,
provavelmente, nem isto nem o discurso verbal eram adequados
para expressar a sua desorganização e ela precisou recorrer ao som
desorganizado, resultado dos instrumentos musicais jogados ao
chão, para narrar sua história (p. 7).
O ruído foi, por muito tempo, visto como desordem e
irregularidade, como um som não desejado, desagradável e estressante em
muitas situações; som e ruído eram vistos até mesmo como realidades
antagônicas. Boulez (1972, p. 41), diz não considerar mais o ruído como
um conceito formal, o que foi recusado, por muito tempo, na música
ocidental; nas obras de Anton Werben e John Cage, ruído e silêncio
passam a ser frequentemente utilizados como matéria musical em
composições contemporâneas. “Não é certamente a diferença do barulho
e do som que permite definir a música, nem mesmo distinguir os pássaros
músicos e os pássaros não-músicos . . .” (Deleuze & Guattari, 1997, Vol.4,
p. 102).
Pensando os ruídos, podem nos vir o silêncio, que acompanha os
musicoterapeutas em muitos atendimentos, quer seja por impedimento
fisiológico/neurológico do paciente, quer seja porque o mesmo não deseja
expressar-se verbalmente, ou através de instrumentos e canções. Barcellos
(1992) apresenta o processo musicoterapêutico de “Dora”, que não queria
se comunicar, negando a se expressar sonoramente, mesmo tendo
condições de fazê-lo:
245
Ambiência sonora em musicoterapia
No primeiro contato que tive com Dora tentei descobrir aspectos
de sua identidade sonora e de seus interesses musicais – músicas e
instrumentos. Dora rejeitava tudo. Negava-se, com movimentos
de cabeça, a segurar os instrumentos que eu lhe oferecia –
pandeiro, maraca e guizos (presos à uma armação de madeira), e
não aceitava cantar as músicas que eu tocava. Enfim, negava-se a
fazer qualquer atividade proposta. (p. 34)
John Cage, um dos principais pensadores sobre o silêncio na
música, escrevendo um livro intitulado Silence (1961), compôs a obra
denominada 4’33’’, na qual o executante se posiciona ao piano e durante
quatro minutos e trinta e três segundos não produz nenhum som,
demonstrando que permanentemente há som à nossa volta, mesmo
quando supomos haver silêncio. Sua obra é a negação do dado musical, ele
nos mostra que silêncio não é a simples ausência de som, mas pode gerar
situações composicionais únicas, dizendo que todo o silêncio está grávido
de som e nenhum som teme o silêncio que o extingue, premissa
importante para refletirmos sobre os silêncios nas ambiências
musicoterapêuticas, que poderiam ser sonoros.
Murray Schafer (1991), no livro O Ouvido Pensante, relata:
“Silêncio é uma caixa de possibilidades. Tudo pode acontecer para quebrá-
lo. O silêncio é a caraterística mais cheia de possibilidade da música, . . .
mesmo indistintamente, o silêncio soa” (p. 71).
Tanto o ruído quanto o silêncio mostram-se plenos de
possibilidades, flexibilidade e relatividade, e o que quer que venha a ser
considerado ruído ou silêncio em alguma circunstância, em outra pode
não ser; e essas são as músicas, material de trabalho do musicoterapeuta,
produzindo forças e possibilidades visando cumprir os objetivos traçados
para os processos musicoterapêuticos. (Bruscia, 2016) diz: “Indivíduos
criam música. Assim a música é sempre original e única para cada
indivíduo que participa de sua criação ou recriação. Ela é sempre
reinventada mais uma vez” (p. 117).
Como menciona Molino (n.d.) "Não há, pois, uma música, mas
músicas. Não há a música, mas um fato musical. Este fato musical é um
fato social total" (p. 114).
Craveiro (1999, p. 10), sugere que nos voltemos para a música,
para nosso próprio estilo e façamos uma 'Musicoterapia Musical', onde a
música aparece como acontecimento, desterritorializando,
246
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
reterritorializando, criando linhas de fuga, gerando novas nuanças, numa
ambiência de devir, numa música que, em nosso fazer e pensar
musicoterapêutico, apresente-se como fonte de onde emergem formas,
cores, intensidades, temporalidades, movimentos, gestos, nuances,
repetições, diferenças, etc. Uma música agenciadora de encontros entre
paciente e musicoterapeuta, que nos conduza por entre os dois,
permitindo-nos jogar o jogo da imanência.
Numa ambiência musicoterapêutica, permeada de sons, músicas e
movimentos, as interações que mobilizam diferenciadas forças, de
diferentes modos, podem ser intensas em vários momentos, de tal
forma que musicoterapeuta, paciente e música, sejam ora
tragados ou suavizados, ora percebam o imperar de sensações, ora
das razões, ora dos sons, reajam ou não às forças, em outras
possam as intensificar, abrandar ou neutralizar, noutras interferir
ou silenciar.
As forças nas ambiência sonoras podem variar profundamente,
permitindo momentos intensos, nos quais é muito difícil o
musicoterapeuta conseguir observar congruentemente os acontecimentos,
pois nesses momentos, inexistem sujeito ou objeto, musicoterapeuta e
paciente. Noutros momentos, as forças podem estar enfraquecidas, e o
observar dos acontecimentos durante um atendimento, podem se dar
mais facilmente, não sendo o musicoterapeuta arrastado pelas forças do
território formado; tudo a depender das forças da ambiência sonora.
Dada essa impermanência, mesmo que se possa pensar ou
preparar um material sonoro-musical para ser utilizado nos atendimentos,
é difícil prever a priori como será aquele atendimentos, as relações, as
reações naquele dia, ou mesmo se poderá ser usado esse material
previamente preparado, pois a música se dá nessas ambiências sonoras, e se
apresenta sob outras formas, em outras escutas, não determinadas, não
conceituadas, não previstas, variando infinitamente como dizem Deleuze
& Guattari (1997): “Tonal, modal, atonal não significam mais quase
nada. Não existe senão a música para ser a arte como cosmos, e traçar as
linhas virtuais da variação infinita” (Vol. 2, p. 39).
São as músicas, plenas de forças, pluralidades e possibilidades, se
dando nas ambiências sonoras dos territórios musicoterapêuticos.
247
Ambiência sonora em musicoterapia
248
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
mesmo que o processo musicoterapêutico já esteja acontecendo há um
tempo.
Após esses momentos, precisamos retomar os acontecimentos
havidos e explicar de alguma forma, reformulando as experiências
vivenciadas nessa rede de interações.
Em outros momentos, o território demarcado pode estar
enfraquecido, as forças de desterritorialização capturadas, ao menos
aparentemente, pode-se perceber recorrências, e então, escutar, observar e
compreender a ambiência sonora no momento que acontece, facilitando
um possível observar do musicoterapeuta.
No processo musicoterapêutico, há momentos de vivenciar, de
envolvimento e, outros, que podem ocorrer durante ou após o término
daquele atendimento, nos quais se pode pensar e refletir sobre os
acontecimentos da ambiência sonora e tomar decisões acerca do processo
em andamento.
Após um atendimento musicoterapêutico, o que se consegue
recordar do que foi escutado, não será exatamente a escuta que ocorreu,
nem aquela mesma experiência anterior ou a escuta da ambiência sonora,
sendo importante registrar as experiências vivenciadas em algum meio
que possa ser reproduzido posteriormente, e não apenas nas lembranças e
retidos pela memória/emoção para posterior análise dos acontecimentos
sonoros havidos, mesmo reconhecendo que aquele momento vivenciado,
jamais será revivido do mesmo modo como ocorreu e cada vez que forem
escutados o serão de formas diferenciadas.
Em seu Diagrama Ontológico, Maturana (2001) distingue dois
modos fundamentais de escutar, conforme o meu escutar e conforme o
critério de aceitação da reformulação da experiência havida. "Não
podemos distinguir, na experiência, entre verdade e erro. O erro é um
comentário a posteriori sobre uma experiência que se vive como válida. Se
não a viveu como válida, é uma mentira" (p. 27). Conclui-se então, que as
verdades não são únicas e as realidades são muitas, tudo depende dos
recursos que se tem para vislumbrar e escutar o acontecimento como tal.
Maranhão (2007) ressalta que o aquilo que se pode pensar estar escutando
é um estrato e o que se pode supor que o paciente escuta, “quase
certamente não é o que foi estratificado por nós, e não poderia, pois na
escuta o indivíduo está efetuando suas próprias correlações” (p.73).
249
Ambiência sonora em musicoterapia
Mais pelos momentos musicoterapêuticos intensos, que
desterritorializam de forma rápida e intensa, mas também para manter o
foco no processo musicoterapêutico em andamento como um todo,
atentos aos objetivos traçados para o mesmo, pensando e repensado as
ações e intervenções, não somente restritos aos momentos dos
atendimentos, vemos a importância da supervisão em musicoterapia, tão
necessária, pois ajuda a ver, escutar, entender e compreender
acontecimentos e pontos cegos, podendo orientar os processos que estão a
ser conduzidos.
O observar do supervisor, um observador que não está presente
de modo direto, muitas vezes, nas ambiências musicoterapêuticas, mas irá
partilhá-los com o observar do musicoterapeuta, ajudará a demarcar
territórios indispensáveis ao cumprimento dos objetivos traçados para o
processo musicoterapêutico em curso.
Um observador que escute o observar do musicoterapeuta, isento
das mesmas contaminações, é de grande valia para uma escuta, livre de
pré-esperas, pré-conceitos e pré-julgamentos nas ambiências sonoras, e
para poder compor o observar do seu próprio observar, pois cada verdade
e cada realidade não são únicas perante o explicar qualquer experiência
vivenciada no território musicoterapêutico, sempre atentos, escutando
outros observares.
Maranhão (2007, p.75) busca em Maturana (2001) a
compreensão sobre esses fenômenos, e considera que as interações que se
acredita poderem desencadear nos outros e em si mesmos, nem sempre se
desencadeiam, devido a complexidade inerente aos acontecimentos, e isso
acontece porque não se tem como distinguir algumas coisas no momento
que acontecem. O risco de equívocos na observação dos acontecimentos
pode ser grande com relação ao que se acabou de escutar ou se está a
escutar naquele instante, “justamente porque somos sistemas
determinados estruturalmente é que não podemos distinguir entre ilusão
e percepção” (p. 74).
Nas tramas da rede de interações que acontecem nos territórios
musicoterapêuticos, os seres humanos, agem segundo suas próprias
correlações internas e não somente segundo o mundo que os rodeia, e na
ambiência sonora ou não, acontece o mesmo. O choro que se segue àquela
escuta não está no som que foi escutado, mas na relação do ouvinte com o
som, o movimento explosivo surgido da escuta daquele som ou música
não está no som ou música, os movimentos se dão na relação indivíduos-
250
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
música-território demarcado; outro observador pode ouvir o mesmo e não
esboçar um movimento sequer.
Como pondera Maranhão (2007):
Tudo depende do jogo de forças no território musicoterapêutico.
O observador, na explicação da experiência vivenciada, não
funciona com a captação de uma realidade externa, mas
relaciona-se com sua própria dinâmica estrutural e, nos seres
humanos, que são sistemas determinados estruturalmente, as
interações só desencadeiam mudanças que estão determinadas
neles mesmos, ou seja, não podemos idealizar um indivíduo e
tentar construí-lo (p.75).
Os sons e as músicas, enquanto perturbação, podem
desterritorializar, mudar a ambiência e permitir as esperadas mudanças de
natureza, desde que estas estejam determinadas em cada um, no tempo de
cada um, pois as relações podem partir do que se percebe, mas como isso se
atualiza nas singularidades de cada um, depende de correlações internas
que acontecem diferenciadamente em cada indivíduo. E como considera
Maturana (2001, p. 64), “O relógio não dá a hora, mas na dinâmica de
relação relógio-observador, aí está a hora. A hora não está no relógio. A
hora está na relação do observador com o objeto observado".
A escuta, nas ambiências sonoras, se dá na relação
musicoterapeuta, paciente, sons, músicas, assim como as horas não estão
no relógio, mas na relação do observador com o objeto observado.
Do pensar de Humberto Maturana, em sua obra Cognição,
Ciência e Vida Cotidiana (2001), pode-se concluir que da organização
autopoiética, se emerge nas ambiências sonoras dos territórios
musicoterapêuticos que as fazem emergir, pois podem sair do campo das
regras e estruturas, pré-julgamentos e pré-esperas, podendo criar interfaces
todo o tempo, que se cruzam, se tocam, se arrastam, se afastam e se juntam
para interagir.
Não há como pensar, nas ambiências sonoras musicoterapêuticas,
pacientes, musicoterapeutas, sons e músicas como sendo fixos, previsíveis,
ou que aqueles acontecimentos esperados, programados, que deveriam
acontecer no tempo que se quer, simplesmente acontecem; pode-se
pensar, seja em qual momento do processo musicoterapêutico for, em
ambiências sonoras nos momentos que seus componentes estão em
251
Ambiência sonora em musicoterapia
interação, em acontecimentos na autopoiese, que ao se produzir,
produzem-se a si mesmos.
Pacientes, grupos, musicoterapeutas, movimentos, sons e músicas
emergem nos acontecimentos sonoros que os fazem emergir, e estão todos
sujeitos a transformações, que sempre estão determinadas neles mesmos,
no tempo e no espaço deles mesmos, demarcando territórios únicos, de
escutas singulares. Ambiências sonoras na musicoterapia, plenas de
possibilidades e multiplicidades, emergem dos sons, músicas, movimentos,
experiências e relações que as fazem emergir.
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Wisnik, J. M. (1989). O Som e o sentido. São Paulo: Companhia das
Letras, 1989.
254
Capítulo 12
59
No Dicionário Aurélio (1975) há o verbete: Medicina – Arte e Ciência de curar
ou atenuar doenças. A Musicoterapia poderia ser dicionarizada como Arte e
ciência de utilizar a música para mitigar o sofrimento humano (físico, mental e
psicológico).
255
Musicoterapia
musicoterapia objetiva desenvolver potenciais e/ou restabelecer
funções do indivíduo para que ele/ela possa alcançar uma melhor
integração intra e/ou interpessoal e, consequentemente, uma
melhor qualidade de vida pela prevenção, reabilitação ou
tratamento”.
No Apêndice do livro, Bruscia apresenta mais de
sessenta definições de musicoterapia, de diversos autores e associações de
vários países, alguns dos quais apresentaram mais de uma definição. Nos
20 anos que decorreram desde o estudo de Bruscia, este número deve ter
aumentado muito. Analisando as definições registradas por Bruscia,
vemos que grande parte fala sobre efeitos da música sobre afetos, emoções
ou mudanças de comportamento. De todas as definições, apenas treze
abordam a comunicação, mas só duas, a de Benenzon e a minha (por
influência de Benenzon), citam especificamente a abertura de canais de
comunicação. Em 2018 a UBAM aprovou uma definição brasileira de
Musicoterapia, que não faz referência à comunicação:
Musicoterapia é um campo de conhecimento que estuda os
efeitos da música e da utilização de experiências musicais
resultantes do encontro entre o/a musicoterapeuta e as pessoas
assistidas. A prática da Musicoterapia objetiva favorecer o
aumento das possibilidades de existir e agir, seja no trabalho
individual, com grupos, nas comunidades, organizações,
instituições de saúde sociedade, nos âmbitos da promoção,
prevenção, reabilitação da saúde e de transformação de contextos
sociais comunitários; evitando dessa forma, que haja danos ou
diminuição dos processos de desenvolvimento do potencial das
pessoas e/ou comunidades
Bruscia ainda nota que as diferenças entre as definições podem
decorrer da área em que o musicoterapeuta trabalha, de seus objetivos e
podem se basear em uma grande variedade de teorias psicológicas. Cita
entre outras, as teorias psicanalítica, existencial-humanista e cognitiva.
Talvez o que me fez pensar sobre a abertura de canais de comunicação
como um objetivo musicoterápico tenha sido o fato de minha área de
atuação ser psiquiátrica e Benenzon, como psiquiatra, ter apontado a
dificuldade de entender o discurso psicótico e ser necessário procurar
outra linguagem, a musical, para estabelecer contato com estas pessoas,
fechadas num mundo particular.
256
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
60
Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders da American
Psychiatric Association
257
Musicoterapia
obrigado a despender energia para tentar negá-los, mas está condenado a
falhar.
Alguns autores desta área consideram que a característica da
alucinação esquizofrênica é ser verbal, e não um distúrbio ligado aos
órgãos dos sentidos, como sugere a classificação fenomenológica. O sujeito
remodela os símbolos linguísticos da cultura como meio de evitar contato
com o outro.
Do ponto de vista comportamental, Watzlawick e outros (1981)
acham que o esquizofrênico tenta “não comunicar” Mas como a
incoerência, o silêncio, a imobilidade ou outras formas de negação são em
si uma comunicação, o esquizofrênico defronta-se com a tarefa impossível
de negar-se a comunicar e negar que esta negação é uma comunicação. As
visões são diferentes mas têm em comum o reconhecimento da
dificuldade de comunicação do e com o psicótico. Torna-se necessário,
portanto, romper a barreira de incomunicabilidade levantada pelo
paciente, se quisermos entrar em contato com ele e trazê-lo de volta ao
convívio social. A música poderia ser útil para romper esta barreira? A
música é uma linguagem?
258
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
denota, um significado. Fora da convenção linguística não há qualquer
correlação entre a palavra e aquilo que represente. O laço entre
significante e significado é arbitrário, de acordo com a convenção
semântica de cada língua, mas torna-se necessário para quem fala. Em
cada lingua determinado significante denota (ou denomina)
obrigatoriamente um significado. A relação é direta e rigidamente fixada
pelo código.
A rigidez da linguagem verbal é abrandada pela relação de conotação. O
par significante-significado denotativo torna-se o significante de um
significado acrescentado. Houve época, no passado, em que a palavra
avião significava mulher bonita. Jakobson (1970) afirma que o principal
meio de comunicação é a linguagem verbal. Watzlawick acrescenta que o
uso da linguagem tem duas faces complementares, que chama
comunicação digital e analógica. A digital é o uso das palavras e seus
significados de acordo com as regras da língua. A analógica é toda a
linguagem não verbal que acompanha a fala – expressões faciais, inflexão
da voz, ritmo e cadência das palavras. Além disso, afirma que quando a
relação é o ponto central da comunicação, confiamos mais na linguagem
analógica porque, enquanto as palavras, como já vimos, são sinais
arbitrários sem correlação com o que representam, a comunicação
analógica é algo “como coisa”. Todos nós percebemos as expressões faciais,
as entonações da fala, que refletem emoções e sentimentos embora não os
nomeiem. Na expressão de afetos, as intensidades, durações, alturas, que
constituem a “música da fala”, são de fundamental importância. A mesma
frase pronunciada com entonações diferentes é percebida de maneira
diferente.
Apesar de díspares em relação à psicose, há um consenso entre as
diversas concepções teóricas sobre os distúrbios do discurso, notadamente
a separação entre o significante e o significado. O psicótico atribui aos
significantes significados diferentes do uso comum. Além disso, as
alterações da linguagem esquizofrênica não têm um código único. Cada
doente parece reinventar seu próprio código, mesmo que em todos os
códigos estejam presentes perturbações semânticas (neologismos,
paralogismos) ou sintáticas (regras de estruturação das palavras no
discurso). Esses distúrbios tornam extremamente árdua a tarefa de
abordar o esquizofrênico por meio de terapias verbais. Se pretendemos
utilizar a música para interação e comunicação com o cliente, precisamos discutir
259
Musicoterapia
se ela possui características de um código e se seus elementos constitutivos podem
configurá-la como linguagem.
Numa definição simples, a música é a organização de relações
entre sonoridades, simultâneas ou não, no decorrer do tempo. Sons (e
silêncios) são combinados e encadeados entre si, formando ritmos,
melodias e harmonias.
O ritmo é a ordenação do movimento e forma um elo entre
tempo e espaço. Na música são, basicamente, a duração e a acentuação das
sonoridades que vão formar o ritmo. A duração define o andamento (sons
curtos - ritmo rápido, sons prolongados - ritmo lento). A acentuação
permite distinguir uma pulsação (uma sequência de sons iguais) de um
ritmo binário, ternário ou qualquer outro, em que um dos sons é
acentuado com maior intensidade que os demais. As combinações de
durações e acentuações formam os diversos ritmos, permitindo perceber
claramente a diferença entre um samba, uma marcha ou uma valsa.
A melodia é formada pelos intervalos entre alturas de sons que se
sucedem em movimentos ascendentes ou descendentes, ou seja, uma
sequência de sons ora mais graves ora mais agudos. A melodia é o
desenvolvimento horizontal da música. A harmonia se compõe pela
superposição de intervalos sonoros, os acordes que se encadeiam no
decorrer da composição. É seu aspecto vertical.
Essa divisão é apenas didática. Os três elementos (ritmo, melodia
e harmonia) estão interligados na música e cada um deles contribui para a
apreensão dos demais. Melodia e harmonia não podem existir sem ritmo,
uma vez que pressupõem sucessão e movimento. A linha melódica e a
distribuição dos acordes indicam as acentuações do ritmo, tornando
desnecessária maior intensidade em um dos tempos. Outro componente
da maior importância para imprimir o caráter da música é o timbre, que
caracteriza a sonoridade de cada instrumento (ou cada voz, humana ou
não). A seleção e combinação de timbres dão o “colorido” da peça musical.
Existem ainda outros aspectos, mas não cabem ser discutidos aqui.
Pode-se, portanto, afirmar que criar música implica em selecionar
e combinar sons e seus parâmetros (alturas, intensidades, timbres e
durações), que vão formar unidades mais complexas (ritmo, melodia e
harmonia), cuja fusão e desenvolvimento vão constituir a peça musical.
Do ponto de vista de organização e estruturação a música apresenta
analogia com a linguagem verbal.Na linguagem verbal, como exposto, um
determinado signo ou palavra denota (denomina) um conceito. A palavra
260
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
é significante e tem como par indissolúvel o significado. O par significante
/significado muitas vezes torna-se um novo significante que corresponde a
um significado conotativo. Como exemplo, a palavra broto tem o
significado denotativo de início do crescimento de uma planta. Seu
significado conotativo é pessoa jovem.
E na música? Se toda linguagem é informativa, o que é
comunicado pela música? A música preenche a outra função da linguagem
verbal – significar?A música não denomina coisa alguma, na linguagem
musical não existe a correspondência com um conceito, portanto não
existe o par indissolúvel da linguagem verbal – significante/significado
denotativo. Foi proposto pelo musicoterapeuta francês Guiraud-Caladou
(1983) o termo musicante para o significante musical, distinto do
significante verbal, por não fazer referência a conceitos, não denotar
significados. Mas se todo significante exige um significado, qual seria o par
do musicante?
A partir de pesquisas e estudos realizados entre 1982 e 1988 no
Instituto de Psiquiatria da UFRJ (Moura Costa e Negreiros,(1984);
Moura Costa, Negreiros e Azevedo, (1988); Moura Costa [2010]),
podemos levantar a hipótese de que o significado da música é a expressão
de afetos, conotados e não denotados. Logo a música seria significante.
Seu par seria conotativo de relações de afeto e a significação musical seria
de ordem emocional. Existe uma legião de nomes respeitáveis no meio
musical que apoiam ou se opõem a esta ideia. Não cabe aqui esta polêmica,
mas podemos citar, a título de exemplo, como opositores Juan Carlos
Paz(1976) e o compositor Stravinsky que condenam veementemente esta
ideia, afirmando que música é somente música. Por outro lado,
compositores como Copland e Shoenberg a apoiam, afirmando que a
música expressa e desperta estados de espírito, emoções, afetos.
Voltemos a Watzlawick que afirma que o uso da linguagem tem
duas faces complementares, que chama comunicação digital e analógica. A
digital é o uso das palavras, a analógica é toda a expressão não verbal que
acompanha a fala. Diz ainda que na expressão de afetos confiamos quase
exclusivamente na comunicação analógica – expressões faciais, inflexão da
voz, ritmo, cadência das palavras, que podemos denominar “música da
fala”. Catão (2019) afirma que o bebê percebe na linguagem a voz, não o
sentido do que é dito. No início da vida, o que é incorporado pelo bebê é a
voz e sua musicalidade. No decorrer do tempo, começa a decodificar seus
significados.
261
Musicoterapia
Nas pesquisas anteriormente citadas, desenvolvidas no IPUB,
verificou-se que pessoas “normais” e “esquizofrênicas”, submetidas à
audição de diversos trechos musicais, atribuíam-lhes os mesmos afetos e
fantasias. Os grupos diferiram porque os “normais” se referiam mais
objetivamente ao trecho, enquanto os “esquizofrênicos” faziam mais
referências a aspectos subjetivos. Isso demonstra que o musicante
corresponde a um significado conotativo limitado e não aleatório.
Como tentamos demonstrar, a música é uma linguagem com
características específicas que a tornam substancialmente diferente da
palavra. Embora a música seja significante, caracteriza-se basicamente por
ser não referencial, isto é, não denominar coisa alguma. Embora não
denote significados, a música possui um sentido atribuído pelo intérprete
ou ouvinte, conforme sua história ou o momento que vive. Este sentido é
dado pelas conotações ligadas à área afetivo-emocional. Viu-se nas
pesquisas que não existem diferenças significativas entre pessoas normais e
psicóticas na atribuição de significados conotaativos à música. A
possibilidade de atribuição de sentido pelo sujeito é mais ampla do que na
linguagem verbal, mas não irrestrita por estar intrinsecamente ligada à
estrutura formal da música e ao tecido musical. Daí se depreende que a
música pode ser usada como linguagem terapêutica.
PRAZER E TERAPIA
262
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
ou de tristezas. Quando se passa de uma tristeza para uma alegria há uma
modificação positiva do estado do corpo e da mente, quando se passa de
uma alegria para uma tristeza ocorre o contrário. As variações de alegrias
ou de tristezas acompanham nossa vida mental, e cada ideia é conectada às
imagens sensoriais e aos afetos. Freud (1981) assume que a atividade
psíquica no seu conjunto tem por objetivo proporcionar prazer e evitar o
desprazer, sendo este um dos princípios que regem o funcionamento
mental. O prazer é, deste modo, o princípio regulador do funcionamento
mental, e desde o início da vida busca-se evitar o desprazer. (talvez por isto
a dor seja o alerta para o perigo – algo a ser evitado) A experiência do
prazer é o suporte para enfrentar situações frustrantes.
Na teoria psicanalítica, o prazer é ligado inicialmente à realização das
funções vitais. É a primeira gratificação que o recém-nascido tem, quando
suas necessidades básicas, como a alimentação, são satisfeitas. Este é o
primeiro investimento para levar o bebê à realidade. Mas o bebê, mesmo
quando não precisa se alimentar, começa a apreciar o ato de sugar o seio
materno. Segundo Aberastury (s/d), além das necessidades fisiológicas, a
voz materna é importante neste início da vida. Diz que esta voz é sentida
como leite que entra pelos ouvidos, o que depreendeu ouvindo seus
clientes psicanalíticos que reviviam experiências precoces. Isto é
confirmado por Catão (2019), ao dizer que o recém-nascido é capaz de
reconhecer a voz materna desde o nascimento e que o interesse por esta
voz é maior do que o de saciar a fome. Acrescenta que é a voz, não o
sentido da palavra, a condição para sua organização psíquica e que a
ligação afetiva mãe/ bebê resulta de uma parceria musical.
Durante a vida o prazer é enriquecido por outros estímulos como
criatividade, apreciação de artes, tocar, dançar, e muitos outros. Diz
Damásio que os principais esforços da neurobiologia e da medicina
deverão ser o de proporcionar o alívio de sofrimentos, não só físicos, mas
também mentais. Mas ainda não foi resolvida a maneira de tratar estes
sofrimentos. Existe a tendência de utilizar medicamentos para eliminar
qualquer desconforto, mas desconhecem-se os efeitos das drogas a longo
prazo. Além disto, se a solução proposta para o sofrimento ignorar as
causas do conflito individual e/ou social, e tratar apenas o sintoma, é
pouco provável que funcione por muito tempo.
Se aceitarmos a hipótese de que o psicótico se retira da realidade
com o objetivo de se afastar de um mundo frustrante e as alterações do
discurso representam uma defesa contra a sociedade e um meio de evitar
263
Musicoterapia
contato com o outro, pelo fato de que a realidade exterior é ameaçadora e
portanto desprazerosa, é importante para sua recuperação que esta
realidade comece a ser percebida como prazerosa e não ameaçadora.Nas
pesquisas citadas,reliazadas no IPUB, observou-se que os pacientes fazem
referências constantes ao prazer usufruído nas sessões de musicoterapia e
raramente se referem a algo desagradável, geralmente ligado a outros
aspectos que não a música. É inegável que o aspecto lúdico, a
espontaneidade, a criatividade, características do processo musicoterápico,
envolvem o prazer. Além disto, a sonoridade introjetada como prazer traz
a possibilidade de relacionamento com a realidade e com o outro, e
posteriormente a inserção no discurso cultural. Neste sentido, podemos
conjecturar que a musicoterapia se mostra eficiente em atuar sobre a
doença mental.
264
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
O núcleo do processo musicoterápico é a ação de fazer música, ou
seja, produzir e organizar sons. A princípio esta produção sonora pode não
ter nenhuma intenção de comunicação, pelo menos no nível consciente,
reportando-se apenas ao prazer sensorial da pessoa que toca e ouve. Se a
pessoa está tocando para si mesma e usufruindo o prazer da própria
música, a defesa contra a possibilidade de contato com o outro cai, ou
diminui substancialmente. O que está em jogo é o prazer de tocar, e não o
compromisso com o comunicar-se ou deixar de fazê-lo. Pode-se observar
com facilidade como muitos pacientes cantam, pelo mero prazer de
cantar, nos pátios e enfermarias de hospitais psiquiátricos. As falas dos
pacientes nas primeiras sessões de musicoterapia são preponderantemente
referentes ao prazer sensorial de “fazer música”, feitas em linguagem
pobre. O paciente não dá mostra de preocupação com o porquê do prazer,
nem demonstra perceber que este seja devido a estímulos vindos de fora de
si mesmo, do mundo exterior.
Alguns exemplos de respostas típicas à pergunta: “O que acharam
da sessão?”
Agradável
Estava boa a farra.
Achei um barato, adorei
Papo encerrado. Achei a sessão gostosa
É ... interessante... gostei...
Não há nos comentários iniciais nada que revele de forma clara a
distinção entre o eu e o outro. Os comentários referem-se apenas ao
próprio sujeito, às vezes tratado na terceira pessoa.
Depois da musicoterapia, a pessoa fica mais alegre, na hora da
janta tem mais apetite.
Num segundo momento, aparecem os primeiros sinais de
distinção entre o eu e o não eu e da percepção da necessidade da existência
de algo exterior ao eu para que haja o prazer. A fruição começa a ser
atribuída à música e, portanto, relacionada a um objeto, como se nota nos
comentários a seguir:
Achei ótimo todas as músicas, adoro música
som é bem manero, tô gostando
Muito animado hoje o tocamento de instrumentos.
265
Musicoterapia
Bacana o som
Achei legal a parte dos instrumentos simples.
Quando o sujeito se torna capaz de reconhecer que o prazer vem
por intermédio de um objeto existente fora de si mesmo (a música e os
instrumentos musicais), passa a colocar-se como agente, como sujeito da
ação. A expressão musical se torna mais rica, e o indivíduo procura
explorar as diversas possibilidades do uso do instrumental.
Vou experimentar todos os instrumentos.
Gostei de tocar forte o atabaque, parei porque a mão estava
doendo.
A sessão foi boa e bum bum (samba enredo) eu gostei. Hoje eu
gostei muito, bacana hoje, gostei do bum bum, cantei
Achei bom, toquei instrumentos, experimentei o coco. Deixei
a visita para vir para cá.
Os comentários demonstram uma consciência clara do desejo de
tocar, cantar, “fazer música”. Note-se que o indivíduo coloca-se como
sujeito da ação e passa a ser o agente do prazer. A fruição não vem por ela
mesma, mas depende de uma ação voluntária e consciente.
Esse momento marca a emergência dos rudimentos de percepção
do outro, do grupo, mediada pela música e instrumentos musicais,
aparecendo ainda rudimentos de atribuição de significado à ação
desenvolvida.
O espaço sonoro é interativo por natureza, uma vez que o som é
percebido pelo próprio sujeito e pelo outro. É, portanto, intrinsecamente
compartilhado e tem a propriedade de comunicar. Tendo o sujeito
vivenciado a fruição da etapa anteriormente descrita, em que evolui do
prazer do fazer para o fazer do prazer, começa a encarar a música e os
instrumentos musicais como representantes ou substitutos do outro.
Surgem então as primeiras referências, embora de forma indireta,
aos demais membros do grupo, às vezes envolvendo, às vezes excluindo o
próprio sujeito.
Foi bom, cantaram “Máscara Negra”
Cantaram “Bandeira Branca”
Começaram do “ai, ai, ai, ai” no meio da música.
266
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Achei boa, muito barulho, muito som internacional, o que
tocamos aqui.
A gente misturou um pouco música e ponto de terreiro.
Ótimo.
Percebe-se, de forma inequívoca pelos comentários, que a música
intermedia a relação com o outro, desempenha um papel de objeto
intermediário da relação grupal com a participação do próprio sujeito, o
que sugere um nível ainda precário de consciência do relacionamento
interpessoal que está ocorrendo.
A importância da música parece decisiva nesta fase, mediando,
facilitando e criando condições favoráveis à vivência e conscientização das
relações interpessoais dentro do grupo.
Isto aparece nos comentários:
Fico calado, mas participo.
Devia ter troca de instrumentos.
Mesmo calado, o indivíduo escuta e usufrui da ação grupal, sente-
se membro do grupo. Quando reconhece a música como representante do
relacionamento com o outro, começa a sentir a necessidade de ordenar,
harmonizar a produção musical, de fazer música que tenha sentido.
O instrumento que mais gosto é o pandeiro, mas não sei
tocar direito de forma forte e fraca. Toco na Igreja que nem
palma.
Enquanto não se conhece o instrumento é difícil até tocar.
Eu tô batendo na intuição, não sou acostumado a tocar
instrumento.
A preocupação com a execução indica um início de atribuição de
significado ao fazer musical. Não é mais qualquer som que dá prazer. O
som tem que ser organizado como linguagem, tanto para fazer o prazer,
quanto para comunicar-se com o outro.
Sobressaiu alguns instrumentos. É importante nivelar o som.
Faltou isto música, comunicação, canto.
Foi legal, organizou-desorganizou, organizou, desorganizou.
Achei bom, se organizasse mais seria melhor.
A vivência prazerosa presente nas primeiras fases conduz os
pacientes a um momento subsequente, que se caracteriza pela referência
clara à existência de outras pessoas no grupo. Neste momento é evidente a
267
Musicoterapia
existência do desejo de escutar o outro, a princípio enquanto agente que
faz música.
Os exemplos que se seguem ilustram esta ocorrência.
Essa menina sabe muito samba.
Gostei das músicas que ela cantou.
Gostei das músicas de E.
Gostei do que ele cantou. Eu não cantei.
Toquei para eles cantarem.
Achei o som seco, porque cada um tocou por si e ninguém por
ninguém.
Posteriormente começam a ocorrer referências aos
relacionamentos intergrupais, já sem a mediação da música. O sujeito
pode agora se relacionar diretamente com e falar diretamente sobre as
outras pessoas do grupo.
Você está doente? Você está triste, nunca te vi assim.
Cada vez melhor, já estou me entrosando.
Fiquei triste porque a moça saiu atrás de J.
pai da E. chegou, por isso ela não veio.
Foi bom. Estava com dor de cabeça e vocês respeitaram.
