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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Explicação) - Silo

  Explicação

Estas "Cartas aos


meus amigos", que hoje se apresentam como
livro,
foram publicadas separadamente à medida que o autor as
foi
produzindo. Desde a primeira, escrita a 21/02/91,
até à décima e
última, redigida a 15/12/93, passaram
quase três anos. Nesse lapso
de tempo, ocorreram
transformações globais importantes em quase
todos os
campos da actividade humana. Se a velocidade de
mudança
continua a incrementar-se, como sucedeu nesse período,
um leitor das próximas décadas dificilmente entenderá
o contexto
mundial a que o autor faz continuamente
referência e, por
conseguinte, não apreenderá muitas
das ideias que se expressam
nestes escritos. Por isso,
haveria que recomendar aos hipotéticos
leitores do
futuro que tivessem à mão uma resenha dos
acontecimentos verificados entre 1991 e 1994; haveria que
sugerir-
lhes que obtivessem uma compreensão ampla do
desenvolvimento
económico e tecnológico da época, das
fomes e dos conflitos, da
publicidade e da moda. Seria
necessário pedir-lhes que escutassem
a música; vissem
as imagens arquitectónicas e urbanísticas;
observassem
as concentrações populacionais das grandes cidades,
as
migrações, a decomposição ecológica e o modo de vida
daquele
curioso momento histórico. Sobretudo haveria que
rogar-lhes que
tentassem penetrar nos ditos e dizeres
daqueles formadores de
opinião: dos filósofos,
sociólogos e psicólogos dessa etapa cruel e
estúpida.
Ainda que nestas Cartas se fale de certo presente, é
indubitável que foram redigidas com o olhar posto no
futuro e creio
que somente dali poderão ser confirmadas
ou refutadas.

Nesta obra não existe um


plano geral, mas antes uma série de
exposições
ocasionais que admitem uma leitura sem sequência. No
entanto, poder-se-ia tentar a seguinte
classificação: 

A - As três
primeiras cartas põem ênfase nas
experiências que
cabem ao indivíduo viver no meio de
uma situação
global cada dia mais complicada. 

B - Na quarta,
apresenta-se a estrutura geral das
ideias em que se
baseiam todas as cartas. 

C - Nas
seguintes, esboça-se o pensamento político-
social
do autor.

D - A décima
apresenta directrizes de acção pontual
tendo em
conta o processo mundial.

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Passo agora a destacar


alguns temas tratados na obra. 

Primeira carta:
a situação que nos cabe viver. A
desintegração
das instituições e a crise de
solidariedade. Os
novos tipos de sensibilidade e
comportamento que se
perfilam no mundo de hoje. Os
critérios de
acção. 

Segunda: os
factores de mudança do mundo actual e
as posturas
que habitualmente se assumem perante
essa
mudança. 

Terceira:
Características da mudança e da crise em
relação
ao meio imediato em que vivemos. 

Quarta:
fundamento das opiniões vertidas nas Cartas
sobre as
questões mais gerais da vida humana, as
suas
necessidades e os seus projectos básicos. O
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mundo
natural e social. A concentração de poder, a
violência e o Estado.

Quinta: a
liberdade humana, a intenção e a acção. O
sentido
ético da prática social e da militância; os seus
defeitos mais habituais. 

Sexta:
exposição do ideário do Humanismo.

Sétima: a
revolução social. 

Oitava: as
forças armadas. 

Nona: os
direitos humanos. 

Décima: a
desestruturação geral. A aplicação da
compreensão global à acção mínima concreta.

A quarta carta, de capital


importância na justificação ideológica de
toda a
obra, pode ser aprofundada com a leitura de outro
trabalho do
autor, Contribuições ao Pensamento
(particularmente no ensaio
titulado Discussões
Historiológicas) e, desde logo, com a
conferência A
Crise da Civilização e do Humanismo (Academia de
Administração de Moscovo, 18/06/92).

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Na sexta
carta, expõem-se as ideias do humanismo contemporâneo.
A condensação conceitual deste escrito faz recordar
certas
produções políticas e culturais das quais temos
exemplo nos
"manifestos" de meados do século
XIX e XX, como acontece com o
Manifesto Comunista
e o Manifesto Surrealista. O uso da palavra
"Documento" em vez de "Manifesto"
deve-se a uma cuidadosa
escolha para se pôr à
distância do naturalismo expresso no
Humanist
Manifesto de 1933, inspirado por Dewey, e também do
social-liberalismo do Humanist Manifesto II de
1974, subscrito por
Sakharov e impregnado fortemente pelo
pensamento de Lamont.
Ainda que se notem coincidências
com este segundo manifesto no
que respeita à necessidade
de uma planificação económica e
ecológica que não
destrua as liberdades pessoais, as diferenças
quanto a
visão política e concepção do ser humano são
radicais.
Esta carta, extremamente breve em relação à
quantidade de
matérias que trata, exige algumas
considerações. O autor reconhece
os contributos das
diferentes culturas na trajectória do humanismo,
como
claramente se observa no pensamento judeu, árabe e
oriental.
Nesse sentido, o Documento não pode ser
encerrado na tradição
"ciceroniana" como
amiúde aconteceu com os humanistas
ocidentais. No seu
reconhecimento ao "humanismo histórico", o
autor resgata temas já expressos no século XII.
Refiro-me aos
poetas goliardos que, como Hugo de Orleães
e Pedro de Blois,
acabaram por compôr o célebre In
terra sumus, do Codex Buranus
(o código de
Beuern, conhecido em latim como Carmina Burana).
Silo não os cita directamente, mas volta às suas
palavras. "Eis a
grande verdade universal: o
dinheiro é tudo. O dinheiro é governo, é
lei, é
poder. É basicamente subsistência. Mas, além disso, é
a Arte,
é a Filosofia e é a Religião. Nada se faz sem
dinheiro; nada se pode
sem dinheiro. Não há relações
pessoais sem dinheiro. Não há
intimidade sem dinheiro e
mesmo a solidão repousada depende do
dinheiro".
Como não reconhecer a reflexão do In Terra sumus,
"mantém o abade o Dinheiro na sua cela
prisioneiro", quando se diz:
"... e mesmo a
solidão repousada depende do dinheiro". Ou então,
"O
Dinheiro honra recebe e sem ele ninguém é amado",
e aqui: "Não
há relações pessoais sem dinheiro.
Não há intimidade sem dinheiro".
A generalização
do poeta goliardo: "O Dinheiro, e isto é certo,
faz
com que o tonto pareça eloquente", aparece
na carta como: "Mas,
além disso, é a Arte, é a
Filsofia e é a Religião". E sobre esta última
diz-se no poema: "O Dinheiro é adorado porque
faz milagres... faz o
surdo ouvir e o coxo saltar",
etc. Nesse poema do Codex Buranus,
que Silo dá
por conhecido, ficam implícitos os antecedentes que
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depois vão inspirar os humanistas do século XVI,


particularmente
Erasmo e Rabelais.

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A carta que estamos a


comentar apresenta o ideário do humanismo
contemporâneo, mas para dar uma ideia mais acabada do
tema
nada melhor do que citar aqui alguns parágrafos que
o autor expôs
na sua conferência Visão Actual do
Humanismo (Universidade
Autónoma de Madrid,
16/04/93). "... Duas são as acepções que se
costumam atribuír à palavra «Humanismo». Fala-se de
«Humanismo» para indicar qualquer tendência de
pensamento que
afirme o valor e a dignidade do ser
humano. Com este significado,
pode-se interpretar o
Humanismo dos modos mais diversos e
contrastantes. No seu
significado mais limitado, mas colocando-o
numa
perspectiva histórica precisa, o conceito de Humanismo
é
usado para indicar esse processo de transformação
que se iniciou
entre o final do século XIV e o começo
do XV e que, no século
seguinte, com o nome de
«Renascimento», dominou a vida
intelectual da Europa.
Basta mencionar Erasmo; Giordano Bruno;
Galileu; Nicolau
de Cusa; Thomas More; Juan Vives e Bouillé para
compreender a diversidade e extensão do humanismo
histórico. A
sua influência prolongou-se a todo o
século XVII e grande parte do
XVIII, desembocando nas
revoluções que abriram as portas da
Idade
Contemporânea. Esta corrente pareceu apagar-se
lentamente
até que a meados deste século pôs-se
novamente em movimento no
debate entre pensadores
preocupados com as questões sociais e
políticas. 

Os aspectos fundamentais
do humanismo histórico foram,
aproximadamente, os
seguintes: 

1 - A reacção contra
o modo de vida e os valores
medievais. Assim começou
um forte reconhecimento
de outras culturas,
particularmente da greco-romana
na arte, na ciência
e na filosofia. 

2 - A proposta de uma
nova imagem do ser humano,
do qual se exaltam a sua
personalidade e a sua acção
transformadora. 

3 - Uma nova atitude


relativamente à natureza, à qual
se aceita como
ambiente do Homem e já não como um
sub-mundo cheio
de tentações e castigos. 

4 - O interesse pela
experimentação e investigação do
mundo
circundante, como uma tendência a procurar
explicações naturais sem necessidade de
referências
ao sobrenatural. 

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Estes quatro
aspectos do humanismo histórico convergem para um
mesmo
objectivo: fazer surgir a confiança no ser humano e na
sua
criatividade e considerar o mundo como reino do
Homem, reino que
este pode dominar mediante o
conhecimento das ciências. A partir
desta nova
perspectiva expressa-se a necessidade de construir uma
nova visão do universo e da História. De igual maneira,
as novas
concepções do movimento humanista levam à
redefinição da
questão religiosa tanto nas suas
estruturas dogmáticas e litúrgicas
como nas
organizativas, que, naquele tempo, impregnam as
estruturas sociais medievais. O Humanismo, em
correlação com a
modificação das forças económicas
e sociais da época, representa
um revolucionarismo cada
vez mais consciente e cada vez mais
orientado para a
discussão da ordem estabelecida. Mas a Reforma
no mundo
alemão e a Contra-reforma no mundo latino tratam de
travar as novas ideias repropondo autoritariamente a
visão cristã
tradicional. A crise passa da Igreja às
estruturas estatais.
Finalmente, o império e a monarquia
por direito divino são

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eliminados mercê das


revoluções dos finais do século XVIII e XIX.
Porém,
depois da Revolução francesa e das guerras da
independência americanas, o Humanismo praticamente
desapareceu pese embora continuar como pano de fundo
social de
ideais e aspirações que alentam
transformações económicas,
políticas e científicas.
O Humanismo retrocedeu perante concepções
e práticas
que se instalam até terminar o Colonialismo, a Segunda
Guerra Mundial e o alinhamento bipolar do planeta. Nesta
situação,
reabre-se o debate sobre o significado do ser
humano e da natureza,
sobre a justificação das
estruturas económicas e políticas, sobre a
orientação
da Ciência e da tecnologia e, em geral, sobre a
direcção
dos acontecimentos históricos. São os
filósofos da Existência que
dão os primeiros sinais:
Heidegger, para desqualificar o Humanismo
como uma
metafísica mais (na sua Carta sobre o Humanismo);
Sartre, para defendê-lo (na sua conferência O
Existencialismo é um
Humanismo); Luypen, para
precisar o enquadramento teórico (em A
Fenomenologia
é um Humanismo). Por outro lado, Althusser, para
erguer uma postura Antihumanista (em Para Marx) e
Maritain, para
apropriar-se da sua antítese a partir do
Cristianismo (no seu
Humanismo Integral), fazem
alguns esforços meritórios".

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"Depois de
percorrido este longo caminho e das últimas discussões
no campo das ideias, fica claro que o Humanismo deve
definir a sua
posição actual não só enquanto
concepção teórica como também
enquanto actividade e
prática social. O estado da questão humanista
deve ser
perspectivado com referência às condições em que o
ser
humano vive. Essas condições não são
abstractas"

"Por conseguinte,
não é legítimo derivar o Humanismo de uma teoria
sobre
a Natureza, ou uma teoria sobre a História, ou uma fé
sobre
Deus. A condição humana é tal que o encontro
imediato com a dor e
com a necessidade de superá-la é
ineludível. Tal condição, comum a
tantas outras
espécies, encontra na humana a necessidade adicional
de
prever no futuro como superar a dor e conseguir o prazer.
A sua
previsão do futuro apoia-se na experiência
passada e na intenção de
melhorar a sua situação
actual. O seu trabalho, acumulado em
produções sociais,
passa e transforma-se de geração em geração
em luta
contínua pela superação das condições naturais e
sociais
em que vive. Por isso, o Humanismo
define o ser humano como
ser histórico e com um modo de
acção social capaz de
transformar o mundo e a sua
própria natureza. Este ponto é de
capital importância
porque, ao aceitá-lo, não se poderá depois
afirmar um
direito natural, uma propriedade natural, instituições
naturais ou, por último, um tipo de ser humano no futuro
tal
qual é hoje, como se estivesse terminado para
sempre. O antigo
tema da relação do homem
com a Natureza ganha novamente
importância. Ao
retomá-lo, descobrimos esse grande paradoxo em
que o ser
humano aparece sem fixidez, sem natureza, ao mesmo
tempo
que notamos nele uma constante: a sua historicidade. É
por
isso que, esticando os termos, pode dizer-se que a
natureza do
Homem é a sua História, a sua
História social. Por conseguinte,
cada ser humano que
nasce não é um primeiro exemplar equipado
geneticamente
para responder ao seu meio, mas sim um ser
histórico que
desenvolve a sua experiência pessoal numa paisagem
social, numa paisagem humana".

"Eis
que neste mundo social, a intenção comum de superar a
dor é
negada pela intenção de outros seres humanos.
Estamos a dizer
que uns homens naturalizam outros ao
negar a sua intenção,
convertem-nos em objectos de uso.
Assim, a tragédia de estar
submetido a condições
físicas naturais estimula o trabalho social e a
ciência
para novas realizações que superem essas condições,
mas
a tragédia de estar submetido a condições sociais
de desigualdade e
injustiça estimula o ser humano à
rebelião contra essa situação em
que se nota não o
jogo de forças cegas, mas sim o jogo de outras
intenções humanas. Essas intenções humanas, que
discriminam uns
e outros, são questionadas num campo
muito diferente ao da

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tragédia natural em que não


existe uma intenção. É por isso que
existe sempre em
toda a discriminação um esforço monstruoso para
estabelecer que as diferenças entre os seres humanos se
devem à
natureza, seja ela física ou social, a qual
define o seu jogo de forças
sem que intervenha a
intenção. Estabelecer-se-ão diferenças raciais,
sexuais e económicas, justificando-as com leis
genéticas ou de
mercado, mas em todos os casos
estar-se-á a operar com a
distorsão, a falsidade e a
má fé. As duas ideias básicas expostas
anteriormente: em primeiro lugar, a da condição humana
submetida à dor com o seu impulso por superá-la e, em
segundo lugar, a definição do ser humano histórico e
social,
centram o estado da questão para os humanistas
de hoje".

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"No Documento
fundacional do Movimento Humanista declara-se
que há-de
passar-se da Pré-História à verdadeira História
humana
logo que se elimine a violenta apropriação
animal de uns seres
humanos por outros. Entretanto, não
se poderá partir de outro valor
central senão do ser
humano pleno nas suas realizações e na sua
liberdade. A
proclamação «Nada por cima do ser humano e nenhum
ser
humano por debaixo de outro», sintetiza tudo isto. Se se
põe
como valor central Deus, o Estado, o Dinheiro ou
qualquer outra
entidade subordina-se o ser humano,
criando condições para o seu
ulterior controlo ou
sacrifício. Os humanistas têm claro este ponto.
Os
humanistas são ateus ou crentes, mas não partem do
ateísmo ou
da fé para fundamentar a sua visão do mundo
e a sua acção; partem
do ser humano e das suas
necessidades imediatas. Os humanistas
questionam o
problema de fundo: saber se queremos viver e decidir
em
que condições queremos fazê-lo. Todas as formas de
violência
física, económica, racial, religiosa, sexual
e ideológica, mercê das
quais se tem travado o
progresso humano, repugnam aos
humanistas. Toda a forma
de discriminação, manifesta ou larvar, é
motivo de
denúncia para os humanistas".

"Assim está
traçada a linha divisória entre o Humanismo e o
Antihumanismo. O Humanismo põe à frente a questão do
trabalho
face ao grande capital; a questão da democracia
real face à
democracia formal; a questão da
descentralização face à
centralização; a questão da
antidiscriminação face à discriminação;
a questão
da liberdade face à opressão; a questão do sentido da
vida face à resignação, a cumplicidade e o absurdo.
Porque o
Humanismo crê na liberdade de escolha possui
uma ética válida,
porque crê na intenção distingue
entre o erro e a má fé. Deste modo,
os humanistas
definem posições. Não nos sentimos saídos do nada,
mas sim tributários de um longo processo e esforço
colectivo.
Comprometemo-nos com o momento actual e
concebemos uma
longa luta rumo ao futuro. Afirmamos a
diversidade em franca
oposição à regimentação que
até agora tem sido imposta e apoiada
com explicações
de que o diverso põe em dialéctica os elementos
de um
sistema, de maneira que ao respeitar-se toda a
particularidade dá-se via livre a forças centrífugas e
desintegradoras.
Os humanistas pensam o contrário e
destacam que, precisamente
neste momento, o avassalamento
da diversidade leva à explosão
das estruturas rígidas.
É por isso que enfatizamos na direcção
convergente, na intenção convergente e opomo-nos à
ideia e à
prática de eliminação de supostas
condições dialécticas num
conjunto dado". 

Termina aqui a
citação da conferência de
Silo.

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A décima e última carta


estabelece os limites da desestruturação e
destaca
três campos, entre tantos outros possíveis, nos quais
esse
fenómeno ganha especial importância: o político,
o religioso e o
geracional, advertindo sobre o surgimento
de neo-irracionalismos
fascistas, autoritários e
violentistas. Para ilustrar o tema da

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Explicação) - Silo

compreensão global
e da aplicação da acção ao ponto mínimo do
"meio imediato", o autor dá esse fenomenal
salto de escala com o
qual nos faz encontrar o
"vizinho", o companheiro de trabalho, o
amigo... Fica clara a proposta de que todo o militante
deve esquecer
a miragem do poder político
superestrutural porque esse poder está
ferido de morte
às mãos da desestruturação. De nada valerá
futuramente o Presidente, o Primeiro-Ministro, o Senador,
o
Deputado. Os partidos políticos, os grémios e os
sindicatos irão
afastando-se gradualmente das suas bases
humanas. O Estado
sofrerá mil transformações e
unicamente as grandes corporações e
o capital
financeiro internacional irão concentrando a capacidade
decisória mundial até sobrevir o colapso do Paraestado.
De que
poderia valer uma militância que tratasse de
ocupar as cascas
vazias da democracia formal?
Decididamente, a acção deve
delinear-se no meio mínimo
imediato e unicamente a partir daí, com
base no conflito
concreto, deve ser construída a representatividade
real.
Porém, os problemas existenciais da base social não se
expressam exclusivamente como dificuldades económicas e
políticas, portanto, um partido que leve adiante o
ideário humanista e
que instrumentalmente ocupe espaços
parlamentares, tem
significação institucional mas não
pode dar resposta às
necessidades das pessoas. O novo
poder construir-se-á a partir da
base social como um
Movimento amplo, descentralizado e
federativo. A pergunta
que todo o militante se deve fazer não é
"quem
será primeiro-ministro ou deputado", mas sim
"como
formaremos os nossos centros de comunicação
directa, as nossas
redes de conselhos vicinais; como
daremos participação a todas as
organizações mínimas
de base nas quais se expressa o trabalho, o
desporto, a
arte, a cultura e a religiosidade popular?" Esse
Movimento não pode ser pensado em termos políticos
formais, mas
sim em termos de diversidade convergente.
Também não se deve
conceber o crescimento desse
Movimento dentro dos moldes de um
gradualismo que vá
ganhando progressivamente espaço e estratos
sociais.
Deve ser delineado em termos de "efeito
demonstração",
típico de uma sociedade
planetária multiconectada apta para
reproduzir e adaptar
o êxito de um modelo em colectividades
afastadas e
diferentes entre si. Esta última carta, em suma, esboça
um tipo de organização mínima e uma estratégia de
acção conforme
à situação actual.

Detive-me somente nas


cartas quatro, seis e dez. Creio que, à
diferença das
restantes, estas requeriam alguma recomendação,
alguma
citação e algum comentário complementar.

J. Valinsky

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Primeira carta) - Silo

  Primeira
carta aos meus amigos

1. A
situação actual.
2. A
alternativa de um mundo melhor.
3. A
evolução social.
4. As
futuras experiências.
5. A
mudança e as relações com as pessoas.
6. Um conto
para aspirantes a executivos.
7. A
mudança humana.

Estimados amigos:

Desde há bastante tempo


recebo correspondência de diferentes
países pedindo
explicação ou ampliações sobre temas que
aparecem nos
meus livros. Em geral, o que se reclama é clarificação
sobre assuntos tão concretos como a violência, a
política, a
economia, a ecologia, as relações sociais
e as inter-pessoais. Como
se vê as preocupações são
muitas e diversas e é claro que nesses
campos terão que
ser os especialistas a dar resposta. É evidente
que esse
não é o meu caso.

Até onde seja possível,


tratarei de não repetir o já escrito noutros
lugares e
oxalá possa esboçar em poucas linhas a situação geral
em
que nos cabe viver e as tendências mais imediatas que
se perfilam.
Noutras épocas, ter-se-ia tomado como fio
condutor deste tipo de
descrição uma certa ideia do
"mau estar da cultura", mas hoje,
[ Qualquer sugestão é bem vinda ] diversamente,
falaremos da veloz mudança que se está a produzir
nas
economias, nos costumes, nas ideologias e nas crenças,
tratando de rastrear uma certa desorientação que parece
asfixiar os
indivíduos e os povos.

Antes de entrar no tema,


gostaria de fazer duas advertências: uma
referida ao
mundo que já era e que parece ser considerado neste
escrito com uma certa nostalgia, e outra que aponta ao
modo de
expôr, no qual se poderia ver uma total
ausência de matizes,
levando as coisas a um primitivismo
de questionamento que não é o
modo como, na realidade,
formulam aqueles que nós criticamos.
Direi que quem como
nós crê na evolução humana não está
deprimido pelas
mudanças, antes deseja, na verdade, um
incremento na
aceleração dos acontecimentos, enquanto trata de
adaptar-se crescentemente aos novos tempos. Quanto ao
modo de
expressar a argumentação dos defensores da
"nova ordem", posso
comentar o seguinte: ao
falar deles não deixaram de ressoar em
mim os acordes
daquelas diametrais ficções literárias, "1984"
de
Orwell e "O Admirável Mundo Novo" de
Huxley. Esses magníficos
escritores vaticinaram um mundo
futuro no qual por meios violentos
ou persuasivos, o ser
humano acabava submergido e robotizado.
Creio que ambos
atribuíram demasiada inteligência aos "maus"
e
demasiada estupidez aos "bons" dos seus
romances, movidos talvez
por um pessimismo de fundo que
não cabe interpretar agora. Os
"maus" de hoje
são pessoas com muitos problemas e uma grande
avidez,
mas, em todo o caso, incompetentes para orientar
processos
históricos que claramente escapam à sua
vontade e capacidade de
planificação. Em geral,
trata-se de gente pouco estudiosa e de
técnicos ao seu
serviço que dispõem de recursos parcelados e
pateticamente insuficientes. Assim, pedirei que não
tomem muito a
sério alguns parágrafos, que são, na
realidade, como um
divertimento, quando pomos algumas
palavras nas suas bocas que
não dizem, mesmo que as suas
intenções vão nessa direcção. Creio
que há que
considerar estas coisas excluindo toda a solenidade
(afim
à época que morre) e, ao invés, questioná-las com o
bom
humor e o espírito de brincadeira que campeia nas
cartas
intercambiadas pelas pessoas verdadeiramente
amigas.
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Primeira carta) - Silo
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1. A
situação actual

Desde o começo da sua


História a humanidade evolui trabalhando
para conseguir
uma vida melhor. Apesar dos avanços, hoje utiliza-se
o
poder e a força económica e tecnológica para
assassinar,
empobrecer e oprimir diversas regiões do
mundo, destruindo, além
do mais, o futuro das novas
gerações e o equilíbrio geral da vida no
planeta. Uma
pequena percentagem da humanidade possui grandes
riquezas, enquanto as maiorias padecem de sérias
necessidades.
Nalguns lugares, há trabalho e
remuneração suficiente, mas noutros
a situação é
desastrosa. Em todas os lados, os sectores mais
humildes
sofrem horrores para não morrer de fome. Hoje,
minimamente, e pelo simples facto de ter nascido num meio
social,
todo o ser humano requer adequada alimentação,
saúde, habitação,
educação, vestuário, serviços...
e chegando a certa idade necessita
assegurar o seu futuro
pelo tempo de vida que lhe reste. Com todo o
direito as
pessoas querem isso para elas e para os seus filhos,
ambicionando que estes possam viver melhor. No entanto,
hoje
essas aspirações de milhares de milhões de
pessoas não são
satisfeitas.

