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o original desta obra intitula-se:

PREFACIO
FRIEDRICH NIETZSCHE

Traduzido do illf.!,li)s por


EDUARDO PINHEIRO

La edição: 1953
2. 1 (:clíç'ão (a presente): 1958

Nos tempos que correm (1),


dificilmente se poderá exigir uma justificação para qualquer
obra que se venha a escrever acerca de Nietzsche. O filó-
sofo de A Vontade de Domínio e do Super-Homem tem sido
apontado como um dos principais progenitores do dina-
mismo nazi, responsável em parte pelo desassossego e pelas
actividades da moderna élemonha, e como patrono da noção
de uma Herrenklasse (2). Por outro lado, o adversário da
estadolatría, o homem que desprezou o Socialismo, e o

Direitos exclusivos da
LIVRARIA TAVARES MARTINS
para Portugal e Brasil (1) Esta obra foi escrita durante a última guerra. A segunda
edição data de 1942. (N. T.).
(~) Literalment.e: classe de senhores. (N. TJ.
NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA PREFÁCIO 9

homem que escarneceu do Império Alemão. tem sido deien- sua realização, são condenados. Honra seja, pois, dado a
dido como sendo, essencialmente, um antinazista. Este Nietzsche por ter encarado tanto a sério o valor e o signi-
conflito de atitudes, pelo que se refere a Frederico Nietzsche, [ioado ela cultura humana. Mas, ao mesmo tempo, como
seria já bastante, de per si, para justificar qualquer novo demonstrarei neste livro, Nietzsche tentou minar e destruir
trabalho sobre a sua filosofia. os próprios fundarmentos em que deoe assentar a oerda-
Há, porém, outra razão pela qual Frederico Nietzsche deira cultura. O homem, para este filósofo, não tem raízes
é de grande importância nos tempos de hoje. Nós estamos na eternidade, num Deus transcendetüe-imanetüe - porque
a lutar, não apenas para cumprirmos a palavra dada, não, Deus não existe - e, desta maneira, a cultura carece absolu-
apenas para defendermos a nossa existência como povo livre, tamente dum fundamento espiritual. No entanto, foi sobre
não apenas para defendermos a independência das nações um alicerce espiritual que se estabeleceu a nossa cultura
que se encontram esmagadas pela tirania - mas também europeia e foi devido à falta de reconhecimento de tal
pelo conservação dos valores culturais da Europa. Esta guerra alicerce que se desencadeou sobre nós uma tempestade que
pode ser encarado ele muitas formas, mos um dos seus ameaça [ozer soçobrar o melhor da nossa cultura no abismo
aspectos esenciais é ser uma luta para manter a herança do seu niilismo.
cultural do continente europeu contra o ataque dos novos Nas páginas que se seguem procurei expor o pensa-
bárbaros. Ora, sendo assim, é óbvia a importância de con- mento de Nietzsche por aquela forma 00 mesmo tempo belo
siderar e examinar a natureza e os alicerces da verdadeira e ingénua com que ele se apresenta ao meu espírito, visto
cultura, e nesta questão, Frederico Nietzsche está altamente que nem (JJ deturpação nem os agravos são armas de que
interessado. Podemos dizer que toda a sua obra gira em . deva lançar mão quem procura estudar a obra dum fil6safo ;
volto do problema da cultura humana, pois foi ele quem 110 entanto, confesso de boa vontade qiU6 este livro é uma
apontou ao homem um novo ideal de cultura - o homem crítica da posição de Nietzsche e, pelo que se refere às mlIi:J.
eleixmdo-se acima de si mesmo no Super-Homem (der über- fundas e últimas conclusões, uma crítica adversa, porque a
mensch). Desprezando aquilo a que chamavaJ!!orªldQ... doutrina deste filósofo não pode, positivamente, apontar-nos
rebanho e asideologia§ d(l mediocridade, Nietzsche pregou qualquer meio de nos sairmos da dificuldade da hora pre-
-;;-'-~~;;~b;;~"'~'~~6iiéõ8-~-a cWcen.são da espécie sente. Ao mesmo tempo, não deixo de mani.festar Q ·metJ
humana até um estado em que se excedesse a si própria. respeito e a minha simpatia p(Jfa com ele como homem
Não devemos regatear louvores a Nietzsche por se ter e considero o seu pensamento, sob muitos aspectos, como
devotado à causa da cultura por uma forma tão convicta,

.'!
I.:~. ·
um desafio lançado ao homem moderno e, principalmente,
tão apaixonada e tão sincera. Todos os fenómenos parti- ao cristão. Não posso encarar a sua fÜ080fia como um
culares - o estado, a moral e a religião - são por ele jul- amontoado de vãs afirmações saídas da boca dum indiví-
gados na sua relação com aquilo a que chama o verdadeiro duo atacado de nevrose; pelo contrário, S'OU de O'pttlilJo
ideal de cultura. Enquanto tais [enômenos favorecem esse r.;
que devemos pôr-nos em contacto com o $6U pensmncmto fi
ideal, são recomendados; desde que procuram entravar fi, elevar-nos acima dele, chmnondo a n68 tudo o qJUI de . . .
; .

10 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTUHA


i. PREFÁCIO 11

se nos for deparando no caminho. Tal pensamento, revelando- cia da Dioindade não têm desculpa alguma. É certo que
-nos uma alma inoestigadoro e sincera, um poeta e um mestre Nietzsche não teve em mira despoia« o rebanho da sua
do idioma alemão, de forma alguma deixou de exercer a sua religião, mas, ao tentar libertar possíveis discípulos das
influência na Europa depois da morte do seu autor; pelo 1 «algemas» da religião e da moral, mostrou-se como um
contrário, a sua importância aumentou e os resultados podem homem que tivesse dito: «Demónio, sê tu o meu Deus 1» No
ser observados claramente pelos intelectuais de ambos os i
I
Ecce Homo declara ele que o Crepúsculo dos ídolos é o
mais perverso, moralmente falando, de todos os livros, e
sexos. ~
Ao mesmo tempo, embora nos deixemos impressionar nessa mesma obra escreve: «Tenho um medo horrível de
! que um dia venha a ser santificado; recuso-me a ser santo;
pela tragédia pessoal da vida de Nietzsche, embora respei-
temos até certo ponto o vigor e a coragem com que ele se
I, preferia ser um palhaço». Ele mesmo se considerou um cri-
,i
minoso moral e teve razão, porque o foi. A sua campanha
devotou àquilo que considerava como a sua «missão», embora iI
reconheçamos as suas boas qualidades naturais elamentemos I
I
contra o Cristianismo e contra ai moral universal testemu-
/ I
nham bem esse facto. Sob tal aspecto, ficou abaixo de qual-
".fJ._t!~pI!!-4ígÍf.!cletanto taJento. e tanta energia ao serviço do I
I
erro, - temos o dever imperioso de reconhecer que Nietzsche II quer grande fiil6sofo pagáD como Platão, que insistiu no
feduns. os olhos à luz, quando, deliberadamente, renegou I carácter absoluto e universal dos valores morais.
Deus e o Cristianismo, tomando-se assim merecedor da mais II Hoje, quando se manifesta uma larga tendência para
severa censura moral. Não pretendemos querer saber o que
se passou com a sua alma na hora extrema, pois Deus pode
,-,I
I
equiparar a virtude e a religião apenas à sinceridade e à
bondade nas relações com os outros homens, bem como à
actuar sobre uma alma sem qualquer manifestação exterior I abstenção das mais grosseiras manifestações da conoupis-
de conversão, mas o facto verdadeiro - e que deve ser clara- I cência, alguém poderá apontar triunfantemente parra a vida
mente apontado - é que, durante o período da sua activi- particular de Nietzsche e exclamar: «Eis aqui um homem
dade literária, Frederico Nietzsche trocou a luz pelas trevas.
E não se venha dizer que o filósofo, desnorteado momeniâ-
II
bom e morail», como se as opiniões intelectuais não inte-
ressassem. Mas tais opiniões interessam, pois a perversão
neometüe, por exemplo, pela visão dum mundo sofredor e na esfera intelectual é pior do que, por exemplo, o pecado
pelo pecado dos homens, atravessou uma «fase» ateísta. Não; sexual, porque, enquanto este último é facilitado pelos
Nietzsche praticou, defendeu e propagou O ateísmo. De facto, desejos da come, deseios esses que são comuns aos homens,
apenas poderemos dizer que ele foi - intelectualmente - a perversão intelectual implica um pecado ailUUJ nu.Us deli·
um verdodeiro criminoso moral. Os te6logos cat6licos COn- berado e 11UlIÍS manifesto contra a luz, principalmente
cordam todos em que nenhum homem pode permanecer na quando se trata dum homem que teve uma educação cristã
ignordncia de Deus durante qualquer espaço de tempo, pois e piedosa. Não podemos, portanto, considerar Nietzsche
todos nós sabemos que Deus dá aos homens a graça sufi- como um «santo» ateísta; longe de ser um santo, foi um
ciente para a sua salvação. Por outro lado, S. Paulo vem réprobo. Se não foi um licencioso no ~ geral do
dizer-nos que aqueles que se negam a reconhecer a existén- termo, devemos levar esse facto a seu crédito). fIlGS a vet'"
1
12 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA I PREFACIO 13
dode é que combater deliberadamente contra Deus é um
pecado pior e mais profundamente enraizado na alma do I considerado como aquele que encontrou pa'T'a os problemas
de Nietzsche a mais ootável e moderna solução, mostrando
que aqueles vícios comuns, em que o homem cai devido à I que temos de passar além do filósofo alemão, admitindo o
fragilidade humana. t transcendente e o sobrenatural. Da mesma forma, não
Se no seguimento deste livro, parecer que tentamos deveremos também subordinar-nos (lJ esse fi16sofo, concen-
apresentar Nietzsche sob um aspecto que lhe seja mais \
I trando toda a nossa atenção sobre a Dasein (1), no sentido
favorável, não Se tome tal facto como uma retratação do em que o fez Martinho Heidegger (2).
que acabámos. de dizer. Nietzsche tinha muitas qualidades Jorge Brandes, na« suas lições sobre Nietzsche, dedo-
boas, que 'merecem a nossa simpatia; disse muitas cotsae rou que, «por muito pouco alemão que ele se sentisse,
verdadeiras, que não podemos deixar de aprovar; sofreu continuou todavia a tradição metafísica e intuitiva da tilo-
demasiado e não poderemos deixar de nos compadecer dos $ofia alemã e manifestou sempre, por qualquer ponto de
seus sofrimentos; tinha um ideal de cultura e um ideal 'Vista utilitário, a profunda antiputia dum pensador
para o homem, que não podemos deixar de, em maior ou alemão (3). E isto é a expressão da verdade: Nietzsche
menor grau, honrar e respeitor-; no entanto, nada disto tem de alinhar ao lado dos grandes filósofos alemães. Ficou
pode alterar o facto de que se ergueu deliberadamente a dever muito ao pensamento do célebre pessimista Scho-
contra Aquele que é o Cominho, a Yerdade e a Vida. penhauer e partilhou com ele da reacção contra esse notável
Peço aos leitores deste livro que tenham sempre pre- desenvolvimento da metafísica dialéctica que, tomando
sente esse tactoe que não julguem que o autor está a como ponto de partida o Crítica da Razão Pura, de Kant,
desculpar o pecado c1Mm homem que foi, no mais literdl veio encontrar o seu ponto culminante no gigantesco sistema
sentido, um verdadeiro Anticristo. racionalista e optimista de Hegel. Mas, embora devendo
No confronto que estabelecemos, no capítulo final, muito o Schopenhauer, o pensamento de Nietzsche opôs-se
entre Bergson e Nietzsche, demos superioridade ao pri- ao dele e acabou por o lançar por terra, passando a uma
meiro. Eizemos assim, não porque estejamos de acordo com verdadeira Lebensphilosophie (4). No entanto, como mos-
tudo quanto Bergson disse, ma.s' porque ambos estes filóso-
fos dejenderom uma filosofia da vida e deram lugar de
relevo ao «homem superior», embora Bergson tivesse reco- Parece-nos que presentemente o meto não está ainda 'SUficientemente
claro - pelo menos no nosso país.
nhecíckJ inteiramente os alicerces espirituais do universo e (') A existência: (No To).
o carácter e9piritual da verdadeira cultura, a ponto de

{:
(') Martinho Heidegger nasceu em Masserlciech (Baden) em
algU11S dizerem que ele confirmara toZ reconhecimento ao ....
........•..
.•... 18890 A sua filosofia é uma filosofia da exist~ia. O mundo não é
.,
receber o sacramento ckJ baptismo (1). Bergson deve ser ; um ente que contém outro ente - o existente - mas slm,: junto com
.
o ente que existe, uma unidade radical que caracteriza a exist&cia
enquanto existência. (N. T.).
(I) No entanto, há também quem afirme que Bergson, por (') Friedriéh Nietzsche (Heinemann, 1914). pa. 52.
ceJt()$ motivos. se absteve de receber os sacramentos do baptismo. (4) Filosofia da vida. (N. T.).
14 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTUBA PREFÁCIO 15
trarei nas páginas que se seguem, Nietzsche não ofereceu a descrição da morte de Nietzsche do livro Nietzsche de
qualquer substituto real para o pessimismo, apesar ele todas ]. M. Kennedy. Vão ainda os meus agradecimentos para o
as suas afirmações em contrário. Nunca ele pôde vencer o Rev. E. F. Sutcliffe, S. l.. editor da Série Bellarmine, pelo
pessimismo metafísico, porque a sua filosofia, como a de seu amável e valioso auxílio na revisão das provas.
Schopenhauer, é uma filosofia ateísta. E este é o seu Devo declarar que, ao fazer referência à tradução
'r.ptil'tov lu;õSa:> (I). inglesa das obras de Nietzsche, citei a página, quando se
Ao tentar uma crítica de Nietzsche sob o ponto de vista trata de livros não aforísticas ou quando me pareceu ser
cristão, não deixo de compreender ao mesmo tempo que há este processo preferível; tratando-se de livros aiotisticos,
muita coisa de valor na sua filosofia e que as suas ideias citei o número do aforismo, visto que, na mesma página,
sobre cultura exigem um estudo realmente sério. Nestas con- encontra-se muitas vezes mais que um aforismo.
dições, julgo que alguns dos meus leitores gostariam de ver
o assunto mais largamente tratado. É possível que, daqui Finalmente, deve-se ter em conta que este livro não é,
por algum tempo, eu - ou alguém que encare a questão de forma alguma, uma recomendação das obras de Nietzs-
sob o mesmo ponto de vista, mas com maior competência che àqueles que professam o Cristianismo. Está muito longe
do que a minha - possa tentar, sobre Nietzsche, um estudo do pensamento do autor a sugestão de que cristãos con-
mais adequado, mais profundo e de maior alcance - um victos devam ler livros como o Anticristo. Longe de mim
estudo que seja, ao mesmo tempo, contemporizador, crítico tal ideia. Por outro lado, um autor que se abalançasse a
e positivo. apresentar Nietzsche nos termos mais sombrios, falsificando
os seus pontos de vista ou interpretando-os errõneomenie
Deixo aqui expressa a minha gratidão para com o I ~~n.i!~erius» (1), não podia esperar a devida atenção 01'
mesmo ·üffUt-Wtísideração séria por parte daqueles que fá
editor da tradução inglesa das obras de Nietzsche, Dr. Oscar
são conhecedores das obras deste filósofo. A nossa intenção
Levy, bem como para com os livreiros George Allen &
não é «caiar», mas sim pintar as luzes e as sombras tão
Umoin, t.a: pela sua amável e generosa autorização para
honestamente quanto seja necessário.
incluir aqui diversas citações daquela tradução. Agradeço
também à firma M acmillon a permissão que me deu de
fazer diversas transcrições da tradução inglesa da obra de
Bergson As Duas Fontes da Moral e da Religião por R.
Ashley Audra e Cloudsley Brereton, com a coadjuvação de
W. Hor$fall Carter, bem como agradeço à firma T. Werner
Lourie e ao Dr. O. Levy por me autorizarem a transcrever

(') Pelo lado pior. (N. T.),


(') Primeiro erro. (N. T.).
CAPíTULO I

A VIDA DE NIETZSCHE

EM 15 de Outubro de 1844,
nasceu o primeiro filho do pastor protestante de Rocken
(em Saxe da Prússia) e foi-lhe dado o nome de Frederico
Guilherme, em honra de Frederico Guilherme IV, rei da
Prússia, cujo nascimento ocorreu em 15 de Outubro e que
foi o patrono real do pastor Nietzsche. Desta maneira,
Frederico Nietzsche, que se mostrou mais tarde um inimigo
declarado do Cristianismo, passou os primeiros anos da sua
vida no lar dum pastor cristão, O avô e bisavô maternos
tinham sido também pastores protestantes e o próprio
Nietzsche, na sua mocidade, pensou seguir a mesma car-
reira. Aquela alma poética e idealista não podia deixar de
ter sido influenciada pela atmosfera religiosa da sua infân-
cia, pelos ofícios e música da igreja rural e pelo exemplo
do pai; por isso, mesmo nos últimos anos, conservou sempre
respeito pelos cristãos sinceros, procurando dissuadi-los de
lerem os seus livros (1). Uma vez, quando andava a escrever

(') Este respeito pelos cristãos sinceros manteve-se, mas não se


pode negar que as suas obras contêm muita coisa blasfema e repug-
nante para, o leitor cristão. Tais obras não são de forma alguma
acoeselháveís,
18 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA A VIDA DE NIETZSCHE 21
a obra Assim Falou Zaratrusta, houve uma senhora, jovem e a mãe mudou-se para a cidade de Naumburgo. Nietzsche
ainda, que lhe perguntou se naquele dia - um domingo- viveu ali na companhia da mãe, da avó e duas tias, o que
não tinha estado na igreja. Nietzsche respondeu-lhe delica- constituía uma sociedade demasiadamente feminina para
damente: «Hoje, não». E mais tarde explicou ao seu amigo um rapaz da sua idade. Naquele tempo, era uma criança
Lanzky: «Se tivesse perturbado o espírito daquela rapa- grave, «Introspectíva», ou seja o «pequeno pastor», como
riga, sentir-me-ia horrorizado». Na segunda parte da obra lhe chamavam os seus companheiros de colégio. A seu
acima citada, vamos encontrar as seguintes palavras: «Vede respeito tem-se contado muitas vezes que, num dia de
estes sacerdotes; embora sejam meus inimigos, passai à sua muita chuva, quando a mãe por entre os vidros aguardava
frente em silêncio e com as espadas embainhadas. Entre o seu regresso da escola, viu-o chegar muito vagarosamente,
eles há heróis; muitos sofreram demasiado e, por isso sem um guarda-chuva, sem sobretudo e sem se importar
mesmo, desejam fazer sofrer os outros. São maus inimigos: absolutamente nada com a água que caía. Quando, depois
_Eada há mais vingativo que a sua humildade. Depressa se de ele entrar em casa, a mãe o admoestou, respondeu-lhe
maculará aquele que os tocar. Mas o meu sangue está ligado com a maior simplicidade que o regulamento da escola
ao deles e eu quero que o meu sangue seja honrado no proibia os rapazes de andarem a correr pelas ruas.
deles» (1). Foi em Naumburgo que a música começou a desem-
Não é com facilidade que se fazem desaparecer as penhar um papel importante na sua vida e foi também
influências sofridas nos primeiros. anos e pode muito bem quando era ainda muito novo que ele começou a compor
ser que o ataque feroz de Nietzsche contra o Cristianismo diversos meteres e poemas. Quando homem, veio a ser um
procurasse abafar o sentimento, meio formado e constante- dos mestres da literatura alemã e continuou a sentir uma
mente reprimido, de que estava a ser injusto para com a paixão profunda pela música. Já várias vezes se tem afir-
religião em que fora educado e de que talvez não fossem mado que o seu génio se revela melhor nos dons poéticos,
os cristãos, mas sim ele, quem estava enganado e num literários e imaginativos do que no conteúdo da sua filo-
caminho errado. Os negros anos de loucura que sobre ele sofia. De facto, esta não encerra aquela grande mensagem
caíram no último período da sua vida podiam muito bem à humanidade que Nietzsche ingenuamente lhe atribuía;
ter sido devidos, em parte, à tensão constante que se via mas, como escritor, o seu nome é imorredoíro.
obrigado a manter para negar e atacar uma Fé que, Em 1854 entrou para o Ginásio de Naumburgo, mas
segundo percebia, o encarava face a face com um direito em 1858 ofereceram a sua mãe uma bolsa de estudos para.
difícil de negar. o filho na famosa escola de pforta, a cinco milhas de
O pai de Nietzsche morreu em 1849, depois dum Naumburgo.
período de aberração mental devida a uma queda violenta, A primitiva instituição cisterciense dera lugar, por
ocasião da Reforma, a um internato e foi ali que Nietzsche
passou seis anos da sua vida, numa escola que tinha dado
(I) Págs. 105·6. ao mundo homens como Novalis, os SchlegeIs e o filósofo
20 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CUL TunA A VIDA DE NIETZSCHE 19
patriota Fichte, cujos vibrantes apelos ao povo alemão em com alguns amigos, uma agremiação literária denominada
Berlim, durante o período do domínio napoleónico, muito Cermania.
contribuiu para conservar vivo o espírito de patriotismo No último ano que passou em Pforta aproveitou-se da
nessa época de humilhação nacional. Não se pode dizer disciplina muito menos rigorosa a que estavam sujeitos os
que Nietzsche tivesse sido feliz durante estes seus primeiros rapazes mais velhos; a Cermania, a companhia dos amigos,
anos; a disciplina era muito apertada e aquela rotina a convivência com os mestres e a sua própria obra literária
aborrecia-o. foram outros tantos ·estímulos que muita influência exer-
No entanto, trabalhou duramente e sentiu-se feliz ceram sobre ele (1).
quando se viu Prittumer e). Leu Schiller, Hõlderlín e Byron, Podemos afirmar que foi com a maior sinceridade que,
preferindo o segundo aos outros dois, e, sob a influência das ao sair de Pforta, expressou os sentimentos da mais indelével
suas leituras bem como sob a influência de um ou dois gratidão para com Deus, para com o Rei e para com os seus
mestres que tinham levado mais longe a sua exegese, companheiros.
começou a afastar-se do Cristianismo. Nietzsche deixou Pforta em Setembro de 1864.
Mas não foi em Pforta que este afastamento atingiu o Ali, os seus dois particulares amigos foram Gersdorff e
seu auge. Paulo Deussen ; este último veio a ser, mais tarde, professor
«Será possível que alguém, devido apenas às reflexões na Universidade de Kiel.
próprias dum rapaz, se aventure a destruir a autoridade de Ambos eles continuaram a ser seus amigos. A amizade
dois mil anos, autoridade essa que é garantida pelos mais constituiu sempre um importante factor na vida de Nietzs-
profundos pensadores. de todos os séculos?» A ruptura final che, que, por vezes, enalteceu com formosas palavras esse
veio apenas mais. tarde, mas foi em Pforta que o afasta- belo sentimento humano.
mento começou. A grande amizade da sua vida - aquela que mais
A carta de cursa de Nietzsche dá-nos a conhecer a sua contribuiu para o seu triste desvario - foi a que ele, quando
deficiência em Matemática e declara-o bom em Grego e era professor em Basileia, dedicou a Ricardo Wagner. Este
brilhante em estudos bíblicos, Alemão e Latim. desejo de amizade, esta necessidade de amar e ser amado,
Foi naturalmente no período dos seus dias escolares bem como de manter com alguém as mais íntimas relações
que despertou o seu interesse e a sua admiração pela cultura de entendimento, conservaram-se sempre vivos nele, p0-
grega. dendo afirmar-se que o crescente isolamento dos seus últi·
Os seus autores clássicos favoritos nessa época eram mos anos muito contribuiu para a derrocada final.
Platão e Esquilo, A composição de poemas, assim como a ~ certo que Nietzsche foi, em grande parte. respoa-
música, constituíam para ele um prazer, tendo fundado,
...
C) A sua tese, no exame final de latim, foi sobre Te6gotUs. o-
(I) Aluno do último ano do Liceu. (N. T.). poeta arístoerata.
22 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTUBA A VIDA DE NIETZSCHE 23
sável pela perda dos amigos, mas isso não altera o facto estava já a actuar sobre ele, embora por forma ainda não
de sempre ter suspirado pela amizade e de a solidão haver definida).
sido para ele uma pesada carga. A princípio havia estudado teologia e filosofia, mas,

perto do fim, escrevia a sua irmã: «Um homem passado algum tempo, desistiu dos primitivos estudos.
profundo precisa de amigos, a não ser que tenha um Deus. «Se pretendes ser um homem forte - dizia-lhe o seu pro-
Eu não tenho Deus nem amigos I Ah! minha irmã, aqueles fessor predilecto Ritschl- adquire uma especialidade». Por
a quem vós dais este nome foram um dia meus amigos- isso, quando este foi como professor para Leipzig, Nietzsche
mas agora Ps tomou a resolução de abandonar Bona, onde já não se sentia
feliz, e acompanhar o professor para Leipzig.
No entanto, quando, em Outubro de 1864, foi para Parece que, enquanto esteve em Bona, se conservou
Bona com o seu amigo Paulo Deussen e um primo mais ou menos ligado ao Crístíarsismo. Quando Deussen
deste - três estudantes felizes e despreocupados que lhe sugeriu que a oração não tinha um valor real e que
corriam através das regiões do Reno e cantavam por baixo a confiança que ela inspira não passa duma ilusão, repli-
das janelas - ainda para ele eram desconhecidas as nuvens cou que «essa era uma das tolices de Feuerbachs. Outra
negras do seu trágico destino. ocasião, quando Deussen lhe falou em termos elogiosos
da Vida de Jesus. de Strauss, Nietzsche observou-Ihe :
«Cheguei a Bona convencido de que tinha na minha
«Se sacrificardes Jesus, tendes de sacrificar também Deus».
frente um futuro rico e ínexaurível.s
No entanto, sentia todo o tormento e todo o remoer da
Ligou-se, como era costume, a uma dessas muitas • dúvida, como se depreende duma carta escrita por ele
repúblicas de estudantes, embrenhando-se na vida alegre à irmã, que era uma cristã praticante. «Que andamos nós
e boémia dos seus companheiros - chegou até a bater-se buscando? Repouso e felicidade? Não; procuramos apenas
em duelo- mas depressa se sentiu aborrecido com a a verdade, por muito má e terrível que ela possa ser...
maneira de viver desses rapazes e principalmente com o São estes os caminhos traçados para o homem: se desejas
excesso de bebidas. a paz da alma e a felicidade, crê; se pretendes ser um
Depois de infrutíferas tentativas para arrastar os com- discípulo da verdade, investiga» .
panheiros para os seus próprios ideais, abandonou a repú- Quando escreveu esta carta, tinha-se já recusado a
blica e afastou-se de toda a convivência. (O professor Carlos
Jaspers aponta a importância deste incidente. Os compa-
'i
1.:·.··

.
acompanhar a mãe a irmã à cerimónia da comunhão
luterana por ocasião das férias da Páscoa de 1865.
nheiros de Nietzsche naturalmente atribuíram esta retirada
a orgulho ou falta de camaradagem, mas a verdade é que .·.•1·.'·
.... ~ .
No Outono desse ano, foi para Leipzig e continuou a .
estudar filosofia com Ritschl e outros professores. Ali
ele estava já começando a sentir o carácter excepcional da l... tomou conhecimento da obra de Schopenhauer O Mundo
,
.p ..(

sua «vocação), embora não tivesse ainda descoberto o como Vontade e Representação. A pintura que Schope-
caminho que essa evocação» iria tomar. O Eniuieder-Oder nhauer faz do Mundo como manifestação de uma vontade
24 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA
A VIDA DE NIETZSCHE 25
cega, assim como a posição essencial que a experiência
Bheinisches Museum, estudava as fontes de Diógenes Laér-
estética ocupa na sua filosofia e o significado metafísico
cio e concebia o desejo de escrever e de expor os resulta-
atribuído à música em particular, tudo falou ii· alma de
dos dos seus estudos, não por aquela forma inartística que
Nietzsche nos termos mais persuasivos. Foi atraído - é
era vulgar entre os estudiosos alemães, mas por uma maneira
ele mesmo quem o diz - pelo ateísmo de Schopenhauer
harmoniosa e repassada de beleza. «o categórico impera-
e só lamentava o facto de nunca ter tido ocasião de se
ti vo --- tu escreverás, é necessário que escrevas - desper-
encontrar com esse filósofo (Schopenhauer morreu em 1860).
tou-me». A sua alegria atingiu o auge quando encontrou
A sua separação do Cristianismo completou-se assim
Erwín Rohde como condiscípulo na Universidade. Deussen
em Leipzig, embora o antagonismo violento só mais tarde
--I, estava em Tubinga e Gersdorff em Berlim, mas agora
se viesse a manifestar.
Nietzsche contraía íntima amizade com um homem que
Schopenhauer era um mestre da língua, e mesmo um
admirou e de quem gostou desde o primeiro encontro, e
cristão convicto compreende perfeitamente o efeito que a
que podia ser para ele não apenas. uma pessoa com quem
sua melhor obra podia ter produzido sobre um tempera-
se correspondia, mas um companheiro de todos os dias.
mento como o de Nietzsche, muito principalmente quando
«Experimentei pela primeira vez o prazer de uma amizade
ele já sentira o tormento da dúvida e se afastara da religião
fundada sobre um alicerce moral e filosófico».
de seus pais. Mas, como já fizemos ver, nunca poderemos
saber se essa separação do Cristianismo foi tão completa Em Agosto de 1866 ele e Rohde palmilharam juntos
como ele próprio imaginara; a própria violência da sua a região florestal da Boémia e sonharam fazer renascer
posterior hostilidade pode ter sido um resultado da tensão o génio dos Gregos e apresentá-lo, não por aquela forma
interior de que se sentia possuído. árida da ciência filológica, mas de maneira que homens
Ainda em 1881, escrevia ele a Peter Gast: «Diga eu pudessem sentir toda a beleza e toda a vida da cultura grega.
o que disser do Cristianismo, nunca poderei esquecer que A amizade entre Nietzsche e Rohde durou muitos anos
lhe devo as melhores experiências da minha vida espiritual; e foi este quem saiu a campo em defesa do seu amigo
espero do fundo do meu coração que nunca serei ingrato contra o ataque de Wilamowitz-MolIendorff por motivo da
para com ele». publicação da obra de Nietzsche Nascimento da Tragédia.
Sem dúvida, depois de Wagner, Rohde foi o maior amigo
Foi feliz em Leipzig; a Filologia não o aborrecia de Nietzsche. No entanto, esta amizade veio a enfra-
tanto e tornou-se o melhor discípulo do professor Ritschl, quecer-se, quando mais. tarde Rohde, então professor em
que teve ocasião de verificar a sua grande inteligência. Leipzig, gozava de grande reputação na Europa.
Nietzsche escreveu: «Três coisas constituem para mim Esta vida feliz de estudo e de amizade naquela cidade
uma consolação: o meu Schopenhauer, a música de Schu- foi interrompida pelo facto de Nietzsche ter sido chamado
mann e, ultimamente, os meus passeios solitários». para prestar o serviço militar em 1867. Até então fora dís-
Estava então trabalhando na sua Theognidea para o pensado de tal serviço, em virtude da sua falta de vi$ta,
26 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA
A VIDA DE NIETZSCHE 27
mas em 1867 o exército prussiano tinha grande falta de
com Rohde, mas aceitou o lisonjeiro convite de Basileia e
homens e ele foi apurado para um regimento de artilharia. as autoridades universitárias de Leipzig concederam-lhe o

~
Sentou praça em Naumburgo e logo se mostrou bom
grau final, dispensando-o de qualquer exame, por não
cavaleiro. «E; no quartel que cada um aprende a conhecer
quererem examinar um colega professor.
a sua própria natureza e a saber o que é melhor fazer entre
homens estranhos, muitos dos quais são extremamente rudes».
No entanto, uma queda abaixo do cavalo pôs-lhe a vida
I
~
Numa carta escrita a Gersdorff, despede-se dos belos
tempos de uma actividade livre e sem quaisquer entraves,
e expressa os seus desejos de ser mais que um profis-
em perigo e, depois de estar na reserva durante algum tempo,
sional rotineiro. tornando-se um «pedagogo para sábios
voltou aos seus estudos em Leipzig.
Foi nesta ocasião que conheceu a música de Wagner,
j honestos». «Desde que temos de suportar a vida, esforce-
mo-nos por lhe dar algum valor aos olhos dos outros,
ficando muito impressionado com o Tristão e entusiasmado
com os Mestres Cantores.
cA noite passada, no concerto, a abertura dos Mestres
I quando tivermos a felicidade de nos libertarmos delas.
Desta maneira, aos vinte e quatro anos, Nietzsche era
Cantores causou-me uma impressão tão duradoura como não professor duma Universidade. Como diz Knight, «no fundo,
experimentava há já muito tempo. Ao assunto da relação ficou sempre a ser um professor nos seus vinte anos de
entre a música de Wagner e a filosofia de Schopenhauer vida activa. Na primeira década é em parte um filólogo e
já me referi num breve estudo sobre Nietzsche e Schope- em parte um filósofo; na segunda é simplesmente um
nhauer. Nietzsche teve a felicidade de se encontrar pessoal- filósofo. Seguiram-se depois onze anos, durante os quais
mente com Wagner em casa de uma irmã deste, a senhora foi apenas um alienado e um paralítico sem qualquer
Brockhaus, e ficou encantado e tomado de admiração pelo esperança». Em 28 de Maio de 1869, fez a sua conferência
seu novo amigo. Esta amizade veio a tornar-se uma das inaugural sobre Homero e a Filologia clássica. Começou
grandes alegrias da sua vida, embora tivesse sido também apenas com oito estudantes, mas ensinou também grego à
para ele fonte de amargo dissabor e desapontamento. última classe do principal Ginásio de Basileia, em adição
Com grande admiração de Nietzsche, Ritschl pergun- aos seus trabalhos universitários.
tou-lhe um dia se gostaria de ser nomeado professor em No Ecce Homo diz-nos ele que «durante os sete anos
Basileia. Os estudos por ele publicados no Rheinisches que ensinei grego à sexta classe do Colégio de Basileia,
MU9eum tinham levado o conselho universitário de Basileia nunca tive de administrar um castigo; os rapazes mais pre-
a escrever ao Prof. Ritschl a perguntar se Frederico guiçosos eram estudiosos na minha aula».
Nietzsche seria competente para reger a cadeira de Filo- O seu trabalho causou inteira satisfação e as suas
logia. primitivas conferências são cheias de interesse, muito
O Professor respondeu que Nietzsche era pessoa compe- principalmente por ter sabido o seu autor afastar delas
tente para tudo o que resolvesse fazer. Ficou Nietzsche desa- tudo quanto fosse erudição árida e poeirenta. Não podemos
pontado por não poder fazer a projectada estadia em Paris deixar de repetir aqui as palavras da mãe: .Oh I Fritz.
<I

28 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA


A VIDA DE NIETZSCHE 29
Fritz, se ao menos te tivesses deixado entregue aos teus patriótico, cheio de visão do esplendor, do heroísmo e
Gregos I» do auto-sacrifício da luta, mas o resultado da guerra-
A princípio, Nietzsche sentiu-se bastante só entre os a vitória da Alemanha sobre a França - deixou-o ansioso
habitantes de Basileia, de um carácter muito reservado; e apreensivo, pois receava que se tivessem de pagar aquelas
mas Ricardo Wagner tinha uma casa que não ficava longe maravilhosas vitórias nacionais por um preço em que ele,
e os prazeres de uma crescente intimidade com o compositor
e sua prendada esposa, Cosima, afastaram todas as nuvens.
J por sua parte, não estava disposto a consentir». Receava que
o engrandecimento nacional da Alemanha pudesse ter como
A evila» de Tribschen, sobre o lago Lucerna, tornou-se resultado a sua vulgarização e a perda da verdadeira cultura.
para ele um lugar de refúgio e de consolação. «Wagner A Prússia de Bismark e Moltke era o grande poder
realiza todos os nossos desejos; trata-se de um espírito rico, militar e, na opinião de Nietzsche, «a Prússia moderna era
grande, magnificente, um carácter enérgico, um homem um poder altamente perigoso para a cultura». «Acautelai-
encantador que merece todo o amor e que está sempre -vos desta Prússia fatal com a sua repugnância p~ cul-
ansioso por conhecer tudo». tura 1», escrevia ele a Rohde; e aplaudia as palavras do
Nietzsche escreveu a Rohde para Roma e disse-lhe que seu colega em Basileia, Jacob Burckhardt, que exortava os
tinha encontrado também a sua Itália, seus alunos a que não tomassem o triunfo militar e a
«A minha Itália chama-se Tribschen e eu sinto-me ali expansão dum Estado como indício de verdadeira grandeza.
como em minha própria casa». Em 1869, passou o Natal «Quantas nações têm sido poderosas - dizia Burckhardt-
com Wagner e sua família, apreciando mais uma vez o que estão esquecidas e bem merecem tal esquecimento!
privilégio da intimidade com o mestre, ansioso por tomar Um génio desconhecido deixa-nos Notre Dame de Paris;
conhecida a obra deste, para que lhe fosse dado na Goethe deixa-nos o seu Fausto; Newton deixa-nos a sua
Alemanha o devido valor. Mas, quando rebentou a guerra lei do Sistema Solar. Isto - e s6 isto - é grandeza».
franco-prussiana, Nietzsche resolveu pedir licença às. auto- Nietzsche ainda pensou na fundação dum «claustro», uma
ridades da Universidade (pois tornara-se um cidadão suíço) espécie de seminário ou mosteiro de cultura, onde ele e
para se alistar no exército alemão, no serviço das ambu- os seus amigos pudessem passar uma vida de pensamento
lâncias. Depois de um pequeno curso de treino, foi man- e de arte.
dado para a «frente», mas o seu serviço não durou muito Rohde objectou que não tinham para isso os fundos
tempo, porque contraiu uma disenteria e difteria num necessários e que, em qualquer dos casos, não sentia
comboio de soldados doentes que foi obrigado a acompa- nenhuma inclinação para a vida conventual. Tal projecto
nhar de França para Carlsruhe, foi, portanto, posto de parte.
Depois de um período insuficiente de convalescença, A doença de Nietzsche, consequência da guerra, deixa-
voltou para Basileia com o fim de retomar os seus deveres ra-lhe como herança a nevralgia, as insónias, perturbações
profissionais. visuais e uma dispepsia, razão por que foi obrigado a ir
Quando partiu para a guerra, ia levado pelo ardor para Lucânia, a fim de se restabelecer. (No trajecto teve a.
30 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA f A VIDA DE NIETZSCHE 31

I
felicidade de encontrar Mazzini). Em Lucânia passou dois tomado a seno. Embora as suas primeiras obras (como,
meses felizes e voltou para Basileia, onde retomou o trabalho, por exemplo, as conferências sobre O Futuro das Nossas
começando a rever o manuscrito que intitulara O Nascimento Instituições Educacionais) contivessem, inegàvelmente, maté-
da Tragédia. Esta obra é uma análise da cultura grega, na ria preciosa sobre o espírito da antiguidade e sobre
• qual estabelece o contraste entre essa mesma cultura antes o lugar e função da educação clássica, a impossibilidade
de Sócrates - a cultura dionisíaca forte e grande - e a
cultura grega depois de Sócrates, racionalista, anémica e
1
~
de fazer reconhecer tais ideias tornou-se pràticamente
universal, e a verdade é que o seu autor sentiu profunda-
fraca. Aplicando as suas ideias à Alemanha, declarou que a mente este inesperado desapontamento. A esta decepção
cultura do seu tempo apresentava uma semelhança muito veio ainda juntar-se a mudança de residência de Wagner
acentuada com o segundo período da cultura grega: poderia para Baireute. Assim se foram os felizes dias decorridos
unicamente salvar-se, se conseguisse ser reformada pelo em Tribschen e, quando mais tarde Nietzsche volveu os
espírito de Wagner. olhos para o passado, foi para esses dias ditosos de amizade
O livro, embora escrito como obra científica sobre a que o seu espírito se voltou.
cultura grega, converteu-se assim numa apologia de Wagner, No Ecce Homo, escrito em 1888, refere-se à maior
devido à introdução de uma matéria estranha inspirada pela consolação da sua vida - as suas íntimas relações com
admiração que Nietzsche sentia por esse compositor e pela Wagner. «Todas as minhas relações com os homens são,
sua lealdade para com ele. Experimentou alguma dificul- para mim, coisa ligeira; o mesmo não posso, porém, dizer
dade para encontrar um editor, mas, em fins de 1871, desses dias passados em Tribschen - dias de confiança, de
o livro foi publicado com o título de O Nascimento da alegria, de clarões sublimes ~ que nunca podem esquecer.
Tragédia no Espírito da Música, sendo adicionado o sub- Não sei o que Wagner poderá ter sido para os outros; sei
título de Helenismo e Pessimismo à segunda edição de 1885. apenas que nunca uma leve nuvem toldou o nosso céu»
~ uma das poucas obras de Nietzsche que se podem julgar (pg. 41).
bem construídas.
Wagner, naturalmente, recebeu esta obra com entu- E com referência a este período que Mãhly fala da
siasmo e escreveu-lhe, dizendo-lhe que nunca tinha lido amizade de Nietzsche e da simpatia que os seus colegas
livro mais belo. O autor esperava que o seu «centauro» sentiam por ele. E Eucken observa a maneira amável como
Nietzsche se portou para com o Doktoronden, maneira ami-
fosse bem sucedido, mas a verdade é que os filólogos,
gável e atenciosa, e não excitada ou colérica.

I
incluindo o próprio Ritschl, o receberam com o silêncio e,
No período de 1873 a 1876 saíram da pena de Nietzsche
em alguns casos, com declarada hostilidade. Wílamowítzs-
quatro ensaios que ele denominou Considerações Intem~
-Moellendorf, ainda então muito novo, escreveu um pan-
Uvas. O primeiro destes ensaios - Dooid. Strous», o Con-
fleto injurioso contra Nietzsche e, embora o seu amigo :}

fessor e Escritor, era uma exposição da cultura filistina da


Rhode tivesse vindo a campo em sua defesa, o filósofo
Alemanha. A opinião pública -- pensou Nietzsche - atribuiu.
perdeu o crédito como um humanista que devesse ser
32 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
1 A VIDA DE NIETZSCHE 33
a vitória sobre a França, não só ao talento militar alemão, sentido, se não começasse a perceber que se enganara, ao
mas também à cultura alemã, o que constitui um pernicioso pensar que a arte de Wagner era o renascimento da grande
e deplorável erro qne «ameaça converter a nossa vitória arte da Grécia. Chegou a convencer-se de que o seu
numa notável derrota», Como um partidário típico desta Wagner ideal não era o Wagner real e a publicação do
pseudo-cultura, Nietzsche julgou David Strauss «um genuíno Parsífal completou a separação. O músico voltara-se para o
exemplo do satisiait pelo que se refere às nossas instituições Cristianismo. «Ricardo Wagner, aparentemente um herói
escolásticas e um filístíno típico», Examina o livro de conquistador, mas agora um decadente desesperado que
Strauss.- AVelha e a Nova Fé - e submete-o, assim como apodreceu, deixou-se afundar subitamente, impotente e
ao seu autor, a uma crítica profunda e mordaz. Diz muita alquebrado, diante da Cruz cristã» (1) O desgosto de
coisa acertada, mas nem por isso podemos de deixar de Nietzsche perante a queda de Wagner no Cristianismo, bem
simpatizar com o espanto de Strauss ao ver-se tão cruel- como a sua extrema inquietação perante a decisão, que
mente atacado por um estrangeiro. O segundo ensaio Romundt tomara, de se fazer sacerdote cristão, mostram-
foi sobre O Uso e Abuso da História, obra em que Nietzsche -nos bem como ele se tornara inimigo duma religião que
se insurge contra a idolatria pelo ensino histórico. «Devemos considerava como a antítese do génio grego. Como observa
servir a História apenas na proporção em que ela serve a
vidas. No terceiro ensaio - - Schopenhauer como Educa- 1 Knight, «a força motriz que provàvelmente se encontrava
por trás do caso de Wagner era o amor de Nietzsche pela

l
dor - o grande filósofo pessimista é apontado como o filó- Grécia (2).
sofo par excellence, em contraste com os. filósofos, profis- Com a separação operada entre Nietzsche e Wagner,
sionais e já senis, das Universidades. O quarto ensaio- começou o segundo período da sua obra, período este em
Ricardo Wagner em Baireute - é um panegírico de que ele é menos poeta e mais filósofo, e em que prefere
Wagner, no qual a arte do notável músico é considerada Sócrates aos pré-socráticos e investiga todas as opiniões
como o renascimento da arte da Grécia. formadas. Mais tarde voltou-se de novo para o antí-socra-
tísmo. Este segundo período - o Apolíneo, que contrasta
Ricardo Wagner em Baireute foi publicado em 1876, com o primitivo período, Dionisíaco - viu ° aparecimento
mas a verdade é que Nietzsche e Wagner tinham tido já das obras Humano, Demasiadamente Humano e A Aurora
OS seus desentendimentos e a separação havia começado. e a Gaia C iênoio:
Não se poderá duvidar de que Nietzsche tinha razão ao A falta de saúde, devida em grande parte ao mau
pensar que o amigo o considerava como um simples ins- estado da vísta, obrigou-o a pedir um ano de licença e
trumento e desejava que ele subordinasse os seus interesses
à propaganda do Wagnerismo. Nietzsche tinha, sem dúvida,
contribuído tanto quanto pôde, quer pela pena quer mone- (') Prefâeío do 2.° volume de Humano, D~N
tàríamente, para a arriscada empresa de Baíreute, a ideia Humano, 1886.
do teatro nacional, e teria continuado a trabalhar no mesmo (') A\~tO$ da Vida 8 Obra ds N~. PI. ao.
34 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA
A VIDA DE NIETZSCHE 35
partiu para Nápoles, onde se deixou estar na companhia
taigne e Horácio virão a ser considerados como pioneiros
da menina Meysenburg, de Alfredo Bronner e do Dr. Paulo
e guias para compreensão de Sócrates, o mais simples e
Rée, este de naturalidade judaica. Ricardo Wagner encon- mais duradouro de todos os filósofos interpretativos» (I).
trava-se nessa ocasião em Sorrento, depois do triunfo em Nietzsche rejeita a sua primeira opinião. Como disse Daniel
Baireute e, como não simpatizava com os Judeus, procurou Halévy: «Pereat veritas, fíat vita!» (2) - escreveu ele um
indispor Nietzsche com o Dr. Rée, mas Nietzsche não se dia. Mas agora escreve: «Pereat vita, fiat veritas!» (3)
deu por achado. Era o Dr. Paulo Hée quem lia em voz alta O primeiro volume do livro Humano, Demasiadamente
para os três, visto que a menina Meysenburg e Nietzsche H umano foi publicado em 1787 e o autor enviou um
eram extremamente míopes e Brenner tinha os pulmões exemplar a Ricardo Wagner de quem recebera também
afectados. um exemplar do Parsífal. Nenhum deles acusou ao outro a
Meysenburg refere-se nestes termos a esses felizes reaepção da sua oferta; a separação dos seus caminhos
tempos: «Nietzsche era, sem dúvida, uma alma cheia começava a tornar-se aparentemente manifesta. O trabalho
de doçura e bondade. A sua índole, tão boa e amável, com- de Nietzsche encontrou uma crítica adversa e foi consi-
pensava bem a sua inteligência destrutiva. Fazia gosto vê-lo derado inaceitável, mesmo para Erwín Rohde.
alegre e rir-se de tão boa vontade, quando, por vezes, Tem-se dito muitas vezes - e com ampla justificação
algumas brincadeiras vinham perturbar a séria atmosfera - que a evolução de Nietzsche compreende três fases
do nosso pequeno círculo». De Nápoles, Nietzsche partiu sucessivas. Primeiro vem o período em que os geniuses,
para Rosenlaui, a fim de se submeter ali a um tratamento, homens como Wagner e Schopenhauer, são elevados a um
e regressou de novo a Basileia. lugar de honra, o período de O Nascimento da Tragédia e
Durante o ano em que esteve afastado dos seus deveres das Consulerações Intempestivas; segue-se aquele período
profissionais, trabalhou na composição do livro Humano, do W issenschaftsídeal, caracterizado por uma série de ques-
Demasiadamente Humano. Esta obra não constitui um todo tionários frios como gelo, fase isolada, crítica, céptica e
conexa, visto que se trata apenas de uma colectânea de verdadeiramente socrática que se pode exemplificar com o
aforismos ou pensamentos soltos, agrupados em volta Humano, Demasiadomense Humano; por último, vem o
de certas ideias directrizes, pensamentos esses que lhe período em que Nietzsche chega à consciência do pró-
ocorriam de tempos a tempos. Embora, porém, se trate prio pensamento, o período em que ele se mostra um
dum trabalho desconexo na forma, representa, no conjunto, filósofo independente, o período do Zoratrusta, do Pa:ra
O segundo período do desenvolvimento de Nietzsche, a Além do Bem e do Mal, da Genealogia da Moral, etc.
ascendência da ciência sobre a poesia ou, melhor, a posição
de Sócrates acima de Esquílo. «Se tudo correr bem, chegará
um tempo em que os homens, para poderem avançar no (')Humano, Demasiadamente Humano, II. 2. 86.
caminho da razão moral, se hão-de servir mais. do M emo- (')MC'ITQ a verdade, faça-se a vida I (N. T.).

robilia de Sócrates do que da Bíblia, tempo em que Mon- {') Morra a vida, faça-se a verdade. (N. T.).
36 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
A VIDA DE NIETZSCHE ~7
Há, porém, duas restrições que não podem deixar de Demasiadamente Humano, que foi publicada em 1879.
ser consideradas. A primeira é que o terceiro período Voltou depois a piorar e escreveu a Peter Cast (Heinrich
não representa um conjunto estático, com todas as suas Kõzelítz) prevendo a sua morte - «Sinto-me muito velho».
arestas limadas e claramente articulado, em que ele Passou esse Inverno com a mãe e a irmã em Naumburgo,
apresente urna filosofia da vida, definida e já elaborada, um Inverno cheio de sofrimentos, um tanto ou quanto
é pelo contrário, um período de desenvolvimento. Ele aliviados com a apreciação que Rohde fizera de O Vaga
próprio fala do Zaratrusta como um Vorhalle e) embora bunda e a Sua: Sombra. Numa carta para Meiseburg,
os últimos trabalhos possam representar a sua estação
outonal, a sua Erntezeit, Nietzsche continua sempre a avan-
f escrita também na expectativa da morte, fala-lhe a res-
peito de Wagner. «Sinto-me imensamente grato para com
çar às apalpadelas, sempre ein Werdender, sempre a esfor- ele, porque lhe devo alguns dos mais fortes estímulos
çar-se por exprimir um ideal mal definido, um ideal para a liberdade espiritual. A senhora Wagner, como
demasiadamente rico para se poder fixar e delinear clara-
mente com simples palavras. A segunda restrição é que
existe uma certa afinidade íntima entre os três períodos, a
I sabeis, é a criatura mais simpática que tenho conhe-
cido. As nossas relações terminaram e eu não sou homem
para as estabelecer de novo. ~ demasiado tarde». Mas
qual o próprio Nietzsche reconheceu. Não foi ele mesmo viveu e, na Primavera de 1880, foi para Veneza com
quem disse que, na sua primitiva apresentação de Schope- Peter Casto Este tocava para Nietzsche as suas músicas
nhauer e de Wagner, era a si mesmo que estava realmente predilectas - Chopin nesse tempo - , passeava com ele
apresentando e que era a si próprio que lia neles? Mesmo e desempenhava as funções de seu secretário. Em Julho,
que admitamos que Nietzsche tem tendência para descor- esteve em Marienbad, em Setembro em Naumburgo, e
tinar a sua ulterior maneira de pensar na forma como em Outubro voltou para a Itália. Procurou alojamento
pensava primitivamente, há, julgo eu, muita verdade na em Génova, onde viveu tão modestamente que os vizinhos
sua asserção; e isso pode-se justificar por meio de citações lhe chamavam Il Santo. De manhã gostava de ir para um
colhidas nos seus trabalhos e ensaios primitivos, que nos rochedo perto do mar e ali se deixava ficar «imóvel como
dão a conhecer - algumas vezes por forma muito óbvia- um lagarto, sem nada na minha frente, senão o mar e o
certas ideias que nos habituáramos a associar com o ter- céu azul». Na Aurora: descreve ele a impressão que isso
ceiro período do seu desenvolvimento, ou seja o período lhe causava; «Aqui está o mar, onde podemos esquecer a
da sua filosofia independente.
A saúde dele piorou, e o estado dos olhos, do
1: cidade. E certo que os sinos tocam ainda as Ave-Marias
- esse som solene e insensato, embora doce, quando o dia
estômago e da cabeça obrigou-o a pedir a demissão do seu se junta com a noite - mas, um momento depois, tudo é
lugar de professor em Basileia, sendo-lhe concedida uma
pensão pelos bons serviços que prestara na Universidade.
Foi então para Engadine e ali se restabeleceu suficiente-
J
.;1"
••••••••••
silêncio. Lá em baixo jaz o oceano, pálido e cheio de brilho
- que não sabe falar. O céu brilha com os seus mudos e
eternos matizes, uns vermelhos, outros amarelos e outros
mente para poder trabalhar na segunda parte do H umano~ ainda verdes, mas também não sabe falar. Os recifes til
88 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA A VIDA DE NIETZSCHE 89
rochedos emergem do oceano como se cada um deles se foi grande a sua alegria quando descobriu a Carmen de
esforçasse por encontrar um lugar mais solitário - mas Bizet. «:É como uma história de Merimée, clara, cheia de
todos 'eles são mudos. Como é belo e imponente este vigor, e por vezes comovente. Estou quase a pensar que a
silêncio, que tão subitamente nos domina e nos faz dilatar Carmen é a melhor ópera que existe». O fruto desta sua
o coração I» (1) nova alegria foi o livro Gaia Ciência, que apareceu em
A Aurora apareceu em Julho de 1881. Este livro mos- Setembro de 1882 (sendo-lhe adicionada uma quinta parte
tra-se hostil ao Cristianismo e no Ecce Homo Nietzsche em 1886). A quarta parte é dedicada à memória do mês de
escreve a respeito dele: «Com este livro abro a campanha Janeiro de 1882, que decorreu sem nuvens e que passara
contra a moral e com a Aurora empenhei-me numa luta em Génova. A boa disposição de Nietzsche aparece na
contra a moral da auto-renúncia» (Z). Ainda desta vez, o Dança. do Mistral, uma canção incluída na Gaía Ciência:
seu trabalho não teve acolhimento e Rohde nem acusou a
recepção da obra, nem respondeu à carta que o autor lhe Dance, oh! dance on alI the edges
escreveu depois. Wave-crests, clíffs and mountain ledges,
Foi neste período que lhe surgiu no espírito a ideia Eoer finding dances neui l
de O Eterno Retorno. Quando estava em Sils-María, sen- Let our knowledge be our glndnBss,
tado no sopé dum rochedo perto de Surleí, ocorreu-lhe Let our art be sport madness,
o pensamento de qHe todo o acontecimento há-de, neces- All that's joyful s1uJU be troe!
sàriamente voltar a repetir-se. O tempo é infinito e deve
haver ciclos periódicos e necessários, nos quais tudo o SWe€P away all sad grimaces
que foi volta novamente a repetir-se. E este processo Whirl the dust into the faces
continua até ao infinito. Parece que estava convencido de Df the dismal sick and cold!
que esta ideia era inteiramente nova, isto é, uma desco- Hunt them from our breezy places,
Not for them. mind that braces
berta sua, quando, de facto, tal ideia não era de forma
But f()q' men of visage bold I
alguma nova, pois fora familiar aos pensadores gregos.
Trata-se, sem dúvida, de uma falsa noção, mas é fácil
compreender como aqueles que a aceitaram a haviam de De Génova foi para Messina, mas o siroco obrigou-o a
encontrar um tanto ou quanto depressiva. Nietzsche tam- sair de lá e, por instância de Meysenburg, parou em Roma.
bém a encontrou depressiva, mas cobrou novamente ânimo Esta boa menina travara conhecimento com uma rapariga
em Génova, no Outono de 1881. O tempo estava ameno e russa chamada Lou Salomé, que andava em viagem pela
Europa com sua mãe, e deu-lhe a ler as obras de Nietzsche,
pensando encontrar nela uma esposa para o seu amigo. Em
1875 Nietzsche tinha feito proposta de casamento a uma
(') AfdOto, atur. 423.
(') Ecce Homo, pg. 91 e 95. encantadora rapariga holandesa, mas tal proposta foi recu-
40 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTUM A VIDA DE NIETZSCHE 41
sada, O mesmo sucedendo com Lou Salomé. Wagner tinha pareciam ser os guardas do tesouro que guardava dentro
provàvelmente razão, quando, em tempos idos, aconselhara de si ; olhavam para dentro e, ao mesmo tempo, para longe.
o amigo a casar-se. Se tivesse encontrado uma esposa que o No decorrer duma conversa animada, esses olhos ilumina-
compreendesse e que simpatizasse com ele, a sua vida vam-se; se, porém, estava de mau humor, deixavam logo
poderia ter tomado uma orientação muito diferente. transparecer a sua íntima solidão, como se estivessem a
Parece que Nietzsche se apaixonou por Lou Salomé e, espiar das mais secretas profundidades.
conforme ela conta, disse-lhe um dia, depois de ter narrado
a história da sua vida: «Sim, as minhas aventuras come- Nietzsche foi para Génova e depois para a baía de
çaram desta maneira, mas ainda não estão acabadas. Onde Rapallo, onde passou o Inverno de 1882-1883. O tempo
me levarão elas? Qual será agora a minha aventura? Vol- esteve sempre mau e não se encontrava bem instalado;
tarei para a fé ou para uma nova crença?» E acrescentou: no entanto, «foi durante o Inverno e no meio deste descon-
«Em qualquer caso, um regresso ao passado é mais pro- forto que nasceu o meu nobre Zaratrusta». O pensamento
vável que a imobilidade». Salomé recusou-se a casar, mas desta obra ocorreu-lhe em Síls-Maria , o personagem persa
manifestou-lhe o desejo de continuar a ser sua amiga e seria assim um meio de Nietzsche 'expressar o seu pensa-
discípula. Encontraram-se na Alemanha e ele iniciou-a no mento. Na ocasião em que escreveu o Zarattusta, inicia-
seu pensamento, esperando, evidentemente, uma adesão ra-se a sua evolução, caracterizada principalmente pela
incondicional à. sua filosofia. Salomé, porém, não eslava insistência sobre o ideal da aristocracia, que girava à volta
preparada para isso. Por último, o filósofo chegou a pensar do conceito do Super-Homem. A primeira parte do Zara-
que Paulo Rée e Salomé se tinham coligado contra ele, e trusta foi escrita em dez dias e publicada em Maio de 1883.
sua irmão, que não gostava de Salomé, procurou avolumar A doutrina de O Eterno Retorno não aparece nesta parte,
tal suspeita. E assim acabou ele por perder a amizade, mas o autor expõe a doutrina do Super-Homem pelos
tanto da rapariga russa como do Dr. Rée. l!: difícil apurar lábios de Zaratrusta. «Lou, ensino-te o Super-Homem I
exactamente o que aconteceu, porque as narrativas de O Super-Homem é o sentido da Terra. Deus está morto e
Isabel Nietzsche e de Lou Salomé diferem uma da outra, todos aqueles que se agarram a esperanças sobrenaturais
mas sabe-se, pelo menos, que se criou uma situação difícil, estão condenados como desprezadores da Terra e envene-
que Nietzsche foi incapaz de resolver. Não era homem para nadores da vida. Assim como o homem passa além do
arcar com tais dificuldades. Queixou-se de que fora atrai- macaco, assim o mesmo homem é ultrapassado pelo Super-
çoado por toda a gente e acrescentou: «Entro hoje na mais -Homem, a mais bela flor da raça humana. O homem é
completa solidão». uma corda lançada entre o animal e o Super-Homem-
uma corda sobre um abismo». O Super-Homem toma-se
Lou Salomé refere-se ao facto de Nietzsche ter estam- assim o aristocrata da cultura, forte no espírito e no corpo,
pado no rosto o sinal evidente da solidão em que vivia, isto que se liberta do pessimismo de Schopenhauer. O homem
é, duma criatura que fugia a todo o convívio. Os seus olhos moderno não tem qualquer alvo ou quaisquer alvos em
42 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTUHA
A VIDA DE NIETZSCHE 43
mira, mas Nietzsche dá-lhe um ideal- O Super-Homem.
oferece uma nova tábua, a moral do forte e do livre, do
E o homem que tem de se salvar a si mesmo por meio
! espírito criador, que exprima a Vontade de Domínio. «Esta
desta glorificação e enobrecimento da própria espécie, e
~
nova tábua, 6 meus irmãos, erguei-a acima de v6s. Tor-
não recorrendo a Cristo Salvador. E assim responde Nietzs-
nai-vos fortes !»
che ao Parsiial. I Em princípio de Abril de 1884, chegou a Veneza,
A segunda parte de Zaratrusta foi escrita na Suíça, i
.1 onde se encontrava Peter Gast. Em Junho foi para a Suíça
entre 26 de Junho e 6 de Julho do mesmo ano de 1883.
~ e ali recebeu a visita do barão Henrich von Stein, um
No Outono, foi para a Alemanha e fixou residência
mancebo de vinte e seis anos que, alguns anos antes,
em Naumburgo, na companhia da mãe e da irmã. Não foi,
tinha publicado um pequeno volume a que dera o título
porém, muito feliz, ali, porque a irmã pretendia casar de O Ideal do Materialismo, Filosofía Líríca. Como von
com o sr. Forster, um anti-semita que projectava uma Stein era discípulo de Wagner, é muito possível que Cosima
empresa colonial no Paraguai. Nem a mãe nem a irmã se Wagner - Ricardo Wagner tinha já morrido - quisesse
resignavam fàcilmente a perder Isabel e, além disso, servir-se dele como intermediário junto de Nietzsche, que
Nietzsche desprezava e odiava o anti-semitismo. Mas a irmã não publicara ainda o seu ataque contra Wagner. Seja como
estava resolvida a casar com Forster e a acompanhar o for, a verdade é que von Stein pretendia que Nietzsche
marido, quando este fosse para o Paraguai, como veio a fosse a Baireute, a fim de ali ouvir o Parsifal. Por seu lado,
suceder. Nietzsche saiu de Naumburgo e, depois de vaguear Nietzsche julgou ter encontrado em von Stein uma alma
por diversas partes, foi para Nice. Ali escreveu a terceira gémea da sua, capaz de compreender o Zaratrusto e, por
parte do Zarairusta, também em dez dias, e publicou-a esse motivo, mais que por qualquer interesse que o ligasse
em princípios de 1884. Nesta parte anuncia ele a doutrina a Engadine, aquela visita proporcionou-lhe um grande
do Eterno Retorno, que se supõe ser um verdadeiro contra- prazer. Von Stein, que se demorou ali três dias, ficou tam-
vapor para o sentimento da culpa, que tantas energias bém muito bem impressionado com Nietzsche. Mas a
paralisa no homem. Fàcilmente podemos ser levados a esperança que este alimentara de ter encontrado um discí-
pensar que a teoria do Eterno Retorno e do Super-Homem pulo foi pouco duradoura, devido à morte prematura de
são incompatíveis, mas, aos olhos de Nietzsche, tal não von Stein, que lhe causou um amargo desapontamento.
sucedia. O homem tem de se portar herõícamente perante Nietzsche encontrou-se com sua irmã em Zurique.
a vida, isto é, tem de viver de forma que deseje e afirme Isabel era agora a senhora Forster, e o irmão, sem perder
a eterna repetição dos seus actos. Nesta parte aparece o tempo em recriminações, deu largas à sua boa disposição.
importante capítulo sobre As Yelhas e Nooae Tábuas; Referindo-se a esse tempo, Isabel escreveu: «Ele (Niet-
A velha moral, a tábua do cansaço e da indolência, que zsche) era uma criatura animada e atraente; passámos jun-
se opõe à chegada do nobre, a nova aristocracia, tem de tos seis semanas, a conversar e a rir a propósito de tudo ••
ser lançada por terra. «Peço-vos que lanceis por terra o Em Zurique, trabalhou na quarta parte do Z~
bom e o justo b Em lugar da velha moral, Nietzsche que contínuou em Mentone e depois em Nice. Estl\
44 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CUL TUBA
A VIDA DE NIETZSCHE 45
quarta parte foi publicada em 1885, mas apenas quarenta
se considerar um homem a quernf ora incumbida a missão
exemplares foram impressos à custa do autor, que encon-
de transmutar todos os valores. E poder-se-á afirmar que
trou apenas sete pessoas a quem enviasse um exemplar
sempre acreditou em tal missão do fundo do seu coração?
do seu trabalho, o que é já um indício do seu crescente J Em Abril e Maio de 1885 esteve 'em Veneza, e em
isolamento. Estava agora completa a mais famosa obra do Junho em Engadine. Encontrou-se com a irmã em Naum-
filósofo alemão, mas faltou-lhe o acolhimento. Trata-se de
um trabalho com um tom profético, eivado de poesia e,
1 burgo, antes que ela partisse para a América do Sul, a