Nesta fase, o paciente já é capaz de falar de si mesmo, de seus
sentimentos, suas emoções, suas relações interpessoais dentro e fora do
grupo. Durante o período de internações pode-se observar, usualmente,
apenas um esboço deste processo. Nos pacientes de ambulatório, que
passam um período mais longo de tratamento, tal forma de comunicação
torna-se a tônica. Vai ocorrendo, cada vez mais, um aprofundamento no
sentido de introspecção, de autoconscientização da forma de estar no
mundo e de se relacionar com as pessoas, a sociedade e a cultura a que o
sujeito pertence.
Seguem-se alguns exemplos deste fenômeno, em falas de
pacientes internados.
Você está doente e eu também.
Foi menos animada que no outro dia, estou com sono. Acho
que era eu que estava menos animada.
Eu participo, mas só Deus sabe como estou por dentro.
Deixa eu concluir: estou rindo por fora e chorando por
268
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
dentro, porque lembro dos meus filhos. Não consigo
esquecer.
Eu aqui estou cansada do hospital. Lá fora vou enfrentar
dificuldades. Claro, aqui dentro muito mais. Um tira a
roupa, ela leva choque, sujeira, fico horrorizada, quanto
tempo estou aqui.
Aqui não é para ensinar nada, é para extravasar. A
musicoterapia ajuda a pôr para fora nosso nervosismo, nossos
recalques. A música acalma.
Concluímos poder afirmar que o processo musicoterápico
começa com a vivência do “prazer do fazer”, meramente sensorial, ligado à
audição e à psicomotricidade. Há então uma pequena modificação, mas
que se reveste da maior significação por revelar o início do reencontro
com a própria identidade. O paciente começa a colocar-se como agente,
como sujeito da ação de “fazer o prazer”, embora ainda para si próprio. A
aceitação de sua produção musical pelo grupo leva-o à conscientização da
existência da relação com o outro e posteriormente à possibilidade de
comunicar-se explicitamente, em linguagem verbal, com os terapeutas e o
grupo.
Esse processo não é linear, havendo paradas, retrocessos e mesmo
insucessos com alguns pacientes. No entanto, em termos de evolução
grupal, nota-se que os comentários vão se sucedendo no decorrer do
tempo através das fases descritas. As referências ao “fazer música” estão
sempre presentes, por ser este o cerne do processo musicoterápico, mas as
falas sobre os próprios sentimentos, emoções, conflitos, tornam-se
constantes e numericamente superiores nas fases mais adiantadas da
terapia. As incoerências do discurso desaparecem e os sintomas psicóticos
diminuem consideravelmente, passando a ser encarados como problemas
a serem resolvidos.
MÉTODO ARC
(AÇÃO/RELAÇÃO/COMUNICAÇÃO)
269
Musicoterapia
próprios. Levantamos a hipótese de que este seria o desenvolvimento
habitual do processo musicoterápico. No entanto, verificamos que as
definições de musicoterapia, em sua grande maioria, não mencionavam a
comunicação e não encontramos descrições semelhantes da evolução dos
pacientes. Isto levou à suposição de que o desenvolvimento de nossos
pacientes era decorrente do método e procedimentos utilizados.
A partir da prática clínica descrita, propomos o método
Ação/Relação/Comunicação (ARC) para a terapia de pacientes
psicóticos.
Segundo Lalande (1967):
Método – “Caminho pelo qual se chega a um determinado
resultado, ainda que este caminho não tenha sido fixado de antemão de
modo deliberado e refletido”. Ou ainda “o uso de procedimentos que se
podem observar e definir por indução, seja para praticá-los depois com
mais segurança, seja para criticá-los e fazer ver sua invalidade”.
Procedimento – “Maneira de atuar habitualmente utilizada em
métodos científicos. A palavra é usada comumente no plural, indicando os
passos que devem ser dados de forma regular.”
O método ou caminho por nós utilizado não havia sido fixado
previamente. Ao observar os procedimentos empregados na prática
clínica, verificamos que os resultados eram positivos e poderíamos adotá-
los sistematicamente.
Quanto aos termos ação, relação e comunicação, adotamos os
seguintes sentidos:
Ação – capacidade de realizar alguma coisa voluntariamente
(contrapondo-se ao imobilismo ou à movimentação sem propósito
do psicótico).
Relação – ligação e interação do sujeito com as pessoas que o
rodeiam e com o meio que o cerca (contrapondo-se ao isolamento social
do psicótico).
Comunicação – ato ou efeito de emitir, transmitir e receber
mensagens por meio de métodos e/ou processos convencionados, quer
através de linguagem falada ou escrita, quer através de outros sinais, signos
ou símbolos.
O método ARC, para pacientes esquizofrênicos, foi criado a
partir do trabalho com grupos. É um método clínico não-diretivo,
270
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
baseado no fazer musical que é intrinsecamente interativo, envolvendo na
música o grupo, cada paciente e os musicoterapeutas.
O objetivo do método ARC é tentar propiciar, por meio da
música, outras formas do sujeito esquizofrênico ser e estar no mundo,
atuando sobre os sintomas negativos da doença: diminuir a anergia (falta
de energia, perda muito grande de iniciativa) e a anedonia (falta de
prazer), estimular o pragmatismo, propiciar novas formas de circulação
social e tentar favorecer a comunicação verbal mais de acordo com o
código socialmente aceito.
A não-diretividade destina-se a dar liberdade de escolha ao
paciente esquizofrênico, que tem sua capacidade de iniciativa diminuída.
A escolha livre de instrumentos, músicas e a disposição do espaço (a sala é
arrumada pelos pacientes) concorrem para aumentar a iniciativa e,
consequentemente, o pragmatismo. A liberdade de escolher, ao invés de
acolher a direção dos musicoterapeutas, é importante para pessoas com
grande limitação no seu dia-a-dia. Afirma Noone (2009) que a experiência
da escolha é importante porque expressa e define a identidade, que no
esquizofrênico está comprometida.
Como exposto, a música é um código específico que se constitui
em uma linguagem que permite emitir, transmitir e receber mensagens.
Além disto, as canções empregam concomitantemente a linguagem
musical e a linguagem verbal, ajudando a transmitir o que a pessoa deseja
expressar, ou seja, implementando sua comunicação.
Procedimentos
271
Musicoterapia
O grupo é aberto, isto é, o paciente que abandona o grupo, por
qualquer motivo, é substituído por outro. Idealmente deve ser constituído
por oito pessoas, podendo chegar a um máximo de 12, o que permite à
dupla de musicoterapeutas ter uma visão do grupo e de cada sujeito. Em
princípio, a faixa etária deve ser compatível. No entanto, grupos com
variedade de idades podem ser muito ricos para a aceitação da diversidade
de costumes, pensamentos e preferências musicais, embora mais difíceis de
manejar. A sala de musicoterapia deve ser ampla o bastante para acomodar
o grupo, e conter bancos ou cadeiras suficientes para que todos possam
sentar-se. Os pacientes ajudam na disposição do espaço, arrumando as
cadeiras ou bancos. É interessante haver um espaço no centro da sala para
movimentações corporais.
O instrumental, escolhido pelos musicoterapeutas, deve
constituir-se de instrumentos que sejam parte da cultura local,
especialmente os de percussão, pela menor dificuldade de execução, e pelo
menos um instrumento harmônico. Procuramos evitar instrumentos de
sopro, por motivos de higiene. Os instrumentos musicais devem ficar
expostos e acessíveis para a escolha do paciente.
Sessões
As sessões devem ocorrer a três ou duas vezes por semana, para maior
continuidade do tratamento. Menos do que isso, uma falta do paciente vai
ocasionar um grande espaço de tempo entre uma sessão e outra, causando
descontinuidade. Cada sessão, com duração de 60 a 90 minutos
(dependendo do número de participantes) tem dois momentos. O
primeiro de expressão sonoro-musical, com cerca de 45 minutos a 1 hora,
e o segundo, com duração de 15 a 30 minutos, de comentários para
clarificação do que foi feito por cada paciente na primeira parte da sessão.
Os musicoterapeutas não planejam as sessões, mas desenvolvem as
atividades de acordo com o que é trazido espontaneamente pelo grupo.
Ação
273
Musicoterapia
iniciadas pelos sujeitos, como canções ou danças, podem levar, ou não, a
novas intervenções dos musicoterapeutas.
Os musicoterapeutas podem modificar as sugestões dos
pacientes, ou sugerir alguma coisa diferente quando percebem a
necessidade do grupo ou de algum sujeito. Como diz Queiroz (2003), o
principal na experiência musical é aquilo que se experimenta na presença
da música. A ação musical, o fazer música, centro e impulsionador do
processo musicoterápico, no método ARC, precisa ser revestida de prazer
para contrapor-se a outro sintoma negativo, a anedonia esquizofrênica.
Nas pesquisas citadas, chamaram a atenção dos pesquisadores as
frequentes alusões ao prazer feitas nos comentários finais da sessão por
pacientes esquizofrênicos, imersos em um profundo sofrimento mental,.
Foi possível observar que havia para os pacientes um prazer do fazer, no
momento inicial da terapia, mas não a consciência de que este prazer era
decorrente de sua ação, ou seja, que a música era produzida por eles.
Como afirma Backer (2004), os sons não têm conexão com o paciente,
permanecendo fora dele. Num segundo momento, há uma evolução para
o que denominamos fazer do prazer, quando o paciente passa a perceber
que sua ação produz a música. O prazer do fazer, sentido pelos pacientes
no primeiro momento, propicia esta evolução para a percepção de que é
necessária sua própria ação para que este prazer possa existir.
Relação
274
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
rodeiam e com o meio que o cerca), e pela comunicação, que são
intrinsecamente interligadas.
Como assinala Barcellos (2009), no Brasil, a recriação, ou
seja, a reprodução ou interpretação de canções, é a experiência
musical predominante na clínica musicoterápica. Segundo Queiroz
(2003), na canção, as palavras e a fluência das notas atuam juntas. A
soma de qualidades da música e da linguagem verbal dão o poder
terapêutico da canção.
A vivência musical em grupo favorece a ressocialização. Tocar,
cantar, ouvir a si próprio e ao outro, escolher as canções, algum
instrumento e a forma de tocá-lo, e ter a sua expressividade acolhida pelo
musicoterapeuta e pelo grupo, facilitam as interações interpessoais.
Comunicação
275
Musicoterapia
o termo narrativa para aquilo que opaciente expressa e acha que a
narrativa musical, produz significados. Assim sendo, o musicoterapeuta
poderá ter alguma compreensão do que o paciente comunica.
Verificou-se que a capacidade de reprodução das letras das
canções é preservada, sem o aparecimento dos distúrbios observáveis no
discurso esquizofrênico, o que aponta para a manutenção do vínculo
musical com a cultura, mesmo em pacientes com perda grave de outros
laços, como hábitos de higiene, por exemplo. Esta preservação é
importante porque a música entrelaçada à palavra fornece indicações mais
claras sobre o que o paciente tenta comunicar.
276
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
semelhante ao que foi observado na parte musical da sessão. Cabe ao
musicoterapeuta clarificar o que foi dito por cada paciente. A clarificação
consiste em levar o sujeito a aprofundar seus comentários, passando de
uma afirmação inócua para chegar ao que efetivamente pensou e sentiu.
CONCLUSÕES
277
Musicoterapia
musicoterapeutas visa compartilhar o que perceberam, e paulatinamente
estimular o paciente a aprofundar aquilo que expressou. Com o emprego
de método e procedimentos adequados, é possível abrir canais de
comunicação com o paciente psicótico e aliviar parte do sofrimento
causado pelos sintomas negativos da doença, para os quais ainda não
existem medicações.
REFERÊNCIAS
278
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Freud, S (1981). La Perdida de la Realidad en la Neurosis y en la Psicosis.
In Obras Completas, tomo III (pp. 2745-2747). Editorial
Biblioteca Nueva.
Guiraud-Caladou, J.M. (1983). Musicothérapie, Parole des maux –
Réflexions critiques.Van de Velde.
Jakobson, R, (1970). Linguística e comunicação. Cultrix.
Lalande, André (1967). Vocabulário Técnico y Crítico de la Filosofia. El
Ateneo Editorial.
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280
Capítulo 13
MÚSICA E MUSICALIDADE
MÚSICA
281
Música e musicalidade
Em nossa cultura, essas são experiências que vivemos na música
ou que associamos a ela: música como arte, entretenimento, prece, gosto
pessoal, terapia e pano de fundo de várias atividades. Essas são formas
reconhecidas da música integrar nossas vidas, entrelaçando-se com
interesses, finalidades e intenções de uso.
Embora sejam utilizações da música, elas não a definem. A
natureza da música previamente à aplicação em atividades humanas e usos
específicos é o intuito de minhas investigações.
Se a música é sempre criação humana, ela é criada de acordo com
seu interesse de uso e, portanto, isso poderia defini-la. Exemplo dessa visão
é considerar que ela nasceu dos gritos primais de defesa e acasalamento, a
qual é expressa por autores como Révész (2001, p. 231) e outros (Brown,
2000; Geissmann, 2000; Slater, 2000). Como coadunar o fato de a música
existir enquanto criação humana e querer estudá-la em sua natureza prévia
à utilização humana?
Primeiramente, a natureza da música não deve ser confundida
com os sons da natureza, tais como
ouvir o rumorejar da brisa nas árvores, o murmúrio de um riacho,
o canto de um pássaro... Esses sons da natureza nos sugerem uma
música, mas ainda não são, em si mesmos, música... Concluo que
elementos sonoros só se tornam música quando começam a ser
organizados, e que essa organização pressupõe um ato humano.
(Stravinsky, 1996, p. 31).
O agradável dos sons da natureza não é música, embora possa ter
inspirado o deleite humano com os sons. A natureza da música está em
outra parte da natureza sonora.
Ao estudar a natureza primeira da música voltamos o olhar para a
matéria-prima física que lhe dá corpo: os sons e as leis que regem sua
formação. A música é feita de sons, antes de tudo o mais; sons que existem
como fenômeno no mundo exterior (Zuckerkandl, 1973, p. 12). Esses
sons são organizados em padrões sonoros, afirmam alguns pesquisadores,
entre eles, Révész, (2001, p. 219) e Stravinsky. Música são “sons
humanamente organizados”, diz Blacking (2000, p. 3). Música são sons e
estes são um fenômeno físico.
Ao estudar o som do qual a música é feita pode-se partir da
perspectiva da física, para então acrescentar-lhe as perspectivas artística,
criativa, cultural, etnográfica, sociológica e psicológica. Desse modo
282
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
abordamos tanto o aspecto ‘som’ quanto o aspecto ‘humanamente
organizado’, a ver se esta soma leva ao estudo completo da natureza da
música. A conceituação que postula a música como sendo ‘material
sonoro mais concepção humana’, quer dizer, ‘acústica + cultura’, é
resumida com clareza por Pinto, em artigo a respeito da música no
candomblé:
Falando-se de antropologia do som, ou sonora, dois elementos
surgem à primeira vista: o som enquanto fenômeno físico e,
simultaneamente, inserido em concepções culturais, e, do outro
lado, a música propriamente dita, isto é, o som "culturalmente
organizado" pelo homem (humanly organized sound, cf.
Blacking). Os dois parâmetros, a acústica e a cultura, ou seja, o
som e as sonoridades, respectivamente, estão presentes na pesquisa
etnomusicológica do século XX. (Pinto, 2001)
Ao assumir essa formulação, assumimos que a música é formada
por ‘acústica + cultura’. Assim, ao estudar música, ficamos confinados a
nos inclinar a um lado ou outro: estudar acústica (que existe sempre sob as
mesmas leis) ou estudar a cultura na qual a música é feita (diferente em
cada contexto geográfico, temporal, sociológico, etnográfico e cultural).
A música é composta por sons físicos e é composta dentro de uma
dada cultura humana. Não há música que não seja feita a partir da
natureza física e de uma cultura. Na divisão em duas partes, sendo os sons
regidos por leis sempre as mesmas, torna-se inevitável que o estudo da
música no que concerne ao seu sentido e significado, assim como seu uso
nas atividades humanas, faça sentido quando são estudadas suas
características particulares em diferentes grupamentos humanos, o que é
referido como a “música propriamente dita”, na citação de Pinto, pois a
acústica não nos ajuda a distinguir os diversos padrões musicais dentre os
diferentes povos: suas leis são gerais e imutáveis, como o são as leis da física
– e sabemos que não é assim com a música.
Por outro lado, o caráter de uma dada cultura está presente em
todas as suas outras manifestações juntamente como está presente na
música: no vestuário, linguagem, simbologia pictórica e corporal,
elementos construtivos, hábitos, padrões de comportamento, símbolos
religiosos e do pensamento etc.. O caráter de uma dada cultura, embora
presente também em sua música, não a define enquanto música. Os dados
culturais contribuem para lhe dar conteúdo, caráter e forma, mas não nos
283
Música e musicalidade
falam da natureza da música – falam da natureza da cultura manifestada
através de sua música.
Estranhamente, dentro desse quadro bipartido, não encontramos
a música nem na cultura nem na acústica. Os dados culturais não são
exclusivos da música, estão presentes de um modo ou outro nos vários
elementos de um grupo cultural, assim como os dados acústicos não dão à
música seu caráter musical particular; são gerais.
Queremos aqui conhecer a música não do ponto de vista de um
físico estudioso de acústica, nem do ponto de vista do estudioso dos
conteúdos simbólicos de uma cultura, mas conhecer a natureza da música
do ponto de vista daquele que faz música, “do homo musicus, do homem
como músico, como ser que requer música para realizar-se plenamente”
(Zuckerkandl, 1976, p. 3). O conceito do homo musicus é de que
o homem é um animal musical, isto é, um ser predisposto à
música e com necessidade de música, um ser que para sua plena
realização precisa expressar-se em tons musicais e deve produzir
música para si mesmo e para o mundo. (p. 7-8)
O que o ser humano sensível percebe nos sons que o leva a
trabalhá-los a ponto de criar música e fazer dela uma parte significativa de
sua existência?
De algum modo, aquilo que diferencia a música de outros feitos
humanos deve ser encontrado em seu caráter acústico, em diferença dos
feitos humanos que têm caráter visual, olfativo, discursivo, intelectual etc..
Em outras palavras, a música não pode ser feita sobre qualquer material
físico, como outro qualquer sobre o qual humanos deitam suas
reivindicações, ou a matéria-prima da música poderia ser a pedra, o linho,
a madeira, o pensamento ou a cor, sem que a mudança do material
causasse qualquer modificação sobre aquilo que lhe é colocado pelos
humanos.
A acústica provê as leis gerais do som e não propriamente da
música. E aqui temos uma pista para adentrar a natureza da música. O
som no qual começa aquilo que denominamos música é um tipo
particular de som: aquele que tem uma altura definida, quer dizer, som ou
284
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
onda sonora cuja vibração tem um padrão definido, denominado nota ou
tom musical. 61
Petraglia afirma que “os tons, a matéria prima básica do fazer
musical, configuram-se e se diferenciam entre si graças ao fato de
possuírem, cada um, uma bem definida frequência base ou fundamental”
(2010, p. 54). Essa característica define os tons em termos físico-acústicos
e leva obrigatoriamente a outra característica: cada tom é acompanhado
por sons parciais que acompanham a sonoridade do tom básico. Cada tom
traz em si uma constelação de outros tons, que vibram o dobro da
vibração do tom fundamental, e três vezes mais que o fundamental, e
assim por diante. Vibram dentro de uma ordenação definida na qual os
tons coadjuvantes estão em determinada proporção de vibrações em
relação ao tom fundamental. Há uma ordem nos tons que soam a partir
do tom fundamental. Esta é uma característica acústica sem qualquer
acréscimo humano: nós a encontramos na natureza.
Paul Valéry se refere ao encontro na natureza de “algumas
formações naturais extraordinárias, notadas aqui e ali... como um som
puro ou um sistema melódico de sons puros no meio de ruídos, assim um
cristal, uma flor, uma concha se destacam da desordem comum” (2007, p.
95). Cristais, flores e conchas inspiraram a espécie humana a fazer arranjos
em direção ao que consideraram belo, recolhendo materiais na natureza
que trouxessem em si mesmos, explicitamente, algo em sua forma que
apontasse para a beleza ou possíveis belezas, isto é, para uma noção de
ordem que não se encontra alhures tão clara. Entretanto, o “sistema
melódico de sons puros no meio de ruídos” encontrado pela espécie
humana em seu ambiente natural, pareceu conter possibilidades ainda
maiores do que esses outros itens. Um sistema de ordenação da forma
pode ser percebido em uma única flor, concha ou cristal. Quando se
colocam lado a lado diversas flores, conchas ou cristais, a ordem implícita
destes itens pode formar combinações interessantes ao olhar. No entanto,
um conjunto de conchas justapostas não forma um sistema de conchas; o
sistema de diretrizes de forças que formam uma concha está presente em
61
Na cultura eurocêntrica, a esmagadora maioria da música feita utiliza esse
padrão. A exceção ocorre em parte da música erudita feita a partir dos anos 20 do
século passado. Na música de outras culturas, embora existam também exceções,
em geral a música é feita a partir de tons e suas relações.
285
Música e musicalidade
cada uma delas individualmente, não cria um sistema de relações entre
elas. O sistema de sons puros, no entanto, está fundamentado justamente
nas relações entre os vários sons, ou tons, e não encontra paralelo nas
demais formas físicas encontradas na natureza. Valéry se refere, dentre o
que nos deparamos na natureza, a um sistema melódico, mas se refere a um
cristal, uma flor, uma concha.
O sistema encontrado nos tons é formado por tons decorrentes
do tom fundamental que o acompanham, os sons harmônicos, que
ocorrem sempre na mesma proporção vibratória. O ser humano
encontrou na natureza física do som (e esta ainda não é sua natureza
musical, convém ressaltar) uma tendência à proporção, à inter-relação e ao
entrelaçamento consonante das partes em relação ao todo, de maneira
como não se encontra em nenhum outro evento natural. Este fato parece
ter ido de encontro a um sentido humano que levou pessoas, nas mais
diferentes épocas e contextos, a organizar as alturas sonoras dos tons
segundo sistemas nos quais eles estão em relação: as escalas musicais. As
escalas são sequências de tons dentro do campo tonal de uma oitava.
Mesmo sem ter meios para mensurar frequências sonoras, o
homem dos primórdios da humanidade de algum modo percebeu essa
espiral de sons, pois nas escalas encontradas nas várias culturas, os sistemas
de tons têm relação direta ao menos com os dois primeiros dentre os
harmônicos: a replicação do tom fundamental uma oitava acima e a
quinta deste tom (conforme a nomenclatura utilizada na música
ocidental). A oitava e a quinta estão presentes em grande parte da
constituição das escalas de tons. É esse sistema espiralado que a espécie
humana encontrou pronto na natureza e, a partir dele, fez o que
denominou ‘música’.
Esse encontro se deu de uma maneira que não pode ser resgatada
através do tempo. Pode ter acontecido por meio da percepção intelectual
ou sensível, nunca saberemos; pode ter acontecido por um acaso depois
repetido, uma acurada investigação intelectual ou pura satisfação
sensorial. Este encontro pode ter se iniciado por esses caminhos ou por
outros, em diferentes povos. Contudo, sabemos que onde há ser humano,
há música, feita pela elaboração de tons de alturas definidas. Podemos não
saber como ou por que este encontro aconteceu, mas sabemos que quando e
onde aconteceu, o ser humano passou a fazer e experimentar música.
286
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Há algo mais, além de ‘acústica + música’. Há um terceiro fator
intermediador desses dois, presente na natureza e revelado pelo ser
humano: um sistema de vibrações tomado como material de base. Um
tom com seus harmônicos não é ainda um sistema criado, não é música; é
natureza física. É, por assim dizer, um embrião de sistemas possíveis. O
sistema de tons ou notas musicais que os seres humanos criaram não é
mais apenas acústica, embora esteja nela enraizado. Nas culturas
conhecidas nas quais há música, se tem o registro de escalas musicais, isto
é, de sistemas de tons relacionados entre si. Não se fala da música
pertencente a uma determinada cultura, sem falar das escalas musicais
próprias dessa cultura.
A proporção entre tons encontrada na série harmônica é um
dado acústico, proporção fixa que nos é dada a conhecer pelo estudo da
física dos sons. Entretanto, o que o ser humano fez com e a partir dessas
proporções não é dado pela acústica, não nos é obrigado por uma lei física.
Não importa em qual cultura e em qual tempo, o ser humano
experimentou as relações entre tons, ora reafirmando a série harmônica ora
jogando contra ela, criando um sistema de tons a partir da natureza
acústica, o qual não é mais apenas lei física. Este, a meu ver, é o ponto
inicial da música: a criação humana de um sistema de tons, não
importando quais proporções escolheu para compor esse sistema – pois
que em diferentes culturas as proporções escolhidas são diferentes, e há
razões para isso.
O motivo pelo qual o ser humano experimentou os tons a partir
da percepção de que eles buscavam se relacionar, ora causando a sensação
de contraste, ora de consonância ou completude, de “tensões e soluções”
(Langer, 1980, p. 386), de “direcionalidade, apontar além de si mesmas,
gravitação de um tom em direção a outro... a atração, o dar direção, o
apontar para si mesmo” (Zuckerkandl, 1973, p. 34) talvez não possa ser
compreendido dentro do quadro de necessidades de sobrevivência e
continuidade da espécie. O ato criativo, que chamei de experimentar,
deverá ter nascido de uma necessidade expressiva humana para além de
comunicar uma necessidade urgente advinda de uma situação de
sobrevivência imediata. Quero dizer, pode não haver uma razão prática
para criar sistemas de tons musicais. Talvez não se trate de fortalecer um
chamado ou grito, nem um canto humano de acasalamento. Não seria
necessário criar um sistema de relações sonoras para realizar tais funções.
O uso dos atributos acústicos do som pela simples elocução instintiva
287
Música e musicalidade
daria conta suficientemente. Pássaros chamam a atenção de seus parceiros
sexuais com sons canoros sem que tenham para isso criado sistema algum.
A espécie humana seria capaz de fazer o mesmo.
O ser humano criou a música ao se apropriar de um sistema
natural e recriá-lo enquanto sistema para uso seu. Nada na física nos
obriga a criar um sistema de tons musicais. Não obstante, algum tipo de
sensibilidade no ser humano o fez criar escalas de tons. Este sentido
perceptivo é o que denomino musicalidade, enquanto atributo da espécie
humana. Este é o dado que o ser humano insere no mundo dos sons:
antever um sistema e, estabelecendo-o, utilizar-se dele. Isso não pode ser
creditado a uma lei física nem a uma cultura específica. É o que o homo
musicus, o ser humano enquanto espécie musical (Zuckerkandl, 1976, p.
8), traz à luz da audição.
Em contraposição a esta visão de musicalidade, Révész coloca o
conceito como sendo excludente, isto é, afirma que algumas pessoas são
musicais e outras não.
O conceito de musicalidade é um dos mais controvertidos na
psicologia da música. ... É usado frequentemente no sentido de
“ser musical” (apreciar ou ter habilidade em música) como
antítese do conceito de “não-musical” (desabilidade ou
indiferença à música). Este lida com uma classificação tipológica
do musical e do não-musical. (2001, p. 131)
Por outro lado, para Blacking, o conceito de musicalidade que ele
assume, apoiado no convívio com o povo Venda, é contrário à ideia de
exclusão social, na qual
ser uma audiência passiva é o preço que alguns devem pagar por
ser membros de uma sociedade superior cuja superioridade é
sustentada pela habilidade excepcional de alguns poucos
escolhidos... É sobre tais suposições que a habilidade musical é
favorecida ou anestesiada em muitas sociedades industriais
modernas. Estas suposições são diametralmente opostas à ideia
Venda de que todos os seres humanos normais são capazes de
fazer música. (2000, p. 34)
Que deve ter havido algum apelo para a espécie humana
encontrar nos sons suas características, que este apelo pode se alinhar com
alguma necessidade instintiva, que motivos práticos possam também ter
288
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
contribuído para se instituir a música como expressão humana, não
contradiz a linha de pensamento aqui colocada. A questão é que a música
vai muito mais além do feito primário de um chamado instintivo
reforçado por leis acústicas. Pode-se apoiar no sistema natural dos sons
para fazer isso, mas não é preciso criar um sistema a partir do sistema
natural para fazer isso. E a criação de um sistema de tons está realizada
plenamente já na música dos primórdios da humanidade ou na música
considerada rudimentar de tribos ditas selvagens. Nelas, o homo musicus
deu o passo decisivo, a música existe enquanto tal.
289
Música e musicalidade
pentatônica, e assim por diante. As proporções inerentes a cada escala
geram a constelação de forças típica de cada escala, que é o que ouvimos
nas melodias dessa escala. Não é o hábito humano que acrescenta, por
associação, conteúdos simbólicos às escalas (Zuckerkandl, 1973, capítulo
IV). As forças e propensões conduzidas pelos tons são ouvidas
diretamente neles.
Paul Nordoff fundamenta sua visão de música nestas ideias e
comenta com seus alunos: “Ao falar a respeito dos tons, ele [Zuckerkandl]
diz que cada tom é ‘um evento’ (p. 12). Este é um conceito maravilhoso!
Um tom é ‘um evento’” (Robbins & Robbins, 1998, p. 32). Quando se
refere a arquétipos musicais, Nordoff fala das diferentes escalas utilizadas
por diferentes povos e culturas, e afirma cada uma ser um arquétipo
musical (p. 134-37).
A música é uma presença no mundo exterior, condutora de forças
que se configuram de maneiras diferentes conforme os tons estão
organizados dentro de uma escala ou outra. Quem entra em contato com
a música, ouvindo-a e respondendo a ela, está em relação com uma
presença prenhe de estados dinâmicos.
O uso da música no trabalho musicoterápico de Paul Nordoff foi
explicado por Ken Aigen em termos de sua estética (1998, p. 236). Afinal,
sua produção musical dentro do processo musicoterápico tinha um
sentido estético altamente desenvolvido. Para Aigen, “a experiência
estética responde a questão do significado” da música (2007, p. 126).
Com isso ele trouxe a música de Paul para dentro do campo da
representação e da forma enquanto símbolo. No entanto, Paul aponta
para Zuckerkandl como base de seu pensamento musical e
musicoterápico, e este afirma que a estética nada tem a dizer sobre música:
“estes conceitos [estéticos], enraizados nos sistemas filosóficos e suas
exigências, não são nativos do mundo tonal; a experiência musical em
nenhum parte sugere isso” (1973, p. 14). A radicalidade do pensamento
de Zuckerkandl presente na atuação musicoterápica de Paul Nordoff
parece não ter sido compreendida por Aigen. Este, em suas explicações do
trabalho de Paul, reconduziu a música ao campo da representação e do
símbolo.
A conceituação de Zuckerkadl para a música difere por completo
daquela que se apoia na linguagem verbal para construir uma definição de
música. Segundo este autor, os tons musicais dizem nada, não se referem a
nada no mundo objetivo nem no mundo subjetivo: “os tons não se referem
290
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
a coisa alguma, nunca podem significar algo, dizer algo – alguma coisa
individual definida, expressável e distinguível em palavras” (p. 371). Os
tons musicais nos levam a experimentar possibilidades de “tensões e
soluções” de partes aspirando à completude e, assim nos fazer
experimentar propensões do existir – não apenas da existência interior
subjetiva, como também da existência do mundo exterior.
A música não é descritiva de alguma coisa, não é referenciada a
coisas do mundo, seja exterior ou interior, como as palavras o são. Na
música experimentamos propensões, tensões e suas soluções, presentes nas
diferentes escalas, sem que estas se refiram a isto ou aquilo no mundo,
mesmo que este seja o dos sentimentos, como postulou Langer ao dizer
que “as estruturas tonais a que chamamos música têm uma íntima
semelhança lógica com as formas dos sentimentos humanos” (p. 28). Os
tons musicais e suas relações trabalhadas pela ação humana oferecem
experiências que não estão situadas “além dos tons” (Zuckerkandl, 1973,
p. 372), como é próprio à palavra nos levar a referências além delas
mesmas.
Os tons que soam a partir de um instrumento musical ou
entoados sem palavras, não se referem a algo exterior a eles, como o faz a
palavra. Os tons musicais nos levam a experimentar eles mesmos, não a
apontar para algo para além deles (p. 372). A música não descreve algo,
não aponta para algo nem se refere a algo; primordialmente a música é
algo experimentado. Música não descreve, música é.
No início de seu livro Music for Life, o musicoterapeuta Gary
Ansdell evoca a afirmação do músico Charles Ives, “A música não
representa a vida; ela é vida” (2014). Pode soar como frase de efeito, mas é
uma definição primordial da música.
291
Música e musicalidade
A cultura brasileira é periférica à eurocêntrica. Nela encontramos
atividades que se originam de raiz cultural indígena e africana, muitas
vezes mescladas com a cultura europeia. Nesse contexto, encontramos
música atuando enquanto presença e sendo considerada enquanto uma
presença. Ela tem participação decisiva em ritos religiosos, como na
umbanda e no candomblé, para trazer à realidade corporal entes antes
ausentes no ambiente (Queiroz, sem data; 2017; 2015). Encontramos
povos indígenas no Brasil, entre eles os Bororo e os Kîsêdjê, que entendem
música e a fazem enquanto presença e ativadora da presença de seres
dentro de rituais (Queiroz, sem data; Seeger, 2015).
O histórico civilizacional e cultural brasileiro permite, e talvez até
mesmo exija, que o pensamento transborde as fronteiras da música
enquanto se restringindo a ser simbologia representativa, para ser
considerada enquanto presença no mundo dos fenômenos, isto é, “um
tom é um fenômeno do mundo exterior” (Zuckerkandl, 1973, p. 21).
O processo de presentificação do ser por meio da música é
encontrado também na musicoterapia, um campo de vivências bem
distante de ritos indígenas brasileiros ou de ritos religiosos de qualquer
natureza. Seu testemunho traz evidência idêntica, desde outro ângulo.
Embora em musicoterapia não se utilize o termo presentificação, o
conceito não lhe é estranho, pelo contrário.
O musicoterapeuta Brian Abrams, ao desenvolver seu conceito
de música, buscou em autor tão antigo quanto Boetius – fora do círculo
do pensamento eurocêntrico atual – a retomada da liberdade para
considerar a música “como um princípio vivente da própria humanidade”
(2011, p. 115) e propor novo sentido à música na teoria geral da
musicoterapia (p. 118).
Na abordagem Nordoff-Robbins, ou Musicoterapia Criativa, a
descrição do caso Edward (Nordoff e Robbins, 1977, p. 23-36 e as sessões
gravadas, faixas 1 a 3) ilustra como a música do musicoterapeuta ao piano
faz contato com o menino Edward, autista, trazendo-o à sua própria
presença. Outro caso paradigmático dentro desta abordagem é o do
menino Terry, também autista (Aigen, 1998, p. 81-105, faixas 20 a 35 do
CD 1). O auge do processo ocorre quando propõem a canção improvisada
em pergunta “where is Terry” e resposta “Terry is here”.
292
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Ouvimos Terry estimulado a cantar novamente enquanto Paul e
Clive cantam “Terry está __”, deixando de fora a última palavra.
Terry preenche a palavra “aqui” com um longo tom melódico
cantando afinado, e depois faz isso mais duas vezes. O notável
aqui é a ativa participação musical de Terry, a percepção
consciente que lhe permite participar dessa maneira e o interesse
em afirmar sua existência de maneira expressiva e estética. (p. 96)
Outra vez, a música presentifica um ser que antes não conseguia
ou não podia se fazer presente. No caso das duas crianças, devido a
condições limitadoras de sua estrutura psiconeurológica; nas situações
mencionadas antes, do candomblé, da umbanda e de rituais indígenas,
devido a outra condição limitadora: a incorporeidade dos seres evocados.
A música é um evento condutor de forças, uma presença viva e,
sendo assim, é presença que se relaciona com as demais presenças humanas
no ambiente em que soa. A relação se estabelece entre a presença da música
e o ser das pessoas. Esta relação desencadeia a manifestação do ser das
pessoas, aquele aspecto do humano que precede, fundamenta e é a fonte
criadora dos aspectos manifestos da personalidade. É o que Robbins &
Robbins denominam “o ser-dentro-do-self” no qual “vive o potencial de
desenvolvimento criativo” (1991, p 56).