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2. A
alternativa de um mundo melhor

Tratando de moderar os
problemas comentados fizeram-se
diferentes experiências
económicas com resultados díspares.
Actualmente,
tende-se a aplicar um sistema em que supostas leis de
mercado regularão automaticamente o progresso social,
superando
o desastre produzido pelas anteriores economias
dirigistas. Segundo
este esquema, as guerras, a
violência, a opressão, a desigualdade,
a pobreza e a
ignorância, irão retrocedendo sem se produzirem
sobressaltos de maior. Os países integrar-se-ão em
mercados
regionais até se chegar a uma sociedade
mundial, sem nenhum tipo
de barreiras. E assim como os
sectores mais pobres dos pontos
desenvolvidos irão
elevando o seu nível de vida, as regiões menos
avançadas receberão a influência do progresso. As
maiorias
adaptar-se-ão ao novo esquema que técnicos
capacitados, ou
homens de negócios, estarão em
condições de pôr a funcionar. Se
algo falha, não
será pelas naturais leis económicas, mas sim por
deficiências desses especialistas que, como sucede numa
empresa,
terão de ser substituídos todas as vezes que
seja necessário. Por
outro lado, nessa sociedade
"livre", será o público que decidirá
democraticamente entre diferentes opções de um mesmo
sistema.

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3. A
evolução social

Dada a situação actual e


a alternativa que se apresenta para a
consecução de um
mundo melhor, cabe reflectir brevemente em
torno dessa
possibilidade. Com efeito, realizaram-se numerosas
provas
económicas que trouxeram resultados díspares e, face a
isso, diz-se-nos que a nova experiência é a única
solução para os
problemas fundamentais. No entanto,
não chegamos a compreender
alguns aspectos dessa
proposta. Em primeiro lugar, aparece o tema
das leis
económicas. Ao que parece, existiriam certos mecanismos,
como na natureza, que ao jogar livremente regulariam a
evolução
social. Temos dificuldades em aceitar que
qualquer processo
humano e, desde logo o processo
económico, seja da mesma ordem
que os fenómenos
naturais. Cremos, ao invés, que as actividades
humanas
são não-naturais, são intencionais, sociais e
históricas;
fenómenos estes que não existem nem na
natureza em geral nem
nas espécies animais. Tratando-se,
pois, de intenções e de
interesses, também não temos
razão para supôr que os sectores
que detêm o
bem-estar, estejam preocupados com a superação das
dificuldades de outros menos favorecidos. Em segundo
lugar, a
explicação que se nos dá relativamente a que
sempre houve
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Primeira carta) - Silo

grandes diferenças económicas entre uns


poucos e as maiorias e
que, não obstante isto, as
sociedades progrediram, parece-nos
insuficiente. A
História mostra-nos que os povos avançaram,
reclamando
os seus direitos frente aos poderes estabelecidos. O
progresso social não se produziu porque a riqueza
acumulada por
um sector tenha depois transbordado
automaticamente "para baixo".
Em terceiro
lugar, apresentar como modelo determinados países
que,
operando com essa suposta economia livre, hoje têm um
bom
nível de vida, parece um excesso. Esses países
realizaram guerras
de expansão sobre outros, impuseram o
colonialismo, o neo-
colonialismo e a partição de
nações e regiões; arrecadaram com
base na
discriminação e a violência e, finalmente, absorveram
mão-
de-obra barata, ao mesmo tempo que impuseram termos
de
intercâmbio desfavoráveis para as economias mais
débeis. Poderá
argumentar-se que aqueles eram os
procedimentos que se
entendiam como "bons
negócios". Mas se se afirma isso, não se
poderá
sustentar que o desenvolvimento comentado seja
independente de um tipo especial de relação com outros
povos. Em
quarto lugar, fala-se-nos do avanço
científico e técnico e da iniciativa
que se desenvolve
numa economia "livre". Quanto ao avanço
científico e técnico, é de saber que este opera desde
que o homem
inventou a moca, a alavanca, o fogo e assim
seguindo, numa
acumulação histórica que não parece
ter-se ocupado muito das leis
de mercado. Se, ao invés,
se quer dizer que as economias
abundantes sugam talentos,
pagam equipamento e investigação e
que, por último,
são motivadoras porque dão uma melhor
remuneração,
diremos que isto é assim desde épocas milenares e
que
tão-pouco se deve a um tipo especial de economia, mas
sim,
simplesmente, a que nesse lugar existem recursos
suficientes
independentemente da origem de tal
potencialidade económica. Em
quinto lugar, falta o
expediente de explicar o progresso dessas
comunidades
pelo intangível "dom" natural de especiais
talentos,
virtudes cívicas, laboriosidade, organização
e coisas semelhantes.
Este já não é um argumento, mas
sim uma declaração devocional
em que se escamoteia a
realidade social e histórica que explica
como se
formaram esses povos.

Desde logo, temos muito


desconhecimento para compreender como
é que com
semelhantes antecedentes históricos se poderá sustentar
este esquema no futuro imediato, mas isso faz parte de
outra
discussão: a discussão em torno de se existe
realmente tal
economia livre de mercado ou se se trata
antes de proteccionismos
e dirigismos encobertos que, de
repente, abrem determinadas
válvulas, ali onde se sentem
a dominar uma situação, e fecham
outras em caso
contrário. Se isto é assim, tudo o que se acrescente
como uma promessa de avanço ficará somente reservado à
explosão e difusão da ciência e da tecnologia,
independentemente
do suposto automatismo das leis
económicas.

[ Início da Página ]

4. As
futuras experiências

Como aconteceu até hoje,


quando seja necessário, substituir-se-á o
esquema
vigente por outro que "corrija" os defeitos do
modelo
anterior. Desse modo e passo a passo, continuará
a concentrar-se a
riqueza nas mãos de uma minoria cada
vez mais poderosa. É claro
que a evolução não se
deterá, nem tão-pouco as legítimas
aspirações dos
povos. Assim sendo, em pouco tempo serão varridas
as
últimas ingenuidades que asseguram o fim das ideologias,
as
confrontações, as guerras, as crises económicas e
as desordens
sociais. Desde logo, tanto as soluções
como os conflitos se
mundializarão, porque já não
restarão pontos desconectados entre
si. Também há algo
certo: nem os esquemas de dominação actual
poderão
sustentar-se nem tão-pouco as fórmulas de luta que
tiveram
vigência até ao momento actual.

[ Início da Página ]

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Primeira carta) - Silo

5. A
mudança e as relações entre as pessoas

Tanto a regionalização
dos mercados como a reivindicação localista
e das
etnias apontam à desintegração do Estado nacional. A
explosão demográfica nas regiões pobres leva a
migração ao limite
do controlo. A grande família
camponesa desagrega-se, deslocando
a geração jovem para
a aglomeração urbana. A familia urbana
industrial e
pós-industrial reduz-se ao mínimo, enquanto as
macro-
cidades absorvem contigentes humanos formados
noutras
paisagens culturais. As crises económicas e as
reconversões dos
modelos produtivos fazem com que a
discriminação irrompa
novamente. Entretanto, a
aceleração tecnológica e a produção
massiva deixam
obsoletos os produtos no instante de entrar no
circuito
de consumo. A substituição de objectos corresponde-se
com
a instabilidade e a desregulação na relação
humana. A antiga
solidariedade, herdeira do que em algum
momento se chamou
"fraternidade", acabou por
perder significado. Os companheiros de
trabalho, de
estudo e de desporto, e as amizades de outras épocas,
tomam o carácter de competidores; os membros do casal
lutam pelo
domínio, calculando, desde o começo dessa
relação, como será a
quota de benefício mantendo-se
unidos, ou como será essa quota se
se separarem. Nunca
antes o mundo esteve tão comunicado, porém
os
indivíduos padecem cada dia mais de uma angustiosa
incomunicação. Nunca os centros urbanos estiveram mais
povoados, contudo as pessoas falam de
"solidão". Nunca as
pessoas necessitaram mais
do que agora do calor humano, no
entanto qualquer
aproximação converte em suspeita a amabilidade e
a
ajuda. Assim deixaram a nossa pobre gente: fazendo crer a
todo o
infeliz que tem algo importante a perder e que
esse "algo" etéreo é
cobiçado pelo resto da
humanidade! Nessas condições, pode-se-lhe
contar este
conto como se se tratasse da mais autêntica realidade...

[ Início da Página ]

6. Um
conto para aspirantes a executivos

"A sociedade que


se está a pôr em marcha trará finalmente a
abundância. Mas, à parte os grandes benefícios
objectivos, ocorrerá
uma libertação subjectiva da
humanidade. A antiga solidariedade,
própria da pobreza,
não será necessária. Já muitos concordam que
com
dinheiro, ou algo equivalente, se solucionarão quase
todos os
problemas; por conseguinte, os esforços,
pensamentos e sonhos,
estarão lançados nessa
direcção. Com o dinheiro comprar-se-á boa
comida, boa
habitação, viagens, diversões, brinquedos
tecnológicos
e pessoas que façam o que se quiser.
Haverá um amor eficiente,
uma arte eficiente e uns
psicólogos eficientes que repararão os
problemas
pessoais que pudessem restar, os quais, mais adiante, a
nova química cerebral e a engenharia genética acabarão
por
resolver.

Nessa sociedade de
abundância, diminuirá o suicídio, o alcoolismo,
a
toxicodependência, a insegurança citadina e a
delinquência, como
hoje já mostram os países
economicamente mais desenvolvidos (?).
Também
desaparecerá a discriminação e aumentará a
comunicação
entre as pessoas. Ninguém estará pungido
por pensar
desnecessariamente no sentido da vida, na
solidão, na doença, na
velhice e na morte, porque com
adequados cursos e alguma ajuda
terapêutica
conseguir-se-á bloquear esses reflexos que tanto
detiveram o rendimento e a eficiência das sociedades.
Todos
confiarão em todos porque a concorrência no
trabalho, nos estudos
e no casal, acabará por
estabelecer relações maduras.

Finalmente, as
ideologias terão desaparecido e já não se utilizarão
para lavar o cérebro das pessoas. Certamente que
ninguém
impedirá o protesto ou inconformidade com temas
menores, sempre
que para se expressarem paguem aos canais
adequados. Sem
confundir a liberdade com a libertinagem,
os cidadãos reunir-se-ão
em números pequenos (por
razões sanitárias) e poderão expressar-
se em lugares
abertos (sem perturbar com sons contaminantes ou

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Primeira carta) - Silo

com
publicidade que deslustre o "município", ou
como se chame
mais adiante).

Mas o mais
extraordinário ocorrerá quando já não se requeira
controlo policial, pois cada cidadão será alguém
decidido que
cuidará os outros das mentiras que algum
terrorista ideológico
pudesse tratar de inculcar. Esses
defensores terão tanta
responsabilidade que acudirão
pressurosos aos meios de
comunicação, nos quais
encontrarão imediato acolhimento para
alertar a
população; escreverão estudos brilhantes que serão
publicados imediatamente e organizarão fóruns, nos
quais
formadores de opinião de grande cultura
esclarecerão algum
desprevenido que poderia ainda estar
à mercê das forças obscuras
do dirigismo económico,
do autoritarismo, da antidemocracia e do
fanatismo
religioso. Nem sequer será necessário perseguir os
perturbadores, porque num sistema de difusão tão
eficiente ninguém
quererá aproximar-se deles para não
se contaminar. No pior dos
casos,
"desprogramar-se-ão" com eficácia e eles
agradecerão
publicamente a sua reinserção e o
benefício que lhes produzirá
reconhecer as bondades da
liberdade. Por seu lado, aqueles
esforçados defensores,
se é que não estão enviados
especificamente para
cumprir essa importante missão, serão gente
comum que
poderá sair assim do anonimato, ser reconhecida
socialmente pela sua qualidade moral, assinar autógrafos
e, como é
lógico, receber uma merecida retribuição.

A Empresa será a
grande família que favorecerá a qualificação, as
relações e o lazer. A robótica terá suplantado o
esforço físico de
outras épocas e trabalhar para a
Empresa na própria casa será uma
verdadeira
realização pessoal.

Assim, a sociedade
não necessitará de organizações que não
estejam
incluidas na Empresa. O ser humano, que tanto lutou pelo
seu bem-estar, terá finalmente chegado aos céus.
Saltando de
planeta em planeta terá descoberto a
felicidade. Instalado aí, será
um jovem competitivo,
sedutor, aquisitivo, tiunfador, e pragmático
(sobretudo
pragmático)... executivo da Empresa!"

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7. A
Mudança Humana

O mundo está a variar a


grande velocidade e muitas coisas que até
há pouco eram
cridas cegamente já não se podem sustentar. A
aceleração está a gerar instabilidade e
desorientação em todas as
sociedades, sejam estas
pobres ou opulentas. Nesta mudança de
situação, tanto
as lideranças tradicionais e seus "formadores de
opinião" como os antigos lutadores políticos e
sociais deixam de ser
referência para as pessoas. No
entanto, está a nascer uma
sensibilidade que se
corresponde com os novos tempos. É uma
sensibilidade que
capta o mundo como uma globalidade e que se dá
conta de
que as dificuldades das pessoas em qualquer lugar
acabam
por implicar outras, ainda que se encontrem a muita
distância. As comunicações, o intercâmbio de bens e a
veloz
deslocação de grandes contingentes humanos de um
ponto para
outro, mostram esse processo de
mundialização crescente. Também
estão a surgir novos
critérios de acção ao compreender-se a
globalidade de
muitos problemas, percebendo-se que a tarefa
daqueles que
querem um mundo melhor será efectiva se se a faz
crescer
a partir do meio em que se tem alguma influência. Ao
contrário de outras épocas, cheias de frases ocas com
as quais se
procurava reconhecimento externo, hoje
começa-se a valorizar o
trabalho humilde e sentido,
mediante o qual não se pretende
engrandecer a própria
figura, mas sim mudar-se a si mesmo e ajudar
o meio
imediato familiar, laboral e de relação a fazê-lo. Os
que
gostam realmente das pessoas não desprezam essa
tarefa sem
estridências, incompreensível, ao invés,
para qualquer oportunista
formado na antiga paisagem dos
líderes e da massa, paisagem na
qual ele aprendeu a usar
outros para ser catapultado para a cúpula

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social. Quando
alguém comprova que o individualismo
esquizofrénico já
não tem saída e comunica abertamente a todos os
seus
conhecidos o que é que pensa e o que é que faz, sem o
ridículo temor de não ser compreendido; quando se
aproxima de
outros; quando se interessa por cada um e
não por uma massa
anónima; quando promove o
intercâmbio de ideias e a realização de
trabalhos em
conjunto; quando claramente expõe a necessidade de
multiplicar essa tarefa de reconexão num tecido social
destruido por
outros; quando sente que mesmo a pessoa
mais "insignificante" é de
superior qualidade
humana que qualquer desalmado posto no cume
da conjuntura
epocal... Quando sucede tudo isto, é porque no
interior
desse alguém começa a falar novamente o Destino que tem
movido os povos na sua melhor direcção evolutiva; esse
Destino
tantas vezes desviado e tantas vezes esquecido,
mas sempre
reencontrado nas encruzilhadas da história.
Não só se vislumbra
uma nova sensibilidade, um novo
modo de acção, como também,
além disso, uma nova
atitude moral e uma nova disposição táctica
perante a
vida. Se me fizessem precisar o enunciado acima, diria
que as pessoas, ainda que isto se tenha repetido desde
há três
milénios atrás, hoje experimentam como uma
novidade a
necessidade e a verdade moral de tratar os
outros como cada um
quer ser tratado. Acrescentaria que,
quase como leis gerais de
comportamento, hoje se aspira
a:

1. uma certa
proporção, tratando de ordenar as
coisas
importantes da vida, levando-as em
conjunto e evitando que
algumas se adiantem e
outras se atrasem excessivamente;
2. uma certa
adaptação crescente, actuando a
favor da
evolução (não simplesmente da curta
conjuntura) e não
cooperando com as diferentes
formas de involução humana;
3. uma certa
oportunidade, retrocedendo diante
de uma
grande força (não perante qualquer
inconveniente) e
avançando na sua declinação;
4. uma certa
coerência, acumulando acções que
dão a
sensação de unidade e acordo consigo
mesmo, e pondo de
lado aquelas que produzem
contradição e que se registam
como desacordo
entre o que se pensa, sente e faz.

Não creio que seja


preciso explicar por que digo que se está "a
sentir
a necessidade e a verdade moral de tratar os outros como
cada um quer ser tratado", face à objecção que
levanta o facto de
que assim não se actua nestes
momentos. Também não creio que
me deva alongar em
explicações acerca do que entendo por
"evolução" ou por "adaptação
crescente" e não simplesmente por
adaptação de
permanência. Quanto aos parâmetros do retroceder
ou
avançar diante de grandes ou declinantes forças, sem
dúvida que
haveria que contar com indicadores ajustados
que não mencionei.
Por último, isto de acumular
acções unitivas perante as situações
contraditórias
imediatas que nos cabe viver ou, em sentido oposto
pôr
de lado a contradição, a olhos vistos aparece como uma
dificuldade. Isso é certo, mas se revemos o comentado
mais acima,
ver-se-á que mencionei todas estas coisas
dentro do contexto de um
tipo de comportamento ao qual
hoje se começa a aspirar, bastante
diferente do que se
pretendia noutras épocas.

Tratei de anotar algumas


características especiais que se estão a
apresentar,
correspondentes a uma nova sensibilidade, uma nova
forma
de acção interpessoal e um novo tipo de comportamento
pessoal que, parece-me, ultrapassaram a simples crítica
de
situação. Sabemos que a crítica é sempre
necessária, mas quanto
mais necessário é fazer algo
diferente daquilo que criticamos!

Recebam com esta carta os


meus melhores cumprimentos.

Silo.
21/02/91

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Primeira carta) - Silo

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Segunda carta) - Silo

  Segunda
carta aos meus amigos

1. Algumas
posturas face ao processo de mudança actual.
2. O
individualismo, a fragmentação social e a
concentração de
poder nas minorias.
3. Características
da crise.
4. Os
factores positivos da mudança.

Estimados amigos:

Em carta anterior,
referi-me à situação que nos cabe viver e a certas
tendências que os acontecimentos mostram. Aproveitei
para discutir
algumas propostas que os defensores da
economia de mercado
anunciam como se se tratassem de
condições ineludíveis para todo
o progresso social.
Também destaquei a crescente deterioração da
solidariedade e a crise de referências que se verifica
neste
momento. Por último, esbocei algumas
características positivas que
se começam a observar
naquilo que chamei "uma nova
sensibilidade, uma nova
atitude moral e uma nova disposição táctica
perante a
vida".

Alguns dos meus


correspondentes fizeram-me notar o seu
desacordo com o
tom da carta, já que, segundo lhes pareceu, havia
nela
muitas coisas demasiado graves para uma pessoa se
permitir
ironizar. Mas não dramatizemos! É tão
inconsistente o sistema de
provas que apresenta a
ideologia do neoliberalismo, da economia
social de
mercado e da Nova Ordem Mundial, que a coisa não é de
[ Qualquer sugestão é bem vinda ] modo a franzir o sobrolho. O que quero dizer é que tal
ideologia está
morta nos seus fundamentos desde há
muito tempo e que em breve
sobrevirá a crise prática,
de superfície, que é a que finalmente
percebem aqueles
que confundem significado com expressão;
conteúdo com
forma; processo com conjuntura. Tal como as
ideologias do
fascismo e do socialismo real tinham morrido muito
tempo
antes de se ter produzido o seu descalabro prático
posterior,
também o desastre do actual sistema só mais
adiante surpreenderá
os bem-pensantes. Não é isto
muito ridículo? É como ver muitas
vezes um filme muito
mau. Depois de tanta repetição, dedicamo-nos
a
esquadrinhar nas paredes de alvenaria, nas maquilhagens
dos
actores e nos efeitos especiais, enquanto, ao nosso
lado, uma
senhora se emociona por aquilo que vê e que,
para ela, é a própria
realidade. Assim, digo em meu
descargo que não zombei da enorme
tragédia que a
imposição deste sistema significa, mas sim das suas
monstruosas pretensões e do seu grotesco final, final
que já
presenciámos em muitos casos anteriores.

Também recebi
correspondência a reclamar maior precisão na
definição de atitudes que se deveria assumir perante o
processo de
mudança actual. Sobre isto, creio que será
melhor tratar de entender
as posições que tomam
distintos grupos e pessoas isoladas, antes
de fazer
recomendações de qualquer tipo. Limitar-me-ei, pois, a
apresentar as posturas mais populares, dando a minha
opinião nos
casos que me pareçam de maior interesse.