I
fim de se juntar ao marido. Isabel insistiu com o irmão,
por vezes, difícil de interpretar; mas seja qual for o valor como já fizera anteriormente, para que ele voltasse à Uni-
que se atribua à essência, não se pode deixar de reconhecer versidade, mas Nietzsche replicou-lhe: «Os rapazes são
em tal trabalho a habilidade literária do seu autor. Ten- estúpidos e os professores ainda o são mais; além disso, as
cionava ele continuar esta obra, adicionando-lhe outra ou Universidades da Alemanha não me querem». A irmã suge-
outras partes, mas nunca o fez. Resolveu-se a abandonar o riu-lhe Zurique, mas ele replicou-lhe que Veneza era
estilo lírico. «Daqui por diante falarei eu e não Zaratrusta». a única cidade que poderia tolerar. De Naumburgo foi
Na quarta parte do Zerairusta, acentua que está a novamente, via Munique, para Florença, onde Lanzky o
escrever para discípulos, ou seja para homens supe- apresentou ao astr6nomo Leberecht Tempel. Depois da sua
riores. E o seu grande desgosto foi exactamente não ter entrevista, Nietzsche observou intencionalmente a Lanzky :
chamado a si alguns discípulos. Como já vimos, Henrich «li: uma criatura tão sensível e tão boa, que eu desejava
von Stein despertara-lhe algumas esperanças, mas era novo que nunca tivesse conhecido os meus livros. Tenho medo
e não se rendera ainda inteiramente a Nietzsche, quando de que lhe façam mal». De Florença foi para Nice, onde
foi surpreendido por uma morte prematura. Em Nice, procurou dar forma a diversas notas que havia já coligido
Nietzsche travou conhecimento com um intelectual alemão, para um novo livro - Para Além do Bem e do Mal, Pr6logo
Paulo Lanzky, que lera Zaratrusta e que escrevera sobre para Uma Filosofia do Futuro. Como o título indica, esta
este trabalho num jornal de Leipzig e na Revista Europeia, obra serviria de prefácio a um «magnum opus», que ten-
de Florença. Quando Lanzky o encontrou, dirigiu-se a ele, cionava publicar. Este grande trabalho sistemático nunca
chamando-lhe «Mestre». «Sois o primeiro que me trata se completou, mas as notas reunidas pelo autor para essa
dessa maneira», respondeu Nietzsche com um sorriso. obra-prima foram publicadas põstumamente com o título
Lanzky julgava vir encontrar um profeta e ficou admirado de A Vontade de Domínio. O livro Para Além do Bem e do
quando se viu na frente dum homem tão afável e simples. Mal foi publicado, a expensas do autor, em 1885. Nesta
De facto, pode-se afirmar que a simples leitura das obras colecção de aforismos revela-se o desejo que ele alimen-
de Nietzsche está longe de nos dar uma ideia daquilo tava de ver uma Europa Unida, para fazer face a um nacio-
que era o autor no convívio pessoal. «Que ideia tão errada nalismo que ameaçava subverter a cultura europeia.
formamos de vós através dos vosos livros», observou Lanzky. Na Primavera de 1884, deixou-se estar em Veneza, mas
A grande tragédia da vida de Nietzsche foi o facto de ele o seu amigo Peter Gast encontrava-se ausente na Ale---
46 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA A VIDA DE NIETZSCHE 47
manha, para tratar da representação da ópera O Leão apreciado e estimado pelos seus companheiros de hotel-
de Veneza, que tinha sido aceite por uma empresa teatral. Nietzsche foi sempre um animado conviva à mesa - mas
Ambos eles eram pobres, e Nietzsche, compadecendo-se da estas relações de ocasião não podiam suprir a falta dum
vida amargurada do amigo, ofereceu-lhe o seu auxílio. amigo íntimo que ele tanto desejava. Foi nessa ocasião que
«Partilhemos a minha bolsa e dividamos entre nós o pouco escreveu à irmã estas palavras: «Um homem profundo
que tenho». Depois, desejando avistar-se com os seus edi- precisa de amigos, a não ser que tenha um Deus. E eu
tores, foi para a Alemanha e, em Leipzig, encontrou-se não tenho nem Deus nem amigos». Trabalhou então na sua
com Rohde que estava ali como professor. Foi, para ambos, projectada obra A Vontade de Domínio, Ensaio para Uma
um encontro pouco satisfatório. Nietzsche notou a falta de Transmutação de Valores, mas, passado pouco tempo, foi
entusiasmo com que o amigo o recebeu e ouviu-o queixar-se para Ruta, perto de Hapallo, onde preparou as segundas
amargamente dos seus colegas na professorado, dos alunos edições elas obras Nascimento da Tragédia, Aurora e Gaia
e do ambiente de Leipzig. No Ecce Homo, ao referir-se à Ciência, acrescentando novos prefácios às duas primeiras.
influência do meio ambiente sobre a capacidade e a acti- Em Ruta, experimentou certa consolação, ao receber uma
vidade intelectual, escreveu mais tarde: «Lembro-me de carta de Hipólito Taine, em que este filósofo fazia apre-
certo caso em que um homem de notável intelecto e inde- ciação do livro Para Além do Bem e do Mal, e ao receber
pendência de espírito se converteu num especializado a visita de Paulo Lanszky que se veio juntar a ele. No
tacanho e poltrão, numa velha manivela enfadonha, devido entanto, não permaneceu ali muito tempo; dentro em
Unicamente à falta de um apurado instinto de aclimação». pouco, inquieto como sempre, foi sàzinho para Nice, ale-
Rohde, por seu lado, achou Nietzsche bastante estranho. gando que precisava de ar e de luz. Entregou-se então à
«Toda a sua pessoa deixava transparecer uma indiscutível leitura de Baudelaire, Paulo Bourget, Maupassant e de
estranheza que me desgostou. Havia nele qualquer coisa outros autores franceses, mostrando também certo interesse
que nunca lhe notara e daquele Nietzsche que eu conhe- pelas obras de Dostoievski. Ouviu o prelúdio do Parsifal
cera muitos traços tinham desaparecido. Deu-me a impres- num concerto em Monte Carlo e escreveu a Peter Gast:
são duma pessoa que acabasse de chegar duma terra «Amava Wagner e ainda o amo». Em Março de 1887
desertas. Por outras palavras; os dois amigos, com o assistiu ao tremor ele terra em Nice com uma calma que
decorrer do tempo, haviam seguido rumos diversos - o se tornou notada.
que, aliás, não constitui um facto isolado - e este penoso A sua: saúde, já bastante abalada, ressentiu-se ainda
encontro em Leipzig veio revelar esse facto, embora o afas- com uma discussão que teve com Rohde. Numa carta que
tamento final só se desse mais tarde. lhe escreveu dizia que «Taine, Burckardt e o próprio Rohde
Nietzsche foi depois para Leipzig, mas teve arrelias nasceram suficientemente velhos para ele». Rohde, que era
com a mãe, visto que esta, contra os conselhos que ele lhe já um notável homem de ciência, ficou - e com razão-
dava, lia os seus livros e sentia-se chocada com o espírito aborrecido, e respondeu-lhe por forma bastante dura. do
anticristão do fillio. Dali partiu p~ra Engadine, onde se viu que mais tarde se veio a arrepender. Nietzsche foi depois

.
J
48 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTUHA

para a Suíça, a fim de se submeter a um tratamento, e alj


1
1
A VIDA DE NIETZSCHE 49

facto, trata-se de uma questão complicada, para cuja


recebeu novo choque com a morte de Henrich von Stein, 1
I solução seria necessário considerar diversos factores. Em
na idade de trinta anos. A propósito deste infausto aconteci- primeiro lugar, parece que Nietzsche experimentava certa
mento escreveu ele a Peter Gast as seguintes palavras; 1 dificuldade em amar os amigos como eles eram: media-os
«Fiquei profundamente abalado, porque o amava muito e 1 a todos por um padrão absoluto e punha-os à prova.
sempre pensei que o pobre amigo estava, algum dia, reser- J Depois, queria que eles se submetessem à sua própria
vado para mim». No entanto, apesar do seu abatimento
moral, compôs em cerca de quinze dias a Genealogia da
I
j
mi~9ão - e, no entanto, 'era precisamente esta missão, a
mais íntima convicção sua, que tantas vezes os repelia-
Moral. Este livro, que era a resposta ao ataque dum crítico sucedendo assim que, em certo sentido, amava-se a si pró-
suíço à obra Para Além do Bem e do Mal, apareceu em prio e não a eles (1). Por último, cada vez se convencia
fins de 1887. Depois de ter visitado Peter Gast em Veneza, mais de ser uma excepção na sua idade, isto é, de ser
voltou a Nice em Outubro e foi enquanto ali esteve que alguém que se preocupava com o homem futuro, e esta
rompeu definitivamente com Erwín Rohde. Censurava convicção arrastava-o, cada vez mais, para a solidão.
este por causa da crítica que fizera a Taine, mas a Podemos afirmar, sem receio, que a missão ou vocação de
verdade é que as últimas palavras da sua carta bem podiam Nietzsche o levou ao isolamento, sem que, ao mesmo tempo,
ter comovido o amigo: «Tenho quarenta e três anos e deixasse de ser um ser humano que desejava ardentemente
estou tão só como se fosse uma criança». Foi essa carta relações íntimas com intelectuais que se lhe pudessem
que marcou o fim das suas relações com Rohde, mas o equiparar. Esta tensão constante causava-lhe uma intensa
isolamento a que agora se via condenado foi um tanto ou agonia e um grande sofrimento de alma, sendo ele o pri-
quanto aliviado, devido a uma lisonjeira carta recebida dum meiro a reconhecer isso mesmo.
crítico dinamarquês chamado Jorge Brandes, que, mais Não nos devemos, porém, esquecer de que, embora
tarde, veio fazer em Copenhaga uma série de conferências não tivesse encontrado aquelas amizades que tanto desejava,
sobre a doutrina de Nietzsche. havia pelo menos almas sinceras que o ajudavam e se
Suspirava por verdadeiros amigos que o pudessem mostravam suas amigas - a mãe, a irmã, Peter Gast e
compreender e aos quais pudesse confiar os seus mais os professores Burckhardt e Overbeck. Ele não se encon-
íntimos pensamentos; depois, com o decorrer do tempo trava sem amigos no sentido superficial do termo; estava,
e, à medida que se radicava mais no seu espírito a porém, sem eles no sentido mais profundo da palavra,
ideia de que tinha uma missão a cumprir, maior era o seu visto que não podia entrar numa real e plena comunicação
desejo de conquistar discípulos. O problema da ânsia de
Nietzsche por uma amizade íntima e dos seus baldados (') Por outras palavras: não podemos imxmtar a Ni~tzsehe •
esforços para a encontrar ou conservar merecia bem um culpa que ele i~tpu a. Wagner, embora - dentro do que I tooril ;,
estudo especial; mas, numa rápida resenha da sua vida, Doe 4í'ermite afirmar - ele declarasse que queria discípulos ~
dentes. (N. A.).
apenas se pode aludir superficialmente a tal problema. De

..
-

.
50 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA I
t A VIDA DE NIETZSCHE 51
de alma e pensamento, mesmo com homens como Overbeck
e Burkhardt, que, aliás, respeitava e admirava. O solitário
~r Depois compilou o que tinha de constituir a primeira parte
dessa grande obra, isto é, O Anticristo.
erradio podia gozar de tempos a tempos o prazer de uma
amizade superficial (não quero dizer com isto que Overbeck
j Estas suas últimas obras estão cheias de asserções
1 autoritárias, bem como de exaltação mental, e todas
e os outros não fossem sinceros), mas a verdade é que a 1
elas têm uma feição destrutiva, pois O Antícristo é um viru-
solidão interior foi-se tomando maior, e aquele vácuo que 1 lento ataque contra a religião cristã. 05 últimos meses de
Rohde, em primeiro lugar, e depois mais especialmente 1 1888 foram marcados por similar exaltação e hilaridade no
Ricardo \Vagner, tinham prometido encher, foi-se transfor- espírito de Nietzsche; louva tudo em Turim e escreve entu-
mando num escancarado abismo.
Nietzsche encontrava-se agora num estado de extrema
tensão mental e amargura, devido, em grande parte, à falta
de aceitação das suas obras, ao seu isolamento, e ainda às
i
;
I
siàsticamente a respeito da cidade de Peter Gast. No entanto,
divisa-se já nas suas palavras um prenúncio do desastre
que se aproximava e que havia de seguir-se àquele estado
de exaltação. A loucura, embora incipiente, pode reconhe-
cer-se seguramente no seu último trabalho - Ecce Homo
insónias que o obrigavam a tomar constantemente diversas
- que é uma espécie de autobiografia. Nietzsche não estava
drogas, principalmente cloral. E certo que conquistara dois
ainda doido, na verdadeira acepção da palavra, mas o auto-
leitores célebres fora da Alemanha - o francês Hipólito
ritarismo e a estranha atmosfera do Ecce Homo são, incon-
Taine e o dinamarquês Jorge Brandes - mas, quando, em testàvelmente, anormais. «For que razão sou tão sábio», «For
Abril de 1888, recebeu em Turim uma carta de Brandes a que razão sou tão inteligente», «Por que razão escrevo tão
anunciar-lhe as próximas conferências em Copenhaga, era excelentes livros», «Por que razão sou tão fatalista» - eis a
talvez demasiado tarde. Depois de pôr de lado a composição forma estranha como ele intitula os seus capítulos. E o livro
fa sua projectada grande obra, escreveu um agressivo ata- conclui com a afirmação da sua absoluta hostilidade ao
que a Wagner-O caso de Wagner-, havendo todas as I Cristianismo e ao Vampirismo da moral cristã. «Écras~
razões para crer que mais tarde veio a ter remorsos de ter l' infâme !» «Haveis-me compreendido?» Dioniso contra
escrito tal livro. Foi, porém, um desejo de atacar e destruir
-prelúdio da sua loucura-que o levou a isso. Já em 1 Cristo». Assim lança Nietzsche o desafio final ao Cristo da
da sua mocidade. -:
Fevereiro de 1888 escrevera a Peter Gast: «Encontro-me num
estado de irritabilidade crónica que me leva, nos meus pio- j Brand~s conseguiu para Nietzsche um novo leitor, o
sueco Augusto Strindberg , o Prof. Deussen enviou-lhe 2.000
res momentos, a uma espécie de vingança - vingança essa t francos, dádiva dum anónimo, pela edição completa das suas
que reconheço não ser a mais bela, visto que, por vezes, obras e 1,.rt1l: senhora francesa remeteu-lhe outros mil. Mas
toma uma forma de excessiva dureza». Depois de trazer a este sucesso chegava demasiado tarde e não podia já evitar
público o ataque a Wagner, pôs-se a atacar ideias no Cre- ~ catástrofe final. Nietzsche preparou um novo panfleto-
púsculo dos [dolos, talvez no intuito de preparar o p~lico Nief;j;sche contra Wagner, mas nenhuma outra obra viu a
para a futura grande obra sobre a Vontade de Domínio. luz da publicidade, porque, em princípios de janeiro de
52 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CUL TUHA

1884, endoideceu. Começou então a escrever cartas estra-


nhas aos seus amigos Burckhardt, Brandes, Peter Cast e
,1 A VIDA DE NIETZSCHE

se relacionam, são claramente de capital interesse e impor-


outros. A Burckhardt dizia ser Fernando de Lesseps , na f
j
tância, mas pode-se também afirmar que, para o estudo do
seu pensamento, tal como se encontra expresso nos seus
carta que escreveu a Brandes. assinava-se «o Crucificado» ;

l
escritos, com o fim de avaliar o seu valor objectivo e a
em Turim dizia a toda a gente que era Deus e esbanjava . verdade em si própria, a natureza das causas que contribuí-
quanto dinheiro tinha. Burckhardt, foi procurar Overbeck ram para esse pensamento é duma importância considerà-
que veio imediatamente de Bisaleia a Turim, onde encontrou velmente menor. (Presentemente, as opiniões médicas incli-
Nietzsche em estado de colapso mental. Durante algum nam-se a ver, na associação da paralisia motriz com as per-
tempo, Nietzsche esteve num hospício, primeiramente em turbações do tipo daquela que atacou Nietzsche, o sintoma
Basileia e depois em Jena. Mais tarde, a mãe levou-o para característico da paralisia geral do louco).
a casa de Naumburgo e, após a morte dela, a irmã, que vol- Nunca se restabeleceu, mas continuou a apreciar
tara viúva do Paraguai, levou-o para a sua residência em música e literatura, e impressionava toda a gente com
Weimar, e ali ficaram a viver os dois. a sua paciência, reflexão e gentileza. Quando lhe mostravam
Parece que não houve um sinal decisivo de loucura, o retrato de Wagner, costumava dizer; «Eu amava-o», e
como factor psíquico, senão depois de 27 de Dezembro de quando a irmã, sentada a seu lado, começava a chorar, per-
1888, quando Nietzsche escreveu a Overbeck dizendo que guntava-lhe: «Por que choras, Isabel? Não somos felizes Ps
estava a trabalhar num «Promemoria» para as cortes da Gostava de conversar com as pessoas que o visitavam e
Europa, a fim de se organizar uma liga antigermânica. Dese- sentia-se particularmente feliz, quando Peter Gast chegava
java que o «Reich» se visse posto em foco e provocado para e tocava alguma coisa para ele. Assim, no período do seu
uma luta desesperada. Mas, como se trata de uma doença desequilíbrio mental (devido à pouca saúde, ao uso constante
orgânica do cérebro, naturalmente com carácter de paralisia, de drogas para combater as insónias, ao seu intenso labor
deve-se ter dado uma deterioração orgânica progressiva antes. intelectual e à luta que travava no seu íntimo - e talvez
de se ter produzido a loucura psicológica. Nessa ocasião, também à opinião meio formada da realidade da sua missão).
os métodos de investigação não estavam rofljêientemente nesse período, dizíamos nós, a sua bondade natural expan-
adiantados para se poder admitir um díagnóstjco claro e dia-se livremente. Quando lemos a história desses últimos
definido, e, embora os estudos comparados possam ajudar a anos da su~' vida, não podemos deixar de lamentar que esse
formar uma opinião, não podemos estar absolutamente homem se tivesse julgado destinado para tal missão. Ele
certos do carácter preciso da sua doença, e muito menos escreveu um panfleto que intitulou Nietzsche contra
destrinçar os sintomas precedentes dos outros males - tal- Wagner; pois podemos falar da filosofia de Nietzsche como
vez independentes - ou determinar a influência que tiveram Nietzsche contra Nietzsche.
sobre as suas produções literárias. Partindo do ponto de vist.. _. Em 25 de Agosto de 1900. Frederico Nietzsche morreu
de um estudo puramente histórico de Nietzsche- o hozaem em. Weimar, vitimado por uma pneumonia. A irmã refere-se
e o seu pensamento - estas questões e outras que com elas à hora do seu passamento, precedido duma grande trovoada.
54 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CUL TUBA
CAPíTULO II
o que a fez supor que ele partiria deste mundo entre relâm-
!
1 o IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE
pagos e trovões. «No entanto, voltou de novo a si durante
1
a noite e tentou falar. Às duas horas da madrugada fui ao
i
seu quarto para lhe ministrar um refrigerante c, quando vol-
tei o candeeiro de forma que me pudesse ver, gritou: Isa-
r
J
bel I», o que me levou a pensar que o perigo havia passado.
J
Depois dormiu durante algumas horas e isso contribuiria
para melhorar o seu estado. Mas as feições alteravam-se
cada vez mais, a respiração tornava-se mais dificultasa e
pairava já sobre de a sombra da morte. Voltou depois
a abrir aqueles olhos admiráveis, agitou-se numa grande
inquietação e abriu 11 boca, voltando 11 fechá-la, como se
hesitasse em dizer alguma coisa. Os que estavam à sua
volta tiveram a impressão de que o rosto se lhe coloriu
ligeiramente. Seguiu-se um leve estremecimento, um suspiro
N INGUEM pode afirmar com
razão que Nietzsche foi um grande metafísico. Faltava-lhe
profundo - e, silenciosamente, com um derradeiro olhar a independência necessária a um verdadeiro filósofo, bem
cheio de majestade, fechou os olhos para sempre.
«Assim partiu Zaratrusta.»
Nietzsche foi sepultado em Rõcken, e Peter Cast, seu
I,
~'
como uma argumentação fundamentada, científica e racio-
nal. Não será preciso termos um conhecimento profundo
das suas obras para podermos verificar que este fil6sofo
dedicado amigo, pronunciou um curto elogio fúnebre à alemão não' pode ser colocado ao lado de homens como
beira da campa. O trágico e solitário espírito de Nietzsche Aristóteles, São Tomás de Aquino, Lebniz, Kant, Hegel e
partira assim para O seu Autor, a quem ele havia negado. Whitehead, pois em nada contribuiu para a lógica, para a
Quem poderá afirmar que Aquele que perscruta os cora- ontologia ou para a teoria do conhecimento. Há, sem
ções de todos não lhe teria concedido, no último momento, dúyida, muita penetração psicológica nos seus trabalhos,
a graça de encontrar o perdão onde ele nunca é procurado mas ~o não é bastante para que ele possa ser considerado
em vão? como u~ cientista no campo da psicologia. A própria
doutrina de O Eterno Retorno não lhe dá direito a ser tido
como um filósofo especulativo, pois não se trata de uma
«descoberta» nova da sua parte, embora ele, aparente-
,"':. :
'l'
.....
.' -~
mente, esteja disso convencido (I). Por outro lado, embora
'..r ----
o-·Jf'
I
-. ...'
e) Nietzsche, no entanto, reconhece Empédoeles oomo um
predecessor••
56 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTUHA
o IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 57
Nietzsche ligasse grande importância à doutrina exposta A penetração histórica 'e psicológica, o «élan» poético e
!lo Zaratrusta, a verdade é que tal doutrina foi estabelecida imaginativo são colocados ao serviço de um ódio pelas
principalmente no interesse das suas ideias éticas. velhas tábuas e pelos valores até então aceites - principal-
Mas poderemos, com justiça, considerar Nietzsche mente pelo que se refere à moral cristã - e de um entu-
como um filósofo moral? Se considerarmos como tal um siasmo por um novo ideal de cultura, que ele imagina
homem que pressupõe ou enuncia um sistema absoluto de ser a continuação e desenvolvimento da cultura grega no
ética, Nietzsche, sem a menor dúvida, não é, nesse sentido,
seu período mais florescente.
um filósofo moral: se, porém, entendermos por filósofo Na forma corno Nietzsche trata a moral, temos de
moral o homem que tem uma doutrina sua acerca da moral considerar duas partes que se completam: a exposição e
e dos valores morais, então Nietzsche é, certamente, um destruição dos antigos valores correntes e as suas afirma-
fil6sofo dessa natureza. Fazemos esta distinção, porque seria ções e apelo para um novo ideal de cultura. :É este segundo
um grande erro supor que ele se preocupou, em primeiro aspecto que nos propomos considerar em primeiro lugar,
lugar, com estabelecer bases científicas para as suas deixando para depois a sua crítica à moral, principalmente
afirmações. O ético científico preocupa-se não tanto com à moral cristã. Será inevitável repetirmo-nos algumas vezes,
tomar os homens melhores, como, principalmente, com mas tal Facto não é de estranhar, quando se trata de
analisar os juízos morais, discernir os seus fundamentos, Nietzsche, que também está constantemente a repetir-se.
etc. No entanto, Nietzsche preocupa-se, em primeiro lugar, Além disso, não se pode considerar il6gico que nos ocupe-
com a elevação do homem a um tipo superior; a sua filo- mos em primeiro lugar do seu ideal positivo de cultura,
sofia moral não é científica, nem analítica, nem estática, visto que é com o fim de estabelecer e realizar tal ideal
mas, pelo contrário, é uma filosofia assertiva, exortat6ria e que ele critica tão amargamente os padrões do passado.
dinâmica. Pretende uma transmutação de valores com o fim Esperamos que, no decurso da exposição que vamos fazer,
de conseguir aquilo que julga ser a verdadeira cultura. fique claramente assente que há muita verdade e muita
Nestas condições, não gosta de Aristóteles, não aceita os coisa de valor naquilo que Nietzsche diz - nem podia
juízos morais correntes como base para uma ética científica, deixar de assim ser, tratando-se de um homem da sua esta-
rejeita tais juízos e exige uma nova tábua de valo~s"ao tura 4intelectual- mas, ao mesmo tempo, há também muita
serviço duma cultura mais elevada. Assim, a sua «filosofia coisa :ljlsa, muita coisa unilateral e exagerada, e muita
O
moral» não tem aquela atmosfera calma que se nota, por • coisa ainda que é simplesmente blasfema. Nietzsche tinha,
exemplo, na de Aristóteles, mas aparece-nos com uma indu- por certo, muitas virtudes, mas a moderação não era uma
mentária profética e, em certo senti-do, até religiosa. Não delas. O ideal do seu primeiro período de desenvolvimento
é sem razão que Nietzsche, no seu livro mais famoso, fala era o dionisíaco, ideal esse que reapareceu no período final
pelos lábios de Zaratrusta ou Zoroastro, um reformador com o filósofo do Super-Homem e da Vontade de Domínio.
religioso da Pérsia. Mesmo na sua filosofia moral, mostra-se O segundo período - o socrático - parece ,ter sido um
um vingador e um destruidor, um profeta e um arauto. regresso ao Positioismo, à ciência positiva e fria, um período
58 ~IETZSCIIE, FILóSOFO DA CULTURA O IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 59
céptico, isolado e cheio de interrogativas; mas, na realidade, pforta e, principalmente em Bona e Leipzig, sob a orien-
tratava-se apenas de uma reacção temporária, de mais um tação de Ritschl e de outros notáveis professores. Foram os
passo andado para a elaboração da filosofia de Dioniso, trabalhos por ele publicados que levaram as autoridades
Nietzsche ergue Dioniso contra Cristo, mas ergue também de Basileia a oferecer-lhe a regência da cadeira de filologia,
Dioniso contra Apolo e - podemos quase dizê-lo - o exa- I
quando era ainda muito novo. E O professor Ritschl estava
gero contra a moderação. É um poeta trágico, um homem ele j convencido de que o seu prendado discípulo havia de con-
claros e escuros, das mais agudas antíteses; mas o seu ( tribuir grandemente para os estudos clássicos. Nietzsche
talento como poeta e como sonhador está dominado por possuía, certamente, os necessários alicerces e a precisa
uma inteligência sempre em laboração e de grande poder, capacidade mental para ser um homem de ciência, embora
de forma que, por um lado, não pôde vir a ser um homem lhe faltasse para isso o indispensável temperamento. Em
de ciência verdadeiramente aplicado e com a necessária qualquer dos casos, se tivesse resolvido dedicar-se a fundo
concentração de espírito e, por outro, foi arrastado para à filologia, teria encontrado no seu temperamento um
além dos confins da arte, ou seja para o campo da filosofia. grande estorvo e ver-se-ia obrigado a uma luta constante
Quando esteve como professor de filologia em Basileia, consigo mesmo. Naturalmente ninguém está habilitado a
Nietzsche revoltou-se contra a feição tradicional e erudita afirmar que Nietzsche não podia ter-se empenhado nessa
do método e função dessa disciplina: «philologia facta est luta pelo autodomínio, ou que o seu temperamento não
quod philosophia [uit» (1). No seu modo de ver, assim como poderia ter contribuído para o valor da sua obra, pondo-o
os estudos históricos não têm valor senão quando estão ao a salvo de um árido pedantismo; mas, conhecendo o que
serviço da vida, assim a filologia tem valor somente em conhecemos do seu carácter, não é difícil supor que nunca
função do seu fundo cultural e da sua aura filosófica.
A ciência, por outras palavras, não deve ser o pedantismo
I ele viria a ser um Erwin Rohde e, muito menos, um Wíla-
mowitz-Moellendorff. Post [actum; não é como filólogo
de gabinete do W issenschaitler« mas a promotora e a serva clássico, mas, em primeiro iugar, como um grande mestre
da cultura e da vida. Qual é então o ideal de cultura de da língua alemã e, em segundo, como o poeta-filósofo da
Nietzsche? Ao fazer esta pergunta, ninguém suponha que cultura, que ele vive e continuará a viver.
ele era um homem privado de todo o conheeízaento
exacto. Podia ter sido - e foi sem dúvida - por u~ ques-
.'1
J.
I
li
As concepções e ideias. de cultura contemporâneas
encontram nele um adversário resoluto e decidido. No
ti

~t'.~~
tão de temperamento, um inadaptado à vida do verdadeiro ensaio que escreveu sobre David Strauss define o que
homem de ciência, com todas as suas pesquisas cuidadosas entende por cultura. «A cultura é, acima de todas as coisas,

.
e persistentes e com o exame rigoroso da evidência que a unidade de estilo artístico em toda a expressão da vida
nelas se venha a manifestar; não nOS esqueçamos, porém, dum povo. Os conhecimentos e o saber em grande escala
lhe
de que ele recebeu uma excelente educação clássica em
. ;
não são essenciais nem são um sinal da sua exis-
tência. E, em caso de necessidade, esses conhecimentos e
esse saber podem co-existir muito mais harmonicamente
(1) CJiou..se a filologia, porque a filosofia existiu. (N. T.).

60 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA
O IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 61
com aquilo que se Opõe à cultura - o barbarismo - isto
é, com uma absoluta falta de estilo ou com uma desor- pesquisas e científico nos seus métodos. f: também óbvio
denada amálgama de todos os estilos». Portanto, para que aquela cultura que Nietzsche pretende ridicularizar
Nietzsche, a cultura não significa simplesmente saber, incluía a educação, a crítica e os padrões literários, a arte
ciência, Wíssenschaft. O género de cultura alemã, essa e a música. Qual era, portanto, esse elemento vital que os
cultura que os Alemães, ingenuamente, acreditaram ter chamados homens cultos da Alemanha puseram de lado e
triunfado na guerra franco-prussiana, não era, para ele, por cuja omissão fez que a sua cultura não fosse uma verdadeira
cultura, mas uma pseudo-cultura? Esse elemento vital e
forma alguma, a verdadeira cultura. Não era um estilo de
essencial era simplesmente o autodomínio, a vida, o que
vida nem uma unidade artística harmoniosa, mas uma
significa luta e vontade forte. A vida tem de dominar o
desodenada amálgama de todos os estilos. «O Alemão amon-
conhecimento: não é o conhecimento que tem de dominar
toa à sua volta as formas, as cores, os produtos e as curiosi-
a vida. «A vida é o mais alto poder dominador, porque o
dades de todos os tempos e zonas, e dessa forma consegue
conhecimento que aniquilasse a vida anquílar-se-ía também
criar essa bizarra novidade, como se se tratasse de uma
a si. O conhecimento pressupõe a vida» (1). Os Alemães têm
feira de aldeia, que os seus sábios começam a admirar e a
conhecimento - muito conhecimento - do passado e da
definir como «Modernismo per se». E o Alemão deixa-se
História, mas o conteúdo desse conhecimento não está
ficar pacificamente acocorado no meio deste conflito de unificado sob uma forma vital, permanecendo apenas na
estilos» (I). Assim, esse mesmo Alemão estabelece uma sua memória e no seu cérebro. Têm conhecimentos sobre
espécie de loja de curiosidades ou um bricabraque, indo cultura, mas não são cultos porque não vivem a cultura :
buscar uma coisa a esta cultura e outra àquela, mistura tais conhecimentos são apenas meras ruínas e relíquias his-
tudo e julga-se então uma pessoa culta. Juntemos a isto o tóricas, e assim permanecem, porque não auxiliam a vida.
pedantismo do sábio e teremos uma imagem da oultura Se assim não fosse, nunca eles se contentariam com acumular
alemã, que não é uma unidade genuína e criadora, mas conhecimentos sobre conhecimentos, mas esforçar-se-iam
uma cópia de outras culturas e - seja dito de passagem- por unificar o conteúdo de tais conhecimentos num estilo
uma cópia não muito inteligente. Os Alemães julgaram que artístico, trabalhando para uma forma original de cultura
a sua cultura tinha triunfado sobre a cultura francesa, mas, alemã, para uma forma de vida realmente natural, genuína,
segundo Nietzsche, tal triunfo não existiu, pois a cultura unificada e criadora, desde que se tomassem verdadeira-
alemã ficou tão dependente de Paris depois da guerra como mente senhores de si e capazes de criar. De facto, forma
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estava antes. «Até ao presente, nunca existiu coisa que se e conteúdo são coisas à parte. O Alemão tem o conteúdo
pudesse considerar uma cultura alemã original». -' - «um montão enorme de conhecimentos - pedras que
Ora, é evidente que o sábio alemão era um homem ocasionalmente chocalham dentro do seu corpos - mas não
dum conhecimento profundo e exacto, cuidadoso nas suas tem a forma, desde que não há nada externamente que
62 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CUL TUBA O IDEAL CULTUHAL DE NIETZSCHE 63
corresponda ao conteúdo de tais conhecimentos. .B como nos tempos que vão correndo. Mas o único valor de uma
um homem que come sem fome on sem necessidade, de enciclopédia reside no que está dentro dela, no conteúdo,
fonna que os alimentos não lhe vão fortalecendo o orga- c não no que está escrito por fora, isto é, na encadernação
nismo, ou como a serpente que engoliu um coelho inteiro ou no resguardo da capa. Da mesma forma, toda a cultura
e que, depois, se deixa ficar estirada ao sol, evitando todo moderna é essencialmente interna e o encadernador impri-
O movimento que não seja absolutamente necessário. Em miu na capa qualquer coisa que se assemelha a isto:
resumo: a cultura significa um processo de vida, natural, «Manual de cultura interna para uso de bárbaros exter-
original, criador e genuíno, e não um conjunto de conheci- nos» (l). O homem moderno sofre de uma personalidade
mentos históricos. Pode, sem dúvida, incluir conhecimentos enfraquecida; limita-se a saber e a lembrar, mas não pode
dessa natureza, mas tais conhecimentos não se devem con- realmente assimilar as valiosas criações do passado, pois,
siderar essenciais. «Um homem pode ser muito bem para isso, falta-lhe a vida e falta-lhe o vigor. E essa é a
educado, sem que para isso tenha necessidade da História». razão por que os Alemães são uma nação de «continua-
Como os Alemães têm o saber, sem o processo de vida, isto dores», que produziram uma cultura meramente alexan-
é, O conteúdo sem a forma, vangloriam-se de uma cultura drina, uma cultura de enciclopédia, quando todos os seus
que não é, de per si, cultura alguma, mas apenas um conhe- esforços deviam ser empregados no sentido de ultrapassa-
cimento sobre cultura. O seu senso histórico torna-os mera- rem essa cultura e de se elevarem acima dela.
mente passivos, em vez de activos, criadores e progressivos: Em O Uso e Abuso da História" Nietzsche fala da
são uma nação de «continuadores», e não um povo de missão da juventude «que constitui a primeira geração de
seres vivos que produzem e criam. E uma cultura assim não lutadores e matadores do dragão». É missão da juventude
passa de uma coisa oca, de um abarrotar-se de passado, «abalar até aos alicerces as modernas corrupções de «saúde»
mas dum passado indigesto e sem qualquer relação com a e «cultura», e erguer como pendão o ódio e o desprezo
vida. por esse amontoado rococó de ideias». Realizando esta obra
Embora Nietzsche não deixasse de admirar o sábio de destruição, a juventude poderá parecer inculta, mas essa
alemão do melhor tipo, insistia sempre sobre o ponto de obra é um passo necessário para a cura da humanidade
que o seu saber era constituído por meros conhecimentos moderna. «A princípio serão mais ignorantes que «os homens
do passado, que em nada contribuiriam para um processo educados» do presente, porque terão desaprendido muita
de vida presente e criador. Tratava-se de conhecimentos coisa e não sentirão mesmo qualquer desejo de compreen-
mortos, livrescos e retrospectivos. «Nós, os modernos, nada derem aquilo que esses homens educados desejam especial-
temos de nosso: o que nos pode tornar conhecidos é o mente conhecer. De facto. sob o ponto de vista de educa.
facto de nos abarrotarmos, até deitar por fora, das artes,
filosofias, religiões, ciências e costumes estrangeiros, o que
nos toma enciclopédias ambulantes, como por certo nos
1 ção, a sua característica será exactamente a falta de ciência,
a sua indiferença e inacessibilidade para tudo quanto se

chamaria um dos antigos Gregos, se voltasse de novo à vida (') Consuierações Intempestivas, ii, pg. 33.
64 NIETZSCHE" FIL6S0FO DA CULTunA
o IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 65
refira a coisas boas c famosas. Mas, no fim da cura, serão
muito, mas a sua cultura consiste numa série de verbetes
de novo homens e não simples sombras da humanidade».
de informação arquivados no seu espírito, como doces
No entanto, o ideal de Nietzsche está longe de ser a
dentro dum frasco. São verdadeiras minas de informação,
mocidade destruidora e bárbara, a irresponsável besta fuiva autênticas enciclopédias ambulantes, mas não homens no
edéracinées. No mesmo ensaio fab-nosele do «poder plás- sentido mais elevado da personalidade culta, porque a cul-
tico» dum homem, duma comunidade ou duma cultura, e tura é própria do homem, quando considerado como um
afirma que «quanto mais fundas forem as raízes da natureza agregado de corpo e alma. Por outro lado, deparam-se-nos
íntima dum homem, melhor se apropriará ele do passado» ; também às vezes homens que não serão tão instruídos como
e, ainda, que «a natureza mais forte e mais poderosa se essas enciclopédias ambulantes, mas que nos dão a impres-
reconhece pelo facto de, para ela, não existirem limites em são de possuírem uma. personalidade verdadeiramente culta.
que o senso histórico se possa expandir por forma preju- Esses homens possuem aquilo que aprenderam e, fosse
díciab , Tal natureza chamará a si o passado, digerí-lo-á e muito ou fosse pouco, empregaram-no em enriquecer a
transfonná-lo-á na própria seiva. Um excesso de conheci- sua personalidade por uma forma viva, unificada e pro-
mento do passado, um «excesso de História», tornará o gressiva. Assim, a delicadeza da sua alma, o requinte da
homem falto de energia, quando ele necessitar de pôr esse sua sensibilidade, o poder criador do seu espírito são outras
passado ao serviço do presente. «Se pudéssemos somente tantas coisas que nos impressionam, o que não acontece
aprender a estudar a História como um meio para a vida I» com aqueles que são apenas um poço de informações, com
Não podemos deixar de aprovar muito daquilo que que nos mimoseiam a seu bel-prazer. Podemos comparar
Nietzsche diz sobre este assunto. A cultura não é o simples esses homens a uma formosa árvore, cheia de vigor e em
saber: é muito mais que isso. Para ser verdadeira cultura, pleno desenvolvimento, que assimila a seiva, abre os braços
tem necessàriamente de constituir um processo de vida ao ar e à luz do Sai, e acaba por produzir as mais belas
harmónica, rico e unificado. Um povo que vivesse exclusi- flores e os mais saborosos frutos. Quão diferentes são estas
vamente do passado seria mais um apêndice a uma cultura pessoas. daquelas que se assemelham a montões de pedras
anterior do que um povo verdadeiramente culto. O desen- empilhadas umas sobre as outras, sem qualquer unidade
volvimento, a vida e as suas criações seriam, quando orgânica, sem vida e completamente estéreis I Está muito
presentes, apenas factores acidentais, ao passo que os longe do nosso intento amesquinhar o saber e a erudição;
elementos estáticos e retrospectivos seriam a sua feição como Nietzsche, admiramos grandemente a tarefa desinte-
dominante. O tipo alexandrino de cultura é retrospectivo e ressada, exacta, laboriosa e conscienciosa do homem de
não progressivo: olha para trás e não para diante. E a ciência e admitimos de boa vontade, não s6 que o muito
verdade é que encontramos muitas vezes indivíduos que saber, como tal, não é incompatível com a cultura - tal
.mostram uma surpreendente abundância de conhecimentos, asserção seria insensata - mas também que aquele tipo de
mas que, ao mesmo tempo, nos não dão a impressão de homem que declara desprezar a ciência e amesquinha os
pessoas cultas. As suas memórias são retrospectivas; sabem sábios é um espécime superficial e aborrecido, um «ocioso
J S
66 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTUHA
o IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 67
com pretensões», que se pronuncia dogmàticamentc sobre
volvimento e aumento de cultura. A energia e a força que
problema." cuja complexidade e dificuldade excedem o seu
se díspendem na aquisição «de qualquer poder, quer na
poder de compreensão. O fílistino, tout court, não é mais
política em grande escala, quer na economia, no comércio
para admirar do que a «cultura filistina». Toda a honra
universal, no parlamentarismo ou nos assuntos de interesse
seja prestada ao sábio e ao cientista. No entanto, mante-
militar» podem muito bem ser acompanhados por um declí-
mos com Nietzsche que o saber só não é bastante, que o
nio nos padrões e nos ideaís de cultura. Quem poderá
saber só não faz a cultura, quer quanto ao indivíduo quer
afirmar que o Império Alemão era mais culto que 05
quanto à sociedade, e que, para formar homens e mulheres
Estados Alemães? Nietzsche, pelo menos, não pensava
verdadeiramente cultos, há necessidade de verdadeiros
assim e afirmou: «No próprio momento em que a Alemanha
educadores. Pode-se tirar muito mais proveito da convi-
se ergueu como um grande poder no mundo da política,
vência com uma personalidade vigorosa e culta do que com
a França adquiriu nova importância como força no mundo
o mero tipo enciclopédia, ou seja o professor ou mestre-
da cultura». Bem sabia ele que, embora a Alemanha tivesse
-escola que é meramente instruído. Como Nietzsche diz tão
ganho a guerra franco-prussiana, sob o ponto de vista
bem em O Crepúsculo dos tdolos, «há necessidade de edu-
militar, foi a França quem ganhou a batalha da cultura.
cadores que sejam eles mesmos educados, dotados dum
«A Alemanha está-se tornando cada vez mais a Flat-land
intelecto nobre e superior, e que sejam produtos amadure-
cidos da cultura em todos o.'> momentos da sua vida, nas da Europa». E qualquer observador poderá verificar que o
.desenvolvimento político e militar da Alemanha sob o
palavras e nos gestos». Não é de «campónios doutos» nem
de «amas de leite superiores» que nós precisamos nos nossos nazismo, até se tornar um poder dominante na Europa.
não foi acompanhado por um correspondente desenvolvi-
estabelecimentos educacionais.
Não podemos deixar de concordar ou, quando muito, mento da sua cultura - mas antes pelo contrário.
.simpatizar com o protesto de Nietzsche contra aqueles que Poderá parecer à primeira vista uma contradição o
atribuem à educação a função de treinar «uma enorme facto de Nietzsche afirmar que o saber deve servir a vida
multidão de mancebos, no mais curto prazo de tempo possí- e depois se revolte contra um tipo de educação que tem o
vel, de forma que se tornem úteis ao Estado e venham a fim prático de preparar cidadãos úteis. Não será isto subor-
ser servos que o mesmo Estado há-de explorar». Embora dinar o saber à vida? Em certo sentido é, mas não é essa
não estejamos dispostos a concordar, sem qualquer reserva, a interpretação de Nietzsche. No livro Schopenhauer' como
com as suas afirmações de que «a cultura e o Estado são Educador, diz que o interesse pessoal do Estado civilizado
antagónicos» e que «todos os grandes períodos de cultura requer a maior amplitude e universalidade de cultura, e
têm sido períodos de declínio político», podemos concordar que ele tem em seu poder as armas mais eficazes para
com a sua opinião de que é um erro capital supor que o realizar os seus desejos. Um Estado dessa natureza «supõe
desenvolvimento do Estado e o engrandecimento político geralmente, nos tempos presentes, a tarefa de libertar as
são sempre, ou quase sempre, acompanhados de um desen- forças espirituais de uma geração, tanto quanto elas possam
68 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
O IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 69
ser úteis às instituições existentes» (1). Mas «libertar» vem
a sígnífícar na prática «acorrentar». A educação toma-se considera verdadeiro alvo da cultura, ou seja a produção
útil ao interesse pessoal do Estado, isto é, a um alvo do génio.
estranho. Da mesma forma, o interesse pessoal dos homens A produção do génio é, assim, para Nietzsche, o alvo
da cultura e esta é o alvo da vida. A vida não tem qual-
de negócio, embora precisando da cultura e ajudando-a em
quer fim que lhe tivesse sido dado, no sentido teleológico
troca, exige um preço, isto é, que o interesse pessoal do
- tal concepção seria impossível na filosofia ateia de
negócio prescreva o fim e os limites da cultura. «É para
Nietzsche - mas nós temos de lhe dar esse fim : a produção
detestar toda a cultura que tende para o isolamento, que
da mais fina flor da raça humana, o génio, o espírito ver-
tem um fito acima de «arranjar dinheiro» e que requer
dadeiramente nobre e original, o verdadeiro homem de
um período longo para se fazer. Os homens olham de
cultura - Nietzsche acabou de concretizar no Ubermensch
soslaio para uma educação séria e consideram-na como ou o Super-Homem. A verdadeira cultura é, portanto, essen-
simples e «refinado egoísmo» ou como um «epicurismo cialmente aristocrata: é ela que toma possível, favorece e
imoral». O montante da educação é determinado pelos promove o desenvolvimento dos «espíritos livres», os ver-
interesses comerciais». (De facto, é frequente ouvirmos hoje dadeiros aristocratas do espírito. No seu ensaio sobre
defender ou atacar uma educação clássica, conforme ela é, O Estado Grego (1870), Nietzsche insiste sobre a base aris-
ou não, uma coisa de que se pode tirar proveito em negó- tocrática da cultura. «Para que possa haver um solo vasto,
cios, isto é, para ganhar dinheiro!) Mas esta subordinação profundo e frutuoso para o desenvolvimento da cultura, a
da cultura e da educação a interesses estranhos, tais como enorme maioria deve, ao serviço da minoria, sujeitar-se
o interesse pessoal do Estado ou o interesse comercial, põe servilmente à luta pela vida, num grau mais elevado do
de parte simplesmente o verdadeiro fim da cultura, ou seja que as suas próprias necessidades exigem». Não hesita
a produção do génio. «O Estado pode apregoar como mesmo em afirmar que «a escracoturo é da essência do
quiser os seus serviços a favor da cultura, mas a verdade cultura». No Humano, Demasiadamente Humano, surge-nos
é que apenas. ajuda a cultura com o fim de se ajudar a si a mesma ideia. «Só se poderá originar uma cultura mais
mesmo e não tem em mira um fim que está muito acima do elevada, quando houver duas castas distintas na socie-
seu próprio bem-estar e, até, da sua existência. Os homens dade: a classe dos que trabalham e a classe dos ociosos
de negócio, quando andam constantemente a reclamar edu- que possam entregar-se ao verdadeiro ócio: ou, em ter-
eação, não fazem mais que zelar os seus interesses» (2). mos mais precisos, a classe do trabalho obrigatório e a
O Estado, o comércio, etc. ajudam, sem dúvida, a cultura classe do trabalho livre» (l). Uma das principais acusações
até certo ponto, mas. estão cegos para aquilo que Nietzsche de Nietzsche contra a cultura filistina é que é «uma cultura
negativa», uma barreira no caminho de todos os homens
poderosos e criadores, a algema daqueles que gostariam de
(') Consideraçõe« Intempestivas, ii, pg. 6L
(") COI'l3id8raçõe8 Intempe..;ttvas, ii, pg. 173-.
70 NIETZSCHE, FIL6S0FO DA CULTUHA o IDEAL CUL TUHAL DE NIETZSCHE 71
correr na direcção de metas mais elevadas, o orvalho enve- já batida c cansada repetição do dogma marxista. A ver-
nenado que faz estíolar todas. as esperanças que começam dadeira cultura pode beneficiar o Estado e, sem dúvida,
a germinar, a areia que cresta todos aqueles pensadores assim faz; mas, se essa cultura está inteiramente subor-
alemães que procuram uma nova vida c por ela estão dinada ao interesse pessoal desse mesmo Estado, este não
ansiosos» (1) A cultura Iilistina não vê com simpatia qual- se aproveitará dela muito tempo. O Estado é um valor, mas
quer pesquisa que se faça, mas, pelo contrário, tem-lhe ódio. não deve por forma alguma querer esgotar o campo dos
O espírito nobre, aristocrático e livre, aquele (lue investiga valores nem considerar-se o valor dominante.
e que descobre, aquele que se lança por novos caminhos Por outro lado, é inteiramente verdade que a cultura
é a bêtenoire da cultura Fílistína, que adora o passado, que progride largamente - embora não exclusivamente - devido
se apega a normas estabelecidas e que se considera como () ao trabalho dos mais notáveis homens de génio, e que os
edifício firme e estável da cultura. actuais representantes da «cultura» têm, por vezes, inter-
Não se pode negar que alguma verdade contém o que pretado mal e entravado o trabalho dos espíritos livres e
Nietzsche afirma. Assim, uma educação que tivesse em vista, criadores. A tragédia grega não teria existido sem o génio
única e simplesmente, gerar cidadãos e funcionários públi-
de Esquilo e de Sófocles, nem haveria literatura russa sem
cos capazes, dificilmente poderia produzir uma cultura
Pushkine, Tolstoi, Dostoievski, etc. E como se poderiam ter
elevada. E o mesmo podemos dizer, com mais razão ainda, desenvolvido as possibilidades artísticas da língua alemã,
duma educação que apenas tivesse em mira criar verda-
sem o génio literário de homens. como Goethe e o próprio
deiros homens de negócio. Uma das glórias dos Gregos foi
Nietzsche? Isto é, sem dúvida, uma verdade trivial e bas-
terem convertido o cálculo prático na ciência da matemá-
o tante óbvia, pelo que se refere ao passado. No entanto,
tica e, por certo, seria um mau dia para a cultura aquele
nem sempre é tão 6bvia pelo que respeita ao presente e
em que a matemática pura fosse posta à margem para favo-
ao futuro. Cézanne, como toda a gente sabe, foi muito
recer Unicamente a matemática aplicada. O poeta laureado
pouco apreciado em vida e é também muito pouco provável
exerce, sem dúvida, uma função útil, mas se essa função
fosse meramente divertir as multidões ou falar aos senti- que a Academia das Belas-Artes venha, de per si, a apro-
mentos requintados daqueles que são mais educados, bem fundar ou alargar a nossa cultura. Para que a cultura se
poderíamos dizer adeus aos Shelleys, aos Keats, aos Leo- desenvolva, são necessários novos génios, talentos originais,o .,

pardís, aos Hõlderlins, etc. E, se a música servisse apenas e a cultura, em certo sentido contemporâneo, tem compl
os interesses dos homens de negócio ou mesmo do Estado, função tornar possível o desenvolvimento e a frutuosa
o espírito de Beethoven sentír-se-ía logo algemado. E que germinação desses homens notáveis, e não estrangulá-los,
diremos da filosofia? Na Rússia soviética, a filosofia serve algemá-los ou entravá-los, arrastando-os muitas vezes para
o Estado, mas há razão para perguntar que valor tem a o desânimo e, até, para o desespero. Os Chattertons e os
Hõlderlíns são uma acusação permanente contra aqueles
(') CO'DSideraçóe8 lntempe$tiotU, i, Pi. 13. que se encontram satisfeitos consigo próprios, contra os que
)

72 NIETZSCHE. FILóSOFO DA CULTURA O IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 73


a si próprios se apontam como representantes da cultura, culturais. A verdadeira religião não é inimiga, mas amiga
contra os da cultura filístina. da cultura, seja qual for o comportamento religioso indivi-
Há, assim, certa verdade naquilo que Nietzsche tem a dual das pessoas, e apesar das «religiões» unilaterais e
dizer sobre a base «aristocrática» ela cultura, mas, há tam- antículturais.
bém muita coisa exagerada e falsa. A cultura existe para Nietzsche faz da esoraoidão a base da cultura, quando
o desenvolvimento dos poderes do homem e não para glória exige uma dicotomia entre a aristocracia dos espíritos
de alguns homens, ou mesmo ele todos os homens, mas sim livres e nobres e a multidão dos que trabalham. Não vamos,
para glória de Deus. Não queremos com isto sugerir que sem dúvida, supor que o filósofo alemão preconizava um
todos os aspectos da cultura devem ter uma referência regresso ao tipo da escravatura grega ou romana; mas,
directamente religiosa e sobrenatural, porque isso impli- nalgumas notas por ele coordenadas quando compôs
caria que Deus era o criador, não do espírito e da matéria, A Aurora, e que foram publicadas por sua irmã, não só
mas apenas do espírito - mas insistimos em que Deus é afirma que alguém terá de fazer sempre o trabalho mais
glorificado no verdadeiro e harmonioso desenvolvimento de duro e mais sujo, mas afirma também que, se esses traba-
todos os poderes do homem e que esta glorificação divina lhadores tiverem oportunidade e vagar de se pôr em
é o fim último da cultura. Deus é glorificado no génio- contacto com uma civilização mais elevada, experimentarão
nos Shakespeares, nos Beethovens e nos Miguel Angelos- uma grande dor, ao estabelecerem o contraste entre o seu
é glorificado 'também quando homens e mulheres humildes trabalho e as suas horas de ócio, e acabarão por se libertar
partilham, de acordo com as suas capacidades, da riqueza desse trabalho, endossando-o aos outros. Daqui se conclui
cultural da raça humana. Deus não é glorificado com o que se toma necessária uma esfera de não-cultura como
algemar dos talentos do homem, com a satisfação pessoal base para uma esfera de cultura. Mas esta maneira de ver
da cultura fílistína, com o estrangulamento dos homens de de Nietzsche será de todo justificável? ~ suficientemente
génio, cujos talentos Ele criou. O mundo é uma manifes- claro que um artista de merecimento não deve ser obrigado
tação externa de Deus e Ele encontra-se manifestado nas a trabalhar numa fábrica ou no calcetamento de estradas;
obras de beleza criadas pelo génio, tal qual se revela na mas, graças ao moderno desenvolvimento técnico, não há
sublimidade das montanhas e na glória das estrelas. Mas razão para que - dada uma adequada nacionalização da
. tomar a cultura humana, ou os seus mais notáveis génios, indústria - os operários não possam continuar a ser operá-
. uma cultura absoluta, um fim de per si, é falsificar a noção rios e, ao mesmo tempo, tenham amplas oportunidades e
de cultura e, ao cabo, rebaixá-la e arruiná-la. O homem, o suficiente vagar para o seu desenvolvimento cultural. Se

I
simples homem-mesmo que seja o Super-Homem-não vierem objectar que um nível geral e medíocre de cultura
poderá realizar a verdadeira cultura, se negar e rejeitar Deus irá contribuir para entravar o trabalho original e criador,
e todos os valores transcendentes; não só deixará de culti- o mesmo se pode dizer do meio educado e culto de todos
var as mais altas funções do espírito humano, mas acabará os tempos. A cultura não pode, evidentemente, estar limi-
por impedir o desenvolvimento de todas as actividades tada aos génios - mesmo que isso fosse para desejar
74 :\'lETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA
o IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 75
(e Nietzsche, sem dúvida, nunca enfrentou tão ridícula E Nietzsche é o primeiro a reconhecer perfeitamente este
hipótese) - nem parece que o simples número de menos facto pois, nos S'6US ensaios Sobre o Futuro das Nossas Ins-
cultos, seja grande ali pequeno, vá realmente afectar a tituições Educacionais, fala do número eincrivelmente
questão do estrangulamento ou não estrangulamento dos pequeno» de pessoas realmente cultas, e acrescenta:
génios. Julgamos até que, pelo contrário, a expansão geral «E mesmo este número de pessoas realmente cultas não
da educação e da cultura poderá ajudar a promover o seria possível, se uma prodigiosa multidão, devido a razões
desenvolvimento dos talentos superiores. 11: frequente opostas à sua natureza e levada unicamente por uma
ouvir-se falar de homens de notável capacidade natural aliciante ilusão, se não devotasse à educação». Depois diz:
que, por falta de qualquer oportunidade para se educarem «Todo o segredo da cultura reside neste facto: há uma
e por falta de um guia e de intercâmbio intelectual, ficaram inumerável legião de homens que lutam para a adquirir e
por desenvolver e se tornaram improfícuos. se esforçam quanto podem para esse fim, ostensivamente
Um professor alemão contou ao autor deste livro que no seu próprio interesse, quando, afinal, trabalham apenas
certo camponês sem cultura, muito dado a ruminar sobre para tomar possível que poucos a alcancem». Nietzsche
os grandes problemas da vida (um Griibler) travou um dia reconhece; portanto, que, para ser possível o desabrochar
conhecimento com um homem de grande cultura que o e o desenvolver do génio, tem de haver um grande número
compreendeu e lhe prestou grande auxílio nas suas cogita- de pessoas que lutem pela cultura através da educação-
ções. Quando, devido a circunstâncias várias, este intercâm- pessoas essas que, sem dúvida, se julgam cultas - mas que
bio intelectual teve de terminar, o pseudo-filósofo da nunca chegam a conseguir uma cultura profunda e verda-
Natureza foi obrigado a voltar para o seu isolamento e deira. Concordamos com isso, mas vamos mais longe. Para
acabou por se suicidar. E certo que esse homem podia ter favorecer o aparecimento e desenvolvimento do génio, é
sido «avariado» por uma educação esteriotipada com a necessário estender a educação a todos e tomar também
marca do Estado, mas um intercâmbio frequente com um a cultura, em certo grau, acessível a todos, porque é apenas
homem de verdadeira cultura que o pudesse compreender, assim - pelo menos nos casos normais -que poderemos
que simpatizasse com ele, que o ajudasse e animasse, evitar o completo estrangulamento do verdadeiro talento,
poderia ter feito desabrochar um talento deveras notável. quando este se encontra num meio que lhe não dá opor-
Partindo do princípio de que a cultura existe apenas tunidade de se desenvolver, por falta de estímulo e dum
para poucos, Nietzsche mantinha, como tivemos ocasião de guia pessoal. Se é certo que a expansão da educação e das
ver, a opinião de que a função de muitos é servir poucos. primeiras luzes de cultura tornarão possível o desenvolvi-
Mesmo que isto fosse verdade, devemos notar que o grande mento, não de menos, mas de mais «espíritos livres), então
número servirá os poucos mais proveitosamente, se for a dicotomia de Nietzsche entre a esfera de não-cultura e
constituído por indivíduos educados. Quanto mais real for a esfera de cultura - ou seja «o escravo) como base da
a cultura - não a simples instrução - tanto melhor eles: cultura - deixará de ter qualquer justificação.
poderão agir como terra de sementeira para os génios. Observámos já que. se todos os homens estivessem
76 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA O IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 77
possuídos de uma educação medíocre, poder-se-la pensar atingir um notável grau de eminência terá neoessària-
que eles entravavam o desenvolvimento do génio, na mente de se especializar em qualquer ramo e, quanto
medida em que a multidão se viesse a ressentir da presença mais a ciência se desenvolve, tanto mais estreitos se
do «espírito livre», a mente original e criadora. Esse espírito tornam os limites para essa especialização. Surge então o
obrigá-los-ia a uma reflexão sobre si mesmos e, nesse perigo de que o especializado, embora muito culto no ramo
talento superior que surgia, veriam reflectida a sua própria i científico a que se dedicou, venha a ser virtualmente um
!
mediocridade. Não apreciariam nem compreenderiam esse t- ignorante pelo que diz respeito a todos os assuntos estra-
espírito livre, mas nada obstaria a que criticassem, atacas- nhos ao seu ramo. «Desta maneira, um especializado fica
sem e se entregassem a uma perseguição aberta ou surda. a ser como aquele operário que, numa fábrica, passa a vida
Trata-se, na verdade, de um perigo real, visto que a inteira a apertar parafusos ou a manejar certa máquina,
decaída natureza humana é aquilo que é; mas, possivel- ocupações estas em que acaba por adquirir uma notável
mente, as vantagens de uma educação que se expandisse perícia». O resultado é que o campo geral da cultura tende
acabariam por contrabalançar tais perigos. Em primeiro cada vez mais a cair nas mãos do jornalismo. «O jornal,
lugar, cada ser humano reflecte Deus até certa extensão e actualmente, ocupa o lugar da cultura» e «o jornalista, o
deve poder glorificá-lO pelo desenvolvimento daqueles servo do momento, ocupa o lugar do génio». Aqui, Nietzsche
talentos que possui, pois, como dissemos, o fim último da menciona um perigo real, ou seja a ascendência do jorna-
cultura é a glória de Deus e não a glória do génio. Além lismo. Muito poucos homens e muito poucas mulheres lêem
disso, não podemos nós salvaguardar os direitos do génio mais do que o jornal e perdem alguns minutos a pensar;
e evitar aquilo que Nietzsche chama a sua «democratiza- as suas opiniões são as da imprensa, deixando atrofiar a
ção», por meio de um sistema de educação cultural, em faculdade do pensamento original. Daqui resulta uma
que aquele jovem que promete vir a ser um notável talento unificação de padrões e uma mediocridade que se descobre
tenha amplo estímulo e oportunidade para o desabrochar em tudo quanto essas pessoas pretendem mascarar sob a
e desenvolver natural desse talento, fora de moldes precon- aparência duma opinião independente e bem formada.
cebidos ou democratizados para satisfazer as exigências da O próprio estudo e, até, a ciência têm de se vergar perante
cultura filistina ou da multidão medíocre? O perigo con- o jornalismo e, como prova, temos a história que nos des-
tinuará a existir de qualquer forma, mas será certamente gosta com a sua superficialidade, e a filosofia popular que
atenuado. Vale a pena observar ràpidamente qual é a ideia nos apresenta, com hipóteses disfarçadas em factos, asser-
de Nietzsche sobre a verdadeira educação cultural, pois é ções dogmáticas que pretendem ser ciência pura. Ora isto
muito provável que um homem com a sua independência é a ruína da educação, a morte da cultura, o aviltamento
de espírito nos possa oferecer algumas sugestões de valor. das faculdades e a corrupção do espírito humano.
Nos seus ensaios Sobre o Futuro das Nossas Instituições. Nietzsche liga a maior importância ao estudo da língua
Educocionoie, aponta os perigos da especialização. Devido materna na educação. «Toda a gente fala e escreve o
ao desenvolvimento da ciência, um homem que pretenda alemão tão mal quanto é possível na era dos jornais i esta.
,

I
78 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTUHA O IDEAL CULTUHAL DE NIETZSCHE 79
é a razão por que todo aquele mancebo que fosse nobre e ser obrigados a criticar e comparar poetas, a discutir
se mostrasse possuído de certos dotes naturais devia ser figuras ou épocas históricas, a tratar assuntos de natureza
submetido pela força a um aperfeiçoamento do bom gosto , moral ou a relatar acontecimentos que se relacionam com
e a uma severa disciplina linguística. Se isto não for possí- a sua própria viela. É talvez a primeira criação individual
vel, prefiro que, para futuro, se fale latim, porque tenho do aluno, de forma que ele experimenta uma certa atrac-
vergonha de uma linguagem tão viciada e estropiada». ção e um certo encanto perante uma exigência que vai
Bem podemos tomar em consideração ° que Nietzsche diz contribuir para a sua independência, e redige uma compo-
da «gíria jornalista» e ouvir o seu grito: «Tomai a sério a
vossa própria linguagem! Aquele que não presta atenção
\ sição que reflecte o despertar das suas possibilidades e a
sua reacção individual perante o problema proposto. Nesta
a este assunto, como um dever sagrado, não possui nem altura, o seu espírito não foi ainda submetido a um molde
sequer o gérmen de uma cultura superior. Pela forma como nem estereotipado. E que acontece muitas vezes? O pro-
vos comportardes quanto a isto, pela forma como tratardes fessor chama-lhe a atenção, principalmente, para qualquer
a língua materna, poderemos avaliar o apreço em que excesso na forma ou nas ideias, isto é, «para aquilo que
tendes a arte e até que ponto estais relacionados com ela». na sua idade é essencialmente característico e individual.
Nietzsche exige uma verdadeira autodíscíplína na língua Aqueles traços realmente independentes que, em resposta
materna, levada a tal extremo que a mocidade venha a a uma excitação muito prematura, se podem manifestar
sentir «uma repugnância física pela tão amada e tão admi- apenas pela falta de jeito, pela crueza e por aspectos gro-
rada elegância de estilo dos nossos fazedores de jornais e tescos - ou seja, em resumo, a individualidade do aluno-
novelistas, oe pelo estilo rebuscado dos nossos homens de são exactamente aqueles que o professor reprova e rejeita,
letras». Se os estabelecimentos de ensino servem apenas substituindo-os por outros equivalentes, sofríveis, mas faltos
para abrir caminho aos «indignos e irresponsáveis rabisca- de originalidade». Se o assunto escolhido para a composição
dores», não prestando uma séria atenção à disciplina a que era prematuro, será juntar um insulto a uma injúria o facto
os alunos têm de ser submetidos, quando falam e escrevem de reprimir a individualidade da resposta a uma excitação
a sua língua, nunca poderão ser considerados como verda- também prematura; o que o professor tem de fazer é pro-
deiras instituições culturais. curar compreender o carácter individual do espírito do
Mas, se Nietzsche insiste na importância dum treino aluno e tentar desenvolvê-lo. Além disso, como Nietzsche
disciplinado na língua materna, insiste igualmente no mal assinala, embora o professor procure muitas vezes manter
de reprimir a individualidade e de tratar jovens como se uma uniformidade conveniente, mas não original, essa
eles já tivessem mais avançada idade. Diz ele que muitas mediocridade uniforme é exactamente o tipo de trabalho
vezes se ministram nas escolas certos temas para exercícios, escolar destinado a causar-lhe o maior aborrecimento.
que exigem, da parte dos alunos, verdadeiros conheci- A língua materna deve, portanto, de acordo com
mentos, quando eles ainda não têm realmente uma opinião Nietzsche, constituir a base da educação. «Toda a chamada
bem formada sobre tais assuntos. Assim, os alunos podem educação clássica deve ter apenas um ponto de partida
80 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA
o IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 81
natural- lima artística, conscienciosa e exacta familiari- nossos filhos estudassem elementos de geografia, ciências
dade com a língua materna» (1). Graças a tal familiaridade, naturais, economia política e sociologia, sendo assim levados,
o aluno aprenderá «o segredo da forma» e adquirirá a gradualmente, a considerar a própria vida, até que final-
«capacidade de estabelecer a diferença entre a forma e o mente, mas muito mais tarde, tomassem conhecimento dos
barbarismo». E então a ocasião de o iniciar na leitura dos acontecimentos passados mais dignos de nota. O conheci-
escritores clássicos alemães e será «pelo bater de asas dos mento da antiguidade deve ser um dos últimos assuntos
passados esforços desses escritores» que o aluno, que vai q~w o aluno deverá assimilar» (1). «Quando trazemos os
receber uma educação «clássica», será levado «à Terra Pro- Gregos ao conhecimento dos nossos jovens estudantes,
metida, isto é, à Grécia». A familiaridade com a língua tratamos esses rapazes como se eles fossem já homens
materna e real apreciação dos seus melhores produtos é maduros e sabedores. Por fim, temos de reconhecer que
assim, para Nietzsche, uma base indispensável para a não podemos ministrar-lhes senão pormenores isolados.
educação clássica no sentido do estudo da antiguidade A minha opinião é que somos forçados a ocupar-nos da
greeo-latína e, principalmente, da antiguidade grega. Mas antiguidade numa época da nossa vida pouco própria para
«nem uma suspeita desta possível relação entre os nossos isso. Só mais tarde o seu significado começa a surgir no
clássicos e a educação clássica parece ter até agora trans- nosso espírito» (2). Nietzsche sustenta que é antipedagógico
posto as velhas paredes das escolas públicas» (2). Pelo iniciar os jovens estudantes no estudo dos antigos, desde
contrário, o estudo da antiguidade começa demasiada- que eles os não possam apreciar conscienciosamente. Em
mente cedo e é orientado por professores que não têm uma primeiro lugar, o estudante deve aprender aquilo que lhe
compreensão real daquilo que ensinam. é necessário, isto é, o domínio das leis na natureza e, depois,
Nietzsche tem um sentido real do valor do treino nas o domínio «das leis na .socíedade geral». Feito isto, o estu-
línguas antigas: «o aspecto mais salutar das nossas modernas dante virá a sentir a necessidade da história para com-
instituições tem de se encontrar no entusiasmo com que as preender como as coisas mudaram e para ficar a conhecer
línguas grega e latina são estudadas durante vários anos». qual o elemento que muda nas coisas. «Para mostrar como
No entanto, a sua ideia de uma educação clássica é muito as coisas se podem tornar diferentes daquilo que são, pode-
mais ampla do que um estudo concentrado da forma linguís- mos, por exemplo, apontar os Gregos. Da mesma forma,
tica e insiste várias vezes sobre o facto de os alunos, geral- precisamos dos Romanos para mostrar como as coisas se
mente, começarem o estudo da antiguidade muito cedo, tornaram aquilo que foram» (8).
numa idade em que pouco proveito podem tirar desse Nietzsche frisa assim o facto de que o conhecimento
estudo, e ainda com a agravante de ficarem a aborrecer da história, e da antiguidade em particular, s6 deve ser
«os clássicos». «Seria muito mais natural, per se, que os
(') N6s, os Fil6logos, si. 31.
(I) O Futuro d08 NO$8O$ I11Htifuições Educaci.onais, pg. 6O-l. (') Ibidem, af. 74.
(') O Futuro das NOSlKl8 Instituições Educacionails, pg. 61. (8) lbidem; af. 182.
82 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTUHA
o IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 83
ministrado quando a sua necessidade se fizer sentir. Em
vagueamos na nossa infância e apoderou-se de nós uma
A Auroro escreve ele: «Pensemos neste desperdício da
antipatia quase inextirpável por toda a antiguidade, antipa-
mocidade, quando nos inoculam, inábil e penosamente, um
tia essa que nasceu duma intimidade aparentemente muito
conhecimento imperfeito dos, Gregos e dos Romanos, assim
grande» C).
como das respectivas línguas, o que é contrário aos mais
A música tem uma importante função a desempenhar
altos princípios de toda a cultura, pois se não deve dar na educação e na tarefa de criar um homem de cultura. Como
alimento a não ser àqueles que têm fome» (1). (A mesma este capítulo vai já bastante longo, não me ocuparei da
critica se aplica a outros ramos da educação. «Pensemos
naquele período da nossa vida em que a matemática e a
teoria de Nietzsche sobre a música considerada como tal, ...
limitando-me, portanto, a mencionar um ou dois dos seus
física nos foram metidas à força pela garganta abaixo, em pontos de vista sobre a relação da música com a cultura.
vez de terem sido aprendidas quando nos víssemos a «A música é, de facto, não uma linguagem universal para
braços com o desespero da ignorância, isto é, quando a todos os tempos, como se tem dito muitas vezes em seu
nossa pequena vida diária, as nossas actividades, aquilo louvor, mas corresponde exactamente a um período parti-
que corria nas nossas casas, nas nossas oficinas, no céu e cular e ao ardor duma emoção que envolve uma cultura
na natureza, quando, dizíamos nós, todas essas coisas se fra- individual e perfeitamente definida, determinada pelo tempo
clonassem em milhares de problemas - problemas dolorosos, e pelo espaço, como a sua mais íntima lei. A música de
humilhantes e irritantes - e assim a nossa curiosidade nos Palestrina seria completamente ininteligível para um Grego;
desse a conhecer que, antes de tudo, precisávamos de conhe- e, por outro lado, que impressão causaria a música de Rossini
cer a matemática e a mecânica 1) (2). A antiguidade é dema- a Palestrína ? Pode ser que a nossa moderna música alemã,
siadamente complexa para ser deveras apreciada por jovens com toda a sua preeminência - e desejo de preeminência-
estudantes. «Nada se torna mais claro aos meus olhos, de dentro em pouco deixe de ser compreendida, porque essa
ano para ano, do que o facto de que toda a Grécia, assim música derivou de uma cultura que se encontra em franca
como o antigo modo de viver, por muito simples e evidentes decadência» (2). Em segundo lugar, embora a música corres-
que nos pareçam, são, na verdade, muito difíceis de com- ponda a uma cultura particular, é sempre retardatária nessa
preender e mesmo com muito custo acessíveis; assim, a cultura. «A música é a última planta a vir à luz, aparecendo
costumada facilidade com que tagarelamos acerca dos anti- no Outono ou na estação morta da cultura a que pertence.
gos ou é uma frívola leviandade ou é um velho conceito O século XVIII - século da rapsódia, dos ideais desfeitos
hereditário da nossa irreflexão. E são estes os reinos por onde e da felicidade transitária - apenas se revelou na música
os rapazes podem vaguear! Basta: nós também por lá de Beethoven e de Rossini. O amador de sorrisos sentímen-

(') A Aurora, af. 195. (') A Aurora, sd, 195.