No meu entender, esta visão traz o cerne de natureza da música
para o centro da atuação musical e musicoterápica. É uma visão
encontrada em diversas culturas, nas quais a música é uma presença antes e
primordialmente de representar isso ou aquilo.
MUSICALIDADE
293
Música e musicalidade
relações entre as partes que compõem um todo e de cada parte em sua
relação com o todo ao que pertencem, isto é, é perceber as interações entre
as partes e o todo.
Um exemplo da aprendizagem musical ajuda a entender como é
isso. A relação entre um tom e sua quinta (quinto tom acima) é percebida
muito antes e muito mais facilmente do que se percebe a altura exata do
tom e a altura exata de sua quinta. É o intervalo, isto é, a relação entre um
tom e outro que é percebido. E o mesmo vale para todas as relações
intertonais em nossa escala. Ouvimos um intervalo de segunda ou de
quarta aumentada ou de sétima antes de sabermos quais são os dois tons
que compõem esse intervalo. Ouvimos diretamente a relação entre os
tons.
Isto é assim porque a musicalidade, o sentido que está “por
detrás” da audição dos tons musicais é especialmente sensível às relações
entre as vibrações. Paul Nordoff explora esta capacidade musical nas seis
primeiras aulas para musicoterapeutas que foram registradas e
transformadas em livro (Robbins & Robbins, 1998, p. 1-51). Em especial
o capítulo quatro, A Vida dos Intervalos (p. 32-41).
Mas isso não ocorre somente na percepção das interações tonais.
A musicalidade é um modo de perceber e decodificar a realidade
do mundo, externo e interno. Esse modo de percepção difere por
completo de outros modos humanos de percepção como, por exemplo, a
intelecção verbal.
Este modo de percepção nos coloca em contato com o aspecto do
mundo em que as coisas são unidas por suas relações, com uma dimensão
onde se dá a trama de interações do mundo e no qual as relações compõem
o todo, a unidade.
A musicalidade nos faz perceber como as coisas e pessoas
interagem dinamicamente e também como se dá a proporção dinâmica
entre as partes do todo. Mais do que perceber, faz-nos experimentar e
conhecer as interações em seu estado dinâmico. Musicalidade é uma
percepção cognitiva da música e do mundo, de tudo o que nosso fluxo de
consciência percebe.
A musicalidade nos faz perceber o mundo ao expandir certo
aspecto da sensibilidade humana, de modo que esta se funde às coisas do
mundo (interno e externo), capturando-as à percepção sem quebrar suas
interações, ou mais propriamente, fazendo-nos percebê-las como
294
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
dimensão em que se dão suas interações, de tal modo que os objetos do
mundo não passam pelo processo de delimitação e separação, próprio da
linguagem verbal, e, sim, chega a nós por outro meio, fazendo-nos
experimentar o mundo como um fluxo contínuo.
A intelecção e o discurso verbal são modos de processamento
cognitivo de um tipo que apresenta o mundo desde a sua dimensão na
qual as coisas são delimitadas e separadas. A musicalidade é um modo de
processamento cognitivo de outro tipo, pelo qual os dados do mundo vêm
a nós estando mantida a unicidade original com que se encontram no
mundo.
Com ela, experimentamos o fluxo das forças atuantes em nós
mesmos e no ambiente, de modo a interagir com elas com um sentido de
unicidade, que o meio de racionalização e comunicação habitual – o
discurso verbal – não é capaz. Por meio da musicalidade, nos relacionamos
com aspectos da interioridade humana enquanto estes estão em sua
própria natureza, isto é, em fluxo, sem serem paralisados, delimitados e
separados, isto é, sem serem tirados de sua natureza e representados
parcialmente por meio da palavra. A musicalidade é meio de acesso à
profundidade do ser humano.
A interação musical da musicalidade leva o ser de uma pessoa a
fluir mais viva e intensamente. Seus processos vitais são estimulados a
responder e atuar fluentemente. A atualização do ser dessa pessoa se
processa por sobre os obstáculos que obstruem a naturalidade de seu fluxo.
Os exemplos mencionados de Edward (Nordoff e Robbins, 1977, p. 23-
36 e as sessões gravadas, faixas 1 a 3) e Terry (Aigen, 1998, p. 81-105,
faixas 20 a 35 do CD 1) dão testemunho disso, dentre muitos e em
diversas abordagens de musicoterapia. É como se a música forçasse o
transbordamento do ser, uma abertura das cintas e afivelamentos que o
delimitam e limitam, criando a retomada do fluxo e do movimento,
praticamente forçando sua expansão. Esta tendência ao fluxo, quando
adequadamente conduzida, leva ao desenvolvimento do ser.
Devido à natureza da música e da musicalidade, a musicoterapia
não somente acessa aspectos do ser e da personalidade, mas coloca-os em
movimento de maneira que a linguagem verbal e outros meios de acesso
não o fazem. Relaciona-se com eles em movimento sem paralisá-los como
a palavra o faz, por exemplo, quando um naturalista espeta a borboleta
para melhor estuda-la, mas com isso a mata e impede que tal estudo
reverta numa relação com ela – ela não está mais presente.
295
Música e musicalidade
Nossa relação musical com a música enquanto presença nos
coloca em movimento. Muitas vezes coloca o corpo em movimento,
obviamente, mas também dinamiza a subjetividade colocando-a em um
estado móbil, o qual favorece processos de mudança e transformação da
construção identitária mais do que sua estabilização.
Zuckerkandl afirma:
No caso dos tons, contudo, especialmente os tons da música
instrumental, não há sequer um ser ficcional: a vida dos tons não
é aquela de um ser, mas vida em si, automovimento puro. A
evidência dos tons é inconfundível: há algo como o
automovimento, vida pura, ainda que estejamos relutantes em
admiti-lo. Tudo – os hábitos intelectuais, a lógica, a própria
linguagem – parecem falar contra isto. Nós nos apegamos
teimosamente à noção de que a vida deve ser a vida de “alguém”;
se não é, não é vida em qualquer sentido. (1976, p. 156)
E, levando adiante a ideia de que ao ouvir música ouvimos
automovimento, isto é, movimento auto-animado ou vida pura, ele
continua:
Na música, experimento um movimento animado que não é nem
meu próprio nem de ninguém mais, e o qual eu percebo
diretamente, mais precisamente do que através do intermediário
de um corpo cujo movimento quereria ser – puro
automovimento, não limitado por nenhum corpo, por nenhum
“ser”. O ato de perceber este movimento deveria ser ele mesmo
um movimento. O que o olho não pode alcançar – a saber, a
percepção direta do movimento animado – pode ser alcançado
pelo ouvido. No ato da audição, realidades viventes vêm em
contato direto; ouvindo tons, eu me movo com eles; eu
experimento seu movimento como meu próprio movimento.
Ouvir tons em movimento é mover-se junto com eles. (p. 157)
“Ao ouvir música eu experimento seu movimento como meu
próprio movimento”. “Ouvir tons em movimento é mover-se junto com
eles”. Estas são duas chaves para a compreensão do papel da música e da
musicalidade em musicoterapia. Assim, musicalidade e música são um
modo de conhecimento. São muito mais do que um apelo à beleza,
estética, inspiração, deleite, prazer, espetáculo, show ou ao
entretenimento. A musicalidade não é um dom individual, mas um dos
296
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
atributos básicos do homem; a verdadeira natureza do homem predispõe-
no à música. Na música, o homem não dá expressão a algo (seus
sentimentos, por exemplo), nem constrói estruturas formais autônomas:
ele inventa a si mesmo. Na música, a lei pela qual ele conhece a si próprio
como ser vivo é realizada em sua forma mais pura. (p. 350). Nada
obrigaria a espécie humana a criar música que não para experimentar esse
potencial nela presente.
REFERÊNCIAS
297
Música e musicalidade
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298
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Zuckerkandl, Victor. 1976. Man the Musician. Princeton: Princeton
University Press, p. 370.
Zuckerkandl, Victor. 1973. Sound and Symbol: Music and the External
World. Princeton: Princeton University Press, p. 399.
299
Capítulo 14
MUSICOTERAPIA E BIOÉTICA
INTRODUÇÃO
NASCIMENTO DA BIOÉTICA
De acordo com Beauchamp & Childress (2002, p. 55), “os princípios são
diretrizes gerais que deixam um espaço considerável para um julgamento
em casos específicos [...]”. Existem quatro grupos de princípios básicos:
autonomia (respeito pela capacidade de tomar decisões de pessoas
autônomas); justiça (distribuição de benefícios, riscos e custos de forma
justa); beneficência (provimento de benefícios) e não maleficência
(prevenção que se provoquem danos).
O princípio da autonomia passa pelos seguintes temas:
consentimento informado, esclarecimento, voluntariedade, recusa
informada, veracidade, confidencialidade e tomada de decisão. As
principais questões que surgem são: quem deve decidir sobre quais atos
serão praticados durante o tratamento do paciente? O profissional de
302
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
saúde deve contar com detalhes tudo que vai acontecer ao paciente? Há
necessidade do consentimento do paciente para todos os atos que serão
praticados? (Beauchamp & Childress, 2002).
Não existe uma ausência total de influência para a tomada de
decisão, ou seja, não podemos afirmar que exista uma escolha
perfeitamente autônoma, pois o ser humano é um ser social, por isso pode
ser influenciado por outras pessoas. No entanto, é importante verificar
como ocorre esta influência. Beauchamp & Childress (2002) estabelecem
duas formas de autonomia: positiva e negativa. A autonomia positiva
manifesta-se pelo tratamento respeitoso na revelação de informações e no
encorajamento de decisões autônomas, enquanto na autonomia negativa
ocorre uma coerção para a tomada de decisão
Os autores citados anteriormente diferenciam quatro tipo de
consentimento: consentimento expresso, consentimento tácito,
consentimento implícito e consentimento presumido. No consentimento
expresso, a pessoa age de forma ativa, manifestando sua vontade. No
consentimento tácito, a vontade é expressa pela omissão, pela não
manifestação da vontade. No consentimento implícito, subentende-se a
vontade da pessoa a partir de suas ações anteriores. No consentimento
presumido, a vontade é presumida com base numa teoria geral do bem
humano ou numa teoria da vontade racional.
Para muitas pessoas a musicoterapia é uma nova forma de
tratamento e isso pode contribuir ainda mais com a vulnerabilidade dos
clientes, os quais podem se sentir confusos sobre o que é a musicoterapia,
o que a música vai fazer e quais resultados podem ser alcançados. Uma
importante responsabilidade do musicoterapeuta é reduzir as
vulnerabilidades dos clientes, fornecendo informações sobre o que é a
musicoterapia e o que ela envolve (Dileo, 2000).
Em decorrência do Julgamento de Nuremberg e a divulgação das
pesquisas realizadas nos campos de concentração, passou-se a exigir o
consentimento informado para o paciente e para os sujeitos da pesquisa.
O consentimento informado é definido como uma autorização autônoma
e capaz de uma pessoa que, compreendendo tudo o que vai acontecer no
tratamento ou na pesquisa, consente em participar como paciente ou
sujeito da pesquisa (Beauchamp & Childress, 2002).
O musicoterapeuta deve buscar o consentimento do paciente
para realizar o tratamento. O consentimento é fornecido quando há
informações claras do profissional sobre o processo musicoterapêutico e o
303
Musicoterapia e bioética
paciente concorda com o tratamento, após ter conhecimento sobre o que
ele consiste (Silva Júnior, 2008). O contrato terapêutico é uma das formas
de expressar o desejo e o consentimento do paciente. Barcellos (1999)
comenta que o contrato terapêutico deve ser feito com o paciente antes de
iniciar as sessões musicoterapêuticas e, quando o paciente não tiver
condições de responder às questões feitas pelo musicoterapeuta, deve ser
feito com seu responsável. É o momento de se explicar o que é a
musicoterapia, como será o atendimento e todo o processo terapêutico.
Segundo Dileo (2000), consentimento informado é ser
transparente tantos nos aspectos clínicos, quanto nos aspectos
contratuais. Os aspectos clínicos estão relacionados à descrição das sessões
e limites da confidencialidade, por exemplo. Os aspectos contratuais
incluem opções para o pagamento e cancelamento das sessões. A clareza
no processo de consentimento informado contribui para evitar ações
ilegais ou antiéticas.
O gosto musical é um importante aspecto relacionado à
autonomia do paciente. Cada paciente é único e possui uma realidade de
vida que o levou a apreciar determinado tipo de música. O
musicoterapeuta não pode impor suas preferências musicais, mas sim
escolher o repertório a ser utilizado nas sessões de musicoterapia,
considerando a individualidade de cada paciente, em respeito à sua
integridade e singularidade (Silva Júnior, 2008).
De acordo com Dileo (2000), o terapeuta deve informar sobre
como a confidencialidade será tratada e mantida, os procedimentos que
serão utilizados para a divulgação de informações confidenciais, bem
como o consentimento do cliente para alta devem estar detalhados. O
terapeuta deve fornecer informações sobre o conteúdo dos registros
clínicos, como eles serão mantidos e guardados, por quanto tempo e como
serão descartados. É necessário detalhamento sobre a utilização de
gravações de vídeo ou de áudio envolvendo o cliente.
O princípio da autonomia não é absoluto. Se houver um
confronto entre a decisão do paciente e aquilo que é consensualmente
compreendido pelos demais como melhor para ele, será priorizado o seu
bem, baseado no princípio da beneficência, no qual se exige uma atitude
positiva de beneficiar alguém ou agir de forma a prevenir algum dano.
Com base no princípio da justiça, todas as pessoas têm direitos
iguais ao acesso dos serviços de saúde, em respeito à dignidade da pessoa
humana. Toda pessoa deve receber, pelo menos, os serviços básicos de
304
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
saúde. A justiça como equidade é o modelo do princípio da justiça
(Beauchamp & Childress, 2002).
Nos atendimentos em musicoterapia, o princípio da justiça
refere-se à justa disposição de recursos e tratamento dados a cada paciente,
bem como o acesso aos recursos necessários para o tratamento do
paciente. Dividir igualmente os recursos entre todos, de forma apropriada.
É importante que o musicoterapeuta utilize todos os recursos necessários.
Todos os pacientes devem ter acesso aos mesmos equipamentos e
instrumentos musicais. Também implica em uma não exclusão de
pacientes devido a sua condição social, religiosa, política ou sexual (Silva
Júnior, 2008).
Beauchamp & Childress (2002) relacionam algumas regras que
tem por fundamento o princípio da beneficência:
1) Proteger e defender os direitos dos outros;
2) Evitar que outros sofram danos;
3) Eliminar as condições que causarão danos a outros;
4) Ajudar pessoas inaptas;
5) Socorrer pessoas que estão em perigo.
Os referidos autores fazem a diferença entre a beneficência geral e
beneficência específica. A beneficência geral direciona-se a todas as
pessoas. A beneficência específica é direcionada aquelas pessoas com quem
temos mais aproximação, como parentes, amigos e pacientes. Percebe-se
que a beneficência é mais fácil de ser realizada quando há algum
envolvimento com quem devemos fazer o bem.
A partir da compreensão das diferenças entre beneficência geral e
específica, pode-se afirmar que o profissional de saúde tem obrigação de
oferecer um tratamento benéfico para seu paciente, pois há uma
beneficência específica que gera este dever, diferentemente se a relação não
tivesse sido estabelecida. Assim sendo, é dever deste profissional evitar que
algum dano seja causado ao paciente.
Conforme Toro (2000), as consequências do princípio da
beneficência para o musicoterapeuta são: evitar o mercantilismo; evitar
trabalhar sozinho e buscar a integração com outros profissionais da saúde;
buscar supervisão de seu trabalho e; manejar eticamente todas as técnicas e
habilidades inerentes à profissão.
O princípio da não maleficência conduz-nos à obrigação de não
causar danos aos pacientes. Exige-se que não se faça algo. O princípio da
305
Musicoterapia e bioética
não maleficência envolve uma abstenção, enquanto o princípio da
beneficência requer uma ação (Kipper & Clotet, 1998). Alguns filósofos,
porém, consideram que o princípio da não maleficência é sinônimo do
princípio da beneficência. Por exemplo, Frankena (apud Beauchamp &
Childress, 2002) decompõe o princípio da beneficência em quatro
obrigações gerais:
1) Não devemos infligir males ou danos;
2) Devemos impedir que ocorram males ou danos;
3) Devemos eliminar males ou danos;
4) Devemos fazer ou promover o bem.
Para Beauchamp & Childress (2002) há nítidas diferenças entre
não prejudicar ou não causar dano a alguém (princípio da não
maleficência) e ajudar os outros (princípio da beneficência). Sendo assim,
o item 1 estaria relacionado ao princípio da não maleficência e os itens 2,
3 e 4 estariam relacionados ao princípio da beneficência.
Muitas vezes não existe a intenção do profissional de saúde de
causar dano. É possível que o profissional não tivesse conhecimento que
determinado ato levaria a um prejuízo para o paciente. Na musicoterapia,
o principal instrumento de trabalho é a música e o som, com todos os seus
parâmetros (altura, duração, intensidade e timbre) e elementos (ritmo,
melodia e harmonia). Por isso, devemos ter consciência do poder da
música e sua aplicação para não causar dano ao paciente.
Existe a possibilidade de a musicoterapia ter efeitos negativos
para o cliente. Embora existam poucas contraindicações para a
musicoterapia, foram encontrados na literatura efeitos negativos no uso
da musicoterapia para o manejo do estresse, como reações catárticas,
ansiedade aumentada e aumento da tensão (Dileo, 2000).
Robitscher (1978 apud Dileo, 2000) apresenta potenciais
resultados negativos da psicoterapia, os quais podem ser relevantes para a
prática da musicoterapia, tais como: exacerbação dos problemas e
sintomas do cliente; desenvolvimento de novos sintomas e problemas; uso
indevido ou abuso da terapia pelo cliente, como por exemplo, tornar-se
excessivamente dependente do terapeuta ou do processo terapêutico;
superestimação do cliente de seus recursos pessoais; perda de confiança no
processo terapêutico ou no terapeuta.
Gattino (2015) afirma que, embora muitos artigos relatem os
benefícios da música, não há uma grande quantidade de publicações sobre
306
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
os efeitos iatrogênicos (negativos) da música. Apesar desta pequena
quantidade, o autor categoriza os artigos que tratam dos efeitos negativos
da música em:
1) efeitos negativos da música relacionados a momentos difíceis da
vida;
2) efeitos negativos pela escuta de música que não gostamos;
3) efeitos negativos a partir dos estados alterados de consciência;
4) efeitos negativos da música relacionados a determinadas
patologias;
5) efeitos negativos a partir da exposição de um estímulo musical
repetido e;
6) efeitos negativos relacionados a padrões musicais desconhecidos.
Dileo (2000) destaca a importância de os musicoterapeutas
reconhecerem o fato que os efeitos negativos podem ocorrer mesmo para
os musicoterapeutas competentes. Uma vez que esta consciência é
alcançada, o musicoterapeuta pode tomar a ação apropriada para
minimizar os resultados negativos e tomar medidas para impedir que
ocorram novamente no futuro.
ERRO EM MUSICOTERAPIA
307
Musicoterapia e bioética
Silva Júnior (2008) enumera algumas possibilidades da
ocorrência de iatrogenia em musicoterapia, como aquelas desencadeadas
por:
1) escolhas inadequadas ou inoportunas de métodos, técnicas ou
atividades; consignas não claras dadas ao paciente;
2) aplicação da técnica de forma incorreta; escolha inadequada do(s)
instrumento(s) musical(ais);
3) interpretação equivocada da produção sonora ou musical do
paciente;
4) inação no momento em que o musicoterapeuta deveria fazer
outro tipo de intervenção;
5) escolha do repertório sem critérios científicos; interpretação
equivocada do silêncio do paciente, dentre outras.
De acordo com Brandalise (2014, p. 160), “o erro na prática
clínica do musicoterapeuta se dá quando um musicoterapeuta,
terapeuticamente envolvido em um processo clínico com um paciente ou
com um grupo, a partir de sua intervenção, observa a ocorrência de um ou
mais fenômenos [...]”. Os fenômenos aos quais o autor se refere são as
categorias: musicalidade clínica, relação terapêutica, objetivos clínicos,
interação verbal com o paciente e/ou com a família, documentação e ética
e suas subcategorias.
A partir do conceito de erro médico, desenvolvemos o termo
“erro musicoterapêutico62”, como aquele ato causado pelo
musicoterapeuta no exercício de sua profissão, que gera um dano ao seu
paciente, causado por imperícia, imprudência ou negligência (Silva Júnior,
2008), os quais podem ser prevenidos através do engajamento político,
formação continuada, prática baseada em evidências, supervisão e
autocuidado.
Na imperícia, o profissional de saúde deveria observar as normas
técnicas. Pode ocorrer imperícia quando se acoberta alguém que não está
habilitado para exercer a atividade profissional da saúde ou por imperícia
do próprio profissional. A imperícia está relacionada ao princípio da
62
Em 2008 utilizamos o termo erro musicoterápico para nomear o erro do
musicoterapeuta. Preferimos renomeá-lo de erro musicoterapêutico, para
padronizar a terminologia da musicoterapia, assim como é utilizado nos termos:
processo musicoterapêutico, contrato terapêutico e sessão musicoterapêutica.
308
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
beneficência. Existe a beneficência específica do profissional de oferecer
um tratamento benéfico para o paciente.
Faz-se necessário que o musicoterapeuta esteja engajado
politicamente para o desenvolvimento e defesa de sua profissão, não
permitindo que outros profissionais se intitulem musicoterapeutas, sem
ter a devida formação. Uma forma de engajamento político é a
participação efetiva na associação profissional. No Brasil existe a União
Brasileira das Associação de Musicoterapia (UBAM), com a função de
representar os musicoterapeutas brasileiros e as associações estaduais de
musicoterapia.
A formação do musicoterapeuta é híbrida. Está contida tanto na
área da música quanto da saúde. É fundamental que esse profissional saiba
música e colete informações pertinentes sobre a vida pessoal e clínica de
seu paciente. Assim, se o musicoterapeuta não sabe música, não conhece
particularidades da vida do paciente, características de sua patologia, seu
diagnóstico e prognóstico e não domina os métodos e técnicas específicas
da musicoterapia, não terá perícia para atuar como musicoterapeuta (Silva
Júnior, 2008).
Além da formação inicial, que no Brasil ocorre em cursos de
graduação ou pós-graduação em Musicoterapia, é fundamental que o
musicoterapeuta busque uma formação continuada. Como a
musicoterapia é uma profissão em crescimento, a educação continuada é
necessária não apenas para manter a competência da formação inicial, mas
também para preparar os musicoterapeutas para o trabalho em novas áreas
de atuação, novos métodos e técnicas. A educação continuada ajuda o
musicoterapeuta a manter-se atualizado em conhecimentos e habilidades
(Dileo, 2000).
A formação continuada envolve também o amadurecimento da
relação do musicoterapeuta com a música. Isso pode ser alcançado de
várias maneiras, tais como: estudo, performance, atividades criativas,
usando a música para reduzir o estresse, dentre outras. Aprender a se
alimentar da música pode ser uma estratégia significativa, especialmente
para os profissionais que acreditam no potencial terapêutico da música
(Dileo, 2000).
De acordo com Wilhem (2020), é importante que todos os
musicoterapeutas conheçam os limites de sua competência clínica e
trabalhem dentro desses limites. Formação adequada e educação
continuada são exemplos de competência profissional. O musicoterapeuta
309
Musicoterapia e bioética
pode trabalhar com uma grande variedade de pacientes. Caso o
musicoterapeuta não tenha conhecimento sobre determinada patologia e
aceite trabalhar com o paciente, estará agindo sem ética. Se o
musicoterapeuta não se sente competente para atuar com determinado
paciente, deverá aumentar o seu conhecimento ou indicar o paciente para
um musicoterapeuta que tenha maior competência.
Na imprudência, o profissional de saúde age sem a devida cautela
e expõe os seus pacientes a riscos desnecessários. Ocorre a prática de um
ato que não deveria ter sido praticado. Exige-se que o profissional não
cause dano ao paciente. Esta obrigação de não causar dano ao paciente é a
expressão do princípio da não maleficência (Silva Júnior, 2008).
A imprudência ocorre quando o musicoterapeuta executa
procedimentos em sua prática sem o respaldo científico ou sem
esclarecimento ao paciente ou responsável. O musicoterapeuta coloca o
seu paciente em risco. Ressaltamos a importância da pesquisa científica
para dar fundamentação ao exercício da musicoterapia (Silva Júnior,
2008).
A prática da musicoterapia deve ser baseada em evidências, a qual
é o uso explícito e consciente das melhores evidências de pesquisa para a
tomada de decisões sobre o cuidado dos pacientes (Wheeler & Bruscia,
2016). De acordo com Wigram et al. (2002), a evidência pode ser direta,
relacionada ou através da pesquisa. A evidência direta pode ser fornecida
através da avaliação inicial, intermediária e final. As mudanças observáveis
no comportamento musical relacionam-se as mudanças de uma forma
mais geral. A evidência relacionada pode ser buscada na literatura e em
estudos de caso fornecidos por musicoterapeutas que atuam na mesma
área. A evidência de pesquisa pode ser obtida tanto na literatura quanto
por meio de pesquisa qualitativas e/ou quantitativas.
A prática baseada em evidências surge da elaboração de questões
clínicas, cujas respostas beneficiarão as intervenções. No primeiro
momento, o clínico faz perguntas e consulta de forma sistemática a
literatura científica para encontrar respostas. As questões são guiadas pela
avaliação clínica e contexto do cliente e podem se concentrar em um ou
mais aspectos da prática clínica, como o tipo de intervenção clínica que
atenderia de forma mais eficaz as necessidades do cliente, o contexto
clínico onde a intervenção poderia ser praticada, a frequência e número de
sessões, a orientação terapêutica, os resultados esperados, a relevância e
contraindicações (Baker & Young, 2016).
310
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Na negligência, o profissional de saúde é responsável porque
deixou de fazer algo, quando deveria ter feito. Esta obrigação de fazer está
relacionado ao princípio da beneficência, no qual se exige que o
profissional tome alguma atitude para prevenir um dano. A imprudência
caracteriza-se por uma ação, enquanto a negligência por algo que se deixou
de fazer. A negligência ocorre quando o musicoterapeuta age sem
responsabilidade para com o seu paciente e/ou para com a instituição
onde trabalha.
A supervisão é uma forma eficaz para prevenir o erro. Ela pode
ser fornecida por colegas mais experientes em musicoterapia, por antigos
professores de musicoterapia, por supervisores de musicoterapia ou por
profissionais de áreas relacionadas. A supervisão permite ao
musicoterapeuta ter um feedback objetivo em relação às suas próprias
dúvidas e pode ajudar o musicoterapeuta a ter uma perspectiva mais
precisa de sua competência. A supervisão contínua é uma proteção contra
a incompetência na prática da musicoterapia (Dileo, 2000).
Wilhelm (2020) faz considerações éticas na prática clínica
particular do musicoterapeuta. Vários fatores, incluindo isolamento e
esgotamento, inexperiência ou falta de supervisão profissional podem
explicar o porquê de alguns musicoterapeutas estarem mal preparados
para lidar com questões éticas. Geralmente quando um musicoterapeuta
trabalha em uma instituição, ele conta com suporte de outros profissionais
de saúde que podem ajudar a discutir questões éticas, diferente do
musicoterapeuta que trabalha em consultório particular.
Autocuidado é a busca do equilíbrio biopsicossocioespiritual do
profissional de saúde, reconhecendo a saúde não apenas como ausência de
doença, mas um estado de completo bem-estar físico, mental e social.
Como o musicoterapeuta é um profissional de saúde, é necessário que
esteja bem para poder ajudar o outro. Dileo (2000) enumera o
autocuidado como:
1) gerenciamento do tempo, como por exemplo, equilíbrio entre
trabalho e tempo livre, tempo para família e amigos;
2) autocuidado emocional, como o envolvimento em terapia pessoal
e atividades espirituais;
3) atividades recreativas e de lazer;
4) autocuidado físico, como o controle do estresse, atividade física e
alimentação.
311
Musicoterapia e bioética
312
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
comunicações, assinalando a responsabilidade de quem as recebe
de preservar o sigilo.
Art. 41 – O sigilo protegerá o atendimento em tudo aquilo que o
musicoterapeuta ouve, vê ou de que tem conhecimento como
decorrência do exercício da atividade profissional.
Art. 42 – O musicoterapeuta não remeterá informações
confidenciais a pessoas ou entidades que não estejam obrigadas ao
sigilo por Código de Ética ou que, por qualquer forma, permitam
a estranhos acesso a essas informações.
Parágrafo único: No caso de instituições, o musicoterapeuta
deve zelar para que o prontuário do cliente/paciente/usuário
permaneça fora do alcance de estranhos à equipe, salvo quando
outra conduta seja expressamente recomendada pela direção da
instituição e que tenha amparo legal.
Art. 43 – A utilização dos meios eletrônicos de registro
audiovisual obedecerá às normas deste Código, devendo o
atendido, pessoas ou grupo, desde o início, ser informados e
autorizar por escrito sua utilização e forma de arquivamento das
informações obtidas.
Art. 44 – O sigilo profissional protegerá o menor impúbere,
cliente/paciente/usuário em situação de vulnerabilidade ou
interdito, devendo ser comunicado aos responsáveis o
estritamente necessário para promover medidas em seu benefício.
Art. 45 - O musicoterapeuta deverá autorizar por escrito a
Associação a qual está vinculado a destinação de seus arquivos
confidenciais em caso de sua invalidez ou morte.
313
Musicoterapia e bioética
cliente/paciente/usuário atendido esteja correndo risco ou o
exercício profissional esteja sendo desrespeitado;
Art. 8º - O musicoterapeuta deve trabalhar visando o bem geral
do cliente/paciente/usuário atendido, assim como respeitar a
cultura na qual o mesmo está inserido.
Art. 12 – É dever do musicoterapeuta manter seu material para
atendimentos higienizados e em boas condições de uso,
mantendo e zelando pela segurança do cliente/paciente/usuário
atendido.
Art. 13 – Considerar tanto as possibilidades quanto as limitações
físicas, mentais e emocionais do cliente/paciente/usuário
atendido, desenvolvendo objetivos apropriados para o
atendimento às suas necessidades avaliando constantemente o
desenvolvimento do processo musicoterápico.
Os artigos 9º, 27, 28 e 46 expressam o princípio da não
maleficência.
Art. 9º - O musicoterapeuta deve negar atendimento caso não se
encontre em condições mentais, emocionais, físicas e ou éticas
para fazê-lo, nesse caso, encaminhando para outro profissional.
Art. 27 – O musicoterapeuta, em função da ética profissional,
não deverá ser conivente com erros, faltas éticas, crimes e
contravenções penais praticados por outros na prestação de
serviços profissionais.
Art. 28 – O musicoterapeuta deverá restringir seu trabalho para
sua área de formação e não aplicará nenhuma prática fora de sua
área de competência. Os requisitos e títulos do musicoterapeuta
deverão ser comprovados por documentação.
Art. 46 – O musicoterapeuta não deve divulgar, ensinar, ceder,
dar, emprestar ou vender a leigos instrumentos de avaliação e
técnicas musicoterápicas que permitam ou facilitem o exercício
ilegal da profissão.
O princípio da justiça é conteúdo dos artigos 4º, 11, alínea “c” e
artigo 19.
314
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Art. 4º - O musicoterapeuta deve basear o seu trabalho no
respeito à dignidade e integridade do ser humano, não fazendo
discriminação de nenhum gênero, raça, origem, idade, orientação
sexual, grupo social de pertencimento ou questões clínicas e
crenças.
Art. 11 - São deveres do musicoterapeuta nas suas relações com o
cliente/paciente/usuário atendido:
c) garantir em seus atendimentos, condições ambientais
adequadas à segurança do cliente/paciente/usuário atendido,
bem como a privacidade que garanta o sigilo profissional;
Art. 19 – O musicoterapeuta não deve discriminar o
cliente/paciente/usuário com base em raça, sexo, gênero, origem,
idade, orientação sexual, grupo social de pertencimento ou
questões clínicas e crença.
O Código de Ética da Associação Americana de Musicoterapia
(AMTA) é baseado em cinco princípios. O primeiro principio diz
respeito à dignidade de todas as pessoas. Esse princípio incentiva o
musicoterapeuta a refletir sobre a sensibilidade em todas as interações. O
segundo princípio trata do agir com compaixão com todos, reconhecendo
as próprias limitações. O terceiro princípio é ser responsável. A
responsabilidade é avaliada como um meio para estabelecer confiança e
fortalecer o relacionamento entre profissional e cliente. O quarto
princípio é demonstrar integridade e veracidade, cujo desafio é agir com
verdade e precisão em todas as comunicações. O quinto princípio é
esforçar-se pela excelência. O musicoterapeuta busca melhorar suas
habilidades e conhecimentos de forma contínua, avaliando a força e
aplicabilidade das evidências em todas as áreas da prática profissional e do
comportamento (AMTA, 2019; Potvin et al., 2020).
Apesar de o código de ética ser essencial para a musicoterapia,
Dileo (2000) alerta para o fato de existirem problemas em confiar apenas
nos códigos para a tomada de decisões éticas por três razões. A primeira
razão é que os códigos têm a tendência de serem mais gerais e, muitas vezes
não apresentam soluções específicas para problemas específicos. A
segunda razão é que os princípios éticos dispostos nos códigos podem
entrar em conflito entre si e não fica claro qual é o princípio que deve ser
observado. A terceira razão é que os códigos não se atualizam
315
Musicoterapia e bioética
imediatamente diante de novas questões éticas que surgem. A autora
propõe um modelo para a tomada de decisão ética.
DiMaio & Engen (2020) comentam que existem vários modelos
de pensamento ético para orientar os musicoterapeutas e destacam o
modelo de tomada de decisão ética de Cheryl Dileo, por refletir um
processo completo de pensamento e estar inserido no contexto da
musicoterapia.
63
Tradução do original feita pelo autor deste capítulo.
316
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
6 – Identifique suas próprias crenças, valores e seu papel na
situação, bem como as do cliente
7 – Consulte os colegas, supervisores e todos os recursos
possíveis
8 – Considere como o terapeuta ideal e virtuoso poderia
responder
9 – Gere possíveis soluções, utilizando as alternativas do cliente,
quando viável
10 – Avalie cada solução proposta em termos de possíveis
consequências e tome uma decisão
11 – Implemente a decisão
12 – Avalie a decisão
Ao descrever cada uma das etapas, Dileo (2000) afirma que a
primeira etapa significa decidir se o problema é ético ou não, colaborar
com o cliente na definição do problema, coletar e ponderar os fatos,
determinar quem está envolvido e de que maneira, reunir informações das
pessoas ou partes envolvidas, formular suposições razoáveis sobre o
problema e tomar ou não a decisão de confrontar o problema.
Na segunda etapa são avaliados os direitos, responsabilidades e
vulnerabilidades de todas as partes envolvidas, incluindo a instituição e o
público em geral. São identificados os locais de responsabilidade ética e os
conflitos. Na terceira etapa é avaliado como o terapeuta se sente em
relação ao problema e quais são suas reações emocionais imediatas.
Na quarta etapa são identificados quaisquer conflitos entre
princípios éticos fundamentais, códigos e modelos éticos, legislação e
políticas institucionais, bem como consideradas todas as fontes possíveis
que possam influenciar o tipo de decisão a ser tomada.
Na quinta etapa são questionados se existem aspectos
socioculturais, incluindo as que envolvem gênero, raça, etnia, preferências
sexuais, dentre outras, e se existem fatores particulares nesse contexto que
devem ser levados em consideração ao se tomar uma decisão. Na sexta
etapa interroga-se se as crenças e valores do terapeuta estão em conflito
com as do cliente e se o terapeuta pode integrar essas crenças pessoais e
profissionais.