[ Início da Página ]

1. Algumas
posturas face ao processo de mudança actual

No lento progresso da
humanidade foram-se acumulando factores
até ao momento
actual, em que a velocidade de mudança
tecnológica e
económica não coincide com a velocidade de
mudança nas
estruturas sociais e no comportamento humano. Este
desfasamento tende a incrementar-se e a gerar crises
pogressivas.
Esse problema é encarado de diferentes
pontos de vista. Há quem
suponha que o desajuste se
regulará automaticamente e, portanto,
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Segunda carta) - Silo

recomenda que não


se trate de orientar esse processo, que, além do
mais,
seria impossível de dirigir. Trata-se de uma tese
mecanicista
optimista. Há outros que supõem que se
caminha para um ponto de
explosão irremediável. É o
caso dos mecanicistas pessimistas.
Também aparecem as
correntes morais que pretendem deter a
mudança e, dentro
do possível, voltar a supostas fontes
reconfortantes.
Elas representam uma atitude anti-histórica. Mas
também
os cínicos, os estóicos e os epicuristas
contemporâneos
começam a elevar as suas vozes. Uns,
negando importância e
sentido a toda a acção; outros,
enfrentando os factos com firmeza
ainda que tudo saia
mal. Finalmente, os terceiros, tratando de tirar
partido
da situação e pensando simplesmente no seu hipotético
bem-estar, que estendem, quando muito, aos seus filhos.
Como nas
épocas finais de civilizações passadas, muita
gente assume atitudes
de salvação individual, supondo
que não tem sentido nem
possibilidade de êxito qualquer
tarefa que se empreenda em
conjunto. Em todo o caso, o
conjunto tem utilidade para a
especulação estritamente
pessoal e, por isso, os líderes
empresariais, culturais
ou políticos necessitam de manipular e
melhorar a sua
imagem tornando-se credíveis, fazendo outros crer
que
eles pensam e actuam em função dos demais. Claro que
tal
ocupação tem os seus dissabores, porque toda a
gente conhece o
truque e ninguém acredita em ninguém.
Os antigos valores
religiosos, patrióticos, culturais,
políticos e gremiais ficam
submetidos ao dinheiro, num
campo em que a solidariedade e,
portanto, a oposição
colectiva a esse esquema são varridas, ao
mesmo tempo
que o tecido social se descompõe gradualmente.
Depois,
sobrevirá outra etapa na qual o individualismo radical
será
superado... mas esse é um tema para mais adiante.
Com a nossa
paisagem de formação às costas e com as
nossas crenças em crise,
não estamos ainda em
condições de admitir que se aproxima esse
novo momento
histórico. Hoje, detendo uma pequena parcela de
poder ou
dependendo absolutamente do poder de outros, todos nos
encontramos tocados pelo individualismo, no qual tem
claramente
vantagem quem melhor está instalado no
sistema.

[ Início da Página ]

2. O
individualismo, a fragmentação social e a
concentração de
poder nas minorias

Porém, o individualismo
leva necessariamente à luta pela
supremacia do mais
forte e à procura do êxito a qualquer preço. Tal
postura começou com uns poucos que respeitaram certas
regras de
jogo entre si face à obediência dos muitos.
De qualquer maneira,
essa etapa esgotar-se-á num
"todos contra todos" porque mais tarde
ou mais
cedo desequilibrar-se-á o poder a favor do mais forte e
o
resto, apoiando-se entre si ou noutras facções,
terminará por
desarticular um sistema tão frágil. Mas
as minorias foram mudando
com o desenvolvimento
económico e tecnológico, aperfeiçoando os
seus
métodos a tal ponto que, nalguns lugares em situação
de
abundância, as grandes maiorias transferem o seu
descontentamento para aspectos secundários da situação
em que
têm de viver. E insinua-se que, mesmo crescendo o
nível de vida
global, as massas postergadas
contentar-se-ão esperando uma
melhor situação no
futuro, porque já não parece que venham a
questionar o
sistema, mas sim certos aspectos de urgência. Tudo
isso
mostra uma viragem importante no comportamento social. Se
isto é assim, a militância pela mudança ver-se-á
progressivamente
afectada e as antigas forças políticas
e sociais ficarão vazias de
propostas; propagar-se-á a
fragmentação grupal e interpessoal e o
isolamento
individual será medianamente suprido pelas estruturas
produtoras de bens e lazer colectivo concentradas sob uma
mesma
direcção. Nesse mundo paradoxal, terminar-se-á
de erradicar toda a
centralização e burocratismo,
rompendo-se as anteriores estruturas
de direcção e
decisão, mas a mencionada desregulação,
descentralização, liberalização de mercados e
actividades será o
campo mais adequado para que
floresça uma concentração como
não houve em nenhuma
época anterior, porque a absorção do

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Segunda carta) - Silo

capital
financeiro internacional continuará a crescer nas mãos
de
uma banca cada vez mais poderosa. Similar paradoxo
sofrerá a
classe política, ao ter que proclamar os
novos valores que fazem o
Estado perder poder, com o que
o seu protagonismo se verá cada
vez mais comprometido.
Por alguma razão se vão substituindo
desde há algum
tempo palavras como "governo" por outras como
"administração", fazendo os
"públicos" (não os "povos")
compreender que um país é uma empresa.

Por outro lado, e até que


se consolide um poder imperial mundial,
poderão ocorrer
conflitos regionais como noutro tempo aconteceu
entre
países. Que tais confrontações se produzam no campo
económico ou se trasladem à arena da guerra em áreas
restritas;
que como consequência aconteçam desordens
incoerentes e
massivas; que caiam governos completos e
acabem por se
desintegrar países e zonas, isso em nada
afectará o processo de
concentração a que parece
apontar este momento histórico.
Localismos, lutas
interétnicas, migrações e crises continuadas não
alterarão o quadro geral de concentração de poder. E
quando a
recessão e o desemprego afectem também as
populações dos
países ricos, já terá passado a etapa
de liquidação liberal e
começarão as políticas de
controlo, coacção e emergência ao
melhor estilo
imperial... quem poderá então falar de economia de
livre mercado e que importância terá manter posturas
baseadas no
individualismo radical?

Mas devo responder a


outras inquietudes que se me fizeram chegar
relativamente
à caracterização da crise actual e das suas
tendências.

[ Início da Página ]

3.
Características da crise

Comentaremos a crise do
Estado nacional, a crise de regionalização
e
mundialização, e a crise da sociedade, do grupo e do
individuo.

No contexto de um processo
de mundialização crescente acelera-se
a informação e
aumenta a deslocação de pessoas e bens. A
tecnologia e
o poder económico em aumento concentram-se em
empresas
cada vez mais importantes. O mesmo fenómeno de
aceleração no intercâmbio choca com as limitações e
a lentidão que
impõem antigas estruturas como o Estado
nacional. O resultado é
que se tendem a apagar as
fronteiras nacionais dentro de cada
região. Isto leva a
que se deva homogeneizar a legislação dos
países, não
só em matéria de taxas aduaneiras e documentação
pessoal como também naquilo que tem a ver com a
adaptação dos
seus sistemas produtivos. O regime
laboral e de segurança social
seguem na mesma
direcção. Contínuos acordos entre esses países
mostram que um Parlamento, um sistema judicial e um
executivo
comum, darão maior eficácia e velocidade à
gestão dessa região. A
primitiva moeda nacional vai
cedendo lugar a um tipo de signo de
intercâmbio regional
que evita perdas e demoras em cada operação
de
conversão. A crise do Estado nacional é um facto
observável não
só naqueles países que tendem a
incluir-se num mercado regional,
mas também noutros
cujas maltratadas economias mostram uma
estagnação
relativa importante. Por todos os lados, levantam-se
vozes contra as burocracias anquilosadas e pede-se a
reforma
desses esquemas. Em pontos onde um país se
configurou como
resultado recente de partições e
anexações, ou como federação
artificial, avivam-se
antigos rancores e diferenças localistas, étnicas
e
religiosas. O Estado tradicional tem que enfrentar essa
situação
centrífuga por entre crescentes dificuldades
económicas que
questionam precisamente a sua eficácia e
legitimidade. Fenómenos
desse tipo tendem a crescer no
centro da Europa, no Leste e nos
Balcãs. Estas
dificuldades também se agudizam no Médio Oriente,
Levante e Asia Menor. Na Africa, em vários países
delimitados
artificialmente, começam a ser observados os
mesmos sintomas.
Acompanhando essa descomposição,
começam as migrações de

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Segunda carta) - Silo

povos em direcção às
fronteiras, pondo em perigo o equilíbrio zonal.
Bastará
que aconteça um desequilíbrio importante na China para
que mais de uma região seja afectada directamente pelo
fenómeno,
considerando, além disso a instabilidade
actual da antiga União
Soviética e dos países
asiáticos continentais.

Entretanto,
configuraram-se centros económica e tecnológicamente
poderosos que assumem carácter regional: o Extremo
Oriente
liderado pelo Japão, Europa e Estados Unidos. A
descolagem e a
influência dessas zonas mostra um
aparente policentrismo, mas o
desenrolar dos
acontecimentos assinala que os Estados Unidos
somam ao
seu poder tecnológico, económico e político a sua
força
militar, em condições de controlar as mais
importantes áreas de
abastecimento. No processo de
mundialização crescente, tende a
levantar-se esta
superpotência como regedora do processo actual,
em
acordo ou desacordo com os poderes regionais. Este é, no
fundo, o significado da Nova Ordem Mundial. Ao que
parece, não
chegou ainda a época da paz, ainda que se
tenha dissipado, de
momento, a ameaça de guerra mundial.
Explosões localistas,
étnicas e religiosas; desordens
sociais; migrações e conflitos bélicos
em áreas
restritas, parecem ameaçar a suposta estabilidade
actual.
Por outro lado, as áreas postergadas afastam-se
cada vez mais do
crescimento das zonas tecnológica e
economicamente aceleradas e
este desfasamento relativo
agrega ao esquema dificuldades
adicionais. O caso da
América Latina é exemplar neste aspecto,
porque ainda
que a economia de vários dos seus países
experimente um
crescimento importante nos próximos anos, a
dependência
relativamente aos centros de poder tornar-se-á cada
vez
mais notória.

Enquanto cresce o poder


regional e mundial das companhias
multinacionais,
enquanto se concentra o capital financeiro
internacional,
os sistemas políticos perdem autonomia e a legislação
adequa-se aos ditames dos novos poderes. Numerosas
instituições
podem hoje ser supridas, directa ou
indirectamente, pelos
departamentos ou as fundações da
Empresa, que está em
condições em alguns pontos de
prestar assistência ao nascimento,
qualificação,
colocação laboral, casamento, lazer, informação,
segurança social, reforma e morte dos seus empregados e
seus
filhos. O cidadão já pode, em certos lugares,
tornear aqueles velhos
trâmites burocráticos, tendendo
a utilizar um cartão de crédito e,
pouco a pouco, uma
moeda electrónica onde constarão, não só os
seus
gastos e depósitos, mas também todo o tipo de
antecedentes
significativos e situação actual
devidamente computada. Claro que
tudo isto já liberta
uns poucos de lentidões e preocupações
secundárias,
mas estas vantagens pessoais servirão também um
sistema
de controlo embuçado. Ao lado do crescimento
tecnológico
e da aceleração do ritmo de vida, a
participação política diminui; o
poder de decisão
torna-se remoto e cada vez mais intermediado; a
família
reduz-se e fragmenta-se em casais cada vez mais móveis e
em constante mudança; a comunicação interpessoal
bloqueia-se; a
amizade desaparece e a concorrência
envenena todas as relações
humanas ao ponto de,
desconfiando todos de todos, a sensação de
insegurança
já não se basear no facto objectivo do aumento da
criminalidade, mas sim sobretudo num estado de ânimo.
Deve
acrescentar-se que a solidariedade social, grupal e
interpessoal
desaparece velozmente; que a
toxicodependência e o alcoolismo
fazem estragos; que o
suicídio e a doença mental tendem a
incrementar-se
perigosamente. Claro que em todos os lados existe
uma
maioria saudável e razoável, mas os sintomas de tanto
desajuste já não nos permitem falar de uma sociedade
sã. A
paisagem de formação das novas gerações conta
com todos os
elementos de crise que citámos acima e não
fazem só parte da sua
vida a sua qualificação técnica
e laboral, as telenovelas, as
recomendações dos
opinadores dos meios massivos, as
declamações sobre a
perfeição do mundo em que vivemos ou, para
a juventude
mais favorecida, o lazer da mota, as viagens, a roupa, o
desporto, a música e os artefactos electrónicos. Este
problema da
paisagem de formação nas novas gerações
ameaça abrir enormes

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Segunda carta) - Silo

brechas entre grupos de distintas


idades, pondo sobre a mesa uma
dialéctica geracional
virulenta de grande profundidade e de enorme
extensão
geográfica. Está claro que se instalou na cúpula da
escala
de valores o mito do dinheiro e a ele,
crescentemente, subordina-se
tudo. Um contingente
importante da sociedade não quer ouvir nada
daquilo que
lhe recorde o envelhecimento e a morte, desqualificando
qualquer tema que se relacione com o sentido e
significado da vida.
E nisto devemos reconhecer uma certa
razoabilidade, porquanto a
reflexão sobre esses pontos
não coincide com a escala de valores
estabelecida no
sistema. São demasiado graves os sintomas da
crise para
não os ver e, no entanto, uns dirão que é o preço a
pagar
para existir no final do século XX. Outros
afirmarão que estamos a
entrar no melhor dos mundos. O
pano de fundo que opera nessas
afirmações está posto
pelo momento histórico, no qual o esquema
global de
situação não entrou ainda em crise ainda que as crises
particulares se propaguem por todo o lado, mas à medida
que os
sintomas da descomposição se acelerem mudará de
igual modo a
apreciação dos acontecimentos, porque se
sentirá a necessidade de
estabelecer novas prioridades e
novos projectos de vida.

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4. Os
factores positivos da mudança

O desenvolvimento
científico e tecnológico não pode ser posto em
causa
pelo facto de alguns avanços terem sido ou serem
utilizados
contra a vida e o bem-estar. Nos casos em que
se questiona a
tecnologia dever-se-ia fazer uma prévia
reflexão com respeito às
características do sistema
que utiliza o avanço do saber com fins
espúrios. Claro
que o progresso na medicina, comunicações,
robótica,
engenharia genética e tantos outros campos, pode ser
aproveitado em direcção destrutiva. O mesmo se pode
dizer
relativamente à utilização da técnica na
exploração irracional de
recursos, poluição
industrial, contaminação e degradação ambiental.
Mas
tudo isso denuncia o signo negativo que comanda a
economia e
os sistemas sociais. Assim, bem sabemos que
hoje se está em
condições de solucionar os problemas
de alimentação de toda a
humanidade e, contudo,
comprovamos diariamente que existe fome,
desnutrição e
padecimentos infra-humanos, porque o sistema não
está
na disposição de se dedicar a esses problemas,
resignando aos
seus fabulosos ganhos em troca de uma
melhoria global do nível
humano. Também notamos que as
tendências para as
regionalizações e, finalmente, para
a mundialização estão a ser
manipuladas por interesses
particulares em detrimento dos grandes
conjuntos. Mas
está claro que, mesmo nessa distorsão, o processo
em
direcção a uma nação humana universal abre passagem.
A
mudança acelerada que se está a apresentar no mundo
leva a uma
crise global do sistema e a um consequente
reordenamento de
factores. Tudo isso será a condição
necessária para conseguir uma
estabilidade aceitável e
um desenvolvimento harmónico do planeta.
Por
conseguinte, apesar das tragédias que se podem avistar
na
descomposição deste sistema global actual, a
espécie humana
prevalecerá sobre todo o interesse
particular. Na compreensão da
direcção da História,
que começou nos nossos antepassados
hominídios, radica
a nossa fé no futuro. Esta espécie que trabalhou
e
lutou durante milhões de anos para vencer a dor e o
sofrimento
não sucumbirá no absurdo. Por isso, é
necessário compreender
processos mais amplos do que
simples conjunturas e apoiar tudo o
que vá em direcção
evolutiva, ainda que não se vejam os seus
resultados
imediatos. O desalento dos seres humanos valorosos e
solidários atrasa o passo da História. Mas é difícil
compreender esse
sentido se a vida pessoal não se
organiza e orienta também em
direcção positiva. Aqui
não estão em jogo factores mecânicos ou
determinismos
históricos, está em jogo a intenção humana que
tende
a abrir caminho diante de todas as dificuldades.

Espero, meus amigos,


passar a temas mais reconfortantes na
próxima carta,
deixando de lado a observação de factores negativos

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Segunda carta) - Silo

para esboçar propostas concordantes com a nossa fé num


futuro
melhor para todos.

Recebam com esta carta os


meus melhores cumprimentos.

Silo
05/12/91

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo

  Terceira
carta aos meus amigos

1. A
mudança e a crise
2. Desorientação
3. Crise na
vida das pessoas
4. Necessidade
de dar orientação à própria vida
5. Direcção
e mudança de situação
6. O
comportamento coerente
7. As duas
propostas
8. Chegar a
toda a sociedade a partir do meio imediato
9. O meio
em que se vive
10. A
coerência como direcção de vida
11. A
proporção nas acções como avanço em
direcção à
coerência
12. A
oportunidade das acções como avanço em
direcção à
coerência
13. A
adaptação crescente como avanço em direcção
à
coerência

Estimados amigos:

Espero que a presente


carta sirva para ordenar e simplificar as
minhas
opiniões a respeito da situação actual. Também queria
considerar certos aspectos da relação entre os
indivíduos e entre
eles e o meio social em que vivem.
[ Qualquer sugestão é bem vinda ]
[ Início da Página ]

1. A
mudança e a crise

Nesta época de grande


mudança estão em crise os indivíduos, as
instituições e a sociedade. A mudança será cada vez
mais rápida tal
como as crises individuais,
institucionais e sociais. Isto anuncia
perturbações que
talvez não sejam assimiladas por amplos sectores
humanos.

[ Início da Página ]

2.
Desorientação

As tranformações que
estão a ocorrer tomam direcções inesperadas,
produzindo uma desorientação geral em relação ao
futuro e ao que
se deve fazer no presente. Na realidade,
não é a mudança que nos
perturba, já que nela
observamos muitos aspectos positivos. O que
nos inquieta
é não saber em que direcção vai a mudança e para
onde orientar a nossa actividade. .

[ Início da Página ]

3. Crise
na vida das pessoas

A mudança
está a ocorrer na economia, na tecnologia e na
sociedade; sobretudo está a operar-se nas nossas vidas:
no nosso
meio familiar e laboral, nas nossas relações
de amizade. Estão a
modificar-se as nossas ideias e o
que acreditávamos sobre o
mundo, sobre as outras pessoas
e sobre nós mesmos. Muitas coisas
estimulam-nos, mas
outras confundem-nos e paralisam-nos. O
comportamento dos
demais e o nosso parece-nos incoerente,
contraditório e
sem direcção clara, tal como sucede com os
acontecimentos que nos rodeiam.

[ Início da Página ]

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo

4.
Necessidade de dar orientação à própria vida

Portanto, é
fundamental dar direcção a essa mudança inevitável e
não há outra forma de fazê-lo senão começando por si
mesmo. Em
cada um deve dar-se direcção a estas
mudanças desordenadas cujo
rumo desconhecemos.

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5. Direcção
e mudança de situação

Como os
indivíduos não existem isolados, se realmente
direccionam
a sua vida, modificarão a relação com os
outros na sua familia, no
seu trabalho e onde lhes caiba
actuar. Este não é um problema
psicológico que se
resolve dentro da cabeça de indivíduos isolados,
mas
sim mudando a situação em que se vive com outros
mediante
um comportamento coerente. Quando celebramos
êxitos ou nos
deprimimos por causa dos nossos fracassos,
quando fazemos
planos para o futuro ou nos propomos
introduzir mudanças na nossa
vida, esquecemos o ponto
fundamental: estamos em situação de
relacção com
outros. Não podemos explicar o que nos acontece,
nem
escolher, sem referência a certas pessoas e a certos
âmbitos
sociais concretos. Essas pessoas que têm
especial importância para
nós e esses âmbitos sociais
em que vivemos põem-nos numa
situação precisa, a
partir da qual pensamos, sentimos e actuamos.
Negar isto
ou não tê-lo em conta cria enormes dificuldades. A
nossa
liberdade de escolha e acção está delimitada
pela situação em que
vivemos. Qualquer mudança que
desejemos operar não pode ser
traçada em abstracto, mas
sim em referência à situação em que
vivemos.

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6. O
comportamento coerente

Se
pudéssemos pensar, sentir e actuar na mesma direcção,
se o
que fazemos não nos criasse contradição com o que
sentimos,
diríamos que a nossa vida tem coerência.
Seríamos fiáveis para nós
mesmos, ainda que não
necessariamente fiáveis para o nosso meio
imediato.
Deveríamos conseguir essa mesma coerência na relação
com outros, tratando os demais como queremos ser
tratados.
Sabemos que pode existir uma espécie de
coerência destrutiva,
como observamos nos racistas, nos
exploradores, nos fanáticos e
nos violentos, mas está
clara a sua incoerência na relação
porque
tratam os outros de um modo muito diferente
daquele que desejam
para si mesmos. Essa unidade de
pensamento, sentimento e acção,
essa unidade entre o
trato que se pede e o trato que se dá, são
ideais que
não se realizam na vida diária. Este é o ponto.
Trata-se
de um ajuste de condutas a essas propostas;
trata-se de valores
que, tomados com seriedade,
direccionam a vida,
independentemente das dificuldades
que se enfrentem para realizá-
los. Se observarmos bem as
coisas, não estaticamente mas sim em
dinâmica,
compreenderemos isto como uma estratégia que deve ir
ganhando terreno à medida que passe o tempo. Aqui sim
valem as
intenções, ainda que as acções não
coincidam no princípio com
elas, sobretudo se aquelas
intenções são mantidas, aperfeiçoadas e
ampliadas.
Essas imagens do que se deseja conseguir são
referências firmes que dão direcção em todas as
situações. E isto
que dizemos não é tão complicado.
Não nos surpreende, por
exemplo, que uma pessoa oriente
a sua vida para conseguir uma
grande fortuna, no entanto,
essa pessoa pode saber
antecipadamente que não a
conseguirá. De qualquer maneira, o seu
ideal
impulsiona-a ainda que não tenha resultados relevantes.
Então,
por que razão não se pode entender que mesmo
sendo a época
adversa ao trato que se pede com o trato
que se dá, mesmo sendo
adversa a pensar, sentir e actuar
na mesma direcção, esses ideais
de vida possam dar
direcção às acções humanas?

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo

7. As
duas propostas

Pensar,
sentir e actuar na mesma direcção e tratar os outros
como
se deseja ser tratado, são duas propostas tão
singelas que podem
ser entendidas como simples
ingenuidades pela gente habituada às
complicações. No
entanto, atrás dessa aparente candura, há uma
nova
escala de valores em cujo ponto mais alto se põe a
coerência,
uma nova moral para a qual não é
indiferente qualquer tipo de
acção, uma nova
aspiração que implica ser consequente no esforço
para
dar direcção aos acontecimentos humanos. Por trás
dessa
aparente candura, aposta-se no sentido da vida
pessoal e social que
será verdadeiramente evolutivo ou
caminhará para a desintegração.
Já não podemos
confiar que velhos valores dêem coesão às
pessoas num
tecido social deteriorado dia-a-dia pela desconfiança, o
isolamento e o individualismo crescente. A antiga
solidariedade entre
os membros das classes,
associações, instituções e grupos vai
sendo
substituída pela concorrência selvagem a que não
escapa o
casal nem a irmandade familiar. Neste
processo de demolição,
não se elevará uma nova
solidariedade com base em ideias e
comportamentos de um
mundo que já era, mas sim graças à
necessidade
concreta de cada um de direccionar a sua vida,
para o que
terá de modificar o seu próprio meio. Essa
modificação, se é verdadeira e profunda, não se pode
pôr em
andamento por acção de imposições, por leis
externas ou por
fanatismos de qualquer tipo, mas sim pelo
poder da opinião e da
acção mínima conjunta entre as
pessoas que fazem parte do meio
em que se vive.

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8. Chegar
a toda a sociedade a partir do meio imediato.