(') Nós, 08 Ftl&g08, aí. 182. e) Humano, D~ament.B Hul'1WrW. ii, at. 171.
84 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA
O IDEAL CULTURAL DE NIETZSCHE 85
tais bem podia dizer que toda a música realmente importante O que até aqui dissemos sobre o ideal de Nietzsche
foi um canto de cisne» (1). O mesmo pensamento se repete quanto a cultura é bastante para nos convencermos de que
em A Vontade de Dominio, quando diz que «a música é esse filósofo não era um adorador da «besta fulva». Acredi-
o último hálito de uma cultura» e). Em terceiro lugar, tava de todo o coração no valor da cultura e desejava apai-
embora a música seja o último hálito de uma cultura, xonadamente que se atingisse uma cultura mais elevada e
é também o arauto de uma cultura nova. Uma vez nas garras mais verdadeira do que a do seu tempo. Mas, ao mesmo
de uma cultura já bastante tirânica, os homens são gover- tempo, opunha-se a que se chegasse a esse resultado, porque
nados por aquilo que Nietzsche chama «o incorrecto sentir». a privava da sua base, como havemos de justificar num dos
Se desejam falar, a convenção segreda-lhes a réplica que posteriores capítulos.
hão-de dar e isso obriga-os a esquecer o que a princípio ten-
cionavam dizer; se desejam compreender-se uns aos outros,
a sua compreensão é estropiada como por encanto: dizem
dar-lhes prazer aquilo que só lhes causa desgosto e assim
continuam a preparar voluntàriamente a sua própria con-
denação. Desta maneira se transformam em criaturas abso-
luta e completamentedíferentes e ficam reduzidas ao estado
de abjectos escravos de um «incorrecto sentir» (3). Mas,
quando os acordes da músca dum mestre desabam sobre
uma humanidade assim doente e sofredora, o significado
dessa música é o «correcto sentir», inimigo de toda a con-
venção, de todo o isolamento artificial e de toda a falta de
compreensão do homem para homem. Essa música significa
o regresso à natureza e, ao mesmo tempo, uma purificação
e remodelação dessa mesma natureza» (4). A música ajuda
os homens a libertarem-se da escravatura da convenção e
eles ingressam assim num estado de «correcto sentir». E é
então que se manifesta a necessidade de uma nova cultura.

e) A Aurora, af. 195.


(') A Vontade de Dominio, i, af. 92
(") COfIrlderações IntempefltívQ.8', i, p. 14l.
(4) Considemçôe« Intempestivas, pg. 134
CAPíTULO III
A HIST6RIA DA CULTURA 87
A HISTORIA DA CULTURA slado Humano e termina com a Gaia Ciência, Nietzsche
°
volta costas à fase anterior, «período dionisíaco», e exalta
Sócrates, de forma que, para qualquer pessoa que não
estabeleça a devida distinção entre os períodos da sua
evolução Filosófica e considere todas as suas obras como
formando uma filosofia homogénea da vida, o pensamento
do filósofo mostrar-se-á, necessàriamente, eivado de incon-
sistências. Mas, se estudarmos Nietzsche à luz do seu desen-
volvimento histórico e tivermos presente o facto de que,
através de tal desenvolvimento, há um período médíd - um
período transitório de reacção em que Sócrates é exal-
tado em vez de vilipendiado - todas essas aparentes
A forma como Nietzsche inconsistências tendem a desaparecer. O primeiro período,
o da filosofia de Dioniso, reaparece no terceiro, o período
se ocupa da cultura grega tem, para nós, uma grande
importância, pois vem projectar uma luz considerável do Super-Hamem, ou - falando de outra maneira - temos
sobre o seu ideal de cultura. Além disso, permite-nos °
de reconhecer que terceiro período tem as suas raízes no
observar no seu pensamento uma uniformidade maior do primeiro. :É certo que nesse terceiro período surgem novos
que aquela que, frequentemente, lhe é imputada. Não se e mais amplos conceitos, mas nem por isso deixa de ser um
pode, por certo, negar que este filósofo é, muitas vezes, desenvolvimento do primeiro.
unilateral e exagerado nas suas asserções, mas, apesar No primeiro período, o filósofo exalta a primitiva cul-
disso, a sua filosofia está muito Ionge de ser um mero tura grega, ou seja a cultura do século VI antes de Cristo.
amontoado de inconsistências. Se ele concebeu primeira- Ao proceder assim, parte da noção que, pelo menos no seu
mente às características da verdadeira cultura e as foi depois tempo, era geral, segundo a qual o mais importante período
encontrar na primitiva cultura grega, ou se foi buscar tais da cultura grega foi o período de Pérícles, ou seja a época
noções ao estudo da antiguidade, é já, de per si, um pro- da grandeza de Atenas. Como diz Bernard Bosanquet,
blema; mas, em qualquer dos casos, esta concepção da devido ao carácter latino da Renascença, «o seu primeiro
verdadeira cultura, da sua função e da sua natureza, tal contacto com a antiguidade verificou-se no solo da Itália,
como nos aparece na terceira fase do seu pensamento, é um onde as maiores obras da Grécia, embora algumas tenham
desenvolvimento lógico do conceito por ele perfilhado na sido para ali levadas por pessoas que as adquiriram de
primeira fase, como ele o encontrou - ou julgou ter encon- qualquer forma, foram infinitamente excedidas em número
trado - exemplificado na primitiva cultura dos Gregos. por produções duma época posterior, e por cópias, lívre-
Na segunda fase, que começa com o Humano, Dema- mente multiplicadas, tanto dos originais mais antigos como
8H NIETZSCHE, FILÚSOFO DA CULTUHA
A HISTúHIA DA CULTURA 89
de outros posteriores» ('). Por isso, e por outras razões-
como, por exemplo, a natureza elos seus critúrios artísticos tão admíràvelmente idealizada como a dos primitivos mes-
- os primitivos críticos de arte tinham certas tr-udôncius tres gregos: Tales, Anaximandro, Heraclito, Parménides,
para considerar como períoelo supremo elas real ízuçõcs, não Anaxágoras, Empédocles, Demócrito e Sócrates. Todos esses
a época mais antiga, mas uma época mais rcccnt{' da arte homens são íntegros, completos, pouco comunicativos e
grega. Hirt, por exemplo, considerou o século IV como talhados dum só bloco. Há, entre a sua maneira de pensar
aquele que marca o ponto culminante atingido pela escul- e o seu carácter, uma severa coacção. São homens que não
tura grega. Mas, pondo de parte a consideração de formas vivem amarrados a qualquer convenção, porque nesse
particulares de arte, era muito natural que o períorlo depois tempo não havia classe alguma profissional de filósofos e
sábios. Considerados assim juntos, formam aquilo que
das guerras persas fosse olhado como o mais notável período
Schopenhauer, em oposição à República dos Sábios, cha-
da cultura grega. A época que viu o embelezamento de
mou a República dos Génios. Um gigante chamou outro
Atenas com maravilhosas obras de escultura, que assistiu à
através dos áridos intervalos das idades e, sem se deixarem
representação das peças dramáticas de Sófocles, que pre-
perturbar por uma desvairada e barulhenta raça de anões
senciou a hegemonia ateniense, foi naturalmente aceite
que pululam à sua volta, o sublime intercâmbio dos espí-
como a que marcava o zénite da grandeza grega e, no
ritos contínua» (1). Desta maneira, a constelação dos filósofos
tempo de Nietzsche, a cultura grega par excellence signi-
pré-platónicos - não se trata aqui de pré-socráticos - é
ficava o século V antes de Cristo. Essa maneira de ver foi, representada como um agregado de brilhantes estrelas, de
porém, posta de parte por aquele filósofo, que considerava homens eminentes, isto é, dos génios da primitiva cultura
- com ou sem razão - o século V como um período de grega.
decadência, quando comparado com século VI. O mesmo pensamento é claramente enunciado na
Por que motivo preferiu Nietzsche o século sexto ao Crítica ela Filosofia e na Vontade de Domínio (2): «Os ver-
século quinto? Uma das razões foi o facto de ele considerar dadeiros filósofos da Grécia são aqueles que vieram antes
o primitivo período da cultura grega como a época dos de Sócrates (com Sócrates alguma coisa muda). Todos eles
grandes homens e esse facto satisfaz a um dos requisitos são homens notáveis que se conservam afastados do povo
da verdadeira cultura - ser um meio para a produção do e dos costumes; são homens que viajaram; a sua rectidão
génio, isto é, do homem superior. Os grandes homens toma-os quase taciturnos; tem os olhos calmos e não des-
típicos são os filósofos pré-socráticos, os aristocratas do conhecem os negócios do Estado e a diplomacia». Quanto a
intelecto. Na sua Filosofia durante a Era Trágica dos Gre- isso, bem podemos afirmar que nem Platão nem Aristóteles
gos (1873), escreve ele: «Qualquer nação sente-se enver- «desconheciam os negócios do ..Estado e da Díplomaeía»,
gonhada, quando lhe apresentam uma plêiade de filósofos mas o ponto que Nietzsche pretende frisar é bem claro,

(') Pág. 79.


('). Htn6rla da &tética, pg. 191. (') A Vontade de Domínio. i. ai. 437.
NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTUHA
A HISTólUA DA CULTURA 91
seja ou não justa a sua concepção dos primitivos filósofos
Se os primitivos filósofos gregos representam o período
da Grécia. São homens e não meros sábios , são investiga-
realmente notável da Grécia, Sócrates e Platão representam
res e não se deixam envolver nas redes e nas malhas elo
a decadência ou o começo de decadência desse povo;
Transcendente, como aconteceu a Platão. São aristocratas,
de espírito livre e criador; procuram ver o mundo como ele
é e não olham para ele através. da bruma dourada de uma
t
1
foram eles quem atraiçoou as melhores tendências do espí-
rito grego e, por isso, são fundamentalmente anti-helénicos.
moral idealista. São essencialmente honestos, tornando-se
assim a justificação da primitiva cultura grega.

~(
«A aparição dos filósofos gregos a partir do tempo de
Sócrates é um sintoma de decadência; os instintos anti-
-helénicos tornaram-se soberanos» (i). No período primitivo
No seu ensaio sobre O Estado Grego (1871), Nietzsche da Grécia, o ideal é o espírito livre, o homem nobre e não
declara que «no caso de muitos Estados, como, por exemplo, o dialéctico.
na constituição que Líeurgo deu a Esparta, podemos des-
Instinto e Autoridade são suficientes; «não havia lugar
cortinar claramente o cunho dessa ideia fundamental do
para a dialéctica». Sócrates, contudo, introduziu o espírito
Estado, isto é, a criação do génio militar». E depois dialéctico que representa não só a revolta da razão contra
continua a estabelecer o princípio geral de que «todo o o instinto, como também o triunfo das massas populares
ser humano, em plena actividade, unicamente tem digni- sobre o aristocrata. «A ironia do dialéctico é uma das
dade na medida em que, consciente ou inconsciente, é um formas da revindicta do povo; a ferocidade dos oprimidos
instrumento do génio». Este pensamento da primitiva fase reside nas frias punhaladas do silogismo». Nietzsche pode,
de Nietzsche havia de ser desenvolvido mais tarde com a portanto, dizer que «Sócrates conseguiu triunfar sobre um
concepção do Super-Homem, que é o alvo e o mais elevado gosto mais nobre, ou seja sobre o gosto dos nobres, e a
ponto de cultura, e para cuja realização os outros homens população tira da dialéctica o seu partido». A Grécia pri-
têm de desempenhar a sua verdadeira função. No mitiva é a idade do instinto, a idade da aristocracia, a idade
Zaratrusta, - a revelação do Super-Homem Nietzsche encon- dos Tiranos; a Grécia posterior é a idade da razão, da
tra a vontade fo-rte de domínio na alma grega como expli- dialéctica, da democracia. Em vez de nobreza - o ideal
cação do génio helénico. «Tu serás sempre o primeiro e aristocrático - o conceito é divinizado e apresentado por
o mais elevado acima de todos; a tua alma, cheia de zelos, Platão como o novo ideal.
a ninguém amará, a não ser a um amigo. Foi isto que fez A grande objecção que Nietzsche opõe a Sócrates e
estremecer a alma de um Grego e assim seguiu ele o seu Platão - e aqui somos chegados ao âmago da questão-
caminho para a grandezas. «Os Gregos tomaram-se inte- é a noção que estes filósofos têm de uma moral absoluta.
ressantes e desproporcionalmente Importantes» diz Nietzsche, Negando o ideal aristocrático do instinto e a relatividade da
«porque tiveram urna legião de indivíduos superiores» ('), moral, estabelecem, corno conceitos estáveis. padrões abso-

(') N6" os FIlólogos, af. 101. (') A Vontade de Domifltio, i, af. 427.
92 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA

lutos do bem e do mal. Ensinam a imortalidade da alma, a


I A HISTóRIA DA CULTURA

doutrina do Além e a negação dos sentidos; voltam as


costas ao Mundo e preparam o caminho para o Cristianismo.
Enquanto os sofistas mantêm a relatividade da moral,
f -rei senão o Aristocrata par excellence? Não é, certamente,
a incarnação da vontade de domínio, mas Platão apresenta
excelentes razões para rejeitar a «moral» de tal domínio.
Além disso, é realmente absurdo que Nietzsche trate os
Nietzsche exalta-os. «Os sofistas eram Gregos; quando
Sócrates e Platão perfilharam a causa da virtude e da jus-
tiça, tornaram-se Judeus, ou não sei o quê. A táctica de
1
t
filósofos de quem não gosta como tartufos (não chegou ela
também a falar da «tartufaria» do velho Kant ?), porque
esses filósofos falavam de virtude num meio grego que per-
Grote na defesa dos sofistas é uma táctica falsa; desejaria
mitiu o tratamento ateniense dos Mélias. «Poder-se-â supor
elevá-los à categoria de homens de honra e moralizadores,
que essas pequenas repúblicas gregas independentes, tão
quando a sua honra seria não transigirem, por meio de
minadas pela raiva e pela inveja que voluntàriamente se
grandes palavras e virtudes, com qualquer espécie de
devorariam umas às outras, se deixassem levar por princí-
charlatanismo». Platão e Sócrates pertenceram a esse
número: - considerando o prazer do domínio como imoral,
i pios de humanidade e honestidade?» Certamente não se

não tiveram a coragem necessária para identificar a felici-


j pode supor tal coisa; mas, Se se pretender insinuar que
não é possível estabelecer princípios morais numa sociedade
dade com a vontade de domínio, ou para considerar a vir- que é muitas vezes accionada por forças não morais, então
tude como uma consequência da imoralidade, isto é, da lIma grande parte daquilo que Nietzsche afirma nas suas
mesma vontade de domínio. obras bem podia ter ficado por dizer. Este filósofo negou,
Ao declarar que Platão colocou a razão acima do ins- certamente, uma moral absoluta, mas essa negação não o
tinto, e ensinou a imortalidade da alma e o carácter estável impediu de se recusar a aceitar a humanidade tal como
dos valores transcendentes. Nietzsche teve, sem dúvida, ela é e de afirmar novos ideais. O seu ataque contra a moral
razão; mas errou, por certo, quando o condenou por essas prevalece ou cai por terra, conforme a validade ou invalidade
crenças. E como ele expressa, pela forma mais explícita, o da sua «exposição» de moral; as acusações de tartufaria, de
seu desprezo pela dialéctica, não podemos naturalmente se voltar as costas à vida, etc., são tudo coisas que o não
esperar que vá rebater os argumentos de Platão por meio podem levar muito longe.
de quaisquer argumentos contrários. Nietzsche proclama a O período de decadência, ou seja o período de raciona-
sua doutrina, fulmina os adversários e dá assim o assunto lização, reflecte-se nos poemas de Eurípedes, podendo
por liquidado. Em capítulo separado havemos de tratar das dizer-se que essa tendência é já para notar mesmo em
suas objecções contra a «moral» e, particularmente, contra Sófocles. Daí, Nietzsche colocou Esquilo acima de qualquer
a moral cristã. Mas, embora não possamos esperar que dos trágicos gregos posteriores e afirmou que a tragédia
Nietzsche ponha uma dialéctica em face de outra dialéctica. grega degenerou depois dele. Eurípides, diz Nietzsche, em
podíamos, pelo menos, esperar que ele fosse justo; no o Nascimento da Tr~édia, pode ser considerado como co
entanto, vendo os factos como eles são, reconhecemos que poeta do socratismo estéticos, cuja lei suprema é que «toda
não é. Platão acreditava na aristocracia; que é o seu filósofo- a coisa deve ser compreensível para que seja belas. Este


I
94 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTUHA

princípio do socratismo estético é paralelo à afirmação de


j
I
A HISTÓRIA DA CULTURA 95
infectada com o optimismo socrático e com a sua dialéctica,
Sócrates, segundo a qual «apenas aquele que sabe é vir-
tuoso». A tragédia de Ésquilo, na qual a tragéelia é j<Í drama
e não somente o coro dionisíaco, representa uma fusão de
I enfrenta a tragédia de Ésquilo e de Sófocles. Este
representa, sem dúvida, um passo para baixo a partir de
Ésquilo, mas Eurípides é diferente de qualquer dos seus
elementos dionisíacos e apolíneos, da lírica dionisíaca do
coro, por um lado, com o mundo-ele-sonho apolíneo ela cena
r grandes antecessores; ao pôr-se em contacto com a dialéc-

pelo outro. Díoníso (Nietzsche considerava o herói trágico


I tica optimista, mediu e «corrigiu» todos os elementos dos
~ dramas, de acordo com os princípios da estética de Sócrates.
como oríginàriamente Dioniso) fala, não pela acção de A deficiência poética e o retrocesso de Eurípides em compa-
«forças», a lírica do coro, mas como um herói épico, visto ração com Sófocles são devidos ao racionalismo do primeiro
que o épico é característico da arte apolínea. Nas tragédias e ao seu anseio pela intelegibilidade.
de Ésquilo a parte do coro é ainda muito importante e o Nietzsche não comete, sem dúvida, o erro de supor que
lirismo musical do coro é da essência da tragédia, «o que
pode ser explicado apenas como uma manifestação e ilus-
I em Eurípides não há paixão - à vista de uma obra como
a Bacchae um erro dessa natureza seria ridículo - mas
tração de estados dionisíacos, como a visível simbolização
da música e como o mundo-de-sonhos do êxtase dionisíaco. II não admite a paixão de Eurípedes como um elemento
dionisíaco. «Euripides é o actor com o coração a saltar e
com os cabelos em pé; traça o plano como pensador
Sófocles, contudo, limita consideràvelmente a esfera do
coro, «sinal importante de que a base dionisíaca da tra- socrático e executa-o como actor apaixonado. Mas nem no
gédia começa já a desintegrar-se com ele». Além disso, em traçar do plano nem na execução é um puro e simples
Sófocles, há muito mais de artista consciente do que em altista. E assim o drama de Eurípides é uma coisa ao
Ésquilo e muito menos de génio instintivo e «extático». mesmo tempo fria e ardente, capaz igualmente de gelar
Houve, portanto, uma tendência antidionisíaca a e de incendiar; por isso é-lhe impossível atingir o efeito
influenciar a tragédia antes de Sócrates e Eurípedes, mas apolíneo da epopeia, ao mesmo tempo que, por outro lado,
foi o terceiro grande trágico quem, de facto, racionalizou se desligou, tanto quanto possível, de elementos dionisíacos,
a tragédia. Em Eurípides e na Nova Comédia «uma dialéc- e agora, para poder agir inteiramente, precisa de novos esti-
tica optimista expulsa a música da tragédia com o chicote mulantes que já se não podem encontrar dentro dos dois
únicos impulsos da arte - o apolíneo e o dionisíaco. Os
dos seus silogismos e, assim, destrói a essência da mesma
estimulantes são pensamentos frios e paradoxais, em vez de
tragédia». O coro que, no modo de ver de Nietzsche, é a
intuições apolíneas, e paixões ardentes, em vez de êxtases
causa da tragédia, aparece como qualquer coisa acidental;
dionisíacos. São, de facto, pensamentos e paixões copiados
a máxima socrática de que a virtude é o conhecimento e
com grande realismo, mas que não foram por forma alguma
de que é feliz aquele que for virtuoso, reina acima de tudo.
banhados no éter da arte» (1). O drama de Eurípides
O herói é um dialéctico; introduz-se o princípio da «justiça
poética» e o deus ex machina é utilizado como necessário
C') Nascimento da Tragédia, pg. 97•
auxiliar para tal efeito. Assim, a tragédia de Eurípides,
.
'
I
96 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTUHA . .f A HISTÓRIA DA CULTURA 97
deixou, portanto, de ser caracterizado por aquela fusão de
bom e iluminado. Dissolução dos instintos». Nietzsche não
elementos dínisíacos e apolíneos que encontramos nas tra-
quer dizer que os Gregos fizeram do pessimismo uma
gédias de Esquilo e de Sófocles, para ser principalmente
fílosofía explícita e nltídamente delineada, mas sim que
caracterizado pela díulética moralizadora de Sócrates e
tinham o sentimento de que a vida é terrível, inexplicável
por um racionalismo optimista. e perigosa, de que o homem vive cercado de forças hostis
Temos, desta maneira, o optimismo contra o pessi- e de que o optimismo é uma ilusão - sentimento esse que
mismo. B à luz desta oposição que poderemos compreender lhes fora incutido pela sua concepção de l)~plÇ e pelo que
melhor o que Nietzsche entende por filosofia de Dioniso; disseram os poetas tais como Teógonis: en. ~ l o ç o Ú õ 3 t ç
e, se não tivermos tal compreensão, não poderemos também àvepwnwv. óltóaooç ~é,(,lOÇ krxeopli. (2)
entender a sua interpretação do espírito grego. Em o
Nascimento da Tragédia, Nietzsche formula a seguinte per- E Sófocles não declara ainda?
gunta: «Que seria, se os Gregos, em pleno vigor da sua
mocidade, tivessem experimentado o desejo de ser trágicos I)~ ~ÕVlXl 'tOY IX1trxVtl7. vlkli Àó''(oo' 'to a'. s1te;t <Pl7.v'ij.
e fossem pessimistas? E o que aconteceria, se, por outro ~YJVrxl ke:re&v 30e:V't'têP ~ke:t 1to,(,õ õe:óte;pcv Ólç 't1X'ltla'tl7.. (2)
lado e inversamente, mesmo na época da sua dissolução e
fraqueza, se tornassem cada vez mais optimistas, mais super- Em o Nascimento da Tragédia, escreve: «Não te
fiqiajs, mais hisfritónioos, mais desejosos da lógica e de vás daqui, mas ouve antes o que a sabedoria popular
tomarem o mundo lógico e - consequentemente - ao diz desta mesma vida, que com tão inexplicável alegria
mesmo tempo mais «alegres» e mais «científicos»? e) Na se espalha na tua frente. Diz uma antiga história que
opinião de Nietzsche, os Gregos eram pessimistas e o seu o rei Midas andou pela floresta, durante muito tempo,
pessimismo é característico da sua época de primitiva gran- à procura do sábio Sileno, companheiro de Dioniso, sem
deza. O optimismo posterior, «como a própria democracia», o poder apanhar. Quando, por fim, Sileno caiu em seu
é sintoma de um vigor em declínio. Assim, nas Notas. para poder, o rei perguntou-lhe qual era a coisa melhor e mais
a continuação da Filosofia da Idade Trágica dos Gregos desejável para o homem. Fixo e imóvel, o demónio man-
(1873), Nietzsche comenta: «O pensamento grego durante teve-se em silêncio, até que, por fim, forçado pelo rei, soltou
a idade trágioa é pessimista ou artisticamente optimista. uma estridente gargalhada e respondeu desta forma : «Oh 1
Profunda falta de confiança na realidade: ninguém se apega raça maldita de um dia, filho da sorte e da miséria, por
a um bom deus que tenha feito todas as coisas óptimas... que me obrigas a dizer aquilo que te seria mais conveniente
Sócrates começa o Optimismo, um optimismo que já não não ouvires? A melhor coisa de todas está para sempre
é artístico, com teologia e fé no bom Deus, fé no homem

(1) Te6gonis, 167..8.


f') S6focles «Oed. Cob. li2U.
98 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CUL TunA
A HISTÓRIA DA CULTURA 99
fora do teu alcance; era não teres nascido, não existires,
pessrmismo pelo que se refere à natureza do mundo, um
seres nada. No entanto, a segunda coisa melhor para ti será
pessimismo que na cultura apolínea, se encontra velado pela
morreres depressa» (1).
ilusão do mito olímpico, ilusão essa repassada de beleza e
Em face deste pessimismo fundamental, dois caminhos
quietude.
restam abertos. O primeiro será criar um mundo de sonhos,
O outro processo de que os Gregos se serviram para
um mundo artisticamente optimista, e este é o caminho apolí-
vencer o pessimismo foi o da atitude dionisíaca. No apêndice
neo; o segundo será enfrentar a natureza real do mundo,
ao Nascimento da Tragédia, Nietzsche diz-nos claramente
afirmá-la, aceitá-la, dizer-lhe «sim» - oe este é o caminho o que entende por «dionisíaco». (No próprio Nascimento da
dionisíaco. A cultura apolínea está representada na religião Tragédia esse conceito encontra-se rigorosamente influen-
do Olimpo. «Para poderem viver, os Gregos viram-se na ciado pela metafísica pessimista de Schopenhauer, metafísica
necessidade de criar estes deuses. Tratando-se de um povo essa que Nietzsche tinha há muito posto de parte, na ocasião
tão impressionável, tão veemente nos seus desejos, tão dado em que (1888) chegou a escrever as notas que foram publi-
ao sofrimento, como poderia ele ter suportado a existência, cadas como apêndice ao seu trabalho primitivo). Nesse
se esta não lhe tivesse sido mostrada nos seus deuses, culmi- apêndice diz ele que no símbolo dionisíaco atingiu-se o limite
nada pela mais alta glória? O mesmo impulso que fez surgir supremo da afirmação. «Há ali uma fórmula da mais elevada
a arte, como complemento e ooroação da existência, e como afirmação, nascida na plenitude e super-plenitude, um assen-
condição para a continuação da vida fez surgir também o timento sem qualquer reserva ao sofrimento, à culpa, a tudo
mundo do Olimpo» (2). enfim que é discutível e estranho na existência». A atitude
Homero é o poeta da cultura apolínea e «a «na'iveté» dionisíaca não deixa de reconhecer o sofrimento da exis-
homérica pode ser compreendida apenas como o triunfo COm- tíência, pois, pelo contrário, a visão do carácter real do
pleto da ilusão apolínea. O processo apolíneo de enfrentar mundo é um fundamento essencial de tal atitude. Mas o
a realidade é, assim, o caminho da beleza, o caminho da lendário Dioniso não sofreu e morreu? A atitude dionisíaca
ilusão: estende-se um véu por cima do horror que se encon- reconhece o carácter da vida, não-teológico e ateu; mas,
tra por baixo. «Os Gregos conheciam os terrores e horrores em vez de se afastar da vida para cair num pessimismo
da existência; para poderem viver, viram-se obrigados a desesperado, aceita essa mesma vida; diz sim à vida e -
interpor entre eles e tais horrores, o sonho que alvorecia no segundo a maneira de pensar de Nietzsche - diz «sim» ao
mundo do Olimpo». Schoupenhauer cita várias vezes '3S Eterno Retomo de todas as coisas. Este é o último, o mais
palavras de Calder6n: ePues el major delito deI hombre exuberantemente louco e alegre sim que se diz à vida.
es haber nacidos. Nietzsche encontra nos Gregos um igual Para se pronunciar esse sim, é necessário ter coragem
~, como condição daí derivada, é necessário um excesso
de [orça, pois precisamente na proporção em que a coragem
(') NtUdmento da Trogédia., pg. 84. ousa impelir para diante, é que, de harmonia com a medida
e) Nascimento da Tl'ogMia, Pi, 35. <la força, nos aproximamos da verdade. Ao tratar do fen6-
100 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA A HISTóRIA DA CULTURA 101
meno dionisíaco no mundo histórico da Grécia (no Nasci- sam da arte e precisam de olhar tràgicamente o fenómeno da
mento da Tragédia), Nietzsche representa esta coragem e vida sob o seu aspecto interior e exterior - e há aqueles
esta força, necessárias para uma plena e alegre aceitação que sofrem de uma vitalidade reduzida». O homem dioni-
da vida, como dimanando da intoxicação e da exaltação , síaco é «a criatura mais rica, transbordando vitalidade» (de
lírica. «E sob a influência da poção narcótica, de que nos -~
j
acordo com Nietzsche é sobretudo o cristão que sofre de
falam os hinos de todos os homens primitivos e de todos "
vitalidade reduzida). Em Assim Falou Zaratrusta, Zaratrusta
os povos, ou devido à poderosa aproximação da Primavera, I (Nietzsche) encara o Eterno Retorno com desgosto e repu-
1
que penetra toda a natureza com alegria, que despertam

I
gnância, visto que envolve infinitas repetições da sua pr6pria
estas emoções dionisíacas e que vão aumentando até o subjec- vida - isto é, da de Nietzsche - sem que nenhuma delas
tivo se esvair num completo esquecimento de si próprio» C). seja demasiadamente feliz; mas no último capítulo da ter-
Esta exaltação dionísica, oriental na sua origem, mas tem- ceira parte, profere ele o seu mais pleno sim: «Oh! Como
perada nos seus excessos pelo seu espírito apolíno, tendia J não hei-de eu desejar a Eternidade, como não hei-de desejar
para o triunfo na alma do grego apolíneo. «As musas das 4 o nupcial anel dos anéis, o anel do retorno? Nunca encontrei
artes da eappearances empalideciam perante a arte que, na -i a mulher de quem desejasse ter filhos, a não ser desta mulher
sua intoxicação, falava a verdade, e a sabedoria de Sileno I que amo - porque eu amo-te Eternidade, porque eu amo-te,
gritava «Desgraça I Desgraça I» contra os alegres olímpicos.
O Indevido revelava-se como sendo uma verdade e aquela
contradição que resultava da felicidade nascida da mágoa
I ó Etemidode !» Esta é a atitude dionisíaca: o homem dioni-
síaco, na exuberância da sua vitalidade, afirma como ela é,
afirma-a como a Vontade de Domínio, e afirma o Eterno
declarava-se à margem do coração da natureza. E assim, Retorno.
sempre que o dionisíaco prevalecia, o apolíneo era posto a A atitude dionisíaca é, assim, uma atitude positiva, uma
descoberto e aniquilado». (No entanto, o Estado dórico e a atitude de plena aprovação e aceitação, e Nietzsche conside-
arte dórica eram um permanente campo de batalha dos rava-a como um autêntico triunfo sobre o pessimismo da não-
apolíneos). -afirmação, ou seja da resignação. « A tragédia, longe de ter
O fenómeno de intoxicação é, sem dúvida, meramente contribuído para o pessimismo dos Gregos, como afirma
acidental para o antigo culto dionisíaco, mas o pensamento Schopenhauer, deve, pelo contrário, ser considerada como o
central da atitude dionisíaca - a plena aceitação da vida seu categórico repúdio e condenação. O dizer sim à vida,
tal como ela é - foi consistentemente mantido por Nietzsche incluindo mesmo os seus mais estranhos e terríveis problemas,
no desenvolvimento da sua filosofia. Assim, em Nietzsche o desejo da vida, rejubilando com a sua própria ínexauríbíli-
contra Wagner, lemos que chá duas espécies de sofredores : dade no sacrifício dos seus mais elevados tipos - eis o que
aqueles que sofrem de um excesso de vitaliilode, que preci- eu chamei Dionisíaco» (1). Se o pessimismo for tomado como

(') Na«:4mento da Tragédia, l'i. 26. (') Cr~ doo, tdolos. PIl. 119·liO.
I,

102 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA i" A HISTÓRIA DA CULTURA 100


equivalente da não-afirmação, então, sem dúvida, a atitude i estranhas e terríveis coisas da vida estavam presentes na
dionisíaca não é pessimista; mas, se o ateu Weltanschauung j antecâmara do seu espírito, projectando uma sombra opaca
for - como mais certamente é - fundamentalmente pessi- sobre a existência. Este ponto de vista ganhou terreno desde

I
mista, então a atitude dionisíaca, tal como pintada por N íet- então, mas Nietzsche merece crédito por o ter mantido num
zsche, não representa qualquer triunfo verdadeiro sobre o tempo em que era corrente a noção oposta a respeito dos
pessimismo. Gregos. Depois, muito há a dizer quanto ao contraste que
Na forma como se ocupa da cultura grega, Nietzsche ,. ele estabelece entre o esforço dionisíaco e o apolíneo na
emite, por certo, opiniões cuja verdade é, pelo menos, muito cultura grega. Em terceiro lugar, concordamos, sem dúvida,
duvidosa. Assim, quando afirma que a «medida» apolínea com Nietzsche, em grande parte, pelo que se refere ao seu
libertou o grego dionisíaco da droga dos horríveis feiticeiros juízo sobre os méritos comparativos dos grandes trágicos.
da sensualidade e da crueldade, não tem provàvelmente ra- Quem 'estaria preparado para alinhar Eurípedes à frente de
zão. Além disso, toda a sua exaltação da Grécia primitiva à Esquilo ? Além disso, a maneira de ver a cultura grega como
custa da Atenas de Pérícles (Atenas trazida para o reino do uma unidade artística, comparada com a cultura modema,
racionalismo e da especulação) é unilateral e exagerada. As não unificada, uma cultura de bazar de curiosidades, não
primitivas filosofias gregas conduzem e preparam o caminho deix~ de ser possuída de valor e de verdade. Corno ele
para a filosofia platónico-aristotélica e, como historiador da afirma, os Gregos foram buscar muitos elementos da sua
filosofia, não se pode aceitar o facto de Nietzsche ter conde- cultura a outros povos, mas «nem por isso eles se limitaram
nado Sócrates e Platão. A filosofia de Platão, sejam quais a adornar-se e enfeitar-se com o que haviam pedido empres-
forem as suas faltas, representa um avanço imenso sobre as tado, como fizeram os Romanos».
cosmologias pré-socráticas; e - sob o ponto de vista pessoal Na vida grega, principalmente no período mais antigo,
- que prova será mostrar que Platão era menos homem do Nietzsche encontrou uma cultura essencialmente aristocrá-
que, por exemplo, Tales? (1) Afinal de contas, Tales teorizou, tica, a cultura do génio, e na atitude dionisíaca perante a
como fizeram todos OS pré-socráticos. No entanto, e apesar de vida encontrou ainda uma vigorosa aceitação dessa vida tal
exageros deste tipo, apesar de erros históricos e apesar de como ela é. Para ele, então, a cultura grega permaneceu
inexactidões e de afirmações arbitrárias, a forma corno Niet- sempre como a fina flor do passado, um passado que ele
zsche trata a cultura grega não deixa de ter valor. Por um desejava ver aproveitado e desenvolvido no futuro.
lado, trouxe a lume a ridícula noção de que os Gregos eram A cultura grega podia ter produzido grandes frutos, mas
optimistas e despreocupados filhos do Sol, e afirmou que as foi destruída, devido primeiramente às guerras de extermínio
entre os Estados e depois devido à conquista estrangeira.
Aparte as causas inerentes à própria cultura, tais como as
consideradas em relação com Sócrates, os políticos foram.
(1) De qualquer forma, Platão é um dQS maiores filósofos de
aos olhos de Nietzsche, a ruína da Grécia. Ele refere-se. sem
todos os tempos e aqueles que, CC'IIlO Constantino Ritter, o consideram
O fil6soEo não estãp de forma alguma propondo um absurdo. dúvida, em elevados termos, à polis grega, mas também
104 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA
A HISTóRIA DA CULTURA 105
aponta o perigo da vida política na Grécia. Assim, «Esparta
É interessante ler o comentário de Nietzsche sobre a
foi a ruína de Atenas, na medida em que compeliu a mesma
falência política final da Grécia. «A falência política da Gré-
Atenas a voltar toda a sua atenção para a política e a actuar
cia é a maior falência da cultura, porque ela deu origem à
como uma coligação federal» (1). De resto, afirma que
atroz teoria de que a cultura não pode ser continuada, a
a influência da cidade grega não foi de forma alguma
não set que estejamos armados até aos dentes» (i). Apesar
sempre favorável à cultura, Num aforismo intitulado O De-
senvolvimento do Espírito Receado pelo Estado, escreve ele: de toda a sua afirmação da Vontade de Domínio, Nietzsche
«A polis grega, como todo o poder político organizador, foi não tinha qualquer ilusão quanto à necessária ligação entre
exclusiva e desconfiada pelo que se refere ao desenvolvi- o poder militar -e a supremacia política, por um lado, e à
mento da cultura , o seu poderoso impulso fundamental eminência cultural pelo outro. Basta-nos ler as suas obser-
parecia quase sõmente ter sobre ela um efeito paralisador vações sobre o Império Alemão pelo que se refere à cultura
e obstrutivo. Toda a história e todo o aperfeiçoamento inte- para verificarmos esse facto. E quando ele fala, como falou,
lectual estavam fora da esfera da cultura; a educação imposta do flagelo que foi para o resto da Grécia a supremacia
pelas leis do Estado tinha em vista conservar todas as gera- política de Atenas, sob o ponto de vista cultural- opinião
ções num único grau de desenvolvimento. Também Platão, que não devemos perfilhar sem uma considerável reserva-
mais tarde, desejava que acontecesse o mesmo no seu Estado pode bem ter sido na mente, como paralelo, a vitória
ideal. Apesar da polis, a cultura desenvolveu-se da seguinte' militar da Alemanha no seu tempo. Não foi ele próprio que
forma; indirectamente, por certo, e contra a sua vontade, a disse que «sempre que a Alemanha estende o seu domínio,
polis prestava o seu auxílio, porque a ambição dos indivíduos arruína a sua cultura» ?
a tal respeito era estimulada ao máximo, de forma que, tendo Nietzsche, naturalmente, não alimentava para com Roma
uma vez traçado o caminho do desenvolvimento intelectual, o mesmo sentimento que experimentou para com a Grécia,
seguiam-no até ao mais afastado extremo. Por outro lado, embora, quando põe em contraste a cultura greco-romana
nenhum apelo se deve fazer ao panegírico de Péricles, por- com a sua bête noire, o Cristianismo, não deixe dúvidas sobre
que ele foi apenas um grande sonho optimista acerca da qual preferia. Vimos já como ele afirmava que os Romanos,
suposta conexão necessária entre a Polis e a cultura ateniense; contràriamente ao que faziam os Gregos, «se adornavam e
imediatamente antes que a noite caísse sobre Atenas (a praga enfeitavam unicamente com aquilo que pediam emprestados
e o desmoronamento da tradição), Tucídides fez esta cultura - uma crítica provàvelmente justa pelo que se refere ao
brilhar mais uma vez como um último reflexo transfigurador, Império Romano, essa magnificente e cosmopolita amálgama
para apagar a lembrança do dia nefasto anterior» (2)' - apesar da sua unidade política e jurídica.
O filósofo distingue o «período puramente produtivo»

(I) N6s. os Filólogos, af. 123.


(2) HUm4no, Demasiodamente HU11UL1IC, íf. af. 474. (l) Nós, os Fil6l0g00, ai. 123;
106 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTUHA A HISTÓRIA DA CULTURA 107
da cultura antiga - isto é, o grego, especialmente a primitiva aristocratas; nunca existiu no mundo uma nação mais forte
cultura grega - cl'e toda a cultura romano-alexandrina, e 'e mais aristocrata, nem nunca se sonhou com ela; cada uma
declara que a resistência alemã ~l antiguidade «só se justifica das suas relíquias, cada uma das suas inscrições encanta-nos
no caso da cultura romanizada, porque esta cultura, mesmo ,f e permite-nos que possamos adivinhar o que é que essa
nesse tempo, era um declínio de alguma coisa mais profunda inscrição significa» (1). Além disso, quando chega à questão
e nobre» (1). Mas, embora não queira admitir a cultura do estilo, Nietzsche prefere definidamente os Romanos aos
J
heleno-romana como o apogeu da antiguidade, ele afir- ./ Gregos. «Eu não estou reconhecido aos Gregos por qualquer
;
ma que a Grécia e Roma se completam mutuamente. coisa igual a tão fortes impressões; e, para falar francamente,
«Há duas espécies de génios: uma que, engendra e procura eles não podem ser para nós o que são os Romanos. Não se
engendrar, e outra que da melhor vontade deixa que a fruti- pode aprender com os Gregos - o seu estilo é demasiada-
fiquem e dá depois à luz. E igualmente, entre as nações privi- mente estranho e é também demasiadamente fluído para ser
legiadas, há aquelas nas quais se desenvolveu o problema da imperativo ou para ter o efeito de um clássico. Quem alguma
maternidade e a secreta tarefa de formar, amadurecer e vez aprendeu a escrever com um Grego? Quem alguma vez
aperfeiçoar - os Gregos, por exemplo, foram um povo desta o aprendeu sem os Romanos?» (2).
natureza, como são também os Franceses - e há outras que O grande inimigo da Antiguidade foi - segundo Niet-
têm de frutificar e tornar-se a causa de novos modos de vida, zsche - o Cristianismo. O Cristianismo é hostil à vida-
como os Judeus, os Romanos e - pergunta-se com toda a volta as costas à vida - e assim destruiu a antiga cultura,
modéstia: como os Alemães? - nações torturadas e desvai- exactamente porque era através da antiga cultura que a vida
radas por febres desconhecidas, irresistivelmente arrastadas florescia. O cristão é um decadente e actua por uma forma
para fora de si próprias, apaixonadas e suspirando por raças desintegradora, tóxica e estíolante, como uma sanguessuga.
estrangeiras (para o tal «deixem que elas sejam frutifícadass) «O Cristianismo foi o vampiro do imperium Romanum s-«

e até pelo seu domínio, como qualquer coisa cônscia de estar numa noite estilhaçou a estupenda realização dos Roma-
cheia de força geradora e, consequentemente, predestinada noss (3). O Império Romano, «a mais magnificente forma de
«pela graça de Deuss. Estas duas espécies de génio pro- organização, sob difíceis condições, que alguma vez foi reali-
curam-se uma à outra como homem e mulher, mas a verdade zada e comparado com o qual tudo o que o precedeu e tudo
é que também se enganam mutuamente, como homem e o que se lhe seguiu é simples manta de retalhos, obra de
mulher» (2). fancaria e diletantismo» foi destruído sem que ficasse pedra
Nietzsche reconhece, portanto, o génio de Roma, e na sobre pedra, até que mesmo os Teutões e outros labregos
Genealogia da Moral fala dos Romanos como «fortes e

(I) Genealogia da MO'ral, pg. 54-5.


(2) Anticristo, pg. 118.
(1) N6s, 08 Fil6logos, af. 40-1.
(S) Anticristo, pg. 222.
(2) Para Além do Bem e do Mal, af. 248.
108 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
A HISTóRIA DA CULTURA 109
pudessem tornar-se senhores dele» (i). A organização romana
senhor! TUM quanto era digno de lástima, tudo quanto se
era suficientemente firme para poder resistir a personagens
se via possuído dos mais ignóbeis sentimentos, todo esse
corruptas e a maus imperadores; «mas não foi bastante firme
mundo de almas judaicas se viu, dum momento para outro,
para resistir a uma corrompida forma de corrupção, ou seja
elevado à supremacia. Basta ler qualquer dos agitadores
ao Cristianismo». Os cristãos destruíram a organização aris-
cristãos - Santo Agostinho, por exemplo - para podermos
tocrática de Roma, enfraquecendo o sentimento da vida, verificar, para podermos farejar quais foram os desprezíveis
sobre-impuseram a sua religião dum outro mundo, pregaram personagens que, neste movimento, ficaram a ocupar o lugar
o ascetismo e uma moral que suga à vida toda a sua força superior. Enganar-se-à redondamente quem supuser que os
e vigor. E assim foi baldado todo o trabalho do antigo mundo. promotores da agitação cristã revelaram qualquer falta de
Este trabalho havia sido preparatório, atendendo a que os compreensão; não, esses velhos e queridos pais da Igreja
Gregos e Romanos tinham estabelecido todos os pré-requi- eram espertos até ao ponto da santidade. O que lhes falta
sitos de uma cultura erudita - método científico, « grande é alguma coisa completamente diferente. A natureza des-
e incomparável arte de bem ler, as ciências naturais, a mate- prezou-os - esqueceu-se de lhes dar o modesto dote dum
mática, a mecânica, etc.- que teriam formado a subestrutura decente, respeitável e limpo interesse. Aqui, para nós, eles
de um edifício duradouro. Mas este trabalho de preparação nem sequer são homens. Se o Islão despreza o Cristianismo.
foi posto de parte pelo Cristianismo e privado do seu signifi- tal facto está justificado, milhares de vezes, visto que O
cado. Tudo isto foi em vão J Numa noite converteu-se numa Islão pressupõe homens» (').
simples recordação! Os Gregos I Os Romanos I A nobreza Os pontos de vista de Nietzsche a respeito do Cristia-
instintiva, o gosto instintivo, a pesquisa metódica, o génio da nismo serão discutidos no capítulo sobre o Anticristo; no
organização e da administração, a fé, a vontade do futuro entanto devemos frisar que este filósofo desprezou o lado
da humanidade, o sim a todas as coisas materializadas nO negro da civilização romana e o cancro que a corroía inte-
imperium romanutn, tomadas acessíveis a todos os sentidos, riormente. (~ preciso, contudo, reconhecer que fixa a sua
o grande estilo já não manifestado na simples arte, mas na atenção sobre esse aspecto na ocasião em que diz: «Se
realidade, na verdade e na vida - tudo soterrado numa pensarmos na Roma de Juvenal, nesse venenoso sapo com
noite, sem que tal facto fosse devido a qualquer catástrofe olhos de Vénus, compreendemos o que significa fazer o sinal
natural I Tudo espezinhado até à morte, não por Teutões ou da cruz diante do mundo, honramos a silenciosa comunidade
por outros vândalos de pés pesados I Não conquistado, mas cristã e estamos gratos por ela ter asfixiado o império greco-
simplesmente afogado em sangue! Tudo destruído por uns -romano», Mas logo a seguir restringe esta afirmação, decla-
vampiros audaciosos, furtivos, invisíveis e anémicos! A sede rando que «para as novas e recentes nações bárbaras, o Cris-
recalcada da vingança, da miserável inveja, convertida em tianismo é um veneno» (~). No meio do seu ódio contra o

(') Anticristo, pg. 225-6.


(") Anticristo, pg. 221. (2) Hu,1J1Q.IU}, Demtl$iadameR'k HumclIIO, M. aforo 224.
110 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA A HISTORIA DA CULTURA 111
Cristianismo, Nietzsche pretende desprezar o facto de que de salvação», e que a chegada de instituições futuras havia
o império romano, tendendo já de per si para a dissolução, de lançar no esquecimento «esse protótipo fantástico - a
havia de desaparecer - com Cristianismo ou sem Cristía- Igreja Católica» ; mas acaba por verificar que alguma coisa
rrísmo. Além disso, a exaltação dia oultura greco-rornana há de admirável no carácter universal da Igreja. Além disso,
acima da cultura cristã depende, para ser válida, de se pro- a Idade Média foi o período das grandes paixões, manifes-
var a não existência do transcendente e sobrenatural, e a não tando uma largueza de alma que se não pode observar nem
existência de qualquer vida mais alta do que a vida natural, na Antiguidade nem no mundo moderno. «Nunca houve
pois os cristãos só podem ser chamados «inimigos da vida» no uma maior capacidade da alma nem aferida por maiores
caso de a vida sobrenatural ser ficção e ilusão. Foi isto o que padrões». Muitas vezes uma pessoa aliava em si mesma «a
Nietzsche pressupôs, mas que nunca tentou provar. Nem o sensualidade física primitiva das raças bárbaras e os olhos
podia fazer. Uma conscienciosa leitura da História mostra cheios de vida espiritual, sempre vigilantes e reluzentes,
que Roma foi, sem dúvida, uma preparação, mas uma prepa- dos místicos cristãos». Se um homem fosse possuído duma
ração para o Cristianismo, e que o próprio Cristianismo, lon- paixão, a queda seria mais funda do que nunca fora antes.
ge de ser uma negação da vida, representa uma nova irrupção «Nós, os homens modernos, podemos estar contentes por
de vida, duma vida que vem do alto, duma vida que nobilita verificarmos que, neste ponto surremos uma perda» (1).
- sem negar e sem destruir - o que a vida natural tem de Mas, se Nietzsche encontra alguns pontos na Idade
melhor. Média que lhe merecem um comentário favorável, o seu
Possuído de tal opinião acerca do Cristianismo, nunca juízo final sobre a cultura medieval cristã é certamente um
poderíamos esperar que Níezsche visse com bons olhos a juízo adverso. No seu ensaio sobre O U80 e Abuso da
cultura medieval cristã. No entanto, encontrou nela algumas H istót.ia, refere-se ele ao medieval memento mori e eao
coisas boas. «A Idade Média apresenta na Igreja urna insti- desespero que o Cristianismo traz no seu coração pelo que
tuição com um fim absolutamente universal, envolvendo se refere a todas as futuras idades da existência terrena;
toda a humanidade, um fim que, além disso e presumida- e noutra obra fala do efeito debilitador que a primitiva
mente, dizia respeito aos mais altos interesses do homem; Igreja medieval teve sobre o «Dobre Germano». «Nos pri-
em comparação com ele, os fins dos Estados e das Nações mitivos anos da Idade Média, durante os quais a Igreja foi
que a história modema apresenta causam uma penosa mais distintamente e acima de tudo uma ménagerie, os mais
impressão: parecem insignificantes, baixos, materiais e de belos exemplares de «caça grossa» foram perseguidos em
todas as direcções --e os nobres Germanos - por exemplo
restrita extensão» (l). É certo que depois continua a dizer
- foram aperfeiçoados». Mas que ficou a parecer, depois
que esta «universal instituição correspondia a necessidades
disso, esse alemão «aperfeiçoado», que havia sido atraído
simuladas e capciosamente fomentadas, como a necessidade

(2) O Vagabundo e a Sua Sombra, aforo 222.


(1) HunuJIlO, Dernosiodamente Humano, i, aforo 476.
112 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA
A HISTORIA DA CULTURA 113
para o mosteiro? Ficou a parecer uma caricatura de homem,
Ora, é inegável que a cultura maometana da Espanha
um autêntico aborto. Tornara-se um pecador, foi engaiolado
foi, sob o ponto de vista material, uma cultura mais rica
e ficou aprisionado por trás duma multidão de noções
e mais variada do que a da contemporânea Europa cristã,
aterradoras. E hi estava ele, digno de lástima, doente, mau
a França e a Inglaterra, por exemplo. Mas há mais altos
até para si próprio, cheio de ódio contra os instintos da
valores a considerar. E não é uma pergunta oportuna querer
vida, cheio de suspeitas no que se referia a tudo quanto
saber se a conquista cristã dos Mouros não foi, na reali-
era ainda forte e feliz. Em resumo: era um «cristão». Em dade, a vit6ria duma cultura vigorosa, jovem e crescente
termos fisiológicos : numa luta com um animal, o único pro- sobre uma cultura já amadurecida em excesso e em franca
cesso de o tornar fraco é tomá-lo doente. A Igreja com- decadência? A cultura moura, no seu apogeu, no seu
preendeu isso e arruinou o homem tomando-o fraco. No período de tolerância, de filosofia e de ciência foi compara-
entanto, afirma que o «aperfeiçoou» (1). tivamente de curta duração; não foi, de forma alguma,
Esta é, sem dvida, a principal objecção de Nietzsche devido exclusivamente ao Cristianismo que ela desapare-
contra o Cristianismo, isto é, o seu efeito enfraquecedor ceu. Pelo contrário: os elementos «mais macios», mais
e a sua pretensa atitude negativista perante a vida. Foi em humanos, mais esclarecidos, mais tolerantes, e mais culti-
virtude de esta característica que o Cristianismo dirigiu os vados- esses elementos que iam compor a cultura dos
seus ataques contra a cultura maometana da Espanha e a Mouros, como Nietzsche a compreendeu - tendiam a
espezinhou até à morte, e que «os cruzados moveram a submergir-se perante as tendências mais duras e menos
guerra contra alguma coisa perante a qual lhes teria sido cultivadas no mundo maometano e, exactamente como a
mais conveniente rojarem-se por terra - uma cultura ao cultura romana tendia para uma autodestruição, o mesmo
lado da qual mesmo o nosso século XIX parecerá muito aconteceu com a cultura dos Mouros. Amadureceu em
pobre e muito «senil». O Cristianismo destruiu a colheita excesso, tornou-se caduca _e caiu como uma presa fácil do
que n6s devíamos ter ceifado d~ cultura da Antiguidade e acanhado espírito do fanatismo maometano. Não queremos
mais tarde destruiu também a nossa colheita da cultura do desculpar todos os feitos cristãos pelo que se refere aos
Islão. O admirável mundo maometano da cultura espanhola, Mouros, mas temos de reconhecer que a vitória do Cris-
que está mais intimamente ligado a nós e que atrai mais tianismo foi a vit6ria daquela cultura que estabeleceu os
o nosso sentir do que Roma ou a Grécia foi espezinhado 1j alicerces de tudo quanto se pode considerar de valor na
até à morte (não sei por que espécie de pés), porquê? j cultura da Europa. Além disso, os Cristãos chamaram a si
Porque deveu a sua origem a instintos nobres e humanos, uma boa porção da herança recebida dos Mouros e muito
porque disse sim à vida. mesmo a essa vida tão cheia de
raras e refinadas luxúrias que era a vida dos Mourosb (2).
I a valorizaram. Basta-nos lembrar que foi principalmente
através das fontes árabes que a metafísica de Aristóteles
chegou até ao Ocidente cristão. A cultura medieval do
(I) Crepúsculo cW$ ldolas, pg. 45-6. século XIII foi um período de intensa actividade intelectual
(') Anticristo, pg. 226. -lembremo-nos de S. Boaventura, de Santo Alberto o
a
114 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
A HISTÓRIA DA CULTURA 115
Grande, de S. Tomás de Aquino e de Dante - e foi na
existente e retardou, durante séculos, o natural desenvolvi-
Idade Média, principalmente sob a influência da Igreja
mento desse país. Se as tribos germânicas se tornaram um
Católica, que a Europa se tornou um campo cultural mais
factor que contribuiu para a civilização europeia, não foi
ou menos unificado e articulado. Os valores espirituais e
simplesmente porque essas tribos fossem «jovens» e «vigo-
culturais pelos quais estamos lutando hoje são uma herança rosas», mas porque esses. vigorosos elementos estavam cristia-
desse grande período medieval de civilização europeia, nizados. E, se desde então eles se tornaram uma ameaça
embora nem sempre reconhecidos como tais; e, ao desafiar para a cultura europeia, foi, em grande parte, porque se
o Cristianismo e a Igreja Católica, Nietzsche está a desafiar encontravam insuficientes subordinados à disciplina cristã
aqueles mesmos factores que tomaram possível a cultura e latina.
europeia, aqueles mesmos factores cuja negação nos levará, Certas pessoas cultas dos nossos dias recusam-se a admi-
não a uma mais elevada cultura, mas sim ao niilismo. Se a tir essa rígida dicotomia entre a Idade Média e a Idade
cultura europeia baquear no futuro, será porque o Cris- Moderna, noutro tempo tanto em voga. Tais pessoas pro-
tianismo não conseguiu infiltrar-se na estrutura política e curam antes realçar o facto de que a Renascença, sob muitos
social da Europa. aspectos, foi preparada dentro dos últimos tempos da Idade
E extremamente duvidoso se a cultura maometana da Média. Não podemos, portanto, juntar-nos a Nietzsche
Espanha, mesmo que fosse deixada entregue a si mesma quando ele considera a Renascença como, essencialmente,
pelo Cristianismo, teria progredido ou teria permanecido um ataque ao Cristianismo. Na sua opinião, a Renas-
no nível que chegou a atingir; mas, seja como for, quando cença foi um ataque ao Cristianismo, um ataque em
os Muçulmanos tentaram, não só subjugar a Espanha, mas que os valores nobres tiveram de ser entronizados e, devido
também atravessar os Pirinéus e subjugar a Europa ociden- a isso, o Cristianismo varrido para longe. Tal ataque mostrou
tal, foram uma ameaça para todo o futuro da civilização todos os sinais de ser bem sucedido - não sucumbiu a pró-
europeia. Na verdade, que foi que produziu a unidade pria Sé Apostólica perante o Humanismo da Renascença?-
europeia? Foi a Fé comum, essa Fé comum que originou quando Lutero, o «monge maldito» restabeleceu a Igreja,
uma comunidade fundamental de atalaia e de cultura. Foi atacando-a em nome do Cristianismo. Lutero começou a
a Igreja, sob o comando e a orientação do Papado, a Igreja Reforma, a Reforma ocasionou a Contra-Reforma e assim
em cuja esfera vamos encontrar os centros da educação, da a Renascença faliu. «A Renascença converteu-se assim num
salvação pública e-- em grande parte - da arte e da lite- acontecimento sem significado ou seja num grande em vão!»
ratura, que conservou a cultura latina do Ocidente, que Ora, isto é inteiramente falso: a Renascença, como tal, não
a amoldou aos ideais cristãos e que gerou uma civilização foi de forma alguma em vão; teve um efeito que se reflectiu
especificamente cristã e europeia. Se quisermos ver o que na Europa e o que nela havia de bom foi conservado.
a vitória de raças «vigorosas) sobre o Cristianismo produz A Reforma protestante destruiu, sem dúvida, a unidade reli-
na prática, bastará olharmos para a invasão mongólíca da giosa da Europa, mas a Renascença italiana, juntamente
Rússia na Idade Média,que destruiu a jovem cultura ali com os últimos movimentos culturais, filosóficos e clentlfi~
116 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA A HISTóRIA DA CULTURA 117
manteve-se e até contribuiu para tomar mais profunda uma origem francesa. O exemplo mais frisa~te é o da senhora
unidade intelectual e cultural na Europa, tanto quanto essa Cosima Wagner que é, de facto, a mais decisiva voz em
unidade fosse compatível com a desunião religiosa. Houve, assuntos de gosto que tenho ouvidos (1). Depois fala com
sem dúvida esforços anticristãos e exclusivamente huma- aprovação de Moliêre, Comeille, Racine, Bourget, Guy de
nistas na Renascença; mas, se tais esforços tivessem ficado Maupassant, Stendhal, etc. Em Nietzsche contra Wagner
vitoriosos e não tivessem sido batidos pela Igreja, longe de lemos também: «Mesmo nos tempos presentes, a França é
se verificar uma vitória da cultura, ter-se-la verificado uma ainda o refúgio da cultura mais intelectual e mais refinada
vitória das forças que desagregam a cultura - uma vitória da Europa, continuando a ser a suprema escola do gosto>.
que, felizmente, foi de qualquer forma retardada. O huma- A França é o país do requinte intelectual, do gosto, dos ar-
nismo puro vem a acabar, inevítàvelmente, num barbarismo tistas com uma universal cultura literária. Nietzsche aponta
sem alma e numa tirania mecânica, porque o homem é o «três coisas de que os Franceses se podem ainda orgulhar,
vassalo da cultura e não é verdadeiramente homem, a não como sendo uma herança e uma propriedade sua e como
ser que seja, ao mesmo tempo, mais-do-que-homem. Há um testemunho da sua antiga superioridade intelectual na
homem ancorado no sobrenatural e há outro homem deca- Europa». Essas. três coisas são: em primeiro lugar, «a capa-
dente, degenerado e déraciné em todos os sentidos; o homem cidade para a emoção artística, para a devoção pela forma,
puramente enaturals é uma ficção. Entweder-Oder, escolhe e para isso inventaram, a par de muitas outras, a expressão
o teu caminho: não há meio termo. Pode parecer, em dado l' ati pour l' art ; em segundo lugar, a sua cultura, antiga, de
período da história, que há meio termo, mas isso é uma múltiplos aspectos e moralista, em virtude da qual vamos
ilusão. Se estabelecerdes as premissas, qualquer outro, por encontrar, geralmente, nos insignificantes, romancistas dos
fim, tirará a conclusão. Os humanistas puros, antí-superna- jornais e nos casuais frequentadores dos bulevares de Paris,
turalistas, semearam os ventos e nós estamos colhendo as uma sensibilidade psicológica e uma curiosidade de que se
tempestades. não tem qualquer concepção na Alemanha; em terceiro
Pelo que se refere à modema cultura alemã, vimos já lugar, há, no carácter dos Franceses, de norte a sul, um
qual era a opinião de Nietzsche. A cultura alemã não foi equilibrado e bem sucedido poder de síntese, que os faz
uma cultura vital, não foi uma criação genuína e original nem compreender muitas coisas e lhes. impõe muitas outras que
teve qualquer unidade artística. Foi uma mistura de diversos um Inglês nunca pode compreender» (2).
estilos e esteve na dependência da França, tanto antes como Examinámos brevemente o passado. Quais são os dese-
depois da guerra franco-prussiana. Que pensava então Niet- jos de Nietzsche, quanto 'ao futuro? A sua esperança
zsche da cultura francesa? «Acredito apenas na cultura quanto ao futuro reside, como sempre, na vigorosa afirma-
francesa e considero um equívoco o mais que na Eu-
ropa se denomina a si próprio eeulturas. Ainda não tomei a
espécie alemã em consideração... Os poucos exemplos de ('} Ecce Homo, pg. 37-8.
alta cultura que tenho encontrado na Alemanha são todos de- (2} Para Além do Bem e cJ.o Mal, aforo 254.
118 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA CAPíTULO IV

ção da vida, tal como ela é (isto é, como Nietzsche a vê) e o SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOM/NIO
na produção do génio, do Super-Homem. Como condição
para o aparecimento do Super-Homem, prega ele uma
Europa unida, uma cultura europeia unificada --embora,
ao mesmo tempo, negue o indispensável alicerce des-
sa cultura, que não é outro senão a simples Fé sobrena-
tural. Se os países da Europa têm de ser unificados, tal j
unificação há-de ser feita por meio de alguma coisa estável,
permanente, garantida, que transcenda todas as divergên-
i
cias e todos os factores centrífugos, qualquer coisa que,
vinda de fora - ou, antes, de cima - provocará, se lhe for
permitido lançar raízes, um desenvolvimento harmónico de
cultura, onde as coisas mais variadas - mas legítimas - não
são condenadas nem sufocadas (como estão sempre sujeitas
a ser sufocadas num sistema não religioso, contràriamente
o tim da cultura, de acordo
com Nietzsche, é a produção do génio; é o génio, o grande
ao que muita gente imagina), mas sim estimuladas, harmo- homem, que dá sentido à vida. Para ele, a ideia de
nizadas e enriquecidas pela sua inclusão num todo comum que a cultura tinha em mira produzir uma multidão de
e pela sua submissão a uma influência espiritual também mediocridades era uma ideia que ° desalentava e lhe
comum. Tal coisa não pode ser outra senão a que primeira- repugnava. Os apologistas. de tal ideia podiam apelar para
mente produziu na Europa uma unidade-na-diversidade, ou o princípio de «a maior felicidade para o maior número»,
seja a Fé da Igreja Católica Romana. aliando-se aos utilitaristas. Mas o princípio utilitário é,
certamente, ambíguo, porque - o que é felicidade? Se feli-
cidade significa um estado de contentamento burguês, um
estado em que o homem - o homem vulgar - tem todo o
estímulo para imitar o porco que chafurda contente no
atoleiro (não estou agora a falar de eímoralidadess), então
temos certos motivos para simpatizar com a repugnância de
Nietzsche. A vida humana é uma coisa misteriosa e, sob
certos aspectos, terrível (e não precisamos de um pregador
religioso para nos dizer isso - temos o testemunho de Mar-
tinho Heidegger), e o utilitarismo barato, que se esforça por
suprimir ou, pelo menos, afastar-nos dos olhos as sublimi-
dades de cima e os abismos de baixo, conduz realmente
120 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
O SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOMíNIO 121
à degradação da natureza humana, O fim da cultura é,
concordar com que o único fim da cultura seja a produção
seguramente, o enobrecimento da natureza humana, a reali-
do génio e que os homens e mulheres vulgares tenham
zação das suas mais elevadas e mais profundas potenciali-
apenas valor na medida em que contribuem para a pro-
dades e, concretamente, isto deve incluir a plena realização
dução desse génio. «A Humanidade deve trabalhar incessan-
dos maiores dons onde eles se encontram, isto é, nos gran-
temente para a produção de homens grandes isolados-
des homens da História. A cultura existe (estamos a falar
esta, e nenhuma outra, é a sua tarefa». Não, isto não é
do seu fim imediato no presente), não só para a produção
verdade. Os grandes homens e as grandes mulheres são,
da mediocridade, mas também para a produção de génios.
sem dúvida, a mais bela flor da cultura e a negação de
Ao condenar a forma de cultura que havia de ter como
tal facto seria uma má compreensão da cultura; mas os
resultado a estiolação de grandes personalidades, em que a
homens e as mulheres vulgares têm também os seus
multidão, cheia de inveja e rancorosa, incapaz de grandeza
direitos, e nenhum homem pode ser um simples meio para
em si própria e odiando a grandeza dos outros, havia de
outro homem, por muito grande e muito excepcional que
impedir o desenvolvimento do génio ou persegui-lo, bani-lo
este seja. A função da cultura, a realização das potenciali-
e vexá-lo, Nietzsche expressa a maneira de pensar de todos
dades do homem - espirituais ou corporais, sociais ou
aqueles que têm um verdadeiro respeito pela naturza individuais - é, em última análise, a glória de Deus, a
humana. Se isto vai melindrar os espíritos democráticos, manifestação em vários graus da infinita perfeição divina.
permitam-nos que façamos a seguinte pergunta. Estais vós Como se pode dizer que a ave-da-paraíso manifesta menos
preparados, em nome da multidão, a passar sem o santo, sem inadequadamente a beleza divina do que o elefante, assim
o grande poeta ou artista, sem o homem ou a mulher de também certos homens e mulheres manifestarão a perfeição
excepcional personalidade (mesmo que estejais preparados, divina - santidade, sabedoria, etc. - melhor do que outros,
quando eles se encontram seguramente mortos, para cons- de acordo com a dádiva da providência de Deus; mas
truir os túmulos daqueles que vossos pais mataram) ? Sendo todos os homens e mulheres são, em certo grau, uma mani-
assim, estais então debaixo da condenação de Nietzsche. Se, festação de Deus, e as mais baixas classes, se assim se pode
contudo, suspirais pela vinda de grandes homens e mulhe- falar, têm uma relação directa com Deus, o Exemplar
res, no presente e no futuro, e estais prontos a reconhecê-los Divino, e não simplesmente indirecta, isto é, por intermédio
e a acolhê-los bem, então estais preparados para acompa- das personalidades excepcionais. De facto, quando olhadas
nhá-lo até certo ponto, por muito que antipatizeis com o em relação ao próprio Deus, as diferenças humanas não
nome do profeta do Super-Homem.
.
Mas, embora simpatizemos e concordemos com a con-
passam de me,[as insignificâncias.
Não se sabe ao certo se, para Nietzsche, o apogeu ideal
denação que Nietzsche lança sobre o ideal baixo, medíocre do desenvolvimento cultural representa um estado da
e puramente bourgeois, e reconheçamos que um verdadeiro humanidade em que haja apenas Super-Homens ou em que
'COnceito de cultura deve dar lugar à mais bela flor da haja SuperHomens e outros. Ambos os pontos de vista são
cultura, ou seja a aristocrac:i:a do espírito, não podemos talvez compatíveis, como se pode concluir de um exemplo.
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122 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA o SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOM1NIO 123
o ideal seria que todos os homens e mulheres fossem per- filósofo, isto é, Assim Falou Zomtrusta. e dos livros que
feitos, fossem santos, mas o ideal é simplesmente uma ideia lhe sucederam. Torna-se necessário então saber que relação
orientadora, um motivo para uma energia e uma acção cons- há entre o Ubermenscli destas últimas obras e a livre e
tantes, desde que temos de reconhecer que, de facto, nunca nobre aristocracia da cultura, «os bons Europeus» da sua
haverá um estado da humanidade sobre a Terra, em que primitiva maneira de pensar. É: o Super-Homem exacta-
todos os membros da espécie humana sejam santos. l!, por- mente outro nome para o bom Europeu ou é qualquer
tanto, admissível um segundo ideal, isto é, o aparecimento coisa diferente - sendo o «bom Europeu», apenas uma
do maior número de santos que seja concretamente possí- preparação para o Super-Homem? Tem...se a.firmado que
vel. Na realização concreta deste ideal, os homens e o Übermensch do Zoratrusta é um tipo completamente dife-
mulheres vulgarmente bons irão contribuir para a função rente do aristocrata da cultura, tal como foi retratado por
de um maior número dos. que se assemelham a Deus, e os Nietzsche nas suas obras primitivas. O segundo é um tipo
próprios santos terão (nem sempre conscientemente) uma que aparece defínídamente na História, de tempos a tempos,
influência na formação de outros santos. (Ao apresentar este ao passo que o primeiro é um tipo para ser deseiado, uma
exemplo, não tivemos, naturalmente, a intenção de signi- criação do futuro, não apenas um homem excepcional, mas
ficar que Deus não é a causa de toda a santidade; mas a um Ubermensch; um Super-Homem, que ultrapassa o
história da santidade, tanto quanto é dado ao conhecimento homem como o homem ultrapassa o macaco. Segundo esta
humano, mostra-nos, por exemplo, como os bons pais influí- maneira de ver, Nietzsche teria voltado ao tipo primitivo,
ram na formação deste ou daquele santo, bem como a quando diz no Anticristo que o mais elevado tipo de homem
influência dum santo na formação de outro. Nós não apareceu defínídamente, «mas como um golpe da fortuna,
vivemos ou morremos só para nós). Estes dois ideais não como uma excepção, e nunca como um desejado». Pare-
são contraditórios; e assim, se Nietzsche algumas vezes fala ce-me que o Ubermensch do Zonürusta é ° ideal do
como se a raça humana, tal como nós a conhecemos, tem filósofo, isento dos defeitos que ele encontrou mesmo nos
de ser ultrapassada e tem de dar lugar a uma raça de homens excepcionais da História, mas não inteiramente
Super-Homens, ao passo que outras vezes afiirma que o heterogéneo em relação àqueles homens superiores que têm
número de personalidades excepcionais tem de ser mais ou aparecido efectivamente. A completa heterogeneidade implí-
menos limitado, os dois pontos de vista não são neoessària- cita no Zarat1'usta tem de ser explicada como um efeito
mente contraditórios, desde que podem ser tomados como de ênfase poética e profética, destinada a pôr em relevo
referindo-se a uma realização concreta de processos dife- o contraste entre o homem? ínsígníficante e fraoo, como
rentes, sendo um simplesmente um ideal orientador e Nietzsche o conheceu experimentalmente, e o homem ideal.
referindo-se () outro directamente a uma possibilidade con- Precisamente porque o tJbermensch de Zt1ratrusta é um
cretamente realizável. ideal que nunca foi realiza:do, é que ele não pode ser clara-
A ideia do Super-Homem - embora () termo apareça já mente delineado, mas aparece vagamente no alvorecer do
anteriormente - é uma caraQtte1'Ís/tica da última obra do futuro, como uma figura para ser desejada, e à luz da qual
'.