317
Musicoterapia e bioética
Na sétima etapa sugere-se que seja pedido conselhos de outras
pessoas, preservando a confidencialidade da situação. Na oitava etapa deve
ser perguntado quais são as virtudes que o terapeuta possui ou aspira que
podem ser usadas para tomar uma decisão ética na questão específica e
como o terapeuta ideal responderia.
Na nona etapa é necessário adiar o julgamento ou avaliação
crítica ao tentar gerar alternativas, produzir o maior número possível de
alternativas, permitindo que as ideias fluam livremente, ao invés de serem
governadas por regras e assuntos práticos, combinar e melhorar soluções
para criar novas soluções e restringir a lista de soluções para escolhas reais.
Na décima etapa deve-se criar cenários para várias soluções,
imaginando os melhores, piores, possíveis e prováveis resultados para cada
cenário; determinar quem será beneficiado e quem será prejudicado
(fisicamente, psicologicamente, socialmente, economicamente, etc.) por
cada solução proposta (incluindo o cliente, a família do cliente,
instituição, estudantes, participantes da pesquisa, colegas, profissão,
sociedade e o próprio terapeuta); avaliar as consequências das várias
soluções em termos de efeitos de curto, médio e longo prazo.
Ainda na décima etapa é necessário selecionar uma ou duas
soluções que pareçam o melhor para a situação. Depois de tomar uma
decisão final, a mesma deve ser revisada com um colega, supervisor e com
o cliente. Também é necessário determinar o compromisso de agir sobre a
decisão.
Na décima primeira etapa faz-se necessário estar preparado para
assumir as responsabilidades pelas consequências, manter a flexibilidade,
identificar as áreas nas quais possa estar mais vulnerável e esforçar-se para
minimizá-las, praticar habilidades de enfrentamento e assertividade,
identificar e confiar nas redes de apoio para lidar com o estresse e pensar
nos efeitos a curto e longo prazo para si e para os outros, caso não
implemente a decisão.
Ao avaliar a decisão na décima segunda etapa, é necessário
monitorar, revisar e acompanhar o impacto da ação realizada, obter
retorno dos outros, bem como do cliente. Se a situação ética não for
resolvida deve-se estar preparado para se envolver novamente no processo
de tomada de decisão. Também é necessário assumir responsabilidades
pelas consequências, corrigir quaisquer consequências negativas da
decisão, se for possível, e continuar refletindo sobre a situação.
318
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
CONSIDERAÇÕES FINAIS
319
Musicoterapia e bioética
REFERÊNCIAS
320
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Iniciação à bioética. Brasília, Conselho Federal de Medicina, p. 37-
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Moraes, I.N. (1991). Erro médico. São Paulo: Editora Maltese.
Potvin, N., Flynn, C., Storm, J. (2020). Ethical Decision-Making at
Intersections of Spirituality and Music Therapy in End-of-Life
Care. Music Therapy Perspectives, 38(1), 20-24.
Silva Júnior, J.D. (2008). A utilização da música com objetivos
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Universidade Federal de Goiás, Escola de Música e Artes Cênicas.
Toro, M.B. (2000). Ética y deontologia. In: TORO, M.B. (comp.).
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Wheeler, B.L.; Bruscia, K.E. (2016). Overview of music therapy research.
In: Wheeler, B.L.; Murphy, K. (eds). Music therapy research. 3 ed.
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Wigram, T.; Pedersen, I.N.; Bonde, L.O. (2002). A comprehensive guide to
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London: Jessica Kingsley Publishers.
Wilhelm, K. (2020). Ethical Considerations in Music Therapy Private
Practice: A Review of the Literature. Music Therapy Perspectives,
38(1), 25-33.
321
Capítulo 15
***
322
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
invenções e, também, possui espaços de silêncios. É esse lugar,
aparentemente menos audível, que vamos cartografar.
Uma escrita do silêncio tende a convocar o jogo binário som-
silêncio com sua temporalidade milenar talhada pelas diferenças
geoculturais: silêncio do oriente e silêncio do ocidente. O oriente tem
uma longa jornada trilhada com o silêncio; já no ocidente, o silêncio vem
surgindo aos poucos, e ainda temos muito que compreender.
Quando os sons estão na palavra, silêncio tem configuração de
contração - do latim silentium, silere; calar-se; guardar silêncio; não dizer
palavra, estado de quem se cala ou se abstém de falar.
Quando os sons estão na música, a contração sonora escapa do
negativo e cria lugares de pequenas percepções (Gil, 2005) entre a
presença e ausência; o silêncio na música gera perturbações no tempo e
nos espaços.
Na música ocidental erudita, o silêncio, sempre presente, algumas
vezes é evidenciado em estudos sensíveis e instigantes como na tese de
doutorado O silêncio na música: uma investigação formal e de performance
em obras para violoncelo e piano dos períodos Clássico e Romântico, de
Bielschowsky (2019)64. O autor nos convida a escutar lugares e gestos de
silêncios. Na parte teórica, dialoga com a tese de Wallis Dwight Braman
(1956), intitulada Silence in music, e com o artigo de Hellmuth Margulis
(2007) intitulado Moved by nothing: listening to musical silence. Para esses
autores, o silêncio na música é um dispositivo que se transforma no
contexto histórico e, também, revela a singularidade do estilo do
compositor.
Embora o silêncio na música se desloque no fluxo temporal, há
também uma ativação da dimensão do espaço: em que lugar está o
silêncio?
O espaço, nas suas dimensões de profundidade, largura e altura,
quando perpassado pelas sonoridades se efetua também pela existência de
um lugar, ou seja, os tempos musicais também nos contam sobre um lugar.
64
A tese de Pedro Henrique Carvalho Bielschowsky, além da base teórica, tem
uma narrativa poética derivada da entrevista com professores e/ou intérpretes de
violoncelo (nacionais e internacionais) que descrevem suas experiências nos
espaços de silêncio da música.
323
Quando o silêncio pousa na musicoterapia
Para detalhar as diferentes dimensões, Bielschowsky (2019)
indica os lugares do silêncio na pré-performance, entre os movimentos das
obras musicais, durante a performance (silêncio de percurso) e no pós-
performance.
O espaço pré-performance tem tempo liso que é amorfo e ocupa-
se sem contar (Deleuze & Guattari, 1997): a música vai chegar. Nessa
espera, o silêncio rompe o tempo cronos e ocupa o espaço num jogo que
convoca a escuta para fundar o som; “não existe o som sem que seja
configurado pelo ato de escuta” (Ferraz, 1998, p. 161). John Cage, como
veremos mais adiante, esticou esse vaivém entre o tempo-espaço até o seu
limite. É nesse lugar que o silêncio abre a constelação das escutas, um vazio
imenso de leveza e liberdade (Hanh, 2018).
Quando o silêncio se estabelece entre os movimentos das obras,
ou entre diferentes músicas, opera por quebra das paisagens sonoras e
prepara novos espaços por onde passeia “um ser de escuta”: aquele que liga
momentos, que faz nascer e suspender o tempo, que organiza sobreposição
de elementos, que é atraído por nova paisagem sonora e que realiza
ligações não apenas do compositor, mas também juntando elementos por
sua própria conta (Ferraz, 2015, p. 100).
O silêncio de percurso se estabelece dentro da obra musical e se
apresenta em pequenas porções de contraste na arquitetura do fluxo
sonoro fazendo a função de articulador no realce de fraseados, nos cortes e
finalizações. Mas, às vezes, o silêncio nesse lugar também desencadeia
tensão, suspensão, surpresa, mistério, expectativa (Bielschowsky, 2019, p.
41). Nesse caso, o ser de escuta também se move pelas velocidades dos
afetos.
No ambiente pós-performance, o silêncio abre um amplo espaço
para que os sons, já silenciados, ainda continuem a vibrar. No filme Prova
d’Orchestra, de Federico Fellini (1978), na cena da harpista (Clara
Colossimo, 1922-1994), o personagem de expressão introspectiva
imprime a narrativa “ - Certa vez um menino me perguntou: para onde
vai a música quando você para de tocar? Só as crianças conseguem fazer
essas perguntas”.
É possível que a criança de Fellini siga os trajetos do silêncio pós-
performance na rarefação dos sons para fora da música, onde
compositores e musicoterapeutas transitam para, depois, retornarem à
música.
324
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Essa operação do silêncio na música, nunca parou de se
reinventar. Mas foi no século XX que a música do ocidente fez uma
envergadura de aproximação aos silêncios do oriente. Ao abrir um
território para além do tonalismo, a música contemporânea pactuou com
a escuta novos campos de afetos por experimentação.
O silêncio de percurso, no contexto pós-tonal, passou a ser tanto
moldura de acolhimento para valorizar pequenos conjuntos de eventos
das alturas sonoras (espaço multidirecional), como liga para os eventos
sonoros de impermanência (pontilhismo sonoro): silêncio e sons em
diálogo contínuo. A poética do compositor Anton Webern (1883-1945)
foi percussora dessa possibilidade de escutas.
No entanto é em John Cage (1912-1992) que os lugares de
silêncio na música, vindos de Webern, ziguezagueiam até emergir do
campo virtual: um indeterminado puro com eventos sonoros em
configurações imprevisíveis (Terra, 2000). O silêncio, que não é a ausência
de sons, é um campo aberto de possibilidades, algo que existe
continuamente, sem interrupções e de múltiplas formas (Cage, 1961).
O silêncio como território de experimentação coloca o ser de
escuta no fluxo do tempo-espaço, tanto em escuta de si como escuta do
outro (De Almeida & Olinto, 2017). A poética transdisciplinar cageana,
pela perspectiva do conceito de silêncio, gera várias ramificações e, no
limite deste capítulo, priorizamos o diálogo com a filosofia oriental (Cage,
1961), no que tange a: se colocar em silêncio e abrir a escuta para a vida no
jogo da impermanências e imprevisibilidade. Nesse contexto, o silêncio é
um nascedouro do ser de escutas, na experimentação do tecido que se
move entre a vida e a música (Terra, 2000). Como na criança de Fellini:
para onde vai a música quando se para de tocar?
No cinema, a articulação entre o pensamento imagem-
movimento (Deleuze, 2005) e som-imagem (Chion, 1994) também tem
um vasto repertório de silenciamentos. A imagem-movimento é toda
impregnada de gestos gerando dispositivos para o engate dos signos das
sonoridadades. O próprio som é gesto. É nesse ponto que o nível mais
profundo de comparação entre o sonoro e o visual fica mais evidente
(Santaella, 2001, p.153).
Desse contexto, o pensamento cinema já é duplo, isto é,
audiovisual, séries de imagens interligadas com sonoridades vão
construindo um campo ótico sonoro.
325
Quando o silêncio pousa na musicoterapia
Enquanto Fellini propunha a pergunta indicando o silêncio
externo à música, o diretor Mohsen Makhmalbaf, no filme O Silêncio
(1998), nos convida a um mergulho na musicalidade dos silêncios da vida
(silêncio cageano).
Com uma estética de narrativa circular e autorreflexiva,
Makhmalbaf combina ficção e documentário (Caleiro, 2011). O filme
descreve alguns poucos dias na vida de Khorshid, um garoto de 10 anos,
cego, que se esforça trabalhando para evitar que sua família com graves
dificuldades financeiras seja despejada. Khorshid tem uma amiga da
mesma idade, Nadareh, e ambos fazem várias atividades juntos.
As estratégias narrativas do diretor são contar a história
direcionando o espectador (escuta-movimento) para cada micro pontos
de silêncios e expandir para sonoridades ora delicada, ora vibrante. Por
isso, não é a música que gera temporalidade na imagem, é a escuta que vai
passando pelo silêncio e construindo o caleidoscópio silêncio-som-
imagem. A cada cena, a escuta é convocada para o deslocamento dos
silêncios: detalhes das sonoridades das asas de um inseto, textura de pães,
respiração ofegante do menino em contraponto com a respiração de um
cavalo, metais de uma fábrica de panelas, gotas da chuva nas cordas de um
instrumento, vozes das meninas treinando um poema; um trajeto de
tornar sonoras forças não audíveis (Ferraz, 2010).
Há um momento, na cena do mercado, que o espectador, que
vinha acompanhando os silêncios e a musicalidade do menino, é
direcionado para uma perspectiva inusitada. A cena é composta por
Khorshid que, andando pelas sonoridades de um grande mercado central,
se perde. O diretor coloca o expectador na angústia de uma escuta,
aparentemente, inexperiente. A amiga Nadareh faz várias tentativas para
achá-lo, olha por todos os espaços que o olho (câmera) alcança, e não o vê.
Sem alternativa, ela se coloca na escuta, fecha os olhos e segue os sons até
achar o silêncio de Khorshid.
O filme é um tratado sobre o silêncio, perpassando pelas
camadas som-imagem-silêncio num inusitado diálogo entre silêncio
ocidental e silêncio oriental. Numa possível conversa entre as
crianças de Fellini e de Makhmalbaf, o silêncio possibilita a escuta
da vida e a alegria de estar com o outro numa completude humana.
326
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
O silêncio no ocidente precisa da música, do cinema, da
literatura, da pintura para imprimir seus afetos; no oriente, o silêncio é
nobre (Hanh, 2018, p.70).
327
Quando o silêncio pousa na musicoterapia
espaço-tempo de estar com o outro no jogo da autonomia e contornos da
presença e da ausência (Sutton, 2005).
No trabalho musicoterapêutico com pessoas que vivenciaram
traumas, Sutton descreve que, pelo fato de as memórias traumáticas do
vivido repetirem em múltiplas velocidades, o silêncio pode produzir
desaceleração e gerar segurança com possibilidade a algo novo.
O silêncio na escrita musicoterapêutica segue os passos da escrita
musical, ou seja, aparece de forma mais reservada, porém está sempre
presente. Para Benenzon (2002, 2017), o silêncio é o plano de
consistência que acolhe todo o campo da ação musicoterapêutica.
Da materialidade ao sensível
329
Quando o silêncio pousa na musicoterapia
Para a análise do discurso65, as palavras e os silêncios seguem em
paralelo, há uma flutuação entre ambos na invenção de diferentes formas
de expressão. Orlandi (2007), no livro As formas do Silêncio: no
movimento dos sentidos, mapeia esses processos. Para a autora, o silêncio é
externo e fundante da linguagem, uma vez que a linguagem recorta o
silêncio e estabiliza o movimento dos sentidos.
Há um modo de estar em silêncio que corresponde a um modo
de estar no sentido e, de certa maneira, as próprias palavras
transpiram silêncio. Há silêncio nas palavras; o estudo do
silenciamento nos mostra que há um processo de produção de
sentidos silenciados que nos faz entender uma dimensão do não-
dito absolutamente distinta da que se tem estudado sob a rubrica
do “implícito” (Orlandi, 2007, pp. 11-12).
O silêncio, dessa perspectiva da análise do discurso, não enfoca a
falta ou ausência (fazer falar) e sim uma potência do movimento dos
sentidos e das sensações que perpassam pelas imagens, corpos e
movimentos.
Num outro momento, fazendo a ficha musicoterapêutica com os
pais de uma criança de 4 anos, ao perguntar para o pai se tinha alguma
música, canção ou brincadeira sonora que fazia com seu filho, ele acionou
o seu próprio universo sonoro e foi tecendo o repertório da sua trajetória
musical. A mãe da criança tentou fazê-lo voltar para o filho, mas não foi
possível.
Embora longe das sonoridades que provavelmente estabelecia
com a criança, o dizer desse pai tinha uma musicalidade de autopercepção;
talvez, pela primeira vez por meio da narrativa musical, ele contemplava
sua própria trajetória sonora afetiva. Como diria Guattari, “as coisas
importantes nunca acontecem onde esperamos”66.
A narrativa tinha as vibrantes sonoridades de 1980 e, de repente,
parou: “- Meu filho, nunca cantei com ele”. E o silêncio pousou.
65
Análise do discurso, aqui, se dá pela obra de Eni Orlandi, a partir da teoria de
Michel Pêcheux, considerando os múltiplos sentidos de produção no sujeito e da
língua.
66
Esta é a quinta estratégia para um cartógrafo. Guattari organizou oito
estratégias para se cartografar fluxos que estão no livro Revolução Molecular, de
1981.
330
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Para dialogar com tal silêncio, é preciso deixar passar um pouco
das grandes veredas de Guimarães Rosa. “- O senhor sabe o que o silêncio
é? É a gente mesmo, demais”. (1986, p. 371).
O processo dessa criança se deu como uma amorosa integração
pai-filho. O pai de fala cantante acelerada se tornou um excelente ouvinte
das canções do filho, e acompanhou o processo descobrindo as
musicalidades da paternidade.
Descrevemos anteriormente que o silêncio está imbricado na
escuta musicoterapêutica. Passemos agora para as interações silêncio-
imagem.
Por agora, vamos ficar com o movimento do silêncio que passa
pelo olhar. Essa é uma marca que se apresenta na escuta
musicoterapêutica.
Entremos em outro acontecimento narrado no livro Dois casos
musicoterapêuticos: desafios e conquistas, no caso A menina Brenda, das
musicoterapeutas Eliamar Fleury e Lilian Pinheiro.
Logo no início da apresentação, há uma descrição dos trajetos de
uma escuta musicoterapêutica tateando o silêncio.
O silêncio desta criança era “ensurdecedor”, por mais paradoxal
que isso possa parecer. Brenda não falava, não gritava, não
chorava, não resmungava quando contrariada (e nem sabíamos se
ela se contrariava), não gungunava... Nada que representasse seu
mundo sonoro nos era oferecido... (Fleury e Pinheiro, 2013, p.
36).
Quanta ativação esse silêncio fez, num primeiro momento,
movido pelo pensamento imagem-sonora. Uma disjunção entre imagem e
sons potencializada pelo silêncio, fazendo a escuta processar uma rápida
cartografia por contração para as micropercepções; passou pela voz-fala e
foi diminuindo as variações timbrísticas e de intensidade: grito, choro,
resmungo, gungunar. Depois aprofundou mais um pouco para chegar no
movimento corporal e, por fim, o nada - nada que representasse seu
mundo sonoro nos era oferecido... então, o encontro preenchido naquele
silêncio, um espaço-tempo de presença (Sutton, 2005), que criou um
plano de sustentação para a continuidade de estar no silêncio e com ele, ir
construindo os trajetos da escuta.
331
Quando o silêncio pousa na musicoterapia
E o pulsar da música escondida ativada pelo silêncio, pôde ser
ouvido no final do capítulo, quando as autoras escrevem: “...ta-ta-ti-ta-tu”
(p. 125).
Apesar de estarmos mapeando as passagens de silêncio na
musicoterapia brasileira, pela característica latina, as sonoridades e a
musicalidade têm predominância na nossa prática. Mas, às vezes, se faz
presente uma porção do silêncio oriental para poder desacelerar.
Tenho atendido jovens em processo de luto. Nesses casos, o
processo é de espera, como se o tempo e o espaço fizessem uma suspensão.
A escuta musicoterapêutica transita no tempo liso, aquele da pré-
performance e perto do silêncio de Yu Wakao.
Em 2018/9 acompanhei um acontecimento bastante complexo.
Uma jovem em processo de luto pela morte da mãe. Entretanto, no
decorrer do processo, o irmão cometeu suicídio.
E o silêncio pousou, e ficou em silêncio.
Como a escola silenciosa dos músicos, referida por Yu Wakao, o
silêncio nos ensina a escutar a vida. Passamos várias sessões no silêncio,
tempo e espaço em suspensão. Toda a delicadeza para escutar os fluídos da
vida surgirem, talvez, o frágil e o íntegro. Era um setting preenchido de
silêncio e, em algum instante, era possível tocar um único som para
engatar num fio de tempo. Não para o tempo ser contado, mas para
escutá-lo passar. A jovem atualmente refaz novos engates com a vida. O
setting musicoterapêutico agora tem improvisações, músicas, canções e
desenhos, uma artista plástica (profissão) voltando a pintar a vida.
332
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
425), da multidão que tem o potencial de tornar suas ações coerentes,
como uma tendência política real.
Dentre as várias ações do projeto está a capilaridade nacional por
meio do grupo de trabalho da UBAM, GT regulamentação, constituído
por 27 musicoterapeutas67, um representante de cada estado brasileiro
produzindo um exercício bastante complexo de escuta política. Desse
lugar, tentando abarcar a extensão do território nacional nas suas
peculiaridades, o grupo organiza: estratégias de visibilidade como
discursos e divulgação; e estratégias de silenciamento.
Para aprovar o projeto, o que se pode falar? E o que se precisa
calar? Nesse local se trata do silêncio constitutivo, o que nos indica que
para dizer é preciso não dizer; uma palavra apaga necessariamente as
outras palavras (Orlandi, 1995, p. 24). Esse silenciamento ainda é um
desafio.
67
Cabe considerar que em alguns Estados têm como representes alunos em
formação, uma vez que a profissão ainda não está estabelecida no Estado.
333
Quando o silêncio pousa na musicoterapia
Assim, a escuta musicoterapêutica saiu para escutar o fluxo da
vida. Pelas redes sociais, algumas lives sendo divulgadas indicam a
possibilidade de atendimentos de musicoterapia online. Mas como fazer
esse lugar? Como tecer o “estar junto na música” mediado pela tecnologia?
E o silêncio pulsando, como articular a defasagem tempo e espaço?
Tudo por fazer, pensar e experimentar numa velocidade do
instantâneo.
Emergiu a atividade de multidão que constitui o tempo além da
medida (Hart & Negri, 2000). O Brasil começa a parar; e em 19 de
março, um pequeno grupo de musicoterapeutas das comissões de políticas
de organização profissional, de ética e de divulgação e marketing da
UBAM, perpassadas pela multidão, abre múltiplas frentes para construir
um conhecimento organizado enquanto o processo acontece. Um grande
desafio!
O motor propulsor é bem definido: atenuar sofrimento em
momento de crise extrema.
O silêncio na literatura, poucos estudos sobre musicoterapia
mediada por tecnologia, silêncio nos interlocutores derivado da
velocidade da crise, ainda poucos países pensando essa possibilidade.
E, após cinco dias de trabalho intenso incluindo madrugadas e
diálogos constante, uma nova possibilidade concretizada pelo documento
Diretrizes Nacionais de Atendimento Musicoterapêutico Mediado por
Tecnologia de Informação e Comunicação (TICs) (UBAM, 23 de março
de 2020).
Talvez, como descrevemos no início, a musicoterapia brasileira
rica em sonoridades, cantos, melodias, corporalidade, instrumentos,
configurações musicais diversas, invenções... quando impactada pelo
silêncio dessa imensidão, atinge velocidade de tempo intempestivo, agindo
contra o tempo, no tempo, em favor do silêncio do tempo que virá
(Pelbart, 2003, p. 192).
O silêncio compartilhado com amigos, amor por aquilo que está
por vir.
334
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
REFERÊNCIAS
335
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338
Capítulo 16
CANÇÃO-ÂNCORA: UM PERCURSO EM
MUSICOTERAPIA
339
Canção-âncora: um percurso em musicoterapia
privilegiar nada a priori. Cabe aqui comentar que a atenção flutuante
permitiria, então, escutar quaisquer elementos de uma fala, sejam verbais
ou não: suspiros, silêncios, trocas de palavras, enfim, uma gama de
variações que, muitas vezes, passam desapercebidas em uma conversa
corriqueira.
Ora, a música, aqui definida como linguagem privilegiada no
setting musicoterápico, também pode ser percebida a partir da regra
fundamental da psicanálise: o musicoterapeuta, com sua atenção musical
imparcialmente suspensa, pode escutar as livres associações musicais de
seu paciente. Assim, a atenção flutuante musical, especialmente utilizada
no trabalho com crianças autistas, resultou na pesquisa qualitativa,
realizada para conclusão do Mestrado em Musicoterapia (Temple
University, Philadelphia, USA), com a dissertação intitulada A dream is a
Wish: a therapist´s Song (Cirigliano, 1996). Nesta pesquisa procedeu-se a
um estudo de caso de um paciente autista de quatro anos, atendido ao
longo de três anos.
Trabalhando com a técnica de improvisação musical livre,
durante as sessões de musicoterapia, observei que, em algumas ocasiões,
sem me dar conta, cantava um trecho de acalanto ou canção infantil. Isso
se dava em especial diante de flutuações de humor do paciente, choro ou
distanciamento do setting: a coleta de dados para a pesquisa me permitiu
verificar a maciça incidência da melodia de uma canção de conto de fadas,
que me vinha na improvisação com o paciente. Curiosamente percebeu-se
na coleta de dados que, por várias vezes, a canção comparecia tão somente
para acalmá-lo. Uma vez mais calmo, era possível a interação com a
musicoterapeuta, bem como a fluidez na sessão.
É interessante destacar que a mensagem da canção traz a ideia de
que é muito importante sonhar, ter um propósito na vida. Além disso, na
letra da canção temos que “o sonho é um desejo expresso pelo coração”.
Finalmente, em partes da letra, figura a mensagem de que “não importa o
luto nem o quanto o coração esteja enlutado”, ou seja, o ser humano pode
sempre recomeçar. Em minha vida pessoal, passava um período de luto e
isso foi mencionado na etapa conclusiva do trabalho de pesquisa.
A função desempenhada pela canção foi, basicamente, a de fazer
com que a sessão readquirisse movimento, propiciando, tanto respostas da
criança, como principalmente maior presença minha como terapeuta.
340
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Quanto às demais canções investigadas, nenhuma apresentou padrões
comuns que levassem a conclusões significativas.
Mediante análise de dados observou-se, conclusivamente, o
quanto a canção funcionou como um acalanto, para acalmar a própria
musicoterapeuta e fazer a sessão seguir, pois me colocava “ancorada”
quando me defrontava com situações desafiantes e, por vezes, insolúveis.
Mais relaxada, podia escutar melhor o paciente: uma âncora pessoal e
musical que não ameaçava, nem trazia qualquer efeito nocivo ao paciente
em questão.
A metáfora da âncora pode causar polêmica, pela gama de
significados que depreende: em discussões anteriores, destacou-se o
sentido de “estribo”, pois em nossa nomenclatura está associado a diversos
contextos. Dentre eles, o de plataformas de trens, por exemplo, para
embarque e desembarque. Nesta concepção, a ancoragem se dá como um
apoio primeiro, para que um movimento aconteça.
Assim, seguindo a analogia, o musicoterapeuta lança mão de um
recurso musical (uma canção, surgida espontaneamente, a princípio, para
depois tornar-se consciente). Estando nele apoiado, frente a uma situação
de impasse, serve-se do recurso musical como estratégia, para propiciar
maior movimento e interação com o paciente na sessão.
A canção-âncora é, portanto, definida como canção do
musicoterapeuta. Assim, canção-âncora é primariamente uma canção
trazida pelo musicoterapeuta, no contexto do atendimento. Pode ocorrer
em dada interação musical com o paciente, ou recusa deste a interagir,
configurando um impasse ao prosseguimento, que mobilize o
musicoterapeuta, deixando este, de algum modo, paralisado quanto a
conduzir musicalmente a sessão.
É importante ressaltar que a canção surge sem que o
musicoterapeuta se aperceba conscientemente, em situações clínicas, nas
quais se depara com dificuldades de interagir com o seu paciente.
Funciona como âncora, uma vez que auxilia o musicoterapeuta a sair do
estado “paralisado” em que se encontra, dando prosseguimento à sessão.
Posteriormente, possibilita ao profissional, mediante reflexão, utilizá-la
como um recurso que o instrumenta buscar interação, quando exposto a
situações musicoterápicas de impasse.
Faz-se necessário destacar que cada musicoterapeuta possui suas
âncoras musicais, condizentes com a história musical de cada um. Estas, se
341
Canção-âncora: um percurso em musicoterapia
conscientizadas e devidamente utilizadas, podem representar uma
ferramenta de trabalho que facilite a interação terapêutica. Assim,
guardados os aspectos contextuais de uma improvisação musical, o
musicoterapeuta tem a possibilidade de lançar mão de seus próprios
elementos de ancoragem, para mobilizar respostas em situações
terapêuticas diversas, de acordo com a clientela.
Portanto, a imagem da âncora traz, precisamente, a ideia de
alcançar o paciente, musicalmente, onde quer que ele esteja. Entretanto, o
uso de âncoras musicais requer cuidado, autoconhecimento, atenção e,
sobretudo, sensibilidade para perceber o momento adequado de intervir.
Requer, em outras palavras, uma viagem para dentro de si mesmo,
enquanto musicoterapeuta que, também, possui uma história musical.
Avancemos um pouco mais, já que, desde a implementação do
conceito de canção-âncora, no corpo teórico da Musicoterapia Brasileira,
muito se produziu na própria musicoterapia, como também na
Psicanálise. Lacan, relendo Freud, com os subsídios da Linguística e
outros campos do conhecimento, vem acrescentar contribuições
importantes, discutidas em tese de doutorado (Cirigliano, 2015). No
tocante à canção-âncora, cabem aqui duas questões, que vêm reafirmar a
importância do conceito, e nos fazem refletir sobre possíveis
desdobramentos.
Primeiramente pensemos na relação contratransferencial, uma
vez que a canção-âncora é, por definição, pertencente ao musicoterapeuta
e sua história musical. Assim, é de se supor que a âncora musical, em
questão, esteja articulada a sentimentos variados do musicoterapeuta. Ora,
em análise, temos uma relação transferencial onde o analisando, sujeito do
inconsciente fala, traz seus significantes, recortados pelo analista para que
haja deslizamento no discurso. Nesta situação de tratamento,
redimensiona-se a contratransferência do analista. Lacan ressalta que
“quando um paciente se dirige a um analista, já supõe nele um saber sobre
o que busca em si mesmo, já incluído pelo analisando como sujeito
suposto saber” (Chemama, 1995, p. 218). Assim, o analista comparece
não como sujeito, mas como objeto, oferecendo-se a uma escuta do
analisando: o analista está como presença que escuta o discurso de um
sujeito e o pontua. Portanto, não se fala em dois inconscientes, mas no
sujeito do inconsciente. E a transferência só existe, então, enquanto
fenômeno que acompanha o exercício da palavra.
342
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
É importante destacar que essas reflexões só foram possíveis após
uma década do lançamento do conceito de canção-âncora à comunidade
musicoterápica, pois o percurso no campo da formação psicanalítica levou
a algumas elaborações. Assim, vimos que, na situação clínica de uma
análise, não se tem dois, mas um sujeito e, por conseguinte, o conceito de
contratransferência não mais se sustenta. O analista, em sua função de
escuta, está a serviço do laço transferencial, que faz com que o sujeito que
o procura se dirija a ele na posição que o quiser – e puder – colocar. A
partir do exposto, o conceito de canção-âncora se enriquece com uma
descrição ainda mais pormenorizada.
Em musicoterapia, enquanto prática clínica articulada a uma
escuta analítica, podemos pensar no quanto essa âncora musical pode ser
uma estratégia, na transferência que está em jogo, onde tudo o que
importa é como o paciente responde, ou não. Se a canção mostra algo da
subjetividade do musicoterapeuta (seu nervosismo ou insegurança, por
exemplo) ela existe para que o musicoterapeuta se reposicione na cena
com o seu paciente e novamente mantenha a atenção suspensa naquilo
que musicalmente o paciente manifestar. Portanto, a partir das leituras
lacanianas, e retificando a contratransferência e o lugar do analista, para
uma prática em musicoterapia, bem como sua escuta musical,
acrescentamos essa breve reflexão ao emprego da canção-âncora como
estratégia no setting musicoterápico.
Um segundo, e não menos importante aspecto, que a teoria
lacaniana fornece é que, como, na definição de canção-âncora temos, a
partir do, já mencionado, recorte clínico, uma canção, ela bem pode ser
pensada à luz do conceito de voz como objeto. Esse conceito, presente nos
estudos de Lacan e seus seguidores, permitiu, em minhas elaborações,
deslocar e avançar na clínica musicoterápica para um lugar mais amplo de
discussão, que mantivesse, em seu bojo, uma escuta analítica.
Há muitas definições para a voz como objeto. A mais palatável
para quem não exerce o ofício de psicanalista nos é proposta por Antônio
Quinet, em suas elaborações para a coleção Passo a Passo, excelente fonte
para não psicanalistas, interessados em aproximar-se da psicanálise.
Segundo Quinet (2012),
Não se trata da voz do sujeito e sim da voz que vem do Outro.
Não é a voz que sai quando você fala e sim a voz na qual você é
falado... Como ela se manifesta? É a voz que embala o bebê, canta
343
Canção-âncora: um percurso em musicoterapia
para ele... Essa voz é uma voz perdida como objeto, que o sujeito
reencontra nos outros. (Quinet, 2012, p.40)
Um exemplo do que trata a citação é quando atendemos um
telefonema desconhecido e nos deleitamos com uma voz que
consideramos bonita, sem saber o que nela nos atrai.
Esses desdobramentos reflexivos, acerca do conceito de canção-
âncora, articulados ao de voz como objeto, são inéditos e estabelecidos
para efeitos deste artigo, têm por objetivo dar prosseguimento às
teorizações que advém de uma, então, formação continuada em
psicanálise. Portanto, são passíveis de discussão ao longo do tempo.
Nos idos de 2008, a partir novamente das indagações que a
clínica musicoterápica com autistas impunha, iniciei formação em
Psicanálise lacaniana. Lacan, relendo Freud, estabelece um aporte teórico
valendo-se de conhecimentos da Linguística, entre outros campos, que
muito podem beneficiar o musicoterapeuta em seu trabalho clínico. Nesse
percurso às voltas com a teoria lacaniana, algumas situações direcionaram
ainda mais os caminhos das indagações para o campo da Linguística, em
especial a Análise de Discurso de linha francesa. Nessa direção organizou-
se a pesquisa para tese de doutorado. Para prosseguir, vale contextualizar
em que definições de autismo a tese se baseou. Isto porque a pesquisa para
doutoramento, que se iniciou, abrangeu um percurso em três campos de
arcabouços teóricos distintos: Musicoterapia, Análise de Discurso e
Psicanálise.
O autismo é definido, nos tratados de Psiquiatria, como
transtorno do desenvolvimento que compromete a socialização da
criança. O autismo se manifesta geralmente até os 30 meses de idade
(Lewis, 1995). Quando a fala está presente, esta se dá em padrões
incomuns, acompanhados de respostas bizarras ao ambiente. A criança
autista, em geral, apresenta, portanto, dificuldades em relacionar-se com
outras crianças e adultos, respondendo de maneira adversa ao meio em
que vive: pode gritar sem razão aparente, por exemplo, rodar objetos e
fixar-se neles, não se importar com o entorno, enfim, comportamentos
estranhos ao laço social. A partir do desenvolvimento da tese de
doutorado, uma vez em Análise de Discurso, pretendeu-se questionar a
definição do autismo, pois ela pode ser resignificada ao ser vista por outros
campos de estudo.
344
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Trabalhando como musicoterapeuta no Instituto Benjamin
Constant, escola para cegos e portadores de baixa visão, fundada em 1854,
no Rio de Janeiro, e escutando mães das crianças que apresentavam, além
da cegueira, o diagnóstico de autismo, comecei a me indagar que lugar era
dado àquelas crianças nos relatos de suas mães.
Paralelamente, em reuniões e conselhos de classe, era
surpreendente escutar profissionais falando a respeito das mesmas
crianças. Raramente a palavra ‘autismo’ era empregada por esses
profissionais, ainda que soubessem que as características das crianças que
recebiam atendimentos correspondiam ao termo. Verificando também
vários relatórios, novamente não se encontrava referência: a palavra
‘autismo’/’autista’ tampouco figurava em qualquer apreciação escrita. O
que levava a tal silenciamento?