Sabemos que
ao mudar positivamente a nossa situação estaremos a
influir no nosso meio e outras pessoas compartilharão
este ponto de
vista, dando lugar a um sistema de
relações humanas em
crescimento. Teremos que
perguntar-nos: Por que razão deveríamos
ir mais além
de onde começamos? Simplesmente por coerência com
a
proposta de tratar os outros como queremos que nos
tratem. Ou
não levaríamos aos outros algo que se
mostrou fundamental para a
nossa vida? Se a influência
começa a desenvolver-se é porque as
relações, e
portanto os componentes do nosso meio, se ampliaram.
Esta
é uma questão que deveríamos ter em conta desde o
começo,
porque mesmo quando a nossa acção começa a
aplicar-se num
ponto reduzido, a projecção dessa
influência pode chegar muito
longe. Não tem nada de
estranho pensar que outras pessoas
decidam juntar-se na
mesma direcção. Afinal de contas, os grandes
movimentos
históricos seguiram o mesmo caminho: começaram
pequenos, como é lógico, e desenvolveram-se graças a
que as
pessoas os consideraram intérpretes das suas
necessidades e
inquietudes. Actuar no meio imediato, mas
com o olhar posto no
progresso da sociedade é coerente
com tudo o que se disse. De
outro modo, para que
faríamos referência a uma crise global que
deve ser
enfrentada resolutamente, se tudo terminasse em
indivíduos isolados para quem os outros não têm
importância? Por
necessidade das pessoas que coincidam
em dar uma nova direcção
à sua vida e aos
acontecimentos, surgirão âmbitos de discussão e
comunicação directa. Depois, a difusão através de
todos os meios
permitirá ampliar a superfície de
contacto. O mesmo acontecerá com
a criação de
organismos e instituições compatíveis com este
projecto.

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9. O
meio em que se vive


comentámos que é tão veloz e tão inesperada a
mudança, que
este impacto se está a receber como crise
na qual se debatem
sociedades inteiras, instituições e
indivíduos. Por isso, é
imprescindível dar direcção
aos acontecimentos. No entanto, como

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo

poderia uma pessoa


fazê-lo, submetida como está à acção de
eventos
maiores? É evidente que só se pode direccionar aspectos
imediatos da vida e não o funcionamento das
instituições nem da
sociedade. Por outro lado,
pretender dar direcção à própria vida não
é coisa
fácil, já que cada um vive em situação, não vive
isolado, vive
num meio. Este meio, podemos vê-lo tão
amplo como o Universo, a
Terra, o país, o Estado, a
província, etc. Contudo, há um meio
imediato que é
onde desenvolvemos as nossas actividades. Esse
meio é
familiar, laboral, de amizades, etc. Vivemos em
situação com
referência a outras pessoas e esse é o
nosso mundo particular do
qual não podemos prescindir.
Ele actua sobre nós e nós sobre ele de
um modo directo.
Se temos alguma influência, é sobre esse meio
imediato.
Mas acontece que tanto a influência que exercemos como
a
que recebemos estão afectadas, por sua vez, por
situações mais
gerais, pela crise e a desorientação.

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10. A
coerência como direcção de vida

Se se
quisesse dar alguma direcção aos acontecimentos,
haveria
que começar pela própria vida e, para fazê-lo,
teríamos de ter em
conta o meio em que actuamos. Ora
bem, a que direcção podemos
aspirar? Sem dúvida,
àquela que nos proporcione coerência e apoio
num meio
tão variável e imprevisível. Pensar, sentir e actuar
na
mesma direcção é uma proposta de coerência na
vida. No entanto,
isto não é fácil porque nos
encontramos numa situação que não
escolhemos
completamente. Estamos a fazer coisas que
necessitamos,
mesmo que em grande desacordo com o que
pensamos e
sentimos. Estamos metidos em situações que não
governamos. Actuar com coerência, mais que um facto, é
uma
intenção, uma tendência que podemos ter presente,
de maneira que
a nossa vida se vá direccionando para
esse tipo de comportamento.
É claro que unicamente
influindo nesse meio, poderemos mudar
parte da nossa
situação. Ao fazê-lo, estaremos direccionando a
relação com outros e outros partilharão essa conduta.
Se a isso se
objecta que algumas pessoas mudam de meio
com certa frequência,
por causa do seu trabalho ou por
outros motivos, responderemos
que isso não modifica nada
o exposto, já que sempre se estará em
situação,
sempre se estará num dado meio. Se pretendemos
coerência, o trato que dermos aos outros terá de ser do
mesmo
género que o trato que exigimos para nós. Assim,
nestas duas
propostas encontramos os elementos básicos
de direcção até onde
chegam as nossas forças. A
coerência avança contanto avance o
pensar, o sentir e o
actuar na mesma direcção. Esta coerência
estende-se a
outros, porque não há outra maneira de fazê-lo, e, ao
estender-se a outros, começamos a tratá-los do modo que
gostaríamos de ser tratados. Coerência e solidariedade
são
direcções, aspirações de condutas a conseguir.

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11. A
proporção nas acções como avanço em direcção à
coerência.

Como avançar
em direcção coerente? Em primeiro lugar,
necessitaremos
de uma certa proporção no que fazemos
quotidianamente.
É necessário estabelecer quais são as questões
mais
importantes na nossa actividade. Devemos priorizar o
fundamental para que as coisas funcionem, depois o
secundário e
assim seguindo. Possivelmente atendendo a
duas ou três
prioridades, teremos um bom quadro de
situação. As prioridades não
podem inverter-se,
também não podem separar-se tanto que se
desequilibre a
nossa situação. As coisas devem ir em conjunto, não
isoladamente, evitando que umas se adiantem e outras se
atrasem.
Frequentemente, cegamo-nos pela importância de
uma actividade e,
desta maneira, desequilibra-se-nos o
conjunto... no final, o que
considerávamos tão
importante também não se pode realizar,
porque a nossa
situação geral ficou afectada. Também é certo que

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta3.html 4/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo

às
vezes se apresentam assuntos de urgência a que devemos
dedicar-nos, mas é claro que não se pode viver
postergando outros
que são importantes para a situação
geral em que vivemos.
Estabelecer prioridades e levar a
actividade em proporção
adequada, é um avanço
evidente em direcção à coerência.

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12. A
oportunidade das acções como avanço em direcção à
coerência.

Existe uma
rotina quotidiana dada pelos horários, os cuidados
pessoais e o funcionamento do nosso meio. No entanto,
dentro
dessas pautas há uma dinâmica e riqueza de
acontecimentos que as
pessoas superficiais não sabem
apreciar. Há aqueles que
confundem a sua vida com as
suas rotinas, mas isto não é assim de
todo, já que
muito frequentemente têm que escolher dentro das
condições que lhes impõe o meio. Na verdade, vivemos
entre
inconvenientes e contradições, mas convirá não
confundir ambos os
termos. Entendemos por
"inconvenientes" as moléstias e
impedimentos
que enfrentamos. Não são enormemente graves, mas
claro
que se são numerosos e repetidos aumentam a nossa
irritação
e fadiga. Certamente, estamos em condições
de superá-los: não
determinam a direcção da nossa
vida, não impedem que levemos
adiante um projecto. São
obstáculos no caminho, que vão desde a
menor
dificuldade física a problemas em que estamos a ponto de
perder o rumo. Os inconvenientes admitem uma gradação
importante, mas mantêm-se num limite que não impede de
avançar.
Coisa diferente acontece com o que chamamos
"contradições".
Quando o nosso projecto não
pode ser realizado, quando os
acontecimentos nos lançam
numa direcção oposta à desejada,
quando nos
encontramos num círculo vicioso que não podemos
romper,
quando não podemos direccionar minimamente a nossa
vida,
estamos tomados pela contradição. A contradição é
uma
espécie de inversão na corrente da vida que nos
leva a retroceder
sem esperança. Estamos a descrever o
caso em que a incoerência
se apresenta com maior crueza.
Na contradição, opõe-se o que
pensamos, o que sentimos
e fazemos. Apesar de tudo, sempre há
possibilidade de
direccionar a vida, mas é necessário saber quando
fazê-lo. A oportunidade das acções é algo que não
temos em conta
na rotina quotidiana e isto é assim
porque muitas coisas estão
codificadas. Mas, no que se
refere aos inconvenientes importantes e
às
contradições, as decisões que tomamos não podem estar
expostas à catástrofe. Em termos gerais, devemos
retroceder diante
de uma grande força e avançar com
resolução quando essa força se
debilite. Há uma
grande diferença entre o temeroso que retrocede ou
se
imobiliza ante qualquer inconveniente e aquele que actua
sobrepondo-se às dificuldades, sabendo que,
precisamente,
avançando pode torneá-las. Acontece que,
às vezes, não é possível
avançar, porque se levanta
um problema superior às nossas forças e
arremeter sem
cálculo leva-nos ao desastre. O grande problema que
enfrentemos será também dinâmico e a relação de
forças mudará,
ou porque vamos crescendo em influência
ou porque a sua
influência diminui. Quebrada a relação
anterior, é o momento de
proceder com resolução, já
que uma indecisão ou uma postergação
fará com que
novamente se modifiquem os factores. A execução da
acção oportuna é a melhor ferramenta para produzir
mudanças de
direcção.

[ Início da Página ]

13. A
adaptação crescente como avanço em direcção à
coerência.

Consideremos o tema da
direcção, da coerência que queremos
conseguir.
Adaptar-nos a certas situações terá a ver com essa
proposta, porque adaptar-nos ao que nos leva em
direcção oposta à
coerência é uma grande
incoerência. Os oportunistas padecem de
uma grande
miopia com respeito a este tema. Eles consideram que

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a
melhor forma de viver é a aceitação de tudo, é a
adaptação a tudo;
pensam que aceitar tudo, sempre que
provenha de quem tem poder,
é uma grande adaptação,
mas é claro que a sua vida dependente
está muito longe
do que entendemos por coerência. Distinguimos
entre a
desadaptação, que nos impede de ampliar a nossa
influência; a adaptação decrescente, que nos deixa na
aceitação das
condições estabelecidas; e a
adaptação crescente, que faz crescer a
nossa
influência em direcção às propostas que temos vindo a
comentar.

Sintetizando:

1.
Há uma mudança veloz no mundo, motorizada pela
revolução tecnológica, que está a chocar com as
estruturas estabelecidas e com a formação e os
hábitos de vida das sociedades e dos indivíduos.

2.
Este desfasamento gera crises progressivas em
todos
os campos e não há razão para supôr que se vai
deter, antes pelo contrário, tenderá a
incrementar-se.

3. O
inesperado dos acontecimentos impede prever
que
direcção tomarão os factos, as pessoas que nos
rodeiam e, em suma, a nossa própria vida.

4.
Muitas das coisas que pensávamos e
acreditávamos
já não nos servem. Também não estão
à vista
soluções que provenham de uma sociedade,
instituições e indivíduos que padecem do mesmo
mal.

5. Se
decidirmos trabalhar para fazer face a estes
problemas, teremos que dar direcção à nossa vida,
buscando coerência entre o que pensamos, sentimos
e
fazemos. Como não estamos isolados, essa
coerência
terá que chegar à relação com os outros,
tratando-os do mesmo modo que queremos para nós
mesmos. Estas duas propostas não podem ser
cumpridas
rigorosamente, mas constituem a direcção
de que
necessitamos, sobretudo se as tomarmos
como
referências permamentes e as aprofundarmos.

6.
Vivemos em relação imediata com outros e é nesse
meio onde temos que actuar para dar direcção
favorável à nossa situação. Esta não é uma
questão
psicológica, uma questão que se possa
resolver na
cabeça isolada dos indivíduos: é um
tema relacionado
com a situação que se vive.

7.
Sendo consequentes com as propostas que
tratamos de
levar adiante, chegamos à conclusão que
o que é
positivo para nós e para o nosso meio
imediato, deve
ser alargado a toda a sociedade. Junto
a outros que
coincidem na mesma direcção,
implementaremos os
meios mais adequados para que
uma nova solidariedade
encontre o seu rumo. Por isso,
apesar de actuar tão
especificamente no nosso meio
imediato não
perderemos de vista uma situação global
que afecta
todos os seres humanos e que requer a
nossa ajuda,
assim como nós necessitamos da ajuda
dos outros.

8. As
mudanças inesperadas levam-nos a pensar
seriamente
na necessidade de direccionar a nossa
vida.

9. A
coerência não começa e termina em cada um,
está
antes relacionada com um meio, com outras
pessoas. A
solidariedade é um aspecto da coerência
pessoal.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta3.html 6/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo

10. A
proporção nas acções consiste em estabelecer
prioridades de vida e operar com base nelas, evitando
que se desequilibrem.

11. A
oportunidade do actuar tem em conta retroceder
perante uma grande força e avançar com resolução
quando esta se debilita. Esta ideia é importante
para
efeitos de produzir mudanças na direcção da
vida, se
estamos submetidos à contradição.

12.
É tão inconveniente a desadaptação num meio em
que não podemos mudar nada, como a adaptação
decrescente, na qual nos limitamos a aceitar as
condições estabelecidas. A adaptação crescente
consiste num aumento da nossa influência no meio e
em direcção coerente.

Recebam com esta carta os


meus melhores cumprimentos.

Silo
17/12/91

[ Início da Página ]

  

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta3.html 7/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo

  Quarta
carta aos meus amigos

1. Arranque
das nossas ideias
2. Natureza,
intenção e abertura do ser humano
3. A
abertura social e histórica do ser humano
4. A
acção transformadora do ser humano
5. A
superação da dor e do sofrimento como projectos
vitais
básicos
6. Imagem,
crença, olhar e paisagem
7. As
gerações e os momentos históricos
8. A
violência, o Estado e a concentração de poder
9. O
processo humano

Estimados amigos:

Em cartas anteriores dei a


minha opinião sobre a sociedade, os
grupos humanos e os
indivíduos em relação a este momento de
mudança e
perda de referências que nos cabe viver; critiquei
certas
tendências negativas no desenvolvimento dos
acontecimentos e
destaquei as posturas mais conhecidas de
quem pretende dar
resposta às urgências do momento. É
claro que todas as
apreciações, bem ou mal formuladas,
correspondem ao meu
particular ponto de vista e este, por
sua vez, situa-se num conjunto
de ideias que lhe servem
de base. Certamente por isto, recebi
sugestões a
animar-me a explicitar a partir de "onde" faço
as minhas
críticas ou desenvolvo as minhas propostas. Ao
fim e ao cabo, pode-
[ Qualquer sugestão é bem vinda ] se dizer qualquer coisa com muita ou
pouca originalidade, como
sucede com as ideias que
diariamente nos passam pela cabeça e
que não
pretendemos justificar. Essas ideias hoje podem ser de um
tipo e amanhã do tipo oposto, não passando da
frivolidade da
apreciação quotidiana. Por isso, em
geral, cada dia acreditamos
menos nas opiniões dos
outros e de nós próprios, dando por assente
que se
tratam de apreciações de conjuntura que podem mudar em
poucas horas, como acontece com as oportunidades da
Bolsa. E se
nas opiniões há algo com maior permanência
é, na melhor das
hipóteses, o consagrado pela moda, que
depois é substituído pela
moda seguinte. Não estou a
fazer uma defesa do imobilismo no
campo das opiniões,
mas sim a destacar a falta de consistência nas
mesmas,
porque, na verdade, seria muito interessante que a
mudança se desse com base numa lógica interna e não de
acordo
com o sopro de ventos erráticos. Mas quem é que
está disposto a
aguentar lógicas internas numa época
de palmadas de afogado!
Agora mesmo, enquanto escrevo,
noto que o que se disse não pode
entrar na cabeça de
certos leitores porque, nesta altura, não terão
encontrado três possíveis códigos exigidos por eles: 1.
que o que se
está a explicar lhes sirva de passatempo,
ou 2. que lhes mostre de
seguida como
podem utilizá-lo no seu negócio, ou 3.
que coincida
com o consagrado pela moda. Tenho a certeza
de que esta conversa
que começa com "Estimados
amigos:" e que chega até aqui, deixa-
os totalmente
desorientados como se estivéssemos a escrever em
sânscrito. No entanto, é de registar como essas mesmas
pessoas
compreendem coisas difíceis que vão desde as
operações bancárias
mais sofisticadas até às
delícias da técnica administrativa
computada. A esses,
torna-se-lhes impossível compreender que
estamos a falar
das opiniões, dos pontos de vista e das ideias que
lhes
servem de base; que estamos a falar da impossibilidade de
sermos entendidos nas coisas mais simples se não têm
correspondência com a paisagem que têm armada pela sua
educação e pelas suas compulsões. Assim estão as
coisas!

Esclarecido o anterior,
tratarei de resumir nesta carta as ideias que
fundamentam
as minhas opiniões, críticas e propostas, tendo
especial cuidado de não ir muito além do slogan
publicitário, porque,
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 1/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo

como explica o sábio jornalismo


especializado, as ideias
organizadas são
"ideologias" e estas, como as doutrinas, são
ferramentas de lavagem ao cérebro daqueles que se opõem
à
liberdade de comércio e economia social de mercado
das opiniões.
Hoje, respondendo às exigências do
Pós-modernismo, quer dizer, às
exigências da haute-couture
(roupa de noite, gravata tipo laço,
ombreiras,
sapatilhas e casaco arregaçado); da arquitectura
desconstrutivista e da decoração desestruturada,
estamos
compelidos a que não encaixem as peças do
discurso. E a não
esquecer que a crítica da linguagem
também repudia o sistemático,
estrutural e
processual!... É claro que tudo isto tem
correspondência
com a ideologia dominante da Empresa que
sente horror pela
História e pelas ideias em cuja
formação não participou e entre as
quais não pôde
colocar uma substancial percentagem de acções.

Brincadeiras à parte,
comecemos já o inventário das nossas ideias,
pelo menos
das que consideramos mais importantes. Devo realçar
que
boa parte delas foram apresentadas na conferência que
dei em
Santiago de Chile em 23/05/91.

[ Início da Página ]

1.
Arranque das nossas ideias.

A nossa concepção não


se inicia admitindo generalidades, mas sim
estudando o
particular da vida humana; o particular da existência; o
particular do registo pessoal do pensar, do sentir e do
actuar. Esta
postura inicial torna-a incompatível com
todo o sistema que arranque
da "ideia", da
"matéria", do "inconsciente", da
"vontade", da
"sociedade", etc. Se
alguém admite ou rejeita qualquer concepção,
por
lógica ou extravagante que esta seja, sempre será ele
próprio
que está em jogo, admitindo ou rejeitando: ele
estará em jogo, não a
sociedade, ou o inconsciente ou a
matéria.

Falemos, pois, da vida


humana. Quando me observo, não do ponto
de vista
fisiológico, mas sim existencial, encontro-me posto num
mundo dado, não construído nem escolhido por mim.
Encontro-me
em situação relativamente a fenómenos que,
começando pelo meu
próprio corpo, são ineludíveis. O
corpo, como constituinte
fundamental da minha
existência, é, além do mais, um fenómeno
homogéneo
com o mundo natural em que actua e sobre o qual actua
o
mundo. Mas a naturalidade do corpo tem para mim
diferenças
importantes relativamente ao resto dos
fenómenos, a saber: 1. o
registo
imediato que dele possuo; 2. o registo
que através dele tenho
dos fenómenos externos; e 3.
a disponibilidade de alguma das suas
operações mercê
da minha intenção imediata.

[ Início da Página ]

2.
Natureza, intenção e abertura do ser humano.

Porém, acontece que o


mundo me aparece não só como um
aglomerado de objectos
naturais, mas sobretudo como uma
articulação de outros
seres humanos e de objectos e signos
produzidos ou
modificados por eles. A intenção que noto em mim,
aparece como um elemento interpretativo fundamental do
comportamento dos outros e assim como constituo o mundo
social
por compreensão de intenções, sou constituído
por ele. Desde logo,
estamos a falar de intenções que
se manifestam na acção corporal.
É graças às
expressões corporais ou à percepção da situação em
que se encontra o outro, que posso compreender os seus
significados, a sua intenção. Por outro lado, os
objectos naturais e
humanos aparecem-me como sendo
prazenteiros ou dolorosos e
trato de colocar-me face a
eles modificando a minha situação.

Deste modo, não estou


fechado ao mundo do natural e dos outros
seres humanos,
antes pelo contrário, a minha característica é
precisamente a "abertura". A minha consciência
configurou-se
intersubjectivamente já que usa códigos
de raciocínio, modelos

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 2/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo

emotivos, esquemas de acção que


registo como sendo "meus", mas
que também
reconheço noutros. E, desde logo, está o meu corpo
aberto ao mundo enquanto o percepciono e sobre ele actuo.
O
mundo natural, à diferença do humano, aparece-me sem
intenção.
Claro que posso imaginar que as pedras, as
plantas e as estrelas
possuem intenção, mas não vejo
como chegar a um efectivo diálogo
com elas. Mesmo os
animais em que, às vezes, capto a chispa da
inteligência, aparecem-me impenetráveis e em lenta
modificação de
dentro da sua natureza. Vejo sociedades
de insectos totalmente
estruturadas, mamíferos
superiores a usar rudimentos técnicos, mas
repetindo os
seus códigos em lenta modificação genética, como se
fossem sempre os primeiros representantes das suas
respectivas
espécies. E quando comprovo as virtudes dos
vegetais e dos
animais modificados e domesticados pelo
Homem, observo a
intenção deste a abrir-se caminho e a
humanizar o mundo.

[ Início da Página ]

3. A
abertura social e histórica do ser humano.

É-me
insuficiente a definição do Homem pela sua
sociabilidade, já
que isto não contribui para a
distinção em relação a numerosas
espécies; a sua
força de trabalho também não é o característico,
comparada com a de animais mais poderosos; nem sequer a
linguagem o define na sua essência, porque sabemos de
códigos e
formas de comunicação entre diversos
animais. Ao invés, ao
encontrar-se cada novo ser humano
com um mundo modificado por
outros e ao ser constituído
por esse mundo intencionado, descubro a
sua capacidade de
acumulação e incorporação no temporal;
descubro a sua
dimensão histórico-social, não simplesmente social.
Vistas assim as coisas, posso tentar uma definição,
dizendo: o
Homem é o ser histórico cujo modo de acção
social transforma a sua
própria natureza. Se admito
isto, terei de aceitar que esse ser pode
transformar
intencionalmente a sua constituição física. E assim
está
a acontecer. Começou com a utilização de
instrumentos que, postos
adiante do seu corpo como
"próteses" externas, lhe permitiram
alongar a
sua mão, aperfeiçoar os seus sentidos e aumentar a sua
força e qualidade de trabalho. Naturalmente não estava
dotado para
os meios líquido e aéreo e, no entanto,
criou condições para se
deslocar neles, até começar a
emigrar do seu meio natural, o
planeta Terra. Hoje, além
disso, está a internar-se no seu próprio
corpo mudando
os seus órgãos; intervindo na sua química cerebral;
fecundando in vitro e manipulando os seus genes.
Se, com a ideia
de "natureza", se quis
assinalar o permanente, tal ideia é hoje
inadequada,
ainda que se queira aplicá-la ao mais objectal do ser
humano, isto é, ao seu corpo. E no que se refere a uma
"moral
natural", a um "direito
natural" ou a "instituições naturais",
encontramos, opostamente, que nesse campo tudo é
histórico-social
e nada aí existe por natureza.

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4. A
acção transformadora do ser humano.

Contígua à concepção
da natureza humana tem estado a operar
outra que nos
falou da passividade da consciência. Esta ideologia
considerou o Homem como uma entidade que operava em
resposta
aos estímulos do mundo natural. O que começou
em tosco
sensualismo, pouco a pouco foi afastado por
correntes historicistas
que conservaram no seu seio a
mesma ideia em torno da
passividade. E ainda quando
privilegiaram a actividade e a
transformação do mundo
em relação à interpretação dos seus
factos,
conceberam a referida actividade como resultante de
condições externas à consciência. Porém, aqueles
antigos
preconceitos em torno da natureza humana e da
passividade da
consciência hoje impõem-se,
transformados em neo-evolucionismo,
com critérios tais
como a selecção natural que se estabelece na luta
pela
sobrevivência do mais apto. Tal concepção zoológica,
na sua
versão mais recente, ao ser transplantada para o
mundo humano,

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 3/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo

tratará de superar as anteriores


dialécticas de raças ou de classes
com uma dialéctica
estabelecida segundo leis económicas
"naturais"
que auto-regulam toda a actividade
social. Assim, uma vez mais, o
ser humano concreto fica
submergido e objectivizado.