124 NIETZSCHE, FlLÓSOFO DA CULTURA


o SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOMíNIO, 125
se deve avaliar a insuficiência não só dos homens vulgares,
tados (e Nietzsche fala do darwinismo como reflectindo a
mas também daquelas aproximações do ideal que, mais ou
situação da superpovoada Inglaterra); mas objecta que o
menos imperfeitas, têm aparecido de tempos a tempos no
conceito de luta pela vida é apenas um pobre e falso con-
decorrer da História. :B certo que Nietzsche usa uma língua-
ceito, em comparação com o de Ville Zur Macht. Herbert
gem evolucionista, o que implica que o Uhermenscli ultra- Spencer (cuja filosofia é estigmatizada por Nietzsche como
passa o homem como nós o conhecemos - mesmo os a dum «vendedor de chá») tentou encontrar uma ética
homens excepcionais - como o homem ultrapassa o macaco,
e tal facto implica uma diferença radical de tipo entre o
. utilitarista sobre a base do evolucionismo, e o próprio
I Darwin tinha descoberto «um fundamento biológico para
Vbermensch e o «bom Europeu»; mas - como já suge- o sentimento moral» (Hõffding), ao notar a benéfica função
rimos - isto pode ser apenas um processo enfático de do auxílio mútuo na luta pela vida. Assim, os evolucíonístas
dizer que o ideal que devemos desejar e pelo qual devemos ingleses, embora aceitando a hipótese de Darwin da luta
trabalhar é, de longe, muito maior do que qualquer coisa pela vida, tentaram criar uma ética utilitarista, que abar-
de que tenhamos tido experiência. ~ difícil supor que cava os ideais do altruísmo, da simpatia, etc. T. H. Huxley
ele desejasse uma espécie literalmente nova, quando falava não tornou a vida moral do homem um reino sui generis,
do Übermensch, um repúdio dos princípios da luta pela existência? Isto
A referência ao evolucionismo leva-nos a investigar torna-se possível graças ao dom do intelecto, e Nietzsche
qual era a atitude de Nietzsche perante Darwin. Esta é considerava que o uso do intelecto e a instituição duma
uma questão importante, porque está ligada ao problema ética utilitarista conduzem à vitória do fraco e do «deca-
de saber se o filósofo considerava ou não o ilbermensck dente». Imagina-se uma moral de rebanho e declara-se ser
como uma nova espécie, literalmente falando. Nietzsche, esta a verdadeira moral biológica, e assim os valores do
certamente, critica Darwin. Assim, no seu livro Para Além rebanho predominam, evitando o desenvolvimento dos for-
do Bem e do Mal, classifica-o, juntamente com Stuart Mill tes, aqueles em quem a vontade de domínio é vigorosa.
e Herbert Spencer, entre «os Ingleses respeitáveis mas O filósofo rejeita, portanto, o princípio central de Wille
medíocres». ~ igualmente certo, contudo, que ele foi Zum Leben que, pensou ele, termina pela vitória do reba-
influenciado pela teoria evolucionista de Darwin. Mas, nho e pelo estio lamento dos espíritos livres, os aristocratas
embora influenciado por este e apesar de ter usado ter- fortes, e, em vez de tal princípio, afirmou o da Wille zur
mos evoluolorâstas; o filósqfo alemão entendia que a Mocht.
ideia de Darwin da luta pela vida era, essencialmente, insu- Nietzsche discute, também, com os evolucionistas, por-
ficiente. Fala da sua própria maneira de pensar como «antí- que, olhando para o homem como o mais elevado tipo até
-darwínístas, querendo dar a entender que substituiu a luta então evoluído, julgam que o processo evolucionário parou
pela Vida pela luta pelo Poder. Sem dúvida, como matéria ali e não prevêem a evolução de uma espécie ainda mais
de facto, a luta pela vida significaria, em concreto, uma elevada, ou seja o Super-Homem. Isto parece indicar que
luta pelo poder, pelo menos se os meios de vida são Iíml- ele olhava o futuro Super-Homem como uma nova es-

.:,.
,
126 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA o SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOMfNIO 127
pecie biológica no sentido literal. No entanto, eu re- Poderá concluir-se daqui que, aos olhos de Nietzsche,
cuso-me a aceitar que essa fosse a sua maneira de pensar. o Poder é um valor e que um homem ou grupo de homens
Se vamos a pôr em relevo o elemento eugénico e insistir
sobre a evolução biológica na sua maneira de pensar, então
teríamos, índubítàvelmente, de o considerar como o pioneiro
da eugenia e um evolucionista lógico em grande escala;

I

!
que tem poder é, por essa razão, recomendável. Mas este
está muito longe de ser o caso. Quando o rebanho domina
a medíocre maioria, e conserva, sujeito a si, o aristocrata
natural, o homem excepcional que bem quereria ser livre,
mas, embora admitindo certa verdade neste ponto de vista, há poder - há o poder do rebanho. Os fracos e os escravos
eu sinto-me mais inclinado a pôr de preferência em relevo vivem, vive neles a vontade de domínio e multas vezes
aquelas passagens que representam o Super-Homem como conspiram para conservarem o poder nas suas mãos e para
um homem elevado a n graus de poder físico e mental. reivindicarem, como valores imutáveis, aquelas coisas que
Por um lado, não posso conceber Nietzsche a simpatizar lhes são úteis. «Em qualquer parte onde encontrei um ser
com aquele aspecto da natureza humana que muito a apro- vivo, encontrei uma vontade de domínio e, mesmo na von-
ximaria de uma caudelaria , em segundo lugar, ele supõe tade do servo, encontrei a vontade de se tomar senhor» (1).
muitas vezes que ° Super-Homem havia de precisar do Ora, se o poder fosse realmente o único valor aos olhos de
homem vulgar como de uma espécie de ponto de apoio, Nietzsche, seguir-sé-ia que é justificável e está justificado
o que nos não leva a concluir que toda a espécie humana o rebanho vitorioso que domina. Seria inútil, para o indiví-
iria dar lugar ao Super-Homem, ou que o homem vulgar duo forte, queixar-se de que estava a ser injustamente escra-
representaria literalmente uma diferença específica, como vizado e estiolado, sujeito à avaliação do rebanho, desde
a que existe entre o homem e o macaco. O Super-Homem que o facto de que o rebanho estava efectivamente a dominar
representa simplesmente o homem ideal de Nietzsche. seria a única justificação precisa para a supremacia do
A Vontade de Domínio torna-se uma ideia central na mesmo rebanho. Mas o filósofo, constantemente, e por forma
sua filosofia. A vida, declarava ele, é a vontade de altiva, se insurge contra a moral, a avaliação e a supremacia
domínio e aqueles que são mais vivos, aqueles que são do rebanho, pois não está disposto a consentir que uma
os melhores espécimes da raça humana são aqueles em maioria medíocre tenha o direito de dominar indivíduos
quem é mais forte essa vontade de domínio. Os homens fortes e dotados de espírito livre. Segue-se, portanto, que,
excepcionais da História - Napoleão, por exemplo - são as para ele, o simples poder não é o único valor; pelo
mais belas encarnações da vontade de domínio que têm apa- contrário, pensa que devem ter poder apenas aqueles que
recido até agora, mas serão ultrapassados pelo Super-Homem, possuem certas características que se adaptem a esse poder.
em quem a vontade de domínio atingirá o seu ponto mais É certo que pôs de parte as velhas tábuas e propôs novos
elevado. «Apenas onde há vida, há vontade; não a vontade
de viver, mas sim a vontade de domínio» (1).
1 valores, mas é um erro supor que o simples poder ou domí-
nio é para ele o único valor. Suponhamos, por exem-

(1) ZaratrWta, pg. 181. (1) Zoratru9ta., pg. 136.


128 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTUHA
o SUPER·HOMEM E A VONTADE DE OOMtNIO 129
plo, que os padres dominam sobre certo povo. Esses homens
um homem superior, no mais elevado sentido (mesmo que
têm a vontade de domínio e gozam dum poder efectivo,
não seja uma espécie biol6gica literalmente nova).
mas tal facto não está por isso justificado aos olhos de Niet-
Há uma observação que deve ser feita imediatamente,
zsche, porquc podem ser um tipo decadente c faltos claque-
porque é importante para qualquer compreensão do ideal de
las características por elo requeridas. nlOS que governam.
Nietzsche. O Ubermensch não é o mesmo que bárbaro ou
Nietzsche afirma, sem dúvida, que «a categoria dos homens
animal feroz. O filósofo afirma, sem dúvida, que toda a civi-
é estabelecida e alterada unicamente pelo seu grau de
lização mais elevada origina um ataque contra a raça mais
poder», mas, por outro lado, diz também que «eu ensino
fraca, mais moral e mais pacífica, por parte de «bárbaros no
que existem homens mais elevados e mais baixos». Se o
sentido mais terrível da palavra, verdadeiros homens de
tipo de homem mais baixo é o que domina actualmente, rapina, possuídos ainda duma inquebrantável força de von-
isso não é justificação para ele. O poder não é o único valor: tade e ânsia de poder», de forma que, «no princípio a casta
há um tipo mais elevado de homens que devem governar. nobre foi sempre uma casta bárbara», uma raça de "homens
Qual é, então, o tipo superior de homem? Pelo que se refere mais completos, (o que, até certo ponto, implica o mesmo
ao Ubermensch, é extremamente difícil retratar o homem que «feras mais cornpletas») C); no entanto, o seu ideal
ideal do futuro, essa nova espécie. Isto, enfim, é muito natu- não era simplesmente um exuberante selvagem, mas sim um
ral, porque um ideal não realizado até aqui pode actuar homem do mais elevado desenvolvimento, quer mental quer
como uma força motriz, como um guia, como uma fonte de físico. E, assim, diz-nos por uma forma perfeitamente explí-
desejo, energia e acção, mas, ao mesmo tempo, não pode cita: «A humanidade deve ultrapassar-se a si mesma, como
ser claramente concebido exactamente caracterizado, pela os Gregos fizeram - sem qualquer indulgência para com
simples razão de que pertence ao futuro. Podemos descrever estéreis fantasias. Todo o espírito superior que se associa
muito bem os homens que existem ou que existiram; mas a um temperamento doentio e nervoso tem de ser supri-
como poderemos descrever um homem que ainda não exis- mido. A meta a atingir deverá ser uma cultura superior
tiu? Os modos poéticos da expressão de Nietzsche não de todo o corpo e não apenas do cérebros (3). A força do
comportam a tarefa de descrever o Super-Homem. No corpo está, sem dúvida, posta em relevo, mas incluindo
entanto, por muito que gostássemos de ter uma nítida visão também a cultura do espírito. O homem superior é um
do ideal nietzschiano, não seremos justos para com ele, se «homem forte, de elevada cultura, hábil em todas as reali-
lhe pedirmos uma descrição exacta, porque, se ele descrever zações corporais, capaz de se conservar sempre em guarda,
o Ubermensch, tem de o descrever de harmonia com a expe- possuído de respeito para consigo próprio e constituído de
riência, e teremos então um retrato das figuras excepcionais tal maneira que seja capaz de sacrificar todo o gozo das
que a História nos aponta. Nietzsche deu-nos exemplos des-
ses homens nobres, espíritos livres - e em breve voltaremos
a eles - mas devemos-nos lembrar de que tais figuras são,
quando muito, apenas aproximações do tlbermensch, que é
(') Para Além do Bem e do Mal, aforo sst.
(~) Notas sobre Zarafwtra, 56.
1.'30 NIETZSCHE, FIL6S0FO DA CULTURA
o SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOMíNIO 131
suas tendências naturais em toda a rica profusão qu{: estas destinados para conquistar e enredar os outros, os mais
possam apresentar e ser suficientemente forte para tal belos exemplos dos quais são Alcíbíades e César (com
isenção, um homem de tolerância, não por fraqueza mas quem eu gostaria de associar o primeiro dos Europeus,
por força, visto que sabe como há-de tirar proveito de tudo segundo o meu gosto, o Hohenstafen, Frederico II, e entre
aquilo que arruinaria uma natureza medíocre, um homem os artistas Leonardo da Vincí)» (l) Não prefere Nietzsche
para quem nada é proíbido, a não ser a fraqueza, quer 1

como defeito quer como virtude» (1). Este é um retrato de


homem, ou seja de Napoleão, tal como Goethe, segundo ,. aos homens da Renascença os homens da Antiguidade, os
Gregos, em quem ele via, como seu mais forte instinto, uma
vontade de domínio sem escrúpulos (qual se encontra retra-

I
Nietzsche, o concebeu; mas ele representa muito bem a tada, por exemplo, em Tucídides)? Não é aceitável a eon-
maneira de pensar do filósofo alemão, pelo que se refere olusão de que o Super-Homem de Nietzsche, por muito
ao homem superior. 1, desenvolvido que possa ser no corpo e no espírito, é um
O Super-Homem será, portanto, o mais alto exemplo ser que nos aparece simplesmente como um odiento e
do esim», da afirmação positiva da vida, tanto pelo que diz repugnante egoísta, sem qualquer espécie de escrúpulos?
respeito ao espírito, como pelo que é relativo ao corpo. Temos de admitir que há verdade nesta crítica. Nietzs-
Não afirmou Nietzsche que César Bórgía (Nietzsche consi- che certamente exalta o poder e, certamente também,
derava. a Renascença como uma das grandes épocas do ensina que o homem tem de se subordinar ao Super-Homem,
mundo, a segunda em relação à idade grega) era uma isto é.. tem de ser um meio para o Super-Homem. «O meu
«espécie de Super-Homem»? No Ecce Homo observa ele: desejo é produzir criaturas que se elevem acima de toda a
«Uma vez, quando disse a um homem que ele faria melhor espécie humana e sacrificar «o nosso próximo» e a nós
em procurar o Super.Homem em César Bórgia do que em mesmos para este único fim» (2). Os homens têm de ser
Parsifal, esse homem não pôde acreditar no que ouvia» (2). animados, não pelo amor do próximo - die Niichstenliebe
Não recomendava ele Machiavel e não louva Napoleão - mas pelo amor do homem futuro - die Femstenliebe,
«naquilo que chamava o homem, o soldado e a luta pelo sacrificando-se por ele e sendo um meio, uma ponte para
poder, concebendo a Europa como um poder político?» e) o Super-Homem que há-de vir. O correlativo desta subor-
Não parece, portanto, que Nietzsche admirava os «animais dinação, por parte do homem, é o egoísmo por parte do
de rapina precisamente por serem animais de rapina? Super-Homem. E, sem dúvida. Nietzsche declara expressa-
Não nos fala ele «desses seres maravilhosamente incom- mente: «O egoísmo pertence à essência de uma alma
preensíveis e inexplicáveis, desses homens enigmáticos pre- nobre e eu tenho a inalterável crença de que, a um ser
tal como nós, outros seres devem naturalmente estar

(I) O Crepúsculo dos Idolo«, pg. 110.


(2) Pg. 58. (1) Para Além do Bem e do Mal, aforo 200.
(') A Vontatk de Domínio, i, aforo 104. (2) Notas sobre Zarotustra, 46.
)
j
,
132 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA I O SUPER·HOMEM E A VONTADE DE DOMíNIO 133

sujeitos e têm de se sacrificar. A alma nobre aceita o facto JI como o sol, devido à sua riqueza, devido à sua exuberância
deste egoísmo sem nenhuma dúvida e também sem a cons- ( de vida e não devido a uma compaixão que não é senão
ciência de qualquer dureza, constrangimento ou arbitrarie- um egoísmo disfarçado, um repugnante e hipócrita prazer
dade que nele possa haver; aceita-o antes como alguma
} com o sofrimento dos outros. Esse homem não anda a farejar
coisa que possa ter o seu fundamento na lei primária das os sofrimentos alheios, regozijando-se secretamente com
coisas. E, se essa alma nobre procurasse uma designação eles e dando a entender que procura aliviá-los. E assim não
para tal lei, acabaria por dizer: «I! a própria justiça». Esse transige com uma compaixão que é fraqueza e que é uma
indivíduo reconhece, sob certas circunstâncias, que a prin- participação no mal dos outros; dá, não por fraqueza, mas
cípio o fazem hesitar, que há outros igualmente privile- por força. Ao pregar a dureza, Hiirte, Nietzsche não pre*
giados. Então, depois de ter resolvido esta questão de tende inculcar a crueldade sádica dos campos de concen-
categoria, move-se, entre esses iguais e igualmente privile- tração de Dachau ou de Buchenwald; rejeita a compaixão,
giados, com a mesma segurança, pelo que se refere a modés- não porque a compaixão impede a crueldade, mas porque
tia e delicado respeito, que usufrui nas relações consigo - na sua opinião- ela se opõe à energia viva e vigorosa.
próprio - de acordo com um celeste mecanismo inato que «A piedade opõe-se às paixões tonificantes que realçam a
todas as estrelas compreendem» C). De resto, ele exige energia do sentimento da vida: a sua acção é debilitante.
dureza, «porque todos criadores são duros». «Eu te imponho Um homem perde o poder, quando se deixa possuir da.
este novo mandamento, ó meu irmão: toma-te duro. A com- compaixão». (1). Na compaixão, portanto, está envolvida a
paixão e a brandura não são virtudes; são doença, são um negação da vida.
vício. Só a dureza é virtude; só o mais nobre é inteiramente Há outra razão- uma razão ainda mais importante-
duro». pela qual Nietzsche condena a compaixão. «Em conclusão:
Pode muito bem parecer, portanto, que o Super-Homem a compaixão entrava a lei do desenvolvimento, que é a lei
de Nietzsche é um ser duro, um egoísta insensível, apre- da selecção. Conserva aquilo que já não serve senão para
goado por homens como Alcibíades, César Bórgia e Napo- morrer, lutando a favor dos deserdados e dos condenados
leão, mas nós temos de fazer certas reservas importantes, da vida; graças à multidão de abortos de todas as espécies
que frequentes vezes não foram tomadas em consideração que mantém vivos, a compaixão dá à própria vida um
pelos críticos do filósofo. A primeira é que, para Nie- sombrio e discutível aspecto» (2). Uma das constantes
tzsche, nem egoísmo significa um baixo interesse, nem objecções de Nietzsche contra a compaixão é que ela leva
dureza significa crueldade brutal. O homem nobre dá - e à conservação da vida daqueles a quem mais valeria morrer
essa é, sem dúvida, uma característica do homem nobre, - por exemplo, os cancerosos incuráveis - e ao nascimento
exornado com die schenkende Tugend - mas dá e brilha
. i.',
.~
'J (') AnticristQ, pg. IS!.
(') Pora Além elo Bem e do Mal, afor, 265. (li) Amicrlw, pg. 131.2.
134 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTUHA O SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOMfNIO 135
daqueles que nunca deviam ter nascido, como, por exemplo. que a moral cristã, ou a moral natural, é independente de
as crianças com anomalias mentais e sifilíticas. Até que um alicerce transcendental. Se Nietzsche não fez nada
ponto Nietzsche concordaria com a eutanasiu na prática, mais, conseguiu, pelo menos - ou teria conseguido, se fosse
ou com medidas de esterelização obrigatória por parte das compreendido - ensinar-nos a enfrentar as questões hones-
entidades oficiais, não é coisa fácil de se dizer; mas a ver- tamente (1).
dade é que a opinião por ele expressa sobre tais assuntos Embora ele condene a compaixão e apregoe a du-
reza, não supõe que o homem superior seja um bruto
repugna à consciência cristã. Mas Nietzsche nunca pcnsou
que os cristãos haviam de concordar com ele! Nós rejei- f
! insensível, desprovido de toda a emoção e sentimento.
tamos fi opinião de Nietzsche, em grande parte pelo menos, Assim, Zaratustra declara que o seu maior perigo reside
mas fazêmo-lo, não por mero sentimento de compaixão, mas «na indulgência e na compaixão» (2). Por isso pergunta ao
pela convicção do valor da vida humana, pelo respeito para adivinho (Schopenhauer): «Sabes como se chama o último
com o sofrimento, enobrecido pela Cruz, e pelo reconheci- pecado que me foi reservado?» «Compaixão» respondeu o
mento dos direitos de Deus. Se a posição ateísta de Nietzsche adivinho, com o coração a transbordar e erguendo as mãos.
for perfilhada, que objecção real se pode opor às suas con- - O Zaratustra, eu vim para te arrastar para o teu último
clusões? pecado» ("). Zaratustra não é tão insensível que não reco-
O ateu está, sem dúvida, obrigado pela lei moral, e nheça o sofrimento do mundo, mas ergue-se acima dele.
muito será para louvar que ele, apesar do seu ateísmo, «Pobres daqueles que amam e que não estão acima da sua
observe tal lei. (Os maus pagãos, dizia S. Paulo, eram culpa- compaixão I O diabo disse-me assim um dia: «Mesmo Deus
dos, porque não observavam a lei natural escrita nos seus tem o seu inferno: é o seu amor pelos homens». E, mais
corações). O ateu está também obrigado pela lei natural, tarde, ouvi-lhe estas palavras: «Deus morreu; foi a sua
que é a expressão da lei eterna de Deus, desde que ele, piedade pelos homens que o matou. Por isso ponde-vos em
como qualquer outro, é uma criatura de Deus e pode reco- guarda contra a compaixão; por causa dela, vejo pesada
nhecer a lei, mesmo que não reconheça o seu Autor. Mas nuvem a pairar sobre os homens. Eu conheço os sinais do
se - per impossibili - a hipótese do ateu fosse verdadeira tempo. E estai também atentos a estas palavras: todo o
e não houvesse Deus, se ao mundo e à vida humana não grande amor está acima de toda a sua compaixão, porque
tivesse sido dado telas, o indivíduo podia não ter outros ele procura criar aquilo que é amado. Eu próprio me ofe-
direitos, a não ser aqueles que os fortes resolvessem dar-lhe. reço ao meu amor, e ao meu próximo como a mim mesmo
Se a religião está efectivamente privada duma validade
objectiva, então OS únicos direitos são os direitos daqueles
que têm força para criarem os seus direitos, e os outros (') A 'Obrigação moral é, 'Sem dúvida, independente do Alicerce
Transcendental; mas, se não houoosse Deur, não podia haver ordem
homens e mulheres têm somente os direitos que os fortes e moral e racional no universo.
poderosos entendam dever conceder-lhes. Fazei a vossa (2) Zoratustra, pg. 226.
escolha, mas não sejais insensatos a tal ponto que imagineis (') ZaroItIJ8t'l'a. pg. 293.
I
I

1:36 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CUL TUBA O SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOMíNIO 137

- assim se exprimem todos os criadores. Mas todos. os cria- como tendo transcendido a compaixão, ou antes os senti-
dores são duros» (I). Por amor da sua criação, por amor do mentos da compaixão, de forma que «o sentimento da com-
homem futuro. Zaratustra eleva-se acima da sua compaixão, paixão não existe agora, embora os seus efeitos continuem
e todos os homens superiores, o tipo nobre, devem estar na perfeição... Assim como os anjos olham todas as coisas
acima da sua compaixão, alcançando um estado de sereni- dolorosas sem o sentimento da compaixão, assim sucede com
dade caracterizada não só pela H arte, mas também pela a alma nesta transformação do amor (1). O santo admite,
H eiterkeit, a jovialidade. sem dúvida, que Deus pode permitir - e permite - que,
f'; notório que o próprio Nietzsche não era, de forma de tempos a tempos, uma alma assim sinta e sofra, como
alguma, desprovido de compaixão e sentimento - estava no caso da Virgem Santa. «Essa, contudo, não é a condição
muito longe disso. Um dia, uma senhora inglesa, de deli- natural de tal estado». No homem meramente natural, a
cada saúde, disse-lhe o seguinte: «Bem sei, senhor Nietzsche, ausência do sentimento da compaixão seria uma imperfei-
por que razão não nos deixa ver os seus livros. Se fôssemos ção; mas no Super-Homem sobrenatural, isto é, a alma
a acreditar no que neles diz, uma pobre doente como eu elevada ao Casamento Espiritual, «as fraquezas das suas
não tinha direito de viver». O filósofo desculpou-se, mas a virtudes já não existem na alma, porque estas são agora
senhora, sem dúvida, tinha feito uma observação justificada. constantes e perfeitas»). «Dureza» e «serenidade» são, por-
Noutra ocasião, outra senhora, aludindo a uma passagem do tanto, características do homem superior e do Übermensl:h.
Zaratustra, disse-lhe: «Ouvi falar dos seus livros e sei que A outra é a alegria, a exuberante alegria da vida. «Desde
num deles escreveu: «Se fores para o meio de mulheres, que a humanidade veio à existência, o homem tem-se diver-
não te esqueças de levar o teu chicote». Nietzsche pegou- tido muito pouco; esse só, meus irmãos, é o nosso pecado
-Ihe nas mãos e respondeu com voz magoada: «Minha boa original» e). A alegria, a satisfação, o espírito da dança, os
amiga, não interprete mal as minhas palavras; não é assim exercícios salutares, tais são as características do Super-
que eu devo ser compreendido». (Nietzsche, sem dúvida, -Homem. (A Dança, diz Brandes, na linguagem de Nietzsche;
não empregou a palavra chicote no sentido literal; será uma é sempre uma expressão para a elevada leveza do espírito,
grande calúnia considerá-lo capaz de advogar tal tratamento que é exaltado acima da gravidade da Terra e acima de
infligido às mulheres). Ele era tão sentimental e tão toda a seriedade estúpida». Friedrich Nietzsche, pg. 49).
compreensivo da compaixão que concebeu a seu homem Uma vez livre das algemas do bem e do mal e da moral
ideal como para além dessa compaixão, chegando a um tradicional, de que ele mesmo se libertou, o homem nobre
estado de feliz serenidade e vivendo como os deuses epí- não se irá afundar no abismo da luxúria e da auto-índul-
cúrios. (~ curioso o facto de que S. João da Cruz fala da gêncía - porque ele é um espírito livre e não um escravo.
. .
alma no mais alto estado de união com Deus aqui na Terra,
.1"
o . '~' _.'"'

(') Um Cdntico Esplritual da Alma, trad. de David Lewis.


pg. 163.
(1) Zoratuatro, pg. 105. (II) ZaratU8fra. pg. lOS.
138 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA o SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOMíNIO 139

A sua própria conquista da liberdade, da alegria e da sere- Nietzsche reclama inocência, uma prudência completa e
nidade há-de necessitar de autodisciplina e de dureza, não alegre, tanto do corpo como da alma, para além do bem
só para consigo como para com os outros. .I!; a liberdade e do mal, para além da moral- ideal que é certamente
que Nietzsche prega - uma liberdade alegre, poderosa e erróneo ao rejeitar as distinções de natureza moral e tam-
independente; o homem superior não será certamente casto bém o pecado original, mas que não é o ideal dum liber-
por razões de ordem moral, mas não será um escravo das tino. Não sejamos injustos para com o filósofo, mesmo quando
paixões da carne. «Não será melhor cair nas mãos de um não concordamos com ele.
assassino do que nos sonhos de uma mulher luxuriosa? O Super-Homem, orgulhoso e livre, alegre e sereno,
Olhai para esses homens - os seus olhos o dizem - eles forte de corpo e alma, é a representação suprema daquele
nada melhor conhecem neste mundo do que dormir com que diz sim à vida, é o verdadeiro Dioniso. Diz Amen até
uma mulher. Têm lodo no fundo das suas almas e, ai deles !, ao Eterno Retorno -, porque diz Amen à vida, tal como
se esse lodo tem espírito! Oxalá que fôsseis perfeitos, ao ela é. «Não só como homem, mas como Super-Homem, ele
menos como animais! Mas para ser animal é preciso ter há-de voltar eternamente - o que é, na verdade aterrador,
inocência. Será isto aconselhar-vos a assassinar os vossos mas o Super-Homem há-de aceitar a vida de braços esten-
instintos? Eu aconselho-vos a ter inocência nos vossos ins- didos e há-de afírmá-la com os olhos bem abertos. Acima
tintos. A castidade é nalguns uma virtude, mas em muitos de tudo, há-de fazer a si mesmo esta pergunta: «.I!; este o
é quase um vicio. Estes são, certamente, continentes, mas feito que eu estou preparado para realizar um número
uma sensualidade canina espreita, invejosa, tudo quanto incalculável de vezes?» E, na alegria da sua força, há-de
eles fazem. E com que prudência sabe essa sensualidade responder: «Sim». Então abençoará a vida. «Entre aqueles
canina mendigar um pedaço de espírito, quando se lhe nega que meramente imploram, nós devemos ser aqueles que
um pedaço de carne! Se a castidade é penosa para alguns, abençoam». Esta afírmação da vida, este dizer «sim» será
esses devem ser afastados dela, para que tal castidade não a característica dos homens superiores, uma nova categoria,
venha a ser um caminho para o inferno, isto é, para a lama mas será, eminentemente, a característica da maior criação
e para a fogueira da alma. Na verdade, há os castos por do homem - o Super-Homem. «A ordem de categoria
natureza; são dotados de um coração mais meigo e riem desenvolve-se dentro dum sistema de domínio terrestre: os
melhor e mais vezes do que v6s. Riem-se também da eas- senhores da Terra chegam por fim, como uma nova casta
tidade e perguntam: O que é a castidade? Não será a dominadora. Aqui e ali, surge, entre eles, um Deus perfei-
castidade uma loucura? Mas foi essa loucura que veio até tamente epícuríano, um Super-Homem, um transfigurador
nós e não fomos n6s que a fomos procurar. Oferecemos da existência. A noção do Super-Homem do mundo. Dio-
a esse hóspede abrigo e simpatia; ele agora habita connosco níso (1).
e nós deíxá-Io-emos estar, enquanto ele o queiras (1).

(1) ZoralUlJt1'a, pg. 61-2.


140 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA o SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOMíNIO 141
Mas, se a ideia de Nietzsche sobre o Super-Homem é homens, e só por derivação, e num período posterior, são
da natureza da que nós delineamos, que havemos de fazer aplicadas à acção; o tipo nobre de homem olha-se como
dos exemplos que ele nos apresenta dessas figuras. excep- um determinador de valores e não requer que o aprovem;
cionais da História, tais como César Bórgia e Napoleão? é ele quem profere o julgamento: «Aquilo que é injurioso
Diz ele, sem dúvida, que há maior semelhança entre para mim, é injurioso de per si». Sabe que é apenas ele
César Bórgia e o Super-Homem, do que entre Parsífal e o próprio quem confere honras às coisas, visto que é um
Super-Homem, mas a sua intenção não é advogar o envene- criador de valores. Por outras palavras; o bem é, originà-
namento, mas realçar (apesar, sem dúvida, da sua admiração riamente, a classe nobre, aristocrática; ela cria valores e
pela cultura e vinu do Renascimento) a posição do Super- assim constitui a sua própria moral- que é, realmente,
-Homem para além do bem e do mal. E: certo que louva uma moral de estilo. Mal denota o homem vulgar e escravo,
Napoleão, mas em certa passagem fala dele como uma sín- bem como as suas acções. A moral é, portanto, uma moral
tese do Monstro e Super-Homem; e neste exemplo mais de classe, e bom == nobre == aristocrático. O bem é aquilo que
uma vez a sua intenção é, não tanto enaltecer as acções os nobres e os fortes julgam como tal. Nesta espécie de moral
de Napoleão, como realçar a sua transcendência da moral: - a moral do senhor - «a antítese bom e mau significa, prà-
Napoleão é um exemplo de tipo nobre. Se queremos com- ticamente, o mesmo que nobre e desprezível».
preender Nietzsche, temos de compreender também esta Em oposição a esta moral do senhor vamos encontrar
distinção. Ele chama a humanidade para além do bem e a moral do escraoo, na qual os fortes e poderosos são con-
do mal, mas a sua intenção, ao proceder assim, não é rejei- siderados como mal e os que sofrem são olhados como bem.
tar todo a avaliação, mas apresentar uma nova avaliação, Em vez da nobreza, da força e da beleza, encontramos ele-
ou seja a distinção nobre-mau para substituir a distinção vadas à supremacia aquelas qualidades que servem para
bem-mal. Noutro capítulo trataremos da crítica de Nietzs- aliviar a existência dos que sofrem, «a simpatia, a ama-
che à moral cristã, mas alguma coisa devemos dizer desde bilidade, o auxílio, a generosidade, a paciência, a diligência,
já a respeito das suas avaliações, ou seja de uma e outra a humildade e a amizade». Estas são as qualidades úteis
moral e correspondentes ordens de categoria, pois tal 'se aos «escravos», ao rebanho, e consideradas como um bem
toma necessário e essencial para uma compreensão da sua na moral dos escravos ou moral do rebanho. (Nietzsche
doutrina do Super-Homem. nota - não sem uma certa perspicácia - que «um tanto ou
Nietzsche faz ver que, entre os Gregos, a antítese é, quanto de menoscabo vai afectar o homem bom desta moral,
originalmente, não entre bem e mal, mas entre nobre e ignó- pois, segundo o modo servil de pensar, esse homem bom
bil, ou antes que a equação é bom = aristocrático == below deve, em qualquer caso, ser o seguro: é dotado de bom
== feliz == amado pelos deuses. O homem que é kaloe como natural, fàcilmente enganado, talvez um pouco estúpido e.
oposto a deilos, poneros, mokhtheros, é o homem nobre, aris- finalmente, um bonhomme) (").
tocrata como oposto ao escravo ou ao homem vulgar. As desi-
gnações do valor moral são aplioadas primeiramente aos (') Para Além do Bem o do Mal, aror. 260.
O SUPER·HOMEM E A. VONTADE DE DO:.vIfNIO 143
142 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA
penetrarem em vós, de forma que possam manar de novo da
A moral judaico-cristã é, essencialmente, a moral do
vossa fonte, como outros tantos dons do vosso amors (I).
escravo ou moral do rebanho, e Nietzsche exige um
O Super-Homem de Nietzsche pode ser ainda mais re-
regresso à moral do senhor. Este é o significado dos seus
apelos ao homem para seguir «para além do bem e do ~ pugnante para nós do que o homem de espírito de Aristóte-
I
1 les, mas não se justifica que deturpemos a sua opinião e
mals. O rebanho pode, e deve, conservar a sua moral, mas
() homem superior, forte e viril, tem de quebrar as algemas I façamos dele um pregador do estreito e baixo egoísmo. "Mas
é para nós um horror o sentido que degenera e diz: «Tudo
da moral do escravo e adoptar a sua própria avaliação, a f
para mim» (2).
moral do senhor, segundo a qual o bom = aristocrático, nobre,
Deixando para mais tarde as considerações sobre a
verdadeiro e poderoso. O homem superior e, acima de todos,
crítica de Nietzsche à moral, que temos a dizer da doutrina
o Super-Homem, não permitirá que o rebanho o engane e
por ele expressa no Super-Homem e na Vontade de Domínio?
saberá afirmar a sua própria moral, que é a moral do aris-
Podemos, sem dúvida, admitir a grande importância da von-
tocrata. O rebanho, temendo e odiando o homem excepcio-
tade de domínio como factor psicológico. Esse factor tem
nal, tem usado de vários expedientes para conseguir que a
sua moral seja a moral absoluta e única, com a qual todos sido, modernamente, posto em relevo pelos psicólogos - em
; grande parte sob a influência,directa ou indirecta, de Fre-
os homens se devem conformar. Nietzsche advoga o regresso
.i derico Nietzsche - e a psicologia da vontade de domínio é,
a uma dupla moral: uma para os homens superiores e outra I
i sem dúvida, um aperfeiçoamento da de Segismundo Freud.
para o rebanho.
A vontade de domínio tem ainda um papel preponderante
Permitam-me que repita que, embora o homem superior
rejeite a avaliação do rebanho, que glorifica as qualidades I! na psicologia individual do Prof. Alfredo Adler. O instinto de
autoconservação é fundamental e, no homem, esse instinto,
úteis ao mesmo rebanho, Nietzsche não quer significar
quando comparado com os «perigos» que surgem dos seres
com isso que o homem nobre nunca tem consideração
humanos, seus companheiros, toma a feição de uma luta pela
senão por si mesmo, no sentido de um baixo egoísmo. Em
superioridade, pela vontade de domínio. Mas esta vontade de
Pora Além do Bem e do Mal, ao falar do homem nobre diz
domínio não é necessàriamente egoísta, num sentido brutal;
ele que «no primeiro plano existe o sentimento da plenitude,
é a própria impulsara das acções humanas, quer sejam boas
do poder que procura transbordar, a felicidade em alta
ou más (3). Pode, sem dúvida, transformar-se numa desen-
tensão, a consciência duma riqueza que ele voluntàriamente
freada Hybris, por um lado, ou dar origem ao sentimento de
daria e outorgaria, pois o homem nobre também ajuda o
inferioridade, pelo outro; mas. idealmente, essa vontade de
menos afortunado, não - ou dificilmente - por compaixão,
mas antes devido a um impulso gerado pela superabundân-
cia do poder». Assim, o homem nobre, quando dá, está des- (1) Zaratusira; pg. 86.
carregando a superabundância da sua riqueza; o dar faz parte (2) Zaratum-a, pg. 87.
(8) Rudolfo Allers, As No-vas P*ologiq.s. Sh8dd • W...
da sua natureza. «Uma virtude dadivosa é a mais alta vir-
138, pg. 35.
tude... Obrigais todas as coisas a aproximarem-se de v6s e a
144 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CUL TUBA o SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOMíNIO 145

domínio opera de harmonia com outra tendência fundamental momento imaginar; mas, ao mesmo tempo, estou conven-
do homem - o desejo da comunidade. A super-elevação do cido de que a elevada auto-exaltação e a desenfreada
eu é própria, não do normal, mas do «anormal». A psicologia vontade de domínio de Adolfo Hitler é, pràticamente, uma
individual exige a aceitação da realidade como essencial à consequência da doutrina de Nietzsche. Na verdade, se um
normalidade; a exaltação do eu como único valor, a desen- homem, negando a realidade, tenta elevar-se a um excelso
freada vontade de domínio é uma característica da anorma- pináculo para ser como um deus, o inevitável resultado é
lidade, da recusa a aceitar a realidade, e uma limitação do que acaba por cair, e cai, sem dúvida, muito baixo. A con-
eu e do facto da comunidade. sequência da Hybrís é desastrosa. Uma revolta determinada
A psicologia individual implica, portanto, um cor- contra a natureza limitada do homem é uma contradição
rectivo à doutrina de Nietzsche sobre a vontade de domínio. da verdadeira vontade de comando e da verdadeira ambi-
Na verdade, o grito Eritis sicut dii (I) é a expressão de ção, porque a verdadeira ambição deve tomar conheci-
uma recusa para aceitar a realidade. Mas o verdaeiro cor- mento da realidade, deve confinar-se dentro dos limites da
rectivo encontra-se apenas num franco reconhecimento da natureza humana. A consequência de tal revolta é-do
verdade da filosofia teísta. O egoísmo do Super-homem é ponto de vista psicológico - a neurose. A tal respeito
não só uma recusa para aceitar a realidade da posição do nota com razão Rudolfo Allers: «Apenas o santo está livre
'homem ois-o-ois da comunidade, mas também - e espe- da neurose e para além dela, porque somente ele aceitou,
cialmente - uma recusa para aceitar a posição do índiví por um acto de real assentimento, a sua posição como um
duo finito na sua relação para com o Ser Infinito. ser finito, como um mero nada em face do Infinito. Uma
:e, portanto, uma recusa para aceitar a realidade; é uma análise verdadeiramente completa da mentalidade neuró-
anormalidade e uma monstruosidade. Uma tentativa desta tica irá descobrir que em todos os casos de neurose, sem
natureza para privar o homem da sua relação fundamental excepção, o problema real é um problema de metafísica.
com o Criador não poderá ter como resultado um desenvol- O conflito na raiz da neurose está entre a superbia original
vimento e um aumento de vida, mas sim uma anormalidade do homem caído (a qual, engendrada do pecado e recon-
e uma neurose. Embora não pretendendo manter - e nós, duzindo a ele, o obriga a esforçar-se pelo infinito) e o reco-
sem dúvida, não o mantemos - que o Ubermensch. de Niet- nhecimento da sua condição essencial de ser finito (1).
zshce tem as mesmas características do nazi tirano e rufião, O erro básico da doutrina de Nietzsche é, assim, a sua
parece claro, pelo menos para mim, que a doutrina de posição ateísta e a negação do valor fundamental da humil-
Nietzsche, na prática, havia de conduzir - embora não dade. Mas, se este erro fundamental for uma vez claramente
exclusivamente - a esse abominável tipo. Que Nietzsche, concebido, podemos nesse caso admitir certo valor na dou-
pessoalmente, estivesse preparado para prestar culto no trina de Nietzsche. Em primeiro lugar, a sua insistência
altar de Adolfo Hitler, é coisa que eu não posso por um

(1) Rudolfo Allers, As NovasPsicologWs, pg. 76-7.


(I) Sere:s com" deuses! (N. T.).

146 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA f o SUPER-HOMEM E A VONTADE DE DOMíNIO 147
sobre a importância da personalidade excepcional não está,
pode mesmo ser causa de que ela desabroche em inespe-
de forma alguma, fora da questão. A raça humana progride
- quando deveras progride - graças, em grande parte, à
r- rados botões e frutos. Nosso Senhor não disse que tinha

I
vindo dar-nos menos vida, mas que tinha vindo dar-nos
acção de homens e mulheres de dotes excepcionais. Que
uma vida mais abundante. E: certo que a sua dádiva foi a
seria o Cristianismo sem Cristo? E quanto não deve a da vida sobrenatural, uma dádiva que não evolui da vida
religião ao trabalho de S. Paulo, de S. Francisco, de Santo
Inácio de Loiola e tantos outros? A história da arte é, em I natural, mas deriva directamente de Deus. No entanto, a

grande parte, a história de artistas excepcionais, e não pre- ~ vida sobrenatural e a vida natural não se opõem, e, certa-
mente, a presença da primeira realça o mérito da segunda.
cisamos de nos alargar muito (apesar de Tolstoi) para E quem está preparado para acusar uma mulher como
mostrar quanto se deve em matéria de progresso político, Santa Teresa de Espanha, ou um homem como S. Fran-
social e cultural a homens que tiveram a coragem de se cisco Xavier, de fraqueza, falta de energia ou degenera-
erguer acima do passado e do presente, de seguir à frente ção? Apenas aqueles que nunca se deram ao trabalho de
e servir de guias. Uma visão democrática da vida que tomar conhecimento das suas vidas e de as compreender.
implicasse uma desconfiança radical dos talentos excepcio- Podemos, com razão, honrar a vida e render as nossas
nais seria uma visão errada, embora se não possa concluir homenagens ao vigor, à força, à saúde e à beleza; honramos
que estão justificados aqueles homens excepcionais que os altos exemplos de talentos naturais, os grandes artistas,
usaram do poder adquirido pelos seus méritos simplesmente músicos, etc. da humanidade, mas honraremos, acima de
para satisfação dos seus próprios fins. Os seres humanos tudo, as flores da vida sobrenatural, os santos de Deus, OS
diferem, mas cada ser humano tem o seu valor e nenhum verdadeiros Obermenchen, porque eles são verdadeiramente
deles pode ser um simples meio para outro. super-homens, mais do que homens, visto que, na frase de
Nietzsche identifica a vontade de domínio com a vida, S. Pedro, se tornaram «participantes da natureza divina».
mas nós não podemos admitir tal identificação. A vontade Mas, enquanto avaliamos e reverenciamos o vigor natural
de domínio é uma tendência fundamental das coisas vivas, do corpo e da alma, reverenciaremos e honraremos mais a
mas não é coextensiva com a vida. No entanto Nietzsche vida sobrenatural do espírito, e reconheceremos que esta
tem razão ao pôr em lugar de relevo a vida, o vigor, a vida pode desenvolver e produzir maravilhosos botões e
força, a beleza e a saúde. Não nos compete a nós avaliar frutos, mesmo num corpo enfezado e cheio de sofrimentos.
a fraqueza, o sentimentalismo, a apatia e a falta de vigor, Com Nietzsche desejamos vida, mais vida; com Nietzsche
tais como são: Deus é a vida, e a vida criada é um dom de desejamos a vinda do Super-homem mas, ao contrário de
Deus, para ser desenvolvido, estimulado e honrado. E, sem Nietzsche, mantemos que o mais elevado estado aberto ao
dúvida, nos mais altos exemplos da humanidade, os santos homem não pode ser alcançado unicamente pelos recursos
de Deus, nós vemos - mesmo no meio do sofrimento - uma desajudados do mesmo homem. Frente a frente a Nietzsche.
admirável coragem, vigor e firmeza de intenções. A vida nós somos realistas, porque aceitamos toda a realidade,
sobrenatural não destrói a vida natural, mas enobrece-a e tanto o sobrenatural como o natural; frente a frente a
148 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA CAPITULO V

Nietzsche, nós afirmamos que o estado de mais que homem T A CRITICA DA MORAL POR NIETZSCHE
está aberto a todos os que o quiserem aceitar; e frente a I

frente a Nietzsche nós somos verdadeiros optimistas, pois


acreditamos que os verdadeiros Obermenchen não são meros
momentos no eterno retomo, mas brilharão como estrelas
no céu da eternidade, regozijando numa perfeição de vida
1
e vigor, tanto sobrenatural como natural. Não é este o lugar
para advogarmos logicamente a nossa posição - nem tão
pouco Nietzsche defende logicamente a sua - mas não dei-
xaremos de notar que, para o cristão, o fim externo do
homem, ou seja a glória de Deus, coincide com o seu fim
interno, que é a sua própria perfeição, e este fim é atingível
por todos, ao passo que, para Nietzsche, poucos hão-de ser
Super-homens, e o fim dos homens e mulheres vulgares é
H á duas espécies de pessoas
que negam os valores da moral tradicional: aqueles que
apenas servir de meio para o aparecimento do Super-
estão empenhados simplesmente em destruir e aqueles que
-homem. Se compararmos os Super-homens de Nietzsche
pretendem antes preparar o terreno para estabelecerem novos
com o cristão medíocre, invejoso, tímido, desconfiado e
valores. Do ponto de vista objectivo, os dois processos
hipócrita, isto é, com o mau cristão, então o balanço poderá
de acção podem, frequentes vezes, conduzir ao mesmo fim,
ser dado a favor dos primeiros; mas, se compararmos o
mas, considerados do ponto de vista das atitudes subjec-
Obermench de Nietzsche com o verdadeiro Vbermench do·
tivas das duas espécies de destruidores, são muito dife-
Cristianismo, não poderá haver dúvida sobre qual é a mais
rentes. Por um lado, vamos encontrar um agente irres-
bela flor da humanidade. Além disso, o Super-homem de
ponsável, inspirado pelo ódio, pelo cinismo ou pelo amor
Nietzsche anda a planar entre as brumas do futuro, como
do prazer sensual; pelo outro, achamos um agente que é
um sonho irrealizado e quase terrificante, ao passo que o
inspirado por um ideal que o transcende a ele próprio,
Super-homem cristão foi uma realidade no passado, há-de
talvez um homem com um ideal errado, mas mesmo assim
ser uma realidade no futuro e está envolvido na glória
com um ideal- um idedista; no sentido prático da palavra,
daquela schenkende Tugend que Nietzsche tanto exalta.
tal como posto em contraste com o seu uso filos6fico. Para
Da pessoa do Pobrezinho de Assis brota amor e luz para
compreender a atitude de Nietzsche pelo que se refira à
todos aqueles que ficam ao alcance dos seus raios e, por
moral, é importante saber que ele pertence ao segundo
trás dele, bem como dentro dele, nós percebemos a pulsa- grupo de destruidores. Nietzsche odiava a moral tradicional,
ção daquela Vida divina e infinita que é um imorredouro e acima de tudo a moral cristã, não porque quisesse destruir
esplendor, poder e alegria. todos os padrões de comportamento, e muito menos ainda
150 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
A CRITICA DA MORAL POR NIETZSCHE 151
porque quisesse ensinar a imoralidade, mas porque consi- acusa um exaltado estado de espírito, que bem pode ter
derava a tábua cristã de valores como tradicionalmente sido um prelúdio da posterior afecção mental. Além disso,
oposta à verdadeira tábua. Não é minha intenção defender quando Nietzsche escreveu a sua «autobiografia», tinha-se
o ataque ele Nietzsche contra a absoluta moral cristã- de tal forma isolado e retirado do convívio dos homens, que
muito longe disso, condeno-o firmemente - mas um contra- parece ter sido incapaz de se avaliar a si pr6prio e ao seu
-ataque a Nietzsche que implique uma falsa representação pensamento objectivamente - pelo menos naquilo que n6s
da sua inspiração fundamental perde, certamente, mu-ito chamaríamos uma maneira objectiva. Mas esse próprio
do seu objectivo, e é, do ponto de vista pessoal, uma estado de exaltação tende para uma clara e, sem dúvida,
injustiça que se faz a este filósofo. Ê: bom, portanto, logo exagerada asserção, e Nietzsche não nos deixa dúvidas.
no princípio deste capítulo, acentuar o facto de que a obra quanto ao seu significado. Citando Zaratustra, diz «que ele
de Nietzsche A Vontade de Domínio tem, como subtítulo, há-de ser um criador no bem e no mal, um destruidor que
Ensaio de Uma Transformação de Todos os Valores. Ele mes- há-de aniquilar os valores». Quer ser um criador de valores,
mo declara que não é nenhum mero niilista ou anarquista na mas, para criar, é preciso primeiramente destruir. O seu
esfera moral, mas que deseja substituir por novas tábuas as trabalho de destruição envolve uma dupla negação: a nega-
antigas, não simplesmente desmascarar a moral, mas esta- ção do tipo de homem que até aqui tem sido considerado
belecer um novo ideal, ou antes restabelecer um velho ideal como superior - o bom, o amável e o caridoso - e a nega-
- que, no seu modo de ver, foi obscurecido pejo inferior ção da moral cristã, a moral da «decadência». Esta segunda
e pervertido ideal da moral cristã. O seu radicalismo aristo- negação é mais decisiva - diz ele - desde que a superestí-
crático - na frase feliz de Jorge Brandes - é oferecido mativa da bondade e da amabilidade é uma consequência
ao mundo como um ideal mais elevado do que o ideal de da decadência e um sintoma de fraqueza; é «incompatível
decadência. com qualquer vida ascendente e plenamente afirmada».
No Ecce Homo, depois de nos dizer que abriu a sua Temos aqui a chave do ódio de Nietzsche à moral.
campanha contra a moral em a Aurora, Nietzsche declara que não é outra senão a decadência ou fraqueza, isto é,
que foi ele o primeiro a atacar e a desmascarar a moral. uma atitude negativista perante a vida. Em Uma Tentativa
«Ninguém, até agora, sentiu a moral cristã indigna de si; de Autocrítica, que serve de introdução ao Nascimento
para isso havia necessidade de altura, de uma largueza de da, Tragédia, diz Nietzsche: «Que é a própria moral? Não
vista e de uma profundidade psicol6gica que, até agora, pode a moral ser um desejo de renegar a oida, um instinto
não se acreditava ser possível». «O que me define, o que secreto para o aniquilamento, um princípio de depreciação,
me faz estar à parte de todo o resto da humanidade, é o de decadência, de difamação, um começo do fumo A moral
facto de que desmascarei a moral cristã» (I). Ecce Homo cristã, em particular, é o crime contra a vida: ela ensina-
de acordo com Nietzsche - o desprezo por todos os ínstín-
tos principais da vida. A moral cristã é a moral da
(I) Ecce Homo, pg. 138·9. auto-renúncia e a auto-renúncia «revela o desejo de insigni-
152 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA A CRITICA DA MORAL POR NIETZSCHE 153
fícâncía», renegando a vida até às suas próprias raízes. portanto, uma expressão da vontade de domínío , mas de
A moral cristã contém, como seu motivo básico e força quem é essa vontade de domínio? Esta é a questão crucial.
inspiradora, uma hostilidade para com a vida, e é a criação Aos olhos de Nietzsche, a moral expressa a vontade de
dos decadentes, dos homens que odeiam a vida e a renegam #
I
domínio do rebanho: é completamente diferente da moral
e que, no seu desejo de se vingarem dela, estabeleceram do senhor, que expressa a vontade do domínio do homem
uma tábua de valores e um código moral capaz de algemar
as forças ascendentes da mesma vida, de obstar ao cresci-
mento e desenvolvimento dos homens superiores e de tornar
impossível o aparecimento do Super-homem. Daqui provém
1 superior, do tipo nobre. Nietzsche desmascarou a moral e
descobriu três poderes que jaziam ocultos por trás dela:
1) o instinto do rebanho, oposto ao forte e independente;
2) o instinto de todos os que sofrem e de todos os abortos,
a definição que Nietzsche dá de moral: «Moral é a em oposição aos felizes e bem constituídos; 3) o instinto
idiossincrasia dos decadentes, impulsionados por um desejo dos medíocres opostos às excepções (I). «Assim, na história
de se vingarem da vida com resultodo« (1). «Eu atribuo da moral, uma vontade de domínio tem o seu significado;
grande valor a esta definição», diz Nietzsche. Tanto os por meio dela, os escravos, os oprimidos, os falhados e os
moralistas como os teólogos têm falado, é certo, da sua inten- esfarrapados, aqueles que sofrem de si próprios e os medío-
ção de aperfeiçoarem o homem, mas isto é apenas um santo cres procuram fazer prevalecer aqueles valores que favo-
pretexto, um estratagema para esconderem a sua real recem a sua existência» (2). Desta maneira, a moral desen-
intenção de drenarem a vida da sua energia e sangue. volveu-se à custa das classes que governam, à custa dos
A moral, portanto, longe de ser um meio de aperfeiçoa- bem constituídos, dos fortes e dos belos, e assim opõe-se
mento do homem, é, na realidade, vampirismo. O homem aos esforços da Natureza para chegar a um tipo superior.
que é na verdade fraco, doente e mal concebido, o homem ~ ela que nos arrasta a uma desconfiança da vida em geral,

que devia ser liquidado, é apresentado como um homem desde que as tendências da vida são, em grande extensão,
bom e é considerado como o verdadeiro ideal, em vez do consideradas imorais, e nos arrasta também à hostilidade
«homem orgulhoso e bem constituído», que diz sim à vida. contra os sentidos. Este conflito entre a moral e a vida
Este último tipo de homem é considerado pelos moralistas torna-se manifesto principalmente no tipo superior dos
como um mal. E numa profunda repugnância por esta per- homens e o resultado é a sua degeneração e autodestruição.
versão de valores, Nietzsche faz suas as palavras de VaI· O alvo de Nietzsche era, primàriamente, não desorganizar
taire : Écrasez rinfâme I o rebanho, mas mostrar com evidência aos fortes qual era
a natureza real da moral, e assim torná-los livres, e dar-lhes
Nietzsche identificou, como já vimos, a vida com a von-
a coragem necessária para serem livres, seguindo o curso
tade de domínio e deeIarou que, em toda a parte, encontrou
de uma vida sempre ascendente. O rebanho e os decadentes
essa vontade, tanto no esoravo como no senhor. A moral é,

(') A Vontade de Dorntmo, i, afor. 274,


(') E~ H01'TID, i., afOf. 400.
(') Ecce Homo, pg. 141.
154 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA A CRITICA DA MORAL POR NIETZSCHE 155
podiam guardar a sua moral, contanto que a liberdade dos rapina, e por isso dizem que as aves de rapina são más e
homens superiores ficasse assegurada. Até aqui os fracos e que os cordeiros são bons. Por outro lado, este ressenti-
os decadentes tinham prevalecido sobre os fortes, graças à mento não é uma reacção imediata nascida da afirmação posi-
sua moral pervertida, que iguala a fraqueza à bondade e tiva da própria individualidade (como a vingança do forte),
a força ao mal. mas um ressentimento cheio de despeito e veneno, nascido da
A moralidade é, para o rebanho, um meio de auto- atitude negativista do fraco, do dependente e gregário, e da
defesa contra o forre. Os instintos fortes, tais como o «amor sua atitude de não afirmação perante a vida. Eles não têm for-
pelos empreendimentos, a temeridade, o espírito de vin- ça necessária para afirmar a vida ou estão ressentidos e des-
gança, a astúcia, a rapacidade e o amor ao poder» (1) foram peitados com os fortes a quem receiam. Impelidos por este
a princípio estimulados e cultivados, sendo requeridos para medo, estabelecem um código moral que é elevado à cate-
bem da sociedade, como meios de defesa contra os inimigos goria de uma moral absoluta e de carácter universal,
comuns; mas, quando lhes faltou esta saída, foram consi- quando, de facto, não é mais do que um meio de defesa
derados pelo rebanho como perigosos, e assim «foram tam- para o rebanho e um modo de ele expressar o seu ressenti-
bém gradualmente estigmatizados e passaram a ser calu- mento e o seu despeito contra o forte. A moral, diz Nietzs-
niadoss, Uma qualidade, uma disposição ou um instinto são che, é «o inimigo da natureza». Todos os antigos propa-
coisas que se consideram boas ou más conforme são ou gandistas da moral eram unânimes neste ponto: «il faut
não vantajosas para a sociedade e para a igualdade comum, tuer les possions» (1) A Igreja ataca as paixões nas suas
isto é, para o instinto gregário. O medo, portanto, é a raízes e assim ataca a própria vida. O mesmo ataque às
«mãe da moral». Os instintos mais fortes e mais elevados, paixões, ensinado pela Igreja por hostilidade contra a vida,
quando seguidos com ardor, arrastam o indivíduo para é instintivamente adoptado por aqueles que são demasia-
além do normal e tendem a quebrar a autoconfiança da damente fracos de vontade e degenerados em excesso, para
comunidade; por isso, tais instintos são condenados e moderarem as suas paixões. «Apenas os degenerados encon-
denominados imorais. «Tudo aquilo que eleva o indivíduo tram os métodos radicais indispensáveis». E, onde nós
acima do rebanho e é uma origem de medo para o vizinho, encontrarmos esta hostilidade radical contra as paixões,
é, daí por diante, chamado mou ; uma disposição tolerante, temos razão para suspeitar da fraqueza de carácter por
modesta, acomodatícia e equilibrada, bem como a medio- parte daquele que recorre a tais extremos. (Isto é, sem
cridade dos desejos, são coisas que alcançam a distinção dúvida, algumas vezes verdade, mas não se segue daí que
moral e a honras (2). Nietzsche acentua o papel desempe- um homem fraco não possa ter justificação quando recorre
nhado pelo ressentimento e pelo despeito na determinação aos extremos. Se, por exemplo, um homem verifica, pela
dos valores morais. Os cordeiros têm rancor às aves de experiência, que não pode moderar a sua intemperança,

(I) Para Além do Bem e do Mal, aforo 201.