Assim se iniciou uma busca, que culminou com o ingresso na
linha de pesquisa de Teorias do Discurso, do Texto e da Interação, em
Estudos de Linguagem, para doutoramento. À medida que as leituras do
então novo campo da Análise de Discurso se faziam, os resultados obtidos
pela escuta das crianças em atendimento levavam à emergência de novas
falas a respeito das referidas crianças. Estas, antes qualificadas como
“bichinhos”, que “não dizem coisa com coisa”, têm seu status modificado:
passam a ser descritas como “artistas” ou “cantores”.
A voz de uma criança autista, ao cantar, portanto, parecia causar
impacto às mães e profissionais. Diante disso, fez-se necessário examinar o
que trazia esse cantar, bem como as possibilidades sonoras que, uma vez
ofertadas ao autista, favoreciam mudanças nos relatos de mães e
profissionais.
No intuito de refletir acerca de tanta diversidade dos que
convivem com os autistas e a partir da dinâmica vivenciada no Instituto,
procedeu-se à pesquisa qualitativa que buscava descrever o que ocorria em
sessões que contrastavam com o que era textual em manuais ou na fala de
mães e professores que conviviam com os autistas.
A música habita todo ser humano, do nascimento à morte
(Costa, 2008). Os batimentos cardíacos e outros sons dos órgãos internos
de uma gestante constituem a primeira marca musical do ser humano.
Percebida desde o útero materno, por via óssea, nas vibrações, e
auditivamente, estas sonoridades imprimem os primeiros indícios de uma
345
Canção-âncora: um percurso em musicoterapia
identidade musical que vai se sofisticando após o nascimento. Vale dizer
que, para o musicoterapeuta, o choro do bebê também é música.
Em meio aos sons, temos as pausas, de duração longa ou curta,
que, em combinação com o sonoro, organizam uma partitura musical.
Sim, desde o útero, e a partir das inúmeras estimulações sonoro-musicais
que recebemos durante a vida, nós, humanos, soamos como partituras
vivas das combinações quase infinitas de algumas notas musicais
(Aldridge, 1996). Assim, se pensarmos na neurose, por exemplo,
poderíamos inferir que uma canção com refrão que se repete, embalaria a
história ficcional do paciente neurótico? Se isso acontece, então, há
mesmo que perceber o universo dos sotaques, silêncios, sussurros, ênfases
e pausas na voz de um sujeito escutado em análise.
Para efeitos deste texto, embora sabendo das incontáveis
descobertas do campo da música, e nele, a da voz, pretendemos aproximar
a canção-âncora, a partir das aplicações da música em Musicoterapia, da
voz como objeto, conceituada pela Psicanálise. Assim, elementos como
timbres, alturas, técnicas de respiração e potência vocal, embora tópicos
importantes de serem detalhados (já que há áreas que se dedicam na
Música a estudá-los), são apenas mencionados quando necessário ao
entendimento do recorte estabelecido. Da mesma maneira, aspectos
relativos à voz, tais como estudados no campo da Linguística, mais
especificamente, fonética e aquisição de linguagem, não serão abordados
em profusão de detalhes. Em outras palavras, como nosso recorte é a
clínica do autismo, buscamos as contribuições da Psicanálise para a voz,
enquanto objeto (porque foi isso que modificou minha escuta), no intuito
de melhor compreender o autismo, campo de trabalho onde o emprego da
canção-âncora surgiu e ganhou aporte teórico.
De maneira análoga, aqui nos atemos ao ser humano, não às vozes
digitalizadas ou virtuais. E, mais particularmente, em relação às sessões de
musicoterapia, a voz do ser humano onde algo diferente se passou,
emudeceu, configurando uma síndrome, denominada pelo manual de
psiquiatria DSM-IV (1995), de transtorno invasivo do desenvolvimento.
Um transtorno que interroga os demais falantes.
Na delicada investigação do universo do autismo, a voz é material
de investimento. Isto porque, nem sempre o autista responde verbalmente
ao que lhe é perguntado, por exemplo. No entanto, se cantarmos,
podemos também observar outras reações e ter boas surpresas.
346
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Em Psicanálise, o autismo é uma estrutura clínica, na qual se
questiona se ali haveria um sujeito do inconsciente. O emprego da canção-
âncora, aliado ao conceito de voz como objeto faz supor que no
atendimento clínico podemos tomar a produção musical do autista com
estatuto de enunciação, isto é, algo novo, surpreendente, genuíno.
Portanto, é possível fazermos a aposta de que ali pode advir um sujeito.
Assim, concordamos e acrescentamos: o autista produz musicalmente
desse lugar, numa alusão ao pas de sens lacaniano: “Do sem sentido ao
passo-do-sentido, eis o caminho que cabe à criança autista fazer junto a
seu analista, sob seu testemunho” (Catão, 2009, p. 142). Ao
musicoterapeuta que está atravessado pela Psicanálise, esse é seu lugar de
tradutor, compreendido como “o que conduz além” (Ferreira, 1995,
p.1405).
Laznik (2011) coloca o analista como tradutor para os pais da
criança autista. Retomando a mesma significação dada pelo Dicionário
Aurélio (Ferreira, 1995), entendemos o significante ‘tradutor’ empregado
por Laznik (2011) no sentido de o autista necessitar de um tradutor para
os falantes, que nem sempre o acolhem. Pensamos que no atendimento
musicoterápico, a música traduz algo do autista para o musicoterapeuta,
no sentido dado pelo Dicionário Aurélio. Didier-Weill retrata a música
como trazendo implícita essa “promessa não formulada” (Didier-Weill,
1999, p. 29).
A presença do real na música, do inassimilável é trazida pela
melodia. “Se, de fato, nos acontece de sermos abalados pelo que nos
aparece como tão “familiar” nessa nostalgia musical, não é que nós a
reconheçamos: é que nós somos reconhecidos por ela” (Didier-Weill,
1999, p. 75). Assim, por exemplo, o neologismo do autista pode, em vez
de erro, retornar da escuta do analista com valor de chiste, uma produção
linguageira.
“A função do Outro”, segundo Lacan (1992), “é supor sentido”, o
que se faz em musicoterapia pelo som: os gritos viram música assim como
neologismos são elevados ao estatuto de chiste pela escuta analítica,
deixando de ser um erro e passando ao valor de produção linguageira:
O exercício da função performática da fala pela criança indica
que ela conseguiu percorrer o caminho complexo e sutil que a
introduz no campo da linguagem, caminho que a leva do
barulho real ao som e à música (operação de alienação), e da
347
Canção-âncora: um percurso em musicoterapia
música à fala (operação de separação). (Catão & Vivès, 2011, p.
87, grifos nossos)
Vemos nos grifos à citação, que a música persiste em ambas as
operações, e é a senha, a passagem sutil para aquele que advém sujeito: sair
do ruído e ser capaz de enunciar (Vivès, 2013). O autista, estrangeiro ao
discurso, se está na linguagem, fala desde que nada diga (Maleval, 2009).
No autista, a voz em sua dimensão enunciativa é recusada: “se há uma
constante discernível a todos os níveis do espectro do autismo ela reside
na dificuldade do sujeito em tomar uma posição de enunciador. Ele fala à
vontade, mas sob a condição de nada dizer” (Maleval, 2009, p. 77)68.
No autismo, o objeto voz não se constitui enquanto função
psíquica. Este ponto surdo, como propõe Vivès (2009) por analogia ao
ponto cego (Lacan, 1992), é efeito do recalque originário e necessário para
ouvir e falar. Em outras palavras, o sujeito que foi invocado pelo som
originário vai, pela fala, tornar-se invocante. Posteriormente, Vivès (2009)
prossegue suas reflexões, como atesta Carnevale (2012):
O bebê, que ainda não fala é “evocado pelo silêncio” que marca
sua inscrição em sujeito a advir. Segundo Vivès (2009), é
necessário que o bebê saia desse silêncio, produzindo uma voz
que possa recobrir a voz desse Outro, é preciso que ele se
“ensurdeça” para advir como sujeito falante. E, segundo Vivès
(2009), “ensurdecer-se ao timbre primordial para falar sem
saber o que diz, isto é, como sujeito do inconsciente” (Vivès,
2009, p. 42). Então, ele poderá, apossando-se de sua própria voz,
fazer-se sujeito de linguagem. (Carnevale, 2012, p.41, grifos
nossos)
Grifamos acima o timbre primordial, ao qual o bebê deve se
ensurdecer, porque, recentemente, o autor Vivès (2013) destaca a
possibilidade de advento do sujeito no autismo a partir do objeto voz,
reforçando o ambiente sonoro e suas improvisações: espaços onde o
paciente possa se exprimir, pouco a pouco, via desejo do analista, numa
improvisação que se enderece a ele.
68
S´il est une constante discernable à tous les niveaux du spectre de l´autisme, elle
reside dans la difficulté du sujet à pendre une position d´énonciateur. Il parle
volontiers, mais à la condition de ne pas dire. (Maleval, 2009, p. 77, tradução
nossa).
348
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Do grito inarticulado aos pedaços de palavras, há que fazer uma
passagem pelo encantamento melódico. Dizer sim à dimensão da voz do
Outro cuidador, aceitando-a, e dizer não, aceitar perdê-la, tornando-se
surdo a ela para que a sua própria voz advenha. Na clínica com autistas,
um evitamento seletivo da voz, seja defensivo ou primário, faz com que
esta permaneça como puro som, ruído.
Nessa direção, Bentata (2009) traz para a discussão três
dimensões para a voz articuladas aos registros lacanianos. Primeiramente,
oriundo do grego, a dimensão Phitogos, que seria o grito puro. O grito
segundo Lacan, funda e causa o silêncio. Op´s seria uma segunda
dimensão, articulada à voz da mãe que, ao se endereçar ao bebê, confere
um sentido ao grito deste. Finalmente, aoide é a dimensão da voz que se
ocuparia da transmissão da Lei, promovendo a entrada na linguagem.
Podemos supor que essa dimensão ocorre quando a criança começa a
perceber através da intervenção do adulto, por exemplo que nem todos os
animais seriam “au au” mas haveria “miau”, “cocoricó”, enfim, recortes ao
mundo de sons que inicialmente partem de onomatopeias generalizadas.
Nos atendimentos às crianças e adolescentes, percebemos que,
para além da voz imaginariamente constituída no cantar, por exemplo, há
uma aposta de fazer valer a pulsão invocante, a voz que há no autista e cujo
circuito não se completou.
Quando algo nos soa agradável, parece comum a expressão ‘isso é
música para meus ouvidos’. Ouvido, o único orifício que não podemos
fechar (Lacan, 2004). A música é definida como “arte e ciência de
combinar os sons de modo agradável ao ouvido” (Ferreira, 1995). Essa é
apenas uma das muitas definições para música. Bruscia (1998) aponta
para as dificuldades na tarefa de definir música, dados os inumeráveis
tipos e níveis de experiências musicais a que um ser humano está exposto,
seja para fins terapêuticos ou não. Encontramos também definições mais
especializadas que colocam subdivisões à música, clássica ou popular, por
exemplo (Horta, 1985). O que nos interessa para nosso estudo, à parte das
mais variadas formas de discutir a música e sua aplicabilidade, é considerá-
la enquanto linguagem (Silveira, 1999). E aqui, para efeitos de
redimensionar reflexões quanto à canção-âncora, articular a
Musicoterapia às contribuições da Psicanálise e da Análise de Discurso.
Como fazemos articulações com a Psicanálise, é igualmente
importante ter a Música como linguagem, pois a Música interessa a
349
Canção-âncora: um percurso em musicoterapia
Psicanálise, posto que a sonoridade traz, implicitamente algo da
singularidade do inconsciente. A música traz sempre uma lacuna que é
preenchida pelo imaginário do receptor/ouvinte. Esse preenchimento é
feito, muitas vezes, pela aproximação de campos do conhecimento
humano. Neles, no percurso entre o cantar e o falar, aproximam-se o
artista e o poeta:
A poesia é o ramo da literatura mais aparentado com a música.
Alguns dos significados da poesia são muito semelhantes aos da
música. Ambos utilizam ritmo e aspectos acústicos. A zona
limítrofe de poesia e música pode ser vista onde a leitura de
um poema lírico está a ponto de transformar-se em canção.
Embora um poema lido e uma canção cantada sejam fenômenos
diversos, existe entre eles um elemento comum. Daí o serem
poemas, na maioria das vezes, as obras literárias usadas para
composições vocais. (Piva, 1990, p. 29, grifos nossos)
A Musicoterapia é mencionada em Invocações (Didier-Weill,
1999) e corrobora a ideia de associar movimento e música que “traz em si
o movimento, a dança” (Didier-Weill, 1999, p. 22). “O terceiro ouvido, o
do sujeito do inconsciente”, é o que “ouve tanto o som que está no
movimento quanto o movimento que está no som” (Didier-Weill, 1999,
p. 28). Em se tratando de música, posso dizer, parafraseando o “penso
onde não sou”, inversão que Lacan faz do Cogito cartesiano, no texto
Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo no Inconsciente Freudiano
(1998[1966]), que eu canto onde me calo (Cirigliano, 2018).
De acordo com Assoun69 (2014) “o canto é a voz do semblant”. Se
pensarmos que o musicoterapeuta faz semblant ao apresentar suas
intervenções musicais (pois o que interessa é o que o paciente traz, mas
não se pode esquecer de como o musicoterapeuta musicalmente organiza
os sons), a frase do psicanalista Assoun traz uma reflexão importante.
O sujeito, dividido pela tensão produzida entre a harmonia e a
melodia, tem a capacidade de atingir uma certa nota ainda não presente: a
nota ausente, a nota azul. A partir desse ponto azul insere-se a pulsão
invocante na teoria freudiana de acordo com Didier-Weill (1999).
“Trata-se pois de prolongar nosso questionamento sobre o real, de que a
69
Le chant est la voix du semblant, afirmação de Paul Laurent Assoun em
seminário no Espace Analityque, Paris, França, junho 2014, tradução nossa.
350
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
música é, para nós, o passador” (Didier-Weill, 1999, p. 45). A música
ultrapassa todas as leis escritas e torna transmissível a parte de real que a lei
não pode assumir, considerando-se os tempos de constituição do sujeito.
Assim, destacamos Didier-Weill: “Enquanto a música só podia
significar a ausência na sua tripla instalação – o inaudito, o invisível, o
imaterial – a fala vai nomear a ausência: ‘fort-da” (Didier-WEILL, 1999,
p. 71). No caso dos autistas tem-se um caminho mais delicado, pois se
trata de, aos poucos, pelo ritmo inerente às produções musicais numa
sessão, imprimir minimamente o jogo de presença-ausência, que talvez
não tenha comparecido à criança/adolescente autista. Nesta situação, a
canção do terapeuta, sua âncora musical, pode contribuir, para que
musicoterapeuta e paciente interajam.
Ao utilizarmos a música como elemento terapêutico, nos
atendimentos musicoterápicos, usamos instrumentos musicais diversos:
piano, violão, pandeiro, chocalho reco-reco e também alguns
confeccionados com material de sucata. Todos esses instrumentos ficam à
disposição do paciente para que escolha, a partir de sua preferência. Caso
não manifeste qualquer iniciativa em escolher, pode-se oferecer algum
instrumento cuja sonoridade se saiba, pelas informações obtidas em
entrevistas prévias com os pais ou familiares, que encontra um mínimo de
aceitação por parte do paciente.
Vimos o quanto é fundamental tomar cada caso como único,
lição que a Psicanálise tão bem profere em sua prática. Vimos também
como o discurso médico que se expressa no DSM-IV (1995), e os
múltiplos discursos sobre o autismo, em que este artigo se encarregou de
destacar alguns, não dão conta da imensidão de produções que o autista
faz em música, campo que privilegiamos a partir da prática clínica em
Musicoterapia. Percebemos que o autista, assim como nós, traz um
sofrimento singular e dele não encontramos muito retorno se nos
dirigimos a uma criança autista falando. Porém, conseguimos reações
positivas no cantar, no tocar um instrumento musical. Tentamos fazer
isso a partir do que ele, sujeito autista (diferenciado do sujeito do
inconsciente) tem a oferecer e apostamos em que essas produções têm
valor, muitas vezes um valor de enunciação, se testemunhadas em sessão
clínica: coisa que não seria, talvez, possível no falar, por ser o autista
estrangeiro ao discurso.
Buscamos igualmente refletir sobre a voz. A voz como objeto, que
tem um circuito pulsional que o autista falha em completar. Mas também
351
Canção-âncora: um percurso em musicoterapia
a voz constituída, afinal, cantamos... A voz que embarga, ou que sussurra.
Assim, refletimos sobre as vozes dos discursos sobre o autismo, e a voz no
autista. As vozes que falam acerca de uma criança /adolescente autista e a
voz que se esconde nele, autista, e que pode emergir numa pureza única e
cristalina em termos de afinação.
Uma vez que as observações iniciais que inspiraram essa busca,
através da Psicanálise e da Análise de Discurso, se deram do lugar de
musicoterapeuta, opta-se por privilegiar a musicalidade, no quadro teórico
para este artigo, pois este é um elemento importante que une os três
campos mencionados. Por isso, é em torno da musicalidade das vozes que
a escuta se faz: mães que falam sobre seus filhos, profissionais que atendem
os autistas e, claro, os próprios autistas. A escuta de suas vozes e sua música
é, em suma, o que importa para discutir os discursos sobre o autismo e a
voz no autista. Daí também a importância da canção-âncora articulada à
tese de doutorado (Cirigliano 2015).
Há várias formas de a música ser utilizada em enunciados como
“palestra para música e autismo”, ocorrência comum na Musicoterapia.
Mas o que nos interessa, quando se fala de voz no autista, não encontra
equivalência em tais palestras, que até podem ser instrutivas, mas partem
de pesquisas diversas, muitas das quais enfatizam o cérebro, estudando
como a música o afeta. Muito interessante e verdadeiro, mas o que
buscamos estaria para além do cérebro e da topografia, está localizado em
uma dimensão não cartesiana, que aposta que é o sujeito autista que pode
mostrar de si, com seus sons e sua música.
Lacan, a partir do seminário “ou pior” faz-nos interrogar: uma
semínima é igual a duas colcheias? No Seminário 19 (Lacan, 2012),
percebemos o Um e a ilusão de totalidade, que não há. O que existe é a
incompletude e, assim arriscamos dizer que há algo para além da exatidão
matemática das notas musicais.
No papel de quem estudou música, organizar os sons que o
autista me traz, sejam gritos ou pedaços de melodias em uma estrutura
musical, deve levar em conta que não há receita pronta ou atividade
planejada. Assim, seja na música, na arte ou na vida não há nada como
apostar no singular, e é como esse percurso se faz.
A confecção deste artigo traz um passo a mais nas reflexões para a
próxima década: a canção-âncora ganha a partir desse momento em
diante, novo colorido com as nuances da escuta analítica em
352
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
musicoterapia, o conceito de voz como objeto e seus efeitos no circuito
invocante para o autista. É essa aposta no desejo do analista que escuta as
produções a partir da música de cada sujeito autista que nos conduz a
discutir o quanto essas respostas musicais na clínica fazem vacilar os
discursos vigentes nos manuais de psiquiatria e falas de familiares e
profissionais que lidam com a criança/adolescente autista.
Com cuidado, distinguindo os referenciais teóricos de cada
campo e articulando conceituações que abram espaço à voz do autista e a
voz no autista, podemos avançar nas discussões quanto ao enigma que o
autismo propõe a cada profissional.
Assim, com as inúmeras contribuições dos musicoterapeutas,
inscrevemos a Musicoterapia em diálogo com a Psicanálise e a Análise do
Discurso, podendo, cada vez mais, incrementar as inter-relações do campo
teórico dos estudos sobre o autismo, em um futuro próximo.
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355
Capítulo 17
Maristela Smith
356
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
quanto determinados termos são utilizados, por anos seguidos, sem o
cuidado de adequá-los a novas maneiras de pensar. Isto, porque não somos
neutros como aprendemos que deveríamos ser, diante de um processo
musicoterapêutico. Em um ambiente terapêutico que transforma e é
transformado, não há neutralidade nem nos momentos de criação, ou
mesmo naqueles em que analisamos ou interpretamos as expressões. Nesse
sentido, o sujeito é visto como um agente ativo, diante das influências que
recebe do meio social. Além do mais, pela Lei da Similitude (Gerber,
2007), semelhante cura o semelhante. Isso nos leva a pensar sobre o uso
benéfico do conceito de Identidade Sonora (Iso), preconizado por
Benenzon (2011, p.67), em que “um conjunto de energias sonoras,
acústicas e de movimento, pertencem a um indivíduo e o caracterizam” e,
que, por esse motivo, em Musicoterapia, o verdadeiro ato de comunicação
se estabelece quando se reconhecem e se diferenciam o ISo do
musicoterapeuta do Iso da pessoa-parceira. Isso me permite dizer, que o
sucesso dessa interação e relação de parceria prescinde de um processo
comunicativo, que flui muito bem na Musicoterapia. Dessa forma
entendo, no papel que exerço como musicoterapeuta, que a minha
necessidade de compreender o homem como um ser concreto e como
manifestação de uma totalidade histórico-social, surgiu da percepção desse
campo de energias, que circula num movimento de vai-e-vem e que me
instigou a refletir, aprofundar, criar e inovar, principalmente no tocante a
compreensão da identidade global e não apenas sonora, dessa pessoa
parceira.
Quando estamos diante de um ser-musical, com o qual
compartilhamos sentimentos e pensamentos o investigamos, buscando
conhecê-lo em toda sua plenitude, ou seja, sob todos os fatores que o
compõem, estudando o seu comportamento, observando-o e
empatizando-nos com ele, como um meio para conhecer seus processos
internos. Bruscia (2000, p.66), assim define “empatia”:
Empatia é a capacidade de compreender ou de se identificar com
o que outra pessoa está vivendo. Isso pode incluir ter experiências
corporais semelhantes, sentir as mesmas emoções, ter a mesma
perspectiva de algo, pensar os mesmos pensamentos, fazer a
mesma coisa juntos e assim por diante; a empatia se estabelece a
partir do processo de identificação, isto é, quando uma pessoa se
identifica com a outra e imagina o que aquela pessoa possa estar
experienciando.
357
A vida ressignificada num corpo mutilado
Na construção da empatia, dentro da relação, podemos dizer que
o que prova a verdade de uma ideia é a sua capacidade para a resolução de
um problema. Se estamos junto com alguém, em ambiente terapêutico, é
porque queremos facilitar a transformação de algo que não está sendo bem
aceito por esse alguém, ou, que vem mantendo a mesmice, quanto ao seu
modo de estar no mundo, ou, profilaticamente, que há um desejo
implícito de se autoconhecer.
Empatizar-se com alguém significa colocar-se no lugar desse
alguém, ou seja, tomar uma atitude humanística, com respeito a pessoa
parceira. Nessa abordagem, referimos o pensamento de George Mead
(1972), filósofo americano de importância capital para a sociologia e a
psicologia social, pertencente à Escola de Chicago. Para ele, a análise da
atitude passa por quatro fases: impulso, percepção, manipulação e
consumação. Proponho, aqui, substituir o termo “manipulação”, por
“direcionamento”, já que manipular refere-se a dar forma a algo. Então, é
necessário que a própria “pessoa-parceira”, quando lhe é possível, dê a sua
forma na ação, ou, no máximo, a compartilhe com o terapeuta, criando
formas compatíveis com a realidade vivida no passado, vivente no presente
e desejada e/ou programada para o futuro. Em dupla-mão, entendo que a
atitude inicial deva ser tomada pelo musicoterapeuta possibilitando,
assim, uma conexão. Mas, muitas vezes, é a própria “pessoa-parceira”
quem o faz.
Na época em que trabalhei como coordenadora da área de
Musicoterapia, no Instituto de Medicina e Reabilitação do Hospital das
Clínicas de São Paulo, Faculdade de Medicina da USP – Instituto de
Reabilitação da Rede Lucy Montoro, de 2011 a 2018, pude verificar o
verdadeiro sentido da metamorfose na vida dessas “pessoas-parceiras”,
com amputações, o que resultou numa metodologia própria, com base na
abordagem histórico-social, que especificarei mais abaixo.
Nessa relação de mutualidade é incabível a concepção do homem
como uma soma de partes, ou membros de um corpo como apresentada
na concepção dicotômica (corpo e mente) ou tricotômica (corpo, mente e
alma), sendo a alma equiparada à nossa mente. Desta forma, seguindo a
visão do ser integral, posta na musicoterapia, somos a composição de
corpo, mente e alma, como somos cabeça, tronco e membros, como a
única maneira de estarmos vivos. Nesse sentido, me soou muito evidente a
necessidade de conceituar o termo “corpo” por se tratar de verificar o
quanto elementos musicais, bem como todos os constituintes do ser
358
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
humano, juntos e conectados, serviriam de estaca para a reconstrução de
um novo pensar de pessoas amputadas. Os elementos da música (melodia,
som, ritmo, dinâmica, forma ...) são analogias da nossa maneira de pensar,
sentir e agir. Em nossas improvisações se expressam como pensamos,
sentimos e agimos. Somos sujeitos e objetos de nossa atividade reflexiva.
Portanto, partamos do princípio de que a integralidade se refere a uma
“corporeidade”, conceito por mim adotado daqui para frente, bem
explicado por Kolyniak (2002), que afirma: “Corporeidade é um processo
de construção social e histórica do corpo humano. Constitui-se em
relações recíprocas de determinação com a identidade como
metamorfose”. Citado pela mesma autora, na mesma obra, Olivier refere
que “corporeidade seria a maneira pela qual o cérebro reconhece e utiliza o
corpo como instrumento relacional com o mundo”. O corpo diz respeito
à aparência, a uma embalagem. Um cadáver é um corpo. A corporeidade
ou mente corpórea, trata do ser com seus sentimentos, emoções e
pensamentos, abrangendo as dimensões fisiológica, emocional-afetiva,
mental-intelectiva e espiritual. Desta forma, devemos ver além das
aparências, pois, o que a pessoa demonstra musicalmente, na maioria das
vezes, nas sessões de Musicoterapia, nem sempre é o que está sentindo, ou,
o que precisa ser transformado. Em outras palavras, às vezes, as aparências
ocultam o concreto da experiência vivida.
Tendo a abordagem histórico-social como sustentáculo teórico,
lembramos que a teoria e a observação são inseparáveis. Sem recorrer a
uma técnica científica específica, pois estamos lidando com seres humanos
dotados de inúmeros fatores biopsicossociais e espirituais, nos colocamos
no teor do construtivismo, no sentido social. Na situação social, os
significados não são subjetivos, nem particulares, nem mentais, mas estão
objetivamente presentes nas experiências sonoro-musicais, que
desenvolvemos em conjunto, num setting musicoterapêutico. Na verdade,
tanto o enfoque qualitativo quanto o quantitativo podem ser usados em
Musicoterapia, pois cada estratégia oferece respostas as questões distintas.
A abordagem mista, na minha visão, é a que mais corresponde à
investigação, avaliação, processo e conclusão musicoterapêuticos. A
interpretação da linguagem musical se dará por símbolos ou gestos, que se
converterão em símbolos e gestos significantes, ou seja, quando ambos
(musicoterapeuta e “pessoa-parceira”) interpretam a significação dos
próprios gestos (Smith, 2019).
359
A vida ressignificada num corpo mutilado
Sob a perspectiva neurocientífica, Pfeiffer e Zamani (2017) nos
ensinam que a música representa uma linguagem sonora complexa, que
ativa o cérebro humano nos níveis sensorial, motor, perceptivo-cognitivo
e emocional, enquanto, ao mesmo tempo, integra e estimula redes e vias
neuronais. Entendo a Musicoterapia como uma ciência em
desenvolvimento e incontestavelmente, neurológica, pois, baseia-se nas
evidências teóricas e clínicas, comprovadas na percepção e produção da
música que, se aplicadas com intenção clínica e intensiva, têm a
capacidade de influenciar tanto na estrutura, quanto na neuroquímica do
cérebro, modificando assim, seu funcionamento. Como menciona a
“Revista Cérebro e Música – segredos da mente” (2018, p.12),
... o processo terapêutico funciona estimulando reações
neuroquímicas em terminações nervosas seletivas. Isso resulta em
potenciais incentivos de endorfinas, entre outras substâncias.
Essas reações podem potencializar a restauração de sinapses,
melhorar a comunicação de neurotransmissores e, assim, auxiliar
no restabelecimento dos circuitos neurais, associados às
disfunções e doenças.
Se a modificação ocorre internamente, o caminho complementar
é trabalhar em conjunto com os fatores ambientais e culturais, nos
sentidos singular e coletivo, para que a “pessoa- parceira”, realmente,
consiga se metamorfosear. Portanto, numa visão holística, ambas as
abordagens são complementares. Vale dizer que se reconhece o conteúdo
biológico do ser humano, no sentido de sua interação com o meio físico,
mas explica-se a causa do comportamento como resultante de seu
movimento interno. Não há como negar as contribuições psicobiológicas,
nem neuropsicológicas, que descrevem a materialidade do organismo
humano, mas alega-se que essa contribuição não se estende ao pensamento
e sentimentos humanos, que se desenvolvem por meio das relações entre
os homens, para que possamos compreender o homem criativo,
transformador, sujeito da história social do seu grupo. Essas relações
formam a base para a realização de mudanças. A história é autoprodução
humana, isto é, o homem a compõe. Diversos momentos são vividos com
mais ou menos intensidade que outros e, por isso, são marcantes pelo
sentimento que foi aflorado no instante em que aconteceu (Ciampa;
Ardans, Silveira, 1997, p.8).
A teoria da identidade como metamorfose, de Antônio da Costa
Ciampa (2003), fundamenta-se na ideia de que as metamorfoses se dão
360
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
conforme condições histórias e sociais que também se metamorfoseiam,
promovendo uma crescente diversidade. Quando nos referimos à
identidade, fazemo-lo como uma palavra tripla, que é o cerne da teoria
aqui adotada. O sintagma “identidade-metamorfose-emancipação” é uma
unidade, uma junção de palavras e de conceitos que formam um novo
conceito. Kolyniak (2002, p.49) afirma que a identidade é “... construção,
reconstrução, desconstrução constantes, no dia-a-dia do convívio social,
na multiplicidade das experiências vividas tendendo à humanização cada
vez mais plena da sociedade e dos indivíduos” (In: SMITH, 2019).
“Emancipação é a autoexperiência em que se cruza o
autodomínio pessoal com a autonomia do indivíduo”. Essa definição, de
Habermas (1990), condiz com a filosofia do pensamento de Ciampa, no
sentido de que a teoria exposta acima associa outros dois termos
(identidade e metamorfose), sintetizando-os num sintagma importante.
Para este autor (2002), teoria e práxis são indissociáveis, afirmando que
identidade é metamorfose, uma vez que há um crescimento dinâmico.
Para ele, o desenvolvimento da identidade depende tanto da
subjetividade, quanto da objetividade, pois, na práxis, essa unidade faz
com que o homem produza a si mesmo, concretize sua identidade.
Musicoterapia é práxis.
Metamorfosear em Musicoterapia significa ser natural, buscar
uma transformação reflexiva, no âmbito do quesito sonoro-musical. Para
Kolyniak (2002, p.59), “... se há vida, há movimento, e, se há movimento,
pode haver transformação”. Parafraseio a autora, complementando: se há
vida, há vibração, que resulta em som e ritmo, que geram movimento e, se
há movimento, poderá haver metamorfose. Esta, vista como uma
transformação interna, ocorre no corpo-mente-emoção-espírito e, dentro
desse sintagma, podemos entender como a musicalidade existe
naturalmente. Entretanto, para utilizá-la, há que se ter formação específica
e sistematizar a matéria com objetivos claros e intenção clínica, além de
passar, também, pelo processo musicoterapêutico como “pessoa-parceira”.
O ato respiratório, que nos dá a certeza de que estamos vivos, corresponde
a uma das principais estratégias aliadas aos outros aspectos do
comportamento humano. Respirar adequadamente, ou seja, utilizar-se de
uma respiração diafragmática, é viver com maior qualidade. Portanto, é
com a tentativa de se obter uma consciência do ato respiratório existente
no musicoterapeuta e na “pessoa-parceira”, que se deve iniciar um
361
A vida ressignificada num corpo mutilado
processo musicoterapêutico, resumindo-se a ritmo e som, consciência
respiratória e autocontrole.
Concordo com a definição de “música” colocada por
Zampronha (2007), como um recurso de expurgação. Diz ela:” A música é
[...] um recurso de expurgação, catarse, maturação, e por sua prática
aprende-se a organizar o pensamento, a estruturar o saber adquirido...”.
Entendo que há três pilares no uso da música como terapia: voz, corpo e
objeto sonoro. A conjunção dessas colunas de sustentação,
concomitantemente, ajuda os sujeitos musicais (musicoterapeuta e
“pessoa-parceira”) a atribuir sentido às suas expressões, já que são
elementos “humano-musicais” indissociáveis, imprescindíveis e
naturalmente conectados (Smith, 2019, p.48).
O musicoterapeuta coloca-se à disposição do outro para dividir,
somar e multiplicar as experiências musicais positivas e subtrair as
negativas, em setting terapêutico próprio, compreendendo que estão
implicadas numa mesma situação e devem ser igualmente analisadas.
Bleger, 1966, in: Ferrari e cols (2013, p.27) analisa a questão do enquadre,
definindo-o como “o conjunto de elementos que permanecem estáveis e
permitem visualizar um processo terapêutico”. Para Ferrari, em seu
Modelo de Musicoterapia Dinâmica (MTD), os elementos estáveis do
enquadre seriam: espaço (ou constante espacial), periodicidade e duração
da intervenção, set instrumental e técnico, orientação teórica do
profissional, honorários, supervisão e intervisão. Podemos afirmar que é
um entremeado de passado, memória de conhecimentos e sentimentos no
presente e com futuros desejados à frente, que se interconectam, para
transformar e equilibrar os mundos entre si. “O singular materializa o
universal na unidade do particular”, diz Ciampa (2002, p.21). Somos
singulares em nosso mundo musical, mas, nossa singularidade representa
toda uma universalidade, que cresce e se reestrutura no âmbito particular.
Pacheco e Ciampa (2006) referem:
Verificou-se que, quando o sujeito consegue atribuir um sentido
emancipatório ao conflito gerado pela sua amputação, ele pode
rever seus valores preconceituosos e estigmatizantes acerca do
significado social de ser uma pessoa com deficiência e com isso
ressignificar tais valores, o que propicia uma postura mais
reflexiva e autodeterminada, bem como a reconstrução de seu
projeto de vida com um novo sentido emancipatório.
362
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Trabalhar, em Musicoterapia, com pessoas que perderam
membros do corpo, ou, que ficaram mutiladas, significa, como já dito,
compreendê-las como corporeidades e a corporeidade é vivência do fazer,
sentir, pensar e agir, musicalmente. Isso exige ultrapassar as aparências
daqueles que sofreram amputações ao longo de suas vidas e, portanto,
perderam partes do corpo físico. Entretanto, em busca de ressignificações,
utilizamos os elementos sonoro-musicais como recurso principal,
transformando muitas mentes qualificadas como “perdidas”, “revoltadas”
ou “esquecidas por Deus”, em vidas cheias de possibilidades e de futuras
realizações. É como se, diante delas, a possibilidade de renovação abrisse as
portas para novos viveres (Pacheco & Ciampa, 2006).
Como mencionei, acima, apresento a síntese metodológica do
trabalho desenvolvido no Hospital das Clínicas de São Paulo (FMUSP),
com “pessoas-parceiras” amputadas, da qual adveio um doutoramento.
Uma amostra de 5 pessoas foi apresentada na tese de doutorado,
defendida em 2017, em parceria com a Pontifícia Universidade Católica -
PUC/SP, enquanto pesquisa, de caráter qualitativo-exploratório,
categorizada como “estudo de casos”, para os quais as informações
coletadas foram registradas, transcritas e tratadas. As 10 sessões
musicoterapêuticas, individuais, realizadas consecutivamente, num
processo considerado breve, como pesquisa científica, serviram de base
para o desenvolvimento posterior de uma sistematização semelhante, em
40 pacientes amputados, ao longo de 8 anos consecutivos, como
musicoterapeuta clínica e coordenadora da área de Musicoterapia.