Mencionámos as
concepções que para explicar o Homem começam
de
generalidades teóricas e sustentam a existência de uma
natureza
humana e de uma consciência passiva. Em sentido
oposto, nós
sustentamos a necessidade de arranque a
partir da particularidade
humana; sustentamos o fenómeno
histórico-social e não natural do
ser humano e também
afirmamos a actividade da sua consciência
transformadora
do mundo de acordo com a sua intenção. Vimos a
sua vida
em situação e o seu corpo como objecto natural
percebido
imediatamente e submetido, também
imediatamente, a numerosos
ditames da sua intenção. Por
conseguinte, impõem-se as seguintes
perguntas: como é
que a consciência é activa, quer dizer, como é
que
pode intencionar sobre o corpo e através dele
transformar o
mundo? Em segundo lugar, como é que a
constituição humana é
histórico-social? Estas
perguntas devem ser respondidas a partir da
existência
particular, para não recair em generalidades teóricas a
partir das quais se desprende depois um sistema de
interpretação.
Desta maneira, para responder à
primeira pergunta, ter-se-á que
apreender com evidência
imediata como é que a intenção actua
sobre o corpo e,
para responder à segunda, haverá que partir da
evidência da temporalidade e da intersubjectividade no
ser humano
e não de leis gerais da História e da
sociedade. No nosso trabalho,
Contribuições ao
Pensamento, trata-se de dar resposta
precisamente a
essas duas perguntas. No primeiro ensaio de
Contribuições,
estuda-se a função que cumpre a imagem na
consciência,
destacando a sua aptidão para mover o corpo no
espaço.
No segundo ensaio do mesmo livro, estuda-se o tema da
historicidade e sociabilidade. A especificidade destes
temas afasta-
nos em demasia da presente carta, por isso
remetemos para o
material citado.

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5. A
superação da dor e do sofrimento como projectos vitais
básicos.

Dissemos em Contribuições
que o destino natural do corpo humano
é o mundo e
basta ver a sua conformação para verificar esta
asserção. Os seus sentidos e os seus aparelhos de
nutrição,
locomoção, reprodução, etc., estão
naturalmente conformados para
estar no mundo, mas, além
disso, a imagem lança através do corpo
a sua carga
transformadora; não o faz para copiar o mundo, para ser
reflexo da situação dada, mas sim, pelo contrário,
para modificar a
situação previamente dada. Neste
acontecer, os objectos são
limitações ou ampliações
das possibilidades corporais e os corpos
alheios aparecem
como multiplicações dessas possibilidades, já que
são
governados por intenções que se reconhecem similares
às que
manejam o próprio corpo. Por que razão
necessitaria o ser humano
de transformar o mundo e
transformar-se a si mesmo? Pela situação
de finitude e
carência espacio-temporal em que se encontra e que
regista como dor física e sofrimento mental. Assim, a
superação da
dor não é simplesmente uma resposta
animal, mas sim uma
configuração temporal em que prima
o futuro e que se converte em
impulso fundamental da
vida, ainda que esta não se encontre urgida
num momento
dado. Por isso, à parte a resposta imediata, reflexa e
natural, a resposta diferida para evitar a dor está
impulsionada pelo
sofrimento psicológico ante o perigo e
está representada como
possibilidade futura ou facto
actual, em que a dor está presente
noutros seres
humanos. A superação da dor aparece, pois, como um
projecto básico que guia a acção. Isso é o que
possibilitou a
comunicação entre corpos e intenções
diversas, no que chamamos
a "constituição
social". A constituição social é tão histórica
como a
vida humana, é configurante da vida humana. A sua
transformação é
contínua, mas de um modo diferente à
da natureza, porque nesta as
mudanças não se dão
mercê de intenções.

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 4/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo
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6. Imagem,
crença, olhar e paisagem.

Um dia qualquer, entro no


meu quarto e percepciono a janela,
reconheço-a, é-me
conhecida. Tenho uma nova percepção dela,
mas, além
disso, actuam antigas percepções que convertidas em
imagens estão retidas em mim. No entanto, observo que
num ângulo
do vidro há uma rachadela... "isso não
estava aí", digo-me, ao
comparar a nova percepção
com o que retenho de percepções
anteriores; além
disso, experimento uma espécie de surpresa. A
janela de
actos anteriores ficou retida em mim, não passivamente
como uma fotografia, mas sim actuante como são actuantes
as
imagens. O retido actua face ao que percepciono, ainda
que a sua
formação pertença ao passado. Trata-se de um
passado sempre
actualizado, sempre presente. Antes de
entrar no meu quarto, dava
por assente, dava como
suposto, que a janela devia estar ali em
perfeitas
condições; não é que o estivesse a pensar,
simplesmente
que contava com isso. A janela em particular
não estava presente
nos meus pensamentos desse momento,
mas estava co-presente,
estava dentro do horizonte de
objectos contidos no meu quarto. É
graças à
co-presença, à retenção actualizada e sobreposta à
percepção, que a consciência infere mais do que
percepciona.
Nesse fenómeno, encontramos o funcionamento
mais elementar da
crença. No exemplo, é como se me
dissesse: "eu cria que a janela
estava em perfeitas
condições". Se, ao entrar no meu quarto,
aparecessem fenómenos próprios de um campo diferente de
objectos, por exemplo, uma lancha ou um camelo, tal
situação
surrealista seria para mim incrível, não
porque esses objectos não
existam, mas sim porque a sua
colocação estaria fora do campo de
co-presença, fora
da paisagem em que me formei e que actua em
mim
sobrepondo-se a todas as coisas que percepciono.

Ora bem, em qualquer


instante presente da minha consciência,
posso observar o
entrecruzamento de retenções e de futurizações
que
actuam co-presentemente e em estrutura. O instante
presente
constitui-se na minha consciência como um campo
temporal activo
de três tempos diferentes. As coisas
aqui são muito diferentes das
que acontecem no tempo de
calendário, em que o dia de hoje não
está tocado pelo
de ontem nem pelo de amanhã. No calendário e no
relógio, o "agora" diferencia-se do "já
não" e do "ainda não" e, além
disso, os
acontecimentos estão ordenados um ao lado do outro, em
sucessão linear, e não posso pretender que isso seja
uma estrutura,
mas sim um agrupamento dentro de uma
série total à que chamo
"calendário". Mas
já voltaremos a isto quando considerarmos o tema
da
historicidade e temporalidade.

Por ora, continuemos com o


atrás dito referente a que a consciência
infere mais do
que percepciona, já que conta com aquilo que vindo
do
passado, como retenção, se sobrepõe à percepção
actual. Em
cada olhar que lanço a um objecto, vejo nele
coisas deformadas. Isto
não estamos a afirmá-lo no
sentido explicado pela física moderna,
que claramente
expõe a nossa incapacidade para detectar o átomo
e o
comprimento de onda que está por cima e por baixo dos
nossos
limiares de percepção; isto estamos a dizê-lo
com referência à
sobreposição que as imagens das
retenções e futurizações fazem
da percepção. Assim,
quando assisto no campo a um belo
entardecer, a paisagem
natural que observo não está determinada
em si, mas
antes determino-a eu, constituo-a por um ideal estético
a
que adiro. E essa especial paz que experimento,
entrega-me a
ilusão de que contemplo passivamente,
quando, na realidade, estou
a pôr activamente numerosos
conteúdos que se sobrepõem ao
simples objecto natural.
E isto não é sómente válido para este
exemplo, mas
sim para todo o olhar que lanço à realidade.

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7. As
gerações e os momentos históricos.

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 5/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo

A organização social
continua-se e amplia-se, mas isto não pode
acontecer
sómente pela presença de objectos sociais que foram
produzidos no passado e que se utilizam para viver o
presente e
projectar-se para o futuro. Tal mecânica é
demasiado elementar para
poder explicar o processo da
civilização. A continuidade está dada
pelas gerações
humanas que não estão postas uma ao lado da
outra, mas
antes, coexistindo, interactuam e transformam-se. Estas
gerações, que permitem continuidade e desenvolvimento,
são
estruturas dinâmicas, são o tempo social em
movimento, sem o qual
a civilização cairia no estado
natural e perderia a sua condição de
sociedade.
Acontece, por outro lado, que em qualquer momento
histórico coexistem gerações de distinto nível
temporal, de distintas
retenção e futurização, que
configuram paisagens de situação e
crenças diferentes.
O corpo e o comportamento de crianças e
anciãos delata,
para as gerações activas, uma presença de onde se
vem
e para onde se vai. Por sua vez, para os extremos dessa
tripla
relação, também se verificam ubicações de
temporalidade extremas.
Mas isto não permanece jamais
parado, porque, enquanto as
gerações activas envelhecem
e os anciãos morrem, as crianças vão-
se transformando
e começam a ocupar posições activas. Entretanto,
novos
nascimentos reconstituem continuamente a sociedade.
Quando, por abstracção, se "detém" o
incessante fluir, podemos
falar de "momento
histórico", no qual todos os membros situados no
mesmo cenário social podem ser considerados
"contemporâneos",
viventes de um mesmo tempo;
mas observamos que não são
coetâneos, que não têm a
mesma idade, a mesma temporalidade
interna quanto a
paisagens de formação, quanto a situação actual e
quanto a projecto. Na realidade, uma dialéctica
geracional
estabelece-se entre as "franjas"
mais contíguas, que tratam de
ocupar a actividade
central, o presente social, de acordo com os
seus
interesses e crenças. É a temporalidade social interna
que
explica estruturalmente o devir histórico, em que
interactuam
distintas acumulações geracionais e não a
sucessão de fenómenos
linearmente postos um ao lado do
outro, como no tempo de
calendário, segundo nos tem
explicado alguma ou outra Filosofia da
História.

Constituído socialmente
num mundo histórico no qual vou
configurando a minha
paisagem, interpreto aquilo a que lanço o meu
olhar.
Está a minha paisagem pessoal, mas também uma paisagem
colectiva que responde, nesse momento, a grandes
conjuntos.
Como dissemos antes, coexistem, num mesmo
tempo presente,
distintas gerações. Num momento, para
exemplificar a grosso modo,
existem aqueles que
nasceram antes do transístor e os que o
fizeram entre
computadores. Numerosas configurações diferem em
ambas
as experiências, não só no modo de actuar como também
no
de pensar e sentir... e aquilo que na relação social
e no modo de
produção funcionava numa época, deixa de
fazê-lo lentamente ou,
às vezes, de modo abrupto.
Esperava-se um resultado no futuro e
esse futuro chegou,
mas as coisas não saíram do modo que tinham
sido
projectadas. Nem aquela acção, nem aquela
sensibilidade, nem
aquela ideologia coincidem com a nova
paisagem que se vai
impondo socialmente.

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8. A
violência, o Estado e a concentração de poder.

O ser humano, pela sua


abertura e liberdade para escolher entre
situações,
diferir respostas e imaginar o seu futuro, pode também
negar-se a si mesmo, negar aspectos do corpo, negá-lo
completamente como no suicídio ou negar outros. Esta
liberdade
permitiu que alguns se apropriem ilegitimamente
do todo social, quer
dizer, que neguem a liberdade e a
intencionalidade de outros,
reduzindo-os a próteses, a
instrumentos das suas intenções. Aí está
a essência
da discriminação, sendo a sua metodologia a violência
física, económica, racial e religiosa. A violência
pode instaurar-se e
perpetuar-se graças ao manejo do
aparelho de regulação e controlo
social, isto é: o
Estado. Em consequência, a organização social

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 6/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo

requer
um tipo avançado de coordenação a salvo de toda a
concentração de poder, seja esta privada ou estatal.
Quando se
pretende que a privatização de todas as
áreas económicas põe a
sociedade a salvo do poder
estatal, oculta-se que o verdadeiro
problema está no
monopólio ou oligopólio que transfere o poder das
mãos
estatais para as mãos de um Paraestado, manejado, já
não
por uma minoria burocrática, mas sim pela minoria
particular que
aumenta o processo de concentração.

As diversas estruturas
sociais, desde as mais primitivas às mais
sofisticadas,
tendem à concentração progressiva até que se
imobilizam e começa a sua etapa de dissolução, da qual
arrancam
novos processos de reorganização num nível
mais alto do que o
anterior. Desde o começo da
História, a sociedade aponta à
mundialização e assim
se chegará a uma época de máxima
concentração de
poder arbitrário, com características de império
mundial, já sem possibilidades de maior expansão. O
colapso do
sistema global acontecerá pela lógica da
dinâmica estrutural de
qualquer sistema fechado, em que
necessáriamente tende a
aumentar a desordem. Mas, assim
como o processo das estruturas
tende à mundialização,
o processo de humanização tende à abertura
do ser
humano, à superação do Estado e do Paraestado; tende
à
descentralização e à desconcentração a favor de
uma coordenação
superior entre particularidades sociais
autónomas. Que tudo acabe
num caos e num reinício da
civilização ou comece uma etapa de
humanização
progressiva já não dependerá de inexoráveis
desígnios mecânicos, mas sim da intenção dos
indivíduos e dos
povos, do seu compromisso com a
mudança do mundo e de uma
ética da liberdade que, por
definição, não poderá ser imposta. E
haver-se-á de
aspirar já não a uma Democracia formal, manejada
como
até agora pelos interesses das facções, mas sim a uma
Democracia real, na qual a participação directa possa
realizar-se
instantâneamente, graças à tecnologia de
comunicação, hoje em dia
em condições de fazê-lo.

[ Início da Página ]

9. O
processo humano.

Necessariamente, aqueles
que reduziram a humanidade de outros,
provocaram com isso
nova dor e sofrimento, reiniciando-se no seio
da
sociedade a antiga luta contra a adversidade natural, mas
agora
entre aqueles que querem "naturalizar"
outros, a sociedade e a
História e, por outro lado, os
oprimidos que necessitam humanizar-
se, humanizando o
mundo. Por isso, humanizar é sair da
objectivação para
afirmar a intencionalidade de todo o ser humano e
a
primazia do futuro sobre a situação actual. É a imagem
e
representação de um futuro possível e melhor, o que
permite a
modificação do presente e o que possibilita
qualquer revolução e
qualquer mudança. Por
conseguinte, não basta a pressão de
condições
opressivas para que se desencadeie a mudança, antes
pelo
contrário, é necessário dar-se conta que a mudança é
possível
e que depende da acção humana. Esta luta não
é entre forças
mecânicas, não é um reflexo natural;
é uma luta entre intenções
humanas. E é isto
precisamente o que nos permite falar de
opressores e
oprimidos, de justos e injustos, de heróis e cobardes.
É
o único que permite praticar com sentido a
solidariedade social e o
compromisso com a libertação
dos discriminados, sejam estes
maiorias ou minorias.

Enfim, considerações
mais detalhadas em torno da violência, do
Estado, das
instituições, da lei e da religião, aparecem no
trabalho
intitulado A Paisagem Humana, incluído
no livro Humanizar a Terra,
para o qual remeto
para não exceder os limites desta carta.

Quanto ao sentido dos


actos humanos, não creio que se trate de
convulsões sem
significado nem de "paixões inúteis" que
concluam
no absurdo da dissolução. Creio que o destino
da humanidade está
orientado pela intenção que,
tornando-se cada vez mais consciente

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 7/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo

nos povos, abre


passagem em direcção a uma nação humana
universal. Do
atrás comentado, surge com evidência que a
existência humana não começa nem acaba num círculo
vicioso
de encerramento e que uma vida que aspire à
coerência deve
abrir-se, ampliando a sua influência a
pessoas e âmbitos,
promovendo, não só uma concepção
ou umas ideias, mas
também acções precisas que ampliem
crescentemente a
liberdade.

Na próxima carta,
sairemos destes temas estritamente doutrinais
para nos
referirmos novamente à situação actual e à acção
pessoal
no mundo social.

Recebam com esta carta os


meus melhores cumprimentos.

Silo
19/12/91

[ Início da Página ]

  

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 8/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo

  Quinta
carta aos meus amigos

1. O tema
mais importante: saber se se quer viver e em que
condições se quer fazê-lo
2. A
liberdade humana, fonte de todo o sentido
3. A
intenção, orientadora da acção
4. Que
faremos com a nossa vida?
5. Os
interesses imediatos e a consciência moral
6. O
sacrifício dos objectivos em troca de
conjunturas de
sucesso. Alguns defeitos habituais
7. O Reino
do Secundário

Estimados amigos:

Entre tanta gente com


preocupações pelo desenvolvimento dos
acontecimentos
actuais, encontro-me frequentemente com antigos
militantes de partidos ou organizações políticas
progressistas.
Muitos deles ainda não recuperaram do
choque que lhes provocou a
queda do "socialismo
real". Em todo o mundo, centenas de milhar de
activistas optam por se recluirem nas suas ocupações
quotidianas,
dando a entender com essa atitude que os
seus velhos ideais foram
enclausurados. Aquilo que para
mim representou um facto mais na
desintegração de
estruturas centralizadas, de resto esperado
durante duas
décadas, para eles foi uma imprevista catástrofe. No
entanto, este não é o momento de se envaidecer, porque
a
dissolução dessa forma política gerou um
desequilíbrio de forças
[ Qualquer sugestão é bem vinda ] que permite o avanço expedito
de um sistema monstruoso nos seus
procedimentos e na sua
direcção.

Há um par de anos assisti


a um acto público em que velhos
operários, mães
trabalhadoras com os seus filhos, e reduzidos
grupos de
jovens, erguiam o punho entoando os acordes da sua
canção. Ainda se via o ondular de bandeiras e
escutava-se o eco de
gloriosos lemas de luta... e ao ver
isto, considerei que tanta vontade,
risco, tragédia e
esforço movido por genuinos impulsos, se afastava
por um
túnel que levava à absurda negação das possibilidades
de
transformação. Teria querido acompanhar essa cena
comovedora
com um canto aos ideais do velho militante,
aquele que sem pensar
em êxitos, mantinha em pé o seu
orgulho combativo. Tudo isso me
provocou uma enorme
ambiguidade e hoje, à distância, pergunto-
me: que
aconteceu com tantas boas pessoas que solidariamente
lutavam, para além dos seus interesses imediatos, por um
mundo
que acreditavam ser o melhor dos mundos? Não penso
apenas
naqueles que pertenciam a partidos políticos mais
ou menos
institucionalizados, mas sim em todos os que
escolheram pôr a sua
vida ao serviço de uma causa que
criam ser justa. E, desde logo,
não posso medi-los pelos
seus erros nem classificá-los
simplesmente como
expoentes de uma filosofia política. Hoje, é
mister
resgatar o valor humano e reanimar ideais numa direcção
possível.

Reconsidero o escrito até


aqui e peço desculpas aos que não tendo
participado
daquelas tendências e actividades se sentem alheios a
estes temas, mas também a eles reclamo o esforço de ter
em conta
a acção humana. Sobre isto trata a carta de
hoje, um pouco dura,
mas destinada a remover o derrotismo
que parece ter-se apoderado
da alma militante.

[ Início da Página ]

1. O tema
mais importante: saber se se quer viver e em que
condições se quer fazê-lo.

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 1/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo

Milhões de
pessoas lutam hoje por subsistir, ignorando se amanhã
poderão vencer a fome, a doença, o abandono. As suas
carências
são tais que qualquer coisa que tentem para
sair desses problemas
complica ainda mais as suas vidas.
Ficarão imóveis num suicídio
simplesmente adiado?;
tentarão actos desesperados?; que tipo de
actividade ou
de risco ou de esperança estarão dispostas a
enfrentar?
Que fará todo aquele que por razões económicas ou
sociais ou simplesmente pessoais se encontre em
situação limite?
Em qualquer caso, o tema mais
importante consistirá sempre em
saber se se quer viver e
em que condições se quer fazê-lo.

[ Início da Página ]

2. A
liberdade humana, fonte de todo o sentido.

Mesmo aqueles
que não se encontrem em situação limite
questionarão
a sua condição actual, formando um esquema de vida
futura. Mesmo aquele que prefira não pensar na sua
situação ou que
transfira para outros essa
responsabilidade, escolherá um esquema
de vida. Assim, a
liberdade de escolha é uma realidade desde o
momento em
que nos questionamos o viver e pensamos nas
condições
em que queremos fazê-lo. Que lutemos ou não por esse
futuro, sempre a liberdade de escolha fica em pé. E é
unicamente
este facto da vida humana que pode justificar
a existência dos
valores, da moral, do direito e da
obrigação, ao mesmo tempo que
permite refutar toda a
política, toda a organização social, todo o
estilo de
vida que se instale sem justificar o seu sentido, sem
justificar para que serve ao ser humano concreto e
actual. Qualquer
moral ou lei ou constituição social
que parta de princípios
supostamente superiores à vida
humana, coloca esta em situação
de contingência,
negando o seu essencial sentido de liberdade.

[ Início da Página ]

3. A
intenção, orientadora da acção.

Nascemos
entre condições que não escolhemos. Não escolhemos o
nosso corpo nem o meio natural nem a sociedade nem o
tempo e o
espaço que nos calhou por sorte ou por
desgraça. A partir daí, e em
algum momento, contamos
com liberdade para nos suicidarmos ou
continuar a viver e
para pensar nas condições em que o queremos
fazer.
Podemos revoltar-nos contra uma tirania e triunfar ou
morrer
na empresa; podemos lutar por uma causa ou
facilitar a opressão;
podemos aceitar um modelo de vida
ou tratar de modificá-lo.
Também nos podemos enganar na
escolha. Podemos crer que ao
aceitar todo o estabelecido
numa sociedade, por perverso que seja,
nos adaptamos
perfeitamente e que isso nos oferece as melhores
condições de vida; ou então, podemos supôr que ao
questionar tudo,
sem fazer diferenças entre o importante
e o secundário, ampliamos
o nosso campo de liberdade,
quando na realidade, a nossa
influência para mudar as
coisas diminui num fenómeno de
inadaptação
acumulativo. Podemos, por último, priorizar a acção,
ampliando a nossa influência numa direcção possível
que dê sentido
à nossa existência. Em todos os casos,
teremos que escolher entre
condições, entre
necessidades, e fá-lo-emos de acordo com a nossa
intenção e com o esquema de vida que nos proponhamos.
Desde
logo, a própria intenção poderá ir mudando em
tão acidentado
caminho.