(S) Para Além do Bem e do Mal, aforo 201. (l} O Cf'epWoulo dos tclolos, pg. 26.
~.
I
156 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA I A CRITICA DA MORAL POR NIETZSCHE 157
será melhor então que ele se tome um abstinente). Pode uma torrente que vai atingir o seu termo, que se recusa a
haver firmeza de animo apenas onde há inimigos para
vencer: então o cristão deseja paz de alma e procura ani-
rI reflectir e que receia mesmo a reflexão. «E conclui que o
triunfo do niilismo - o repúdio absoluto do valor, da
quilar os seus inimigos interiores. «O santo em quem Deus. f intenção e da desiderabilidade - está à nossa porta e é
está satisfeito é o eunuco ideal».

I
inevitável. Como se produziu isto? Uma importante expli-
A moral é, portanto, hostil à vida e um inimigo da cação é que «o niilismo se albergou no coração da moral
natureza; no entanto, é uma avaliação, e uma avaliação é cristã». O Cristianismo desenvolveu em alto grau o sentido
uma avaliação da vida. Mas de que espécie de vida é ,a da verdade e esta verdade, por fim, voltou-se contra a
moral uma avaliação? «Da vida em declínio, da vida enfra- religião cristã, descobrindo a falsidade e o carácter fictício
quecida, da vida exausta, da vida condenada». Como se da interpretação cristã do mundo e da sua história. Desta
encontra formulado nas palavras «a negação da vontade de maneira, o ponto de vista cristão do universo é, em última
viver», é o verdadeiro instinto da degeneração convertido análise, destruído pela moral cristã. Que acontece então?
num imperativo «morre ls - um imperativo que está sus- Alguns, vendo por terra esta interpretação, que eles julga-
penso sobre a cabeça dos homens já sentenciados. Os vam a interpretação, concluem que não há qualquer inter-
fracos negam a vida e expressam esta negativa num código ,
j'
pretação, que tudo é sem sentido, sem significado e sem
moral. Devido à sua fraqueza, eles estão já sentenciados a um fim e, assim, nada tem valor ou é para desejar. Outros
morrer e o seu código moral é, realmente, uma ratificação tentam agarrar-se aos valores morais tradicionais, mesmo
desta sentença. Aqueles, contudo, em cujas veias o fluxo I sem qualquer fundo metafísico ou teológico. Lançando mão
da vida corre forte, devem erguer-se acima do ar envene-
nado e corrosivo exalado pelos mortos e pelos que estão
j desses valores como um meio de autodefesa, resistem às
naturezas fortes e independentes e procuram tiranizá-las.
a morrer, e afirmar, com alegria e coragem, o seu desejo O resultado é que os fortes voltam-se contra os pretensos
de viver e a sua vontade de domínio. Para que um homem
se eleve à sua mais alta glória e poder, tem de se colocar
acima da moral: os tipos vitais não devem deixar-se ven- ! tiranos e contra os seus valores morais, e tratam de os des-
truir. Em ambos os casos surge o niilismo, embora, no
primeiro caso, esse niilismo possa ser de um tipo passivo e,
cer pelos fracos e decadentes.
A demolição da moral é ajudada pela própria moral.
:Ê isto o que Nietzsche expressa, quando diz que a moral
I
1
no segundo, activo e dinâmico. A moral, com os seus falsos
valores, conduz, portanto, a um inevitável niilismo.
Mas, embora Nietzsche considerasse o triunfo do
cristã é niilista. No próprio prefácio do primeiro volume
I
nülismo como inevitável, estava muito longe de o desejar
da Vontade de Domínio, declara ele - prescientemente - como um fim. Pelo contrário, considerava-o como ponto
que «toda a nossa cultura na Europa vem de há muito a de apoio para a afirmação de novos valores; a destruição
debater-se numa agonia em suspensão, que cresce de década do que é velho é preparatória para a criação do que é novo.
para década, como na expectativa de uma catástrofe; é O anarquista é condenado por Nietzsche. ~Acreditai·me;
uma agonia sem descanso, violenta, em debandada, como amigo Hollaballoo I Os grandes acontecimentos não são as
i
158 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA

nossas horas ruidosas, mas as mais silenciosas. O mundo


I1 A CRíTICA DA MOUAL POU NIETZSCHE

provém que, por maior razão, há necessidade de exa-


159

gira, não em volta dos inventores de um ruído, mas em minar a uma luz bem clara estas duas espécies de moral
volta dos inventores de novos valores. E ele gira silenciosa- e pôr em relevo as características que as distinguem, para

I
mentes (1). Um dos mais importantes capítulos de Zara- habilitar o tipo superior de homem a libertar-se das malhas
tustra denomina-se Velhas e Novas Tábuas. Zaratustra grita: da moral do escravo.
«Quebrai-me, quebrai-me as tábuas dos sempre desconten- Na moral do senhor, aquele que governa é quem deter-
tes! Quebrai, quebrai as tábuas já velhas dos devotos e mina o conceito de bom e ele vale-se para isso da «dispo-
aniquilai as máximas dos caluniadores do mundo». Mas o sição exaltada e orgulhosa», usando a antítese bom e mau
que era velho foi quebrado, para dar lugar ao que era com a significação de nobre e desprezível. O tipo nobre de
novo: Nietzsche quer colocar os valores nobres no trono. homem olha-se como um determinador de valores; sabendo
«o fim seria preparar uma transmutação de valores para que é ele pr6prio apenas quem confere honra às coisas, apre-
uma espécie de homem particularmente forte, mais alta- senta-se como um criador desses valores. Na moral do
escravo, são os escravos, os fracos, quem determina os
mente dotado de intelecto e vontade e, com esse fim, liber-
valores, usando da antítese bom e mau, no sentido daquilo
tar nele, vagarosamente, uma hoste de instintos calunia-
que é vantajoso ou desvantajoso para o rebanho. Assim
dos até então conservados em cheque» (2). No lugar,
como a força, a beleza, o poder, a nobreza excedem as qua-
portanto, da decadente moral do escravo ou do rebanho,
lidades opostas de fraqueza, vulgaridade, mediocridade, etc.,
Nietzsche irá colocar a moral aristocrática ou moral do
assim a moral do senhor ocupa um lugar superior ao da
senhor. Vimos já, no capítulo sobre o Super-homem, a dis-
moral do 'escravo e o senhor é superior ao escravo. Temos,
tinção que Nietzsche estabelece entre estes dois tipos pri-
portanto, uma ordem de categoria, em que o homem superior
mários de moral, um deles originando-se na classe dos que
representa a linha ascendente da vida e o homem inferior
governam, «agradàveImente consciente de ser diferente da
representa a linha descendente da mesma vida.
classe governada», e outro tipo tendo origem na classe Nietzsche insiste constantemente nesta distinção radical
governada - os escravos e dependentes de todas as espé- e opõ-se a todos os pontos de vista democráticos e socia-
cies. Nietzsche aponta o facto de que «nas civilizações listas que exaltam a igualdade dos homens, o que dá em
superiores e mistas fez-se uma tentativa para conciliar estas resultado um nível geral da mediocridade. No Zaratustra
duas espécies de moral, «mas encontra-se ainda a maior diz ele: «Portanto, 6 meus irmãos, há necessidade de uma
parte das vezes a confusão e um mútuo desentendimento nova nobreza, que será a adversária de toda a populaça e
entre elas e, algumas vezes, a sua cerrada justaposição- domínio de potentados, e inscreverá de novo a palavra nobre
até no mesmo homem, dentro de uma s6 alma» (3). Daqui como novas tábuas. Há necessidade de muitos nobres, de

(1) Zaratustra, pg. 158.


J muitas espécies de nobres, para uma nova nobreza. Ora.
como eu disse uma vez por parábola, «esta é exactamente
(2) A Vontade de Domínio, ü. aforo 957. a divindade: há deuses, mas não há Deuss, «A minha filo-
(3) Para Além lUJ Bem e lUJ Mal, aforo 260.
160 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA
A CRíTICA DA MORAL POR NIETZSCHE 161
sofia, diz Nietzsche, visa uma nova ordem de categoria».
como uma coisa que eles possam opor a si mesmos, ou seja
(A Vontade de Domínio (1) ). O rebanho odeia toda a ordem
um inimigo a combater. O homem precisa de inimigos, se
de categoria, o seu instinto está a favor do nivelador; tende
quiser conservar-se à altura; precisa, em qualquer caso, de
para um estado estacionário da sociedade, meramente con-
uma guerra espiritual, ou seja o conflito entre uma avaliação
servador e incapaz de criar. O tipo homem pode apenas ser
e outra. Continue o rebanho na posse da sua avaliação e da
elevado por meio duma nova ordem de categoria. «Eu ensino sua moral, contanto que os homens superiores adquiram e
que há homens superiores e homens inferiores e que um conservem a sua liberdade. «O espírito do rebanho deve
simples indivíduo pode, sob determinadas circunstâncias, jus- governar sobre o rebanho e não para além dele; os seus
tificar milénios completos de existência - Se se trata dum guias requerem uma avaliação fundamentalmente diferente
homem mais rico, mais prendado, maior e mais completo, para as suas acções, como a requerem também os inde-
quando comparado com inúmeros homens imperfeitos e frag- pendentes ou os animais selvagens, etc.» e). Era aos inde-
mentários. O alvo a atingir não é «a espécie humana», mas pendentes que Nietzsche se dirigia principalmente, para os
o «Super-homem:\) (2). incitar à liberdade; a sua intenção não era desorganizar os
Do que acabamos de dizer conclui-se claramente que, membros do rebanho nem privá-los do pouco que eles pos-
para Nietzsche, não há moral absoluta, pois, segundo a sua \, suíam. (Devemos também notar que, quando Nietzsche nOS
forma de ver, toda a moral é relativa. «É imoral dizer que 1
! fala de raças superiores e raças inferiores, quer-se referir
«o que é recto para um é conveniente para outro». Nietzsche a diversos tipos de homens e não às raças no sentido das
não prega a destruição do rebanho; pelo contrário, a espécie modernas teorias da raça. Por isso, em A Genealogia do
I
inferior tem de ser considerada como o alicerce sobre o qual
a espécie superior deve viver a sua vida também superior. i Moral, estabelece ele como máxima «não nos associarmos
a qualquer homem que faça parte desse mentiroso embuste
Esta é a justificação da raça inferior, principalmente daquela
que existe para o serviço da raça superior e soberana «que
I da raça». E Nietzsche foi sempre um tenaz adversário do
antí-semítismo).
está acima dela e pode apenas ser elevada sobre os seus

I
O ódio de Nietzsche à moral que não reconhecia a
ombros à tarefa que está destinada a desempenhar» (3). ordem de categoria e a relatividade da avaliação foi uma das
A existência do rebanho é, assim, até desejável, para que principais razões por que ele condenou tão amargamente o
possa servir de alicerce a uma raça superior de homens e J «idealismo». Por isso declarou que a moral foi sempre «a ver-
para que possa ser, digamos assim, um elemento de contraste ~ dadeira Círce dos filósofos». «Todos os filósofos, incluindo
com esses homens. Nietzsche diz até que os homens supe- I o próprio Kant, estiveram a construir debaixo da sedutora
riores precisam da Igreja, não por causa de si próprios, mas I influência da moral: tinham como alvo a certeza e a ver-
dade, mas apenas aparentemente. As filosofias de Kant, de
(1) A Vontade de Domínio, i. afar. 287
(2) A Vontade de Domínio, ii. MOT. 997 e 1.001.
(') A Vontade dRJ Domíf1:lo, ii, aforo 898. (') A Vontade de Domínio, ii, aforo 287.
162 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
A CRITICA DA MORAL POR NIETZSCHE 163
Hegel, de Schopenhauer e de outros têm todas uma origem talízação final da vida e uma chinesice do filósofo de
moral; era o interesse moral, o desejo de estabelecerem uma Conísberga» (l).
moral absoluta que constituía o seu arriêre-pensée. Sendo Num estudo completo do ensino de Nietzsche sobre
assim, Nietzsche retrata-nos os filósofos como inimigos da moral, teríamos de discutir a sua atitude perante certos
vida, na medida em que a moral absoluta é também de si Fenómenos morais, tais como virtudes, vícios e instituições.
própria inimiga da vida, entravando por todas as formas Isso, porém, não pode ser feito dentro das breves considera-
o desenvolvimento dos homens. superiores. «A história da ções que constituem o plano deste livro. No entanto, é de
Hlosofía é a história de um ódio secreto e louco contra interesse considerar em breves palavras a atitude geral de
todas aquelas necessidades da vida que devem ser consi- Nietzsche perante o casamento. Nietzsche disse, certamente,
deradas em primeiro lugar, contra todos aqueles sentimentos coisas bastante duras acerca das mulheres, mas nunca teve
que têm como alvo os valores reais da vida, e ainda contra intenção de as rebaixar como tais; queria apenas que elas
todo o estado de espírito que se mostra partidário da vida. realizassem a sua função natural. «Ouviste a minha resposta
Até ao presente, a filosofia tem sido a grande escola da a quem me perguntava como, de facto, a mulher pode ser
calúnia; os filósofos acreditavam em «verdades» morais e curada e «salva»? - Dai-lhe um filho» e). As pessoas que,
julgavam ter encontrado em tais, verdades os mais altos realmente, procuram rebaixar a categoria das mulheres são
valores. Que alternativa lhes restava, salvo a de negarem aquelas que lutam pela «igualdade de direitos», pela eman-
a existência, tanto mais enfàticamente quanto mais a iam cipação das mulheres; sem dúvida, não há processos mais
conhecendo ? ..Porque esta vida é imoral; baseia-se sobre certos de rebaixar a categoria das mulheres do que «a edu-
primeiros princípios universais e a moral diz não à vida (I). cação universitária, as calças e o direito de voto como um
Kant não deixa de receber alguns ataques particularmente rebanho». Ibsen é «uma solteirona típica». A mulher ver-
duros. Este fil6sofo, «um fanático moral», sarrasta-nos para dadeiramente feminina «luta com unhas e dentes contra
subterfúgios dialécticos que conduzem ao seu imperativo todos os direitos em geral». O verdadeiro lugar de uma
categórico» (2). Mas este imperativo categórico é hostil à mulher não é, portanto, nas assembleias eleitorais ou na
vida. Nada mais profunda e mais completamente prejudi- cadeira do juiz, mas sim em casa.
cial do que todo o sentimento impessoal do dever, do que Mas, embora Nietzsche defenda a instituição do casa-
todo o sacrifício ao Moloch da abstracção. E ninguém mento, não é de opinião que os «casamentos de amou são
havia ainda pensado em que o imperativo categórico de Kant o ideal. Para os que amam, diz ele, «a satisfação do desejo
era perigoso para a vida! S6 o instinto do teólogo o tomou sexual é sentimental; é um mero símbolo» (com efeito,
debaixo da sua protecção. «Dever, virtude, estas abstrac- Nietzsche colocou a amizade entre os homens acima do
ções impessoais, são meras ficções que exprimem a desví- casamento e das relações sexuais, do ponto de vista do

(1) A Vontade de Domínio, i, aforo 461. (1) Anticristo, pg. 138.7.


f') Para além do Bem li! do Mal, aforo 5. (2) Ecoe Ramo, pg. 65-6.
164 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA

amor e do «intercâmbio entre as almas». Comparem-se 0.,


Gregos). «O casamento, tal como compreendido pela ver-
1
1
A CRITICA DA MORAL POR NIETZSCHE

criarem um que seja mais do que aqueles que o criaram.


165

O matrimónio é o respeito recíproco dos que coincidem em


dadeira velha nobreza significa a reprodução da raça... tal vontade. Sede de criador, seta e desejo de Super-homem:
isto é, a manutenção de um tipo de domínio fixo e definido, diz-me, meu irmão, é essa a tua vontade do matrimónio?
e é para esse fim que o homem e a mulher se sacrificam» C).
O casamento deve, portanto, ser regulado com 'este fim em I Santa é para mim tal vontade e santo tal matrimónio» (1).
Tal é a inspiração ideal do casamento. Presentemente, con-
tudo, os casamentos são muitas vezes arranjados à pressa,

I
vista.
«Quanto ao futuro do casamento - Uma sobretaxa sem qualquer espécie de inspiração orientadora e, muitas
sobre a propriedade deserdada, um prazo maior de serviço vezes ainda, sem inspiração de espécie alguma, salvo o
militar para os solteiros com certo mínimo de idade dentro desejo imediato da satisfação. Mas a dissolução do matri-
da comunidade. mónio, no dizer de Nietzsche, é muito preferível a ter
Privilégios de todas as espécies para os pais que espa- de manter-se uma união infeliz. «Disse-me um dia uma
lharem filhos pelo mundo, e talvez mais votos. mulher: Quebrei, sem dúvida, o meu casamento, mas pri-
Um certificado médico, como condição de qualquer meiramente me quebrou ele a mim» (2). Olhando assim o
casamento, dimanado das autoridades paroquiais, no qual casamento a sério, Zaratustra reclama casamentos de expe-
se responda a uma série de perguntas dirigidas aos riência. «Dai-nos um prazo determinado e um pequeno
nubentes e ao delegado de saúde (<<hist6ria das famílias»). casamento, para que possamos ver se estamos habilitados
,1 contrair o grande matrimónio. E: um assunto de grande
Como reacção contra a prostituição, ou como sua nobí-
Iitação, eu recomendaria os casamentos a prazo (um prazo importância o sermos sempre dois» ·e).
de anos ou meses) com a garantia necessária para os filhos. Sim, o casamento é uma coisa séria e é, sem dúvida,
Todo o casamento devia ser garantido e sancionado um assunto de grande importância o sermos sempre dois;
por homens bons e verdadeiros da paróquia, constituindo mas os casamentos de experiência estariam muito longe de
isso uma obrigação paroquial» (2). aumentar o respeito pelo matrimónio. E: absolutamente
Pontos de vista semelhantes, embora apresentados mais certo que, muitas vezes, as pessoas se casam precipitada-
poeticamente, podem ser encontrados no Zaraiustra, onde mente e é também verdade que, frequentemente, os casa-
Nietzsche anseia sequiosamente pelo homem superior - em mentos são mal sucedidos, porque um, ou ambos os CÔn-
última análise, pelo Super-homem, como a inspiração do juges, se recusam a pôr em prática aqueles meios que
casamento. «Tu deves não só reproduzir-te, mas exceder-te poderão fazer do matrimónio uma feliz e bem sucedida
a ti mesmo. Oxalá que o jardim do matrimónio te ajude união. Um ou ambos são autoritários, não procuram domi-
para esse fim I Matrimónio chamo eu ao desejo de dois
(1) Zaraiustra, pg. 80-1.
(2) Zaratustea, pg. 258.
(1) A Vontade de Domaüo, Ü, aforo 32.
(8) ZO'ratU8tra, pg. SO-1.
(2) A Vontade de Domínio, ii, aforo 733.
166 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
A CRíTICA DA MORAL POR NIETZSCHE 167
nar-se, chegam mesmo a desprezar o cumprimento daquelas
qualquer questão particular como a do casamento: seria
obrigações que assumiram - e o desastre é inevitável. Desde preciso recuar muito. Queremos apenas acentuar que a ideia
que haja uma prévia consideração e um desejo constante, que ele faz do casamento leva -levou e continua a levar
sincero e devoto de tornar o casamento bem sucedido, não - à degradação do matrimónio. A instituição do casamento
há razão para que qualquer matrimónio venha a ser um apenas pode existir sobre um alicerce religioso. Realmente
insucesso. Os casamentos de experiência diminuiriam possi- Nietzsche, embora professamente irreligioso, dá-lhe uma
vehnente a prostituição (veja-se o que se passa na Rússia atmosfera religiosa, mas então a atitude deste filósofo
dos Sovietes), mas iriam certamente aviltar o casamento. perante a vida tinha toda a seriedade de uma atitude pro-
O matrimónio cristão é um sacramento e uma instituição fundamente religiosa; a irreflexão e o absoluto autoríta-
sagrada, e os casamentos mal sucedidos são devidos - não rismo de um homem realmente irreligioso estavam muito
à indissolubilidade do casamento ou a qualquer doutrina longe do seu carácter- e são estas deficiências de carácter
cristã sobre esse sacramento - mas à imprevidência e falta tI que fazem ser mal sucedido o casamento, mesmo quando
de consideração, defeito ou egoísmo por parte de ambos os 1
tais defeitos se encontram naqueles que são professamente
cônjuges. Necessário é também frisar que, embora a função religiosos. O idealismo e a seriedade de Nietzsche mere-
biológica primária do casamento seja a procriação de filhos, 1 ciam uma melhor filosofia do que a filosofia ateia da von-
e embora os pais desejem certamente educar os filhos tade de domínio e do Super-homem.
melhor do que eles próprios o foram, o matrimónio ficaria 1 Depois deste parêntese sobre o casamento, que temos
completamente rebaixado, se fosse considerado como uma \ a dizer sobre o ensino geral de Nietzsche no que se refere
simples instituição com fins reprodutores. O casamento é j à moral? Realmente Nietzsche expôs moral? :e:, de facto,
um acto racional por parte de seres racionais, e existe, não a moral um fenómeno de decadência? Não, Nietzsche não
s6 para propagar a raça - mesmo num sentido ascendente
- mas também para mútuo conforto 'C ajuda dos esposos.
1 expôs moral; o que ele expôs foi o vácuo daqueles que não
são verdadeiramente morais. A moral, de per si, não é deca-
O homem e a mulher que fazem um contrato abençoado dência nem é hostil à vida; mas a atitude assumida por
pelo Autor da Natureza -declarado indissolúvel por Cristo pessoas que professam a moral pode muito bem ser hostil
Nosso Senhor - têm à sua disposição a ajuda divina para 1 à vida. Podemos tentar responder a duas perguntas:

~
tomarem o seu casamento feliz. Isto requer muita auto- 1) Tem a moral um significado biológico qualquer, que seja
-renúncia da sua parte - o que pode muitas vezes ser difícil ou é hostil a toda a vida? 2) :e: a moral hostil à linha ascen-
- mas nunca é impossível, desde que cada um contribua ,."
dente da vida, isto é, aos homens e mulheres excepcionais?
com a sua parte. Por certo, àquele que não acredite no Pelo que se refere à primeira pergunta, é evidente que a
Autor da Natureza e que rejeite Cristo 'C a revelação cristã, moral- refiro-me à moral considerada no sentido da ética
tal reflexão poderá parecer uma cansada repetição de natural, pondo de parte por um momento a moral especifi-
«clichés) já gastos e até «imorais». Mas é uma tarefa camente cristã - tem significado bíológíco , e Nietzsche.
ingl6ria tentar entrar em luta com o ateu a respeito de sem dúvida, concordaria coro este facto, desde que, para
168 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA , A CRÍTICA DA MORAL POR NIETZSCHE 169
ele, a moral defende a vida dos escravos, dos fracos, do
rebanho, e expressa a sua vontade de domínio. Mas o signi-
I
\
j
biológico com referência ao indivíduo, a todo o homem, e
isto equivale a dizer que tem um significado biológico pelo
ficado biológico da moral não está limitado a determinado i
que se refere à sociedade. (Ao acentuarmos a função bio-
tipo de homem; estende-se ao homem como tal. Por exem- ! lógica da moral, não pretendemos sugerir que este aspecto
plo, o homem, como notou Aristóteles- e como qualquer
pessoa de senso poderá ver- é um animal social, um zoon
polítikon, e muitos preceitos referem-se à conservação da so-
j abarca toda a sua natureza. O homem, animal social, e o
mundo 'em que ele se encontra, são o efeito de uma Causa
transcendente-imanente, Ú' princípio criador da; vida-
ciedade, o que} certamente, tem uma função biológica. Os Deus - e a moral tem assim uma referência transcendental,
preceitos fundados na Lei de Moisés, contra o roubo e mTI alicerce e uma justificação. Mas nós desejamos pôr
assassínio, por exemplo, visam a conservação da sociedade, agora em relevo a função biológica da moral, deixando num
sociedade sem a qual o homem não pode viver como animal plano mais afastado a sua base transcendental e a sua refe-
social. Podem chamar-lhe «moral de rebanho», se quise- rencia).
rem; mas que seria o homem sem a sociedade? Ele A moral visa, portanto, a conservação e o desenvol-
deve a sua vida à sociedade - à família pelo menos - e vimento da espécie humana, do homem, do animal social.
deve a sua educação e a possibilidade de desenvolvimento à Mas surge então a questão mais importante, já mencionada
mesma sociedade. Sem a sociedade, ou sem alguma relação anteriormente.. A moral é hostil à linha ascendente da vida,
real com a sociedade, o homem não pode viver, nem pode no sentido de se opor ao desenvolvimento dos homens excep-
desenvolver completamente aquelas potencialidades que lhe cionais ? Parece-me que a resposta depende, em grande parte,
pertencem como um ser vivo e humano. do que entendermos por homem excepcional ou superior.
Os preceitos éticos - que só podem ser tratados sepa- Se queremos significar o bárbaro, a besta hirsuta, a ave de
radamente e devidamente «justificados» num tratado sobre rapina, o homem forte que espezinha o fraco, o aventureiro
ética e não num livro como este - preceitos esses que ten- egoísta, aquele que procura o poder sem qualquer escrúpulo,
dem para a conservação e desenvolvimento da sociedade, então temos de admitir que a moral é hostil a tais homens,
não tendem, portanto, para o desenvolvimento da sociedade desde que eles procuram demolir a sociedade. Mas esses
como em oposição aos seus membros, porque a sociedade homens são tipos desejáveis? Se nos disserem que sim e
é composta por esses membros. Na história da ética vamos nos afirmarem que tais homens são produções biológicas
encontrar fenómenos tais como o iaho, etc., mas estes, por superiores ao homem socialmente consciente e socialmente
muito estranhos que pareçam àqueles que estão acostumados comprometido, então a moral é, sem dúvida, hostil à vida.
apenas aos códigos morais da Europa modema, têm, sem Se nos disserem que não, então a moral não é hostil à vida.
dúvida, um significado biológico, tendendo para a conser- Se, contudo, por homens excepcionais, entendermos os
vação da sociedade. E, desde que a sociedade é composta de homens dotados de notável habilidade artística, científica
seres humanos e o homem é essencialmente social no seu ou política, nesse caso a moral não é hostil a tais homens.
carácter, pode-se afirmar que a moral tem um Significado Como pode a moral ser hostil a homens como Sélon, Au-

• "
170 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA A CRíTICA DA MORAL POR NIETZSCHE 171
gusto, Alfredo o Grande, Salazar, ou como Fídías, Fra sociedades altamente civilizadas, podem ser também alta-
Angélico, Miguel Ângelo e Rubens? E; perfeitamente ver- mente educadas e possuir uma perícia intelectual e um poder
dade que grandes homens têm sido perseguidos - mesmo de raciocínio de notável categoria. Por outro lado, temos
até à morte - por elementos representativos da sociedade, também de admitir que há alguns cristãos «morais» que
como Sócrates, por exemplo, mas não tem sido a moral a cul- mostram pequena energia e vitalidade. Os próprios prega-
pada, por mais princípios morais que tenham sido invocados dores cristãos não reprovam aqueles, cuja ideia da prática do
por juízes faltos de justiça. Há uma cegueira, maior ou amor para com o próximo vai pouco além do que absterem-se
menor, pelo que se refere aos valores morais, e há possibili- de fazer aos outros qualquer mal? Pode ser, corno Nie-
dade de desenvolvimento da observação do carácter real tzsche não hesita em afirmar, que o medo tenha alguma
desses valores; nestas condições, o progresso da raça humana coisa a ver com isso, dando como resultado uma perversão
está largamente condicionado pelo desenvolvimento dessa da máxima «faz como querias que te fizessem». Há, ainda,
observação. Sócrates penetrou mais profundamente nos valo- aqueles para quem a pureza é alguma coisa de carácter
res morais do que os seus contemporâneos e falou em nome predomínenbemente negativo. Caridade, pureza, etc. são,
da moral. Foi condenado, ostensivamente, em nome da mo- para estas pessoas principalmente, negativas; e pouco, tal-
ral, mas realmente por homens de um carácter moral menos vez, de vida positiva e palpitante se poderá encontrar nas
elevado que o seu. Sócrates falou em nome da moral e dese- suas vidas. Qual de nós, sem dúvida, ousará dizer que vive
jou elevar o homem; as feras humanas (não quero, por certo, plenamente a vida cristã?
referir-me aos juízes de Sócrates) desejam elevar-se a si
próprias, à sua nação ou a ambas as coisas, mas nunca pre- De bom grado admitimos tudo isto: mas que importa
tendem elevar o homem. E; moral Sócrates, que é favorável tal admissão? Tomemos os exemplos excepcionais do carácter
à vida (porque a vida, com licença de Nietzsche, não é ori- «imoral», ponhamo-los em contraste mm os mais pobres
ginalmente imoral); são imorais as feras, que são hostis à exemplos do carácter «moral», e admitiremos que os últimos
vida, pelo menos no que se refere ao desenvolvimento de mostram certa falta de vitalidade em comparação com os
uma vida superior. . primeiros. Mas tomemos agora os mais pobres exemplos de
Mas não são as feras os homens vigorosos, e não são ambos os lados. Quem está preparado para dizer que o mise-
os homens morais os anémicos, os tímidos, os medrosos e os rável e insignificante, desonesto e impuro pequeno egoísta é
decadentes? A esta pergunta pode talvez ser dada uma res- um tipo mais admirável do que o cristão medíocre? Tome-
posta com referência aquela moral cristã, cujo carácter deca- mos depois os mais notáveis exemplos de ambas as partes.
dente e desvitalizador Nietzsche afirma tão persistentemente. Dum lado encontramos o homem de poder, o eímoralístas
Podemos admitir imediatamente que as feras humanas são talentoso e sem escrúpulos, o egoísta em grande escala que
vigorosas, cheias de vida, naquilo em que elas mostram ener- renegou a moral; por outro lado, vemos o santo cristão,
gia 'e actividade e naquilo de que elas lançam mão como cheio de amor a Deus e ao pr6ximo e que, por amor, se sacrí-
meios para atingirem os seus fins. Quando aparecem em ficou ao máximo. Qual deles é o mais hostil à vida? O ho-
172 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA
CAPITULO VI
mem que destrói, atropela, renega os valores aceitos, que I
i ANTICRISTO
despreza o rebanho vulgar e afirma que os seus interesses

I
estão acima de tudo, ou o homem que é um canal dc luz e
de amor para as multidões, que é firme e constante no sacri-
fício, não por ódio à vida, mas por amor à Vida e a todos
os homens e mulheres vivos? O homem que se serve dos I
outros como um degrau para satisfazer à sua ambição ou
o homem que diz com o seu Divino Mestre «Eu vim para
flue eles possam ter vida e a possam ter mais abundante-
mente»? Nietzsche pode pensar que Napoleão foi um tipo
superior a S. Paulo ou a S. Francisco, mas é absurdo dizer
que Napoleão afirmou a vida mais do que S. Paulo ou
S. Francisco. Os santos afirmaram uma vida mais larga
e mais profunda do que afirmaram os homens superiores
de Nietzsche -e até o seu Super-homem. Estamos de
acordo com Nietzsche ao desejar vida e vitalidade, mas
I No Ecce Homo, Nietzsche
fala-nos do seu «incomparável» pai e apresenta-o como

tal desejo não deve ser satisfeito com a negação de uma I uma pessoa «delicada, amável e mórbida, uma daquelas
pessoas predestinadas a fazer uma rápida visita - e que
vida superior. Nós, os cristãos, precisamos do estímulo de ficam sendo mais uma graciosa lembrança da vida do que
Nietzsche para afirmar os valores da vida natural- pode- a própria vida». O pastor Nietzsche era um clérigo cristão
mos, sem dúvida, tender para a unilateralidade - mas
Nietzsche foi também unilateral, e muito mais perigosa- I e a atitude do filho perante o Cristianismo deve ter sido
largamente influenciada pela sua piedosa educação. À pri-
mente; negou os valores do sobrenatural ou, se os julgou
impossíveis de encontrar, foi porque os procurou onde eles
I
I
meira vista, esta asserção poderá parecer estranha, mas é
muito provàvelmente verdadeira no sentido que intenta-
nunca podem ser encontrados -longe daquele Deus que 1 mos dar-lhe. A hostilidade crescente e enérgica de Nietzs-
é a Vida e a fonte da Vida, quer natural quer sobrena- che contra o Cristianismo, que culminou no grito de desafio
tural. «Dioniso versus Cristo», parece trair uma ligação ao Cris-
tianismo, de que ele nunca pôde libertar-se. É mesmo pro-
vável, como já foi sugerido por outros escritores, que
Nietzsche se sentisse perturbado por dúvidas secretas
quanto ao valor e verdade do seu próprio ensino e quanto
à falta de valor e falsidade da religião cristã, e assim as
suas furiosas acusações e a sua atitude de desafio tinham
_ pelo menos em parte - a inconsciente função de mas-
li-! NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA

carar e senhorear a sua instável convicção quanto à reali-


f
I
ANTICRISTO 175
não é, por certo, o ensino católico que diz que Deus anuncia
dade da sua pr6pria missão. Aquele escárneo tolerante do «terríveis consequências» para aqueles que, inconsciente-
céptico e do cínico está afastado - por forma digna de
menção-i- dos seus escritos; Nietzsche acusa e odeia aqui-
j mente, interpretam mal a sua verdade).
Mas a objecção principal de Nietzsche contra Deus é,
lo que ele sabe ser uma realidade e que ele teme i--, J como podemos esperar, que Ele, ou a noção de Deus, é
embora não queira admitir tal receio da sua parte- hostil à vida. Já na Gaia Ciência ele nos fala das perspec-
que possa ser a realidade. A luta interior - tanto mais tivas que foram abertas pela notícia de que «Deus estava
poderosa, porque não era trazida à luz do dia e conscien- morto». «De facto, nós, os filósofos e «espíritos livres»
temente apreendida - podia muito bem ter sido uma das sentimo-nos iluminados por uma nova aurora com a notícia
causas que contribuíram para o seu desarranjo mental. de que «Deus está morto»; os nossos corações transbor-
Em primeiro lugar, a ideia de Deus. Em A Genealogia dam de gratidão, de admiração, de pressentimento e de
da Moral, Nietzsche sugere que a ideia de Deus foi origi- expectativa. O horizonte parece, finalmente, mais uma vez
nada no medo. O medo primitivo dos antepassados e do seu aberto, admitindo mesmo que não seja brilhante; os nossos
poder levaram gradualmente à transfiguração do antepas- navios podem, por fim, sair para o mar, enfrentando qual-
sado num deus (i). Mas" de qualquer forma que a ideia de quer perigo; todo o risco está agora ao alcance daquele
Deus tenha sido originada, a noção cristã de Deus é que for prudente; o mar, o 1108S0 mar, está novamente
necessiuiamente inaceitável. «Um Deus omnisciente e aberto diante de nós e talvez nunca tivesse existido um
omnipotente que não se empenha para que as suas inten- «mar aberto» desta natureza» (1). (A notícia de que «Deus
ções sejam compreendidas pelas suas criaturas - poderá ser está morto» significa, sem dúvida, que a' vida está sem um
um Deus de bondade? Um Deus que, durante milhares de sentido determinado. Mas, quando o homem, marinheiro
anos, tem permitido que continuem à solta inumeráveis aventuroso, se lança ao mar sem o Piloto divino, encontra
dúvidas e escrúpulos, como se não tivessem importância tempestades da natureza daquelas que estamos presen-
para a salvação da humanidade, e que, no entanto, anuncia ciando hoje e das quais ele não pode salvar-se, se os seus
esforços não forem ajudados). Os que acreditam em Deus
as mais terríveis consequências para todo aquele que inter-
desprezam a vida, são decadentes e blasfemos da Terra.
prete mal a sua verdade? Não seria um deus cruel, se,
«Aconselho-vos, meus irmãos, a que vos mantenhais fiéis
estando ele mesmo na posse da verdade, pudesse olhar
à Terra e não acrediteis naqueles que vos falam de espe-
calmamente a humanidade num estado de miserável tor-
ranças para além da Terra. Esses homens são envenenadores,
mento e martirizando o espírito para descobrir a ver-
quer o saibam quer não (2). «O conceito de Deus foi
dade Ps (2) (Pondo de parte o facto de que Deus deu aos
criado como oposto ao conceito de vida - tudo o que há de
homens meios de conhecerem a verdade, devemos dizer que

(l) Gala Ciência, aforo 343.


(I) G8nealogfa da Moral, pg. 106-8. (2) Zaratus.tra, pg. 7.
('J Aurora, aforo 91.
176 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA ANTICRISTO 177
nocivo, de venenoso e difamatório, e toda a hostilidade qual não fizera um estudo profundo; e quando declara, no
mortal contra a vida se encontra condensado n'Ele, numa Crepúsculo dos Ido los: «O conceito de Deus tem sido até
terrível unidade» (1). Assim fala Nietzsche no Ecce Homo, agora a maior objecção à existência... Nós negamos Deus,
quando toda a moderação de tom foi posta de parte. negamos a responsabilidade em Deus», é principalmente no
O mesmo espírito e tom encontram expressão no Anticristo, efeito desta negação que ele está a pensar - «a grande
quando Nietzsche fala do «miserável Deus do mono- libertação», «s6 assim salvamos o mundo» - quando faz
teísmo cristão, uma criatura híbrida de decadência, de tais declarações, dizíamos n6s, Nietzsche não oferece argu-
nulidade, de conceitos. e contradições, na qual todos os ins- mentos. sérios para justificar a sua posição. :g certo que isto,
tintos de declínio, todas as cobardias e todos os desfaleci- de per si, não demonstra que Nietzsche não tenha razão
mentos de ânimo encontram a sua sanção» (2). Este «miserá- no que diz; mas é um ponto digno de que se lhe preste
vel» Deus do Cristianismo está um degrau abaixo do Deus atenção.
nocional. A transição do Deus de Israel, do Deus de um De acordo com Nietzsche, o conceito cristão de Deus é,
povo, para o Deus cristão, marca, não um passo para a então, o conceito de um Deus que é a contradição da vida.
frente, mas um declínio - «o declínio e a queda de um «Com Deus declarou-se a guerra à vida, à natureza e ao
deus» -, segundo a maneira de dizer de Nietzsche. (Lem- desejo de viver. Deus é a fórmula para toda a calúnia deste
bramo-nos das palavras de Shatov em Os Possessos de mundo e para toda a mentira respeitante ao além-mundo I
Dostoíevsky : «:g um sinal de decadência das nações, Em Deus está divinizada a nulidade, e o desejo da nulidade
quando estas começam a ter deuses em comum; quanto é declarado santo 1» (I) Ora, o conceito cristão de Deus não
mais forte é um povo, mais individual é o seu Deus» e). envolve a negação da vida, mesmo desta vida, embora
Nietzsche nunca foi dado a apresentar argumentos lógicos, envolva a crença de que esta vida não é a única vida nem
pois sempre desprezou a argumentação racional. Nunca, mesmo a vida mais rica - crença que não tira o valor a
com efeito, tentou uma prova científica do eterno retorno, esta vida, mas antes a enobrece e a realça. No entanto,
pois as «provas» que ele apresenta não podem, seriamente, pensando como pensava, Nietzsche adoptou naturalmente
ser consideradas como tal. Da mesma forma, nunca tentou uma atitude contra Deus. Esperava pelo homem do futuro,
realmente uma prova do ateísmo; tentou a «exposição» do pelo Anticristo e Antíníilista, esse conquistador de Deus e
conceito de Deus, afirmando ser uma ideia degeneradora do Nada (2), e sugere, não sabemos se a sério, uma espécie
e hostil à vida. O que ele tem a dizer da origem dessa ideia de liga contra Deus. «Dispersos entre as diferentes nações da
não é muito mais do que uma asserção dogmática, apoiada Europa, há agora de dez a vinte milhões de homens que
sobre noções tiradas da história corrente da religião, da já «não acreditam em Deus» : não poderiam esses homens
dar uns aos outros alguma indicação e qualquer santo-e-
(I) Ecce Homo, pg. 142.
(3) Anticri3to, pg. 147. (') AnttcrisliO, pg. 146.
(3) C. Carnett, Heinemann. 1913, pg. 233. (") Genealogia da Morol, pg. 117.
178 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
ANTICRISTO 179
-senha? Logo que eles se encontrem no seu caminho, dar- baixos, a elevarem-se a uma ordem de coisas aparente-
-se-ão a conhecer e imediatamente se tornarão um poder na mente superior e, desta forma, conservarem-se satisfeitos
Europa e, felizmente, um poder entre as nações, entre as com o mundo actual, em que eles julgam bastante difícil
classes, entre pobres e ricos, entre os que mandam e os que viver - sendo essa própria dificuldade uma necessidade.
obedecem, entre as pessoas mais irrequietas e as mais tran- (Para além do Bem e do Mal, pg. 81). Embora esta citação
quilas e tranquilizadoras» (1). tenha sido longa, ousamos ainda apresentar uma outra em
Voltemos mais especialmente ao Cristianismo. Num

I
que Nietzsche se refere favoràvelmente à persistência do
dos seus primitivos ensaios, Nietzsche teve uma palavra culto religioso nos sentimentos. «A Igreja Cat6lica Romana
boa para o Cristianismo. «De facto, de tempos a tempos e, antes dela, todos os cultos, dominaram toda a categoria
e aqui e ali, um exuberante grau de compaixão abriu, J de meios pelos quais o homem se viu possuído de disposi-
durante um curto prazo, caudais de vida de cultura, um j ções não costumadas e impossibilitado do cálculo sereno do
arco-íris de compassivo amor e de paz surgiu com o í
juízo ou do claro pensar da razão. Uma igreja vibrando
radiante alvorecer do Cristianismo e nasceu então o seu
mais belo fruto - o Evangelho segundo S. João (O Estado
Grego, 1871). Mas não é esta a única passagem em que
I
J
em tons profundos, as preces surdas, regulares e arrastadas
duma multidão de sacerdotes, tudo isto comunica incons-
cientemente a sua tensão à assistência e faz que esta escute,
Nietzsche atribuiu uma positiva e benéfica função à reli-
gião. Assim, na obra Paro além do Bem e do Mal, diz ele
.~ quase atemorizada, como se um milagre estivesse iminente;
junte-se ainda a influência da arquitectura que, tratando-se
que «o ascetismo e o puritanismo são meios quase indis- I da morada de um Deus, se estende para o desconhecido, e
pensáveis para educar e nobilitar uma raça que procura faz que a sua aparição seja receada nos espaços mais som-
elevar-se acima do seu baixo estado hereditário e trabalha brios. Ninguém, por certo, desejaria restituir tais coisas à
para conseguir uma supremacia no futuro. E finalmente, humanidade, desde que as suposições necessárias deixaram
tratando-se de homens vulgares, que existem apenas para de ser acreditadas; no entanto, não se perderam os resulta-
serviço e utilidade geral e que só para isso têm direito de dos de tudo isto; o mundo interior de disposições nobres,
existir, a religião dá-lhes uma valiosa resignação com a sua emotivas, profundamente contritas é inato no género
sorte e condição, paz do coração, enobrecimento da obe- humano, devido principalmente a este culto; o que agora
diência, uma adicional felicidade e simpatia, juntamente existe dele na alma foi então cultivado em larga escala, à

I
com qualquer coisa, de tranfiguração e embelezamento, medida que germinou, cresceu e floriu» (").
qualquer coisa que seja a justificação da vulgaridade, da Mas, embora Nietzsche reconheça assim alguns efeitos
mediocridade e de toda a pobreza semianimal das suas benéficos da religião e embora admita a sua utilidade para
almas ... Não há talvez nada tão admirável no Cristianismo o rebanho, rejeita completamente o Cristianismo quando se
e no budismo como a sua arte de ensinar, mesmo os mais trata de homens superiores, e o seu ataque é certamente

(1) AUf'OTa, aforo 96. (') Humano, Tudo demasiadamant8 Humano, i. aforo ISO.
180 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA ANTICRISTO 181
baseado na crença de que o Cristianismo é hostil à vida, «esses elementos depauperados e excrementícíos», que nós
facto que nós podemos sem dúvida admitir, desde que chamamos cristãos. O Cristianismo, diz ele, «consiste num
«vida» seja interpretada como a vontade de domínio c O alicerce de ressentimento contra tudo quanto é bem suce-
desejo ardente de autoridade por parte do homem forte. elido e dominante. Opõe-se a toda a forma de movimento
«Paganisnw é aquilo que diz sim a tudo quanto é natural, intelectual e a toda a filosofia; toma a defesa dos idiotas e
é a inocência em ser natural, é o carácter natural. Cristia- lança a sua maldição sobre todo o intelecto. :Ê o ressenti-
nismo é aquilo que diz não a tudo que é natural, é uma mento contra todos aqueles que são prendados, doutos e
certa falta de dignidade em ser natural, é a hostilidade à independentes intelectualmente; em todos estes, o Cristia-
Natureza. «Inocente»: - Petrónio é inocente, por exemplo. nismo suspeita o elemento de êxito e de domínio» (1).
Ao lado deste homem feliz, um cristão é absolutamente Ora, pode haver ressentimento, medo e até inveja nas almas
desprovido de inocência» e). (Isto é absurdo - Petrónío de alguns cristãos, na sua atitude para com os homens for-
versus Agues, Tomás Moro e o Cura d'Ars - é Petrónio tes e excepcionais de Nietzsche; mas, na medida em que
mais inocente?) O Cristianismo, de acordo com Nietzsche, essas emoções predominam, eles não estão actuando precisa-
desencadeou uma guerra de morte contra o tipo superior mente como cristãos. Um cristão que invejasse um egoísta
de homem, declarando-o um vilão e colocou-se ao lado de bem sucedido e sem escrúpulos não estaria actuando como
tudo quanto é fraco, baixo e mal-acabado, corrompendo até cristão, e a sua inveja não pode ser imputada ao Cristianismo.
os mais fortes intelectos, «ensinando que os mais altos O cristão, como tal, não invejará, por exemplo, o tirano bem
valores da intelectualidade são pecadores, embusteiros e sucedido, mas condenará a sua ânsia de domínio sem escrúpu-
cheios de tentações» (2). O Cristianismo é a religião do los. Ele tem outro ideal. «Precisamente», pôde Nietzsche di-
rebanho, exprimindo a vontade de domínio dos oprimidos zer, «o cristão tem outro ideal e é um ideal pervertido e dege-
de todas as espécies, de todos os medíocres e de todos os nerado. l! com este ideal que eu disputo. Não escrevi já, no
insatisfeitos. «Os primeiros lutam contra aqueles que são primeiro volume de A Yoniode de Domínio, que não é
pollticamente nobres e contra o seu ideal; os segundos com- com a teologia nem com a teia de aranha dos cristãos que
batem com as excepções e com aqueles que, de qualquer nós temos necessidade de nos haver, mas que uma coisa
forma, são privilegiados (mental ou fisicamente) e os ter- tem de ser completamente destruída - o ideal da humani-
ceiros hostilizam o instinto natural dos felizes e dos dade que o Cristianismo nos apresenta Ps Vale a pena citar
sãos» (S). essa importante passagem, embora seja um tanto longa, pois
Nietzsche declarou que tinha sentido o odor da inspi- traz à luz claramente a principal questão de Nietzsche com
ração orientadora e da emoção dos oprimidos e medíocres, o Cristianismo. Conhecendo o sentido do principal ataque
de Nietzsche contra O Cristianismo, poderemos ver fàcil-

(1) A Vootade de D01TÚnio, i, aforo 147.


('> Anticristo, pg. ISO.
(1) A Vontade de Dom!nio, i, aforo 154.
(3) A Vontade de Domínio, i, aforo 215.
182 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA ANTICRISTO 183
mente como ele resulta da sua filosofia de a vontade de alto desideratum. A criação deste ideal foi a mais espan-
domínio e do Super-homem. tosa tentação que alguma vez foi posta no caminho dos
«o Cristianismo nunca deve ser perdoado por ter seres humanos, porque, com ela, as mais fortes e bem suce-
arruinado homens como Pascal. Isto é precisamente o que didas excepções, os casos afortunados entre os homens, em
devia ser combatido no Cristianismo, ou seja o facto de que que a vontade de domínio e de progresso leva toda a espé-
ele tem o desejo de aniquilar o espírito das naturezas mais cie «homem» a dar um passo em frente, estiveram amea-
fortes e mais nobres. Não devíamos ter descanso, enquanto çados de um desastre. Por meio dos valores deste ideal, o
esta coisa não fosse completamente destruída: o ideal da desenvolvimento de tais homens superiores seria minado
humanidade que o Cristianismo apresenta, as exigências pela raiz. Que é que nós combatemos no Cristianismo?
que ele faz aos homens, o seu «não» e «sim» pelo que se Combatemos o facto de ele procurar destruir os fortes,
refere aos seres humanos. Todos os restantes absurdos, isto quebrando-lhes o ânimo, 'explorar os seus momentos de
é, a fábula cristã, a teia de aranha cristã nas ideias e prin- fraqueza e debilidade, converter a sua orgulhosa segurança
cípios, a teologia cristã, nada disso nos interessa; podiam em ansiedade e turbação de consciência; o facto de que
ser coisas mil vezes mais absurdas, que nós não levanta- ele sabe como se envenenam os mais nobres instintos e como
ríamos um dedo para as destruir. Mas contra o que nós se lhes inocula a doença, até que a sua força, a sua vontade
nos levantamos é contra esse ideal que, graças à sua beleza de domínio se voltam para dentro, contra eles próprios, até
mórbida e sedução feminina, graças à sua insidiosa e calu- que os fortes pereçam devido ao seu excessivo autodesprezo
niosa eloquência, apela para todas as cobardias e vaidades e auto-imolação: - aquele processo de morrer de que Pascal
das almas cansadas - e os mais fortes têm também os seus é o mais famoso exemplo e).
momentos de fadiga - como se as coisas que parecem mais Admirando os Gregos como admirou, Nietzsche não
úteis e desejáveis em tais momentos, isto é, a confiança, a podia senão olhar o triunfo do Cristianismo no mundo antigo
simplicidade, a modéstia, a paciência, o amor pelo próximo, como um desastre cultural de primeira grandeza. Os seus
a resignação, a submissão a Deus e uma espécie de auto- pontos de vista quanto à relação do Cristianismo com a
-abandono fossem coisas úteis e desejáveis per se; como se Antiguidade são de considerável interesse. Nietzsche natu-
o mesquinho e modesto aborto que nestas criaturas desem- ralmente acentua a oposição entre o Cristianismo e a Anti-
penha o papel de alma, este virtuoso, medíocre animal e guidade pagã - «basta debruçarmo-nos sinceramente sobre
carneiro do rebanho, que propõe chamar-se homem, não a Antiguidade para nos tornarmos anticristãos» e)-e declara
estivesse apenas a tomar a prioridade a um tipo de homem que a religião cristã corresponde à condição pré-grega da
mais forte, mais maldoso, mais apaixonado, mais descon- humanidade: « a crença em feitiçarias em conexão com tudo
fiado e mais pródigo, o qual, em virtude destas qualidades, e com cada coisa, os sacrifícios sangrentos, o medo supersti-
°
está exposto a muito mais perigos do que primeiro, mas
estivesse efectivamente a erguer-se como um ideal para o (') A Vontade de Dom!nio, i, aícr. 252•.
homem em geral, como um alvo, uma medida - o mais (") N6s\ os Filósofos, aforo 42.
184 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA
ANTICRISTO 185
cioso dos castigos do Demónio, a falta de confiança cm si
próprio, os êxtases e as alucinações, a personalidade humana
uma condição pré-grega e aos «cultos subterrâneos», e °
segundo que ° Cristianismo nunca entrou em combate mesmo
convertendo-se na arena dos bons e dos maus espíritos e das
com as idades puras da Antiguidade? Embora Nietzsche não
suas lutas» (1). E, assim como o Cristianismo corresponde note abertamente e não resolva a aparente contradição, diz,
às condições pré-gregas, assim corresponde também aos no entanto, o suficiente para mostrar o que pretende signi-
«cultos subterrâneos» do Império Romano, que ele absorveu. ficar. A oida cristã é, no seu modo de ver, a essência do
O mesmo pensamento ocorre também no primeiro volume de Cristianismo, e é anárquica no seu carácter (vid. A Vontade
A Vontade de Domínio, quando Nietzsche diz que o Cristia- de Dominio), mas a Igreja Cristã, com o fim de se manter,
nismo veio ao encontro das necessidades e do nível de inte- teve de se deixar vencer pelo espírito da Antiguidade - como
ligência das massas religiosas do Império que acreditavam «por exemplo, a ideia de império, da comunidade, e assim
em Irís, Mitras e Dioniso, ao encontro da «grande mãe», por diante». Parecerá então que Nietzsche distingue vários
e ao encontro de todos aqueles que reclamavam uma religião elementos do Cristianismo: a primitiva vída cristã, que é
que lhes pudesse alimentar esperanças numa vida futura, essencialmente hostil à mais bela, nobre e aristocrática tra-
uma religião de sacrifício e mistério, de lendas sagradas e dição da Grécia, a crença cristã, que corresponde a certos
redenção, de ascetismo e «purificações», e de hierarquia (2). fenómenos da Antiguidade, e organização e pretensões da
Nestas ideias nada há de extraordinário ou de peculiar Igreja Cristã, que são herdadas das ideias pagãs, tanto
a Nietzsche. No entanto, há nelas uma certa verdade, por- políticas como imperiais. A «contradição» nos pensamentos
que, de facto, o Cristianismo veio ao encontro das necessi- de Nietzsche pode não ser inteiramente resolúvel, mas estes
dades daquelas secções da população que, dotadas de um pensamentos podem sugerir o que ele aparentemente signi-
espírito religioso, procuravam, tacteando, uma religião mais fica e como ele pôde afirmar que «no fim, todas as forças
espiritual e pessoal do que aquela que lhes era concedida em que a Antiguidade consistia reapareceram no Cristianismo
pelo culto pagão oficial; por outro lado, a Igreja usou tam- pela forma mais crua que se pode imaginar: não é nada
bém de certas formas externas do paganismo, sem compro- novo, mas «apenas quantitativamente extraordinário» (1);
meter a sua mensagem aos homens. Mas não é para admirar e «uma crítica dos Gregos é, ao mesmo tempo, uma crí-
que Nietzsche possa declarar também, não só que o Cristia- tica do Cristianismo, juntamente com o culto religioso e a
nismo é, de per si, uma parte da Antiguidade e conservou a feitiçaria. E por isso que ele afirma que «com a dissolução
Antiguidade, mas também que «ele nunca entrou em combate do Cristianismo, uma grande parte da Antiguidade tornou-se
com as idades puras da Antiguidade»? Trata-se de uma crassa
contradição ou duma maneira de reconciliar dois pontos de
incompreensível para nós, como, por exemplo, toda a base
religiosa da vida».
..
vista, sendo o primeiro que o Cristianismo corresponde a Voltaremos mais tarde à relação entre a vida cristã, a
crença cristã e a Igreja; mas, quanto à questão da adopção.
(I) A Vontade de Dominio, i, aforo 151.
(2) A Vontade de Domínio, aforo 196. C) N6s, os Fil6kJgos, afar. 159.
186 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA ANTICRISTO 187

por parte da Igreja, de certas exterioridades do paganismo, foram os vampiros do Império Romano e destruíram o prin-
é assunto de que não podemos aqui tratar. Não é essa, certa- cípio aristocrático da Grécia e de Roma.
mente, uma questão importante pelo que se refere a Nie- E como se tornou isto possível? No Império, aquele que
tzsche; o que é importante é a pretensa hostilidade do Cris- governava, bem como as classes dirigentes, degeneraram, e
tianismo para com o ideal aristocrático e é deste tópico que assim os homens foram levados a descobrir que há também
nos vamos ocupar em breves. palavras. Vimos que o Cristia- virtudes entre as classes inferiores que haviam sido postas
nismo, de acordo com Nietzsche, veio ao encontro das de parte, e que todos são iguais perante Deus - «o que é o
nOll plus ultra de todo o incongruente absurdo que alguma
necessidades das massas religiosas e absorveu os cultos do
mistério. Ora, embora os cultos estivesem dentro do paga- vez apareceu sobre a Terra». «Quando Nero e Caracala esta-
nismo, eles representam uma tendência antipagã, naquilo vam à frente do governo, foi que nasceu o paradoxo: «o
que eram «as religiões para os ínfimos rebanhos, para as homem de baixa condição tem mais valor do que o que se
mulheres, para os escravos e para as classes ignóbeis» (1). encontra sobre o trono». «Sem os Césares romanos e sem a
O Cristianismo é, portanto, a religião própria do rebanho sociedade romana, nunca o Cristianismo teria prevale-
cido» (I).
e desenvolveu-se «entre os párias, os condenados, os leprosos
Ora, é verdade que o Cristianismo se desenvolveu, em
de todas as espécies e também entre os «publicanoss, os
grande parte, entre as classes mais baixas do Império. f: tam-
epecadoress , as prostitutas e os mais desvairados dos homens
bém provàvelmente verdade que os primitivos cristãos não
desprezando os ricos, os doutos, os nobres e os virtuosos» (2):
eram todos, de forma alguma, caracteres ideais. Conhecemos
Lisonjeando a vaidade das pessosas, fazendo-lhes crer que
certamente, escândalos, e é falsear a história o falar do
elas tinham uma alma imortal e que a salvação de cada indi-
Cristianismo primitivo como uma espécie de paraíso, ter-
víduo tinha uma importância eterna, «atraiu para o seu lado
real, à maneira dos protestantes em várias ocasiões. Mas
todos os estropiados e remendados, todos os revoltantes e re-
a sociedade antiga, como o próprio Nietzsche admite - e
voltados, todos os abortos, todo o rebotalho e escórias da hu-
dificilmente ele poderia proceder de outra maneira -
manidade» (3). Desta maneira foi minada a atitude aristocráti-
tinha-se tomado extremamente corrupta nas suas camadas
ca do espírito; de facto «o Cristianismo é a revolta de todas
superiores e, quando S. Paulo condena o pagão, condena
as coisas que rastejam no seu ventre contra tudo que é
os vícios do pagão e não quer dizer que a virtude natural
elevado: é o evangelho dos «humildemente» baixos» (4). Os
e a nobreza de carácter são coisas sem valor. Os escritores
Cristãos, levados pelo seu ódio contra tudo o que é grande e
cristãos exageraram por vezes e, acreditando que a virtude
superior, «como um bando cobarde, efeminado e melífluo»,
e a nobreza meramente naturais não tinham qualquer rela-
ção com o fim sobrenatural do homem, falavam como se
(1) A Vontade de Domínio, i, aforo 196. as mais elevadas realizações do paganismo - de que se
(1) A Vontade de Domínio, i, aforo 207.
(') Anticristo, pg. 186. (I) A Vontade de Domínio, aforo 874.
(4) A Yontode de Domínio, aforo 2m.
r

188 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA

orgulhavam os apologistas pagãos - não tivessem qualquer


valor. Mas não é justo julgar a atitude cristã perante a
I ANTICRISTO 189

mente humanista e diferente do próprio ideal de Nietzsche.