Exporei, aqui, o trabalho processual, mantendo a mesma sistemática
metodológica feita na pesquisa de doutorado, embora com as devidas
modificações necessárias, ao se tratar de atendimentos sequenciais.
O trabalho de Musicoterapia como processo só deu início, no
momento em que me foi disponibilizada uma sala contendo instrumentos
musicais de pequeno, médio e grande portes, instrumentos eletrônicos e
ambiência adequada para os atendimentos. No começo, eram “meus
pacientes”. Com o decorrer do tempo, passaram a ser vistas como
“pessoas-parceiras”, que, ou aceitaram participar das sessões como
convidadas, ou foram encaminhadas por médicos fisiatras ou paramédicos
de outras profissões, como psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas
ocupacionais, fisioterapeutas e enfermeiros. Cada sessão teve a duração de
40 minutos e seguiu as seguintes etapas metodológicas: 1) etapa
musicodiagnóstica; 2) etapa de desenvolvimento e; 3) etapa conclusiva.
363
A vida ressignificada num corpo mutilado
O termo “musicodiagnóstico” (Smith, 2002;2009), é um
conceito cunhado pela autora e refere-se ao processo de diagnosticar
musicalmente, constituindo um modelo de avaliação em musicoterapia,
etapa fundamental em qualquer processo musicoterapêutico. O termo em
pauta ocupa-se de “um determinado momento de vida do indivíduo
constituindo sempre uma hipótese diagnóstica, por mais completa que
seja” [...]. Seu objetivo é organizar elementos musicais presentes no ser
humano, decorrentes de fatores genéticos, ambientais e culturais, de
forma a obter uma compreensão da ‘pessoa-parceira’. Além disso,
subsídios úteis são oferecidos ao profissional, que confirmará ou não as
hipóteses ou expectativas levantadas a revisões e reformulações teóricas.
Ao realizarmos o “musicodiagnóstico” temos que considerar o contexto
no qual nossa atuação está inserida. O que se prevê é o conhecimento das
necessidades ou problemas sonoros, rítmicos e melódicos com seus
matizes no ser humano. Afirma Smith (2009, p.352): “O
‘musicodiagnóstico’ é o resultado da aplicação de um complexo de
avaliações que envolvem os fatores determinantes do perfil sonoro-
musical da pessoa”. Continua a autora: “Ao se avaliar, objetiva e
subjetivamente, está-se ‘congelando’ uma situação, isto é, está-se
’retratando’ momentos em que as diversas partes de um todo
‘responderam’ diante de estímulos e de reações obtidas”. Sua ideia mostra
que “Para que o ‘musicodiagnóstico’ não se torne uma demonstração
estática, ou seja, sem movimento, é necessário que esses encontros iniciais
sejam relatados de forma dissertativa, concomitantemente com as
sinalizações feitas nas fichas”. No livro “Musicoterapia e Identidade
Humana: transformar para ressignificar” (Smith, 2015), publicado pela
editora Memnon Edições Científicas, as fichas citadas estão claramente
demonstradas.
Sintetizando as etapas mencionadas acima, temos:
1) Etapa Musicodiagnóstica:
Análise do encaminhamento e triagem;
Coleta de dados, por meio de entrevistas individuais;
Consulta aos prontuários;
Trocas de informações nas reuniões de equipe;
Entrevistas complementares com os cuidadores;
Elaboração conjunta dos planos de ação musicoterapêutica.
364
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
2) Etapa de Desenvolvimento, ou, programação dos passos para o
alcance dos objetivos prescritos, incluindo:
Diálogos (verbais e não-verbais) entremeados ao longo das
sessões;
Sessões práticas, com duração de 40 minutos;
Organização do material resultante, em conjunto.
3) Etapa Conclusiva:
Interpretações sonoro-musicais (rítmicas, melódicas e
harmônicas) e análise das narrativas das letras das
composições criadas, com atribuições de sentido;
Interpretação final, vinculando letras, melodias e ritmos,
num crescendo sessão por sessão, até terem sentidos pessoais,
após significados atribuídos aos instrumentos musicais
eleitos, estilos, ritmos, andamentos e demais elementos
sonoro-musicais e as histórias que caracterizam os períodos.
Cada sessão, no processo musicoterapêutico, é subdividida em
sub etapas, como: aquecimento ou relaxamento, desenvolvimento e
fechamento. Na entrada à sala, a pessoa traz consigo um humor
determinado, um estado de espírito próprio e toda uma vida, cheia de
alegrias e sofrimentos, que acontecem durante uma semana inteira. Desta
forma, há que se sentir como essa “pessoa-parceira” adentra ao setting e,
nesse momento, não propor nada e, sim, aguardar a sua posição,
respeitando-se a sua individualidade. Se em êxtase, inicia-se na mesma
medida sonoro-musical, isto é, acompanhando-a em seu trajeto sensório-
motor, emocional e psíquico, onde são evidenciados os parâmetros da
música claramente, se bem observados. Em resumo, a própria “pessoa-
parceira” nos mostra como a sessão será desenvolvida, embora o objetivo
terapêutico deva estar sempre obviamente prescrito. O desenvolvimento é
toda uma contextualização do que foi exposto anteriormente. Palavras,
sons, frases, gestos vocais, corporais, silêncios e movimentos são
expressados, mesmo que em intensidade fraca ou pouco rica, dando
abertura para que tudo isso seja contextualizado, com o intuito de
compreender o tema da sessão como um todo e não de modo
fragmentado. No fechamento, são coletadas as narrativas de cada uma das
letras das músicas trabalhadas e documentadas e feitas suas devidas
transcrições, atribuindo-as um sentido pessoal/coletivo.
Os breves processos foram fundamentados na visão histórico-
social, na tentativa de entender a composição de identidades singulares e
365
A vida ressignificada num corpo mutilado
complexas, que vivem no mundo e poderem mudar todo o universo
sonoro-musical interferindo no ecossistema. Como dissemos
anteriormente, na singularidade está implícita uma coletividade, isto é, o
singular se revela materializando o universal (Ciampa, 1986).
Os atendimentos em parceria, objetivaram: 1) conduzir as
entrevistas e sessões em ambiente natural (o campo), considerado uma
fonte de dados para uma estreita interação; 2) basear-se na troca de
experiências sonoro-musicais, em que o musicoterapeuta e a pessoa-
parceira participam ativamente; 3) envolver o uso de múltiplos métodos;
4) envolver raciocínio complexo, que circulasse entre o indutivo e o
dedutivo; 5) manter o foco nas expressões gestuais, corporais e silenciosas
da pessoa-parceira, seus significados, suas múltiplas visões subjetivas; 6)
situar-se no contexto social, político e histórico de ambos; 7) envolver um
projeto emergente e em evolução, em vez de um projeto rigidamente
prefigurado; 8) ser reflexivo e interpretativo, isto é, sensível à identidade
social de ambos; 9) apresentar um quadro holístico complexo.
A forma de análise dupla (sociopsicológica e sonoro-musical),
que foi realizada por meio de uma combinação de elementos da música
(timbre, duração, intensidade, altura, ritmo, movimento e silêncio), com
os das linguagens corporal e vocal, foi expressa pelo lirismo popular.
Utilizando-se o método de ação participativa, pode-se aplicar
várias técnicas, que só encontram respostas significativas, se realizadas de
acordo com o que a “pessoa-parceira” demonstra necessitar. Podemos citar
algumas técnicas como as de aproximação, escuta musical, improvisação
livre e orientada, canção, construção sonoro-musical, projetivo-sonora,
composição musical, composição assistida, audição musical, relaxamento,
aquecimento, recriação, provocativa musical, provocativa pré-musical,
entre outras.
A técnica da canção foi a mais utilizada no processo. “O cantar
pode ser revelador e/ou restaurador da alma humana”, segundo Millecco
Filho, Brandão e Millecco (2001). Para os autores, num mesmo ato de
cantar, pode haver mais de uma função: dessa forma, a categorização
elaborada pelos autores é metodológica. Para eles, existem as seguintes
funções do canto: canto falho, canto como prazer, canto como expressão
de vivências inconscientes, canto como resgate, canto desejante, canto
comunicativo e canto corporal.
Passo a apresentar uma das 40 “pessoas-parceiras”, trabalhadas
em Musicoterapia, no IMREA HC/FMUSP, no ano de 2018, ao qual
366
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
atribuí o codinome “Riqueza de Sonoridades”, com 28 anos de idade
cronológica. Após participar como sujeito de pesquisa, “Riqueza de
Sonoridades” quis iniciar o processo e todos os trâmites metodológicos
foram adotados. Já como “pessoa-parceira”, foi submetido à entrevista
inicial complementar, que demorou 25 minutos. A consigna resumiu-se
nesta frase: “Me fale de você”. A “pessoa-parceira” revelou que gostaria de
ser mostrada, tanto quanto ao nome, quanto à própria imagem, já que
“não [teria] problema nenhum”. A fala da pessoa, que adquiriu três
amputações há dois anos, por acidente de motocicleta (perna direita,
braço esquerdo e vista direita), deixou clara a necessidade de mostrar ao
mundo o quanto poderia ser útil, o quanto possuía um grau importante
de resiliência.
Relembrando o que foi exposto no livro de autoria de Smith
(2019), antes do acidente, “Riqueza de Sonoridades” havia sido professor
de terapia capilar, de adolescentes, o que o fazia ter uma rotina de
atividades, pois, após as aulas que ministrava pela manhã, pegava seu
irmão mais novo e iam para casa, ajudar a mãe em seus afazeres
domésticos. Apenas os três moravam juntos: ele, seu irmão e sua mãe.
Entretanto iam, com frequência, visitar a avó e demais familiares. Relatava
com orgulho, momentos ocorridos no convívio com a família, da qual
parecia orgulhar-se. Seu maior sonho era trabalhar na educação social.
Sempre voltava a relatar o acidente em si, com detalhes como, por
exemplo, ter sido socorrido somente sete horas após terem pedido
socorro. Continua o relato assim: “Quebrei uma perna e tive fratura
exposta no braço. O médico, depois de um mês internado em estado de
coma, me disse que salvou minha vida, com as amputações. Não acreditava
naquelas palavras, pois, sentia tudo com os membros que ele dizia ter
retirado. Precisei olhar para eles, logo após ter levado um tombo no quarto
do hospital, quando quis me levantar para ir ao banheiro”. Referiu, várias
vezes, o quanto a música poderia lhe “fazer bem, já que gostava muito de
ouvir e cantar Roberto Carlos”.
Após consulta de seu prontuário médico, no primeiro encontro,
não houve proposta nenhuma, pois, a intenção era coletar dados sobre sua
vida geral, entremeando com perguntas consideradas importantes para o
trabalho futuro e observando-o ao máximo, com a finalidade de escutá-lo
integralmente.
367
A vida ressignificada num corpo mutilado
“Riqueza de Sonoridades” foi encaminhado pelo setor médico,
por um fisiatra da equipe do hospital, por intermédio de um protocolo,
em que solicitava uma avaliação e acompanhamento musicoterapêuticos.
Após ser informada pela equipe, em reunião clínica, que havia
uma fila de espera de um ano, para o tratamento musicoterapêutico
determinou-se, em respeito as pessoas que aguardavam, que seriam
realizadas 20 sessões, no mínimo e 30, no máximo, conforme o
andamento do processo. Desta forma, foi agendado o primeiro encontro,
tomando-se o cuidado para que o mesmo acontecesse num dia que
facilitasse a sua presença, já que residia a mais de quarenta quilômetros de
distância. Nesse mesmo dia da semana, portanto, fazia todas as terapias
prescritas e, dentre elas, a Musicoterapia.
As sessões musicoterapêuticas foram se sucedendo, com o
decorrer das semanas e “Riqueza de Sonoridades” foi evoluindo pessoal e
musicalmente.
As letras, surgidas pelo lirismo popular, o estimulavam sensorial e
motoramente, pois, aliadas à motivação do fazer musical e também da
escuta, passaram a explorar os instrumentos musicais dispostos no setting,
onde eram acrescentados outros, de acordo com a nossa percepção, em
conjunto. A ação, portanto, era participativa por parte de ambos e sempre
transformada, conforme a metamorfose ia ocorrendo.
As expressões, inicialmente sem sentido, eram organizadas, de modo
a fazerem um sentido. Assim, a metodologia transcorreu da seguinte
maneira:
Grunhidos, interjeições, fonemas, sílabas, palavras, meias frases
ou frases soltas;
Anotações (ou vídeos/gravações) e organização, inserindo verbos
de ação;
Síntese do registro sonoro-musical, corporal e vocal, inserindo:
ritmo, tonalidade, andamento, instrumento líder, atmosfera
sonora, altura, dinâmica musical, expressão musical, intensidade,
presença ou não de modulação, articulação, intervalos melódicos
e, finalmente, o título, atribuindo uma identidade às próprias
composições.
Convém, aqui, lembrar a importância do uso do material
sistematizado por esta autora (Smith, 2002), intitulado “Modelo de
Avaliação em Musicoterapia: uma proposta diagnóstico-terapêutica”.
368
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Trata-se de uma forma sintetizada de registro, anterior e concomitante
com o processo musicoterapêutico, criado para facilitar a avaliação
propriamente dita.
“Riqueza de Sonoridades” criou e recriou várias composições,
durante todo o processo e, em todas elas, verificava-se as expressões verbais
“superação” e “valorização”, que foram transformando seus sentidos, ou
seja, o que mencionava no início como “superação” tinha o sentido de
tentativa, apesar do desejo de suicídio por estar mutilado; quando falava
em “valorização”, não mais o sentia como necessidade de estar no mundo
e de que os outros o vissem com olhos de um ser humano inteligente e
capaz.
A análise da fala e das posteriores composições teve um sustentáculo
teórico mediado pela Psicologia Social e pela Musicoterapia, na
abordagem histórico-social, permeada pela musicoterapia neurológica
(Tomaino, 2014). Sabemos que “... as ciências - e as demais áreas do
conhecimento – caracterizam-se pela constante revisão e contextualização
de suas teorias, a cada fase da humanidade, para que o progresso seja o
resultado de um processo histórico e cumulativo, dialógico e dialético,
protagonizados pelas sociedades” (Ilari& Araújo, 2009). Propor uma
teoria de Musicoterapia não significa rejeitar os conhecimentos
provenientes de outras fontes (pelo contrário), mas enfatizar no fato de
que a Musicoterapia pode proporcionar dados para a avaliação e
estratégias terapêuticas, do ponto de vista sonoro-musical. Assim, a
Musicoterapia, como qualquer ciência da observação, baseia-se em fatos e
sentidos; é progressiva e deve dialogar com todas as ciências.
Concordo com Camargo (2013) quando assumimos que é necessário
expandir nossa consciência, nosso pensamento e nossa mente para
entendermos o outro. Segundo o autor, para melhor compreender o
pensamento, visualizamos, inicialmente, cinco vertentes: inteligência,
matéria mental, mecanismo, intenção e resultado. Pensar Musicoterapia é
adotar e praticar esses cinco objetos de discussão, pois, é a partir deles que
surgem as formas-pensamentos e se transformam em chaves da mente.
Quando uma pessoa perde membros do seu corpo, tornando-se
alguém amputado, durante uma vida dinâmica e produtiva, assume uma
outra personagem: a de “deficiente físico”. Portanto, se não houver um
esteio terapêutico que o faça superar suas dificuldades, pode cair num
mundo de dissabores e fracassos, com um déficit importante no grau de
autoestima e, portanto, de autoimagem. Falar de si mesmo, como
369
A vida ressignificada num corpo mutilado
proposta a consigna no setting musicoterapêutico, é questão complexa,
pois chega a ser invasiva. Exige, primeiramente, confiança no outro e uma
abertura, um despojamento para “contar cantando” fatos e pormenores
vividos, que passarão a ser compartilhados. Assim, no decorrer das
expressões corporais, sonoro-musicais e/ou vocais, os conflitos e soluções
vão aparecendo e tudo vai tendo um outro modo de olhar o mundo, de
encontrar novas possibilidades de viver. A metamorfose vai se
estabelecendo como um processo evolutivo e os estigmas vão diminuindo
de intensidade.
Como referem Pacheco e Alves (2007, p.246), em Smith (2019):
... a pessoa com deficiência começa a ter um espaço também na
esfera profissional, o que a possibilita exercer outros papeis de
uma maneira diferente da que vinha ocorrendo, ou seja,
diminuindo o protecionismo e o assistencialismo. Dessa forma, a
pessoa com deficiências poderá se colocar na sociedade com seus
direitos e deveres, como uma pessoa produtiva, agregando valor
de forma competitiva nas empresas.
Enquanto musicoterapeutas, temos o desejo que a ressignificação
dessas “pessoas-parceiras” sempre aconteça de forma realista, pois, na
verdade, a sociedade nem sempre põe em prática a inclusão tão falada na
mídia. Ressignificar significa desconstruir algo cristalizado anterior e
interiormente, cuja estratégia de aproximação possibilita a expressão de
conteúdo, para obtenção de uma nova construção, ou ressignificação. O
ressignificar parte de uma compreensão que precede e sucede tanto o
pensamento quanto o conhecimento, pois confere sentido aos seus
resultados (Smith, 2017). Essa compreensão, que dá sentido a algo ou a
alguém, parte do senso comum, de coisas que orientam o nosso agir e a
nossa existência cotidiana. Necessitamos, pois, que as empresas abram
espaço para essas pessoas com deficiências, indiferentemente de raça,
gênero ou crença, mas, especialmente do tipo de deficiência instaurada.
Devem permitir que elas convivam naturalmente, como qualquer ser
humano, do jeito que são, com a visão de que podem se transformar e se
adaptar a quaisquer situações.
Schewinsky (2004) ressalta a necessidade de uma maior
compreensão crítica da sociedade, que resulte em melhorar as condições
individuais e sociais dessas pessoas. Diz ela: “A pessoa que se pensava
poderosa e depara-se com a instalação da deficiência em sua vida adulta,
370
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
passa a ser objeto de discriminação não só dos outros, mas de si mesma”.
Afirma a autora:
A condição social vigente precisa ser superada para que a vida siga
seu caminho com sentido com condições de enfrentamento e
findar a exclusão. Para tal, é necessária atenção à dança dos
preconceitos de todos e de ninguém, dança envolta na música do
social e na melodia da mentira manifesta.
A meta de processos musicoterapêuticos, como este aqui exposto,
foi atingir a pessoa-parceira, vista como indivíduo concreto, manifestação
de uma totalidade histórico-social. Para isso, partiu-se do empírico e, por
meio de análises sucessivas, aprofundou-se na compreensão do seu
conteúdo, que foi além do aparente, em direção a esse concreto. A análise
foi feita por meio das categorias do psiquismo humano, tais como o
pensamento, a atividade, a consciência e a emoção, em paralelo à
Identidade Sonoro-Musical, com foco no sintagma “identidade-
metamorfose-emancipação”, conceito básico da Psicologia Social
desenvolvido por Antônio da Costa Ciampa (1986), que considera o
indivíduo como um todo e, o mais importante, considera a pessoa como
um todo na sua relação com as outras pessoas. Pôde-se estabelecer um
rapport, um laço forte com a pessoa-parceira trabalhada, formando um
canal de comunicação positivo. Foram utilizados desde grunhidos até
frases completas e transformadas em palavras cantadas, verbalizadas sem
intenção inicial, mas que contavam sobre rotinas de vida. A conexão daí
resultante levou a pessoa-parceira ao canto propriamente dito de frases
sobre a sua rotina de vida passada, presente e de projetos futuros. Ao se
propor esse tipo de processo musicoterapêutico, deparou-se com a palavra
e com a música, concomitantemente, para compreender como se dá a
narrativa oral facilitada pela expressão sonoro-musical. Entendo que esse
procedimento seja uma técnica de análise dupla e foi o que definiu as
categorias. Assim, a palavra cantada une dois fortes elementos de
comunicação: a música e a fala. É a fala convertida em canção e, ao mesmo
tempo, a música expressa em palavras (Jaber & Müller, 2004). Portanto,
música e palavra, unidas, não se sobrepõem: transformam-se em outra
linguagem.
Conclui-se que as histórias de experiências pessoais/musicais da
“pessoa-parceira”, trabalhadas em Musicoterapia, sob o paradigma da
abordagem histórico-social com pessoas amputadas, pode possibilitar a
371
A vida ressignificada num corpo mutilado
reinvenção de personagens, ou a ressignificação de valores e concepções de
mundo, em que questões como sentimento, pensamento e ação são
analisadas e mudanças podem ser percebidas. A música como terapia –
Musicoterapia – oferece a possibilidade de um novo contexto de vida, em
que o sujeito amputado poderá aprender a “andar com as próprias
pernas”. Foi o que aconteceu com a “pessoa-parceira” exposta neste
trabalho que, hoje, aliás, é modelo fotográfico de sucesso. Sabemos que a
música expressada, cujos significados podem se assemelhar, mas cujos
sentidos são particulares e dependem, em grande parte, das histórias de
vida e do quanto eventos dessas histórias são relevantes para mais ou para
menos, em cada pessoa, serve de material a ser interpretado.
São palavras e músicas transformadas. São as metamorfoses da
metamorfose!
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372
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374
Capítulo 18
MUSICOTERAPIA NO ENFOQUE DE
PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADES,
CONTRIBUIÇÃO FILOSÓFICA DE
DELEUZE E GUATTARI
70
Neste artigo utilizo parte da pesquisa desenvolvida com bolsa CAPES em meu
doutorado “Processos de Produção de Subjetividade na Música e na clínica em
Musicoterapia” (Chagas-Oliveira- Pinto, 2007), realizado na UFRJ sob a
orientação da dra Rosa Maria Leite Ribeiro Pedro. Lanço mão também de
fragmentos clínicos de pessoas por mim atendidas para ilustrar a compreensão
desta teoria na musicoterapia.
375
Musicoterapia no enfoque de produção de subjetividades, contribuição filosófica de Deleuze e Guattari
71
Os perceptos não mais são percepções, são independentes do estado daqueles
que os experimentam; os afectos não são mais sentimentos ou afecções,
transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, percep-
tos e afectos, são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido.
Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é
fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto
de perceptos e de afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela
existe em si (Deleuze & Guattari, 1992, p. 213).
376
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
sessões clínicas, mas as sensações com as quais o artista impregna o som em
sua obra. É difícil dizer onde o material acaba e onde começa a sensação.
Onde acaba a voz do cantor e começa a emoção que me invade ao ouvi-la;
onde começa e acaba a vibração no corpo e o som da orquestra.
Os perceptos, como os afectos, são seres de sensação e se
conservam em diferentes materiais na arte. Ao estado do corpo induzido
por outro corpo, Deleuze e Guattari chamam de perceptos. A passagem de
um estado a outro, com o aumento ou a diminuição do potencial-potência
que se dá em um corpo sob a ação de outros corpos são os afectos. O
artista arranca o percepto das percepções do objeto, arranca o afecto das
afecções, criando agregados sensíveis (Deleuze & Guattari, 1992).
Mesmo se o material só durasse alguns segundos, daria à sensação
o poder de existir e de se conservar em si, na eternidade que
coexiste com esta curta duração. Enquanto dura o material, é de
uma eternidade que a sensação desfruta nesses mesmos
momentos. A sensação não se realiza no material, sem que o
material entre inteiramente na sensação, no percepto ou no
afecto. Toda a matéria se torna expressiva” (Deleuze & Guattari,
1992, pp. 216, 217).
A música é um exemplo destes materiais que, mesmo durando
apenas segundos, conservam uma sensação que nos contagia. Para isso, o
artista ultrapassa os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido.
Pode inspirar-se no vivido, mas ao criar uma obra de arte, importa que ele
torne durável o momento vivido, fazendo-o existir por si. Essa expansão,
provocada pela arte, faz do afecto não a passagem de um estado vivido a
outro, não a evocação da memória, mas o despertar da possibilidade de
outra vivência. ”Não celebra algo que se passou, mas transmite para o
futuro as sensações persistentes que encarnam o acontecimento” (Deleuze
& Guattari, 1992 p. 229). Conta Alberto Caieiro em O Guardador de
Rebanhos: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque
o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia”. (Alberto Caieiro/
Fernando Pessoa, 1914).
Para um compositor, um músico, um pintor, as lembranças de
infância, por exemplo, não são suficientes para a criação. A arte ativa
“blocos de infância”, através de “devires-criança do presente”. O ouvinte,
ao ser encharcado de sensações de infância, ativa processos atuais que não
377
Musicoterapia no enfoque de produção de subjetividades, contribuição filosófica de Deleuze e Guattari
378
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
atingido uma zona de indeterminação, de indiscernibilidade. “Um artista
inventa afectos não conhecidos, ou desconhecidos, e os faz vir à luz do
dia”. (Deleuze & Guattari, 1992, pp. 225, 226). “Qualquer canção de
amor/ É uma canção de amor/Não faz brotar amor/E amantes/ Porém, se
essa canção/ Nos toca o coração/O amor brota melhor/E antes.” (Chico
Buarque, 1980)
É este o efeito da arte que utilizamos em nossa prática.
379
Musicoterapia no enfoque de produção de subjetividades, contribuição filosófica de Deleuze e Guattari
72
O nome é fictício.
380
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
faço uma série de seis notas cromáticas descendentes, ela deita-se
cercada pelas almofadas. Um ninho, um útero. Sentadas uma
diante da outra, olho para ela, em silêncio. Ela parece dotada de
uma forma especial de me perceber. Sabe da minha presença,
mesmo que não esteja olhando para mim. Parece que me vê com
sua pele, e, no entanto, seu olhar me atravessa. No seu ninho, faz
sons guturais, pré-verbais. Chego mais perto, imitando seus sons.
Ela me afasta. Pega uma almofada e abraça-a. Faço o mesmo.
Ficamos assim abraçadas, cada uma à sua almofada, frente a
frente. Pego a baqueta do metalofone e, suavemente, busco um
contato com ela através do toque da baqueta em sua pele. É a
primeira vez que chego tão perto dela. Ela emite, novamente,
sons guturais. Largo a baqueta e ela a segura. Compreendo que
quer a continuação do toque. Volto a tocar em suas costas, em
suas pernas. Tudo é muito delicado. A menina se levanta e toca
três notas no metalofone, aparentemente aleatórias, e sai do
ninho construído. Percuto as mesmas notas, acrescento outras, e
vou atrás dela. Ela se deita por pouco tempo e logo muda de
lugar, abraçando-se a outra almofada. Deito-me em paralelo a seu
corpo, a uma distância de mais ou menos um metro. Ela inicia
um som baixinho, usando basicamente a garganta e a base da
língua. Parece dizer “cá, cá, cá”. Começo, então, um jogo de me
aproximar e de me afastar, um esconde-esconde. Branca, atrás de
sua almofada, ri com a brincadeira. Vou chegando mais perto. Ela
ri e cantarola um grito de aproximação. O som é forte e alegre.
Vou chegando mais perto com a minha voz e com o meu corpo.
Encosto minha cabeça em sua almofada, até que a descubro.
Ela, então, levanta seu braço e cuidadosamente toca o meu rosto.
Um movimento tão lindo, tão comum nos bebês, mas que neste
momento cresce de significado. Branca me toca, descobrindo-me,
descobrindo-se. Com a mão espalmada no meu rosto, olha. A
princípio olha para trás; é grande a espasticidade no pescoço. Eu
também exploro suas mãos no meu rosto, lambo seus dedos, faço
sons; ela olha para mim e coloca seus dedos dentro da minha
boca. A partir dessa data, muitas vezes compartilhamos
momentos de contato que foram, gradativamente, se tornando
381
Musicoterapia no enfoque de produção de subjetividades, contribuição filosófica de Deleuze e Guattari
73
Pinto. M.C.O. é a mesma autora que Chagas, M. Opto por referenda como
Chagas,M- Pinto M.C.O.
74
O método de Imagens Guiadas em Música, criado pela musicoterapeuta Helen
Bonny utiliza-se desta característica da música em seu trabalho de musicoterapia.
(Bonny, 1978).
75
Acompanhei filmando esta cena do o Projeto Buscando Caminhos através das
Arte, que coordenava. A transcrição foi feita a partir desta filmagem.
382
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
concordam com a escolha. Com extrema delicadeza, lentamente,
roda o pandeiro para segurá-lo adequadamente, prepara-se. A
flauta, o cavaquinho e o violão iniciam a melodia da música, “No
rancho fundo bem pra lá...”, entra o pandeiro. O olhar e os
ouvidos do músico são atentos. Suas mãos pretas de palmas
brancas aparecem no fundo transparentes do pandeiro
executando com uma precisão extremamente suave o quaternário
do samba lento. No ritornelo, tocam a princípio só flauta e o
pandeiro. O som espalha uma vida diferente no ambiente. Um
dos componentes da enfermaria percute na sua cama um
acompanhamento rítmico e, desta maneira singular, tanto
participa da música quanto parece que a música participa de seus
pensamentos, de suas lembranças, de seu corpo. O violão junta-se
ao acompanhamento. Quando a música acaba, soam aplausos.
O velho músico, companheiro de boemia dos mais respeitosos
músicos brasileiros, chora. Diz que a gente esquece das coisas e ele
pensou que havia esquecido a música, mas não esqueceu. “Pensei
que nunca mais ia tocar”. Seu sorriso emocionado chora. (Chagas
& Pedro, 2008, pp. 10-11)
A terceira característica da sensação na arte é o recuo, a divisão e a
distensão das sensações. Ocorre quando duas sensações se separam e
voltam a se reunir. As alturas e durações, os timbres e as intensidades,
repetidas e/ou variadas fazem, na música, o som se diferenciar
ilimitadamente. Deleuze e Guattari encontram esta modalidade da
sensação no tema, com suas possibilidades de modificações provocadas
pelas linhas melódicas que produzem o que “não fecha sem se descerrar,
fender e também abrir" (Deleuze & Guattari, 1992, p. 245).
Valter76, homem de 49 anos portador de tumor de tronco
cerebral, foi acompanhado por mim em cuidados paliativos. O
relato do trabalho em musicoterapia pode nos inspirar na
compreensão de como a arte pode distender, recuar, dividir e
reintegrar sensações na clinica.
O tumor continuava seu crescimento. Como consequência, sua
locomoção ainda se tornou mais difícil, a surdez aumentava. No
76
O nome é fictício.
383
Musicoterapia no enfoque de produção de subjetividades, contribuição filosófica de Deleuze e Guattari
Os agenciamentos de enunciação
385
Musicoterapia no enfoque de produção de subjetividades, contribuição filosófica de Deleuze e Guattari
77
Chamo aqui de cliente uma pessoa, uma família, um grupo ou uma
comunidade.
386
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
oportuniza a criação de outras cadeias de experimentações subjetivas
(Chagas, 2012).
Exemplifica-se com a história de Marisa, que chega, naquele dia,
bastante entusiasmada para o seu trabalho terapêutico comigo.
No transcorrer da sessão peço-lhe para que cante uma música e
ela canta Carinhoso (Pixinguinha & Joao de Barro, 1959).
Solicito que a dedique a alguém e ela dedica a ela mesma. Peço,
então, que ela repita a canção e cante em primeira pessoa,
dedicada realmente a ela, já que era essa sua intenção. Marisa
canta: “Meu coração/ não sei por que/ Bate feliz quando me vê/
E os meus olhos ficam sorrindo/ E pelas ruas vão me
seguindo/Mas mesmo assim fujo de mim/ Ah! Se eu soubesse
como eu sou tão carinhosa e o muito, muito que me quero/ E
como é sincero o meu amor/ Eu sei que eu não fugiria mais de
mim/ Venho! Venho! Venho! Venho!/ Venho sentir o calor dos
lábios meus/ À procura de mim/Venho matar esta paixão/ Que
me devora o coração/ E só assim então/ Serei feliz, bem feliz.”
Marisa se apodera da canção. Aceita a provocação e se diverte. A
qualidade de sua voz é suave. Acompanha-se com o pandeiro e
dança. Parece realmente feliz avaliando, através do canto, a si
mesma. (Chagas, M- Pinto. 2007, pp. 119 - 120)
Os agenciamentos de territorialização e desterritorialização
“Eu me pergunto: "Quando é que cantarolo?" Cantarolo em três ocasiões:
quando dou uma volta pelo meu território e tiro o pó dos móveis. O rádio
está ao fundo. Ou seja, quando estou na minha casa. Cantarolo quando
não estou em casa e estou voltando para casa ao anoitecer, na hora da
angústia. Procuro meu caminho e me encorajo cantarolando. Estou a
caminho de casa. E cantarolo ao me despedir e levo no meu
coração...Tudo isso é canção popular: "Vou embora e levo no coração..."
Quando saio da minha casa, mas para ir aonde? (Deleuze,1997)
A música e as sonoridades fixam um território através da
expressividade, estabelecem suas fronteiras, indicam onde eu estou, com
quem estou, como estou. Demarcam um território existencial. Porém, na
mesma hora que o demarca, pode desterritorializá-lo para, em seguida,
reterritorializá-lo. A música conhecida, própria da vida cotidiana, algumas
vezes massificada pela escuta continuada imposta pela mídia, por exemplo,
assume características inteiramente novas ao estar no papel de conteúdo
387
Musicoterapia no enfoque de produção de subjetividades, contribuição filosófica de Deleuze e Guattari
78
Esta é uma compreensão minha sobre o narrado por Barcellos.
388
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Tocar junto, ouvir e ser ouvido, componentes sonoros
construindo um muro do som para impedir a invasão das forças do caos
tanto quanto pode enxertar linhas de errância, desterritorializar, abrir a
experiência clínica ao imprevisível. A improvisação pode retirar o apoio,
abrir-se para a instabilidade harmônica, para as cadências não resolvidas,
para os acordes suspensivos; a voz tem o caminho de se embargar, de
desafinar, de falhar, de explorar sonoridades totalmente inusitadas; a
audição pode trazer escutas exóticas, ameaçadoras, instigantes; os
materiais sonoros podem ser tantos e tais que manuseá-los pode ser uma
experiência de linha de fuga.
O território está na proposta do Serviço Único de Saúde – SUS79,
em um aspecto um pouco diferente, mas igualmente instigante. Chama-se
de territorialização ao que permite a gestores, instituições, profissionais e
usuários do SUS compreender a dinâmica espacial dos lugares e de
populações. Trata-se, a princípio, de território visto como espaço
geográfico, no entanto, abarca
os múltiplos fluxos que animam os territórios e as diversas
paisagens que emolduram o espaço da vida cotidiana. Sobretudo,
pode revelar como os sujeitos
(individual e coletivo) produzem e reproduzem socialmente suas
condições de existência – o trabalho, a moradia, a alimentação, o
lazer, as relações sociais, a saúde e a qualidade de vida, desvelando
as desigualdades sociais e as iniqüidades em saúde.(Gondim &
Monken, 2009).
79
“O Sistema Único de Saúde (SUS) é um dos maiores e mais complexos
sistemas de saúde pública do mundo, abrangendo desde o simples atendimento
para avaliação da pressão arterial, por meio da Atenção Primária, até o
transplante de órgãos, garantindo acesso integral, universal e gratuito para toda
a população do país. Com a sua criação, o SUS proporcionou o acesso universal
ao sistema público de saúde, sem discriminação. A atenção integral à saúde, e
não somente aos cuidados assistenciais, passou a ser um direito de todos os
brasileiros, desde a gestação e por toda a vida, com foco na saúde com qualidade
de vida, visando a prevenção e a promoção da saúde” (Ministéro da Saúde,
2020).