[ Início da Página ]

4. Que
faremos com a nossa vida?

Não nos podemos pôr esta


questão em abstracto, mas sim em
relação à situação
em que vivemos e às condições em que
queremos viver.
Para já, estamos numa sociedade e em relação a
outras
pessoas e o nosso destino joga-se com o destino destas.
Se
cremos que tudo está bem no presente e o futuro
pessoal e social
que vislumbramos parece-nos adequado,
não há outro tema senão

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 2/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo

seguir adiante, talvez com


pequenas reformas, mas na mesma
direcção. Em sentido
oposto, se pensamos que vivemos numa
sociedade violenta,
desigual e injusta, ferida por crises progressivas
que se
correspondem com uma mudança vertiginosa no mundo,
imediatamente reflectimos sobre a necessidade de
transformações
pessoais e sociais profundas. A crise
global afecta-nos e arrasta-
nos, perdemos referências
estáveis e torna-se-nos cada vez mais
difícil
planificar o nosso futuro. O mais grave é que não
podemos
levar adiante uma acção de mudança coerente,
porque as antigas
formas de luta que conhecíamos,
fracassaram e porque a
desintegração do tecido social
impede a mobilização de conjuntos
humanos importantes.
Desde logo, acontece-nos o mesmo que a
todas as pessoas
que sofrem as dificuldades actuais e intuem a
pioria das
condições. Ninguém pode nem quer mover-se em acções
destinadas ao fracasso e, ao mesmo tempo, ninguém pode
continuar
assim. E o pior é que com a nossa inacção
estamos a deixar a
passagem livre a maiores desigualdades
e injustiças. Formas de
discriminação e atropelo, que
julgávamos superadas, renascem com
força. Se a
desorientação e a crise são tais, por que razão não
poderiam servir de referência social novas
mostruosidades cujos
representantes digam com clareza, e
depois exijam, que devemos
todos e cada um de nós fazer?
Esses primitivismos são hoje mais
possíveis do que
nunca, porque o seu discurso elementar propaga-
se com
facilidade e chega mesmo a quem se encontra em situação
limite.

Com maior ou menor


informação, muita gente sabe que a situação é
crítica em termos aproximados aos que temos vindo a
utilizar. No
entanto, a opção que se está a seguir
cada vez com mais vigor é a
de ocupar-se da própria
vida, fazendo caso omisso das dificuldades
de outros e do
que acontece no contexto social. Em muitos casos,
celebramos as objecções que se fazem ao Sistema, mas
estamos
muito longe de tentar uma mudança de
condições. Sabemos que a
Democracia actual é
simplesmente formal e que responde aos
ditames dos grupos
económicos, contudo lavamos a nossa
consciência em
ridículas votações aos partidos maioritários, porque
sofremos a chantagem de apoiar esse sistema ou
possibilitar o
surgimento das ditaduras. Nem
pensamos que o facto de votar e
reclamar o voto a favor
dos pequenos partidos pode-se
constituir num fenómeno de
interesse no futuro, do mesmo
modo que o apoio à
formação de organizações laborais fora do
padrão
estabelecido pode converter-se em importante factor de
aglutinação. Rejeitamos o trabalho arraigado em
freguesias, em
povoações, em sectores citadinos e no
nosso meio imediato,
porque nos parece demasiado
limitado, mas sabemos que é aí
onde começará a
recomposição do tecido social no momento
da crise das
estruturas centralizadas. Preferimos atentar ao
jogo de
superfície, de cúpulas, de notáveis e de formadores de
opinião em vez de ter o ouvido presto para escutar o
subterrâneo apelo do povo. Protestamos pela acção
massiva
dos meios de difusão controlados pelos grupos
económicos em
vez de nos lançarmos a influir nos
pequenos meios e em todo o
resquício de comunicação
social. E se continuamos a militar em
alguma
organização política progressista, andamos à pesca de
algum incoerente com acesso à imprensa, de alguma
personalidade que represente a nossa corrente porque é
mais
ou menos potável para os meios informativos do
Sistema. No
fundo, acontece-nos tudo isto, porque cremos
que estamos
vencidos e não nos resta outra alternativa
senão amassar em
silêncio a nossa amargura. E
a essa derrota chamamos "dedicar-
nos à nossa
própria vida". Entretanto, "a nossa própria
vida"
acumula contradições e vamos perdendo o
sentido e a capacidade
de escolha das condições em que
queremos viver. Em suma, não
concebemos ainda a
possibilidade de um grande Movimento de
mudança que
referencie e aglutine os factores mais positivos da
sociedade e, evidentemente, a decepção impede-nos de
nos
representarmos como protagonistas desse processo de
transformação.

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 3/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo
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5. Os
interesses imediatos e a consciência moral.

Devemos escolher as
condições em que queremos viver. Se
actuamos contra o
nosso projecto de vida, não escaparemos à
contradição
que nos colocará à mercê de uma longa cadeia de
acidentes. Nessa direcção, qual será o travão que
poderemos
aplicar aos factos da nossa própria vida?
Somente o dos interesses
imediatos. Assim, podemos
imaginar numerosas situações limite de
que trataremos
de sair sacrificando todo o valor e todo o sentido,
porque o nosso primário será o benefício imediato.
Para evitar
dificuldades, trataremos de eludir qualquer
compromisso que nos
aproxime da situação limite, mas
há-de acontecer que os próprios
acontecimentos nos
porão em posições que não teremos escolhido.
Não se
requer uma especial subtileza para compreender que
acontecerá com as pessoas que nos são mais próximas se
partilharem a mesma postura. Por que razão não haveriam
elas de
escolher contra nós se estão movidas por
idêntico imediatismo? Por
que razão toda uma sociedade
não haveria de tomar a mesma
direcção? Não existiria
limite para a arbitrariedade e venceria o
poder
injustificado; fá-lo-ia com manifesta violência se
encontrasse
resistências e, a não ser assim,
bastar-lhe-ia a persuasão de valores
insustentáveis a
que teríamos de aderir como justificação, sentindo
no
fundo dos nossos corações o sem-sentido da vida.
Então, teria
triunfado a desumanização da Terra.

Escolher um projecto de
vida entre condições impostas está longe
de ser um
simples reflexo animal. Pelo contrário, é a
característica
essencial do ser humano. Se eliminamos
aquilo que o define,
pararemos a sua História e
poderemos esperar o avanço da
destruição em cada passo
que se dê. Se se depõe o direito de
escolher um
projecto de vida e um ideal de sociedade,
encontrar-
nos-emos com caricaturas de Direito, de valor e
de sentido. Se essa
é a situação, que podemos
sustentar contra toda a neurose e a
desordem que
começamos a sentir à nossa volta? Cada um de nós
verá
o que faz com a sua vida, mas também cada um deve ter
presente que as suas acções chegarão mais além de si
mesmo e
isto será assim desde a menor à maior
capacidade de influência.
Acções unitivas, com
sentido, ou acções contraditórias ditadas pelo
imediatismo, são ineludíveis em toda a situação em
que se
comprometa a direcção de vida.

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6. O
sacrifício dos objectivos em troca de conjunturas de
sucesso. Alguns defeitos habituais.

Toda a pessoa comprometida


com a acção conjunta, todo aquele
que actua com outros
na consecução de objectivos sociais com
sentido, deve
ter claro muitos defeitos que no passado arruinaram as
melhores causas. Maquiavelismos ridículos, personalismos
por cima
da tarefa conjunta proclamada e autoritarismos
de todo o tipo,
enchem os livros de História e a nossa
memória pessoal.

Com que direito se utiliza


uma doutrina, uma formulação de acções,
uma
organização humana, afastando as prioridades que elas
exprimem? Com que direito propomos a outros um objectivo
e um
destino, se depois situamos como valor primário um
suposto êxito ou
uma suposta necessidade de conjuntura?
Qual seria a diferença em
relação ao pragmatismo que
dizemos repudiar? Onde estaria a
coerência entre o que
pensamos, sentimos e fazemos? Os
instrumentadores
de todos os tempos efectuaram a básica
fraude moral de
apresentar a outros uma imagem futura
mobilizadora,
guardando para si uma imagem de êxito imediato.
Se se
sacrifica a intenção acordada com outros, abre-se a
porta
a qualquer traição negociada com o bando que se
diz combater.
E, nesse caso, justifica-se tal indecência
com uma suposta
"necessidade" que se escondeu
na proposta inicial. Fique claro

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 4/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo

que não
estamos a falar da mudança de condições e de tácticas
em
que todo aquele que participa compreende a relação
entre elas e o
objectivo mobilizador proposto. Também
não nos estamos a referir
aos erros de apreciação que
se podem cometer nas implementações
concretas. Estamos
a observar a imoralidade que distorce as
intenções e
perante a qual é imprescindível pôr-se alerta. É
importante estarmos atentos a nós próprios e esclarecer
outros para
que saibam antecipadamente que, ao quebrar os
seus
compromissos, as nossas mãos ficam tão livres como
as suas.

Certamente que existem


diferentes tipos de astúcias na utilização
das pessoas
e que não há forma de fazer um catálogo completo.
Também não se trata de nos convertermos em
"censores morais",
porque bem sabemos que por
trás dessa atitude está a consciência
repressora, cujo
objectivo é sabotar toda a acção que não controla,
imobilizando com a desconfiança mútua os companheiros
de luta.
Quando se introduz a contrabando supostos
valores que vêm de
outro campo para julgar as nossas
acções, é bom recordar que essa
"moral"
está em questão e que não coincide com a nossa... como
poderiam esses estar entre nós?

Por último, é importante


atentar ao gradualismo enganoso que se
costuma praticar
para inserir subtilmente situações que vão contra
os
objectivos delineados. Nesse posicionamento encontra-se
todo
aquele que nos acompanha por motivos diferentes aos
que
expressa. A sua direcção mental é torcida desde o
princípio e
apenas espera a oportunidade de se
manifestar. Entretanto,
gradualmente, irá utilizando
códigos manifestos ou velados que
respondem a um sistema
de linguagem de dois sentidos. Essa
atitude quase sempre
coincide com a daqueles que, em nome dessa
organização
militante, desreferenciam outra gente de boa fé,
fazendo
cair a responsabilidade das suas barbaridades sobre a
cabeça das pessoas autênticas.

Não se trata aqui de


enfatizar o que desde há muito tempo se tem
conhecido
como os "problemas internos" de toda a
organização
humana, mas pareceu-me conveniente
mencionar a raiz
conjunturalista que actua nisto tudo e
que corresponde à
apresentação de uma imagem futura
mobilizadora, guardando para
si uma imagem de êxito
imediato.

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7. O
Reino do Secundário.

É de tal forma a
situação actual que acusadores de todo o tipo e
penugem
exigem explicações em tom inquisidor, dando por assente
que se lhes deve demonstrar inocência. O interessante de
tudo isto
é que a sua táctica reside no enfâse do
secundário e,
consequentemente, no ocultamento das
questões primárias. De
algum modo, essa atitude faz
recordar o funcionamento da
Democracia nas empresas. Com
efeito, os empregados discutem
sobre se, no escritório,
as secretárias devem estar perto ou longe
das janelas;
se há que colocar flores ou cores agradáveis, o que
não
está mal. Posteriormente votam e, por maioria,
decide-se o destino
dos móveis e da decoração, o que
também não está mal. Porém, no
momento de discutir e
propôr uma votação em torno da direcção e
das
acções da empresa, produz-se um silêncio aterrador...
imediatamente a Democracia congela-se, porque na
realidade está-
se no Reino do Secundário. Não acontece
nada diferente com os
fiscais do Sistema. De súbito, um
jornalista coloca-se nesse papel,
fazendo com que o nosso
gosto por certas comidas pareça suspeito
ou exigindo
"compromisso" e discussão em questões
desportivas,
astrológicas ou de catecismo. Desde logo,
nunca falta alguma
acusação grosseira à qual,
supõe-se, devemos responder e não
escasseia a montagem
de contextos, a utilização de palavras
carregadas de
dois sentidos e a manipulação de imagens
contraditórias. É bom recordar que aqueles que se
colocam num
bando oposto a nós têm o direito a que lhes
expliquemos por que

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 5/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo

razão eles não estão em


condições de nos julgarem e porque é que
nós temos
plena justificação para julgá-los a eles. Que, quando
muito, aqueles devem defender a sua postura das nossas
objecções. Desde logo, que isto se possa fazer
dependerá de certas
condições e da habilidade pessoal
dos contendores, mas não deixa
de revoltar ver como
alguns que têm todo o direito de tomar a
iniciativa
baixam a cabeça diante de tanta inconsistência. Também
é
patético observar no écran certos lideres a dizer
palavritas
engenhosas, dançando como ursos com a
coordenadora do
programa ou submetendo-se a todo o tipo
de vexames desde que
figurem em primeiro plano. Ao seguir
esses maravilhosos exemplos,
muita gente bem intencionada
não consegue compreender como é
que se deformou ou
substituíu a sua mensagem, no momento de
fazê-lo chegar
a públicos amplos através de certos meios de
comunicação. O comentado destaca aspectos do Reino do
Secundário que operam afastando os temas importantes,
resultando
disto a desinformação dos públicos a quem
se pretende esclarecer.
Curiosamente, muita gente
progressista cai nesse laço, sem
entender muito bem como
é que a aparente publicidade que se lhe
dá produz o
efeito contrário. Finalmente, não se trata de deixar ao
campo oposto posições que a nós nos cabe defender.
Qualquer um
pode acabar por reduzir a nossa postura a
simples frivolidade, ao
afirmar que ele também é, por
exemplo, "humanista", porque se
preocupa com o
humano; que é "não-violento", porque está
contra a
guerra; que é anti-discriminador, porque tem um
amigo negro ou
comunista; que é ecologista, porque se
tem que cuidar das focas e
das praças. Porém, se se o
aperta, não poderá justificar de raiz nada
do que diz,
mostrando o seu verdadeiro rosto anti-humanista,
violento, discriminador e predador.

Os anteriores comentários
relativamente a algumas expressões do
Reino do
Secundário, não trazem nada de novo, mas às vezes vale
a pena prevenir militantes distraídos que, tratando de
comunicar as
suas ideias, não notam o estranho
território em que foram recluídos.

Espero que saibam


dissimular o incómodo de ter lido uma carta que
não se
refere aos vossos problemas e interesses. Confio que na
próxima possamos continuar com as nossas amenidades.

Recebam com esta carta os


meus melhores cumprimentos.

Silo
04/06/92

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https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 6/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sexta carta) - Silo

  Sexta
carta aos meus amigos
DOCUMENTO
DO MOVIMENTO HUMANISTA

1. O
capital mundial
2. A
Democracia formal e a Democracia real
3. A
posição humanista
4. Do
humanismo ingénuo ao humanismo consciente
5. O campo
Anti-humanista
6. As
frentes de acção humanistas

Estimados amigos:

Vários leitores das


minhas cartas voltaram à carga a pedir maior
definição
no que respeita à acção social e política e às suas
perspectivas transformadoras. Nessa situação, poderia
limitar-me a
repetir o já dito no começo da primeira
carta: "Desde há algum
tempo recebo
correspondência de diversos países a pedir
explicações sobre temas que aparecem nos meus livros.
Em geral,
reclama-se clarificação sobre assuntos tão
concretos como a
violência, a política, a economia, a
ecologia, as relações pessoais e
interpessoais. Como se
vê, as preocupações são muitas e diversas
e é claro
que nesses campos terão de ser os especialistas a dar
resposta. Evidentemente, esse não é o meu caso".
No entanto, em
correspondência posterior fiz alguns
comentários sobre os tópicos
citados, mas sem conseguir
satisfazer as solicitações. Como
responder a tais
questões na extensão e natureza de uma carta?
Deste
modo, fui metido num aperto.
[ Qualquer sugestão é bem vinda ]
Como todos sabem,
participo numa corrente de opinião, num
movimento que ao
longo de três décadas tem produzido numerosas
instituições e que se tem confrontado com ditaduras e
injustiças de
todo o tipo. Sobretudo, tem-se confrontado
com a desinformação, a
calúnia e o silêncio
deliberado. De qualquer maneira, este
movimento
estendeu-se pelo mundo conservando a sua
independência
tanto económica como ideológica. Provavelmente, se
se
tivesse rendido à conveniência numa curta e suja
especulação,
contaria com reconhecimento e
mediatização. Mas isso teria
consagrado, finalmente, o
triunfo do absurdo e a vitória de tudo
aquilo contra o
que se tem lutado. Na nossa história há sangue,
prisões, deportações e cercos de todo o tipo. É
necessário recordá-
lo. O nosso movimento sempre se
sentiu tributário do humanismo
histórico pelo acento
que aquele pôs na liberdade de consciência, na
luta
contra todo o obscurantismo e na defesa dos mais altos
valores
humanos. Mas também o nosso movimento tem
produzido trabalhos
e estudos suficientes para dar
resposta a uma época em que,
finalmente, se precipitou a
crise. A esses trabalhos e estudos
haverei de apelar ao
explicar, na extensão de uma carta, os temas e
propostas
fundamentais dos humanistas de hoje.

[ Início da Página ]

DOCUMENTO DO MOVIMENTO
HUMANISTA

Os humanistas são
mulheres e homens deste século, desta época.
Reconhecem
os antecedentes do Humanismo histórico e inspiram-
se nos
contributos das diferentes culturas, não só daquelas
que
neste momento ocupam um lugar central. São, além
disso, homens
e mulheres que deixam para trás este
século e este milénio e se
projectam para um novo
mundo.

Os humanistas sentem que a


sua história é muito longa e que o seu
futuro é ainda
mais extenso. Pensam no porvir, lutando por superar a

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sexta carta) - Silo

crise geral do presente. São optimistas, crêem na


liberdade e no
progresso social.

Os humanistas são
internacionalistas, aspiram a uma nação humana
universal. Compreendem globalmente o mundo em que vivem e
actuam no seu meio imediato. Não desejam um mundo
uniforme
mas sim múltiplo: múltiplo nas etnias,
línguas e costumes; múltiplo
nas localidades, nas
regiões e nas autonomias; múltiplo nas ideias e
nas
aspirações; múltiplo nas crenças, no ateísmo e na
religiosidade;
múltiplo no trabalho; múltiplo na
criatividade.

Os humanistas não querem


amos; não querem dirigentes nem
chefes, nem se sentem
representantes nem chefes de ninguém. Os
humanistas não
querem um Estado centralizado, nem um Para-
Estado que o
substitua. Os humanistas não querem exércitos
policiais, nem bandos armados que os substituam.

Porém, entre as
aspirações humanistas e as realidades do mundo
de hoje,
levantou-se um muro. Chegou, pois, o momento de
derrubá-
lo. Para isso é necessária a união de todos
os humanistas do
mundo.

[ Início da Página ]

1. O
capital mundial

Eis a grande verdade


universal: o dinheiro é tudo. O dinheiro é
governo, é
lei, é poder. É, basicamente, subsistência. Mas além
disso, é a Arte, é a Filosofia e é a Religião. Nada
se faz sem
dinheiro; nada se pode sem dinheiro. Não há
relações pessoais sem
dinheiro. Não há intimidade sem
dinheiro e até a solidão repousada
depende do dinheiro.

Mas a relação com essa


"verdade universal" é contraditória. As
maiorias não querem este estado de coisas. Estamos,
pois, perante
a tirania do dinheiro. Uma tirania que não
é abstracta porque tem
nome, representantes, executores
e procedimentos indubitáveis.

Hoje não se trata de


economias feudais, nem de indústrias
nacionais; nem
sequer de interesses de grupos regionais. O que
hoje se
passa é que aqueles sobreviventes históricos acomodam a
sua parcela aos ditames do capital financeiro
internacional. Um
capital especulador que se vai
concentrando mundialmente. Desta
maneira, até o Estado
nacional requer crédito e empréstimo para
sobreviver.
Todos mendigam o investimento e dão garantias para
que a
banca se encarregue das decisões finais. Está a chegar
o
tempo em que as próprias companhias, assim como os
campos e as
cidades, serão propriedade indiscutível da
banca. Está a chegar o
tempo do Para-Estado, um tempo em
que a antiga ordem deve ser
aniquilada.

Paralelamente, a velha
solidariedade evapora-se. Em suma, trata-se
da
desintegração do tecido social e do advento de milhões
de seres
humanos desconectados e indiferentes entre si,
apesar das penúrias
gerais. O grande capital domina não
só a objectividade, graças ao
controlo dos meios de
produção, como também a subjectividade,
graças ao
controlo dos meios de comunicação e informação.
Nestas
condições, pode dispôr a seu gosto dos recursos
materiais e sociais
tornando irrecuperável a natureza e
descartando progressivamente o
ser humano. Para isso
conta com a tecnologia suficiente. E assim
como esvaziou
as empresas e os estados, esvaziou a Ciência de
sentido
convertendo-a em tecnologia para a miséria, a
destruição e o
desemprego.

Os humanistas não
necessitam de abundar em argumentos quando
enfatizam que
hoje o mundo está em condições tecnológicas
suficientes para solucionar, em curto espaço de tempo,
os
problemas de vastas regiões no que respeita a pleno
emprego,
alimentação, saúde, habitação e
instrução. Se esta possibilidade não
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sexta carta) - Silo

se realiza é
simplesmente porque a especulação monstruosa do
grande
capital está a impedi-lo.

O grande capital já
esgotou a etapa de economia de mercado e
começa a
disciplinar a sociedade para enfrentar o caos que ele
mesmo produziu. Perante esta irracionalidade, não se
levantam
dialecticamente as vozes da razão, mas sim os
mais obscuros
racismos, fundamentalismos e fanatismos. E
se este neo-
irracionalismo vai liderar regiões e
colectividades, então a margem
de acção das forças
progressistas fica dia-a-dia mais reduzida. Por
outro
lado, milhões de trabalhadores já tomaram consciência,
tanto
das irrealidades do centralismo estatista, como das
falsidades da
Democracia capitalista. E assim acontece
que os operários se
levantam contra as suas cúpulas
gremiais corruptas, do mesmo
modo que os povos questionam
os partidos e os governos. Mas é
necessário dar uma
orientação a estes fenómenos, pois de outro
modo
estancar-se-ão num espontaneísmo sem progresso. É
necessário discutir no seio do povo os temas
fundamentais dos
factores de produção.

Para os humanistas existem


como factores de produção o trabalho e
o capital, e
estão a mais a especulação e a usura. Na actual
situação, os humanistas lutam para que a absurda
relação que tem
existido entre esses dois factores seja
totalmente transformada. Até
agora, impôs-se que o
lucro seja para o capital e o salário para o
trabalhador, justificando tal desiquilíbrio pelo
"risco" que assume o
investimento... como se o
trabalhador não arriscasse o seu presente
e o seu futuro
nos vaivéns do desemprego e da crise. Porém, além
disso, está em jogo a gestão e a decisão na
orientação da empresa.
O lucro não destinado ao
reinvestimento na empresa, não dirigido à
sua expansão
ou diversificação, deriva para a especulação
financeira. O lucro que não cria novas fontes de
trabalho, deriva para
a especulação financeira. Por
conseguinte, a luta dos trabalhadores
tem de dirigir-se a
obrigar o capital ao seu máximo rendimento
produtivo.
Mas isto não se poderá implementar a menos que a
gestão e a direcção sejam partilhadas. De outro modo,
como se
poderia evitar os despedimentos massivos, o
encerramento e o
esvaziamento empresarial? Porque o maior
dano está no
subinvestimento, na falência fraudulenta,
no endividamento forçado
e na fuga de capital; não nos
lucros que se possam obter como
consequência do aumento
da produtividade. E se se insistisse no
confisco dos
meios de produção por parte dos trabalhadores,
seguindo
os ensinamentos do século XIX, deveria ter-se também em
conta o recente fracasso do Socialismo real.

Quanto à objecção de
que enquadrar o capital, tal como está
enquadrado o
trabalho, produz a sua fuga para pontos e áreas mais
proveitosas, deve esclarecer-se que isto não acontecerá
durante
muito mais tempo, já que a irracionalidade do
esquema actual leva-o
à sua saturação e à crise
mundial. Essa objecção, além do
reconhecimento de uma
imoralidade radical, desconhece o processo
histórico da
transferência do capital para a banca, resultando disso
que o próprio empresário se vai convertendo em
empregado sem
decisão dentro de uma cadeia em que
aparenta autonomia. Por
outro lado, à medida que se
agudize o processo recessivo, o próprio
empresariado
começará a considerar estes pontos.