I
E o ideal aristocrático do Cristianismo pode ser classificado
nobreza natural simplesmente pelas exageradas ou enfáticas como hostil à vida, apenas se toda a religião for um tecido
afirmações dos apologistas cristãos. E, de qualquer forma, de mentiras, de lendas e ficção, o que Nietzsche afirmou
como já anteriormente notámos, é desesperadamente injusto bastante livremente, mas que nunca tentou provar. E isto
estabelecer o contraste entre os melhores exemplos do paga- o que nós compreendemos, desde que uma afirmação falsa
nismo e os piores exemplos do Cristianismo. Nietzsche pode não pode ser provada.
não simpatizar oom homens como Santo Agostinho, mas Declarei já a minha intenção de dizer alguma coisa
não pode, com sinceridade, acusá-Ias de não serem intelec- relativamente à maneira de pensar de Nietzsche quanto à
tuais, de serem inimigos da cultura ou efeminados e relação entre a vida cristã, a crença cristã e a organização
degenerados. Foram estes mesmos homens que ajudaram a eclesiástica cristã. Talvez isto se possa fazer melhor, discu-
lançar os alicerces daquela cultura que mais tarde sucedeu tindo a atitude de Nietzsche perante Cristo e S. Paulo. As
à cultura da Antiguidade pagã. Eles deveram muito à cul- suas, opiniões a este respeito não têm nada de novo nem de
tura pagã - gostosamente o admitimos - mas não se particularmente «nietzschiano» - salvo nas suas noções
submergiram no fétido atoleiro, nem na débâcle dessa quanto à hostilidade à «Vida» manifestada pelo Apóstolo,
cultura, pois se ergueram acima dela e deixaram um monu- e o intransigente vigor com que ele o ataca. A tentativa
mento aere perennius, q\1'e se ficou devendo ao Cristianismo. para separar o Fundador do Cristianismo do grande Após-
A aparente hostilidade que o Cristianismo a princípio mani- tolo dos Gentios e para fazer derivar o Cristianismo, como
festou perante a cultura pagã foi condicionada por circuns- religião organizada, de S. Paulo e não de Cristo foi bas-
tâncias históricas, mas não é, de per si, hostil à cultura. tante vulgar nos últimos anos, assim como a tendência para
Nem é também hostil aos grandes homens. A questão é considerar como interpolações posteriores certas passagens
esta: que devemos entender por grandes homens? e qual dos Evangelhos que se adaptavam mal ao retrato de Cristo
é o tipo superior? Nietzsche admite a existência histórica presumido pelo crítico. As sugestões de Nietzsche a tal
de excelentes cristãos, mas procura provar que o que neles respeito podem encontrar paralelo nas obras dos mais
é excelente não foi devido ao Cristianismo. E certo que extravagantes «exegetas», e ele não faz qualquer tentativa
ninguém pode afirmar que o génio matemático de Pascal para defender as próprias asserções. Em Pforta e, sem
foi devido precisamente ao Cristianismo, mas é devido ao dúvida, na universidade, mais tarde, adquiriu certo poder
mesmo Deus que se revelou em Cristo; e que prova há de «exegese», que apenas adoptou e usou para os seus pró-
para afirmar que Pascal foi arruinado e estragado pelo prios fins. Não é minha intenção ocupar-me aqui das asser-
Cristianismo? Teria ele sido mais admirável, se tivesse sido ções da «exegese»; já outros o fizeram e, de qualquer
um César Bórgia? Não é que o Cristianismo não tenha forma, os mais extravagantes pontos de vista dos eexege-
nenhum ideal aristocrático, mas tem um ideal diferente do tas» foram já postos à margem pelos críticos modernos.
da Antiguidade pagã, diferente do do Renascimento pura- Mas, ao tratar da atitude de Nietzsche perante a religião
190 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA ANTICRISTO 191
cristã, é obrigatório dizer alguma coisa a respeito da sua rou-nos a missao do Espírito Santo. Segundo Nietzsche, as
atitude para com Cristo. doutrinas do Juízo Final e da recompensa ou castigo após
Em primeiro lugar, Nietzsche estabelece uma nítida a morte são «adições posteriores», interpolações nos Evan-
distinção entre o Cristianismo, como uma realidade histó- gelhos, estranhas ao espírito de Cristo. Mas isto é uma
rica, e o próprio Jesus Cristo. «Que negou Cristo? - Tudo asserção ridícula, digna de um «exegeta» alemão da velha
aquilo que hoje é chamado cristão» (1). Assim o credo escola. Não temos menos razão para aceitar a doutrina do
cristão é simplesmente «uma fútil falsidade e decepção» e Juízo Final como doutrina de Cristo do que temos para
não foi ensinado por Cristo; depois, a organização ecle- aceitar a doutrina do perdão, da indissolubilidade do
siástica do Cristianismo é radicalmente anticristão «Ser matrimónio, etc., também como doutrina de Cristo. A única
realmente cristão significaria ser absolutamente indiferente fonte de conhecimento, pelo que se refere às palavras ver-
a dogmas, cultos, padres, igrejas e teologia» (2). Cristo dadeiras de Cristo, são os Evangelhos, e a única razão para
pregou simplesmente uma vida, oferecendo «uma outra vida fazer uma escolha entre as palavras de Cristo, tais como
real, uma vida de verdade, para a vida vulgar». Ele não ali estão referidas, é uma conjectura a priori, quanto ao que
disse aos homens o que deviam acreditar, mas como eles Ele devia ter ensinado. Se os Evangelhos são dignos de
deviam comportar-se. Ele ordena «que não resistamos, crédito e têm autoridade (não podemos estar agora a provar
quer por actos quer no nosso coração, àquele que nos mal- que, de fado, assim é), temos de os aceitar tais como estão
trata e ordena que não admitamos motivos para nos e não mutilados, segundo o capricho de cada um. Quando
separarmos de nossas esposas» (3). Portanto, o homem que Nietzsche declara que nada podia ser mais estranho ao
se recusa a ser soldado, assim como o homem que «não espírito de Cristo do que o absurdo, um tanto ou quanto
reclama os serviços da polícia», etc. seria um cristão. As pesado, de um «Pedro eterno», está sendo arbitrário em
doutrinas de um Deus pessoal, do pecado e da redenção, extremo - e desnecessário será dizer que não procura fazer
a fé e a imortalidade são dogmas despropositados e estra- a exegese do cap. 16 do Evangelho de S. Mateus.
nhos ao Cristianismo na sua essência. As ideias de Nietzsche sobre «adições posteriores» e
Ora, é absolutamente certo que Cristo pregou um pro- interpolações não são dignas de séria consideração. No
cesso de vida e insistiu muito sobre a questão do nosso entanto, temos uma profunda simpatia pela sua insistência
comportamento, mas não é verdade que Ele não tenha dado sobre o facto de Cristo nos ter ensinado um processo de
nada ao homem para acreditar. Assim, ensinou-nos a exis- vida e de os «Conselhos» estarem seriamente interpretados.
tência de um Deus pessoal, no qual devemos acreditar; Não foi já o Cristianismo conhecido por e hodos? As pala-
falou-nos de Si próprio como Filho Eterno de Deus e deela- vras de Nietzsche são um desafio aos cristãos, uma agui-
lhoada na consciência cristã. Encontramos muitas vezes
cristãos que não consideram devidamente os mandamentos
(I) A Vontade de Domínio, i, aforo 158. de Cristo no que se refere ao comportamento e procuram ate-
(=) A Vontade de Domínio, i, aforo 159.
nuá-los, para seguirem as suas baixas inclinações. Se nio
(') A Vontade de Domínio, aforo 163.
T
192 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA

temos mesmo coragem para o tentar, reconheçamos tal


Ii ANTICRISTO 193

facto como homens honestos, em vez de nos estarmos a que Jesus é «atraente no mais alto grau» (1) 'e que tinha o
portar como miseráveis hipócritas. Nietzsche disse que «mais generoso coração» (2). (Nietzsche afirmava que um
coração generoso e uma inteligência superior não podem
nunca houve um cristáo- partindo do princípio de que os
coexistir num homem e ql-Ie Cristo retardará a produção
cristãos começaram a adoptar todas aquelas práticas que
de um intelecto superior). Admite ainda que Jesus é «o
haviam sido rejeitadas por Cristo: «O cristão torna-se cida-
raro, súbito fulgor de um simples. raio de sol» na sombria
dão, soldado, juiz, operário, comerciante, sábio, padre,
paisagem judaica, que Ele estava possuído de «uma mara-
lavrador, artista, patriota, etc.; trata de se defender, esta-
vilhosa, fantástica piedade» (o que, para Nietzsche, repre-
belece tribunais, castiga, faz juramentos, etc.». Podíamos,
sentava um erro), que Ele introduziu «o mais alto significado
sem dúvida perguntar quando e onde Cristo proibiu os
e valor» na vida do povo vulgar da Palestina, que sofreu
homens de serem operários, comerciantes, sábios, padres,
o «martírio do mais inocente e mais ardente coração, que
lavradores, artistas, patriotas e, até, soldados, mas não
nunca teve bastante de qualquer amor humano», que foi
queremos estar a entrar aqui em pormenores. Desejo sim-
«o evangelho incarnado do amor», que «morreu como
plesmente frisar que tem havido cristãos que tomaram as
viveu e como ensinou». (Anticristo, pg. 174) - «Nunca
palavras de Cristo à letra - como S. Francisco de Assis,
houve mais do que um cristão e esse morreu na cruz».
S. Vicente de Paulo, S. Pedro Claver - e que o facto his-
Mas Nietzsche não gosta do ensino de Jesus, e em Zara-
tórico destes homens, que viveram a vida cristã, é uma
tustra teve a ousadia de fazer a blasfema afirmação de que
censura permanente para aqueles que quereriam fazer do
Jesus «ter-se-ía retratado da sua doutrina, se tivesse che-
Cristianismo - se não teoricamente, pelo menos pràtica-
gado à minha idade. Era bastante nobre para se retratar I
mente - ou uma simples ética do «não faças mal a ninguém»
Não estava, porém, ainda maduro. Ainda não maduro,
ou um simples amontoado de crenças. Nietzsche é, por
amou a juventude e, também ainda não maduro, odiou os
vezes, extremamente exagerado, unilateral, impensado e per-
homens e a Terra. A alma e as asas do seu espírito estão
verso nas suas afirmações, mas nem por isso as suas pala.
ainda presas e trôpegas. Na verdade morreu demasiada-
vras deixam de ser um desafio. Não gosta do ideal cristão,
mente cedo aquele hebreu, a quem prestam homenagem
mas admite que existe esse ideal (embora o pinte de uma os pregadores da morte lenta e, para muitos, foi uma
forma muito unilateral, não estabelecendo qualquer distin- fatalidade ele ter morrido cedo de mais.
ção entre preceitos obrigatórios para todos e conselhos de «Este hebreu só conhecia ainda as lágrimas e a tris-
perfeição) e ai de nós, cristãos, se, na nossa ânsia de nos teza dos Hebreus, juntamente com o ódio dos bons e dos
, tomarmos aceitáveis ao mundo, retalhamos e interpretamos justos; por isso se apossou dele o desejo de morrer. Antes
à nossa maneira os mandamentos de Cristo e o Seu tivesse continuado no deserto e longe dos bons e dos justos I
apelo.
A educação cristã de Nietzsche é, sem dúvida, larga-
(') Humano, Tudo D~masiadamcllte Humano, aforo 144.
mente responsável pela sua atitude para com Jesus. Admite (") Humano, Tudo Demasiadamente Humano, aforo 235
JoS
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194 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA ANTICRISTO 195


Talvez então' houvesse aprendido a viver, a amar a Terra que Ele ensinou os seus discípulos a lutar» (1). «Paulo é
- e também a rir I» (Zoratustro, pg. 84). ,a incarnação do tipo que é o reverso do Salvador: é o
Mas, se Cristo ensinou apenas a maneira de nos con- génio no ódio, do ponto de vista do ódio e na implacável
duzirmos na vida e não ensinou nem um credo nem uma lógica do ódio» (2). Ele desejava poder e assim inventou
organização eclesiástica, quem é responsável pelo Credo e conceitos, doutrinas e símbolos por meio dos quais as
pela Igreja? Ê: principalmente Paulo, esse «decadente» e massas podiam ser tiranizadas e os rebanhos podiam ser
dabregr» Paulo. Paulo, «uma das mais ambiciosas e impor- formados - isto é, a doutrina do Juízo Final. Ele viu que
tunas almas que alguma vez existiram, dotado de um espí- precisava da crença na imortalidade da alma para «depre-
rito cheio de superstição e de manha», tinha-se enchido de ciar» o mundo e compreendeu que o conceito de Inferno
zelo pela Lei judaica, mas compenetrara-se de que um se tornaria senhor de Roma. E desta maneira, com um além,
homem da sua natureza - «violento, sensual, melancólico e mataria esta oida» (3).
malicioso no seu ódio» - não podia cumprir a Lei. No Que temos nós a dizer a isto? Em primeiro lugar,
entanto, pelo que sabemos da visão que ele teve na sua S. Paulo não inventou o conceito de sofrimento redentor
viagem para Damasco, apoderou-se dele a ideia de que (S. Mateus, 20/28), nem a doutrina do Juízo Final (S. Ma-
seria contrário à razão perseguir Jesus Cristo; pelo con- teus, 25), nem a Igreja (S. Mateus., 16/17), nem a doutrina
trário, via em Jesus Cristo uma oportunidade para destruir do culto com sacrifícios (8. Lucas 22/19 e I Cor. 11/23).
a Lei. E assim se tornou «o apóstolo da aniquilação da Em segundo lugar, ele estava possuído dum sincero amor
Lei» (1), e assim, por meio da sua doutrina da incorporação a Cristo, a quem não tinha visto antes da ascensão, mas
com Cristo e de uma gloriosa ressurreição e eternidade, que viu pela primeira vez - tanto quanto nos é dado saber
compartilhando da glória de Cristo, satisfez «à sua desme- - na sua viagem para Damasco. A caridade de Cristo
dida ambição». Foi Paulo também quem fundou a Igreja estimulava-o (II Cor. 5/14), suspirava por estar com Cristo
e quem transformou o Cristianismo num completo estado (Filip. 1/23) e queria morrer por Ele (Filip. 3/10). Ardia
organizado, que faz a guerra, condena, tortura, esconjura em amor por todos os homens (Rom. 1/4 e I Cor. 9/22).
e odeia» (2). Foi Paulo quem introduziu o culto com sacri- O seu Senhor era o amado Salvador e Redentor e ele pró-
fícios e a salvação pela fé, quem falseou a vida e o carácter prio era o Apóstolo do Amor. Os outros apóstolos nunca o
de Jesus e quem preparou o terreno para o pleno desenvol- acusaram de falsear os ensinamentos de Cristo e ele mesmo
vimento do clero e da Igreja, fazendo uma espantosa amál- insistia em que o seu evangelho não era uma mensagem
gama de filosofia grega e judaísmo. Tudo isto era contrário pessoal (Gálat. 1/11-12). Em terceiro lugar, Paulo estava
ao verdadeiro espírito de Jesus. «A Igreja», diz Nietzsche, tão longe de ser dominado por uma ambição desmedida.
cé exactamente aquilo que Jesus invectivou e aquilo contra
C) A Yontode de Domínio, 1, afor. 168.
(') Aurora, aforo 68. (') Anticristo, pg. 184.
C) A Vontade de Dominío, ~ afor, 167. (O> Anticristo, pg. 224.
196 NIELZSCHE, FILÓSOFO DA CUL TUBA ANTICRISTO 197
que se prontificava a ser anatematizado pelos seus irmãos miciar, alimentar e aumentar essa mesma vida. Tem, sem
(Rom. 9/3) c declarou que não era digno de ser chamado dúvida, havido abusos - e, assim, motivos políticos, egoís-
apóstolo, porque havia perseguido a Igreja de Cristo. Em tas e mundanos têm, por vezes, predominado nos espíritos
quarto lugar, S. Paulo não pregou a aniquilação da Lei, mas dos mais elevados eclesiásticos - mas são abusos que não
sim 'o cumprimento da Lei. Em quinto lugar, Nietzsche vêm a propósito, quando se trata de características essen-
não tem justificação - a não ser na sua imaginação- ciais, oposições, etc. E tanto a história como a experiência
quando atribui todas as espécies de pecados a S. Paulo mostram que uma religião de simples comportamento não
antes da sua conversão. Não, se o Cristianismo tem de ser produz os frutos que se pretendem. Nietzsche dá-nos um
condenado, então Cristo tem de ser condenado também, tácito testemunho deste facto, quando diz que o Cristia-
porque não é S. Paulo mas Cristo o responsável pelo Cris- nismo é um simples processo de comportamento, mas que
tianismo. Podemos talvez exagerar a importância de S. Paulo houve apenas um cristão - o próprio Cristo. A isto respon-
na evangelização do mundo romano - não foi ele «o vaso deríamos que Cristo é, sem dúvida, o único exemplo abso-
de eleição escolhido para levar o nome de Jesus ao mundo lutamente perfeito da vida cristã, mas a vida cristã tem
gentio? - mas não foi ele o fundador do Cristianismo, pois sido vivida por homens e mulheres que a história nos
pregou o que recebeu e não o que inventou. aponta, e essa vida não tem sido sem uma relação essencial
Referimo-nos, embora um pouco de relance, à opinião com a crença e a instituição.
de Nietzsche quanto à oposição entre Cristianismo essencial Nietzsche foi dotado de um certo poder de penetração
e a superstrutura erigida por S. Paulo e por outros. Para psicológica, e é principalmente esse facto que contribui em
aquele que estuda Nietzsche, tais opiniões são natural- larga escala para que algumas pessoas experimentem o
mente de interesse, embora em si mesmas sejam despro- sentimento de que «há qualquer coisa no que Nietzsche
vidas de valor. Igreja, sacrifício, sacramentos, juízo e diz». Assim, em A Aurora, depois de ter observado que
sanções são tudo coisas que têm o seu lugar nos Evange- entre os Antigos houve muitos que representaram virtude
lhos, juntamente com o amor universal, o perdão até ao (<<que utilidade tinha uma virtude que uma pessoa não
extremo limite, etc. e não há justificação alguma para o podia manifestar e que não sabia até como se devia mani-
facto de querermos separar o elemento que chamaremos festar !»), diz Nietzsche: «O Cristianismo veio pôr fim à
«institucional» de todo o resto, em virtude de uma con- carreira desses actores da virtude; em vez disso, imaginou
jectura a priori, quanto à natureza do Cristianismo essen- uma repugnante ostentação e parada de pecados, trazendo
cial. Além disso, não há razão para afirmar uma oposição para o mundo um estado de falsa culpabilidade (o que, até
radical entre a Igreja Cristã, a crença e os Sacramentos ao presente, é considerado como bon toa entre os cristãos
por um lado, e a vida cristã pelo outro. A doutrina cristã ~ ortodoxos)» (1). Ora, é verdade que tem havido certos
1
fornece a estrutura e a justificação para essa vida, a Igreja I
é a união visível de todos quantos vivem tal vida, e os
sacramentos são os meios divinamente indicados para i (I) A Aw'01a, aforo 29.

1,
I
198 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CUL TunA

fenómenos entre os cristãos que podem ser considerados


como repugnantes exibições de paradas de pecados - «con-
versões» de carácter teatral, «confissões» públicas e cheias
r ANTICRISTO
uma doutrina tiver sido usada para um fim pessoal, isso
não prova que tal doutrina é falsa.
199

Nos parágrafos que concluem este capítulo, propo-


de retórica, etc. Pode ser também verdade que alguns nho-me dizer mais alguma coisa sobre a objecção Funda-
cristãos - a natureza humana é o que é - tenham simulado mental de Nietzsche ao Cristianismo, Ou seja que ele é
«culpabilidade), sem real convicção, para se tornarem hostil à cultura. Jtl falei da sua acusação de que o Cristia-
«interessantes», para exibirem «humildade», etc. Para nismo é hostil ao desenvolvimento dos «homens superiores»
muitos, sem dúvida, os protestos feitos por santos, dizendo e mostrei que isso depende do que nós entendermos por
que eram grandes pecadores, poderão ser exemplos de uma homens superiores. O Cristianismo é, sem dúvida, hostil
«falsa culpabilidade», mas, quando somas tentados a ao des'envolvimento do Ubermenscli de Nietzsche - pois
pensar assim, é porque estamos realmente a julgar os santos não pode interessar-se pelo desenvolvimento do indivíduo
por nós próprios. Nós não temos a concepção viva do santo, livre, imoral e ateu, por muito forte, belo e viril, por muito
quanto à absoluta santidade de Deus, à vista do qual os talentoso, intelectual e artista que ele possa ser- mas não
próprios Céus não são puros, nem temos, a concepção do é hostil ao desenvolvimento dos homens superiores, no sen-
santo quanto a nós mesmos. Nos nossos lábios os protestos tido dos homens que vivem em elevado grau a vida sobre-
que o santo faz de culpabilidade soariam ocos - não por- natural e a vida natural devidamente harmonizadas. No
que fossem falsos, mas porque mio procediam de uma entanto, nós devíamos talvez admJtir apenas isto: que a
concepção da verdade - e, desta maneira, somos levados a finidade humana, e o facto de que a intensidade é rão
imaginar que o santo está representando. Mas tal conclusão frequentes vezes proporcionada à canalização, (cf. o con-
não tem lógica. selho de Ritschl a Nietzsche) tornam pelo menos difícil
Tomemos outro exemplo. Nietzsche afirma que a dou- um indivíduo atingir um pleno e harmonioso desenvolvi-
trina da recompensa e do castigo eternos era uma expressão mento da vida sobrenatural e natural, em elevado grau.
da vontade de domínio. Ora, é suficientemente óbvio que Tal desenvolvimento é ideal, mas, se é pràtícamente possí-
a doutrina do Inferno, por exemplo, podia ser usada pelos vel, é duvidoso - pelo menos pelo que se refere a um
padres e pregadores com o fim de dominar o «rebanho» desenvolvimento pleno. Tem, sem dúvida, havido grandes
cristão, e assim podíamos alimentar a inquietante suspeita santos que foram também grandes intelectuais - S. Tomás
de que Nietzsche está expondo a doutrina. Mas alguns de Aquino e S. Roberto Belarmino, por exemplo - e grandes
momentos de calma reflexão serão suficientes para nos mos- artistas que foram também homens santos - Fra Angélico,
trar que, embora a doutrina possa ser assim usada, mesmo por exemplo - mas, falando duma forma geral. uma certa
que tenha sido assim usada uma ocasião, não se conclui daí especialização parece ser o curso natural. Miguel Ângelo
que foi inventada para esse fim e que é, em si própria, foi um grande artista, viveu e morreu como um católico
uma expressão da vontade de domínio, uma invenção convicto; mas causar-nas-ia por certo uma grande surpresa
humana desprovida de qualquer referência objectiva. Se verificarmos que ele foi um grande místico, como ficaríamos
.,( .
\f~
200 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CUL1 URA 201
ANTICRISTO
também surpreendidos, se soubéssemos que S. Bernardo Pelo contrário, ensina que todo o homem vem de Deus e
tinha escrito o Otelo ou que S. João da Cruz tinha com- que Deus, Autor de todo o ser, é glorificado não só pela
posto o Fausto. Nietzsche dizia que há oposição entre o virtude sobrenatural, mas também pelos talentos naturais
sobrenatural c o natural, mas nós apressamo-nos a rebater superiores. Deus é glorificado não só pela oração de Santa
tal afirmação. Um homem dotado do génio artístico de Teresa ou pela heróica caridade de S. Vicente de Paulo,
Miguel Angelo podia, sem contradição, ter sido um grande. como também pela arte de Miguel Angelo, de Velasques,
místico; e um homem com a santidade de S. Bernardo, de Rembrandt e Rubens, pela música de Beethoven, pela
podia, sem oposição, ter escrito o Otelo. Mas, apesar de literatura de Dante, Shakespeare e Goethe. Não interessa,
tudo, eu não vejo como se possa negar que há urna ten- para o nosso caso, saber se essas pessoas tinham a intenção
dência natural para a especialização. Este facto podia levar de glorificar a Deus; objectivamente falando, as suas gran-
as pessoas irreflectidas a suspeitar duma oposição, mas tal des realizações glorificam aquele Deus que lhes deu os
oposição não existe. Se houvesse oposição essencial, então seus talentos e a possibilidade de os desenvolverem. Cris-
S. Tomás de Aquino, Fra Angelico, S. Roberto Belarmino, tianismo não é maniqueísmo - este último é herético - e
S. João da Cruz - um poeta castelhano - Pasteur, o gene- a beleza física, a força e o vigor não são de per si um
ral Castelnau, o marechal Foch, etc. teriam sido impossi- mal, mas um bem. :Ê muito menos importante que um
bilidades - teríamos S. Simão Estílita por um lado, Napo- homem seja possuidor de força e vigor corporal do que seja
leão por outro, sem qualquer entrelaçamento. O Cristianismo possuidor de força c vigor de alma; mas os dons corporais
não é hostil ao desenvolvimento dos grandes talentos nem por isso deixam de ter o seu valor. Sem dúvida, se o
naturais - os cristãos acreditam que esses talentos excep- sobrenatural é uma ficção, então a doutrina da maior
cionais foram dados por Deus para serem usados e desen- importância do sobrenatural, quando comparada com o
volvidos - mas o Cristianismo é uma religião sobrenatural, natural, seria racionalmente analisada como envolvendo
interessada primariamente na salvação do homem. As pala- uma oposição ao natural- e é esta a posição de Nietzsche
vras usadas pelos escritores cristãos, pelo que respeita ao - mas seria necessário demonstrar primeiramente que O
corpo (mostrando, pensou Nietzsche, um desprezo pelo sobrenatural não passa de uma ficção, e tal demonstração
corpo) devem ser tomadas como expressando enfàtícamente nunca pode ser feita, porque o sobrenatural não é uma
a relativa importância do sobrenatural, quando comparado ficção. Uma vez admitidas as premissas do Cristianismo,
com o natural, das coisas do espírito quando comparadas seria contrário à razão e injusto declarar que o Cristianismo
com os talentos naturais. Um desprezo literal pelo corpo é antinatural. A acusação seria verdadeira, tratando-se de
seria, não cristão, mas certamente pouco ortodoxo. certas heresias, mas nenhum crítico ponderado e sincero
O Cristianismo, portanto, nada tem na sua natureza irá julgar o Cristianismo pelas heresias, porque, pelo pró-
que seja essencialmente hostil à cultura, porque, embora prio facto de serem heresias, deixam de ser cristãs para
ensine a doutrina do pecado original, não sustenta que o serem anticristãs.
homem natural seja totalmente corrompido ou sem valor. Está a afirmação de que não há oposição entre o Cris-
202 ~lETZSCIIE, FILOSOFO DA CULTURA ANTICRISTO 203

tianismo e a cultura justificada, empiricamente, por exemplo, coisa da cultura da Antiguidade e o transmitiu aos pri-
na história? Nietzsche, como já vimos, afirmou que o Cris- meiros tempos da Idade Média?
tianismo se mostrou na história como inimigo da cultura, Não se pode negar que a cultura natural da Espanha
destruindo a cultura pagã, a cultura moura da Espanha e a muçulmana estava muito mais adiantada do que a cultura
cultura do Renascimento. Ora, se cultura é igual a cultura da Europa cristã do mesmo tempo, mas não será justo con-
«secularista», então certamente o Cristianismo é hostil a cluir, do progresso, vagaroso da cultura na Europa medieval,
isso - nem este ponto precisa de ser discutido. Mas foi ele que tal facto foi devido a uma atitude anticultural por
hostil à cultura em geral? O Cristianismo foi hostil à cul- parte da Igreja. Quando pensamos no trabalho de homens
tura pagã como cultura ? - pois é óbvio que o Cristianismo como Alcuíno e Rábano Mauro no princípio da Idade
foi hostil ao paganismo como religião. Temos de admitir Média, no humanismo da Escola de Chartres no século XII,
imediatamente que alguns escritores cristãos falaram bas- nas universidades de Paris, Ox6nia, Bolonha, etc. no
tante hostilmente acerca do mundo pagão, mas isto era século XIII, no interesse cresoente da ciência empírica no
natural, porque os mitos e a moral do mundo antigo se século XIV, quando pensamos nas catedrais góticas e aba-
encontram reflectidos não só na lenda e no culto, como tam- dias, nas obras de arte e literatura de Filippo Lippi, Fra
Angélico e Dante, não podemos deixar de reconhecer que
bém na literatura, na escultura, etc. Mas será prematuro
o período de apogeu da cultura medieval foi um dos gran-
concluir, dos ataques dos escritores apologistas cristãos,
des períodos de cultura na história do mundo. Podem algu-
que o Cristianismo adoptou uma atitude radicalmente hostil
mas pessoas falar da crueldade e da barbaridade dos tempos
para com a cultura do mundo antigo, sem qualquer espécie
medievais, da opressão, da pobreza e da miséria, mas tais
de distinção. Se olharmos os factos históricos, vemos a Igreja fen6menos não são privativos da Europa medieval. Não foi
- sempre que as circunstâncias externas o permitiam- a cultura de Atenas assente sobre uma base de escravatura
utilizar as formas literárias e artísticas da Antiguidade e não foi o Império Romano manchado por nódoas de longe
adaptar a sua filosofia e acentuar o aspecto beneficente do muito mais infectas do que alguma vez a sombria Europa
Império. Santo Agostinho foi grandemente influenciado pelo medieval?
filósofo pagão Plotino e transpôs a sua filosofia para uma Afirma Nietzsche que a Igreja, no período da Contra-
adaptação cristã. l!: certo que, no decorrer da sua contro- -Reforma foi hostil à cultura do Renascimento. Mas ele mesmo
vérsia com os pelagíanos, o Doutor Africano chegou a falar afirma que o humanismo do Renascimento, no período ante-
mais severamente dos pagãos do que havia feito anterior- rior à Reforma e à Contra-Reforma, ameaçou o Cristianismo
mente; mas quem fará alinhar Santo Agostinho entre as
forças da anticultura, Agostinho que continuou a sua obra
literária, mesmo quando os bárbaros estavam batendo à
porta e o Império se desmoronava ante os seus olhos?
{ nos seus pr6prios alicerces. Não foi, pois, tanto a Igreja
que se mostrou hostil ao humanismo do Renascimento, mas
este - sob certos aspectos - que se mostrou hostil à Igreja
e ela defendeu-se. ~ preciso também lembrar que esses
E quem foi, senão os monges cristãos, que conservou alguma aspectos do Renascimento que foram olhados sob reserva pela
204 NIETZSCHE, FIL()SOFO DA CUL TUnA
ANTICRISTO 205
Igreja, no tempo da Contra-Reforma, procuravam minar
aquela mesma cultura da Europa que tão laboriosamente tende muitas vezes para uma baixa materialização da vida
humana. O Cristianismo, no entanto, fornece um funda-
havia sido construída. A Igreja nunca se mostrou hostil à
mento dogmático para o valor eterno do indivíduo. Foi
cultura como tal, mas estendeu a sua protecção à pintura,
esta doutrina cristã que triunfou sobre a escravatura romana
à literatura e à escultura. Podem ser aduzídos exemplos de
e foi a influência desta doutrina cristã que se transmitiu à
eclesiásticos que se mostraram retraídos, suspeitosos e timo-
democracia, como o próprio Nietzsche reconheceu e afir-
ratos para admitirem as novas influências culturais, mas a
mou. Mas na democracia a doutrina do valor do indivíduo
«cultura» inclui o desenvolvimento de todos os poderes e
e a sua importância está solta das suas amarras e não pode
potencialidades do homem e as potencialidades espirituais
sobreviver isolada; apenas pode sobreviver, quando firme-
do homem são as mais importantes; e, se a influência da
mente enraizada na fé cristã. E não nos venham citar o
Igreja pareceu por vezes ser um tanto hostil a formas novas
esplendor da cultura grega e romana sob escravatura, como
do aspecto natural da cultura, a sua atitude foi determinada
prova de que a cultura é independente do valor do indiví-
pelo zelo de conservar aqueles valores espirituais que são
duo, porque isso equivale a negar a possibilidade de um
os únicos que podem tornar possível uma cultura verdadeira
mais profundo desenvolvimento da cultura no futuro. Nós,
e profunda.
que acreditamos que é possível um desenvolvimento da
Esta afirmação poderia ter parecido um tanto ou quanto
cultura no futuro. Nós, que acreditamos que é possível um
ousada, se não fosse para a condição presente da Europa.
desenvolvimento da cultura no futuro, que será mais pro-
Mas, se alguém reflectir sobre a condição do mundo de
fundo que a cultura da Antiguidade e que há-de abraçar
hoje, tomar-se-a óbvio que nenhuma cultura verdadeira é não só todo o homem mas cada homem, tomamos como
possível, se não assentar sobre o firme reconhecimento dos ponto de apoio a fé cristã e reconhecemos que, sem fé,
valores espirituais, e assim a Igreja, através da sua constante surge inevitàvelmente a secularização e a materialização,
afirmação de tais valores, tem provado ser uma autêntica que não são outra coisa senão a degradação do homem e
força cultural e um verdadeiro guarda da cultura. Os recen- a verdadeira antítese da cultura. Aqueles escritores esecu-
tes e catastróficos acontecimentos levam-nos a reconhecer, Iaristas», que entre nós hostilizam o totalitarismo e dizem
não só os males do totalitarismo, mas também as lacunas defender uma cultura livre, não algemada pelo Cristianismo,
e imperfeições na democracia liberal. Ora o totalitarismo não passam de sonhadores antí-históricos, que não vêem
tende para a negação prática do sobrenatural (embora, que estão ocupados a serrar aquele mesmo ramo em que
talvez, nem sempre expllcítamente) e assim para a negação esperam sentar-se. Estes homens, que se julgam amigos da
do valor eterno do indivíduo; o resultado é uma tirania cultura e inimigos da «superstição» e da «beatice», são, na
esmagadora, uma asfixia da liberdade, e uma mediocridade verdade, inimigos da cultura e do homem, tanto mais peri-
desesperadora nas realizações da cultura natural. A demo- gosos porque estão a coberto de qualquer suspeita.
cracia apoia-se, sem dúvida, no valor do indivíduo, mas Há alguns que reconhecem que os valores espirituais
não oferece um alicerce seguro para esta doutrina, e assim são essenciais para a cultura, mas que, ao mesmo tempo.
r
í

206 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CUL TUHA CAPíTULO VII

afirmam que a religião cristã já passou a sua época, quanto SCHOPENHAUER E NIETZSCHE
a utilidade, que é inaceitável para o homem moderno e que
há necessidade de uma nova religião. E que oferecem em I
seu lugar? Uma sopa aguada e cozinhada por eles pró-
prios, que dificilmente será superior a um simples ateísmo. t
E esperam eles edificar uma cultura sólida sobre tão mes-
quinhos alicerces? De forma nenhuma; a religião que eles I
apresentam como substituta é atirada como uma isca àqueles
que são dotados de espírito religioso. Esses homens não
reconheceram, primeiramente, que a Europa está cami-
í
nhando direita para a niilismo (como Nietzsche, notável
pensador, há anos profetizou), e em segundo lugar que o
remédio consiste apenas em edificar uma cultura sobre
firmes alicerces da Fé cristã. Nietzsche negou esta segunda
asserção, mas não é absurdo supor que, se ele tivesse vivido «
Eu pertenço àquele número
para ver o que nós temos visto, poderia' - se para isso de leitores de Schopenhauer que sabem perfeitamente,
tivesse a necessária humildade - ter voltado para o reba- depois de terem voltado a primeira página, que hão-de ler
nho cristão, não por cobardia, mas pelo reconhecimento da todas as outras e ouvir todas as palavras que ele proferiu.
verdade. Nietzsche disse que, se Cristo tivesse vivido mais A minha confiança nele brotou imediatamente e tem sido
tempo, teria mudado a sua doutrina; nós sugerimos que, a mesma há nove anos» (1). Assim escreveu Nietzsche no
se Nietzsche fosse vivo hoje, poderia, por mercê de Deus, Schopenhauer como Educador, um ensaio terminado em
ter voltado para Cristo. Agosto de 1874 e que fazia parte do Unzedgemãsse Betroeh-
tungen. Em 1888, contudo, Nietzsche, no Ecce Homo, fala
do «acre odor a cadáveres que é peculiar a Schopenhauer»
(pg. 69) e diz-nos como o homem que compreende o con-
ceito «dionisíaco» «não precisa de qualquer refutação de
Platão, do Cristianismo ou de Schopenhauer, porque o seu
nariz logo fareja a decomposição» (pg. 71). Uma tal
mudança de atitude faz-nos lembrar um tanto ou quanto
a mudança de atitude de Nietzsche para com Ricardo

(') Considerações lntempestitxls, ii. pg. 114.


208 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
\I SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 209
Wagner, que, tendo sido um ideal, um homem em cuja No entanto, mesmo se admitirmos que Nietzsche se
defesa Nietzsche estaria disposto a arriscar a sua reputação serviu de Schopenhauer como um tipo, um meio conve-
de sério investigador, é depois retratado no Nietzsche contra niente de expressar as suas próprias ideias, fica de pé o
Wagner como um «caprichoso e desesperado décadeni»

I
facto de que, a princípio, foi indubitàvelmente atraído para
(pg. 73). Há, sem dúvida, uma importante diferença entre Schopenhauer. Qual foi o ponto de atracção? Não será
um caso e o outro, principalmente porque a maior amizade difícil compreender como o grande Renunciador, o filósofo
da vida de Nietzsche foi a amizade de Wagner (a quem que pregou a renúncia do desejo de viver, que estabeleceu
ele nunca desalojou do seu coração), ao passo que nunca uma base metafísica para o sentimento da compaixão, que
conheceu pessoalmente a Schopenhauer. Se Nietzsche advogou - pelo menos em palavras - um ideal ascético,
tivesse conhecido pessoalmente o grande pessimista, não podia ter atraído o apologista da vontade de domínio, que
seria uma fantasia o pensar que a sua rejeição da doutrina pregou, não o asceta santo, mas o Super-Homem e que
doe Schopenhauer teria sido influída por um severo desapon- advogou, não a compaixão, mas a dureza? O próprio
tamento, pelo que se refere ao próprio homem. O filósofo Nietzsche nos diz: «Foi o ateísmo que me arrastou para
díflcilmente seria o tipo de carácter que pudesse atrair Schopenhauer» (I). Nietzsche conheceu pela primeira vez
Frederico Nietzsche. Mas, embora as relações de Nietzsche as palavras de Schopenhauer, quando era estudante na uni-
com Schopenhauer e com Wagner manifestem essa acen- versidade de Lípsia, isto é, depois de se ter desligado do
tuada diferença, no entanto a explicação que Níetzche dá Cristianismo, porque foi na Páscoa de 1865 (ele foi para
da sua mudança de atitude é semelhante em ambos os casos.
Ele lera o seu próprio ideal tanto num como noutro, e em
I Lípsia no Inverno desse ano) que se recusou a ir, com
sua mãe e irmã, tomar parte na comunhão protestante.
ambos os casos ficou desapontado. Assim Nietzsche diz que Nietzsche foi, sem dúvida, educado numa atmosfera de pie-
«não é Schopenhauer como educador» mas «Nietzsche
como educador» que expõe os seus sentimentos nele (isto
I dade - seu pai era pastor de Rocken e sua mãe era uma
fervorosa cristã - 'e nos seus primeiros anos desejou seguir
é, no ensaio Schopenhauer como Educador), e que «o ensaio \ a carreira do pai. Mas não foi a influência de Schopenhauer
Wagner em Bayreuth é uma visão do meu próprio futuro; \ que o desviou do Cristianismo da sua mocidade. Aparte as
por outro lado, a minha mais secreta história, o meu desen- tendências independentes do seu próprio carácter, ou seja
volvimento encontram-se no «Schopenhauer como Educar o «espírito livre», foi influenciado pela escola ou colégio
dor» (I). Da mesma forma, em Nietzsche contra Wagner, de Pforta, que contribuiu para que ele se afastasse da reli-

I
Nietzsche observa: «Vedes como eu interpretei mal, e vedes gião. Basta dizer que um ou dois dos mestres de Pforta
também o que eu próprio concedi a Wagner e a Schope- expunham nas aulas as suas ideias sobre exegese. Por isso,
nhauer (2). não podemos ficar surpreendidos pelo facto de Nietzsche,
embora tivesse estudado tanto filosofia como teologia.

(') Nietzsche contra,r


C) Ecce Homo, pg. 81.
agner, pg. 65. (') Ecce Homo, pg. 78.
210 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 211
quando foi pela primeira vez para a universidade de Bona da vida humana tal como foi apresentada por Schopenhauer,
em 1864, ter depressa abandonado a teologia para se dedi- 'essa sombria pintura que encarna um sério olhar sobre a
car inteiramente à filosofia. Este período de dúvida é sim- vida, a visão dum homem que vê o universo como o fenó-
balizado pelo seu acto de abstenção da comunhão na Pás- meno de uma vontade cega, sem um fim, sem um sentido
coa de 1865, e assim já ele estava bem preparado para definido - um cenário mutável em que impera a estirili-
aceitar a doutrina de Schopenhauer, quando conheceu as dade, o desânimo, o sofrimento, a morte inevitável, e onde
suas obras em Lípsia. «Aconteceu estar perto da loja de a felicidade não é senão negativa e a beatitude um sonho.
Rohn, o alfarrabista, e peguei em O Mundo como Vontade « A vida de todo o indivíduo, se nós a olharmos como
e como Representação, olhando para ele enternecidamente. um todo geral, e nos apoiarmos apenas nos seus aspectos
Não sei que dem6nio me sugeriu que devia levar aquele mais significativos, é sempre realmente uma tragédia; mas,
livro para casa. Contràriamente ao que costumo fazer- se a eximanarmos nos seus pormenores, tem ° caráter de
porque, em regra, não compro livros em segunda mão sem lU11a comédia. De facto, as acções e as contrariedades do dia,
primeiro os examinar - paguei e voltei para casa. Esten- a irritação inquieta do momento, os desejos e receios do
di-me num sofá e abismei-me nos pensamentos daquele fraco, os contratempos que surgem a todas as horas, são-
tenebroso génio. Desde a primeira linha, ouvi o grito de devido ao acaso que está sempre disposto a alguma brinca-
renúncia, de negação e de resignação, e vi no livro um deira - cenas de comédia. Mas os desejos nunca satisfeitos,
espelho em que o mundo, a própria vida e a minha alma se os esforços frustados, as esperanças impiedosamente esmaga-
reflectiam com uma fidelidade aterradora. Sentia-me fitado das pelo destino, os erros desgraçados de toda a vida, com
pelo olhar sombrio e falto de interesse da arte, e via, ao um sofrimento sempre crescente e a morte no fim, são sem-
mesmo tempo, a doença e o restabelecimento, o exílio e a pre uma tragédia. Assim, como se o destino juntasse a irrisão
reabilitação, o Inferno e o Céu» (1). à miséria da nossa existência, a nossa vida deve conter todas
Pensar que Frederico Nietzsche foi arrastado para o as desgraças da tragédia e, no entanto, nós não podemos
ateísmo e para Schopenhauer com a disposição de um sim- mesmo revindicar a dignidade de personagens trágicos, mas,
ples «livre-pensador» seria cometer um erro capital, que nos largos pormenores da vida, devemos ser inevitàvelmente
envolve uma radical incompreensão do seu carácter. Nietzs- tiS loucos personagens de uma comédias (I).
che não praticou nenhuma das mais vulgares leviandades A conclusão encontra-se nas palavras de Calder6n:
dum Iívre-pensador, nem foi nenhum Strauss (por quem
ele manifesta todo o seu desprezo nas Considerações Intem- «Pues el delito mayor
"estiam), e muito menos abraçou o ateísmo como pretexto DeI hombre es haber naeídos.
para qualquer liberdade de acção do ponto de vista (<<Porque o maior crime do homem
moral. Não; Nietzsche deixou-se impressionar pela pintura Foi ter alguma vez nascidos),

(I) Daa Leben Friedrfch Nietzsche, i, 282.


212 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA
SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 213
Mas, se não é difícil compreender como Nietzsche foi um inglês levantou-se e, aborrecido, abandonou a carrua-
atraído pela sombria pintura de Schopenhauer, seria de espe- gem, sob a errada impressão de que se estavam a rir dele.
rar, mesmo a priori, que ele não fosse capaz de encontrar Um homem assim, alegre e activo, dificilmente poderia
uma satisfação duradoura no pessimismo de Schopenhauer ficar agarrado ao pessimismo de Schopenhauer.
e nas suas doutrinas de renúncia e ascetismo. Em primeiro Podemos ainda, sem fantasiar, sugerir outra razão que
lugar, o próprio espírito alegre de Nietzsche havia de se re· nos leva a crer, mesmo a priori, que Nietzsche devia passar
voltar contra o pessimismo de Schopenhauer. O pessimismo para além de Schopenhauer. A filosofia de Schopenhauer
deste último era devido, não simplesmente ao seu estudo dos era certamente ateia, mas o seu ensino ético vai buscar ele-
Uponishads e à doutrina de Mâya, mas, como declara o pro- mentos ao pensamento e à prática religiosa, valendo-se não
fessor De Witt Parker, «teve a sua primeira origem no seu só das fontes indianas como também das fontes cristãs.
próprio temperamento e carácter». Parece provável que seu Sem dúvêda, a sua maneira de olhar a vida, à parte a
pai se tivesse suicidado e podemos bem supor que Schopen- estrutra metafísica, tem uma notável semelhança com a
hauer herdasse dele a tendência para olhar sombriamente pintura deste mundo como um vale de lágrimas, que nos é
a vida, o que é acentuado pelo seu afastamento da mãe, que feita pelos moralistas cristãos - e não é sem significado que
tinha um carácter totalmente diferente. Nietzsche, contudo, Schopenhauer cita La Vida es suefío, de Calderón, que foi
contràriamente ao que algumas vezes se supõe, não era dotado um grande dramaturgo cristão. Sem dúvida, certos pastores
naturalmente duma disposição triste e sombria, mesmo que alemães chegaram a usar pensamentos de Schopenhauer nos
olhasse sempre a vida pelo seu lado sério. De facto, a falta seus sermões, trocando, é certo, o pano de fundo ateu pelo
de saúde, o excesso de trabalho e um crescente isolamento teísta e procurando compensar e perspectiva pessimista desta
foram-no afectando profundamente, à medida que o tempo vida com a doutrina da imortalidade e da felicidade futura.
ia passando; no entanto, lemos que, já num adiantado período E não temos também de considerar o caso de Schopenhauer
da sua vida, antes do desarranjo mental, os hóspedes duma ter atribuído valor aos escritos do jesuíta espanhol Baltasar
pensão em que ele se encontrava no Sul da França disputa- Gracián (1584-1638), tendo traduzido algumas das suas obras
vam uns com os outros para serem seus vizinhos à mesa, visto para alemão?
Em 1832, Schopenhauer escreveu que o seu autor favo-
que a sua conversa era sempre animada e cheia de interesse.
rito espanhol era Gracián, cujas obras havia lido. Gracián
Quando uma vez se encontrava num hotel com a irmã, os
naturalmente expôs as suas ideias dentro duma moldura
dois riram tanto que um velho general, que se encontrava no ..
" cristã; mas Schopenhauer reconheceu nele um espírito aná-
quarto vizinho, mandou perguntar porque é que eles esta-
logo ao seu, do ponto de vista de uma visão comum do
vam constantemente a rir-se e acrescentou que aquilo era
mundo e da vida do homem dentro dele. Gracián tem sido
uma coisa contagiosa. Outra ocasião, quando viajava de
sempre colocado por alguns escritores, juntamente com Scho-
comboio na Itália, mas também acompanhado pela irmã, os penhauer e Leopardi, entre os grandes pessimistas. Ora
dois mantinham uma conversa rimada com tanta alegria que podemos bem esperar que Nietzsche chegaria a reconhecer
214 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 215
o elemento religioso em Schopenhauer - apesar de todo tores medíocres como David Strauss, que «não vêem os
o ateísmo deste último - e a ver que o ensino ético de sofrimentos e os monstros que pretendem, como filósofos, ver
Schopenhauer devia muito àquele Cristianismo que o pró- e combater, mas a alegria de enfrentar esses sofrimentos e
prio Nietzsche tinha abandonado antes. de encontrar Scho- monstros e alcançar a glória como consequência. O terceiro
penhauer. Embora não possamos subscrever a opinião de elemento na influência de Schopenhauer sobre Nietzsche foi
um colaborador do Times Literaru Supplemeni, que conside- a sua coerência. «Depois da análise, verifico que esta influên-
rava Schopenhauer como philosophus christianissimus, nada cia de Schopenhauer tem três elementos: a sua honestidade,
nos custa admitir que há bastante de comum entre o Cristia- a sua alegria e a sua coerência. l!: honesto, falando e escre-
nismo e a filosofia de Schopenhauer. (Este assunto já foi bem vendo como se fosse para si próprio; é alegre, porque o seu
esclarecido pelo professor Humberto Padovani, de Milão). pensamento venceu as maiores dificuldades; é consistente,
Era de esperar que, quando Nietzsche chegasse a reconhe- porque não pode deixar de o ser». E assim Nietzsche
cer esse facto, abandonasse Schopenhauer, como tinha aban- encontrou em Schopenhauer «o educador e o filósofo
donado o Cristianismo. E, de facto, à medida que a sua que desejava».
oposição ao Cristianismo se ia tornando mais funda e a Schopenhaeur era indubitàvelmente honesto, no sentido
ideia da «transmutação de todos os valores» se ia radi- de dizer aquilo que pensava e estava por certo convencido de
cando mais no seu espírito, foi-se também tornando mais que, ao dar ao homem O Mundo como Vontade e como
funda a sua oposição a Schopenhauer. Representação, vinha dar a verdade ao mundo. Não se pode
Em Schopenhauer como Educador, Nietzsche analisa a dizer que ele próprio tivesse seguido as suas prescrições éti-
influência de Schopenhauer sobre ele - isto é, quando cas; mas então, como ele observou, não é mais necessário
estava ainda sob a influência daquele filósofo cu, se assim que o filósofo seja um santo do que um santo seja um filósofo.
o preferirmos, no tempo em que ele estava inconsciente- Podemos ainda admitir que Schopenhauer não fez as suas
mente usando de Schopenhauer como de um cabide em afirmações sem convicção, simplesmente para se mostrar bri-
que pendurava as suas próprias ideias. Nietzsche diz-nos lhante e fora do vulgar; mas o que não pode fugir fàcilmente
que andava à procura de um verdadeiro filósofo e educador, à crítica é a afirmação de que a alegria era uma das caracte-
ee com tal necessidade e tais desejos vim a conhecer Scho- rísticas do seu espírito e do seu pensamento. Há, sem dúvida,
penhauers. Encontrou nele uma ausência de afectação, uma no pensamento de Schopenhauer, uma certa «alegrias nega-
honestidade fundamental, um falar para si próprio e um tiva, que é antes a calma refreada do espectador desapaixo-
reconfortante de ar de candura. «Conheço apenas um único nado. Não é a alegria vigorosa do homem que olha o seu
autor que possa ser colocado ao lado de Schopenhauer, ou inimigo de frente e o domina, mas o olhar compassivo do
talvez acima dele, em matéria de honestidade: é Montaigne», espectador que, na ilha da sua calma filosófica, se põe à
Além da honestidade, Nietzsche encontrou em Schope- margem de uma luta infrutífera. O santo eschopenhaueríanos
nhauer - o que é bastante estranho - «uma alegria que não é o homem em cujo coração pulse a energia de uma
realmente torna os outros alegres». Não é a alegria dos eserí- vida divina, de um amor dado a Deus, mas o homem que
216 NIhTZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 217
fez uma renúncia - e isto é tudo. Não é o homem que vê os cultiva uma independência do Estado e da sociedade, como
sofrimentos e loucuras desta vida, tendo como pano de fundo seu ideal, para escapar às cadeias da oircunstânoía , tal é,
a luz da eternidade, mas o homem que vê os sofrimentos e para nós, O seu valor». De facto, Schopenhauer criticou amar-
loucuras desta vida, tendo como pano de fundo a negra gamente «a tribo culta» e professores de filosofia, mas é
escuridão. No pensamento de Schopenhauer há um lugar também notório que isso resultou principalmene do desespero
para a «alegria» do artista, um lugar para a «alegria» do pelo não reconhecimento e da inveja. Schopenhauer não
asceta indiano, mas não há certamente lugar para a alegria começou como professor da universidade, como aconteceu a
de S. Francisco de Assis e - aqui é que está o ponto -não Nietzche (que regeu a cadeira de Filologia em Basileia, até
há lugar para a alegria de Frederico Nietzsche, não há lugar que a falta de saúde o obrigou a abandonar esse lugar) ; mas,
para a alegria do lutador, do criador e do entusiasta de longe de ser o seu ideal obter o seu estado de independência,
Dioniso. Quando Nietzsche encontrou em Schopenhauer a empregou infrutíferos esforços para obter uma cadeira. Numa
alegria «que realmente faz os outros alegres», estava - como ocasião chegou a anunciar conferências em Berlim à mesma
veio a verificar mais tarde - não a encontrar, mas a conce- • hora em que Hegel fazia também conferências a uma nume-
der. Leu em Schopenhauer uma alegria que ali se não encon- rosa assistência, mas teve de desistir com humilhação e des-
tra : vestiu o filósofo pessimista com os seus próprios ideais. gosto, quando soube que os estudantes não queriam quebrar
E quanto a coerência P Podemos admitir que o suicídio a obediência ao seu Mestre, apesar da obscuridade de Hegel
seria a conclusão lógica da filosofia de Schopenhauer e uma e do seu estilo burilado. Neste ponto, Schopenhauer era não
prova da sua coerência. tanto um espírito livre como um espírito contrariado. O pró-
O suicídio era, sem dúvida, condenado como uma ren- prio Nietzsche disse: «Schopenhauer tem, em todo o caso,
dição, uma desistência; mas a conquista do monstro, tal como uma superioridade sobre ele (isto é, sobre Kant), porque, pelo
ensinada por Schopenhauer, era apenas a conquista dum fan- menos, distingue-se por certa fealdade violenta de disposição,
tasma, uma aquiescência, uma evasão. O Schopenhauer do que se manifesta no ódio, no desejo, na vaidade e na suspeita;
Schopenhauer como Educador não é o verdadeiro Schope- era de uma disposição um tanto mais feroz e tinha tempo e
nhauer. Exactamente como Nietzsche criou um ideal muito vagar para se entregar a tal ferocidade» (I).
seu acerca de Wagner e sofreu depois uma amarga desilusão, Nietzsche foi atraído para Schopenhauer pelo ateísmo
quando, mais tarde, foi forçado a reconhecer que Ricardo deste último, pela sua negação do sobrenaturalismo e trans-
Wagner era Ricardo Wagner e nenhuma coisa mais, assim cendentalismo, pela sua doutrina do carácter fundamental-
criou um ideal muito à sua moda a respeito de Schopenhauer, mente irracional do universo - num forte contraste com
para verificar depois que Schopenhauer era apenas Scho-- Hegel, que era o verdadeiro fel, tanto para Schopenhauer
penhauer. como para Nietzsche - e pela sua subordinação do intelecto
Uma indicação da falta de compreensão de Nietzsche
acerca de Schopenhauer é a que se segue: «Schopenhauer
liga pouca importância à tribo culta, conserva-se exclusivo e C) Aurora, aforo 481.
)
218 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 219

à vontade. Estes elementos mantiveram-se comuns em ambos, conscienciosamente afirmado e verificado. Encontramos
mas, à medida que as ideias peculiares a Nietzsche se foram agora outra importante diferença entre Nietzsche e Schope-
desenvolvendo e foram tomando uma forma concreta, ele nhauer. Este último defendeu o ideal da compaixão e ensi-
chegou a verificar, a uma luz sempre mais clara, a antítese nou que todos os indivíduos estão metaflsicamente unidos e
que havia entre Schopenhauer e ele próprio. Na filosofia de são idênticos numa só vontade; Nietzsche, por outro lado,
Schopenhauer, o ideal do homem é a negação da vida, ao rejeitou o ideal da compaixão e afirmou, apaixonadamente,
passo que na filosofia de Nietzsche é a afirmação da mesma não a unidade de todos os homens, mas a diferença de ho-
vida. Em Assím Falou Zaratustra, Nietzsche fala-nos. do seu mens, a ordem de categoria, a existência de aristocracia
período de pessimismo eschopenhaueriancs : «Sonhei que natural. É verdade, sem dúvida, que o sistema de Schopen-
renunciara à vida». Mas o processo do Adivinho, o processo hauer culmina também numa aristocracia, a aristocracia
do mundo-cansado foi rejeitado por Nietzsche como um mau dos génios e dos ascetas, mas estes atingem esta posição, não
sonho. E ele pregou a afirmação à vida, o grande sím à vida. pelas afirmações da vontade de domínio, mas pela renúncia,
O homem não tem de renunciar à vida, nem de se conservar pela autonegação, mantendo-se, por assim dizer, à margem
à margem da vida, nem de seguir um ideal de asceticismo: da luta. Nietzsche, acreditando firmemente que os homens
tem de acolher e abraçar a vida. Mesmo na doutrina fatalista não são iguais, e que a doutrina da igualdade é verdadeira-
do «eterno retorno» - a noção de que o processo do mente imoral, recusou-se a aceitar o igualitarismo socialista
universo é um processo de ciclos que retornam eternamente, e a doutrina cristã da igualdade de todos os homens perante
doutrina fatalista que, conforme já foi dito várias vezes, é Deus (doutrinas estas que ele considerava ambas decadentes
pouco favorável à doutrina de Nietzsche sobre o Super- e degeneradas) e chegou a pensar que a filosofia de Scho-
-homem - aparece-nos o mesmo tema. Os homens «não penhauer era talhada do mesmo pano. Os aristocratas de
têm de fugir à vida como OS pessimistas, mas, como alegres Schopenhauer são precisamente aqueles que viram através
convivas dum banquete que desejam as suas taças novamente do princípio da individualização, que verificaram que indivi-
cheias, dirão à vida: «Uma vez mais»! Assim Nietzsche se dualidade e particularidade são Mâya e que todos são meta-
desenvolveu fora de Schopenhauer e, se por um lado temos fisicamente um, idênticos numa só Vontade. Verificando
o pessimismo de Schopenhauer combinado com um ideal pre- isto, eles compadecem-se de todos, porque, em última análise,
dominantemente negativo de comportamento, temos, por ou- não é o sofrimento de todos o seu próprio sofrimento, por
tro lado, O optimismo de Nietzsche combinado com um ideal motivo da unidade metafísica de todos os seres? Os aristo-
predominantemente positivo e activo de comportamento. cratas de Nietzsche, por outro lado, são precisamente aque-
Mas o que é a vida de Nietzsche? A vida é a vontade ...•.
:{;:
les que reconhecem a sua diferença dos outros, que se
de domínio. Não é uma simples luta pela existência, mas, ~:
:'J
" ..
separam do rebanho e dos valores do rebanho, que seguem
acima de tudo, uma luta pelo poder-a vontade de domínio. o seu caminho e deixam o rebanho entregue à SUa pequenez,
Esta luta observa-se tanto entre os homens como entre os ',',
Os aristocratas de Schopenhauer olham para baixo com olhos
irracionais, mas, duma maneira geral, esse facto tem de ser de compaixão; os aristocratas de Nietzsche olham pua.cUna
22U NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 221

e para a frente, exteriorizando nos seus olhares o triunfo, a descobriu Schopenhauer. «Presentemente» - escreve ele a
alegria e o domínio - mas não a compaixão. Liszt - «estou exclusivamente ocupado com um homem,
(Não queremos dizer que Nietzsche advogasse a cruel- que me apareceu na minha solidão como um mensageiro
dade e a barbaridade. Os Super-homens não são espadachíns vindo do Céu: é Artur Schopenhauer, o nosso maior filósofo
dos S. S., mas os «homens europeus» - não os «animais depois de Kant ... O seu pensamento central, a negação final
selvagens», mas homens que souberam triunfar da tirania da vontade de viver é de uma terrível gravidade, mas é o
das paixões e que são completamente «livres»). único caminho de salvação. Este pensamento não era natural-
O «santo schopenhaueriano» chega à sua posição de mente novo para mim, mas foi este filósofo que, pela primeira
superioridade pelo ascetícísmo e pela renúncia, dizendo vez, mo deu a conhecer com perfeita clareza... s. O Ring
mão:!> à vida; o Super-homem de Nietzsche nasce da afirma- foi concebido antes de Wagner ter conhecido Schopenhauer
ção, dizendo «sim» à vida. Nietzsche, sem dúvida, pregou um e a sua filosofia, mas o Tristão foi concebido debaixo da
certo asceticismo, por meio do qual o homem se deve con- influência directa do filósofo pessimista, em 1854. E certo
quistar a si mesmo: não é a mensagem da libertinagem e da que, no Parsífal, Wagner inclina-se para um conceito de
auto-indulgência que ele proclama, mas força no refrea- redenção positiva, mas é ainda por meio da negação e não
mento e autodomínio. A libertinagem é fraqueza e não por meio da afirmação da vida (I).
força. Mas o ideal negativo de Schopenhauer tomou-se Ora Nietzsche, é certo, mostra-se desgostoso com o
repugnante para ele: o ideal é afirmação, é positivo e não desenvolvimento posterior de Wagner, tal como manifestado
negativo. no Parsifal. No Ecce Homo fala-nos da recepção de «um
No principio deste capítulo citamos o paralelo entre a esplêndido exemplar do texto do Parsifal, com a seguinte
mudança de atitude de Nietzsche pelo que se refere a dedicatória de Wagner: «Ao seu querido amigo Frederico
Wagner. Mas há uma conexão mais íntima do que mera- Nietzsche, de Ricardo Wagner, membro do Conselho Ecle-
mente a de um volta-face semelhante nas relações pessoais siástico... Por essa ocasião apareceram os primeiros «Bay-
com os dois homens (se podemos falar em relações pessoais, reuth Pamphlets» e eu então compreendi o que devia fazer,
tratando-se de Schopenhauer que Nietzsche nunca conheceu porque já era tempo para isso. Incrível! Wagner tornara-se
pessoalmente). Wagner expressou em música a metafísica devoto» (pg. 89-90). Simplesmente, em O Caso Wagner,
de Schopenhauer; já tem sido dito que Wagner está para Nietzsche comenta: «O eLohengrins lança uma solene inter-
Schopenhauer assim como Dante está para S. Tomás. dição sobre toda a investigação e inquirição. Desta maneira
Wagner era fortemente inclinado ao pessimismo e, em 1853,
escreveu ele a Líszt, dizendo que a sua vida era apenas
para sofrer. E acrescenta que, «quanto a esperança, resta-me (1) Kuno Fischer diz que Wagner, na sua colaboração para a
apenas uma: a de dormir com um sono tão profundo que celebração do jubileu de Beethoven, reconheceu e aceitou a teoria de
todo o sentimento da miséria humana seja afastado para Schopenhauer, segundo a qual a música se deve considerar como reVtl'-
longe de míms. Foi neste estado de espírito que Wagner ladora da essência da mundo.
,
.,
I'

222 NIETZSCHE, FfL()SOFO DA ClfLTlfllA


SCIlOPENlIAUEI\ E NlETZSCHE 22.'3
'Vagner professa o r-onccito do eristiío «1'11 d(·V('s e luis-de
gad cuni lwufragiurn feci C). E traduziu o Ring para a
crer». (p~. 7). Mas devemos Iemhrar (l II e, ;LOeS olhos <k
Jingll:ag.ern «sL~lopenha\Jcriam\). Tudo corre mal, tudo se
Nietzsche, o Cristianismo c o «Sc/topellhallerianisll1o» são urrnínu e o novo mundo é tão mau como o velho: insignifi-
parentes, porque ambos são manifestação de ducadôncíu, de
fraqueza o de negação, Ao rejeitar o Parsifal, Nietzsche
1 câneíu, a Circx: indiana gesticula ... Brunildo que, de acordo
com o velho plano tem de se retirar com uma canção em
estava rejeitando também () Wagner da Interprctuçã-, do honra do amor livre, consolando o mundo com a esperança
J
Bing o o Wagner do Tristão, não S<l o Wagner «cristão» ele nrnu Utopia socialista na qual «tudo irá bem), agora
mas também o Wagner tschopenhaueriano». r arranja mais alguma coisa para fazer. Deve primeiramente
Nietzsche, sem dúvida, reconhece cxpllcitamcnto e estudar Schopenhauer. Deve primeiramente pôr em verso
rejeita o eschopenhauerianisrnr» de Wagner. No seu prefácio o primeiro livro de O Mundo como Vontade e como Repre-
para O Caso \Vagner, fala-nos da sua preocupação com o scntoção. Wagner estava salvo... Sem gracejo, isto foi uma
problema da decadência e <10 seu combate contra aquela salvaçâo, O serviço que Wagner deve a Schopenhauer é
incalculável. Foi o filósofo do decadência que permitiu que o
moral que nega a vida e que tem como alicerce oculto
artista da decadência se encontrasse a si mesmos (pg. lO-H).
ea vida empobrecida, o desejo da inslgnificâncla, o grande
Este tema da ligação de Wagner, de Schopenhauer c do
esgotamento). Depois comenta: «Eu tive de alinhar contra
Cristianismo com a decadência é mais claramente tratado
tudo o que havia de mórbido em mim próprio, incluindo por Nietzsche. «Wagner tem a virtude dos décadents-s-
Wagner, incluindo Schopenhauer c incluindo toda a moderna a compaixão .. ,» (pg. 22). Mais ainda ... «Wagner é um sedu-
humanídades (pg. 30). Falando do Ring c da subsequente tor em grande escala. Não há nada de exausto, nada de
interpretação de Wagner, escreve ele: «Que aconteceu? caduco, nada de perigoso para a vida, nada que calunie o
Uma desgraça. O navio embateu contra um escolho; Wagner mundo no reino do espírito, que não tenha secretamente
deu à costa. O escolho era a filosofia de Schopenhauer; Wa- encontrado abrigo na sua arte; ele dissimula o mais negro
gner descobrira apressado uma visão contrária do mundo. obscurantismo nos orbes luminosos do ideal. Ele acaricia
Que musicara ele? Optimismo? Wagner estava envergonhado. todo o instinto niilista (budista) e embeleza-o com a música;
Era, no entanto, um optimismo para o qual Schopenhauer acaricia toda a forma do Cristianismo e toda a expressão
descobrira uma maldosa expressão: era um optimismo sem religiosa de decadência. A música é a forma de Circe... a
escrúpulos. Wagner estava mais envergonhado do que nunca. esse respeito a sua última obra na sua maior obra-prima.
Reflectiu durante algum tempo: a sua posição parecia-lhe Na arte da sedução o ParsifaI. manterá para sempre a sua
desesperada. Por fim, pareceu-lhe que se abria na sua frente categoria como um rasgo de géníov, Que foi que Nietzsche
um caminho por onde poderia escapar-se; qual, se o escolho não encontrou em Wagner? A esta pergunta responde ele
em que havia naufragado podia ser interpretado como um
alvo, como um motivo ulterior, como o fim real. da sua via..
gem ? Ter naufragado aqui era também um alvo. Bene 1'/.QIVÍ- (1) Naveguei bem, quando naufraiuel. (N. T.),
224 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 225
em O Caso 'Vagner: «Foi a gaia ciência: pés leves, «Lançar olhares de soslaio para a moral do senhor, para
intelecto, ardor, boa lógica, dança de estrelas, uma intelec- a moral nobre e, ao mesmo tempo, ter nos lábios o ensino
tualidade luxuriante, a luz vibrante do Sul, o mar calmo- oposto o «evangelho dos humildes», a doutrina da necessi-
perfeição> - de facto tudo aquilo que Nietzsche pensava dade da salvação! ... Eventualmente, eu admiro a modéstia
ter encontrado em Bizet e no seu amigo Pedro Gast - a dos cristãos que vão ao Bayreuth... Como? O Cristianismo
vida, em resumo, como oposto à decadência, à corrupção e adaptado a Wagnerítes femininas ou por Wagnerites femi-
à morte. Poderá parecer isto estranho, à vista do que Nietz- ninas - porque, nos seus últimos dias, Wagner era completa-
sche havia afirmado de Wagner em época anterior, mas, tamente feminini generis? Novamente afirmo que os cristãos
exactamente como ele primitivamente se havia lido em de hoje são demasiadamente modestos para mim... Se
Schopenhauer, assim se tinha lido primitivamente em Wagner fosse cristão, então Lizst era talvez um Doutor da
Wagner. «Eu comecei a interpretar o espírito de Wagner Igreja! A necessidade de salvação, a quinta-essência de
como a expresão do vigor dionisíaco da alma. Nesse espírito todas as necessidades cristãs, nada tem de comum com tais
pensei ouvir o terramoto por meio do qual uma primitiva alarves» e). Apesar da sua hostilidade contra o Cristianismo,
força vital, que havia sido refreada no decorrer dos tempos, Nietzsche respeitou sempre os verdadeiros cristãos.
era finalmente procurada para se libertar das suas cadeias. Assim Nietzsche chegou a pôr de parte o seu «grande
completamente indiferente a quanto daquilo que hoje se mestre Schopenhauer», por causa da atitude negativa deste
arroga o nome de cultura pudesse ser, por este meio, reduzido perante a vida, por causa da sua afirmação do «valor dos
a ruínas. Vedes como eu interpretei mal e vedes também O instintos antíegoístas, os instintos da compaixão, da auto-
que eu mesmo outorguei a Schopenhauer e a Wagner. Na negação e do auto-sacrifício, que Schopenhauer tinha tão
realidade, tanto Wagner como Schopenhauer negam a vida, persistentemente pintado com cores de ouro, e tinha divini-
ambos eles a difamam; precisamente por isso são meus antí- zado e eterealizado de tal forma que lhe apareciam por fim
podes. (I). «o Parsifal é uma obra de rancor, de vingança «como valores intrínsecos em si mesmos», por virtude dos
e da mais secreta amálgama de venenos com que se pode quais expressou, perante a vida e perante si próprio, a sua
pôr fim às primeiras condições da vida: é uma má obra» (2). pr6pria negação. Foi nestes instintos que Nietzsche chegou
Na realidade, embora Nietzsche acuse Wagner de ser a ver «o grande perigo da humanidade, a sua mais sublime
tentação e sedução - sedução para quê? para o nada?-
um «servil e desesperado décadent» que dum momento para
o outro se sentiu abandonado e se prostrou de joelhos diante nestes mesmos instintos eu vi o começo do fim, a estabili-
da cruz cristã», ele não alimentava qualquer ilusão quanto dade, o esgotamento que olha para trás, a vontade voltan-
do-se contra a vida ... E verifiquei que a moral da compai-
às credenciais de Wagner como porta-voz do Cristianismo.
xão, espalhattIo-se cada vez mais ao largo, e cujas garras se

(I) Nietmche contra Wag1l8r, pg. 65-6.


(") NíetztJche contra Wag1Wr, pg. 72-3. (1) O Caso Wagn8l',. pg. 49~O.
226 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 227
cravaram até nos filósofos com a sua pestilência, era o mais alicerces de Schopenhauer, no ateísmo e na doutrina da
sinistro sintoma da modema civilização da Europa» (Prefá- irracionalidade e da falta de sentido da vãda. Nietzsche
cio da Genealogia da. Moral, pg, 7-8). Mas, apesar desta defendia o eterno retomo, o retomo cíclico de todos OS
rejeição, Nietzsche manteve o valor de Schopenhauer como fenómenos e, embora não fizesse tanta força sobre esta dou-
educador, como representante duma etapa no caminho da trina nos últimos tempos, quando as suas esperanças e
liberdade espiritual. Assim, embora ele não desejasse que aspirações estavam concentradas no aparecimento do Super-
o seu amigo Henrique von Steín, «que morreu numa idade -homem, não parece, por certo, que ele tenha alguma vez
tão imperdoàvelmente prematura», continuasse no atoleiro posto de parte essa doutrina. Mas a doutrina do eterno
do <fschopenhauerianismo», reconheceu o valor dessa fase no retomo envolve logicamente o pessimismo, pois exclui a
seu desenvolvimento intelectual. A filosofia de Schopen- noção de que existe qualquer fim determinado para a vida
hauer continuava a ter para Nietzsche o mérito de expor a --e toda a teologia foi posta de parte. Nietzsche, sem
falsidade das maneiras de ver transcendental e sobrenatural dúvida, reconheceu isto e por isso declarou que se deve dar
e a actuar como um correctivo do optimismo do tipo «hege- um fim à vida e que é o homem quem deve dar esse fim
líanos. Por outras palavras, Nietzsche considerava que e constrúir um significado para a vida por meio do seu pró-
Schopenhauer podia representar para os outros o papel que prio trabalho criador. «O Super-homem é o sentido dr Terra.
havia representado para ele, convencendo-o do ateísmo. Diga a vossa vontade; O Super-homem será o sentido da
Mas, embora Schopenhauer tenha o seu valor, é necessário Terra» (I). Mas é isto mais que o grito mal-humorado do
passar para além dele, usar dele contra si próprio. «Eu acon- homem que reconhece a falta de sentido das coisas, que se
selho a toda a gente a não desconfiar de tais caminhos revolta contra essa terrível visão, que recusa resignar-se e
(Wagner e Schopenhauer). O sentimento do remorso, que dispõe a sua vontade contra a vontade cega que jaz no cora-
julgo absolutamente antifilosófico, tomou-se estranho para ção de todos os fenómenos? É inegável que há um abismo
míms. «Guardo para o fim o meu maior dever, que é agra- entre Schopenhauer e Nietzsche, porque um prega a resi-
decer publicamente a Wagner e a Schopenhauer e deixá-los gnação, outro a desconfiança; um prega a conformidade, a
- digamos assim - alinhar contra eles próprios» e). negação, o ascetismo, ao passo que o outro prega a rebelião,
Se Nietzsche passou além Schopenhauer, que pretende a afirmação, a força e a acção; mas a mesma visão é comum
ele para substituir a compaixão eschopenhauerianas , o pessi- a ambos: a visão da irracionalidade das coisas. Há, por-
mismo esehopenhaueriano», o não de Schopenhauer perante tanto, qualquer lugar para verdadeira alegria, para um ver-
a vida? Pretende substituir tudo isso pela força, pela alegria, dadeiro optimismo na doutrina de Nietzsche: não é o seu
pela afirmação da vida, pelo trabalho criador que vai prepa- optimismo um optimismo de desespero, um optimismo que
rar o Super-homem. Mas tal substituição assené nos mesmos se recusa a .onhecer-se a si mesmo como tal? Não parece

(1) Aforismos Selectos. 73-74.