389
Musicoterapia no enfoque de produção de subjetividades, contribuição filosófica de Deleuze e Guattari
PROCESSOS DE SINGULARIZAÇÃO NA
PRODUÇÃO DE SUBJETIVIDADE
O modo pelo qual os indivíduos vivem sua subjetividade oscila entre dois
extremos: uma relação de alienação e de opressão, nas quais o indivíduo se
submete à subjetividade tal como a recebe, e uma relação de expressão e de
criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da
subjetividade, produzindo um processo de singularização. Oscilando entre
os dois polos, não existe uma subjetividade que se estratifique em nenhum
deles. Ela não é recipiente - composta essencialmente de coisas exteriores,
as quais seriam interiorizadas - nem uma subjetividade totalmente
interiorizada, singular.
Haverá sempre certo “jeito de utilizar a linguagem, de se articular
ao modo de semiotização coletiva”. (Guattari & Rolnik, 1986, p. 34).
Haverá sempre um jeito próprio de expressão na música. Aceitamos ser
390
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
capturados pelo consumo, pela música como mercadoria, pelas
sonoridades de nosso cotidiano, mas também nos produzimos em relações
de criação e de expressões sonoras e musicais. Baixamos a música
que gostamos, mas ao cantarmos, inventamos outra letra para a canção ou
parte dela; cantamos em línguas estrangeiras, sem entendermos uma
palavra daquela língua: inventamos sentidos; podemos alterar o
andamento ou desafinar. Por vezes, tocamos em instrumentos musicais –
reais ou imaginários - uma conhecidíssima canção e, assim, vamos
colocando nossas marcas singulares nos processos coletivos. A
subjetividade, mesmo com seus modos de subjetivação assujeitados, nos
traz a possibilidade de produzirmos outros modos originais e singulares.
Guattari e Rolnik (1986) enfatizam o traço comum entre os
diferentes processos de singularização: um devir diferencial que recusa a
subjetivação imposta, produzindo um calor nas relações, uma
determinada maneira de desejar, uma afirmação positiva da criatividade,
uma vontade de amar, uma vontade de simplesmente viver ou sobreviver,
pela multiplicidade dessas vontades. Em musicoterapia é preciso abrir
espaço para que isso aconteça. O desejo só pode ser vivido em vetores de
singularidade. Cantar, tocar, improvisar pode trazer a reapropriação de
sentidos quase impostos pela mídia, subvertendo a modelização da
subjetividade, já que, apesar das produções musicais terem muitas
características coletivas, a relação de um indivíduo com a música pode
portar micro processos que podem acarretar um processo de percepção e
de sensibilidade inteiramente novo (Guattari & Rolnik, 1986). Compor,
improvisar, comunicar sensibilidades.
A música, muitas vezes massificada no modo de
subjetivação capitalista, se apresenta na nossa prática com “um certo
enfraquecimento dos requintes caligráficos, da riqueza dos traços
prosódicos, das etiquetas posturais, enfim, de tudo o que dava vida e
graça aos agenciamentos de expressão mistos”. (Guattari,1988, p.
104). Nas sessões de musicoterapia, pode-se ter a oportunidade de
fazer “a língua gaguejar, (...) ou balbuciar, o que não é a mesma
coisa” (Deleuze,1997). O tambor em minha mão espera ser tocado
com o pulso que eu mesma impuser. Se toco em grupo, o meu som
ressoa no som de outras pessoas. Se danço, a música que escuto se
expressa com minha própria graciosidade. Se canto, desafino,
391
Musicoterapia no enfoque de produção de subjetividades, contribuição filosófica de Deleuze e Guattari
392
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
da prisão de resultados futuros para a imaginação do que se coloca agora,
com o desfrute do presente. Brinde (Chagas, 2007).
Fazemos de nossas vidas, vidas artistas; encontramos cantos que
não conhecíamos e encontros que não suspeitávamos em meio à violência
cotidiana. Produzimos saúde encontrando sentidos diferenciados, nos
implicamos em redes de poder horizontal, estando juntos compartilhando
nossas dores e teimando as nossas esperanças.
Em sessões de musicoterapia, caberia a “função poética de
recompor universos de subjetivação artificialmente rarefeitos e re-
singularizados” (Guattari, 2000, p. 30). Mais do que utilizar a música para
incentivar padrões formais de modelizações, a musicoterapia pode operar
uma catálise poético-existencial.
Nesta complexidade de produção subjetiva, é importante ressaltar
que nem sempre a música e a musicoterapia são produtores de encontros
potentes na compreensão de Espinosa (1957). A voz, o grito, a dor, e até
mesmo o repertório, podem ser silenciados, distorcidos, aprisionados pela
musicoterapia em uma produção maquínica de silêncio, obediência,
revolta ou dor. Pode-se desterritorializar a segurança para reterrritorializar
o medo.
Como pensamento final, importante é observar que os exemplos
musicoterapêuticos são difíceis de serem capturados pela escrita. Estão no
âmago das experiências subjetivas que aparecem no brilho do olhar, nas
mãos que se apertam, na desafinação, na respiração que falha, na afetação
provocada como efeito da arte. Os exemplos musicais colocados neste
artigo perdem potência se lidos como poemas. São músicas. Cante-os!
Na vida que se inventa aos nossos olhos, ouvidos, sensibilidade, é
grande o desafio da pesquisa neste enfoque. A cartografia, com a sua
heterogeneidade característica, as metodologias com utilização de
imagem, podem nos auxiliar a colocar em evidência nossos processos de
trabalho. No entanto, sempre estaremos frágeis diante da potência da
vida. A poesia, a música, a arte não se prestam às reduções próprias da
ciência. Este é o nosso dilema.
393
Musicoterapia no enfoque de produção de subjetividades, contribuição filosófica de Deleuze e Guattari
REFERÊNCIAS
394
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Rio de Janeiro,
RJ, Brasil.
Chagas, M & Pedro, R. (2008). Musicoterapia, Corpo e Subjetividade. In
Corpo Expressivo e Construção de Sentidos (CHAGAS, M &
OLIVEIRA, H (Org) Corpo Expressivo, pp 9 -22. Rio de
Janeiro: Bapera, Mauad
Cruz,, N.F. O. (2007) Notas de Segurança. In: Vozes da Musicoterapia
Brasileira. Lia Rejane Mendes Barcelloos. (Org.). (23-28) São
Paulo: Apontamento.
Deleuze, G. (1992). Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34.
Deleuze. G. (1997) O Abecedário de Gilles Deleuze entrevista a Claire
Parnet, Paris: Editions Montparnasse,
Deleuze. G. (2002). Espinosa, filosofia prática. São Paulo: Escuta.
Deleuze, G.& Guattari, F. (1992). O que é a Filosofia? Rio de Janeiro: Ed
34.
Deleuze, G.& Guattari, F. (1996). Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia. vol. 3. Rio de Janeiro: Ed. 34.
Deleuze, G.& Guattari, F. (1997). Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia. vol. 4. Rio de Janeiro: Ed. 34.
Deleuze, G. & Parnet, C.(1998) Diálogos. São Paulo: Editora Escuta.
Espinosa, B. (1957) Ética, 3’ ed., São Paulo: Ed. ATENA.
Gondim, G.M.M & MOnke,.M. Territorialização em Saúde. Disponível
em
http://www.sites.epsjv.fiocruz.br/dicionario/verbetes/tersau.ht
ml#topo
Guattari, F. (1988) O Inconsciente maquínico, ensaios de esquizo-análise.
Editora Papirus. Campinas
Guattari, F. (2000). Caosmose, um novo paradigma estético. São Paulo:
editora 34. 2000
Guattari, F. & Rolnik, S. (1986). Micropolítica, cartografias do desejo.
Petrópolis: Vozes.
Ministério da Saúde.(2020). Sistema Único de Saúde (SUS): estrutura,
princípios e como funciona. Disponível
emhttp://www.saude.gov.br/sistema-unico-de-saude. Pesquisado
em 25 de agosto de 2020
395
Musicoterapia no enfoque de produção de subjetividades, contribuição filosófica de Deleuze e Guattari
REFERÊNCIAS SONORAS
396
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
397
Capítulo 19
MUSICOTERAPIA E SONORIDADES
SOCIAIS: REFLEXÕES EM TEMPO DE
PANDEMIA
398
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
399
Musicoterapia e sonoridades sociais
presente (Amarante, 1998). A Luta Antimanicomial, um movimento
nacional criado por familiares e usuários dos serviços de saúde mental, se
mantém viva, apesar dos reiterados embates com tentativas de restauração
da dominação do modelo manicomial. Ainda existem dificuldades de
compreensão da importância da liberdade nos tratamentos aos usuários de
serviços de saúde mental. Durante o doutorado, o encontro com os
conceitos da abordagem teórico-ativista das Epistemologias do Sul
encorajaram a procura de uma visão mais ampla sobre as possibilidades da
musicoterapia no cenário das Linhas Abissais que, conceitualmente,
traduzem as divisões entre povos e culturas e que identificamos como
práticas hegemônicas de poder. Estas práticas traduzem-se em produções
sociais que desqualificam seres humanos com base nas suas experiências,
saberes, crenças, hábitos, culturas, raça, etnia... A diferença é assim tratada,
não como uma manifestação da multiplicidade de modos de ser e de estar
vivendo no planeta, mas como uma ameaça a conter ou erradicar.
Nenhum dos coletivos com os quais trabalhei deixou de se pronunciar,
mobilizando os seus próprios recursos expressivos e criativos e afirmando
o direito de narrar as suas próprias histórias, contra as segregações,
discriminações e outras injustiças sociais que marcam a sua existência e as
suas experiências.
A musicoterapia aparece, nessa dinâmica, como um recurso
precioso para esses coletivos e movimentos. Mas é importante refletir
sobre os passos que pode dar a musicoterapia para caminhar na direção
por eles apontada. Quais as possíveis intervenções da musicoterapia ao
enfrentamento dos processos segregatórios excludentes que produzem
seres “menos que humanos”? Temos muito a aprender – e muita reflexão
a realizar - com trabalhos e iniciativas desenvolvidos com população de
rua mobilizando a musicoterapia. Os moradores de rua são tratados,
infelizmente, de uma forma que nega os seus direitos humanos e a sua
cidadania. Mas isso não significa que as suas capacidades de expressão e de
criação sejam condenadas ao silêncio e à invisibilidade. Que sonoridades
são mobilizadas para expressar e partilhar as suas experiências de
sofrimento, mas também de resistência e sobrevivência? Como pode a
música tornar-se uma expressão do grito dos que sofrem (também) pelo
silenciamento ou pela indiferença às suas vozes? Os moradores de rua
vivem segregados de um modo particular, presentes nos interstícios de
uma sociabilidade “civilizada” que persiste em ignorá-los ou removê-los
para lugares de abandono. A musicoterapia poderá encontrar aqui um dos
400
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
seus mais relevantes espaços de intervenção, contribuindo para os desafios
da justiça cognitiva e social, em contraponto à sociedade marcada pela
presença cotidiana de exclusão abissal e negação de humanidade.
401
Musicoterapia e sonoridades sociais
Há uma dinamicidade e amplitude das formas de sonoridade que
designamos de musicais que as tornam modos particularmente poderosos
de expressão estética, mas também de articulação da experiência e da
memória. Encontramos essas expressões em todos os povos e culturas. Há
rituais, magias, cantos, poesias, encenações, crenças associadas às músicas e
outras sonoridades expressas nos modos de vida de povos, comunidades e
grupos sociais. Apesar de muitas possibilidades de entraves decorrentes de
processos de globalização, vinculados às tecnologias de produção
massificadas, homogeneizadas, no planeta, há muitas expressões de povos
originários, mantendo as tradições e significando e resignificando as
memórias e práticas. O reconhecimento das desigualdades e exclusões
existentes no mundo reforça a importância dessas expressões enquanto
parte da produção e reprodução da vida.
As Sonoridades Sociais constituem-se enquanto expressões
humanas, mas elas só adquirem força e sentido enquanto relação com o
mundo para além do humano, o mundo das entidades, forças e relações
ambientais de interdependência sem as quais a existência humana seria
impossível. Há um valor epistemológico e uma função cognitiva nas
sonoridades e nos modos como elas se tornam constitutivas do humano.
O antropólogo e musicólogo Steve Feld propôs mesmo o termo
acustemologia para designar o conhecimento que emerge desses universos
sonoros que balizam a existência humana. Mas as sonoridades podem ser
também ferramentas de opressão e de dominação. É a sua potência
criativa, a sua capacidade de evocação, de conexão, de expressão de
sentimentos, de resistência, de revolta, de afirmação da vida e de expressão
estética, entendida como engajamento sensorial com o mundo produtor
de experiências que confere às Sonoridades Sociais um poder único de
expressões de libertação e de emancipação.
402
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
grupos e de comunidades, à produção de diversidade em processos de
subjetividades.
Na Universidade Federal do Sul da Bahia, o início do projeto de
especialização Saúde com Arte está previsto para o ano de 2021, e terá
como um dos seus aspectos nucleares a realização de projetos de
intervenções artísticas em unidades de saúde, serviços sociais e escolas.
Procurará promover a problematização e reinvenção criativa das
musicalidades entendidas a partir dos cânones estéticos da música
ocidental, mas também das manifestações cujas sonoridades conectam e
impulsionam a organicidade das práticas expressivas de povos,
comunidades e grupos que lutam contra formas de exploração, de exclusão
e de opressão. É dada particular atenção às expressões das diferenças e à
sua resistência à desqualificação e à invisibilização/silenciamento. Os
excluídos, segregados e discriminados se manifestam, os direitos são
relevados e reivindicados, e nesse processo emergem novas histórias, novas
expressões, novas sonoridades. Estas são, assim, assumidas como
momentos e modos de luta pela justiça epistêmica, social, cognitiva e
experiencial.
Os projetos de intervenção serão construídos e desenvolvidos de
forma colaborativa com grupos e comunidades que, na sua luta pela saúde,
invocam, articulam e partilham memórias de sofrimentos e de
solidariedade, de resistências e de lutas para que a sua dignidade e os seus
direitos sejam reconhecidos, amplificados pelas sonoridades, danças,
rituais, histórias, imagens que as expressam.
No centro dessas intervenções colaborativas na saúde coletiva
estão as comunidades, seus hábitos, costumes, crenças, desejos, desafios. O
conceito de Sonoridades Sociais remete às vozes que se ouvem destes
grupos, coletivos, comunidades. Muitas vezes, vozes abafadas por
processos segregatórios e excludentes, mas que intervenções solidárias e
colaborativas podem ajudar a amplificá-las e partilhá-las. Os projetos de
intervenção artística não deverão nunca esquecer que essas sonoridades
pertencem, em primeiro lugar, àqueles que as criam, conservam,
transformam, partilham. Por isso todas as intervenções devem ser
baseadas em relações de confiança e de respeito, e não ocasiões para
expropriação ou apropriação extrativista das criações e produções desses
coletivos e dos seus membros.
As Sonoridades Sociais são sonoridades rebeldes, que se
constituem contra o conformismo que perpetua a desigualdade, a exclusão
403
Musicoterapia e sonoridades sociais
e o sofrimento injusto. O próprio adoecimento está relacionado a um
desequilíbrio de forças orgânicas e/ou psíquicas, relacionadas às
vicissitudes e contingências dos modos de existência. As expressões
sonoro-musicais e artísticas em geral podem contribuir para aprender a
ver, ouvir, sentir e conhecer para além das linhas abissais, materiais,
simbólicas ou cognitivas, visíveis ou invisíveis, audíveis ou tácitas, que
delimitam os espaços de exclusão. As intervenções assentam na escuta
profunda das vozes dos usuários dos serviços de saúde ou serviço social ou
escolar, dos profissionais e das comunidades em que uns e outros se
encontram. As práticas artísticas procuram abrir os espaços de
interpelação do conformismo, construindo ecologias de sonoridades,
configurações de formas e sentidos, de práticas e de colaborações que
permitem a interpelação mútua e o diálogo sem negar as diferenças, mas
procurando encontros inter-expressivos e interculturais construídos “em
cima” dessas diferenças, mobilizado os potenciais e recursos que cada
participante traz para o encontro, mas reconhecendo os limites desse
encontro.
Desses projetos se espera que possam abrir espaços de expressão
artística que potencializem o seu poder expressivo e a sua capacidade de
produzir outro conhecimento ligado às experiências de quem sofre, de
criar acustemologias, tomando o termo proposto pelo antropólogo e
musicólogo Steven Feld (Oenning da Silva, 2015), contra os
silenciamentos e marginalizações que perpetuam múltiplas formas de
sofrimento e de injustiça. Neste processo, as sonoridades dialogam com as
diferentes formas de sentir e conhecer o mundo pela mobilização de todos
os sentidos. A valorização dos sentidos, em suas múltiplas experiências
(Rancière, 2005;2012), amplia as possibilidades de sensibilizar-se ao
mundo e as forças de transformação.
405
Musicoterapia e sonoridades sociais
zonas de não-existência, de negação dos seus atributos de humanidade. O
colonialismo e o patriarcado aparecem aqui associados à lógica extrativista
e predadora do capitalismo como máquinas de produção de exclusões que
negam a pertença comum a uma humanidade que, nas suas diferenças,
encontra uma reserva permanente de criatividade e de liberdade. A
expressão “Sul” significa, nesta perspectiva, não um lugar numa
distribuição geográfica ou geopolítica – embora esta seja relevante para
entender a distribuição da desigualdade, da exclusão e do sofrimento no
mundo, como veio confirmar, de maneira bem cruel, a atual pandemia de
COVID-19 -, mas, como defende Boaventura de Sousa Santos, ela é o
nome do sofrimento injusto e desnecessário que existe no mundo, tanto
no chamado Norte Global como no Sul Global. Reconhecer a existência
desse Sul implica o reconhecimento da necessidade de descolonizar a teia
de razões cruzadas e intersectantes do capitalismo, do colonialismo e do
patriarcado, para as quais a afirmação da normalidade e a denúncia do
desvio, da alienação ou da desrazão são instrumentos de dominação. Por
isso a luta dos usuários de Saúde Mental se soma às lutas das mulheres, das
pessoas LGBTQI+, dos povos indígenas. De quilombolas e da população
negra, de refugiados e imigrantes, de populações das periferias urbanas, de
trabalhadores precários e informais, dos moradores de rua e da população
sem teto, dos trabalhadores sem terra, das populações tradicionais do
campo, das florestas e das águas. Para todas elas, a desigualdade, a exclusão
e a violência transportam o estigma, o preconceito, a desqualificação, a
negação de direitos e, em muitos casos, a desumanização que os usuários
de Saúde Mental, os sobreviventes do modelo manicomial de
confinamento conheceram, e contra a qual se têm levantado e lutado.
Os gritos dos excluídos são a força da resistência necessária para a
amplificação das vozes silenciadas ou marginalizadas. A escuta profunda é
um passo na direção dessa amplificação. Mas ela depende, acima de tudo,
da escuta das expressões das suas experiências, dos seus sofrimentos, dos
seus conhecimentos silenciados ou desqualificados.
As práticas artísticas, entendidas na sua multiplicidade e na
diversidade dos contextos em que emergem aparecem como modos
específicos de conhecer e de intervir no mundo, de resgatar a estética
como envolvimento sensorial com o mundo, para além da colonização da
experiência em toda a sua riqueza e da sua validação pela racionalidade
cognitiva-instrumental. Como pode a musicoterapia contribuir para essa
descolonização da experiência e da estética? Todos os musicoterapeutas
406
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
são formados para contribuir para a articulação e amplificação de vozes
por via de práticas musicais e de outras sonoridades. Ao administrar as
metodologias, técnicas e procedimentos ligados à improvisação, re-criação,
composição e audição (Bruscia, 2000), as práticas musicoterápicas
constituem-se em poderosas ferramentas de agregação e interlocução de
pessoas através das suas capacidades expressivas. E esse potencial é
extensivo ao conjunto das práticas artísticas e da sua mobilização em
contextos terapêuticos. Pode-se falar em “tratamento social” através das
Artes, como refere o médico e ator Victor Pordeus, em seu ativismo no
campo da psiquiatria cultural. Recorrendo a uma noção que suscita
debates e polêmicas, poderemos mesmo postular uma clínica não-
moderna, no espectro ético-estético-político (Rauter, 1997). O ser
humano, enquanto ser sonoro-musical, condensa e afirma a riqueza
sensorial da humanidade, em sua diversidade social, cultural, epistêmica.
Mas enquanto expressões culturais, as sonoridades são produtoras de
dissonâncias que confrontam as violências de vários tipos que
hierarquizam, classificam, desqualificam, silenciam, apropriam ou
suprimem as ameaças à sua coesão e consistência. Através de práticas
musicoterápicas socialmente engajadas, é possível contribuir para
processos de emancipação expressiva de coletivos, através de novas
articulações e afirmações dos seus desejos, afetos, conquistas e desafios.
Através dessa emancipação expressiva, feita de artesanias de práticas, de
obras, de performances, é possível reinventar projetos, intervenções e
ações pró-vida, pró-existência, pró Humanidade. Neste período de
Pandemia, este poder da ação e intervenção estética e expressiva tem
mostrado o seu potencial de afirmação da vida, da solidariedade e da
dignidade.
Os processos de criação estética assim entendidos são, de fato,
processo de cocriação de outras realidades, que emergem da ação coletiva
de afirmação de uma cidadania que encontra canais novos de
enfrentamento de desigualdades e de exclusões. A reivindicação de
igualdade não pode ser realizada à custa de uma homogeneização e
“normalização” de sociedades caracterizadas pela diversidade de histórias,
culturas e experiências, de relações de poder e de formas de violência que
minam as possibilidades de uma vida digna. Os musicoterapeutas,
atuando como intelectuais de retaguarda – para retomar a caracterização
proposta por Boaventura de Sousa Santos -, podem ser promotores e
facilitadores de práticas coletivas de co-criação, trazendo para estas os seus
407
Musicoterapia e sonoridades sociais
saberes e capacidades específicas, mas sem nunca esquecerem que a sua
intervenção não deve nunca levar a que se apropriem da palavra e da
expressão em nome daqueles e daquelas com quem trabalham e co-criam.
408
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
apropriação; os tempos próprios e múltiplos das sonoridades: as escalas
próprias das sonoridades. É relevante, aqui, o trabalho de Steven Feld e o
seu conceito de de “triângulo acustemológico”: som, cosmologia, ecologia.
Como resistem as sonoridades rebeldes ao extrativismo musical e
estético das diferentes versões da world music ou da música comercial,
como reapropriam, transformam, canibalizam as formas canônicas e
comercializadas de música e de expressão sonora?
Cadência, ritmo, mudanças de tom, silêncios, gestos, movimentos
do corpo são indissociáveis de formas de expressão que encontram nas
sonoridades e no seu vocabulário uma dimensão frequentemente
reprimida, mas sem a qual os efeitos do discurso escrito, por exemplo, não
serão entendidos – algo que a retórica sabia e ensinava aos seus
praticantes, mas que é conhecido de todas as formas de comunicação. A
maneira como a música transforma o achatamento da superfície do texto
escrito em expressão de emoção, de sentimento, como o modo de afetar e
ser afetado é alterado pela dinâmica das sonoridades. O caso dos grupos
musicais na Reforma Psiquiátrica Brasileira é especialmente interessante,
pois a palavra de “loucos/as” ganha outra força e legitimidade através da
sua transformação em letra de música, em parte de sonoridades que
desafiam a exclusão e negação de humanidade e o reconhecimento da sua
dignidade e dos seus Direitos Humanos. Daí a relevância das sonoridades
da dita “loucura” e das suas transformações, das passagens das sonoridades
do sofrimento e da exclusão às da musicoterapia e às dos grupos musicais,
blocos de carnaval, grupos de teatro e de dança ou coros cênicos.
409
Musicoterapia e sonoridades sociais
extensão e de pesquisa neste contexto. Durante o período da pandemia de
COVID-19, foram promovidos encontros online envolvendo
pesquisadoras/es e ativistas dos dois países. Neste momento, encontra-se
em tramitação na UFSB, um projeto de especialização/formação avançada
intitulado Saúde com Arte-Sonoridades Sociais, baseando-se na experiência
da musicoterapia e de outras abordagens artísticas no âmbito das
Reformas Sanitária e Psiquiátrica Brasileiras.
410
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
práticas que surgiram em contextos religiosos ou nas comunidades que
dão corpo à diversidade cultural no Brasil.
A relevância desta proposição de formação avançada cruzando os
domínios da Saúde e da Arte sustenta-se, assim, nas contribuições ao
movimento de práticas artísticas em Saúde, a partir, em particular,
daquelas que surgiram da Reforma Psiquiátrica. A fundamentação teórica
e política da RSB inspirou formas de reconhecimento e de valorização da
diversidade de saberes e de experiências, e em particular, da recusa da
hegemonia cognitiva e profissional de um saber psiquiátrico orientado
para a medicalização da Saúde Mental e para a centralidade de instituições
plasmadas no modelo manicomial. A orientação psicossocial das
intervenções profissionais, a criação de novas formas de organização da
atenção e de cuidado, a preocupação crescente com a diversidade e a
criação cultural, a afirmação dos direitos de cidadania dos usuários de
Saúde Mental e a compreensão crescente das suas lutas como parte das
lutas mais amplas contra a desumanização da diferença, a discriminação e
a exclusão nas suas diferentes manifestações, pela dignidade e os Direitos
Humanos. Estas orientações abriram espaços importantes de convergência
e de diálogo com a proposta das Epistemologias do Sul (Santos e Meneses,
2010; Santos, 2019). Encontramos essa convergência nos processos de
construção dos saberes criativos, artísticos, artesanais, em suas dinâmicas
voltadas para a justiça social e epistêmica. As sonoridades sociais,
representadas pelas manifestações, musicalidades, poéticas, em expressões
artísticas em seu sentido mais amplo, podem contribuir para as
mobilizações de sentido emancipatório de coletivos afetados por
diferentes formas de exclusão e de opressão, e que passam por experiências
de violência e de sofrimento que tendem a ser silenciadas ou
invisibilizadas. As práticas artísticas abrem espaços para novas formas de
expressão e para a criação de conexões solidárias que possibilitam a ação
coletiva que potencialize vozes, devires, razões e produções.
Esta proposta de formação avançada interdisciplinar está
centrada na perspectiva da articulação e interdependência de ensino-
serviço-comunidade. Ela baliza-se em projetos de pesquisa-intervenção
artística em unidades de saúde pública.
Trata-se de aprofundar conceitos das Epistemologias do Sul, em
diálogo com o campo da Saúde Coletiva e em conexão com os saberes e
práticas artísticas em suas diferentes expressões: música, artes visuais,
teatro, dança, contação de histórias, animação cultural, educação artística,
411
Musicoterapia e sonoridades sociais
artesanato, palhaçaria, etc. Será dada especial atenção às formas de
mobilização das artes em contextos terapêuticos, tais como a
musicoterapia a arteterapia, o psicodrama. A musicoterapia e a arteterapia
já são reconhecidas como parte das chamadas Práticas Integrativas e
Complementares em Saúde (PICS).
Serão também consideradas as propostas emergentes do
envolvimento das ciências socias com práticas expressivas de diferentes
tipos, em que é possível salientar, pelas sua exemplaridade e caráter
inovador, a pesquisa e intervenção no domínio das sonoridades.
80
Projeto iniciado em 2018 como o nome: Incentivo ao Empoderamento de
Coletivos através de Práticas Artísticas: uma proposta de intervenção a partir do
PET-Saúde GraduaSUS do município de Porto Seguro. Com a continuidade, ele
mudou de nome para Projeto Coral Cênico Social Arte e Saúde. Coordenado
pela Profa. Raquel Siqueira da Silva, com estudantes bolsistas de Iniciação
Científica-UFSB e voluntários.
412
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Os usuários de serviços de saúde mental valorizam este espaço
sonoro-musical, em que as atividades se desenrolam em quatro
momentos: a) um relaxamento corporal inicial; b) exercícios de vocalize;
c) cantoria livre, dança e execução do instrumento musical de escolha,
mantendo um clima de liberdade criativa e de experimentação; d) roda de
conversa focada em temas relacionados com saúde e na discussão da
experiência do encontro musical.
Esta experiência tem mostrado como um dispositivo grupal deste
tipo pode ser inserido na agenda de um CAPS adulto como uma atividade
regular e reconhecida como parte do trabalho da Centro. Na sua base, o
projeto mobiliza a atividade musicoterápica para criar um espaço que
facilita a interlocução, o diálogo e o trabalho de criação coletiva. Nas
rodas de conversa, realizadas depois das atividades sonoro-musicais,
aparecem as falas de sofrimentos. A musicoterapeuta convida a procurar
as matizes e os não-ditos daquelas narrativas que as ligam ao viver em
sociedade, às relações na família ou com a equipe de saúde mental. Nesses
momentos aparecem as adesões, resistências, rejeições ou recusas das
condições que tecem a vida social no cotidiano. Assim como dançam sem
bloqueios, os usuários e usuárias falam sem titubeio. As suas experiências,
falas, fazeres e anseios são partilhados e valorizados, mesmo nos
momentos de tensão e nos silêncios de que também é feita a conversa.
Não foi este o primeiro grupo em que participei utilizando a
Musicoterapia como convite a usuários e profissionais de saúde mental a
criar novas relações e novos espaços de criatividade e liberdade. O Grupo
Mágicos do Som (Siqueira-Silva, 2015) foi criado por usuários de serviços
de saúde mental, um dos grupos artísticos em saúde mental que surgiram
no auge da Reforma Psiquiátrica Brasileira, nas décadas de 1990 e 2000.
Participei da criação desse grupo no caminho de invenção de novas
sociabilidades. Este com outros grupos musicais nestas criações coletivas
de sonoridades rebeldes resultaram num amplo movimento, saudado e
apoiado na gestão de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, como
expressão da contribuição da Reforma Psiquiátrica para a afirmação da
democracia, da cidadania e dos Direitos Humanos no Brasil (Amarante &
Lima, 2008; Nunes & Siqueira-Silva, 2016).
No momento atual de reação e de tentativas de desmonte das
conquistas da Reforma Psiquiátrica e da Luta Antimanicomial, é
importante resgatar a memória, a experiência e os aprendizados desse
movimento. Aprendemos com as suas múltiplas realizações que os serviços
413
Musicoterapia e sonoridades sociais
de saúde, incluindo os de saúde mental, quando orientados para a
realização dos direitos dos cidadãos e a defesa da sua dignidade, para além
da sua diversidade, só podem ser defendidos se os seus usuários e usuárias
se afirmarem, através da suas intervenções e criações e da sua ação coletiva,
como sujeitos das experiências de sofrimento, mas também de cuidado e
de solidariedade. A riqueza das experiências e saberes emergentes das
práticas artísticas e das iniciativas culturais é um elemento crucial da
resposta às dificuldades presentes e da revitalização e reinvenção das
Reformas Sanitária e Psiquiátrica.
A criação livre é uma afirmação de justiça. A arte é um viveiro da
criatividade, no qual se cultiva e cresce o respeito às vozes que dizem, de
maneira múltipla, a existência nos seus momentos de afirmação da vida,
mas também de sofrimento e de revolta. Também e sobretudo em tempos
de pandemia, em que as fraturas da desigualdade extrema e da exclusão
abissal, longe de desaparecerem perante a alegada democracia da infecção,
manifestam-se nas suas formas mais cruéis.
415
Musicoterapia e sonoridades sociais
416
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
E da arte de viver,
Tem coisa bem brasileira:
O cordelista ou repentista,
Nas artes do saber.
Ou em palavra cantada,
Schoenberg que nos guia
Pensar versado é protesto,
É virada.
Esta triste Pandemia,
Tira a vida, tão amada,
E provoca letargia,
Numa Terra Encantada,
Criada e manipulada,
Sem crítica,
Sintomatizada.
Arte não é anestesia,
É cura da alma agoniada.
REFERÊNCIAS
417
Musicoterapia e sonoridades sociais
Chagas, M.; Pedro, R. (2008). Musicoterapia: desafios entre a Modernidade
e a Contemporaneidade. Rio de Janeiro: Editora Mauad
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Editorial.
Fischlin, D.; Heble, A. (orgs.). (2003). Rebel Musics: Human Rights,
Resistant Siunds, and the Politics of Music Making. Montréal:
Black Rose Books.
Gattino, G. (2015). Musicoterapia e autismo: teoria e prática. São Paulo:
Memnom.
Moreno, J. L.; Moreno, Z. T. (2014). Fundamentos do Psicodrama. São
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Nunes, J. A. & Siqueira-Silva, R. (2016). Dos “abismos do inconsciente”
às razões da diferença: criação estética e descolonização da
desrazão na Reforma Psiquiátrica Brasileira. Sociologias, 18(43),
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https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2015.102113
Rancière, J. (2005). A partilha do sensível: estética e política. São Paulo:
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Rancière, J. (2012). O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes.
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Saúde Loucura, São Paulo: Editora Hucitec.
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epistemologias do Sul. 5ª Ed. Coimbra: Almedina.
Santos, B. de S.; Meneses, P. (orgs.). (2010). Epistemologias do Sul. São
Paulo: Cortez Editora.
Siqueira-Silva, R. (2015). Conexões musicais: musicoterapia, saúde mental e
Teoria Ator-Rede. Curitiba: Editora Appris.
418
Unidade 4
Outras considerações
sobre as perspectivas
teóricas e práticas em
musicoterapia
Capítulo 20
PERSPECTIVAS TEÓRICAS DA
MUSICOTERAPIA BRASILEIRA: UMA
ANÁLISE COMPARATIVA
INTRODUÇÃO
420
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
(Oliveira & Isquerdo, 2001). Como a primeira fundamenta a sua
investigação nos problemas teóricos relacionados com o estudo científico
do léxico, e a segunda fundamenta seu estudo nas técnicas de elaboração
de dicionários, as considerações linguísticas deste estudo serão mais de
ordem terminológica, isto é, estarão centradas na pesquisa dos termos
presentes nas abordagens de musicoterapia apresentadas. Todavia, é
preciso esclarecer que não é objetivo principal deste estudo esgotar toda
possibilidade de análise terminológica, pois, além de não ser o seu foco,
como grande parte dos estudos aqui discutidos se baseiam em literatura
estrangeira, seria preciso abordar uma outra área, a tradutologia, ao
explorarmos termos traduzidos com manifestações de decalques,
quiasmos, transposições, modulações, adaptações, amplificações,
condensações, omissões, entre outros aspectos da tradução (Campos,
2004).
Segundo Oliveira & Isquerdo (2001, p. 10), os termos presentes
em uma determinada ciência são entendidos como a palavra especializada
e tidos como conceitos próprios de sua área. Em outras palavras, o
subconjunto lexical de uma determinada abordagem é crucial na
estruturação do seu campo de conhecimento.
A relevância de também destacarmos aspectos do léxico presente
na área pode ser justificada se considerarmos a nomeação da realidade
como “a primeira etapa no percurso científico do espírito humano de
conhecimento do universo” (Oliveira & Isquerdo, 2001, p. 13). Ademais,
todo espaço conceitual de uma área técnico-científica é,
fundamentalmente, caracterizado por um espaço terminológico
específico.
A seguir, apresentamos considerações sobre a construção do
conhecimento em musicoterapia, destacando o papel de marcos históricos
e etimológicos na sua epistemologia. Na sequência, com base nas
dimensões propostas por Bruscia (2012), comparamos as diferentes
abordagens presentes na musicoterapia brasileira, as quais são
apresentadas nos 18 capítulos desta obra. Por fim, destacamos aspectos
terminológicos que colaboram com a caracterização de cada uma das
abordagens.
421
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
422
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
nos escritos de Chagas & Pedro (2008), como híbrida e, mais que isso,
como desorganizadora de uma “ordenação moderna” por convocar a uma
leitura essencialmente transdisciplinar. Nas palavras das autoras:
"A realidade de um ser humano que vivencia simultaneamente
músicas e sofrimento, explorações sonoras e deficiências
sensoriais é a terra híbrida onde se desenvolveu o conhecimento
musicoterapêutico. A terra híbrida que coloca uma sessão clínica
em Musicoterapia no lugar ambíguo de não pertencer à Música,
nem à Psicologia, nem à Medicina. A musicoterapia ameaça,
deste lugar, a ordenação moderna.” (Chagas & Pedro, 2008, p.