Os humanistas sentem a
necessidade de actuar não só no campo
laboral como
também no campo político para impedir que o Estado
seja
um instrumento do capital financeiro mundial, para
conseguir
que a relação entre os factores de produção
seja justa e para
devolver à sociedade a sua autonomia
arrebatada.

[ Início da Página ]

2. A
Democracia formal e a Democracia real

Tem-se vindo a arruinar


gravemente o edifício da Democracia ao
racharem as suas
bases principais: a independência entre poderes,
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a
representatividade e o respeito pelas minorias.

A teórica independência
entre poderes é um contrasenso. Basta
pesquisar na
prática a origem e composição de cada um deles para
comprovar as íntimas relações que os ligam. Não
poderia ser de
outra maneira. Todos fazem parte de um
mesmo sistema. De
maneira que as frequentes crises de
atropelo de uns por outros, de
sobreposição de
funções, de corrupção e irregularidade,
correspondem-se com a situação global, económica e
política, de
um dado país.

Quanto à
representatividade. Desde a época da extensão do
sufrágio universal, pensou-se que existia um só acto
entre a eleição
e a conclusão do mandato dos
representantes do povo. Mas à
medida que decorreu o
tempo, viu-se claramente que existe um
primeiro acto
mediante o qual muitos elegem poucos e um segundo
acto em
que estes poucos traem aqueles muitos, representando
interesses estranhos ao mandato recebido. Esse mal já se
incuba
nos partidos políticos reduzidos a cúpulas
separadas das
necessidades do povo. Aí na máquina
partidária, já os grandes
interesses financiam
candidatos e ditam as políticas que estes
deverão
seguir. Tudo isto evidencia uma profunda crise no
conceito
e na implementação da representatividade.

Os humanistas lutam para


transformar a prática da
representatividade, dando a
maior importância à consulta popular, ao
plebiscito e
à eleição directa dos candidatos. Porque ainda
existem,
em numerosos países, leis que subordinam
candidatos
independentes a partidos políticos, ou
então, subterfúgios e
limitações económicas para se
poder apresentar perante a vontade
da sociedade. Toda a
Constituição ou lei que se oponha à
capacidade plena
do cidadão para eleger e ser eleito, burla pela raíz
a
Democracia real que está por cima de toda a regulação
jurídica. E,
se se trata de igualdade de oportunidades,
os meios de difusão
devem pôr-se ao serviço da
população no período eleitoral em que
os candidatos
expõem as suas propostas, atribuindo a todos
exactamente
as mesmas oportunidades. Por outro lado, devem
impôr-se
leis de responsabilidade política mediante as quais todo
aquele que não cumpra o prometido aos seus eleitores
arrisque o
desaforamento, a destituição ou o julgamento
político. Porque o
outro expediente, aquele que
actualmente se sustenta, mediante o
qual os indivíduos
ou os partidos que não cumpram, sofrerão o
castigo das
urnas nas eleições futuras, não interrompe de modo
nenhum o segundo acto de traição aos representados.
Quanto à
consulta directa sobre os temas de urgência,
cada dia existem mais
possibilidades para a sua
implementação tecnológica. Não se trata
de priorizar
as sondagens e os inquéritos manipulados, trata-se sim
de facilitar a participação e o voto directo através
de meios
electrónicos e computacionais avançados.

Numa democracia real, deve


dar-se às minorias as garantias que
merece a sua
representatividade mas, além disso, deve levar-se ao
extremo toda a medida que favoreça na prática a sua
inserção e
desenvolvimento. Hoje, as minorias acossadas
pela xenofobia e a
discriminação, pedem angustiosamente
o seu reconhecimento e,
nesse sentido, é
responsabilidade dos humanistas elevar este tema
ao
nível das discussões mais importantes, encabeçando a
luta em
cada lugar até vencer os neo-fascismos abertos
ou encobertos. Em
suma, lutar pelos direitos das
minorias, é lutar pelos direitos de todos
os seres
humanos.

Mas também acontece, no


conglomerado de um país, que províncias
inteiras,
regiões ou autonomias, padecem da mesma discriminação
das minorias mercê da compulsão do Estado centralizado,
hoje
instrumento insensível nas mãos do grande capital.
Isto deverá
cessar na medida em que se impulsione uma
organização federativa
na qual o poder político real
volte às mãos das ditas entidades
históricas e
culturais.

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Em suma, pôr à frente os


temas do capital e do trabalho, os temas
da Democracia
real e os objectivos da descentralização do aparelho
estatal, é encaminhar a luta política rumo à criação
de um novo tipo
de sociedade. Uma sociedade flexível e
em constante mudança,
conforme com as necessidades
dinâmicas dos povos, hoje em dia
asfixiados pela
dependência.

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3. A
posição humanista

A acção dos humanistas


não se inspira em teorias fantasiosas sobre
Deus, a
Natureza, a Sociedade ou a História. Parte das
necessidades da vida que consistem em afastar a dor e
aproximar o
prazer. Porém, a vida humana acrescenta às
necessidades a sua
previsão do futuro, baseando-se na
experiência passada e na
intenção de melhorar a
situação actual. A sua experiência não é um
simples
produto de selecções ou acumulações naturais e
fisiológicas, como sucede em todas as espécies, é sim
experiência
social e experiência pessoal dirigidas para
superar a dor actual e
para evitá-la no futuro. O seu
trabalho, acumulado em produções
sociais, passa e
transforma-se de geração em geração em luta
contínua
pela melhoria das condições naturais, mesmo as do
próprio
corpo. Por isto, o ser humano deve ser definido
como histórico e
com um modo de acção social capaz de
transformar o mundo e a
sua prõpria natureza. E de cada
vez que um indivíduo ou um grupo
humano se impõe
violentamente a outros, consegue parar a História,
convertendo as suas vítimas em objectos
"naturais". A natureza não
tem intenções,
pelo que ao negar-se a liberdade e as intenções de
outros, estes são convertidos em objectos naturais, em
objectos de
uso.

O progresso da humanidade,
em lenta ascensão, necessita
transformar a natureza e a
sociedade, eliminando a violenta
apropriação animal de
uns seres humanos por outros. Quando isto
aconteça,
passar-se-á da Pré-História a uma plena História
humana.
Entretanto, não se pode partir de outro valor
central senão de o do
ser humano pleno nas suas
realizações e na sua liberdade. Por isso,
os humanistas
proclamam: "Nada por cima do ser humano e
nenhum ser
humano por baixo de outro". Se se põe como valor
central Deus, o Estado, o Dinheiro ou qualquer outra
entidade,
subordina-se o ser humano criando condições
para o seu ulterior
controlo ou sacrifício. Os
humanistas têm este ponto claro. Os
humanistas são
ateus ou crentes, mas não partem do seu ateísmo
ou da
sua fé para fundamentar a sua visão do mundo e a sua
acção;
partem do ser humano e das suas necessidades
imediatas. E se na
sua luta por um mundo melhor, crêem
descobrir uma intenção que
move a História em
direcção progressiva, pôem essa fé ou essa
descoberta
ao serviço do ser humano.

Os humanistas questionam o
problema de fundo: saber se se quer
viver e decidir em
que condições fazê-lo.

Todas as formas de
violência física, económica, racial, religiosa,
sexual
e ideológica, mercê das quais se tem travado o
progresso
humano, repugnam aos humanistas. Toda a forma
de discriminação,
manifesta ou larvar, é um motivo de
denúncia para os humanistas.

Os humanistas não são


violentos, mas acima de tudo não são
cobardes nem temem
enfrentar a violência porque a sua acção tem
sentido.
Os humanistas conectam a sua vida pessoal com a vida
social. Não levantam falsas antinomias e nisso radica a
sua
coerência.

Assim está traçada a


linha divisória entre o Humanismo e o Anti-
humanismo. O
Humanismo põe à frente a questão do trabalho face
ao
grande capital; a questão da Democracia real face à
Democracia
formal; a questão da descentralização face
à centralização; a
questão da anti-discriminação
face à discriminação; a questão da
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liberdade face à
opressão; a questão do sentido da vida face à
resignação, à cumplicidade e ao absurdo.

Porque o Humanismo se
baseia na liberdade de escolha, possui a
única ética
válida do momento actual. De igual modo, porque
acredita
na intenção e na liberdade, distingue entre o erro e a
má fé,
entre o equivocado e o traidor.

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4. Do
humanismo ingénuo ao humanismo consciente

É na base social, nos


locais de labor e de habitação dos
trabalhadores, onde
o Humanismo deve converter o simples protesto
em força
consciente orientada para a transformação das
estruturas
económicas.

Quanto aos membros


combativos das organizações gremiais e aos
membros de
partidos políticos progressistas, a sua luta
tornar-se-á
coerente na medida em que tendam a
transformar as cúpulas das
organizações em que estão
inscritos, dando às suas colectividades
uma orientação
que ponha em primeiro lugar e por cima de
reivindicações imediatistas, as questões de fundo que
propicia o
Humanismo.

Vastas camadas de
estudantes e docentes, normalmente sensíveis
à
injustiça, irão tornando consciente a sua vontade de
mudança na
medida em que a crise geral do sistema os
afecte. E, certamente, a
gente da Imprensa em contacto
com a tragédia quotidiana, está hoje
em condições de
actuar na direcção humanista, do mesmo modo
que
sectores da intelectualidade cuja produção está em
contradição
com as pautas que este sistema desumano
promove.

São numerosas as posturas


que, tendo por base o sofrimento
humano, convidam à
acção desinteressada a favor dos
desapossados ou dos
discriminados. Associações, grupos
voluntários e
sectores importantes da população mobilizam-se, em
ocasiões, dando o seu contributo positivo. Sem dúvida
que uma das
suas contribuições consiste em gerar
denúncias sobre esses
problemas. No entanto, esses
grupos não delineiam a sua acção em
termos de
transformação das estruturas que dão lugar a esses
males. Estas posturas inscrevem-se mais no Humanitarismo
do que
no Humanismo consciente. Nelas já se encontram
protestos e
acções pontuais susceptíveis de serem
aprofundadas e estendidas.

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5. O
campo Anti-humanista

À medida que as forças


que o grande capital mobiliza, vão
asfixiando os povos,
surgem posturas incoerentes que começam a
fortalecer-se
ao explorar esse mau-estar, canalizando-o contra falsos
culpados. Na base destes neo-fascismos está uma profunda
negação dos valores humanos. Também em certas
correntes
ecologistas desviatórias aposta-se em primeiro
lugar na natureza em
vez do Homem. Já não predicam que
o desastre ecológico é
desastre, justamente porque faz
perigar a humanidade, mas sim
porque o ser humano atentou
contra a natureza. Segundo algumas
destas correntes, o
ser humano está contaminado e por isso
contamina a
natureza. Melhor seria, para eles, que a medicina não
tivesse tido êxito no combate às doenças e no
alargamento da vida.
"A Terra primeiro", gritam
histericamente, recordando as
proclamações do nazismo.
Desde aí à discriminação de culturas que
contaminam,
de estrangeiros que sujam e poluem, à um curto passo.
Estas correntes inscrevem-se também no anti-humanismo
porque,
no fundo, desprezam o ser humano. Os seus
mentores desprezam-
se a si mesmos, reflectindo as
tendências niilistas e suicidas na
moda.

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sexta carta) - Silo

Uma faixa importante de


gente perceptiva também adere ao
ecologismo porque
entende a gravidade do problema que este
denuncia.
Porém, se esse ecologismo toma o carácter humanista
que
lhe corresponde, orientará a luta contra os promotores
da
catástrofe, a saber: o grande capital e a cadeia de
indústrias e
empresas destrutivas, parentes próximas do
complexo militar-
industrial. Antes de se preocupar com as
focas ocupar-se-á da fome,
da hiperconcentração
populacional, da mortinatalidade, das doenças
e dos
défices sanitários e habitacionais em muitas partes do
mundo.
E destacará o desemprego, a exploração, o
racismo, a discriminação
e a intolerância no mundo
tecnologicamente avançado. Mundo que,
por outro lado,
está a criar os desequilíbrios ecológicos em favor do
seu crescimento irracional.

Não é necessário
estender-se demasiado na consideração das
direitas como
instrumentos políticos do Anti-humanismo. Nela a má

chega a níveis tão altos que, periodicamente, se
publicitam como
representantes do "Humanismo".
Nessa direcção, também não tem
faltado a astuta
clericalha (1) que tem pretendido teorizar com base
num
ridículo "Humanismo Teocêntrico" (?). Essa
gente, inventora de
guerras religiosas e inquisições;
essa gente que foi verdugo (2) dos
pais históricos do
Humanismo ocidental, arrogou-se as virtudes das
suas
vítimas, chegando inclusivé a "perdoar os
desvios" daqueles
humanistas históricos. Tão
enorme é a má fé e o bandoleirismo na
apropriação
das palavras que os representantes do Anti-humanismo
tentaram mesmo cobrir-se com o nome de
"humanistas".

Seria impossível
inventariar os recursos, instrumentos, formas e
expressões de que dispõe o Anti-humanismo. Em todo o
caso,
esclarecer sobre as suas tendências mais solapadas
contribuirá para
que muitos humanistas espontâneos ou
ingénuos revejam as suas
concepções e o significado da
sua prática social.

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6. As
frentes de acção humanistas

O Humanismo organiza
frentes de acção no campo laboral,
habitacional,
gremial, político e cultural com a intenção de ir
assumindo o carácter de movimento social. Ao proceder
assim, cria
condições de inserção para as diferentes
forças, grupos e indivíduos
progressistas sem que estes
percam a sua identidade nem as suas
características
particulares. O objectivo de tal movimento consiste
em
promover a união de forças capazes de influir
crescentemente
sobre vastas camadas da população,
orientando com a sua acção a
transformação social.

Os humanistas não são


ingénuos nem se engulosinam com
declarações próprias
de épocas românticas. Nesse sentido, não
consideram as
suas propostas como a expressão mais avançada da
consciência social, nem pensam a sua organização em
termos
indiscutíveis. Os humanistas não fingem ser
representantes das
maiorias. Em todo o caso, actuam de
acordo com o seu parecer
mais justo, apontando às
transformações que lhes parecem mais
adequadas e
possíveis neste momento em que lhes cabe viver.

Confio em que possamos


continuar com outros assuntos na próxima
carta.

Recebam com esta carta os


meus melhores cumprimentos.

Silo
05/04/93

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo

  Sétima
carta aos meus amigos

1. Caos
destrutivo ou revolução
2. De que
revolução falamos?
3. As
frentes de acção no processo revolucionário
4. O
processo revolucionário e a sua direcção

Estimados amigos:

Hoje falaremos da
Revolução social. Como pode isto ser? Alguns
bem-pensantes dizem-nos que a palavra
"Revolução" caíu em
desuso após o fracasso
do "Socialismo real". Possivelmente, nas
suas
cabeças sempre se aninhou a crença de que as
revoluções
anteriores a 1917 eram preparações da
Revolução "a sério". É claro
que se
fracassou a Revolução "a sério", já não se
pode voltar ao
tema. Como de costume, os bem-pensantes
exercitam a censura
ideológica e atribuem-se a
prerrogativa de outorgar ou não direito de
cidadania às
modas e às palavras. Estes funcionários do espírito
(ou
melhor, dos meios de difusão) continuam a ter em
relação a nós
diferenças diametrais: eles pensavam
que o monolitismo soviético
era eterno e agora que o
triunfo do Capitalismo é uma realidade
irremovível.
Eles davam por assente que o substancial de uma
revolução era o derramamento de sangue; que a
decoração
imprescindível eram as bandeiras ao vento,
as marchas, os gestos e
os discursos inflamados. Na sua
paisagem de formação sempre
actuou a cinematografia e a
moda Pierre Cardin. Hoje, por exemplo,
quando pensam no
Islão imaginam uma moda feminina que os
[ Qualquer sugestão é bem vinda ] inquieta e
quando falam do Japão não deixam de se alterar, para
além do plano económico, pelo kimono sempre a ponto de
ser
exumado. Se, enquanto crianças, se nutriram de
celulóide e livros de
piratas, depois sentiram-se
atraídos por Katmandú, a tournée insular,
a
defesa ecológica e a moda "natural"; se, ao
invés, saborearam os
westerns e os filmes de
acção, delinearam, depois, o progresso em
termos de
guerra competitiva ou a revolução em termos de
pólvora.

Estamos submersos num


mundo de códigos de comunicação
massiva em que os
formadores de opinião nos impõem a sua
mensagem
através de jornais, revistas e rádios; em que
escritores
de inteligência débil fixam os temas que
devem ser discutidos; em
que as gentes sensatas nos
informam e esclarecem sobre o mundo
actual... Diante das
câmaras, apresenta-se diariamente a corporação
de
opinadores: ali, ordenadamente, passam palavra a
psicóloga, o
sociólogo, o politólogo, o estilista, a
jornalista que entrevistou
Kaddaffi e o inefável
astrólogo. Depois, todos gritam em uníssono:
"Revolução?, você está completamente démodé"
Em suma, a
opinião pública (quer dizer, a que se
publica) sustenta que tudo
caminha para melhor apesar de
alguns inconvenientes e certifica,
além disso, o óbito
da Revolução.

Que conjunto de ideias bem


articuladas se apresentou que
desqualifique o processo
revolucionário no mundo actual? Só se
apresentaram
opiniões de farândola. Não há, portanto, vigorosas
concepções que mereçam ser discutidas com rigor.

Passemos de uma vez a


questões importantes.

[ Início da Página ]

1. Caos
destrutivo ou revolução

Nesta série de cartas


fizemos vários comentários sobre a situação
geral que
estamos a viver. Como consequência dessas descrições
chegamos à seguinte disjuntiva: ou somos arrastados por
uma
tendência cada vez mais absurda e destrutiva, ou
damos aos
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo

acontecimentos um sentido diferente. Como pano


de fundo desta
apresentação está a operar a
dialéctica da liberdade face ao
determinismo; a procura
humana da escolha e do compromisso face
aos processos
mecânicos cujo destino é desumanizante.
Desumanizante
é a concentração do grande capital até ao seu
colapso
mundial; desumanizante será o mundo resultante,
convulsionado por fomes, migrações, guerras e lutas
intermináveis,
insegurança quotidiana, arbitrariedade
generalizada, caos, injustiça,
restrição da liberdade
e triunfo de novos obscurantismos.
Desumanizante será
voltar a girar numa roda até ao surgimento de
outra
civilização que repita os mesmos e estúpidos passos da
engrenagem... se é que isto possa acontecer após o
derrube desta
primeira civilização planetária que, por
agora, começa a conformar-
se. Porém, nesta longa
história, a vida das gerações e dos
indivíduos é
tão breve e tão imediata que cada um
considera o
destino geral como seu destino particular
ampliado e não o seu
destino particular como destino
geral restringido. Assim, é muito
mais
convincente o que a cada pessoa lhe cabe viver hoje do
que
aquilo que viverá amanhã ou que os seus filhos
viverão amanhã. E,
desde logo, é tal a urgência de
milhões de seres humanos que não
resta horizonte para
considerar um hipotético futuro que possa
sobrevir.
Demasiada tragédia existe neste preciso instante e isto
é
mais do que suficiente para lutar por uma mudança
profunda de
situação. Por que razão, então,
mencionamos o amanhã se as
urgências de hoje são de
tal magnitude? Simplesmente, porque
cada vez mais se
manipula a imagem do futuro e se exorta a
aguentar a
situação actual como se se tratasse de uma crise
insignificante e suportável. "Todo o ajustamento
económico -
teorizam - tem um custo social". É
lamentável - dizem - que para que
todos estejamos bem no
futuro, vós tenhais que passar mal o vosso
presente". "Por acaso antes - perguntam - havia
esta tecnologia e
esta medicina nos lugares de maior
abundância?" "Já vos chegará a
vez - afirmam
- também a vós!"

E enquanto nos postergam,


estes que prometeram progresso para
todos, continuam a
abrir o fosso que separa as minorias opulentas
das
maiorias cada vez mais castigadas. Esta ordem social
encerra-
nos num círculo vicioso que se realimenta e
projecta para um
sistema global de que não pode escapar
nenhum ponto do planeta.
Porém, também está claro que
em todas as partes se começa a
descrer das promessas da
cúpula social, que se radicalizam
posições e que
começa a agitação geral. Lutaremos todos contra
todos?
Lutarão umas culturas contra outras, uns continentes
contra
outros, umas regiões contra outras, umas etnias
contra outras, uns
vizinhos contra outros e uns
familiares contra outros? Iremos para o
espontaneísmo
sem direcção, como animais feridos que sacodem a
sua
dor, ou incluiremos todas as diferenças, benvindas
sejam, em
direcção à Revolução Mundial? O que estou
a tratar de formular é
que se está a
apresentar a disjuntiva do simples caos destrutivo
ou da
Revolução como direcção superadora das diferenças
dos
oprimidos. Estou a dizer que a
situação mundial e a particular de
cada indivíduo
será mais conflituosa cada dia que passa, e que
deixar o
futuro nas mãos daqueles que têm dirigido este processo
até hoje é suicida. Estes já não são os tempos em
que se possa
varrer toda a oposição e proclamar no dia
seguinte: "A paz reina em
Varsóvia." Já não
são tempos em que 10% da população possa
dispôr, sem
limite, dos restantes 90%. Neste sistema que começa a
ser mundialmente fechado, e não existindo uma clara
direcção de
mudança, tudo fica a expensas da simples
acumulação de capital e
poder. O resultado é que num
sistema fechado não se pode esperar
outra coisa senão a
mecânica da desordem geral. O paradoxo de
sistema
informa-nos que ao pretender ordenar a desordem
crescente, haver-se-á de acelerar a desordem. Não há
outra saída
senão revolucionar o sistema, abrindo-o à
diversidade das
necessidades e aspirações humanas.
Postas as coisas nestes
termos, o tema da Revolução
adquire uma grandeza inusitada e uma
projecção que não
pôde ter em épocas anteriores.

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo

2. De que
revolução falamos?

Em carta anterior
definimos posições sobre as questões do trabalho
face
ao grande capital; da Democracia real face à formal; da
descentralização face à centralização; da
anti-discriminação face à
discriminação; da
liberdade face à opressão. Se, no momento actual,
o
capital se vai transferindo gradualmente para a banca, se
a banca
se vai assenhoreando das empresas, dos países,
das regiões e do
mundo, a revolução implica a
apropriação da banca, de tal maneira
que esta cumpra a
prestação do seu serviço sem cobrar em troca
juros
que, em si mesmos, são usurários. Se, na constituição
de uma
empresa, o capital recebe lucros e o trabalhador
salário ou
remuneração; se, na empresa, a gestão e a
decisão estão nas mãos
do capital, a revolução
implica que o lucro se reinvista, se
diversifique ou se
utilize na criação de novas fontes de trabalho e
que a
gestão e decisão sejam partilhadas pelo trabalho e o
capital.
Se as regiões ou províncias de um país estão
atadas à decisão
central, a revolução implica a
desestruturação desse poder, de
maneira que as
entidades regionais conformem uma república
federativa e
que o poder dessas regiões seja igualmente
descentralizado a favor da base comunal, de onde terá de
partir toda
a representatividade eleitoral. Se a saúde e
a educação são tratadas
de modo desigual para os
habitantes de um país, a revolução
implica educação
e saúde gratuitas para todos, porque, em suma,
esses
são os dois valores máximos da revolução e eles
deverão
substituir o paradigma da sociedade actual
determinado pela riqueza
e pelo poder. Pondo
tudo em função da saúde e da educação, os
complexíssimos problemas económicos e tecnológicos da
sociedade actual terão o enquadramento correcto para o
seu
tratamento. Parece-nos que procedendo
de modo inverso não se
chegará a conformar uma
sociedade com possibilidades evolutivas.
O grande
argumento do capitalismo é pôr tudo em dúvida
perguntando sempre de onde sairão os recursos e como
aumentará
a produtividade, dando a entender que os
recursos saiem dos
empréstimos bancários e não do
trabalho do povo. Aliás, de que
serve a produtividade se
depois se esfuma das mãos de quem
produz? Não nos diz
nada de extraordinário o modelo que tem
funcionado por
algumas décadas em certas partes do mundo e que
hoje
começa a desarticular-se. Que a saúde e a educação
desses
países aumentam maravilhosamente, é algo que
está por se ver à
luz do crescimento das pragas não
só físicas mas também
psicosociais. Se faz parte da
educação a criação de um ser humano
autoritário,
violento e xenófobo; se faz parte do seu progresso
sanitário o aumento do alcoolismo, a toxicodependência
e o suicídio,
então de nada vale tal modelo.
Continuaremos a admirar os centros
de educação
organizados, os hospitais bem equipados e trataremos,
além disso, de que estejam ao serviço do povo sem
distinções.
Quanto ao conteúdo e
significado da saúde e da educação, há
demasiado a
discutir com o sistema actual.