T,:
2213 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA 1 SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 229
que a diferença entre Schopenhauer e Nietzsche não é tanto l' Vitória sobre quê? Vitória sobre a visão clara do sofrimento,
uma diferença de filosofia como uma diferença fundamental sobre a irracionalidade da vida. O asceta: eschopenhaue-
de tom e de temperamento? A resignação indiana de um riano» alcança vitória sobre esta visão por uma forma, e
é profundamente diferente do activismo europeu do outro,
mas a base metafísica é a mesma. Nietzsche pode afirmar,
r !
Nietzsche alcança-a por outra; mas a visão é a mesma.
Ambos os pensadodes encaram a vida como sem um último
a vida, a vida como a vontade de domínio, mas nada pode sentido, e assim ambos podem justificadamente, ser denomi-
alterar o facto de que a vontade é uma vontade cega. nados pessimistas. O pessimismo do homem vulgar que, por
Schopenhauer e Nietzsche são como dois irmãos que são temperamento, é levado a olhar as coisas pelo seu lado negro
desiguais no temperamento, embora brotando dum paren- : - embora possa acreditar que a vida tem algum signifi-
)
tesco comum. .J,
cado e valor - é apenas superficialmente um pessimista; o
Para passar para além de Schopenhauer, é preciso tam- !
seu -pessimismo é apenas um pessimismo à superfície, em
bém passar para além de Nietzsche. Se passar para além comparação com o pessimismo daquele cujo olhar penetrou
de Schopenhauer significa passar para além do pessimismo, nas raízes das coisas e viu ali o abismo da irracionalidade.
é necessário passar para além duma filosofia que, por muito E tanto Schopenhauer como Nietzsche estão de acordo,
que possa afirmar alegria, assenta sobre uma base pessimista. quanto a este pessimismo fundamental. Podem ter reagido
Podem, possivelmente, acusar-nos de usarmos indevidamente por forma muito diferente a esta visão e a «éticas respectiva
o termo «pessimismo». A filosofia de Schopenhauer pode, .,~ dum e doutro pode divergir largamente, mas, por baixo de
I
com razão, ser chamada pessimista, porque põe em primeiro j
.,
ambos, está escancarado o abismo.
plano o sofrimento e a miséria da existência e representa Na ocasião presente estamos empenhados na luta pela
a vida como um mal e indesejável. conservação de valores culturais, e o ideal de Nietzsche era
Nietzsche, pelo contrário, representa a vida como um
1 I certamente o homem duma cultura mais profunda e mais
bem e desejável; ele reclama, não menos vida, não o não-ser, larga, como oposto à «besta fulva» por um lado, ou ao
J
não Nirvana, mas mais vida, uma vida mais vigorosa, uma I homem simplesmente culto pelo outro. Mas quem será tão
J
vida mais alegre. Como poderá, portanto, tal filosofia ser ousado que afirme que Nietzsche nos dá uma filosofia capaz
j
denominada pessimista e irmanada à de Schopenhauer? 1 de ser útil ao mundo contemporâneo atormentado pela
Na realidade, Nietzsche, como já foi dito, considera a ale-
gria como uma das principais características de Schopen-
1 guerra? Algumas das suas ideias são de valor permanente
(e como poderia ser doutra forma com um homem do calibre
~
hauer; este é alegre «porque venceu as maiores dífículda- ~i de Nietzsche?) - a ideia da unidade da Europa, por exem-
dess, Sem dúvida, mais tarde, em Scho,Mhauer como
Educador, acabou por atribuir a sua pr6pria alegria a Scho-
penhauer, mas o conceito de Nietzsche, quanto a alegria,
i
t
plo - mas tais ideias são elementos incidentais no seu pensa-
mento. O seu insucesso para construir uma filosofia que
pudesse, de facto, ser uma verdadeira mensagem nos dias
mantem-se o mesmo: chá apenas alegria onde há vitória», de hoje, é precisamente aquela noção que o atraiu na filo-
230 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA

sofia de Schopenhauer - a noção do ateísmo. «Deus está


l' r
I
SCHOPENHAUER E NIETZSCHE

qualquer coisa que o cérebro mais bárbaro possa conceber,


231

morto», proclamou Zaratustra - e dessa maneira o homem


mas não podeis pretender uma coisa: que isso seja razoável.
de Nietzsche tornou-se apenas homem, um homem conde- I A vossa língua recusar-se-á a pronunciar as palavras», em-
nado à morte, o abismo do que nada significa. O fim dado
ao mundo pode ser o Super-homem, mas qual é o fim do
Super-homem? A vida ? Mas esta vida é uma vida para a
t bora Santo Agostinho, S. Tomás de Aquino, Pascal, etc. te·
nham mostrado alguma simpatia pela reacção de Schopen-
morte, um mero momento no eterno retorno, uma bolha do hauer contra Hegel (posto que Hegel, sem dúvida, nunca ne-
ar no mar da irracionalidade. O mundo não tem sentido, gasse a existência do sofrimento: ele não era um cientista
o homem não tem sentido - porque Deus está morto. cristão). Mesmo que as «teodiceiass de Agostinho, Aquino,
O homem de Nietzsche é como o homem de Martinho Hei- Leibniz, etc. não tenham resolvido completamente o mistério
degger, cuja verdadeira existência é um Gegenwart aus V CI'- do sofrimento (como o poderiam resolver?) não deixaram de
gongenheit in Zukunit, que está sempre nas garras da morte. verificar que há um problema. Mas eles não permitiram que a
cA morte», diz Heidegger, «é uma espécie de ser que se sua visão do facto do sofrimento e do mal os absorvesse; viram
lança sobre o homem desde o seu nascimento», A morte, que também a realidade dos valores e viram-nos contra o pano
é apenas morte, é o selo da falta de sentido, e o homem, que de fundo do transcendente. (A validade dos seus argumentos
é apenas homem, é uma figura de uma inconsolável tragé- metafísicas sobre este assunto não é positivamente um tema
dia. ~ apenas se Deus não estiver morto, apenas se o homem que possa ser aqui discutido).
não for simplesmente um ser para a morte, mas um ser para Nietzche acusou os cristãos de dizerem não à vida, de
Deus, que a vida pode ter um sentido e que quaisquer pala- estimularem a fraqueza e a decadência, de reduzirem toda
vras acerca de conservação de valores e de cultura podem a gente à igualdade do rebanho. Mas. esquece-se das palavras
ser mais do que um simples passatempo. do Fundador do Cristianismo: «Eu vim para que eles possam
A metafísica de Schopenhauer exclui o Cristianismo. ter vida e a possam ter mais abundantemente». Certamente
Nietzsche desprezou o Cristianismo como decadente, fraco a vida sobrenatural é para Nietzsche um conceito vazio, uma
. ."
e contrário à vida. A verdade é que a filosofia cristã inclui ) simples visão espectral, mas assim deve ser para todos para
tudo o que é de valor no pensamento, tanto de Schopenhauer quem «Deus. está morto». No entanto, qualquer que possa
como de Nietzsche. Os filósofos cristãos não deixam por ser o caso dos cristãos menos perfeitos, os Super-homens do
certo de reconhecer que existe o problema do sofrimento e Cristianismo têm sido notáveis pela sua afirmação da vida
do mal, e não tentaram também certamente justificar tudo no mais profundo e pleno sentido. O grande pensador Henri-
o que existe ou caracterizar tudo tão precisamente racional que Bergson, falando dos místicos cristãos, mostra como «da
como se apresenta, mesmo quando se usa para favorecer um sua crescente vitalidade irradia uma extraordinária energia e
fim racional. No entanto, poucos vão tão longe, a ponto de um notável poder de concepção e realização. Pensemos no
dizerem com Dostoievsky nas Letters Iram the Underworlã que, em matéria de realização, foi feito por S. Paulo, por
«v6s podeis dizer qualquer coisa acerca da hist6ria do mundo, Santa Teresa, por Santa Catarina de Sena, por S. Francíseo,
232 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
SCHOPENHAUER E NIETZSCHE 233
por Joana d'Arc e por tantos outros» (1). Da alma unida a
Deus diz ainda Bergson: «Desde então há, para a alma, uma caricatura do Super-homem ideal de Nietzsche e que este
superabundância de vida. Há um ímpeto sem limite. Há um devia aborrecer o nacional-socialismo da modema Alemanha.
impulso irresistível que lança essa alma nas mais vastas Mas Nietzsche certamente admirou Napoleão (um herói tam-
empresas. Uma exaltação calma de todas as suas faculdades bém do Hegel mais novo) ; e, em qualquer caso, é difícil ver
fá-la ver as coisas apenas numa vasta escala e, apesar da como na filosofia de Nietzsche o homem vulgar tem outro
sua própria fraqueza, produzir apenas aquilo que pode ser valor que não seja o de contribuir de qualquer forma para o
poderosamente realizado» (2). O sim à vida do Super-homem aparecimento do Super-homem e para o seu posterior desen-
cristão é, de longe, muito mais verdadeiro do que o do Uber- volvimento. O filósofo cristão concorda com Schopenhauer
mensch de Nietzsche, porque é um sim à vida na sua totali- ao incalcular as virtudes da compaixão e da simpatia, embora
negando a identidade metafísica de todos os homens numa
dade, não apenas à vida natural, mas à vida sobrenatural e,
única vontade cega, pois afirma a sua unidade na diversi-
em última análise, um sim à superabundante Fonte de toda
dade como filhos de um único Pai. Concorda com Nietzsche
a vida, a Deus que não está morto, mas que é a própria Vida.
em que o homem deve ser livre - um mensageiro da vida
E que havemos de dizer da igualadora redução a um
- mas afirma que o homem deve ser livre com a liberdade
rebanho?
dos filhos de Deus e que o seu mais alto privilégio é ser
Os filósofos cristãos, certamente, não consideraram que
portador e mensageiro da vida que brota de uma ímorre-
os homens são todos igualmente fortes, igualmente belos ou
doura Fonte nas invisíveis profundezas da Eternidade.
igualmente inteligentes. Não julgam ainda que todos os
homens são iguais diante de Deus, visto que não são igual-
mente bons e santos, como não são igualmente inteligentes.
Mas o que os filósofos cristãos afirmam é que cada pessoa
humana tem o seu valor e que nenhuma pessoa humana pode
ser transformada num simples meio para qualquer outra
pessoa - concordando neste ponto com o «velho Kant», que
foi uma das bêtes-noires de Nietzsche. Para esses filósofos
é absolutamente irracional e absurdo que os seres humanos
possam ser um simples meio para a realização da vontade de
domínio, ou seja de qualquer megalomaníaco Führer. Mos-
trámos já noutra parte que os chefes nazis são apenas uma

(I) As Duas Fontes da Moral e da Religião, pg. 194.


(") As Duas F<mte$ da Moral e da Religião, p~. 198.
CAPITULO VIII
O MONSTRO FRIO 235
O MONSTRO FRIO o seu ponto de vista em termos precisos; assim, em Scho-
penhauer como Educador, diz ele: «Estamos sofrendo as
consequências da doutrina pregada ultimamente por todos
os lados, segundo a qual o Estado é o mais alto fim do
homem e, assim, não há mais elevado dever do que servi-lo.
E eu considero tal facto, não um retrocesso ao paganismo,
mas um retrocesso à estupidez» (l).
Nietzche não admite que o Estado se renha originado
num contrato ou numa convenção - chama a isso uma teoria
fantástica e) - mas, pelo contrário, o Estado tem uma
«origem terrível», sendo criação da violência e da conquista.
«Uma horda de animais selvagens, uma raça de conquis-
tadores e senhores que, com todas as suas belicosas orga-
Embora eu não possa acre- nizações e com todo o seu poder organizador, cai de sur-
ditar que Nietzsche tivesse olhado com simpatia o movi- presa, com as suas garras terríveis, sobre uma população,
mento nacional-socialista da moderna Alemanha (têlo-ía em número talvez tremendamente superior mais ainda sem
considerado como uma caricatura da sua doutrinna), a dou- forma, ainda nómada - eis a origem do Estado» (3).
trina da negação da compaixão, etc. parecerá ter levado con- O Estado nasceu assim da vontade de domínio e, no mais
cretamente àqueles fenómenos que caracterizaram um dita- fundo dos seus alicerces, encontra-se a máxima de que «o
dor sem escrúpulos e sem qualquer espécie de compaixão. poder dá o primeiro direito e não há direito que no fundo
No entanto, é absolutamente incorrecto que Nietzsche deva não seja arrogância, usurpação e violência» (4). O Estado
ser considerado como um etotalítarístas ou como um abso- tem, pois, uma origem ignominiosamente baixa e por toda
lutista, pelo que se refere ao Estado. Nietzsche era essen- a parte se podem ver os monumentos dessa origem - terras
cialmente individualista e nem o Estado, nem a nação, nem devastadas, cidades destruídas, homens brutalizados, ódio
a raça eram para ele as mais altas produções da cultura devorador entre as nações e'). No entanto, apesar disto, veri-
humana. O Super-homem é o sentido do mundo (tanto fica-se que o Estado «é sempre olhado com fervor como o
quanto possa haver, nas teorias de Nietzsche, uma referên- alvo e último fim dos sacrifícios e deveres do indivíduo», e
cia a «sentido do mundos) e, certamente, uma instituição
não impessoal ou mesmo superpessoal», Há, por certo, um
(1) Considerações lntempestioas, ii, pg. 135.
sentido em que é verdade dizer que Nietzsche alinha entre (') Genealogia da Mo-rai, pg. 103.
os pensadores filosóficos alemães, mas a sua atitude perante (3) Considemçôes Intempestivas. ii, pg. 135.
a doutrina de Hegel quanto ao Estado é uma doutrina, não ") O Estado Grego, pg. 10.
de aceitação, mas de reacção e rejeição. Nietzsche estabelece (5) O EstackJ Grego, pg. 10.
236 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA
o MONSTRO FRIO 237
desta maneira se toma «um grito de guerra q ue enche os
cientes, é - ela pr6pria - apenas um meio para a realização
homens de entusiasmo para a realização de inumeráveis
do fim do Estado».
feitos realmente heróicos, talvez o mais elevado e mais vene-
O Estado tem assim uma função a realizar no progresso
rável objecto para uma multidão cega e egoísta que, apenas da cultura, desde que esta é o meio de moldar a sociedade,
nos momentos tremendos da vida do Estado, tem na face que é a necessária pressuposição para a aristocracia dos
a estranha expressão de grandeza 1» Esta transformação da homens superiores. Nietzsche, por exemplo, reconhece intei-
criação da violência e da rapina num objecto de fervente ramente o aspecto repelente da vida grega entre cidades-
devoção e auto-sacrifício é ocasionada pela pr6pria Natureza. «a sangrenta inveja de cidade contra cidade, de partido
A Natureza tem um fim a realizar dentro do Estado, e por contra partido, esta avidez assassina daquelas pequenas
intermédio dele, e espalha-se como um véu sobre a origem guerras, o triunfo tigrino sobre o cadáver do inimigo mas-
terrível desse mesmo Estado, de forma que «os corações são sacrado» - e pergunta: «Qual é a sua desculpa diante do
arrastados involuntàriamente para a magia do Estado cres- tribunal da eterna justiça? E responde: «O Estado compa-
cente, com o pressentimento dum fim invisível e profundo, rece neste tribunal, levando pela mão a flor da feminilidade
onde o intelecto avaliador é capaz de ver apenas uma adição em botão: a sociedade grega. Foi por esta Helena que o
de forças» (1). Qual é este fim da Natureza? ~ a fundação Estado se envolveu em tais guerras - e qual seria o juiz de
da ·Sociedade. O «alvo fínals é o «nascimento» destes privi- barba grisalha capaz de o condenar?» (I) Na opinião de
legiados homens de cultura «em cujo serviço tudo o mais Nietzshe, o antigo Estado não reconheceu apenas como cul-
deve ser devorado», e a Sociedade é, necessàriamente, como tura aquilo que era directamente útil ao próprio Estado, e
uma base para os homens superiores. A Natureza. então, assim foi, de longe, mais favorável à cultura do que o mo-
«com o fim de chegar à Sociedade, forja para si própria a derno Estado da Prússia que «assume a atitude de um mis-
cruel rede do Estado, pela qual a matéria-prima de uma tagogo da cultura» e que, afirmando promover a educação
populaça semíanimal foi não só inteiramente trabalhada, e a cultura, está apenas a servir os seus próprios interesses
mas também moldada» (2). Os homens, na sua maioria, estão e a espalhar uma pseudocultura que pouco tem de comum
nas trevas quanto ao que a Natureza pretende com o seu com o espírito alemão (2). O auto-interesse do Estado requer
instinto de Estado e seguem às cegas esse instinto; há, o maior alargamento e universalidade da cultura e ele, sem
porém, alguns que se conservam à margem desse instinto e dúvida, promove a cultura nesse sentido; (há aqui uma
que sabem o que desejam do Estado. Estes últimos ganharão importante reserva a introduzir, a qual n6s iremos mencionar
influência no Estado e usá-le-ão como um meio, ao passo que dentro em pouco) ; mas Nietzsche observa, com o seu espí-
para a maioria, encontrando-se sob o domínio de fins íncons- rito mordente, que «nos grandes Estados a educação pública
será sempre medíocre, pela mesma razão por que, nas grandes

(') O Estado Grego, pg. 10. (') O &tado Grego, pg. 12.
(") Geneologla da Moral, pg. 103. (') Futuro das Nossas Instituições Educaciof16tis. S.
238 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA o MONSTRO FRIO 239
cozinhas, o cozinheiro é, quando muito, medíocre» (1). Um histórico e a enfeitar-se como «o mistagogo da cultura»;
serviço adicional do Estado pelo que se refere à cultura é a sua tendência concreta é assim tornar a cultura medíocre
que nos Estados ou na sociedade organizada há - histori- e estática, subordinada aos interesses do Estado, e entravar
camente pelo menos - uma divisão de classes, e apenas uma o progresso da mesma cultura. Um Estado altamente civi-
cultura superior pode originar, onde ela existe, tal divisão: lizado «geralmente implica no tempo presente a tarefa de
« a da classe dos trabalhadores e a dos desocupados que libertar as forças espirituais duma geração exactamente até
sejam capazes do verdadeiro lazer» (2). ao ponto em que elas possam ser úteis às instituições exis-
Mas, embora. o Estado tenha uma função a desempenhar tentes, e esta libertação chega a significar antes encarcera-
no desenvolvimento da cultura - ser o utensílio para moldar mento». Nietzsche apresenta como comparação «o que o
aquela saciedade sem a qual uma verdadeira cultura é um Estado fez pelo Cristianismo», pensando em primeiro lugar,
impossível- o Estado é apenas um meio para a cultura e sem dúvida, na religião protestante. «O Cristianismo é uma
não o fim. «Aquele que não pode reflectir sobre a situação das mais puras manifestações do impulso para a cultura e
dos negócios na sociedade sem uma certa melancolia, que produção do santo, mas, sendo usado das mais diversas
aprendeu a imaginá-Ia como o contínuo e penoso nasci- maneiras para fazer girar os moinhos das autoridades do
mento desses homens de cultura privilegiados, em serviço Estado, tornou-se gradualmente doente do coração, hipó-
dos quais tudo o mais deve ser devorado - já não será crita, degenerado e em completo antagonismo com o seu
mais enganado pelo falso prestígio que os modernos espalha- alvo original» (I). O fundo da questão é que «o Estado nunca
ram sobre a origem e significado do Estado. Que significa teve qualquer preocupação com a verdade, a não ser com
o Estado para nós, a não ser o meio pelo qual esse processo a verdade que lhe fosse útil ou, antes, com qualquer coisa
social que acabamos de descrever tem de ser amalgamado que lhe fosse útil- quer se tratasse de verdade, de meia
e garantido na sua livre continuação? O fruto da verdadeira verdade ou de erro» (Z). Que o Estado, por exemplo, tente
cultura é o Super-homem e o Super-homem está para além uma coligação com a filosofia e exija dos candidatos aos
do Estado. «Além, onde acaba o Estado, começa o homem graus das universidades um exame em filosofia (Nietzsche
que não é supérfluo; além começa o canto dos que são está por certo a pensar no sistema das universidades do
necessários, a melodia única e insubstituível. Ali, onde o Estado) - é uma 'COisa absurda. «Seria certamente uma
Estado cessou... olhai, meus irmãos, não vedes o arco-íris nobre coisa para o Estado ter a verdade como uma serva
e a ponte do Super-hornemí's (3). a quem se paga; mas ele sabe perfeitamente que é essência
O Estado, contudo, está apenas demasiadamente incli- da verdade o não ser paga e não servir interesses alguns» (3).
nado a olhar-se como o ser-tudo e fim-de-tudo do prooesso Desta maneira, o Estado, que está interessado na for-

(') Consideeaçôe» Intempestivas, ii, pg. 161.


(1) Humano, demosiodamente Humano, i, aforo 467.
(") Consuierações Intempestivas, ii,pg. 196
(') Hu1MlW, demasiadamente Humano, i, aforo 439.
(') Considerações Intempestiv08, ii, pg. 196.
(3) 'Zaratwtra, pg. 57.
240 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA
o MONSTRO FRIO 241
mação de cidadãos obedientes, tem tendência para entravar sai da sua boca: «Eu, o Estado, sou o Povo». :e uma mentira !
o desenvolvimento da cultura livre e esta toma-se estática Aqueles que criaram os povos e suspenderam sobre eles uma
e estereotipada. No seu livro Humano, demasiadamente fé e um amor, esses eram criadores - serviam a vida.
Humano, Nietzsche faz, a respeito da cidade grega, um «Os que armam laços ao maior número e-chamam a isso
juízo mais severo do que havia feito no ensaio sobre O Esta- um Estado, esses são destruidores e suspendem sobre eles
do Grego. Nesta última obra, havia ele comparado a atitude uma espada e mil apetites». O Estado é falso e podre;
da cidade grega perante a cultura com a do Estado alemão, «mente em todas as línguas do bem e do mal; é mentira
com grande vantagem para a primeira; mas no Humano, tudo quanto ele diz e é roubado tudo quanto ele tem. Tudo
dernasidJlÚJmente Humano declara que «a polis grega era, nele é falso; mente com dentes roubados e até as suas entra-
como todo o poder político organizador, exclusiva e receosa nhas são falsas». E Nietzsche mostra o seu completo desa-
do desenvolvimento da cultura; o seu poderoso impulso cordo com o totalitarismo e com a doutrina hegeliana do
fundamental parecia ter quase unicamente um efeito para- Estado na seguinte passagem: «Na Terra nada há maior do
lisador e obstrutivo sobre a mesma cultura... a educação que Eu: Eu sou o dedo ordenador de Deus - assim grita
preconizada pelas leis do Estado tinha em mira conservar o monstro. E não são s6 os que têm orelhas compridas e
todas as gerações num só grau de desenvolvimento» (I). No vista curta que caem de joelhos I» O Estado é «o novo ídolo»
entanto, Nietzsche manteve sempre que o Estado tende para que procura reunir à sua volta, numa atitude de surpreen-
exercer uma ínfhiência sobre o desenvolvimento da cultura, dente adoração, os heróis e os homens do bem. «Agrada-lhe
como ele a compreendia; assim, não poderemos ter difi- - a este frio monstro - o aquecer-se ao calor das cons-
culdade em compreender que, para ele, «totalitarismo»- ciências puras». O Estado existe para o muito para muitos
quer seja nazi, fascista ou socialista - está desde logo con- e devora, indistintamente, bons e maus. No Estado, os
denado. Já citei o seu comentário na obra Schopenhauer homens procuram o dinheiro como alavanca que os há-de
como Educador, onde ele afirma que a doutrina de o fim elevar ao poder, trepando uns sobre os outros e arrastando-se
mais elevado do homem ser o serviço do Estado representa assim para o lodo e para o abismo. :e sõmente quando o
uma recaída na estupidez, e vou agora citar o que ele diz Estado cessa que pode começar o Super-homem, esse pro-
no capítulo de Zaratustro intitulado O Novo 1dolo. Trata-se duto da verdadeira cultura. Quando Nietzsche condena a
de um capítulo famoso e essencial para se poder compreen- idolatria do Estado, o monstro frio, não podemos deixar de
der a atitude de Nietzsche perante o Estado. «Estado? Que o aplaudir. O homem não existe para o Estado, mas é esse
é isso? Vamos I Abri os ouvidos, porque vos vou falar da que existe para o homem. E é também verdade que, quando
morte dos povos. Chama-se Estado o mais frio dos monstros; o Estado se ergue como um ídolo, vibra-se um golpe de
mente também friamente, e eis aqui a mentira rasteira que morte contra a cultura. Como, por exemplo, pode a filosofia
florescer num país como a Rússia Soviética, onde ela se
transformou num instrumento da revolução do proletariado
e os pensadores se encontram amarrados de pés e mãos P
,
242 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA I o MONSTRO FRIO 243
Como pode o estudo da história progedir, quando os histo-
riadores são obrigados a expor o mito nazi da teoria
I
"1
!
«liberal» do Estado como uma força policial para a protecção
1 da propriedade (na minha opinião Hegel recusa-se, com
da raça? Além disso, elillcilmente 'se poderá negar que,
razão, a reconhecer em tal sociedade a noção real do Estado
quando a educação nacional é orientada pelo Estado e de
e a ideia «totalitária» do Estado. O Estado é uma «socie-
acordo com padrões exclusivos do mesmo Estado, procura-se
dade perfeita», como dizem os canonistas, no plano temporal,
somente uma eficiência prática sobre os cidadãos e a bur-
e é em grande extensão e por intermédio da sociedade orga-
guesia, e daí resulta apenas um medíocre nível de cultura.
nizada, ou seja o Estado, que a cultura nasce e se desenvolve.
A paixão pela uniformidade e pela modelação de todos os E é somente quando o Estado se olha a si mesmo como um
espíritos pelo mesmo padrão tem um resultado desastroso, absoluto e subordina todos os fenómenos da cultura aos seus
visto que aqueles que não estão naturalmente dispostos a próprios interesses imediatos e práticos, que o mesmo Estado
pensar como o Estado prescreve hão-de acabar por cair na se toma inimigo da cultura.
mediocridade ou tomar-se-ão uns revolucionários em teoria O Estado não é O fim absoluto do homem, mas esse fim
e, por vezes, na prática. (É significativo o facto de F. H. não é também a produção do Super-homem. Ao condenar a
Bradley, que certamente tendia para a doutrina hegeliana idolatria do Estado, Nietzsche tinha razão, mas" ao considerar
do Estado, reconheceu uma esfera não-social de cultura). o Super-homem' (no seu significado) como o fim da cultura,
Mas, embora reconheçamos os perigos inerentes a toda a o fil6sofo alemão estava num campo errado. O fim da cultura
adoração do Estado, seja este fascista, socialista ou democrá- é o desenvolvimento dos poderes do homem, incluindo os
tico, é um erro irmos para o extremo oposto e olhar o Estado dos homens superiores, para a gl6ria de Deus. Para nos ser-
como essencialmente anticultural. Pelo contrário, o homem virmos da linguagem de Hegel, podemos dizer que o fim do
é, por natureza, um animal social e é apenas numa sociedade processo histórico é a manifestação de Deus ou do Absoluto
organizada que ele pode desenvolver plenamente os seus e que o Absoluto é manifestado - ou Deus glorificado - no
poderes; é à sociedade que devemos a nossa educação, o mais pleno e harmonioso desenvolvimento dos poderes do
meio social que é essencial para o desenvolvimento do homem. Tal doutrina será, sem dúvida, reprovada por Nietz-
carácter e do talento, e é à sociedade que devemos os meios sche que nega todo o «transcendentalismo», mas devemo-nos
de alargarmos e aprofundarmos a cultura, quer nas massas lembrar de que Nietzsche se limitou simplesmente a esta-
populares quer nos indivíduos superiores. Nietzsche reco- belecer a sua filosofia, sem nunca tentar prová-la. Sem dúvida
nhece, como já vimos, o papel desempenhado pelo Estado no pelas suas premissas nunca ela podia ser provada, porque-
desenvolvimento da cultura, mas, por outro lado, fala como uma vez admitido o ateísmo - o mundo não tem sentido;
se o mesmo Estado fosse, por sua pr6pria natureza, um entra- pode-lhe ser dado um sentido, é certo, mas nesse caso que
ve para essa cultura. Isto é verdade, se o Estado for consi- direito tem um homem de exigir que o sentido que ele deseja
derado como o Estado auto-idólatra, o «monstro frio), mas dar à vida seja aceite pelos outros? Falar dos desígnios da
não é verdade quando se refere ao Estado considerado sim- natureza é apenas uma metáfora. Os homens do «mundo hís-
plesmente como tal. Não temos desejo de apoiar a ideia téríco» têm sido muitas vezes tratados pela «Natureza) por
244 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA o MONSTRO FRIO 245
forma bem penosa e não há razão para supor que os Super- acredita que é uma possibilidade e acredita na justiça com
-homens de NIetzsche partilhassem de melhor sorte. Em que os Aliados recorreram às armas na presente guerra, mas,
qualquer caso, eles próprios seriam devorados no eterno de qualquer forma, conclui-se do direito natural de autode-
retorno. Nietzsche nunca deu uma resposta satisfatória a fesa que a guerra não pode ser condenada como sempre e ín-
estas duas perguntas: porque deve a maioria dos homens trlnsecamente má. Todo o católico tem de admitir isto. E, se
servir de alicerce ao Super-homem? Que direito tem o Super- a guerra não é sempre íntrlnsecamente má, conclui-se que
-homem perante o Estado e a sociedade? É inútil falar dos ela tem os seus aspectos bons e que dela podem derivar ver-
desígnios da Natureza, porque a «Natureza» - numa filoso- dadeiros benefícios. Mas ver o lado bom da guerra não é
fia sem Deus - não pode ter «desígníoss. Poderemos unica- o mesmo que louvar a guerra em si. Se o corpo humano adoe-
mente falar de «desígnio», se a última Realidade é Deus ou ceu de tal forma que se toma necessária a intervenção do
Espírito, e seria uma difícil tarefa mostrar que Deus tinha bisturi do cirurgião, temos de reconhecer a benéfica função
feito o homem um animal social, ao passo que, ao mesmo desse bisturi; mas não deixaremos de lamentar o facto de
tempo, o fim da sociedade é simplesmente a produção de um que o corpo tivesse sido obrigado a sofrer tal intervenção
Super-homem, que se estabelece para além da sociedade, com cirúrgica, se a marcha da doença pudesse ter sido detida
uma lei para si mesmo e com o aristocrata da cultura, livre mais cedo por processos menos drásticos.
e ateu. No seu ensaio sobre O Estado Grego, Nietzsche afirma
Ao tratar da doutrina de Nietzsche relativa ao Estado, que «contra o desvio da tendência - Estado para a tendência
parece justo dizer alguma coisa a respeito das suas opiniões - dinheiro... o único remédio é a guerra e ainda outra vez
sobre a guerra, opiniões essas que, por vezes, têm sido mal a guerra, em cujas emoções uma coisa, pelo menos, se torna
interpretadas. É certo que em diversas passagens Nietzsche óbvia, isto é, que o Estado não está fundado sobre o medo
exalta a guerra e os seus benefícios, louva o guerreiro e o do demónio da guerra como uma instituição protectora de
espírito guerreiro, etc., mas tais passagens não devem ser indivíduos egoístas, mas que, no amor à pátria e ao príncipe,
acentuadas com prejuízo de outras em que ele reconhece esse medo provoca um impulso ético, que é sinal dum des-
claramente os males derivados da guerra. No entanto, a tino muito mais elevado». Não podemos deixar de nos sentir
guerra tem os seus aspectos bons; se ela fosse um puro mal, um pouco cépticos quanto ao poder da guerra para abater
então em nenhumas circunstâncias seria justificada. Seria a «aristocracia do dinheiro», principalmente quando tal po-
preferível, se o homem tivesse tal disposição, que as guerras der é categoricamente afirmado. Nietzsche considera a guer-
nunca se realizassem, mas, dada a concreta situação histórica ra como único remédio - e presumívelmente um remédio
e dado o actual comportamento do homem, temos de admitir seguro-para uma condição de neg6cios em que «os er-
a guera como um meio legítimo de assegurar o direito, em- mitas do dinheiro, internacionais e sem pátrias usam a polí-
bora seja adoptado apenas como um último recurso. Não é tica como um meio de câmbio, e o Estado e a Sociedade
como um dispositivo para o seu próprio enriquecimento.
este o lugar para discutir se uma guerra justa é ou não uma
Consequentemente, Nietzsche acrescenta que nós lhe deve-
possf>ilidade na sociedade modema. O autor deste livro
246 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA O MONSTRO FRIO 247
mos perdoar «o péan que ele ocasionalmente entoa em louvor cou a guerra. A ferida entra mais profundamente na alma na-
da guerra». Fazendo ressoar possivelmente o seu arco de cional. É verdade que pode ser curada, mas será a derrota
prata, a guerra, embora se aproxime como a noite, é, no en- que há-de operar tal cura.
tanto, Apolo a verdadeira divindade para consagrar e puri- Não deplora Nietzsche, expressamente, os péssimos re-
ficar o Estado». Semelhante concepção da guerra como força sultados da vitória da Alemanha de 1870 sobre a sua própria
purificadora encontra-se no Humano, TUM demasiadamente cultura?
Hu11UNIO. «A guerra é um remédio. Para as nações que se es- Em Assim Falou Zoratustra; Nietzsche dedica um capí-
tão tornando fracas e desprezíveis, a guerra pode ser pres- tulo da primeira parte à Guerra e Guerreiros e dirige-se a
crita como um remédio, se tais nações desejam realmente COIl- estes nestas palavras: «Deveis amar a paz como um meio
tínuar a viver. A consumpção nacional, como a individual, de novas guerras - e mais a paz curta do que a longa».
tem de ter uma cura brutal. O eterno desejo de viver e a «A guerra e a coragem», diz ele, «têm feito maiores coisas
incapacidade para morrer é, contudo, já de per si, um sinal do que o amor pelo próximo. Não foi a vossa piedade, mas a
de senilidade da emoção. Quanto mais plena e inteiramente vossa bravura que até hoje salvou as vítimas». E, no mesmo
vivermos, tanto mais prontos estamos a sacrificar a vida por livro, diz ele ainda: «O homem deve ser treinado para a guer-
uma simples emoção aprazível. Um povo que vive e sente ra e a mulher para recreio do guerreiro - tudo o mais é lou-
desta maneira não tem necessidade de guerra» (I). cura» (1). Pensamentos iguais se encontram em O Crepús-
Nietzsche exalta assim a guerra como um remédio para culo dos Idolos, quando Nietzsche censura o desejo cristão da
o enfraquecimento e decrepitude de uma nação. Ora, a guer- «paz de alma» e sustenta que «o homem que renunciou à
ra pode proporcionar uma concentração dos mais vigorosos guerra renunciou à grande vida» (2). Mas parece, a quem es-
e mais patrióticos membros de uma nação que, quando vito- creve estas linhas, que estas passagens não devem ser inde-
riosos, podem ajudar a revigorar O seu país; mas nunca é vidamente acentuadas, pois não é forçoso supor que Nietzsche
. legítimo empreender uma guerra como remédio para o en- esteja a pensar essencialmente nas guerras entre estados-
fraquecimento dum povo. A guerra é legítima em caso de ou de qualquer forma não exclusivamente - pois está-se re-
autodefesa, mas não como uma espécie de exercício de gi- ferindo sobretudo ao espírito guerreiro. E afinal os cris-
nástica. Além disso, nem sempre a guerra é um remédio. Se tãos exortam-se uns aos outros a serem «guerreiros» e a não
uma nação se envolve numa guerra agressiva e injusta, le- terem em mira um indolente bem-estar ou a indiferença.
vada unicamente pela ambição do poder e pela avidez da «Guerra», «vitória», etc. são termos que desempenham um
conquista, o efeito de tal guerra, quando vitoriosa, é con- papel importante no vocabulário cristão. É certo que eles se
firmar os piores elementos naquele Estado e prolongar o pró- referem à «guerra espiritual», à guerra contra a própria pes-
prio mal- mal, pelo menos, aos nossos olhos - que provo- soa e contra «os poderes das trevas», ao passo que aquilo que

(1) Zaratustra, pg. 75.

(1) Humano. Tudo ~ HurnaJll), II, ii, aforo 187 (2) O Cr8pÚscuilo dos ldcJos, pg. 29.
248 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA o MONSTRO FRIO 249

Nietzsche diz no Zoratustra se refere sem dúvida à guerra no ra pode afirmar-se que ela toma o vencedor estúpido e o
sentido vulgar; mas é de crer que ele se refira a muito mais vencido vingativo», mas depois acrescenta que «a favor da
do que à guerra com espadas, canhões e obuses - pois está guerra pode dizer-se que ela barbariza em qualquer dos
a pensar numa atitude da alma, numa personalidade activa dois casos acima apontados, constituindo assim um regresso
e dinâmica, Será absurdo fazer campo de batalha de uma à natureza; é o período de adormecimento ou o inverno da
afirmação como aquela que citamos, segundo a qual «o ho- cultura, mas o homem sai desse torpor mais vigoroso para o
mem deve ser treinado para a guerra», interpretando-a no bem e para o mal» (1). O mesmo pensamento da relação
sentido militarista, pois o homem ideal de Nietzsche, em- da guerra com a cultura está significativamente expresso no
bora sendo um «conquistador» e um «guerreiro», não era aforismo 477 do mesmo livro, Guerra Indispensável. Neste
de forma alguma simplesmente um soldado. No capítulo so- aforismo, Nietzsche repete a afirmação de que a guerra é
bre Guerra e Guerreiros, Nietzsche exorta os seus guerreiros: necessária para o restabelecimento das nações enfraquecidas.
«Seja o vosso amor à vida o amor às mais elevadas esperanças «Presentemente não conheço outros meios pelos quais a rode
e a vossa mais elevada esperança seja o mais alto pensa- energia do acampamento, o ardor geral do sistema para a
mento da vida. No entanto, o vosso mais alto pensamento destruição do inimigo, a orgulhosa indiferença perante as
deveis ouvi-lo de mim e é este: o homem é alguma coisa que grandes perdas, perante a própria vida e a dos amigos, a
deve ser superada». No que Nietzsche pensa em primero lu- profunda e como sísmica convulsão da alma, todas estas coi-
gar é na vinda do Super-homem e na luta contra tudo aquilo sas enfim possam ser tão energicamente e por forma tão
que pode entravar a sua chegada. certa comunicadas às nações enfraquecidas, como acontece
Em qualquer caso, a guerra, aos olhos de Nietzsche, não por ocasião de uma grande guerra». «A cultura», diz ele,
é, de per si, um fim; ele vê-a na sua relação com a cultura. «não pode prescindir de paixões, vícios e maldades». Admite
Pode, sem dúvida, exagerar ou mesmo estabelecer errada- que os Ingleses «que parece, duma maneira geral, terem
mente a relação da guerra com a cultura, mas o facto de que renunciado à guerra» adoptaram outros meios para gerar
a cultura, como ele a entende, é um fim, deve ser suficiente novas forças para a alma - tais como perigosas expedições,
para dissipar a ilusão de que Nietzsche era um sanguinário viagens por mar, escaladas de montanhas, etc., coisas estas
militarista, cujo ideal mais elevado seria ver os homens a que dão à pátria um acréscimo de vigor, devido às aven-
massacrarem-se uns aos outros. No ensaio sobre David turas e aos perigos de todas as espécies. No entanto, Nietzsche
Strauss nota ele que «devemos confessar que uma grande vi- pensa que «uma humanidade tão altamente cultivada e,
t6ria é um grande perigo. A natureza humana suporta um portanto, tão necessàriamente enfraquecida como a da Eu-
triunfo menos fàcilmente do que uma derrota; de facto, ropa modema, precisa não s6 de guerras, mas das maiores e
poder-se-à objectar que é mais simples ganhar uma vitória mais terríveis gueras - por consequência regressos ocasionais
do que tirar dela tal partido que, em última análise, não ve-
nha a provar-se ter sido uma séria derrota». No livro Humano,
Tudo demasiadmnente Hu1'1UInO, diz ele que «contra li guer-
250 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA o MONSTRO FRIO 251
ao barbarismo - para que, por meio da cultura, não venha mais elevadas, do que pairia e honor, o rude patriotismo ro-
a perder a sua cultura e a própria existência». Podemos admi- mano é qualquer coisa indigna ou um sinal de estarmos atra-
tir que a guerra sirva para abalar o estado de contentamento sados» (1).
burguês e sacudir a convicção do inevitável progresso e do A menção de europeus a atolarem-se no sangue de eu-
carácter de completa suficiência da civilização materialista; ropeus leva naturalmente Nietzsche à concepção de uma
mas não é a guerra o único meio de obter tais resultados. Europa unida. A civilização grega havia sido arruinada pelas
O Cristianismo efectuou uma «renovação da alma», mas fê-lo guerras constantes entre os estados, nas quais gregos der-
por meio de uma guerra não militar, mas espiritual. ramavam o sangue de gregos; e nunca realmente consegui-
Todos sabem que a guerra ocasiona actos de heroísmo ram unir-se, embora se sujeitassem depois ao domínio comum
e de auto-sacrifício e revela abismos de bondade, e, também, de um governador estrangeiro. Igualmente os Europeus lu-
de malvadez, até então desconhecidos; mas uma das objec- tam contra europeus e não são os homens piores que per-
ções contra a guerra é que são exactamente os elementos de dem a vida. Este estado absurdo de coisas indica a neces-
heroísmo e auto-sacrifício que são destruídos. Os que são sidade de união, que havia sido já encarada por grandes ho-
novos e fogosos vão para a batalha e podem não voltar. mens de cultura do passado, OS quais eram mais do que
Ora Nietzsche reconhece, sem dúvida, esta devastação ope- meros cidadãos da sua própria cultura europeia e, àparte a
rada pela guerra e a ela se refere em termos bem claros. Há sua obediência nacional, pertenciam à Europa como um todo.
uma passagem do primeiro volume da obra Humano, Tudo De acordo com Nietzsche, é «s6 nos seus momentos de fra-
demasiadamente H U111lLTlO, que merece ser citada. Intitula-se queza ou quando envelheceram» que eles recuam para a
O Exército Nacional: «A maior desvantagem do exército na- • •
estreiteza nacional «de patriotas». Nietzsche menciona Napo-
cional, agora tão glorificado, reside na devastação de ho- leão, Henrique Taíne, Goethe, Beethoven, Stendhal, Scho-
mens da mais elevada civilização. .E: só devido a um con- penhauer. «Talvez Ricardo Wagner pertença igualmente a
junto de circunstâncias propícias que tais homens existem; esse número, mas relativamente a este, como um tipo per-
por isso, quão cuidadosa e ansiosamente devíamos tratá-los, feito da obscuridade alemã, nada se pode dizer sem um
desde que foram precisos longos períodos para se poderem etalvez» (2).
criar as condições necessárias para a produção de cérebros Estes homens superiores haviam já, embora a título de
tão delicadamente organizados! Mas, como os Gregos se ato- experiência, antecipado a síntese europeia do futuro, mas,
laram em sangue de gregos, assim os Europeus se estão devido à «mania da nacionalidade», e devido também a
atolando em sangue de europeus; e, relativamente, os mais f, «políticos de vista curta e mãos ágeis», a quem essa mania
altamente civilizados, aqueles que prometiam uma abun- ajudava no poder, «os mais iniludíveis sinais de que a Eu-
dante e excelente posteridade, são os sacrificados, pois são
eles os que vão para a frente da batalha como comandantes
e os que se expõem a maior perigo, por motivo da sua grande (1) Hurnt8T1iO, Tudo ~ HutI'&afIO, i, aforo 44S.
ambição. Presentemente, quando se impõem outras tarefas (2) Genealogia cUJ Moral, pg. 224-5.
252 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
o MONSTRO FRIO 253
ropa deseja ser una são agora desprezados, ou arbitrária ou
desnacionalização estão preparando o terreno para recíprocos
falsamente interpretados» (1). Esta Europa unida - pensa
rapprochements e fertilizações que põem em evidência o real
Nietzsche - está..se vagarosamente preparando. «Eu vejo j valor e sentido da cultura de hoje?» (1).
acima e para além destas guerras, novos «impérios» e qual-
Mas ninguém suponha que Nietzsche está encarando
quer coisa mais se divisa no primeiro plano. Pelo que eu
uma união das democracias socialistas como seu ideal. Pelo
julgo - porque eu vejo-a preparando-se vagarosamente e
contrário, ele agarra-se à sua noção central da «ordem de
com hesitação - é a Europa unida» (2). Nietzsche não entra
categoria», e a democracia, bem como o socialismo, poucas
em qualquer descrição pormenorizada da nova Europa; mas
vezes encontraram crítica mais mordaz. Há muito de acer-
como poderia ele fazê-lo? O que não existe ainda de per si,
tado na crítica de Nietzsche, principalmente quando esta in-
mas está apenas em germe, dificilmente se pode descrever.
cide sobre teorias políticas em que não há qualquer refe-
No entanto, sustenta a sua asserção pela referência que faz
à situação económica da Europa contemporânea. «O dinheiro rência a um alicerce espiritual ou religioso. Falar de «liber-
está ainda agora obrigando as nações europeias a fusíona- dade», de «igualdade», de «direitos do homem», etc., está
rem-se num único Poder». «Os pequenos estados da Europa muito bem, desde que o homem seja uma criatura de Deus
- refiro-me a todos os presentes reinos e «impérios» - tor- e tenha uma alma imortal dotada de um valor eterno; mas
nar-se-ão, dentro em pouco, insustentáveis, devido à luta, quando o homem é apenas um momento no desenvolvimento
louca e desenfreada, pela posse do comércio local e interna- dum universo sem Deus? Como se poderá falar de direitos em
cíonal» (3). A facilidade das viagens é também um factor que tal universo? - ~ certo que pode haver direitos convencio-
contribui para isso. «Com a liberdade de viajar que agora nais, mas, àparte este factor instável, é difícil ver como pode
existe, grupos de homens da mesma afínídidade podem jun- existir qualquer direito, a não ser o direito daquele que triun-
tar-se e estabelecer hábitos e costumes comuns» ('). O nacio- fa. Esta afirmação não soará bem aos ouvidos dum democrata
nalismo restrito é atacado por Nietzsche. «Um pouco mais materialista, mas se ele quiser libertar-se da sua sentimentali-
de ar fresco, por amor de Deus I Esta ridícula situação da dade - talvez dos seus melhores sentimentos - e olhar. para
Europa não pode durar mais. Há uma simples ideia por trás o mundo, isto é, para o seu mundo, com o espírito frio e com-
deste nacionalismo bovino? Que possível valor pode haver preensivo, verá o absurdo da sua posição. A verdade é que
em estimular este arrogante enfatuamento, quando todas as o democrata não-cristão está a usufruir de uma herança cristã
coisas estão hoje a apontar para maiores e mais comuns in- e apenas julga que pode apoiar conclusões do Cristianismo,
teresses, num momento em que a dependência espiritual e a dispensando esse mesmo Cristianismo. Nietzsche tinha ra-
zão ao afirmar na sua obra Para além do Bem e do Mal que
co movimento democrata é uma herança do movimento
(1) Para além do Bem e do Mal, aforo 256.
(3) Genealogia da Moral, 224.
(3) Genealogia da Moral, pg. 224.
(') Genealogia da Moral, pg. 227. (1) A Vontade dJe Dom.tmo. ii, aEcr. 748.
254 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA o MONSTRO FRIO 255

cristão» (1). Eu não pretendo afirmar que o Cristianismo im- dele? Esta nova raça subiria a coisas novas e até então impos-
plica necessàriamente uma forma de governo democrática, síveis, a uma visão mais larga e à sua tarefa sobre a Terra» (1).
mas que as noções fundamentais dos democratas - direitos A força motriz do socialismo encontra-a Nietzsche na
do homem, etc. - são histõricomente derivadas do pensa- «inveja e na preguiça» (Z) - na preguiça, porque as massas
mento cristão. desejam trabalhar o menos possível, e na inveja, porque elas
Nietzsche admite que o movimento democrático, com odeiam «a melhor casta social». No entanto, ele reconhece
o «nivelamento e medíocracía» que o acompanham, prepara claramente que o socialismo é provocado pela vida luxuosa
o terreno para o aparecimento de homens excepcionais- dos ricos e pela mesma ambição de posse que anima a bour-
porque o rebanho precisa de um comandante, de um senhor geoisie. «o único remédio contra o socialismo que ainda está
e que a democratização da Europa é, ao mesmo tempo, um em nosso poder é evitar provocar o socialismo ou, por outras
arranjo involuntário para a criação de tiranos - tomando a palavras, é viver com moderação e contentamento, evitar tan-
palavra' em todos os seus sentidos, incluindo mesmo o sen- to quanto possível todo o aparato de pompa e ajudar o Es-
tido espiritual (2). Mas o movimento democrático de per si, tado, tanto quanto possível, no seu lançamento de impostos
sendo um movimento de rebanho, odeia a élite - «a von- sobre todas as superfluidades e luxos. Não vos agrada tal
tade de domínio» é tão odiada nas eras democráticas que o remédio? Então vós, ricos burgueses que vos chamais a vós
todo da psicologia dessas idades parece ser destinado ao seu próprios «liberais», tendes de confessar que é a vossa pró-
rebaixamento e aniquilação (3). No entanto, na medida em pria inclinação aquela que encontrais tão terrível e tão amea-
que o movimento democrático prepara o caminho para a çadora nos socialistas; mas vós consentis que ela vos domine
nova aristocracia, ele, fica, por assim dizer, «remido» com a como inevitável, como se convosco fosse alguma coisa dife-
aristocracia que surge - os lordes da terra. «Não encontra- rente. Da forma que sois constituídos, se não tiverdes for-
ria o próprio movimento democrático pela primeira vez uma tuna vossa e os cuidados de a manter, essa vossa inclinação
espécie de alvo, salvação e justificação, se alguém apare- far-vos-á socialistas também. Apenas a posse vos diferencia
cesse que se aproveitasse dele - de forma que por fim, ao deles. Se desejais vencer os assaltantes da vossa prosperi-
lado do seu novo e sublime produto, a escravidão (porque dade, deveis primeiro vencer-vos a vós mesmos» C). E Nie-
esta deve ser o fim da democracia europeia), pudesse tam- tzsche certamente tem razão. Quando ouvimos «os que têm»
bém ser produzida essa espécie superior de espíritos domi- lamentar a ambição «dos que não têm», não podemos deixar
nadores e cesáreos, que se conservassem acima dele, que se de suspeitar de que, se eles próprios estivessem no lugar «dos
ligassem a ele e se elevassem a si próprios por intermédio que não têm», haviam de manifestar os mesmos sintomas. As

(1) Para além do Bem e do Mal, aforo 202. (1) A Vontade de Domínio, ii, aforo 954.
r') Pora além do Bem e do Mal, aforo 242. (2) Humano, Tudo dernosiadarnente Humano, i, aforo 480.
(3) Humatw, Tudo clernasíod4ment HfJII'I1OTW, i, aforo 480. (a) Humano, Tudo demasiadaments Humano, ii, afor, 304.
2.56 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
o MONSTRO FRIO
palavras de Nietzsche soam como as de um pregador, quando
se dirige li burguesia, censurando-lhe o seu edonismo egoísta: m6rias será gradualmente extirpada sob o regime democrá-
«as vossas casas, os vossos vestidos, os vossos carros, as vos- tico, com toda a sua mania pelas coisas novas e pelas expe-
sas lojas, as exigências dos vossos paladares e das vossas me- riências. A correcção de fronteiras que se julgar necessária
sas, o vosso ruidoso entusiasmo musical e, por último, as vos- será feita para servir os interesses da federação, mas não para
servir os interesses de quaisquer veneráveis memórias». Não
sas mulheres, modeladas e postas à moda, mas de baixo me-
quer isto dizer que Nietzsche deseje uma Liga das Nações
tal, douradas mas sem o toque do ouro, escolhidas por vós
democratizada como um fim de per si - muito longe disso
para ostentação e considerando-se elas mesmas destinadas a
- embora seja para desejar, tanto quanto possível, que essa
esse fim - estas são as coisas que espalham o veneno dessa
Liga possa formar uma substrutura para a aristocracia que
doença nacional que se apodera das massas cada vez mais
venha a surgir.
como uma sarna socialista, mas que tem em vós a sua ori-
Das observações, um tanto ou quanto desconexas, con-
gem e o seu viveiro. Quem poderá deter esta epidemia?» (1).
tidas neste capítulo, pode depreender-se que o pensamento
Há uma interessante passagem no segundo volume do
político de Nietzsche é condicionado pela sua ideia domi-
livro Humano, Tudo demasiadamente Humano, em que Nie-
nante - o homem superior, a cultura aristocrática. O Estado
tzsche estabelece a distinção entre democracia e socialismo
é benéfico, tanto quanto ele opera a perfeita formação da So--
e declara que «as massas estão tanto quanto possível afasta-
ciedade, que é necessária para o aparecimento da verdadeira
das do socialismo como uma doutrina que possa alterar a
cultura; mas é perigoso, tanto quanto ele se converte num
aquisição da propriedade. Se elas um dia tiverem o leme nas
ídolo, subordina todos os elementos aos seus próprios interes-
mãos, devido a grandes maiorias nos seus Parlamentos, hão-
ses práticos e entrava o aparecimento de espíritos livres e .
-de atacar com impostos progressivos todo o sistema em vigor
criadores. A guerra é benéfica, tanto quanto ela revigora o
de capitalistas, comerciantes e financeiros, e irão, de facto, .
ânimo enfraquecido de uma nação, abre uma válvula de saí-
criando vagarosamente uma classe média que possa esquecer
da para o ardor militar e para a dedicação heróica, e lança
o socialismo como uma doença que foi vencida» (2). O resul-
por terra o contentamento materialista e o convencionalismo;
tado prático desta vitória será - diz Nietzsche - «formar-se
mas é perigosa e desastrosa, tanto quanto 'ela envolve o sa-
uma liga europeia de nações, em que cada nação individual, crifício dos melhores elementos da nação, como uma heca-
limitada pelas pr6prias fronteiras geográficas, tenha a po- tombe no altar da Pátria. A democracia pode ser conside-
sição de um cantão com os seus direitos separados. Pouca im- rada uma bênção no sentido de que ela modela esse medíocre
portância se ligará às mem6rias históricas das nações pre- e escravizado rebanho que precisa dum senhor, mas é uma
viamente existentes, porque a piedosa afeição por tais me- maldição quando envolve palavras aliciadoras derivadas do
Cristianismo e traz consigo uma desconfiança e o ódio contra
a verdadeira élite. Por outras palavras: as opiniões de Nie--
(1) O Vagabundo e a Sua Sombra, aforo 292. tzsche sobre fenómenos sociais e politicas são condicionadas
(2) Humana, Tudo demasiadamente Humano, afor. 304. pela sua relação com o aparecimento do Super-homem. O ho-
17
258 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA
CAPíTULO IX
mem é um ser que tem de ser ultrapassado e tudo aquilo
que entrava essa ultrapassagem tem de ser condenado, e aqui- OS JUDEUS

lo que a favorece é recomendado. Poderá haver incoerências


e contradições nas afirmações de Nietzsche, mas há também,

I
no fundo, uma perfeita unidade, e é em função desta uni-
dade que tais afirmações devem ser consideradas, se quiser-
mos começar a compreender Nietzsche como político e so-

I
ciólogo.
Muitas das observações de Nietzsche são exactas, livres
de qualquer parcialidade ou charlatanismo, e outras são pro-
féticas (como, por exemplo, a que se refere à catástrofe eu-
ropeia), mas aqui, como noutras partes, a sua filosofia está
contaminada pela negação do sobrenatural e pela asserção
de um falso fim em vista. O homem é, sem dúvida, alguma
coisa que tem de ser ultrapassada, mas tem de ser ultrapas-
No Ecce Homo, Nietzsche
deolara que procurou em vão, entre os Alemães, um sinal
sadoçnão pelos seus próprios esforços, mas pela graça de de tacto e delicadeza para com ele. «Encontrei, sem dúvida,
Deus. E o ideal não é uma aristocracia do Super-homem so- esse sinal entre os Judeus, mas não entre os Alemães» (1). A
bre o pedestal dum rebanho escravizado e medíocre, mas a antipatia de Nietzsche pelos seus conterrâneos tornara-se, por
união da humanidade remida e super-naturalizada no Cor- certo, muito exagerada na ocasião em que ele escreveu o
po de Cristo. Há um verdadeiro Super-homem, e a todos Ecce Homo e não é o seu antígermanísmo que agora me inte-
aqueles que o receberem Ele dará o poder de se tornarem os ressa, mas sim os seus sentimentos para com os Judeus. Os
filhos de Deus. O Cristianismo baseia-se sobre um facto his- amigos a quem Nietzsche esteve mais profundamente ligado
tórico; a filosofia de Nietzsche tem como base o grito por foram Ricardo Wagner, em primeiro lugar, e Erwin Rohde
um ideal irrealizável em segundo, e nenhum destes dois era Judeu; no entanto,
ele teve também relações de amizade com um Judeu, o Dr.
Paulo Rée, de quem recebeu considerável auxílio e atenções.
embora esses laços de amizade tivessem sido quebrados, em
consequência do incidente Lou Salomé. Mas, embora Nie--
tzsche pensasse - com razão ou sem ela - que Rée não se
havia portado como um verdadeiro amigo neste assunto, ele

(1) Ecoe Homo, pg. 129.


260 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA OS JUDEUS 261

foi e continuou a ser um firme antagonista do anti-semitísmo Nietzsche continua a declarar «que eles não estavam traba-
racial, e aqueles contemporâneos anti-semitas que olhavam lhando nem fazendo planos para tal fim». Pelo contrário, «eles
com bons olhos a filosofia do Obermensch de Nietzsche não preferem e querem, embora um tanto importunamente, ser
podiam apelar para ele para lhes apoiar a sua política anti- absorvidos pela Europa; anseiam por se estabelecerem e se-
-semítíca. rem consentidos e respeitados em qualquer parte, pondo as-
Nietzsche opôs-se ao casamento de sua irmã com Fõrster sim termo à sua vida nórnade, ao judeu errante; e n6s deve-
devido em grande parte ao conhecido anti-semitismo deste mos, certamente, reconhecer este impulso e esta tendência e
último. A irmã protestou que se casava com Fõrster como empregarmos esforços para isso». «Devemos empregar esses
homem e colonizador, e não como antí-semíta, mas Nietzsche esforços com toda a prudência e selecção, pouco mais ou me-
julgou difícil conformar-se com o casamento, visto que não nos como faz a nobreza inglesa». Por isso Nietzsche sugere
podia tragar o «racismo». Sem dúvida, o sentimento de Nie- «que seria talvez útil e plausível banir do nosso país os que
tzsche contra o casamento podia ser devido em parte à ideia andavam a apregoar o seu anti-semitismo».
de que sua irmã desta maneira se afastaria dele - ela havia- Os anti-semitas fazem cavalo de batalha dos princípios
-lhe anunciado a sua intenção de seguir Fõrster para o Para- morais, mas Nietzsche vem dizer-lhes que «um anti-semita
guai - mas a sua hostilidade para com o anti-semítismo não não se toma de forma alguma mais considerável pelo facto
era nenhuma fase passageira ocasionada apenas pelo desejo de se apoiar em princípios» (1) e deplora o ódio de Wagner
de não perder a irmã. Nietzsche citou a «loucura antí-semí- aos Judeus. Nietzsche admite que há maus Judeus e chega
tieas entre outras loucuras que atribuíu aos Alemães con- mesmo a afirmar que a nova Bolsa judaica é, em geral, à
temporâneos, tais como a «loucura teut6nica» e a «loucura mais repulsiva invenção da espécie humana (2). Mas é absur-
prussianas (1). ~ certo que reconheceu que a Alemanha «ti- do considerar os maus judeus como únicos representantes do
nha Judeus amplamente suficientes» e que era justificado o povo judaico. «Cada nação, cada indivíduo tem qualidades
grito enão deixes entrar mais Judeusl», mas declarou tam- que desagradam e, até, perigosas - e seria cruel pretender
bém que este era o grito dum povo «onde a natureza era que os Judeus fossem uma excepção». A crítica de Nietzsche
ainda fraca e incerta, de forma que podia ser fàcilmente li- sobre o anti-semitismo estaria aqui perfeitamente justificada
quídado e fàcilmente extinto por uma raça forte». Na opi- e é com razão que ele deplora o hábito de «sacrificar os Ju-
nião de Nietzsche, os Judeus «são, sem dúvida alguma, a deus como os bodes expiat6rios de todos os possíveis abusos
raça mais forte, mais resistente e mais pura que presente- públicos e particulares». Argumenta-se frequentes vezes que
mente vive na Europa». Se os Judeus quisessem - «ou se os Judeus têm exercido uma influência imoral sobre a Im-
fossem forçados a isso, como os anti-semitas pareciam pre- prensa, o teatro, o cinema, etc, e isso é pretexto para a sua
tender» - poderiam ter a ascendência sobre a Europa, mas

(1) Antioristo, pg. 213.


(1) Para além do Bem e do Mal, aforo 21. (2) Humano, Tudo demaaiodamentfJ l1umtJtW, i, afor. 475.
262 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA OS JUDEUS 263
perseguição. Mas, se um determinado Estado pretende aca- mão conclui que «por esse motivo, os Judeus são, presente-
bar com produções imorais na literatura, no teatro, etc., é mente, o poder mais conservador no meio da ameaça e das
sempre possível para isso promulgar leis que tornem os au- condições tão sem segurança da Europa moderna. Com os
tores e produtores de tais obras sujeitos às penas devidas. f Judeus não se pode contar nem para socialismo nem para
militarismo» e). (Nietzsche odiava as tendências políticas de
'j
Se determinado Judeu exerce uma influência nociva na co- i

munidade, oponha-se uma restrição às suas actividades; mas natureza anárquica e revolucionária). Há, sem dúvida, certa
tal medida deverá ser tomada contra ele, não como filho da verdade nisto, mas resta saber se assim tem sido confirmado,
raça judaica, mas como um mau cidadão, que exerce sobre o inteiramente, na sequência da história da Europa. Parece ter
Estado uma influência deletéria. Se uma nação não tem força sido um tipo de Judeu que, desligado da tradição de seu
moral de carácter para pôr a sua casa em ordem, será uma povo, não estando ainda contente por se ter afundado no
cobarde hipocrisia atirar todas as culpas para cima dos Ju- materialismo prático, mas, inflamado por um «messianismo,
deus e atirar pedras aos semitas, como se os anti-semítas fos- não-religioso, revelou uma tendência acentuadamente revolu-
sem homens sem pecado. Os defensores da teoria rácica são cionária. Seja como for, os Judeus têm tido uma parte activa
já bastante maus, mas ainda é uma questão para resolver no bolchevismo e devemo-nos lembrar de que o próprio Marx
se eles merecem tanto desprezo como aqueles que negam, em era Judeu. O Judeu déraciné pode ser um homem muito
principio, a teoria rácica e depois tratam de escorar o seu perigoso - porque pode pôr o génio e o fervor religioso da
anti-semitismo prático com reflexões morais e frases empo- sua raça ao serviço de um «ideal» pervertido. Em todo o
ladas. E possível que uma brutalidade crua e às claras seja caso, seria ridículo tentar imputar aos Judeus todas as ten-
preferível a uma hipocrisia farisaica. dências e actividades niilistas : o fenómeno do nazismo deve
Nietzsche põe em relevo a dívida que a Europa con- ser um cheque suficiente para qualquer tentativa deste
traíu para com os Judeus. Aos Judeus - diz ele - «deve- género.
mos nós o mais amável dos homens (Cristo), o mais honesto Nietzsche põe ainda em relevo os serviços directos pres-
dos sábios (Espinosa), o livro mais profundo e a mais eficiente tados pelos Judeus à cultura. «Os Judeus, como Henrique
lei moral do mundos (1). E assim mantém que uma alta Heine e Offenhach, abordaram o génio na esfera da arte (2).
cultura necessita dum largo pedestal de medíocracía para se Heíne foi um favorito de Nietzsche. «Foi Henrique Heine
erguer. Ora, o poder das classes médias que representam a quem me deu a mais perfeita ideia do que pode ser um
mediocridade apoia-se no comércio, e os Judeus são gran- poeta lírico. Em vão procurei por todos os reinos da Anti-
des financeiros. Eles têm, portanto, interesse em manter' o guidade e dos tempos modernos qualquer coisa que se as-
statu quo das classes médias e fazer frente a quaisquer ele~ semelhasse a esta doce e apaixonada música. Ele possuía
mentos anárquicos e revolucionários. Depois, o filósofo ale-

(1) A vontade de Domínio, ii. aforo 864.