60).
É nesse fosso epistemológico que parecemos nos encontrar nos
dias atuais quando pensamos a quantidade de teorias e fundamentos que
sustentam a musicoterapia na contemporaneidade. Sampaio (2005)
buscou tecer reflexões nessa direção ao afirmar que
“há uma falha grave em nossos cursos de graduação, que consiste
na ausência de um estudo mais criterioso de epistemologia da
musicoterapia e da história da ciência, até mesmo para podermos
questionar (...) se a musicoterapia é ou não é ciência” (Sampaio,
2005, p. 44).
Bruscia (2016) e Barcellos (2016) discutem sobre a estrutura
central de uma teoria da musicoterapia que seja consistente com sua
variedade de atuações e campo de saberes. Barcellos (2014) afirma ainda
que
“(...) A musicoterapia é uma só, ao contrário de alguns teóricos
que sustentam que temos musicoterapias. Assim, em minha
opinião, o que traz diferenças na sua aplicação nas novas áreas é
como a musicoterapia é aplicada, dependendo: da área onde se
aplica; do tipo e das possibilidades da instituição; da faixa
etária dos pacientes; das qualidades pessoais e
competência/habilidades do musicoterapeuta
(musicais/musicoterápicas), enfim, de um conjunto de questões
que exigem do musicoterapeuta competência, flexibilidade e
criatividade. (Barcellos, 2014, p. 73, grifos e negritos da autora).
423
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
424
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
funções, áreas de atuação/população e das características-chave das
diferentes teorias.
1) objetivo ou finalidade;
2) método;
3) impacto ou consequência;
4) forma;
5) escopo e
6) origem.
425
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
integração, análise filosófica, análise empírica e síntese
reflexiva. O método de explicação se refere à possibilidade de
apresentar uma teoria para identificar, diferenciar, definir,
classificar, organizar e nomear conceitos, práticas e termos
encontrados na musicoterapia. O método de integração é
desenvolvido para interseccionar conceitos ou práticas em
musicoterapia com aqueles de outro campo. A análise
filosófica relaciona preocupações fundamentais da filosofia
(ontologia, epistemologia, lógica, ética e estética) à prática,
teoria ou pesquisa em musicoterapia. A análise empírica
ocorre a partir da análise de dados de pesquisa. Por fim, a
síntese reflexiva é desenvolvida refletindo sobre as próprias
experiências com um fenômeno, confrontando essas
reflexões com ideias ou perspectivas existentes de outros
teóricos, analisando a pesquisa e sintetizando intuitivamente
todas essas fontes de insight em uma teoria ou visão original.
3) Consequência ou impacto de uma teoria: Se a teoria é útil para
orientar ações ou tomar decisões, pode ser descrita por uma
consequência ou impacto prático. Se a teoria for necessária
para entender alguma questão específica ou se puder ajudar a
obter informações sobre algo, poderá ser descrita como mais
reflexiva, isto é, se não possuir implicações óbvias para o que
fazer.
4) Forma: envolve completude e coerência. Uma teoria
completa é aquela que possui tantas proposições quanto
necessárias para lidar com todos os aspectos mais
importantes do fenômeno-alvo, enquanto uma teoria
incompleta encerra uma ou mais construções que lidam com
apenas alguns aspectos.
5) Escopo: se a teoria foi criada para lidar com toda a disciplina
ou apenas com uma parte ou dimensão dela. Dentro do
escopo disciplinar também se discute a relevância de uma
teoria. Aqui, a questão é quão bem a teoria cobre os aspectos
mais significativos do fenômeno ou domínio-alvo,
independentemente de ser geral ou específica em escopo e de
quão completamente foi desenvolvida. Outro aspecto
importante sobre o escopo é a sua natureza interdisciplinar:
as teorias podem ser centradas na música, na terapia ou
426
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
apresentarem um foco equilibrado entre aspectos da música e
da terapia.
6) Origem de uma teoria: se é autóctone ou importada. Uma
teoria autóctone é centrada na musicoterapia. As teorias
autóctones escrevem e explicam o que os musicoterapeutas
fazem e pensam através de sua teoria, pesquisa e prática. Uma
teoria importada se origina da música (e de qualquer uma de
suas subdisciplinas) ou da terapia (e de qualquer uma de suas
subdisciplinas). Uma teoria importada pode ter duas
polaridades: é centrada na música ou centrada na terapia.
O Quadro 1 apresenta uma proposta de organizar as teorias
apresentadas nos 18 capítulos deste livro a partir da classificação de
Bruscia (2012). Vale lembrar que uma teoria pode pertencer a mais de
uma classificação dentro de cada uma das seis categorias. No entanto,
procuramos colocar no quadro abaixo a mais preponderante de cada
capítulo quanto à sua teoria, sendo avaliada dentro de uma categoria.
Metodologicamente é importante ressaltar ainda que as/os
autoras/es não necessariamente destacam as teorias que orientam seus
trabalhos de forma explícita. Portanto, em alguns capítulos, a teoria está
presente, porém de forma sutil ou não explicitada, sendo possível
circunscrevê-la a partir de uma observação cuidadosa e de inferências.
Optamos por excluir uma das categorias sugeridas por Bruscia: a forma.
Ainda que seja possível interpretar uma teoria como completa ou
incompleta, acreditamos que essa análise pode ser muito subjetiva.
Todavia, consideramos que todas as abordagens aqui apresentadas são
coerentes, de acordo com a categoria.
427
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
Quadro 1. Comparações entre as diferentes teorias segundo as
dimensões de Bruscia (2012)
428
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
429
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
de
intervenção.
430
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
o paciente.
431
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
432
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Quando o silêncio pousa Refletir sobre as distintas interpretações Para todas as áreas
na musicoterapia do silêncio em musicoterapia.
433
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
Mesa lira na prática Proposta de modelo de intervenção para Para todas as áreas
clínica musicoterapêutica o uso da mesa lira em musicoterapia.
434
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
435
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
Possíveis explicações para essa característica estão nos
fatos de que boa parte dos teóricos possui uma formação
musical prévia à musicoterapia e que a disciplina está
ligada ao contexto musical desde a sua consolidação no
Brasil. A musicoterapia brasileira se iniciou em
instituições superiores de ensino ligadas à música, como
se constata nos cursos do Conservatório Brasileiro de
Música (CBM-RJ) e da Faculdade de Artes do Paraná, a
atual Universidade Estadual do Paraná. Ainda hoje, a
maior parte dos cursos de graduação em musicoterapia
estão em Escolas de Música ou de Artes (Nascimento &
Ansay, 2017).
b) Teorias direcionadas para uma população ou área
específica: a partir das necessidades locais dos
musicoterapeutas brasileiros, foi necessário construir
diferentes perspectivas teóricas para explicar um
conjunto de práticas existentes. Esse foi o caso das
teorias de musicoterapia aplicadas à educação;
musicoterapia para gestantes com doença trofoblástica;
musicoterapia nos cuidados paliativos; musicoterapia
social e comunitária, música e cores (para pessoas surdas),
canção-âncora em musicoterapia (para pessoas autistas),
sonoridades sociais (saúde mental) e musicoterapia para
pessoas que perderam uma parte do corpo. Embora muitas
das populações abordadas por essas teorias já tenham
sido estudadas por musicoterapeutas de outros países, os
teóricos brasileiros tiveram uma preocupação especial
em conceber suas teorias tendo a realidade brasileira
como fonte de inspiração. Por essa razão, destacamos a
necessidade de que musicoterapeutas de outros países
analisem essas teorias considerando que são o reflexo de
uma construção com peculiaridades locais, culturais e
socioeconômicas que refletem a realidade do Brasil.
c) Modelos gerais de musicoterapia: a partir da definição
desse conceito por Bruscia (2014), modelo é uma forma
particular de entender a musicoterapia, de concepções
práticas a teóricas, para uma dada população-alvo. Nesse
436
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
sentido, os modelos são pensados inicialmente para uma
dada população e, depois, generalizados para outros
contextos. Das teorias apresentadas neste livro, existem
duas que podem ser incluídas nesta categoria de modelos
gerais: a musicoterapia interativa e a musicoterapia
músico-centrada. Obviamente outras teorias do livro
poderiam ser consideradas como modelos por serem
direcionadas a uma população-alvo e/ou por
apresentarem procedimentos e técnicas específicas para
realizar os atendimentos. No entanto, os modelos de
musicoterapia interativa e músico-centrada são os únicos
que já passaram por um período inicial, caracterizado
pelo foco em uma população, para depois serem
generalizados a outros públicos. Ademais, cabe aqui um
esclarecimento importante sobre os nomes desses dois
modelos: existem modelos de musicoterapia em nível
internacional que possuem exatamente a mesma
nomenclatura dos modelos brasileiros. Como exemplos,
podemos citar o modelo britânico intitulado
musicoterapia interativa, criado por Amelia Oldfield
(2006), e também o modelo americano chamado
musicoterapia músico-centrada, desenvolvido por
Kenneth Aigen (2005). Ainda que esses modelos de
mesmo nome tenham algumas características
semelhantes, diferem principalmente sobre as origens e
experiências nas quais os musicoterapeutas se basearam
no desenvolvimento das suas abordagens.
d) Teorias centradas em análise subjetiva/reflexiva: uma
das características de muitas teorias brasileiras
apresentadas neste livro é o aspecto reflexivo/subjetivo
na forma de apresentar os diferentes conteúdos teóricos.
O Brasil possui uma longa tradição de escrita
reflexiva/subjetiva, influenciada, principalmente, pelo
estudo de autores das ciências sociais, psicanálise,
filosofia e antropologia. Essa é uma das razões pelas quais
os textos de teorias brasileiras precisam ser lidos com
atenção, já que a forma de escrever está imersa em
perspectivas indiretas e subjetivas na maneira de
437
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
apresentar o conteúdo. Esse é o caso das teorias de
silêncio em musicoterapia; musicoterapia nos cuidados
paliativos; canção-âncora em musicoterapia;
musicoterapia na educação; musicoterapia na produção de
subjetividades; musicoterapia social e comunitária,;
sonoridades sociais em musicoterapia; ambiências sonoras;
música e musicalidade em musicoterapia; musicoterapia
na abertura de canais de comunicação; musicoterapia
interativa; musicoterapia músico-centrada e
musicoterapia para pessoas que perderam alguma parte do
corpo.
e) Foco na prática musicoterapêutica: Barcellos (2019)
utiliza uma expressão bastante comum no campo
médico para explicar a importância da prática
clínica/terapêutica na musicoterapia enquanto
disciplina: a clínica é soberana. Com essa expressão, a
autora quer dizer que as teorias e as pesquisas são
oriundas da prática e, por isso, ela é o ponto de partida.
De todas as teorias apresentadas no livro, apenas
musicoterapia na educação é a que está fundamentada em
achados de pesquisa prévia. No entanto, mesmo nesse
caso, a pesquisa está alicerçada na prática prévia da
autora no campo da musicoterapia na educação. Dessa
maneira, podemos afirmar que as teorias de
musicoterapia criadas no Brasil, na sua grande maioria,
surgiram da prática musicoterapêutica. Todavia, muitos
casos não possuem uma grande exploração no campo da
pesquisa. Uma das vantagens das teorias criadas a partir
da prática é que elas são constituídas com base nos
acertos, erros e desafios cotidianos enfrentados pelo
musicoterapeuta.
f) Centrada em aspectos explicativos: ainda que não
sejam a maioria, as teorias de caráter explicativo são uma
tendência entre as teorias brasileiras de musicoterapia.
As teorias explicativas possuem uma influência direta do
positivismo e do pós-positivismo, dos quais a principal
característica é a objetividade das informações
438
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
apresentadas para explicar os diferentes conteúdos
teóricos. A organização e o caráter explícito dessas
teorias permite ao musicoterapeuta uma percepção mais
direta dos fenômenos e conceitos explorados. Esse é o
caso dos capítulos sobre o uso da mesa lira em
musicoterapia; musicoterapia para gestantes com doença
trofoblástica; musicoterapia organizacional; musicoterapia
e bioética e o uso das cores em musicoterapia. Os
musicoterapeutas que escreveram essas propostas estão
diretamente conectados a instituições de saúde,
empresariais ou de ensino, locais nos quais paradigmas
positivistas e pós-positivistas são uma tendência de
pensamento.
O que destacamos até então a respeito de cada uma das
abordagens desta coletânea de musicoterapia brasileira ilustra o caráter
heterogêneo e a riqueza presente em cada um dos olhares apresentados. A
seguir, por fim, trazemos algumas considerações de ordem terminológica a
respeito de cada uma das propostas.
439
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
podemos afirmar haver um campo lexical técnico-científico próprio da
musicoterapia.
O quadro a seguir apresenta as considerações realizadas após a
leitura e análise do campo terminológico presente em cada um dos
estudos.
Quadro 3. Comparação das diferentes teorias com base em aspectos
terminológicos (linguísticos)
440
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
441
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
442
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
2001).
443
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
tripartite Molino/Nattiez.
Microanálise em
musicoterapia: para
compreender melhor os
movimentos musicais e
extramusicais do paciente em
musicoterapia.
444
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
445
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
aquecimento, recriação,
provocativa musical,
provocativa pré-musical.
446
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
faz sentir na linguagem descrita, por meio da fonotática (combinatória) de
sons da língua portuguesa, a possibilidade de combinações harmônicas
exploradas nas sessões descritas. Elas saltam das páginas em diferentes
intervalos para a nossa imaginação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
447
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
REFERÊNCIAS
448
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
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449
Capítulo 21
INTRODUÇÃO
450
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
A partir desses critérios, foram escolhidas quatro perspectivas
práticas e cinco teóricas. As práticas descritas são as seguintes: técnica
músico-verbal (Luís Antônio Millecco Filho), técnica provocativa em
musicoterapia (Lia Rejane Mendes Barcelos), uma abordagem sobre
avaliação em musicoterapia (Gustavo Schulz Gattino) e Coro
Terapêutico (Cláudia Regina Oliveira Zanini). As perspectivas teóricas
foram: Tipos de ouvinte em musicoterapia (Gregório José Pereira de
Queiroz); Considerações sobre Música e Comunicação a partir da
Biologia do Conhecer e suas ressonâncias com Musicoterapia (Renato
Tocantins Sampaio) e Música, Sentido e Musicoterapia, segundo o
modelo Tripartite Molino/Nattiez (Lia Rejane Mendes Barcellos). As
duas últimas perspectivas dizem respeito a conceitos/teorias que foram
estudadas no Brasil em distintos momentos por diferentes
musicoterapeutas. Dessa forma, cada uma dessas duas perspectivas será
desmembrada para mostrar as diferentes visões sobre o mesmo assunto. A
primeira delas é a musicalidade clínica, que será examinada
minuciosamente segundo o entendimento de André Brandalise, Lia
Rejane Mendes Barcellos e pela visão de Clara Márcia Piazzeta e Leomara
Craveiro de Sá. A segunda perspectiva se refere às funções do canto em
musicoterapia, a qual é primeiramente explicada segundo a leitura de
Marly Chagas Oliveira Pinto e depois pela percepção de Luis Antônio
Milleco Filho, Maria Regina E. Brandão e Ronaldo Milleco.
PERSPECTIVAS PRÁTICAS
Técnica músico-verbal
451
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
Diálogo consigo mesmo: quando se solicita ao cliente
imaginar-se diante de um espelho ou de sua fotografia, visualizando
a própria imagem para cantar, assim, uma canção.
Dedicatória musical do cliente: o musicoterapeuta
solicita ao cliente que dedique uma canção a algo ou a alguém
significativo.
Rádio imaginário: é proposto ao cliente que, “sonhando
acordado” ou revivendo momentos significantes ou traumáticos,
imagine um rádio por perto a tocar determinadas canções;
Experimento ou associação livre: quando o terapeuta
canta, executa ou assobia as canções trazidas pelo cliente,
solicitando-lhe que, de olhos fechados, sonhe acordado.
Dedicatória musical do terapeuta: o terapeuta dedica ao
cliente uma canção, que surgirá naturalmente em função da
subjetividade do terapeuta e do momento vivido.
Uso de melodias trazidas pelo cliente: serão trazidas de modo
aleatório; o cliente buscará identificá-las conforme surgem naturalmente
dentro de si.
Uso de melodias em momentos estratégicos da sessão: deixar
surgir no máximo cinco, e, em seguida, o musicoterapeuta canta algumas
delas pedindo ao cliente que se disponha a sentimentos, imagens e
recordações.
452
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
portanto, ao observarmos um objeto fisicamente incompleto, a tendência
é a de preenchermos as partes que faltam a partir da memória visual que
temos dele (ou de formas que se assemelham a ele) e da imaginação. A lei
se relaciona a padrões ou sons que se tornam estabelecidos como clichés.
Em síntese, a técnica provocativa visa a interagir com essa lei, ajudando o
paciente a completar o que ficou em aberto para facilitar a interação
sonoro/musical com o musicoterapeuta e o desenvolvimento do processo
terapêutico.
De uma forma mais detalhada, a técnica provocativa musical
interrompe uma sequência de sons conhecidos, um ritmo, uma
melodia ou um encadeamento harmônico para provocar o paciente e
levá-lo a completar o que se apresenta incompleto. Ainda se deve
enfatizar que isso pode ser feito através da recriação ou da criação
(improvisação ou composição). O musicoterapeuta incentiva a
participação do paciente a partir de suas reações, como:
- a surpresa pelo não fechamento;
- a expectativa de fechamento;
- a tensão e o engajamento [comprometimento] com o
que foi feito e
- a necessidade de liberação de tensão, completando o que
está incompleto.
453
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
Avaliação em musicoterapia pode ser definida como um processo
estruturado de preparação, coleta, análise, intepretação e
elaboração de conclusões sobre os dados avaliados, bem como de
documentação e comunicação de dados musicais e não musicais
sobre processo musicoterapêutico com o objetivo de fornecer
informações para tomar decisões, levantar hipóteses, conhecer
melhor o usuário e buscar um melhor entendimento do processo
musicoterapêutico.
Conforme o autor, uma forma de apreender a complexidade da
prática de avaliação em musicoterapia é estudar os diferentes processos
que a envolvem. A avaliação em musicoterapia pode ser entendida
basicamente através de dois amplos processos: o avaliativo e o
musicoterapêutico.
O processo avaliativo se refere especificamente às experiências
executadas pelo musicoterapeuta na realização de práticas avaliativas.
Resumidamente, a prática avaliativa ocorre através de quatro etapas:
planejamento; coleta de dados; análise, interpretação e conclusão; e
documentação e comunicação dos resultados. A figura 5 mostra
graficamente essas quatro etapas. Segundo o autor dessa abordagem, o
processo avaliativo é caracterizado de acordo com as pessoas avaliadas
(usuário, familiares, musicoterapeuta/coterapeuta, profissionais de outras
áreas), os métodos de avaliação (revisão de documentos, entrevistas,
observações e testes), a natureza dos dados (de origem biológica; cognitiva;
de desenvolvimento; no âmbito social e de personalidade; e saúde mental
e física), os diferentes focos de avaliação (centrados na pessoa, nos objetivos
ou nos conteúdos) as relações estabelecidas nas práticas de avaliação
(centradas na música ou que usem a música como um recurso ou
ferramenta na relação), e o que fundamenta as práticas de avaliação
(baseadas em evidências ou em dados).
454
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
455
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
Coro Terapêutico
456
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
um coro segundo o seu contexto de atuação (educacional, empresarial,
artístico, terapêutico) e também em estudos sobre gerontologia social.
O coro terapêutico é conduzido por musicoterapeuta; tem
objetivos terapêuticos a serem alcançados a partir da voz - utilizada como
recurso para a comunicação, expressão, satisfação e interação social. O
musicoterapeuta engaja os participantes através do cantar, no qual
veiculam sua subjetividade, externando sua realidade interna. Os
principais objetivos do coro terapêutico incluem proporcionar aos
participantes a autorrealização, a motivação para o viver, a satisfação e o
prazer, a prevenção de problemas de Saúde Mental; a melhoria da
qualidade de vida; das relações intra e intepessoais e da interação social; o
estímulo para resgatar a memória e valorizar a dignidade de toda e
qualquer lembrança, a percepção do outro e do universo sonoro do outro;
e a compreensão das subjetividades de cada um. O coro terapêutico, ainda,
visa à saúde coletiva, à percepção da expressão criadora, artística, ou
mesmo da vida social através de símbolos musicais. Segundo Zanini,
(2002), a origem do coro terapêutico pode ser relacionada à essência
primeira do coro, quando de seu surgimento na Antiga Grécia. Esse,
então, tinha a função de simbolizar e expressar o sentimento dionisíaco do
povo que assistia à tragédia e sentia o aflorar da subjetividade naquela
expressão sonora.
Por meio de uma pesquisa fenomenológica, Zanini encontrou
três essências básicas do coro terapêutico a partir do relato dos seus
participantes:
1) O “cantar” como meio para autoexpressão e
autorrealização: o coro terapêutico é importante pela
possibilidade do fazer musical conjunto e também pela
satisfação e pelo prazer que envolvem o ato de cantar. Além
disso, o coro terapêutico oferece espaço para o
conhecimento da voz (aparelho fonador) como
instrumento musical e a abertura para uma nova forma de
comunicação - o canto.
2) As canções revelando a subjetividade/existencialidade
interna do ser: essa proposta possibilita a escolha do repertório
como resultado de uma construção conjunta e também a
oportunidade para vivenciar canções, transportando os
sentimentos e as emoções. O coro terapêutico ainda proporciona
457
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
acesso ao universo afetivo das canções ao incentivar a desinibição
e abrir caminhos para se experienciar os desejos e as memórias
expressas nas letras das músicas.
3) A autoconfiança do “ser” participante do coro terapêutico
estimulando a criação de expectativas para o futuro: essa
perspectiva permite o livre exercício do cantar, capacidade
inerente a todo ser, em qualquer idade, e ainda estimula a
autovalorização advinda da escuta terapêutica. O coro
terapêutico também possibilita o desenvolvimento da
autoconfiança e do reconhecimento de outras pessoas,
permitindo o encontro de indivíduos com um mesmo ideal. Ao
cantar, pode-se encantar e se encontrar; os participantes do coro
têm a autonomia na decisão dos caminhos para a apresentação
musical estimulada, encontram espaços que incentivam a vontade
e esperança de seguir em frente, de continuar cantando e também
percebem a melhoria da qualidade de vida e da saúde mental.
Segundo Zanini (2002), o coro terapêutico permite unir os três
tempos - passado, presente e futuro -, e, assim, é alcançada a integralização
do ser. Conforme palavras da própria autora:
Essa [integralização do ser] pode ser proporcionada,
propiciada e facilitada pela música, levando a visão não só do ser
que envelhece, mas do ser que é, da sua essência. Quando as
lembranças são trazidas para o presente, através de canções, traz-
se um reflexo do passado; quando o indivíduo tem expectativas
para o futuro, metas como continuar cantando e crescendo, vê-se
proporcionado o pensamento de um futuro na realização do
presente. Se o “ser” faz, se ele é, ele tem expectativas para o futuro,
e essa expectativa de futuro o faz ser hoje. Se ele vive do passado,
ele não é, ele foi, não será. Se não tem expectativas de “vir a ser”,
hoje ele não é mais, ele foi (Zanini, p.130).
PERSPECTIVAS TEÓRICAS
458
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
ser humano enquanto produtor e ouvinte de sons. Essa classificação
particular dos tipos de ouvintes foi inspirada na maneira de se ordenar a
música, referidas por Platão e Aron Copland (especialmente relacionada
aos parâmetros musicais) na classificação de arquétipos dos sons em
musicoterapia, concebida por Wolfgang Strobel (no que se refere aos
níveis de experiência do ouvinte) e nos critérios de conhecimento
psicológicos descritos por Piort Ouspensky. Considerando a visão
tripartida do ser humano, que, a partir das impressões vindas do mundo,
manifesta seus gestos e reações por meio de três funções principais –
motora, emocional e mental , Queiroz organiza uma classificação dos
tipos de ouvinte, em parte semelhante àquela descrita por Stroebel, mas
mais próxima dos critérios utilizados na própria classificação da música.
Assim, cada tipo de ouvinte responde à música a partir de uma diferente
reação, que pode ser motora-instintiva (ou física), emocional ou mental;
cada uma delas tendo possibilidades de ocorrer de modo ativo/interativo
ou passivo/receptivo, resultando em seis tipos básicos de ouvintes, isto é,
seis tipos básicos de reação à música:
Física: apresenta uma forma receptiva intitulada fisiológica
e a uma forma interativa com o nome de cinestésica. A fisiológica
(forma receptiva) refere-se a reações orgânicas (involuntárias, como
dor, alteração do batimento cardíaco, calor, tontura). A cinestésica
(forma interativa) descreve a reação por movimentos do corpo
(voluntários ou quase reflexos, como palmas, batida de pé).
Emocional: apresenta uma forma receptiva intitulada
sensitiva e a uma forma interativa com o nome de imaginativa – A
sensitiva (forma receptiva) descreve a reação pela exacerbação de
sentimentos ou da memória emocional. A imaginativa (forma
interativa) se refere à reação pela criação de imagens (fantasia
imaginativa pictórica ou simbólica).
Intelectual: apresenta uma forma receptiva intitulada
associativa e a uma forma interativa com o nome de analítica – A
associativa (forma receptiva) consiste na reação por associação de
qualidades (músicas doces, violentas, alegres, nobres, misteriosas). A
analítica (forma interativa) está relacionada à reação por raciocínio
avaliador (o pensamento crítico, raciocínio por comparação técnica,
avaliação lógica).
459
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
Queiroz (2002) ressalta esses três níveis – fisiológico,
emocional e intelectual –, pois as três funções são atuantes em todo
ser humano. No entanto, é a função preponderante que define a
“reação fundamental” ou o “tipo de ouvinte”. No final, os três níveis
interagem de tal modo que, sem uma avaliação acurada, parece que
todas as pessoas reagem à música física, emocional e
intelectualmente sem qualquer distinção ou ênfase em algum dos
níveis.
460
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Sampaio (2002) destaca os processos recursivos do sistema
nervoso como um dos principais componentes para entender a
comunicação entre seres humanos. Esses processos se referem a um
circuito fechado que retorna ao seu ponto de partida (interações com o
meio) mas com uma estrutura diferente - recriada, renovada, reconstruída
- do próprio sistema nervoso, ou seja, um eterno processo autopoiético.
Dessa forma, os processos recursivos atuam no processo
musicoterapêutico como um constante retorno para determinados pontos
de partida dentro do sistema nervoso relacionados a diferentes processos
neurológicos (sejam eles fisiológicos, biomoleculares ou químicos) que são
alterados por meio das experiências musicais vivenciadas.
Dois conceitos importantes para entender a comunicação em
musicoterapia segundo a perspectiva da Biologia do Conhecer é a relação
entre observadores e o conceito de existência. Segundo Maturana (2001,
citado por Sampaio, 2002), tudo que é dito, é dito por um observador a
um outro observador. Nesse sentido, o fenômeno do conhecer é um o
fenômeno do operar do ser vivo em congruência com sua circunstância.
No que se refere à existência, os seres humanos, enquanto seres vivos,
existem como animais (Homo sapiens sapiens), no domínio de sua
corporalidade molecular, e vivem como tais no fluir dos seus processos
fisiológicos. Ao mesmo tempo, por pertencer à classe de animais específica
(seres humanos), eles existem no domínio de suas interações como tais, o
qual um observador vê como o “domínio da sua conduta humana”. Ao
pensar sobre esses conceitos em musicoterapia, os observadores são os
participantes do processo musicoterapêutico (principalmente o
musicoterapeuta e o paciente) e existem dentro da sua corporalidade e do
fluir dos seus processos fisiológicos, mas também existem por meio das
suas interações, principalmente relacionadas aos domínios psíquico,
mental e espiritual, que se relacionam diretamente com as interações
desenvolvidas por meio de interações musicais e não musicais, num
mundo de linguagem.
O ponto-chave para entender a relação da Biologia do Conhecer
com a musicoterapia a partir da visão de Sampaio (2002) é estudar a
relação entre os conceitos de comunicação, comportamento aprendidos,
linguagem e consenso. Para Maturana, a comunicação entre dois
organismos é uma coordenação de ações entre eles. Os comportamentos
aprendidos se referem a aqueles que existem apenas porque houve uma
história ou situação específica para que fossem aprendidos. Entre os
461
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
comportamentos aprendidos, existe uma categoria especial, que é a
linguagem. A linguagem é, portanto, uma coordenação consensual de
comportamentos. O consenso, por sua vez, é uma clara sinalização do
resultado de estar junto, de conversar.
Para Sampaio (2002), o fazer musical em musicoterapia implica
uma relação direta com esse vínculo de comunicação e linguagem segundo
a Biologia do Conhecer. Muitas vezes o paciente irá adaptar a sua forma
de tocar com o terapeuta, criando uma comunicação (coordenação de
ações entre eles), na qual existe uma coordenação consensual (linguajar)
para que possam estar juntos. O linguajar não é o único fator implicado
no fazer musical, pois nele também está presente o emocionar: uma
transformação dos estados afetivos no campo psíquico do terapeuta e do
paciente que não pode ser observada diretamente e, portanto, não pode
ser registrada, a não ser que seja traduzida no linguajar (verbal e/ou não-
verbal). Dessa forma, espera-se que paciente e terapeuta não apenas
coordenem o seu tocar de forma consensual (linguajar), mas que também
possam lidar com os seus desejos e suas realizações numa perspectiva
social, de forma a possibilitar a manutenção do processo desejante e do
processo criativo (emocionar).
462
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
sentido a ele. Devido a sua natureza polissêmica, a música pode se adaptar
ou carregar o sentido que o paciente quer ou necessita expressar. Ela pode
estar “no lugar” daquilo que o paciente quer expressar, ou seja, pode ser
portadora de efeito de sentido metafórico da sua expressão.
A orientação tem origem na musicologia contemporânea, como
defendem John Rink e José Bowen, que veem o performer não como um
simples executante, mas como o narrador das ideias do compositor, o
condutor de uma mensagem expressiva, alguém que está engajado tanto
na comunicação de um trabalho como em sua expressão individual. Da
mesma forma, essa orientação está fundamentada no modelo tripartite de
Molino, o qual foi ampliado por Nattiez e originou, então, o modelo
Tripartite Molino/Nattiez (Barcellos, 2009).
Barcellos (2012) sustenta a sua orientação no modelo tripartite
de Molino, o qual está baseado na compreensão de que o fenômeno
musical, assim como o linguístico ou o religioso, não pode ser
corretamente definido ou descrito sem que se tenha em conta seu triplo
modo de existência: como objeto arbitrariamente isolado (nível neutro),
como objeto produzido (poisesis) e como objeto percebido (estesis), de
acordo com o que mostra a figura 1.
Assim, o fenômeno musical é constituído pelos processos de
produção, recepção e pelo vestígio, assim apresentando-se a tripartição de
Molino (Molino, 1975, p. 38 citado por Barcellos, 2012).
463
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
464
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
por Barcellos 2012). O modelo Molino/Nattiez recomenda que se
comece pela estrutura imanente (vestígios sonoros ou cênicos em
musicoterapia) – que é uma realidade material amorfa até que seja
capturada pela análise, e que se utilize, para esta, a análise paradigmática
de Nicolas Ruwet. A figura 4 apresenta um resumo dessa proposta.
465
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
conflitantes, mas sim complementares. Apresentam-se, nesta seção, cada
uma dessas três compreensões.
Musicalidade clínica segundo André Brandalise (2003, p.13):
musicalidade clínica se refere a um perfil profissional singular à profissão
de musicoterapeuta. Consiste na educação da habilidade de alguém para
descobrir o potencial clínico que habita a música a partir da instalação de
uma confiável e segura relação terapêutica. A musicalidade clínica conecta
liberdade criativa, espontaneidade, intuição, musicalidade,
responsabilidade clínica (compromisso) e intenção clínica”.
Musicalidade clínica segundo Lia Rejane Mendes Barcellos
(2004, p.83): a musicalidade clínica apresenta-se como a capacidade de o
musicoterapeuta perceber os elementos musicais contidos na produção ou
reprodução musical de um paciente (altura, intensidade, timbre,
compasso e todos aqueles que formam o tecido musical) e a habilidade em
responder, interagir, mobilizar ou, ainda, intervir musicalmente na
produção do paciente, de forma adequada.
Musicalidade clínica segundo Leomara Craveiro de Sá e Clara
Márcia Piazzeta: em relação às duas definições anteriores, o principal
intuito dessas autoras é aprofundar a complexidade desse conceito,
principalmente pelo estudo de teorias relacionadas à semiótica e à teoria
da complexidade, bem como pelo estudo de outros autores da
musicoterapia. Segundo elas, a musicalidade clínica favorece a emergência
de “fios sonoros” (Barcellos, 1999), nos quais detalhes aparentemente
insignificantes, que muitas vezes aparecem nos elementos da música em
ritmos, melodias, timbres, harmonias, gestos e tempos musicais etc.,
contribuem para favorecer a reconstrução da história pessoal do cliente.
Para Craveiro de Sá e Piazzeta (2005), essa teia tem um sentido único para
cada cliente; qualquer elemento alcançado pela musicalidade clínica do
musicoterapeuta torna-se um ponto de certeza, uma intersecção entre
tramas de sons, como amarras sonoras da obra musical composta em cada
processo musicoterapêutico. A musicalidade clínica faz-se pela capacidade
do musicoterapeuta de doar-se em uma entrega incondicional ao outro
paciente diante do ser e estar ‘na’ e ‘com’ a música nos encontros
intersubjetivos, interrelacionais recursivos e consensuais de musicalidades
em ação. Portanto, para Craveiro de Sá e Piazzeta (2005), a musicalidade
clínica possibilita musicalidades intensas compartilhadas que levam aos
momentos inesquecíveis, às experiências culminantes repletas de energias
transformadoras tanto para musicoterapeutas quanto para seus clientes.
466
Perspectivas práticas e teóricas da musicoterapia no Brasil
Aprofundando esse conceito, as autoras entendem que o musicoterapeuta
é um ser musical-clínico, não apenas um bom músico, mas um profissional
terapeuta que coloca sua musicalidade a serviço das relações de ajuda. Esse
profissional é movido por entregas incondicionais; pelo amor, princípio
básico da cooperação.
467
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
lembramos de um fragmento. Os lapsos ou cantos falhos corroboram e
sublinham o que é mais significativo na canção lembrada.
Canto como prazer: o canto pode ser mobilizador emocional e
revelador de sentido, trazendo consigo uma forma de gozo, de intensidade
expressiva. Toda a carga afetiva que acompanha o canto fala da intenção
subjacente, motivadora do cantar.
Canto como expressão de vivências inconscientes: quando as
canções emergem de conteúdos bloqueados, pois não se consegue
expressão através das palavras.
Canto como resgate: quando, entre muitas canções arquivadas
em nossa memória, pinçamos apenas uma em determinado tempo/espaço,
possibilitando o resgate de um momento passado.
Canto desejante: as canções podem expressar sonhos, fantasias e
devaneios, informando desejos de transformar o presente em algo mais
prazeroso.
Canto comunicativo: acontece através de diálogos musicais
entre terapeuta e cliente, ou entre membros de um grupo terapêutico.
Possibilitam momentos de intensidade expressiva e comunicativa.
Canto corporal: a música, como atividade vibratória organizada,
afeta o corpo de duas maneiras: objetivamente, como efeito do som sobre
as células e os órgãos; e subjetivamente, agindo sobre as emoções, que, por
sua vez, influenciam numerosos processos corporais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
469
Perspectivas teóricas da musicoterapia brasileira
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470
Electroni
ronicc eedi
dittion produce
produced bbyy