(I). Humt11ID, Tudo clemtmadomente Humano, i, aforo 475. (2) A Vontade de Domínio. ii, aforo ssa
264 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CUL TUnA
265
OS JUDEUS
aquela divina malícia sem a qual a própria perfeição se torna próximo século é a decisão pelo que se refere ao destino dos
para mim inconcebível. Eu avalio o valor dos homens e das Judeus europeus. E: inteiramente óbvio agora que eles tenta-
raças de acordo com a medida em que eles não são capazes ram a sorte e atravessaram o seu Rubicão; a única coisa
de conceber um deus que não tenha em si uma ponta de sá-
tira. E com que mestria ele manejava a língua pátria! Um dia ~
';1
que lhes resta é, ou tornarem-se senhores da Europa, Ou
perderem a Europa, como já há séculos perderam o Egipto,
dír-se-á de Heine e de mim que fomos, de longe, os maio-
res artistas da língua alemã que alguma vez existiram, e que
deixámos para trás todos os esforços que outros alemães têm
.
1) onde se viram a braços com alternativas semelhantes. Na
Europa, contudo, sofreram uma provação de oito séculos,
como nenhuma outra nação alguma vez sofreu, e as experiên-
empregado a bem desta língua» (1). cias deste terrível tempo de provação foram vantajosas, não
Poderá objectar-se que Heine não foi, de forma alguma, só para a comunidade judaica, mas também - e em grande
um ornato para a cultura, e certamente não, pelo que se re- extensão - para o próprio indivíduo. Em consequência dis-
fere a valores espirituais. Isso é admissível; mas teremos de to, as possibilidades e recursos dos Judeus modernos, tanto
concluir que Heine não era poeta? Lorde Byron e Aryan tive- pelo que se refere ao espírito como pelo que se refere à alma,
ram grandes defeitos no seu carácter moral, mas não contri- são extraordinários. Entre todos os habitantes da Europa, os
buíram para a literatura inglesa? No presente século deve- Judeus são os que menos recorrem ao álcool ou ao suicídio
mos certamente reconhecer que contraímos uma dívida para para se livrarem de qualquer situação angustiosa, ao contrá-
com Einstein, embora reconheçamos também que as suas rio de muitos homens de outras raças que, com menos dotes
opiniões em questões de ateísmo não têm valor algum. E te- de espírito, lançam mão desses meios em igualdade de cir-
mos ainda uma dívida para com o judeu Henrique Bergson cunstâncias. Cada Judeu pode encontrar na história da sua
que deu um golpe mortal no positivismo e na ciência materia- família ou dos seus antepassados uma longa série de exem-
lista em França. plos da maior calma e perseverança no meio das maiores
Citamos uma passagem de Nietzsche em que ele de- dificuldades e das mais terríveis situações, e uma perfeita
clara que os Judeus apenas desejam estabelecer-se. Há ainda astúcia para lutar contra o infortúnio e contra os reveses da
uma outra passagem em que o mesmo filósofo se refere à sorte. E, acima de tudo, é a sua bravura sob a capa de uma
futura ascendência dos Judeus na Europa. 11; uma passagem admirável sujeição e o seu heróico spernere se sperni (1) que
bastante longa, mas, como é importante para conhecermos a ultrapassa as virtudes de todos os santos.
atitude de Nietzsche para com os Judeus, atrevemo-nos a «Os outros povos procuraram torná-los desprezíveis tra-
transcrevê-la por inteiro. ~ tirada da Aurora e intitula-se tando-os sempre despreztvelmente, durante quase duzentos
O Povo de Israel. séculos, recusaram-lhes acesso a posições e dignidades hon-
<Um dos espectáculos que nos será dado presenciar no rosas e atiraram-nos para os mais baixos misteres; e, sujeitos

(1) Ecce Homo, pg. 39-40. (1) Desprezar o ser-se desprezado. (N. T.),
266 ~IETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA OS JUDEUS 267

,
a tal tratamento, esses homens não ficaram por certo a ser para ano, cruzam cada vez mais o seu sangue com o mais
qualquer coisa mais limpa. Mas desprezíveis? Os Judeus nem nobre sangue da Europa, dentro em breve terão uma consi-
por um momento deixaram de se julgar qualificados para as I
derável herança de boas maneiras intelectuais e físicas, de
mais altas funções, nem as virtudes do sofrimento os aban- forma que, dentro de outros cem anos, terão um aspecto sufi-
donaram. A sua maneira de honrar os pais e os filhos dis- cientemente nobre para não se tornarem ridículos, como se-
tinguem-nos entre todos os europeus. Além disso, eles con- nhores, aos olhos daqueles a quem tenham estado subme-
seguiram criar para si um sentido de poder e de eterna vin- tidos. E isto é deveras importante, e torna-se ainda prema-
gança que lhes adveio dos próprios misteres que lhes foram turo querer resolver o problema. Os Judeus sabem perfeita-
permitidos (ou a que eles foram abandonados). Mesmo no pa- mente que não podem pensar em conquistar a Europa ou
liativo da sua usura, nós não podemos deixar de afirmar que, em qualquer outro acto de violência, mas também não des-
sem esta ocasional tortura - agradável e útil- infligida so- conhecem que, um dia ou outro, a Europa pode, como um
bre os que os desprezavam, eles não teriam podido conservar fruto maduro, cair em seu poder, se eles não lhe deitarem
o seu amor-próprio durante tanto tempo. De facto, o nosso apressadamente a mão. Entretanto é-lhes necessário assina-
amor-próprio depende da nossa habilidade para exercer larem-se em todas as secções de distinção europeia e conser-
represálias sobre as coisas tanto boas como más. No entanto, varem-se na primeira linha, até terem avançado tão longe que
a sua vingança nunca os leva demasiadamente longe, porque eles próprios determinem o que quer dizer distinção. Então
têm aqu\S'la liberdade de espIrita, e mesmo de alma, que é serão chamados os pioneiros e guias dos Europeus, cuja mo-
produzida em muitos pelas frequentes mudanças de lugar, déstia já não ofenderão.
pelo clima, pelos costumes de vizinhos e opressores, possuem «E então onde se poderá encontrar uma válvula de saída
de longe a maior experiência no intercâmbio humano e ainda para essa abundante riqueza de grandes impressões acumu-
porque, nas suas paixões, usam daquela cautela que esta ex- ladas durante um tão longo período e que representa a his-
periência lhes aconselha. Estão tão certos da sua versatili- tória dos Judeus para cada família judaica, essa riqueza de
dade e argúcia intelectual que nunca, mesmo quando se en- paixões, virtudes, resoluções, lutas e conquistas de Il:odas
contram em grandes embaraços, têm de ganhar o seu pão as espécies - onde se poderá encontrar, repetimos, tal vál-
por meio de qualquer trabalho manual, como quaisquer ope- vula, a não ser nos grandes homens intelectuais e nas suas
rários, carregadores ou trabalhadores do campo. Pelas suas obras? Um dia, quando os Judeus nos puderem exibir, como
maneiras podemos ver que eles nunca foram inspirados por obra sua, tais jóias e baíxelas de ouro, como nenhuma nação
sentimentos fidalgos e nobres e que os seus corpos nunca europeia, com a sua mais curta ou menos profunda experíên-
foram cingidos por armas finas: há sempre um certo espírito
oía, pôde ou pode produzir, quando Israel tiver mudado a sua
de intrusão a alternar com uma submissão que é muitas eterna vingança numa bênção eterna para a Europa, então o
vezes afectuosa e quase sempre dolorosa.
sétimo dia surgirá mais uma vez, quando o velho Jeová se
eNo entanto, desde que eles, inevitàvelmente e de ano
puder regozijar consigo, com a sua criação e CQm o seu
268 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CULTURA
OS JUDEUS 269
povo escolhido - e todos, todos nós, nos regozijaremos com
xo, sofredor, necessitado, etc. = piedoso = abençoado) com o
ele) (1). seu complemento de aristocratas ou homens de poder = mau,
A passagem que acabamos de transcrever é favorável aos horrível, ambicioso, ateu = maldito e danado (1). (Os pró-
Judeus; mas, quando se trata de querer conhecer a atitude prios Judeus, sem dúvida, preocupavam-se muito com a pros-
de Nietzsche para com esse povo, temos de observar também peridade temporal, com a riqueza e boa reputação e é notó-
o reverso da medalha para ficarmos a saber o que ele pen- rio que a tendência judaica era bater sempre a tecla da
sava da ideologia judaica. Os Judeus, de acordo com Nie- prosperidade temporal como um indício do favor de Deus.
tzsche, mostraram e mostram um notável amor à vida - mes- E assim vemos que os «consoladores» de [ob pensavam que
mo mais do que os Gregos. Eles não desejavam por forma al- ele tinha cometido pecado, visto que sofria tanto. Havia muito
guma verem-se privados do seu corpo, mas desejavam conser- pouco da equação judaica de Nietzsche nos seus espíritos. No
vá-lo para sempre. (Nietzsche cita o martírio judaico dos Ma- entanto, é certo que os Profetas introduziram muito mais
cabeus ii, 7, que «não queriam abandonar os intestinos que ideias espirituais e Nietzsche muitas vezes considera a ideo-
lhes haviam sido arrancados, pois desejavam tê-los consigo logia judaico-cristã como um todo).
no dia da ressurreição) - o uma perfeita característica [u- A raiz da valorização judaica é um sentimento profundo
daical) (2). de ressentimento e ódio: «o ódio judaico, o ódio mais pro-
Mas, embora os Judeus amassem a vida, eles são acusa- fundo e sublime, aquele que cria ideais e muda os velhos va-
dos de uma inversão de valores, «por meio da qual a vida lores em novas criações, e que nunca teve igual sobre a Ter-
na Terra obtém um novo e perigoso encanto durante um par ra» (2). Nietzsche, como já anteriormente dissemos, ligava
de milénios) (3). Nietzsche quer dizer que os Judeus, jul- grande importância ao conceito de ressentimento e conside-
gando-se um povo nascido para a escravidão (cf. Tácito), vol- rava-o forte, não só entre os Judeus - «a noção mais saeer-
taram os valores de cima para baixo, exaltando os valores do datal de ressentimento par excellence» - mas também na
escravo. Desta maneira, canonizando - digamos assim -'--a Igreja, essa «ecuménica sinagoga». E, quando o renasci-
situação em que se encontravam, deram um novo sentido à mento do ideal clássico ou valorização aristocrática no tempo
vida, à sua vida, e assim alimentaram o seu amor à mesma do Renascimento foi vencido, Nietzsche pinta a situação como
vida. Foram eles quem começou a revolta dos «escravos» na um nOVO triunfo da Judeia, «graças a esse monumento de
esfera da moral e transformou a equação aristocrática vingança, fundamentalmente popular (alemão e inglês), a
(bom = aristocrático = belo = feliz = amado pelos deuses) que se dá o nome de Reforma) (3). De igual forma, ea Judeia
na equação contrária (bom = amaldiçoado, pobre, fraco, baí- viu-se mais uma vez vitoriosa sobre o ideal clássico por oca-

(1) Auroro, afor. 205. (1) Genealogia da Moral, pg. 30-S1.


(") Aurora. afor, 72. (2) GeneaJ.ogia da Moral, pg. 3I.
(3) Para além do Bem e do Mal, aforo 195. ,(3) GeneaLogia da Morail. pg. 55.
1
~
.•

270 NIETZSCHE, FILÓSOFO DA CUL TUBA

sião da Revolução Francesa, quando a última aristocracia po-


1 OS JUDEUS

pessoa ou pelo povo ressentido são desprovidos de validade


271

,
lítica da Europa «foi despedaçada aos pés de uma populaça
1 objectiva. Um homem podia afirmar um valor real, possuído
cheia de ressentimentos».
de uma validade objectiva e universal, devido ao ressenti-
Neste assunto, como tantas vezes acontece com Nie-
j mento e, embora o estado psicológico desse homem não fosse
tzsche, não devemos permitir que a verdade contida no que j de forma alguma para admirar o valor em si não seria vi-
ele diz nos cegue até ao seu exagero e unilateralidade. :E'; uma j
j ciado. Em consequência disto, não nos aventuramos a dizer:
verdade muito provável que o ressentimento e o desejo de I «A análise de Nietzsche, pelo que se refere à psicologia popu-
d
vingança exerceram uma acção poderosa e eficiente na ati- t
lar judaica, é justa (supondo que é justa sem haver neces-
1
tude vulgar dos Judeus para com as outras nações e para com
outros ideais; mas no Velho Testamento vamos encontrar ho- i sidade de qualquer restrição); portanto, a valorização dos Ju-
deus é meramente relativa à alma ressentida e não tem vali-
mens que se conservaram superiores ao ponto de vista mais dade objectiva». De facto, os Judeus ressentidos podiam per-
popular, e nos livros de Jonas e da Sabed<J1'io encontramos o feitamente afirmar uma valorização objectiva, derivada de in-
amor universal de Deus claramente estabelecido. Quanto à desejáveis motivos psicológicos.
Revolução Francesa, o ressentimento desempenhou clara- A história de Israel é, aos olhos de Nietzsche, «a histó-
mente um considerável papel na atitude revolucionária e na ria típica de toda a desnaturalização de valores naturais» (1).
sua ideologia, mas é pelo menos muito duvidoso se os mo- No período primitivo da hist6ria judaica, principalmente no
tivos mais nobres que foram também eficientes podem re- período dos reis, a atitude de Israel era justa e natural. Jeová
solver-se simplesmente em ódio e ressentimento - a não ser era a consciência que o povo tinha do poder e era d'Ele que
que estejamos preparados para concordar com Nietzsche em se esperava a vitória». Jeová é o Deus de Israel e, por con-
que todos os valores são relativos e que os valores que Se sequência, o Deus da Justiça: este é o raciocínio de todo O
afirmaram na Revolução foram meramente os valores do re- povo que está na situação do poder e que tem uma boa cons-
banho, impelido pelo ódio à nobre valorização da aristo- ciência nessa posição». Mas, à medida que o tempo passou,
cracia. E a opinião de Nietzsche acerca da Reforma é cer- verificou-se que «O velho Deus já não era capaz de fazer o
tamente falsa. A Reforma na Inglaterra, por exemplo, não que fazia a princípio». E que aconteceu então? Em vez de
pode possivelmente ser chamada um movimento fundamen- simplesmente porem de parte o velho Deus, os padres muda-
talmente popular: pelo contrário, ela foi imposta de cima ao ram a ideia d'Ele e começaram a interpretar toda a felicidade
povo. Pela minha parte, considero a análise de Nietzsche do como uma recompensa e toda a felicidade como um castigo
ressentimento como uma valiosa contribuição para a psicolo- por desobediência ou como pecado. Assim chegaram à con-
gia - pode ser até que o ressentimento tenha sido eficiente cepção de uma ordem moral do Universo, e a moral, sendo a
até certa extensão, nas almas dos modernos Judeus revolucio- expressão das condições da vida e do desenvolvimento) tor-
nários -mas é preciso acentuar que a presença do ressenti-
mento, do ódio ou do desejo de vingança numa pessoa ou
num povo não mostra, de per si, que os valores afirmados pela (1) Anticristo, pg. 156.
~
272 NIETZSCHE, FILóSOFO DA CULTURA
I OS JUDEUS 273

nou-se abstracta e ficou a ser exactamente o oposto da vida.


Mas os sacerdotes judeus foram ainda mais longe: interpre-
taram a história judaica à maneira religiosa e começaram a
medir os povos, as idades e os indivíduos conforme eles favo-
I
tI
gradual que foi, pelo lado humano, uma crescente penetração
nos valores e, pelo lado divino, uma revelação progressiva.
Parece um pouco estranho que Nietzsche falasse dos
Judeus como um povo que amava a vida e o domínio, um
povo forte e resistente, e apresentasse depois a história de
reciam ou hostilizavam a ascendência do sacerdócio. Desta ~ Israel como uma crescente «desnaturalização de valores'>,
maneira inverteram o conceito de revelação ou a «sagrada
uma crescente hostilidade à vida, isto é, uma crescente de-
escrituras e assim donseguiram assegurar o seu domínio.
cadência. Mas esta aparente contradição tende a desapare-
O que eles desejavam era a vontade de Deus. Desobediência
cer, se olharmos para o que ele diz no Anticristo, relativa-
a Deus = desobediência à Lei = desobediência ao sacer- mente ao povo judeu e à decadência (1). «Do ponto de
dote = pecado. O seu axioma supremo passou a ser este: vista psicológico» - diz ele - «os Judeus possuem a mais
«Deus perdoa àquele que se arrepende - ou por outras pa- dura vitalidade» e ainda «os Judeus são o oposto de todos
lavras- àquele que se submete ao sacerdote». O sacerdote os decadentes». Qual é, portanto, a razão por que eles torna-
tomou-se assim o poder dominante, mas o sacerdote apenas ram o partido dos instintos dos decadentes e inventaram a
existe denegrindo e profanando a natureza. sua moral «negativista»? Não foi porque fossem dominados
Seria certamente difícil negar que o sacerdócio judaico por instintos decadentes, mas sim porque viram que por meio
desejava o domínio: um dos motivos que originaram a entrega deles podiam atingir O poder. Os Judeus têm sabido como se
de Cristo às autoridades romanas foi a inveja. Os sacerdotes hão-de estabelecer à cabeça de todos os movimentos deca-
receavam que a sua posição pudesse ser assaltada. Não se dentes (5. Paulo e o Cristianismo, por exemplo), com o fim
pode também negar que a atitude assumida pelas classes do- de criar deles alguma coisa mais forte do que todo o agrupa-
minantes de Israel- sacerdotes, escribas e fariseus - era mento que diga sim à Vida. No judaísmo e no Cristianismo
hostil à «vida»; no seu zelo imoderado pela lei, e ainda por encontramos uma categoria de homens - a classe saoerdo-
causa dos aditamentos que nela introduziram, esses homens tal- que se tem servido da decadência como um meio. «Esta
acorrentavam e escravizavam o espírito humano: o que es- categoria de homens tem um interesse vital em tomar os ho-
tava escrito imperava no espírito. Neste sentido podemos fa- mens doentes e em voltar de cima para baixo as noções de
lar de uma «desnaturalização de valores»; aquilo que se des- «bom» e «mau», «verdadeiro» e «falso», por uma maneira
tinava a unir, revigorar e fortalecer o povo judeu converteu- que não é só perigosa para a vida, mas também a dífamas (2).
-se num instrumento de escravidão e opressão tirânica: a san-
tídade era exterior, forçada e sacerdotal. Mas há ainda outro
(l) Anti.cristo, pg. 15.5-6.
aspecto da questão. O desenvolvimento das ideias morais no (2) A Tábua judaíca de valeres é a expressão da sua vontade
povo judaico, o alargamento, por exemplo, do conceito do de domínio. eUma Tábua de excelência estA suspensa sobre cada. povo.
Deus de Israel para o Deus de todo o mundo e de todos os :e a Tábua, dos seus triunfos, é ai voz da sua vontade de domírU~. -
~a, pg. 66.
homens) foi uma «espiritualização» de valores - um processo
274 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA OS JUDEUS 275
Os pr6prios Judeus são assim um povo duro e forte de ama- cm boas relações com as classes nobres, puseram os sacerdo-
dores da vida, mas servem-se dos instintos da decadência, do tes à frente do povo contra essas classes e criaram assim uma
não à Vida, como um meio para dominarem: esses homens es- nobreza sacerdotal. O Cristianismo, farejando no sacerdócio
tabeleceram-se à cabeça dos movimentos decadentes, por- judaico a existência da minoria privilegiada e nobre, suprimiu
que viram neste processo um meio de alcançar o poder. Nie- inteiramente os sacerdotes. :f; o «segundo grau do poder» do
tzsche mencionou o Cristianismo, embora, na verdade, judaísmo. (De acordo com Nietzsche, a Revolução Francesa
I
S. Paulo não estivesse interessado no poder. Poderia ter en- é descendente em linha directa do Cristianismo, sendo tam-

I
contrado melhor exemplo, se vivesse na Grande Guerra e ti- bém caracterizada por um instinto de ódio contra as castas
vesse observado as actividades dos judeus bolchevistas. Nie- e nobres. A verdade que se oculta nesta asserção de Nie-
tzsche detestava o socialismo e, por certo, teria estendido a tzsche é que os ideais professados na Revolução derivam
sua execreção até ao socialismo do tipo russo. No entanto, certamente do Cristianismo, lançando-se pouco a pouco no
teria descoberto nos judeus bolchevistas a presença da von- caminho o alicerce cristão de tais ideais).
tade de domínio. Para ele, esse facto é em si uma caracterís- Nietzsche põe em relevo o «ódio judaico». Ora, desde
tica recomendável, embora para nós não seja tão recomen- que o valor moral supremo do Cristianismo é o Amor, seria
dável, quer se encontre num judeu ou num ariano. natural concluir que há uma oposição entre judaísmo e Cris-
Que diremos da relação entre o judaísmo e o Cristia- tianismo. Mas Nietzsche não se desconcerta. Admite que no
nismo? Nietzsche considera o Cristianismo como um desen- Cristianismo surgiu um novo fenómeno, «um novo amor, a
volvimento do judaísmo ou antes como «uma insurreição po- mais profunda e sublime de todas as espécies de amor», mas
pular no seio de um povo sacerdotal- um movimento pie- depois diz-nos que «não se vá supor que este amor Se ele-
tista que partiu de baixo (pescadores, publicanos, mulheres vou na seu crescimento ascensional, como se fosse, de qual-
e crianças). Jesus de Nazaré foi o símbolo desta seita». O Cris- quer forma, uma negação real daquela sede de vingança ou
tianismo é assim representado como um movimento do povo uma antítese do ódio judaico» (1). :f; antes verdade que o
contra a aristocracia sacerdotal. Mais tarde, sem dúvida, por amor cristão se gerou do ódio judaico; é apenas um novo
intermédio de S. Paulo e de outros, o sacerdotalismo foi tra- meio de afirmar os valores e os ideais judaicos, trazendo con-
zido para o Cristianismo, mas na sua origem o Cristianismo sigo a salvação e a vitória para o pobre, para o doente e para
era não-sacerdotal e pietista. No entanto, o Cristianismo é o o pecador. Tudo isto faz parte da política de vingança dos
herdeiro directo do judaísmo, porque aceitou a redução ju- j Judeus. Israel crucifica o próprio instrumento da sua vin-
gança, com o fim de que todo o mundo, isto é, todos os ini-
daica de todo o pecado ao pecado contra Deus e, indo mais
longe do que o sacerdócio judaico, tentou alterar e falsificar migos de Israel pudessem morder sem suspeita a isca dos
toda a hist6ria da humanidade, tomando o Cristianismo o ideais judaicos. :E: certo, diz Nietzsche, que, «sub Me signo,
mais importante acontecimento da Hist6ria. (Certamente, se
o Cristianismo fosse uma fraude, então a filosofia cristã da
história seria uma falsificação). Os Judeus, que não viviam (1) Genealogia da Moral, pg. 31.
276 NIETZSCHE, FILúSOFO DA CULTURA OS JUDEUS 277

Israel, com a sua vingança e a sua transmutação de valores, judeu») (1). Nietzsche é, sem dúvida, antí-sacerdotal e violen-
tem sempre, até ao presente, triunfado de novo sobre todos tamente oposto às avaliações tanto judaica como cristã, as
os outros ideuís, sobre todos os ideais mais aristocráticos». quais ele considera como em contradição com a avaliação
Por outras palavras: o Cristianismo é apenas o judaísmo vol- nobre e aristocrática. Mas, ao mesmo tempo, reconhece no
tando de novo ao ataque - contra os ideais aristocráticos- povo judaico um vigor e uma perícia persistentes e acredita
e desta vez mais completa, mais engenhosa e mais perigosa- que eles contribuíram para a cultura europeia e hão-de con-
mente do que dantes. (Nós preferimos dizer que no Cris- tinuar a contribuir no futuro. Nestas condições opõe-se ao
tianismo se contém tudo aquilo que há de melhor no judaís- anti-semitisrno. E nós temos de simpatizar com esta oposição
mo e que o Cristianismo abarca uma visão mais completa de Nietzsche ao antí-semitismo, se o antí-semítísmo for to-
dos verdadeiros ideais). rnado como uma oposição aos Judeus por questão de prin-
Um pensamento idêntico ocorre em A Vontade de Do-- cípio. É absolutamente justo que não seja permitido, dentro
mínio, quando Nietzsche declara que o princípio do amor do possível, que os Judeus corrompam os outros, mas a mes-
provém da pequena comunidade do povo judeu e que «a can- ma doutrina se deve aplicar aos «Arianos». Um judeu é um
ção em louvor do amor que Paulo escreveu não é cristã; é o ser humano e tem o direito de ser tratado como tal; e é revol-
tante ouvir cristãos falar do «sangue sujo dos Judeus», como
cintilar vacilante daquela eterna chama que é semítica» (1).
se esse sangue fosse diferente do que corre nas nossas veias;
O Cristianismo, avivando esta chama, aumenta a temperatura
e não foi o sangue judaico que remiu o mundo? Não é a Mãe
da alma entre povos mais frios do que os Judeus: «E assim o
de Deus, a Mãe de todos os remidos, uma virgem judaica?
Cristianismo descobriu que a mais desgraçada vida se podia
O Cristianismo brotou do solo do judaísmo e é uma realização
tomar rica e inestimável por meio de uma elevação da tem-
do judaísmo. - «Eu não vim para destruir, mas para rea-
peratura da alma».
lizar». A razão por que os judeus não-cristãos são anomalias
Nietzsche, como vimos, reconhece nos Judeus a vontade
no mundo não é o facto de lhes correr nas veias sangue se-
de domínio, mas insiste em que eles se serviram da «deca-
mita, mas sim o facto de eles não quererem reconhecer que
dência» e do entorpecimento como um meio de acesso ao
o verdadeiro fim do judaísmo foi preparar o Cristianismo, e
poder, e que o Cristianismo é o resultado final do judaísmo.
o facto de não quererem aceitar a divina vocação do seu
(<<Com o Cristianismo, a arte de dizer santas mentiras,
povo, agarrando-se a um passado que desapareceu para
que constitui o todo do judaísmo, alcançou a sua perfeição
sempre.
final graças a muitos séculos de judaísmo e a um treino e
uma prática muito para considerar. O cristão, esta ultima ro-
tio da falsidade, é um judeu dobrado - é até três vezes um

(1) A Vontade de Domlnlo, i, afor. 175. (1) AnticristO. pg. 188.


CAPITULO X A CRITICA A NIETZSCHE 279
A CRITICA A NIETZSCHE frio»; os' Nazis servem-se da ciência para propaganda e Nie-
tzsche era um céptico e criticava todas as asserções dogmáti-
cas (com excepção da doutrina do eterno retorno). A filosofia
i de Nietzsche tem, sem dúvida, o seu lugar na reacção antivo-
luntarista que continuou o Blütezeit do Idealismo alemão e
muitas das suas doutrinas (como, por exemplo, a doutrina do
Super-homem e duma «classe de senhores»), especialmente
quando mal interpretadas ou mal compreendidas, prestam-se
a servir no W eltanschauung nazi, de forma que dificilmente
se poderá negar uma influência de facto sobre o nazismo, sem
que, no entanto, nós possamos tornar um filósofo responsável
por todos os usos que das suas doutrinas possam fazer pes-
soas sem escrúpulos. Afirmei já em qualquer parte que a
E ste livro foi intitulado N ie-
tzsche, Filósofo da Cultura e nas suas páginas pro-
filosofia de Nietzsche não é de forma alguma a «filosofia»
do nazismo e não pretendo insistir agora nesse ponto. Quem
curámos mostrar como o ideal de uma cultura ascendente tenha lido os anteriores capítulos deste livro, poderá verifi-
corre, como um leitmotio, através de todo o pensamento de car que Nietzsche simpatizava pouco com os nazis (1).
Nietzsche. Assim, embora as suas ideias sobre arte, moral, No entanto, embora a diferença entre a filosofia de Nie-
religião, sociedade, história, etc., sejam expostas na sua maior tzsche e o Weltanschauung seja, na minha opinião, tão clara
parte sob a forma de aforismos, o que tende a dar-lhes uma que s6 um ignorante ou um malicioso a pode negar, a asser-
aparência desconexa e sem ligação, elas têm de ser encaradas ção desta verdade está muito longe de ser a asserção da ver-
em função do desejo dominante de Nietzsche, isto é, o desejo dade da filosofia de Nietzsche. Também a filosofia de Scho-
de uma cultura mais elevada do que aquela a que até então penhauer está muito afastada do credo nazi e nem por isso
se havia chegado. Assim, por exemplo, o Estado é exaltado deixa de ser fundamentalmente falsa e perniciosa. Neste ca-
quando favorece a cultura (tal como Nietzsche a compreen- pítulo espero mostrar que Nietzsche, embora possuído de
de) e é condenado quando entrava o desenvolvimento de uma um ideal da cultura, falsificou a verdadeira natureza da cul-
cultura mais elevada. s. portanto, suficientemente óbvio que tura e que a sua filosofia, embora muito afastada do nazis-
a filosofia de Nietzsche não deve ser identificada com o Wel- mo, é fundamentalmente errónea, sendo perniciosa a sua
tanschooung nazi. Os Nazis proclamam a teoria da raça e influência sob certos aspectos.
Nietzsche chamava ao racismo uma autêntica intrujice; os
Nazis exaltam a Alemanha e Nietzsche zombou do Deuts- (1) Veja-se o meu «Nietzsche e o NacionaII-Socialismo~na
chland über Alles e desmascarou o Império Alemão; os Nazis Dublin Review de Abril de 1941 e «Nietzsche t)8f'8U$ Hitlen no ™
adoram o Estado. e Nietzsche chama ao Estado «o monstro Month, de Set. e Out. de 1941.
280 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA A CRITICA A NIETZSCHE 281
Nietzsche é um filósofo da cultura. Ora, o que é cultura? dúvida o carácter essencialmente social da cultura humana.
A cultura, certamente, implica cultivo e desenvolvimento. A cultura humana, portanto, implica o mais elevado grau de
Mas de quê? Da natureza humana e das faculdades do ho- desenvolvimento das faculdades do homem, quer como indi-
mem, porque é da cultura humana que estamos tratando e víduo quer como membro da sociedade, ao mesmo tempo que,
não da das abelhas ou das formigas. A cultura implica, por- recíprocarrrente, o desenvolvimento cultural da sociedade im-
tanto, o desenvolvimento e verdadeiro uso de todas as facul- plica o maior desenvolvimento e perfeição de todos os seus
I
dades do homem e, quanto mais se desenvolverem essas fa- ~ membros. Se o indivíduo se não basta a si sem a sociedade,
culdades, tanto mais elevado grau de cultura atingirá o ho- esta é certamente inconcebível fora dos seus membros; o nível
mem. Ora, as mais elevadas faculdades do homem são aque- cultural dos indivíduos reage sobre o nível social geral e o
las que o colocam acima do mundo vegetal e animal e o le- nível cultural comum da sociedade reage sobre o nível dos
vam perto de Deus, isto é, a sua razão e a sua vontade racio- membros que a formam. A cultura tem de ser encarada como
nal. Esta verdade foi claramente vista por Platão e Aristó- um fenómeno social em função da sociedade e da natureza
teles, alguns séculos antes do nascimento de Cristo. Para Pla- humana, e não em função dos grandes indivíduos apenas,
tão, a alma é a mais preciosa propriedade do homem e o fim mesmo que eles sejam génios e «espíritos livres». A cultura é
do homem é a mais cerrada aproximação do Divino - ver- constituída pela sociedade ou pelos indivíduos dentro da es--
dade esta que reaparece no médio-platonismo e no neopla- trutura social e, embora, por motivo das diferenças de aptidão
tonismo. Para Aristóteles, também, a razão do homem é que entre os indivíduos e diferenças das suas funções sociais, nem
o distingue da criação bruta e lhe dá o seu stotus peculiar no todos possam atingir o mesmo nível, a cultura, destinada à
universo material e a sua razão é melhor empregada quando natureza humana como tal, tem de ser vista na sua relação
devotada à contemplação de objectos eternos e imutáveis. com a sociedade como um todo. Tentar restringir a cultura a
Mas a cultura não é apenas um assunto que diga respeito certas camadas é desprezar a relação entre a cultura e a na-
ao indivíduo; o homem é, por sua natureza, social, e o desen- tureza humana, e tal tentativa envolve uma falsificação da
volvimento das suas faculdades é atingido em união com ou- cultura e uma errada compreensão do seu carácter social.
tros homens. A cultura é, portanto, essencialmente social no É verdade que Platão, por exemplo, realçou o aspecto híerár-
seu carácter; o homem começa a sua vida na sociedade da fa- quico da estrutura social, mas não nos devemos esquecer de
mília e é na sociedade e na íntima cooperação com os seus que ele realçou também os deveres sociais das classes 5U"
companheiros que o seu desenvolvimento cultural é atingido. períores, e que estas existem, não apenas para servir o seu
Isto foi claramente compreendido por Platão e por Aristó- «egoísmo», mas também para servir toda a comunidade. Por
teles - e nem eles poderiam fàcílmente proceder de outra outras palavras: a cultura é para servir o homem, o animal
forma no mundo grego, onde a boa vida era inconcebível fora racional e social, ao passo que Nietzsche tende para colocar
da cidade-estado. Mesmo Aristóteles, que acentuou o facto O homem ao serviço da cultura.
de que o filósofo, mais do que outro homem, é independente Ora, o homem tem as suas raízes no mundo sensível, má:-
e pode seguir a sua vocação em relativa solidão, nunca pôs em teríal e dos fenómenos, e a necessidade de conservar a vida
282 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA A CRíTICA A NIETZSCHE 283

pelos meios materiais é, logicamente, a sua primeira neces- possível conseguir um tipo de cultura em que a arte (a arte
sidade. f: absolutamente certo que, sem comermos, não pode- pela arte) fosse o rrwtiv orientador, mas, embora a expressão
remos pensar nem nos poderemos. dedicar à arte ou à reli- estética e a apreciação sejam funções do espírito do homem
gido e, assim, é de admitir que haja comunidades, vivendo e estejam num nível mais alto do que a actividade puramente
em tribos, cujo primeiro cuidado seja a satisfação das neces- corporal, numa cultura acentuadamente estética ou literária
sidades materiais. Mas, à medida que a satisfação das neces- não seria ainda uma cultura no sentido completo - como o
sidades corporais se torna mais desenvolvida, é possível que não seria também uma cultura predominantemente «histó-
essa sociedade crie uma situação em que as faculdades supe- rica» em que o conhecimento das culturas passadas fosse
riores do homem procurem «conforto», conveniências, etc. considerado como a mais alta actividade. A verdade é que
E assim chegamos à situação daquilo a que muitas vezes se (como Platão e Aristóteles viram) os objectos das faculdades
chama «civilização», em contraste com «cultura». Neste sen- do homem diferem em grau, e as suas faculdades são mais
tido, a civilização abarca caminhos de ferro, fogões eléctricos, nobremente empregadas quando se dirigem para os mais
bons sistemas de drenagens e, enfim, todos os equipamentos nobres e elevados objectos. Qualquer estado de cultura que
da sociedade moderna no seu aspecto material. E: se este as- despreze o emprego das mais altas faculdades do homem em
pecto é realçado em extremo, resulta daí a materialização, relação ao mais alto de todos os objectos - Deus - será em
ou seja, a civilização burguesa, para nos servirmos de um ter- consequência disso inadequada, porque Deus. é o supremo
mo um tanto ou quanto infeliz. Com a devida restrição, po- objecto do intelecto humano e da vontade do homem. Além
demos dizer que um estado de felicidade materialista cons- disso, desde que a cultura tem um carácter social, envolve
titui a utopia do comunismo. Não podemos depreciar a civi- O reconhecimento social da moral e o reconhecimento social
lização materialista considerada em si, mas temos de reco- dos valores religiosos. Uma das grandes glórias de Platão
nhecer que ela é insuficiente; não é cultura no sentido com- é ter afirmado uma moral absoluta e universal, uma lei mo-
pleto, pois tem tendência para desprezar as mais nobres fa- ral que afecta tanto o Estado como o indivíduo, um domínio
culdades do homem, salvo naquilo em que elas podem ajudar de valores que não é meramente relativo. Demais, o reconhe-
a satisfazer as necessidades materiais. Numa tal sociedade, a cimento de Platão do carácter social da religião deduz-se
ciência aplicada é elevada acima da ciência pura, a arte é

.,
claramente da passagem das Leis, onde ele prevê o castigo do
considerada apenas como um recreio corporal e um prazer ateísmo por parte do Estado. A cultura no seu sentido pleno
dos sentidos e pouca atenção se presta à religião. As mais al- não pode, portanto, desprezar o emprego das mais elevadas
tas faculdades do homem são, sem dúvida, empregadas para faculdades do homem em relação aos mais nobres objectos;
~ ......
.,

servir a «Vida>, mas são empregadas para servir a vida num proceder assim é ter uma baixa ideia de cultura na prática,
sentido inferior e incompleto. mesmo que se pretenda obter uma cultura cada vez mais
No entanto, assim como a civilização material pode ser avançada. Nietzsche foi impelido pela sua doutrina sem Deus
elevada ao máximo, o mesmo pode acontecer com as funções a desprezar os mais elevados alvos da cultura (embora ti-
particulares das mais altas faculdades dos homens. Podia ser vesse pouca simpatia pela civilização eburguesas] e assim
284 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA A CRíTICA A NIETZSCHE 285

provou ser na prática - mesmo que o não fosse em teoria doutrina plotiniana do êxtase. O afundamento do indivíduo
um inimigo da cultura. Esta é uma das razões por que se no grande Império cosmopolita, foi, sem dúvida, responsável
tomou tão fácil aos Nazistas servirem-se de Nietzsche para em parte pelo desejo de uma religião mais pessoal, uma reli-
os seus próprios fins, isto é, usarem de uma filosofia da cul- gião de «salvação» pessoal, mas foi também devido ao supra-
tura ao serviço de um movimento anticultural, visto que a -acentuado aspecto Diess.eitigkeít da cultura, que tomou mais
filosofia de Nietzsche alberga no seu seio uma negação da óbvia e mais articulada a necessidade de uma satisfação com-
verdadeira e plena cultura. Será, portanto, fatal para alguém plementar da capacidade espiritual e religiosa do homem (cf.
deixar-se arrastar pelo entusiasmo de Nietzsche por uma cul- o aparecimento do metodismo no século XVII). Assim, o pre-
tura superior, bem como pelas observações que ele faz so- domínio dos cultos do Oriente no Império ~ e o apareci-
bre a cultura em geral, e aceitar as suas doutrinas que estão mento, o desenvolvimento e a vitória do Cristianismo - mos-
para além de toda a moral e de toda a religião. tram claramente que a cultura no seu pleno sentido, a cul-
Não se pode negar que pode haver cultura em certo sen- tura ideal, requer o desenvolvimento de todas as faculdades
tido e em certo grau sem religião. A Rússia soviética é ofi- do homem em relação a todos os seus objectos próprios. O pro-
cialmente ateia (embora os Russos não sejam todos ateus), blema do equilíbrio e da harmonia pode não ser fácil de esta-
mas pelo que se refere a caminhos de ferro, telégrafos, etc. é belecer na prática (porque há extremos num e noutro aspecto
civilizada. Além disso há, como sabemos, muitas e valiosas ac- da cultura), mas o ideal da cultura exige tal equilíbrio. Ora
tividades culturais que são estimuladas pelo Governo sovié- Nietzsche tinha em mira uma Diesseitigkeit pura e assim des-
tico, nas esferas da arte, da literatura e da ciência. Nós nunca prezava importantes elementos de cultura. É verdade que o
afirmámos que o reconhecimento social da religião é essen- seu pensamento tende para a «transcendência», porque ele
cial a toda a cultura, pois é certamente possível cultivar o nunca estava nem podia estar contente com o dado - tinha
corpo e usar das mais elevadas faculdades da alma em mui- muito de idealista para isso - mas, pelo que se depreende
tas funções sem qualquer refenrêcia directa à religião. Mas dos princípios por ele declarados, a sua filosofia era pura-
parece depreender-se da hist6ria cultural que, quando a cul- mente uma filosofia deste mundo, propondo uma cultura
tura se desenvolve apenas sob este aspecto material, a neces- também deste mundo. O efeito de tal filosofia pode ser um
sidade de uma religião espiritual faz-se sentir mais cedo enfezamento do desenvolvimento cultural do homem. Nie-
ou mais tarde. Assim, no Império Romano, quando esta civi- tzsche instiga-nos a sermos verdadeiros para esta Terra e in-
lização material havia atingido um maravilhoso grau de de- juria ---: por vezes com blasfémias - o transcendentalismo da
senvolvimento, manifestou-se por outro lado a necessidade religião, mas a sua filosofia é falsa para este mundo e falsa
de uma religião mais espiritual do que aquela que o culto para o homem, desde que despreza a necessária relação da
oficial podia oferecer. Daqui resultou a introdução dos cul- Terra com o seu Criador e do homem com a sua Primeira
tos de mistério, a popularização da filosofia - como, por Causa e Derradeiro Fim.
exemplo, na Escola est6ica - e a tendência da própria filo- Quanto à moral, como pode uma verdadeira cultura sub-
sofia para se transformar em religião, como verificamos na sistir sem respeito pela lei natural P A lei natural não é l11'D&
286 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA I A CRíTICA A NIETZSCHE 287

ordem arbitrária de Deus, mas expressa o plano de Deus II com a luz que tem, mostra respeito pelos valores morais tais
para o homem e é baseada na natureza humana; o homem que i como os conhece e torna-se assim um verdadeiro promotor
desenvolve as suas faculdades de acordo com a recta razão da cultura humana.
está actuando de acordo com a lei natural. Ora, a natureza No Mundo Antigo, então, havia moral e religião e, onde
humana é constante, e assim a lei natural é constante, univer- estas coisas eram respeitadas - de acordo com as luzes que
sal e absoluta (fundada, sem dúvida, e em última análise, na os homens possuíam - havia um florescer de cultura. Mas,
imutável Essência divina) e, embora o conhecimento dos va- quando os homens pecavam contra a luz, resultava daí a
lores morais e dos ditames da lei moral possa diferir nas degradação. Aqueles que se esforçavam por passar além do
diversas fases da cultura, onde não houver respeito absoluta- bem e do mal iam - não para cima - mas para baixo.
mente algum pela lei moral, não pode haver real e in- O mesmo se' observa hoje com relação ao Cristianismo.
teira cultura. Platão e Aristóteles conheceram bem este facto Já existia cultura antes do Cristianismo, mas, quando a
e Platão especialmente acentuou o carácter universal e abso- religião revelada entrou no mundo, as nações que rejei-
luto dos valores morais, considerando que o homem que não taram a luz tiveram inevitàvelmente de descer. Alguns incli-
tenta pôr em prática esses valores é falso para consigo pró- nam-se a pensar que é possível rejeitar o Cristianismo e,
prio e que o desprezo da lei moral acarreta a ruína do indi- no entanto, respeitar os valores morais, apontando como
víduo e do Estado. Se quisermos um exemplo deste facto, exemplo as culturas da Grécia e de Roma. Mas. esses homens
bastar-nos-à olhar para o Império Romano, onde a falta de mostram apenas que podia haver cultura antes de Cristo e
respeito pelos valores morais teve como consequência ter- que aqueles que não haviam conhecido Cristo podiam possuir
ríveis resultados da degradação humana, pois Deus permitiu uma verdadeira cultura, mas não mostram que aqueles que
que aqueles que desrespeitam a consciência caíssem nas hor- deliberadamente rejeitaram Cristo, depois de O haverem
rorosas profundidades da sensualidade e brutalidade. Esta conhecido, puderam conservar a verdadeira cultura. Não
degradação da natureza humana - a própria antítese da ver- podemos de forma alguma pensar que poderemos avançar
dadeira cultura - pode ser observada no movimento nazi, sem Cristo, pelo facto de algumas nações que não são cristãs
entre aqueles que negam o carácter absoluto e universal da (pelo menos oficialmente) conservarem ainda certa cultura e
moral. O homem que tem relativamente pouco conhecimento civilização. De facto, estas nações têm conservado uma gran-
dos valores morais, mas se esforça por viver de harmonia com de parte da sua herança cristã, mesmo que nem sempre te-
a pouca luz que tem, é muito diferente do homem que, deli- nham a consciência disso; e nós não podemos concluir de tal
beradamente, despreza a consciência e a lei natural; este facto que, se fossem excluídos todos os elementos cristãos, es-
último está a reclamar um justo castigo, como já observou sas nações continuariam a manter-se durante muito tempo
Platão há muitos séculos. Uma cultura talcomo a dos Chi- num estado de cultura. A cultura grega e romana foi uma pre-
neses não serve, portanto, de objecção à nosso tese, pois, paração para o Cristianismo. A Europa medieval foi inspirada
embora o confucionista ou o budista tenha menor conheci- pela Fé, a nossa cultura europeia continua sobre alicerces
mento dos valores morais do que o cristão, vive de harmonia cristãos ~, se os homens aceitarem o Cristianismo e permiti-
288 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA
A CRITICA A NIETZSCHE 289
rem que os valores e os padrões cristãos penetrem na sua es-
apenas posso responder que isso é o mesmo que dizer que
trutura social e industrial, poderemos atingir um grau de cul-
o filósofo alemão, dessa forma, havia de estragar, enfezar
tura até agora não atingido. Mas, se os homens desprezarem a
e arruinar as mais belas flores da raça humana. É certo que
religião revelada ou quiserem passar além dela, terão ínevi-
ele não pretende fazer tal coisa, mas esse seria o resultado
tàvelmente de cair. Os Romanos que desprezaram a luz da
da sua doutrina. Nietzsche pretendia ser um amigo da cultura,
consciência entregaram-se aos mais vergonhosos vícios; OS
mas, na realidade, foi um inimigo da cultura, e a sua filosofia
Nazis que rejeitaram a lei moral e o Reino de Cristo são
é um perigo para a raça, e tanto mais perigosa quanto é
um terrível exemplo de degradação humana e de anticultura.
embelezada com os seus dotes de imaginação, habilidade lite-
Nós não podemos voltar à Grécia, nem passar acima do
rária, profunda penetração e intenso ardor. Foi deveras uma
Cristianismo; se abandonarmos o Cristianismo, iremos, não
tragédia o facto de um homem com o talento de Nietzsche se
para cima nem simplesmente para o lado, mas para baixo (1).
ter votado a semelhante causa, e de o homem que previu a
Nietzsche, portanto, embora pretendendo promover a
catástrofe europeia e suspirava por uma unidade cultural eu-
cultura, não fez mais do que miná-la. Assim como a sua
ropeia querer contribuir para essa catástrofe, devido ao seu
vida pessoal terminou na loucura, assim a sua filosofia ter-
ateísmo e à sua negação dos valores morais absolutos. Da
mina numa contradição, porque, embora seja uma filosofia
mesma forma que a civilização ateia-socialista tende para re-
da cultura, contém em si os germes da anticultura. Da sua
duzir o homem a uma máquina, a um dente na roda do pro-
filosofia não podemos esperar salvação. ~ sem dúvida, um
gresso económico, assim a cultura individualista-ateia pro-
estímulo para o pensamento, para o auto-exame, para um
posta por Nietzsche acabaria na degradação dos mais belos
maior esforça, mas, se a adoptarmos como filosofia, condu-
homens e mulheres. Se as pessoas altamente cultas se dei-
zír-nos-á à ruína. Não nos pode ser exigido que sejamos
xassem seduzir pelo sonho do Eritis sicut díi, criando os seus
supermorais ou que estejamos acima do Cristianismo, mas
próprios valores e passando «para além do bem e do mal»,
simplesmente que sejamos verdadeiros cristãos e homens e tornam-se culpadas por não aceitarem a realidade, negando
mulheres verdadeiramente morais. Nietzsche desejava o mais os limites e as restrições da natureza humana e assim são
alto desenvolvimento das faculdades do homem, mas, ao [dsa« para este mundo e para qualquer outro mundo- ex-
mesmo tempo, tentava privar essas faculdades dos seus cepto para o mundo criado pela sua imaginação. E este é o
melhores objectos. Se nos vierem dizer que Nietzsche deixou caminho para a loucura, porque H ybris, no fim, significa
a religião intacta para as massas e desejava apenas que os ruína.
«espíritos livres> transcendessem a moral e a religíão, eu E, sem dúvida, uma terrível verdade que o homem, ape-
sar' dos progressos materiais, tem sido incapaz de criar uma
(') Isto refere-se à rejeição deliberada da religião orístã e da. cultura verdadeira, completa e duradoura. Mas atribuir a cul-
moral no sentído de pecar contra a luz. Há hoje muitos homens que pa de tal facto à moral ou à religião sobrenatural é um meio
observam a lei moral e, no entanto, não são cristãos, mas que nós não muito pobre de sair da dificuldade. A raiz do mal está l1O'
podemos supor terem deliberadamente pecado contra a sua conscíêncía, facto de que o homem não tem, em geral, sabido reconhecer
290 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA ,I CAPITULO XI

a supremacia dos valores morais e espirituais nem tem sa- CONCLUSÃO; A FILOSOFIA DA VIDA
bido viver à luz desses valores. Afirmam alguns que o Cris- -NIETZSCHE E BERGSON
tianismo tem feito pouco a favor da cultura humana. Em pri-
meiro lugar, isso não é verdade - que nobreza de carácter,
que esplendor das artes, quantas obras de caridade se não
devem à inspiração cristã! - e, como o próprio Nietzsche ve-
rificou, mesmo aqueles que, no nosso mundo moderno, têm
defendido o ideal da justiça e da cooperação na nossa vida
social e industrial, têm recorrido, embora por vezes incons-
cientemente, às fontes cristãs. Em segundo lugar, se o Crís-
tíanismo não fez tudo quanto podia fazer, a culpa não é do
próprio Cristianismo, mas de nós, homens e mulheres. Numa
cultura inteiramente cristã, em que os ideais cristãos tivessem
penetrado realmente em todos os sectores da vida, que lugar A título de conclusão, que-
haveria para injustiças sociais, para guerras, para inveja en- remos estabelecer uma comparação entre Frederico Nietzsche
tre nações, para suspeitas e para ódios? O futuro da cultura e Henrique Bergson. Nietzsche, que morreu em 1900, e Ber-
depois desta guerra depende de nós, homens e mulheres, é gson, que morreu em 1941, foram ambos importantes figuras
certo; mas isso significa que depende também do grau em no campo europeu, embora as circunstâncias exteriores das
que nós realizarmos e pusermos em prática os ideais e as suas vidas fossem tão diferentes. Nietzsche, o «Ariano), aca-
exigências do melhor dom que foi dado ao homem e da mais bou por proferir, a respeito do seu país e dos seus concida-
elevada inspiração que lhe foi ministrada - a fé cristã e a dãos, um julgamento sempre mais severo e mais amargo e,
moral cristã! Aqueles que tentam desviar o homem deste ca- depois dum curto período de professorado em Basileia, vi-
minho e iludi-lo com o sonho de alguma coisa mais elevada, veu fora da Alemanha, isolado e abandonado pelos seus pró-
que seja exclusivamente criação humana, são sedutores da prios patrícios; Bergson, um judeu, foi um francês cheio de
humanidade e, embora inconscientemente, instrumentos de .. , patriotismo, um célebre e honrado professor na primeira uni-
"

Satanás. E, quando um homem põe ao serviço dessa sedução versidade de França, um homem cuja palavra foi sempre ou-
o seu talento superior, todo o seu ardor combativo e um ca- vida com respeito e atenção. Nietzsche, filho de piedosos pais
rácter naturalmente nobre) a tragédia torna-se tanto maior. luteranos, tomou-se um implacável inimigo do Cristianismo;
Tal é a tragédia de Nietzsche, em quem o mundo ganhou tal~, Bergson aproximou-se cada vez mais da religião cristã e diz-
vez um grande escritor, mas em quem o mundo perdeu- -se que, antes de morrer, foi baptizado segundo o rito catõ-
aquilo que poderia ter ganho (assim Nietzsche o quisessel)- Iíco. No entanto, com estes dois grandes homens n6s associa-
11m verdadeiro guia e amigo. mos a noção de «Vida:.; o conceito de «Vida» foi essencial na
. ,.:;-, filosofia de Nietzsche como na de Bergson. Não nos julgamos
292 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA A FILOSOFIA DA VIDA-NIETZSCHE E BERGSON 293

presentemente em condições de dizermos qual a influência, ções particulares e asserções em função dum ideal preconce-
directa ou indirecta, que o pensamento de Nietzsche exerceu bido que ele geralmente não se digna apoiar com qualquer
no espírito de Bergson; mas o que é evidente é que a filosofia tentativa de prova científica. No entanto, em ambos estes ho-
da vida seguiu mm os diferentes nas mãos dos dois homens.
1 mens podemos observar um traço de poesia e entusiasmo, uma
Nas mãos de Nietzsche, a filosofia da vida, apesar da aparên- atmosfera de frescura e de realidade, que reage, por um
cia superficial do contrário, toma-se-continuo a afirmá-lo- lado, contra o racionalismo conceptual de Hegel e, por ou-
fundamentalmente pessimista e cai naquele «não» à vida tro lado, contra as áridas depredações da ciência positivista
que a mesma filosofia pretende denegrir e repudiar; nas mãos e modemística. Em ambas as filosofias, por outro lado, se
de Bergson, pelo contrário, a filosofia da vida toma-se funda- atribui uma importante posição ao grande homem, ao «he-
mentalmente optimista e solta um triunfante «sim» à vida rói»: bastar-nos-à ler o Zaracustra e a Vontade de Demínio,
nas suas mais altas manifestações. de Nietzsche, e Les deux sources, de Bergson, para verificar-
Há, sem dúvida, similaridades no pensamento de Nie- mos esse facto. A vida humana na sua ascensão culmina no
tzsche e Bergson, as quais devem ser discriminadas. Essa é a herói.
razão que toma adequada e proveitosa uma comparação en- Mas, embora haja acentuadas semelhanças entre as filo-
tre os dois filósofos. Do que se leu neste livro depreende-se sofias de Nietzsche e Bergson - podemos fàcilmente afir-
que a vida é central na filosofia de Nietzsche. Nietzsche olha mar que Bergson se encontra na corrente daquela Lebens-
a vida como o mais elevado produto da natureza e reclama philosophie que inclui Nietzsche - há também diferenças
sempre mais vida e mais altas formas de vida; a atitude da fortemente acentuadas e que oferecem vivos contrastes; e é
alma que ele pretende inculcar é um alegre e triunfante «sim» a estas diferenças que nos queremos referir em poucas pala-
à vida. Para Bergson, também, a vida é o mais elevado fenó- vras. São precisamente estas diferenças que revelam os de-
meno da natureza; basta-nos ler as obras Matiere et Mémoire, feitos básicos do pensamento de Nietzsche e a superioridade
Évolution Créatrice e Les deux sources, para verificarmos da filosofia de Bergson. Não temos a intenção de aprovar
o vitalismo central e irredutível da filosofia de Bergson. Ber- toda a filosofia de Bergson, mas acreditamos que este fil6-
gson, como Nietzsche, é, num sentido, anti-racionalista e antí- sofo tem uma mensagem para o homem moderno e que a sua
dialéctico; há uma certa ênfase ou intuição que tem alguma filosofia, quando vista à luz do último desenvolvimento e do
analogia, pelo menos, com o método de Nietzsche. A filo- seu autor, se nos mostra fundamentalmente sã e verdadeira.
sofia de Bergson está, sem dúvida, muito mais firmemente O que é a vida tal qual aparece neste planeta aos olhos
ancorada sobre o facto empírico do que a de Nietzsche; além de Nietzsche? ~ a «vontade de domínio», sim; mas o que
disso, a maneira de abordar é diferente - Bergson aborda a é no seu último ponto de vista? Apenas podemos dizer que
sua filosofia, metafísica, vagarosa e cuidadosamente, partin- é um lançar fora da natureza, um fenómeno continuamente
do dum ponto de vista científico e biológico (pondo em de- recorrente no seu processo cíclico. Como já notámos ante-
bandada os positivistas e materialistas com as próprias armas riormente, nós não podemos falar dos «fins»- da Natureza
destes), ao passo que Nietzsche tende a fazer as suas observa- em ligação com a filosofia de Nietzsche. A Natureza, areia e
294 NIETZSCHE. FILOSOFO DA CULTUHA A FILOSOFIA DA VIDA-NIETZSCHE E BERGSON 295

cega, não pode ter um «fim». A vida aparece simplesmente, a si próprio, nem pode, ex hypothesi, ser explicado por qual-
é um inegável fenómeno que temos de aceitar, mas não pode quer coisa que esteja fora dele; é um facto que temos de
ter um lugar que a integre no esquema teleológico; por ou- aceitar, renunciando a toda a esperança de explicação - «ex-
tras palavras, não pode ter nenhum sentido último. Para Ber- plicação» é apenas um fogo-fátuo, uma ficção de teólogos e
gson, pelo contrário, a vida, como aparece, deriva de U111 filósofos idealistas. Platão, Kant, Hegel e os seus companhei-
impulso da própria Vida, é uma manifestação da Vida cria- ros são grandes mitologistas, que não teriam aceitado, mas
dora, esse «Acto Puro» - para nos servirmos dum termo dos que inventaram um mundo ideal ou uma Razão Absoluta, ou
aristotélicos - que produz todos os fenómenos. A vida, para qualquer outra coisa, procurando assim «explicar» aquilo que
Bergson, não é um fenómeno suspenso na vácuo da Natu- não pode ser «explicado», mas simplesmente aceite. Eles ca-
reza ateia. mas tem de ser vista sobre o último plano da luniam a Realidade em favor dum mundo ideal e fictício,
Vida Criadora, Deus, que trabalha na Natureza, criando, no mas o homem não pode renunciar a uma explicação, não pode
movimento ascendente da mesma Natureza, novas e mais renunciar à busca do «para além», sob pena de ir cair num
elevadas formas. Embora Bergson fale muito cautelosamente irremediável pessimismo.
de teleologia na Eoolution Créotrice, dá a conhecer clara- Nietzsche certamente tenta estabelecer uma conciliação
mente em Les deux Sources que a vida tem um sentido e que e combina um pessimismo metafísico com um optimismo psi-
a vida humana opera a sua mais profunda realização no mo- cológico, procurando desta maneira forçar a natureza humana
mento da união com Deus. Ainda que Bergson, como filósofo, até ao limite extremo. Os pensadores sérios, aqueles que estão
não possa tomar o encargo de «explicar» a teleologia do uni- interessados no estabelecimento e conservação dos valores,
verso, deixa no entanto lugar para a teleologia indicada pela não podem ficar satisfeitos com a ausência de um Alicerce
revelação cristã e pela teologia. Se Bergson fala, como acon- metafísico, e este facto é indicação segura de que existe tal
tece, do fim da Natureza, a frase na sua boca - o que não Alicerce, que acabará por se revelar ao humilde e paciente
acontece com Nietzsche - é legítima, visto que esse fim pode, investigador. Nietzsche foi um pensador sério e tentou esta-
em última análise, ser referido a Deus Criador, que se mani- belecer vaIores sem um Alicerce metafísico, mas o processo
festa neste mundo. Por isso não poderá causar surpresa que de Nietzsche é o caminho da loucura. Nem todos os «pes-
o autor de Les deux sources tenha abraçado a fé católica, simistas» seguem o caminho de Nietzsche na sua desastrosa
e a mesma razão poderia ter tido Nietzsche para fazer um conclusão, mas nem todos. os que adoptaram a posição de
volflJ-face, se tivesse voltado a abraçar a religião da sua in- Nietzsche estão possuídos da sua inteira e íntima seriedade.
fância. A filosofia não foi um jogo para Nietzsche, mas uma luta ardo-
No Zorcttustra, como já vimos, dá-se uma posição central rosa e apaixonada, motivada pela resolução de fechar 05
ao eterno retorno, juntamente com a doutrina do Super-ho- olhos à verdade.
mem e da transmutação de valores. Ora, o eterno retomo Para Bergson, por outro lado, o universo tem um Alíeer-
implica a conclusão de que não há no universo um sígnífí.. ee último e metafísico. Por trás do processo evolucionário da
oado ou um «sentido) dado. O universo não se pode explicar natureza está a Vida Criadora e o mundo procede da m40

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29B NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA A FILOSOFIA DA VIDA-NIETZSCHE E BERGSON 297

criadora de Deus. Há, portanto, um significado no universo: potencialidades e a mais alta vocação do homem; ele não
a realidade da experiência não é um facto cego mas um es- pode ser levantado como um ideal, sem, ao mesmo tempo,
forço criador, uma progressiva manifestação de Deus. Ber- abater, amesquinhar e enfezar o homem. Quão diferente é o
gson alinha, a este respeito, ao lado dos grandes filósofos, de «herói» de Bergson, que é, preeminentemente, o santo mís-
Platão, Platino, S. Tomás de Aquino e S. Boaventura, de Lei- j
tico e cristão! Estes «Super-homens» de Bergson formam um
bniz, Fichte e Hegel, de Whitehead nos nossos dias (eu grande exército, onde se encontram os «fundadores e refor-
não pretendo colocar todos estes pensadores no mesmo nível
e, muito menos, exprimir concordância com tudo quanto eles
1 madores da religião, os místicos e santos, heróis obscuros da
vida moral, que nós temos encontrado no nosso caminho e
disseram - o que se torna impossível, em virtude das suas que, aos nossos olhos, são iguais aos maiores» (l). São con-
diferenças!) e ao lado daqueles que tentam dar um Alicerce quistadores, mas são conquistadores, porque «quebraram a
metafísico ao universo e dar a conhecer o sentido da Vida. resistência natural e elevaram a humanidade a um novo des-
O Alicerce apontado por este ou aquele pensador poderá ser tino». São homens de acção e não meros edegeneradoss pas-
fictício, mas, uma vez que se afirma um Alicerce, há razão sivos, porque estão cheios daquela vida que vem de Deus.
para se falar de «Significado». No caso de Nietzsche não exis- «Seguros de si próprios, porque sentem dentro de si alguma
te tal razão; e, se não há «sentido», que motivo existe para coisa melhor do que eles próprios, provam ser grandes ho-
apelar para o Super-homem? Nós podíamos procurar a feli- mens de acção, com surpresa daqueles para quem o misti-
cidade que nos fosse possível conseguir e deixar que a «no- cismo não passa de arrebatamentos, visões e êxtases. O que
breza» se bastasse a si própria. Em nome dos Valores? Mas eles consentiram que corresse dentro deles é uma corrente
os valores, de acordo com Nietzsche, são relativos; e, em em sentido descendente e que procura, por intermédio deles,
qualquer caso, que são valores no vácuo, privados de qual- chegar aos outros homens seus companheiros; a necessidade
quer base fundamental e de qualquer justificação? de espalharem à sua volta aquilo que receberam apodera-se
A ascensão da vida, na filosofia de Nietzsche, é em di- deles como um ataque de amor (2). São eles os recipientes
recção ao Super-homem, que representa a mais fina flor da da vasta corrente da Vida e «da sua crescente vitalidade ir-
cultura, a ultrapassagem do homem. O Super-homem ergue- radia uma extraordinária energia, audácia e poder de con-
-se à luz do futuro, no seu solitário esplendor, forte, indepen- cepção e realização. Pensemos no que foi realizado no campo
dente, intelectual, nobre, com uma lei apenas para si próprio, da acção por um S. Paulo, uma Santa Teresa, uma Santa
esenhors egoísta, envolvido na sua armadura de dureza, livre Catarina de Sena, um S; Francisco, uma Joana d'Arc e por
da «brandura» e da degeneração cristã. Mas porque deve- quantos outros além destes» (').
mos nós trabalhar para a vinda de tal homem, porque devem E estes «Super-homens), estes «heróis) de Bergson. ego;
ser sacrificados milhões de homens a um egoísta numa escala
colossal, por muito «nobre» e isento de pequenez que esse ··1·,
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homem possa ser? O Super-homem é apenas o homem natural (1) Les deu« soueces, pg. 38.
(2) Les deux 8O'U1'08S, pg. 81.
elevado a n graus: nele estão por realizar as mais elevadas
(3) Les deux SOUI'OOS, pg. 81.
298 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA A FILOSOFIA DA VIDA-NIETZSCHE E BERGSON 299

tão armados, não com a malha da dureza e do desinteresse, Ou, se nós procedemos assim, será porque aspiramos em
mas com a panóplia de um fervoroso e radiante amor. «Um qualquer canto da nossa civilização a fragância intoxicante
amor que cada um deles imprime na sua própria personalí- deixada ali pelo misticismo. O amor místico é uma coisa muito
dade. Um amor que é em cada um deles uma emoção inteí- diferente. Não é a extensão dum instinto nem se origina numa
ramente nova, capaz de transpor a vida humana para outro ideia. Não pertence ao sensitivo nem ao racional. É, implicita-
tom. Um amor que assim obriga cada um deles a ser amado mente, ambas as coisas e, efectivamente, muito mais. Porque
por causa de si próprio, de Forma que, através dele e por tal amor jaz na própria raiz do sentimento e da razão, como
causa dele, os outros homens hão-de abrir as suas almas ao de todas as outras coisas. Coincidindo com o amor de Deus
amor da humanidade, um amor que pode também ser trans- pela sua obra, um amor que foi a fonte de todas as coisas,
mitido através do medíum de uma pessoa que se ligou a eles esse amor descobrirá, a todo aquele que o saiba interrogar, o
ou à sua memória sempre querida, e que formou a sua vida segredo da criação. É ainda mais metafísico do que moral na
de harmonia com aquele padrão. Vamos mais longe. Se uma sua essência. O que ele deseja fazer, com a ajuda de Deus,
palavra de um grande místico ou de algum dos seus imita- é completar a criação da espécie humana e fazer da huma-
dores encontrar eco num ou noutro de nós, não poderá acon- nidade aquilo em que ela imediatamente se tornaria, se ti-
tecer que haja dentro de nós um dormente místico que estava vesse sido capaz de tomar a sua forma final sem a ajuda do
apenas à espera de uma ocasião em que o acordassem?» (1). próprio homem» (1). Na verdade, die schenkende Tugend
Este amor é o amor da humanidade, o amor de todos está muito mais representada na filosofia de Bergson do que
os homens, um amor que é verdadeira participação do amor na de Nietzsche. A humanidade, em geral, não é um simples
de Deus pelos homens. «Porque o amor que o consome (ao meio, um escabelo para o Super-homem de Bergson, mas o
santo e místico) já não é mais o amor do homem por Deus, objecto do seu amor, que ele voluntàriamente ajudaria a er-
mas o amor de Deus por todos os homens. Por intermédio de guer-se acima de si própria e a realizar aquelas potenciali-
Deus, na força de Deus, ele ama toda a humanidade com um dades que lhe foram comunicadas por Deus. Desnecessário
divino amor. Não se trata da fraternidade que nos é reco- é mesmo perguntar qual das duas. aristocracias será mais no-
mendada pelos filósofos em nome da razão, partindo do prin- bre - se a de Bergson ou a de Nietzsche. O Super-homem de
cípio de que todos os homens partilham por nascimento de Nietzsche toma-se um terrível espectro; uma monstruosi-
uma essência racional: um ideal tão nobre pode apenas ins- dade, ao lado daquele herói de Bergson, dotado do mais na-
pirar o nosso respeito. Poderemos lutar com a nossa melhor bre coração, que ama e que vive, que não é uma mera figura
habilidade para o pormos em prática, se ele se não tomar do futuro, mas tem efectivamente vivido e passeado entre
demasiadamente aborrecido para o indivíduo e para a comu- os homens.
nidade, mas nunca nos prendemos a ele apaixonadamente. Nietzsche estava possuído dum ideal para o homem, nio

(1) Lee deux 8OU1'C88, PI. 199-200.


300 NIETZSCHE, FILOSOFO DA CULTURA

estava contente com o homem tal como ele é, na sua pequenez


íNDICE
e miséria - e honra lhe seja feita por isso! - era um idealista
por temperamento, e era até religioso, embora o não fosse Prefácio 7
por profissão declarada. No entanto, falsificou a posição e o
alvo do homem, e a sua filosofia - apesar de todos. os pro- CAPITULO I
testos em contrário - é radicalmente pessimista. A sua dese- A Vida de Nietzsche ...... 17
jada cultura é apenas uma bolha de água no rio do eterno
CAPíTULO II
retomo, um fenómeno passageiro sem valor duradouro. A ver-
dadeira cultura encontra a sua justificação e o seu carácter O Ideal Cultural. de Nietzsche ... 55
na sua relação com Deus e com a vocação divina do homem CAPíTULO III
(não disseram os Doutores da Igreja e os teólogos que «Deus A Híst6ría da Cultura , . 86
se fez homem para que o homem se tornasse Deus?») e o
seu valor é eterno, porque o próprio homem procede da Vida CAPíTULO IV
Criadora e está destinado a voltar a essa Vida Criadora em O Super-Homem e a Vontade de Domínio . .119
companhia dos seus companheiros na união dum divino
amor. Apenas pelo reconhecimento desta vocação divina po- CAPíTULO V
derá a Humanidade entrar uma vez mais no verdadeiro ca- A Crítica da Moral por Nietzsche ... 149
minho da ascensão, e assim, aceitando o sofrimento da vida CAPíTULO VI
presente, entrar no esplendor da Glória e da Vida divina.
O Anticristo ................. , ... 173

CAPíTULO VII
Schopenhauer e Nietzsche ... ... ... .., ... 207

CAPíTULO VIII
O Monstro Frio 11" , . 234

CAPíTULO IX
Os ludeue ...... ... ... .... . ....
' ..' •••••••••••• t ••
259

CAPtTULOX
A Crítica a Nietzsche , , .. , 0 .
i18

CAPíTULO XI
Conclusão: A Filosofia da VIdo - NietZ8cM 8 Bergson. iOl

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Nono volume
da colecção
. FILOSOFIA E RELIGIÃO
Acabado de imprimir
na
EMPRESA DE PUBLICIDADE DO NORTE
em 18 de Março de 1959

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