Falamos de uma revolução


social que mude drasticamente as
condições de vida do
povo, de uma revolução política que modifique
a
estrutura do poder e, em suma, de uma revolução humana
que
crie os seus próprios paradigmas em substituição
dos decadentes
valores actuais. A
revolução social a que aponta o Humanismo
passa pela
tomada do poder político para realizar as
transformações que se mostrem necessárias, mas a
tomada
desse poder não é um objectivo em si.
Por outro lado, a violência
não é uma componente
essencial dessa revolução. De que valeria a
repugnante
prática da execução e a cadeia para o inimigo? Qual
seria a diferença em relação aos opressores de sempre?
A
revolução da India anti-colonialista produziu-se por
pressão popular
e não por violência; foi uma
revolução inconclusa, determinada pela
estreiteza do
seu ideário, mas ao mesmo tempo mostrou uma nova
metodologia de acção e de luta. A revolução contra a
monarquia
iraniana desencadeou-se por pressão popular,
nem sequer pela
tomada dos centros de poder político já
que estes se foram
"esvaziando",
desestruturando, até deixar de funcionar... depois a
intolerância arruinou tudo. E assim, é possível a
revolução por

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo

diferentes meios, incluindo o triunfo


eleitoral, mas a transformação
drástica das estruturas
é algo que em todos os casos deve ser posto
em marcha de
imediato, começando pelo estabelecimento de um
novo
ordenamento jurídico que, entre outros tópicos, exponha
claramente as novas relações sociais de produção, que
impeça toda
a arbitrariedade e que regule o
funcionamento daquelas estruturas
do passado ainda aptas
para ser melhoradas.

As revoluções que hoje


agonizam ou as novas que se estão a
gestar, não irão
além do testemunhal dentro de uma ordem
estancada, não
irão além do tumulto organizado, se não avançam na
direcção proposta pelo Humanismo, quer dizer, em
direcção a um
sistema de relações sociais cujo valor
central seja o ser humano e
não qualquer outro como
possa ser a "produção", "a sociedade
socialista", etc. Porém, colocar o ser humano como
valor central
implica uma ideia totalmente diferente do
que hoje se entende,
precisamente, por "ser
humano". Os esquemas de compreensão
actuais estão
ainda muito afastados da ideia e da sensibilidade
necessárias para apreender a realidade do humano. No
entanto, e é
necessário esclarecê-lo, também começa
a desenhar-se uma certa
recuperação da inteligência
crítica fora dos moldes aceites pelo
engenho superficial
da época. Em G. Petrovic, para mencionar um
caso,
encontramos uma concepção precursora do que temos vindo
a
expôr. Ele define a Revolução como "a criação
de um modo de ser
essencialmente distinto, diferente de
todo o ser não humano, anti-
humano e ainda não
completamente humano". Petrovic acaba por
identificar a Revolução com a mais alta forma de ser,
como ser em
plenitude e como Ser-em-Liberdade. (tese
sobre "A necessidade de
um conceito de
revolução", 1977, A Filosofia e as Ciências
Sociais,
Congresso de Morelia de 1975).

Não se parará a maré


revolucionária que está em marcha como
expressão do
desespero das maiorias oprimidas. Mas mesmo isto
não
será suficiente, já que a direcção adequada desse
processo não
acontecerá pela simples mecânica da
"prática social". Sair do
campo
da necessidade para o campo da liberdade por meio da
revolução, é o imperativo desta época em que o ser
humano
ficou enclausurado. As futuras revoluções, se é
que irão mais
além das sublevações militares, dos
golpes palacianos, das
reivindicações de classe, etnia
ou religião, terão que assumir
um carácter
transformador inclusivo com base na
essencialidade
humana. Daí que além das mudanças que
produzam nas
situações concretas dos países, o seu carácter
será
universalista e o seu objectivo mundializador. Por
conseguinte, quando falamos de "revolução
mundial",
compreendemos que qualquer revolução
humanista, ou que se
transforme em humanista, ainda que
seja realizada numa
situação restrita, levará o
carácter e o objectivo que a projectará
mais além de
si mesma. E essa revolução, por insignificante
que seja
o lugar em que se produza, comprometerá a
essencialidade
de todo o ser humano. A revolução
mundial não
pode ser delineada em termos de êxito, mas
sim na sua real
dimensão humanizadora. Aliás, o novo
tipo de revolucionário que
corresponde a este novo tipo
de revolução, torna-se, por essência e
por actividade,
humanizador do mundo.

[ Início da Página ]

3. As
frentes de acção no processo revolucionário

Gostaria agora de me
estender nalgumas considerações práticas a
respeito da
criação das condições necessárias para a unidade,
organização e crescimento de uma força social
bastante, que
permita posicionar-se em direcção a um
processo revolucionário.

A antiga tese frentista de


acumulação de forças progressistas com
base no acordo
em pontos mínimos hoje termina na prática da
"colagem" de dissidências partidárias sem
inserção social. Deste
modo, o resultado é uma
acumulação de contradições entre cúpulas

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo

que apontam
ao protagonismo jornalístico e à promoção
eleitoralista.
Nas épocas em que um partido com recursos
económicos
suficientes podia hegemonizar a
fragmentação, a ideia das "frentes"
eleitorais era viável. Hoje a situção mudou
drásticamente e, no
entanto, a esquerda tradicional
continua com tais procedimentos
como se nada tivesse
acontecido. Torna-se necessário rever a
função do
partido no momento actual e perguntar-se se são os
partidos políticos as estruturas capazes de pôr em
marcha a
revolução. Porque se o sistema acabou por
metabolizar os partidos
convertendo-os em
"cascas" de uma acção que os grandes capitais
e a banca controlam, um partido superestrutural sem base
humana
poder-se-á aproximar do poder formal (não do
poder real), sem por
isso introduzir a mais mínima
variação de fundo. A acção política
exige, por
agora, a criação de um partido que logre
representatividade eleitoral em diferentes níveis. Mas
deve estar
claro, desde o primeiro momento, que essa
representatividade tem
por objectivo orientar o conflito
para o seio do poder estabelecido.
Neste contexto, um
membro do partido que consegue
representatividade popular
não é um funcionário público, mas sim
um referente
que evidencia as contradições do sistema e organiza a
luta em direcção à revolução. Por outras palavras, o
trabalho político
institucional ou partidário é
entendido aqui como a expressão de um
fenómeno social
amplo que possui a sua própria dinâmica. Deste
modo, o
Partido pode desenvolver a sua máxima actividade em
épocas eleitorais, mas as diferentes frentes de acção
que,
ocasionalmente, lhe servem de base utilizam o mesmo
facto eleitoral
para destacar conflitos e ampliar a sua
organização. Há aqui
diferenças importantes em
relação à concepção tradicional do
partido. Com
efeito, até algumas décadas atrás, pensava-se que o
partido era a vanguarda de luta que organizava diferentes
frentes de
acção. Aqui está-se a pôr tudo em sentido
contrário. São as frentes
de acção que organizam e
desenvolvem a base de um movimento
social e é o partido
a expressão institucional desse movimento. Por
sua vez,
o partido deve criar condições de inserção para
outras
forças políticas progressistas, já que não
pode pretender que
aquelas percam a sua identidade
fundindo-se no seu seio. O partido
deve ir mais além da
sua própria identidade formando com outras
forças uma
"frente" mais ampla que insira todos os
factores
progressistas fragmentados. Mas não se passará
do acordo de
cúpulas se o partido não conta com uma
base real que oriente esse
processo. Por outro lado, esta
ideia não é reversível, no sentido de
que o partido
faça parte de uma frente que organizam outras
superestruturas. Haverá uma frente política com outras
forças se
estas se atêm às condições que estabelece
o partido cuja força real
é dada pela organização de
base. Passemos, pois, a considerar as
diferentes frentes
de acção.

É necessário que
diferentes frentes de acção realizem o seu
trabalho na
base administrativa dos países, apontando à comuna ou
município. Cabe desenvolver, na área fixada, frentes de
acção
laborais e habitacionais, comprometendo a
acção nos conflitos
reais devidamente priorizados. Isto
significa que a luta pela
reivindicação imediata não
tem significado se ela não deriva em
crescimento
organizativo e posicionamento para passos
posteriores.
Está claro que todo o conflito deve ser explicado em
termos relacionados directamente com o nível de vida,
com a saúde
e a educação da população
(coerentemente, os trabalhadores da
saúde e da
educação devem converter-se em simpatizantes
imediatos
e posteriormente em quadros necessários para a
organização directa da base social).

Quanto às organizações
gremiais, apresenta-se aqui o mesmo
fenómeno dos
partidos do sistema, por isso não se trata aqui de
planear o controlo do sindicato ou do grémio, mas sim a
aglutinação
de trabalhadores que, como consequência,
releguem o controlo da
cúpula tradicional. Deve
promover-se todo o sistema de eleição
directa, todo o
plenário e assembleia que comprometa os dirigentes
e
lhes exija a tomada de posições nos conflitos
concretos, de
maneira a que respondam aos requerimentos
da base ou sejam

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo

apeados. E, certamente, as frentes de


acção no campo gremial
devem desenhar a sua táctica
apontando ao crescimento da
organização da base social.

Finalmente, a activação
de instituições sociais e culturais, actuando
desde a
base social, é de extrema importância porque permitem
aglutinar colectividades discriminadas ou perseguidas, no
contexto
do respeito pelos direitos humanos, dando-lhes
uma direcção
comum apesar das suas diferenças
particulares. A tese de que cada
etnia, colectividade ou
grupo humano discriminado deve tornar-se
forte em si
mesmo para enfrentar o atropelo, padece de uma
importante
deficiência de apreciação. Essa postura parte da ideia
de
que "misturar-se" com elementos estranhos
lhes faz perder a
identidade, quando, na realidade, a sua
posição isolada os expõe e
leva-os a ser erradicados
com maior facilidade, ou então, coloca-os
em posição
de se radicalizarem de tal modo que os perseguidores
justifiquem a acção directa contra eles. A melhor
garantia de
sobrevivência de uma minoria discriminada é
fazer parte de
uma frente com outros que encaminham a
luta pelas suas
reivindicações numa direcção
revolucionária. Ao fim e ao cabo, é
o
sistema globalmente considerado que criou as condições
de
discriminação e estas não desaparecerão enquanto
essa ordem
social não for transformada.

[ Início da Página ]

4. O
processo revolucionário e a sua direcção

Devemos destinguir entre


processo revolucionário e direcção
revolucionária. Da
nossa posição, entende-se o processo
revolucionário como um conjunto de condições
mecânicas
geradas no desenvolvimento do sistema.
Nesse sentido, tal
desenvolvimento cria factores de
desordem que, finalmente, são
afastados, impõem-se ou
acabam por descompôr a totalidade do
esquema. De acordo
com as análises que temos feito, a
globalização a que
se tende neste momento está a apresentar
agudos factores
de desordem no desenvolvimento total do sistema.
Trata-se
de um processo que é independente da acção voluntária
de
grupos ou indivíduos. Já considerámos este ponto em
mais de uma
ocasião. O problema que se está a pôr
agora é, precisamente, o do
futuro do sistema, já que
este tende a revolucionar-se
mecanicamente sem nenhuma
orientação progressiva a mediar. A
orientação em
questão depende da intenção humana e escapa à
determinação das condições que origina o sistema. Já
noutros
momentos clarificámos a nossa posição com
respeito à não
passividade da consciência humana, à
sua característica essencial
de não ser simples reflexo
de condições objectivas, à sua
capacidade de se opôr
a tais condições e de projectar uma situação
futura
diferente da vivida no momento actual (aqui sugerimos ver
a
"Quarta Carta aos Meus Amigos", pontos III e
IV, e o livro
"Contribuições ao Pensamento",
na parte de "Discussões
Historiológicas",
cap. 3, pontos II e III). Dentro desse modo de
liberdade, entre condições, interpretamos a direcção
revolucionária.

É pelo exercício da
violência que uma minoria impõe as suas
condições ao
conjunto social e organiza uma ordem, um sistema
inercial, que continua o seu desenvolvimento. Vistas
assim as
coisas, tanto o modo de produção como as
relações sociais
consequentes; tanto a ordem jurídica
como as ideologias
dominantes que regulam e justificam a
dita ordem, e tanto o
aparelho estatal ou paraestatal
através do qual se controla o todo
social, se revelam
como instrumentos ao serviço dos interesses e
intenções da minoria instalada. Mas o desenvolvimento
do sistema
continua mecanicamente, mais além das
intenções dessa minoria
que luta por concentrar cada
vez mais os factores de poder e
controlo, provocando com
isto uma nova aceleração no
desenvolvimento do sistema,
o qual progressivamente vai
escapando ao seu domínio.
Desta maneira, o aumento da desordem

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo

chocará com a ordem


estabelecida e provocará por parte dessa
ordem a
aplicação proporcional dos seus recursos de
protecção. Em
épocas críticas, disciplinar-se-á o
todo social com todo o rigor da
violência disponível
pelo sistema. Assim se chega ao máximo
recurso
disponível: o exército. Mas é totalmente certo que os
exércitos continuarão a responder do modo tradicional
em épocas
onde o sistema vai em direcção ao colapso
global? Se isto não for
assim, a mudança de situação
que pode acontecer na direcção dos
acontecimentos
actuais é tema de discussão. Basta reflectir sobre as
últimas etapas das civilizações que precederam a
actual para
compreender que os exércitos se levantaram
contra o poder
estabelecido, se dividiram nas guerras
civis que já estavam
delineadas na sociedade e, não
podendo introduzir nessa situação
uma direcção nova,
o sistema continuou a sua direcção catastrófica.
Na
actual civilização mundial que se perfila haverá lugar
ao mesmo
destino? Haveremos de considerar os exércitos
na próxima carta.

Recebam com esta carta os


meus melhores cumprimentos.

Silo
07/08/93

[ Início da Página ]

  

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta7.html 7/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Oitava carta) - Silo

  Oitava
carta aos meus amigos

1. Necessidade
de uma redefinição do papel das forças
armadas
2. Permanência
de factores agressivos na etapa de distensão
3. Segurança
interior e reestruturação militar
4. Revisão
dos conceitos de soberania e segurança
5. A
legalidade e os limites do poder vigente
6. A
responsabilidade militar perante o poder
político
7. Reestruturação
militar
8. A
posição militar no processo revolucionário
9. Considerações
em torno dos exércitos e da revolução

Estimados amigos:

De acordo com o anunciado


na carta anterior, tocarei na presente
alguns pontos
referidos aos exércitos. Evidentemente, o interesse
deste escrito estará centrado na relação entre as
forças armadas, o
poder político e a sociedade. Tomarei
como base o documento
discutido há três meses em
Moscovo (sob o título de A Necessidade
de uma
Posição Humanista nas Forças Armadas Contemporâneas
-
Conferência internacional sobre humanização das
actividades
militares e reforma das Forças Armadas,
patrocinada pelo Ministério
de Defesa da C.E.I. -
Moscovo, 24/28 de Maio de 1993). Só me
afastarei dos
conceitos vertidos no documento original ao tratar a
posição militar no processo revolucionário, tema este
que me
[ Qualquer sugestão é bem vinda ] permitirá completar algumas ideias esboçadas
anteriormente.

[ Início da Página ]

1.
Necessidade de uma redefinição do papel das forças
armadas

As forças armadas estão


hoje a tratar de definir o seu novo papel.
Esta
situação começou após as iniciativas de desarmamento
proporcional e progressivo empreendidas pela União
Soviética nos
finais da década de 80. A diminuição da
tensão que existiu entre as
superpotências provocou uma
reviravolta no conceito de defesa nos
países mais
importantes. No entanto, a substituição gradual dos
blocos político-militares (particularmente do Pacto de
Varsóvia) por
um sistema de relações relativamente
cooperativas activou forças
centrífugas que levam a
novos choques em diferentes pontos do
planeta.
Certamente, em pleno período da Guerra Fria, os
conflitos
em áreas restritas eram frequentes e muitas
vezes prolongados,
mas o carácter actual destes mudou de
signo, ameaçando estender-
se nos Balcãs, no mundo
muçulmano e em várias zonas da Ásia e
África.

A reivindicação
limítrofe que outrora preocupava forças armadas
contíguas, hoje toma outra direcção dada a tendência
para a
secessão no interior de alguns países. As
disparidades económicas,
étnicas e linguísticas tendem
a modificar fronteiras que se supunham
inalteráveis, ao
mesmo tempo que ocorrem migrações em grande
escala.
Trata-se de grupos humanos que se mobilizam para fugir de
situações desesperadas, ou para conter ou expulsar de
áreas
definidas outros grupos humanos.

Este e outros fenómenos


mostram mudanças profundas,
particularmente na estrutura
e na concepção do Estado. Por um
lado, assistimos a um
processo de regionalização económica e
política; por
outro, observamos a discórdia crescente no interior de
países que caminham para essa regionalização. É
como se o
Estado nacional, desenhado há duzentos anos,
não aguentasse
mais os golpes que lhe ministram as
forças multinacionais por
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta8.html 1/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Oitava carta) - Silo

cima e as forças da secessão


por baixo. Cada vez mais
dependente, cada vez
mais preso à economia regional e cada vez
mais
comprometido na guerra comercial contra outras regiões,
o
Estado sofre uma crise sem precedentes no controlo da
situação. As
suas Leis Fundamentais são modificadas
para dar lugar à
deslocação de capitais e recursos
financeiros; os seus códigos e leis
civis e comerciais
tornam-se obsoletos. Até a tipificação penal varia,
já que hoje pode ser sequestrado um cidadão cujo delito
será
julgado noutro país por magistrados de outra
nacionalidade e com
base em leis estrangeiras. Assim, o
velho conceito de soberania
nacional fica sensivelmente
diminuído. Todo o aparelho jurídico-
político do
Estado, as suas instituições e o pessoal afecto ao seu
serviço imediato ou mediato sofrem os efeitos dessa
crise geral.
Essa é também a situação que atravessam
as Forças Armadas, às
quais a seu tempo se atribuiu o
papel de defensoras da soberania e
da segurança geral.
Privatizada a educação, a saúde, as
comunicações, as
reservas naturais e até importantes áreas da
segurança
civil; privatizados os bens e serviços, diminui a
importância do Estado tradicional. É coerente pensar
que se a
administração e os recursos de um país saiem
da área de controlo
público, a Justiça seguirá o
mesmo processo e adscrever-se-á às
Forças Armadas o
papel de milícia privada destinada à defesa de
interesses económicos vernáculos ou multinacionais.
Essas
tendências têm vindo a aumentar ultimamente no
interior dos países.

[ Início da Página ]

2.
Permanência de factores agressivos na etapa de
distensão

Ainda não
desapareceu a agressividade de potências que, a seu
tempo, deram por concluída a Guerra Fria. Actualmente,
existem
violações de espaços aéreos e maríti-mos;
aproximações
imprudentes a territórios longínquos;
incursões e instalação de
bases; afiançamentos de
pactos militares; guerras e ocupação de
territórios
estrangeiros pelo controlo de vias de navegação ou
possessão de fontes de recursos naturais. Os
antecedentes
estabelecidos pelas guerras da Coreia,
Vietname, Laos e Camboja;
pelas crises do Suez, Berlim e
Cuba, pelas incursões em Granada,
Trípolis e Panamá
mostraram ao mundo a desproporção da acção
bélica
tantas vezes aplicada sobre países indefesos e pesam na
hora de falar de desarmamento. Estes factos adquirem
especial
gravidade porque, em casos como o da Guerra do
Golfo, se realizam
nos flancos de países de grande
importância, que poderiam
interpretar tais manobras como
sendo lesivas para a sua segurança.
Esses excessos
estão a produzir efeitos residuais nocivos ao
fortalecer
a frente interna de sectores que julgam os seus governos
incompetentes para travar esses avanços. Isto, desde
logo, pode
chegar a comprometer o clima de paz
internacional tão necessário
no momento actual.

[ Início da Página ]

3.
Segurança interior e reestruturação militar

No que diz respeito à


segurança interna, é necessário citar dois
problemas
que parecem perfilar-se no horizonte dos acontecimentos
imediatos: as explosões sociais e o terrorismo.

Se é certo que a
desocupação e a recessão tendem a crescer nos
países
industrializados, é possível que estes sejam palco de
convulsões ou desordens, invertendo-se, em alguma
medida, o
quadro que se apresentava em décadas
anteriores em que o conflito
se desenrolava nas
periferias de um centro que continuava a crescer
sem
sobressalto. Acontecimentos como os de Los Angeles, o ano
passado, poderiam estender-se a mais de uma cidade e
inclusivamente a otros paises. Por último, o fenómeno
do terrorismo
vislumbra-se como perigo de proporções
dado o poder de fogo com
que podem hoje contar
indivíduos e grupos relativamente
especializados. Esta
ameaça, que chegaria a expressar-se por meio

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta8.html 2/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Oitava carta) - Silo

do
artefacto nuclear, ou de explosivos deflagrantes e
moleculares de
alto poder, atinge também outra áreas
como a das armas químicas e
bacteriológicas de reduzido
custo e fácil produção.

São, pois, muitas e


numerosas as preocupações das Forças
Armadas, dado o
panorama instável do mundo de hoje. Por outro
lado, e
além dos problemas estratégicos e políticos que estas
têm de
considerar, estão os temas internos de
reestruturação, de dispensa
de importantes contingentes
de tropas, do modo de recrutamento e
formação, de
renovação de material, de modernização tecnológica
e,
primariamente, de recursos económicos. Porém, se bem
que se
devem compreender a fundo os problemas de contexto
que
mencionámos, há-de acrescentar-se que nenhum deles
poderá ser
resolvido cabalmente se não se clarifica
qual a função primária que
devem cumprir os
exércitos. Ao fim e ao cabo, é o poder político que
dá a sua orientação às Forças Armadas e são estas
que actuam
com base nessa orientação.

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4.
Revisão dos conceitos de soberania e segurança

Na concepção tradicional
deu-se às Forças Armadas a função de
resguardar a
soberania e a segurança dos países, dispondo do uso
da
força de acordo com o mandato dos poderes constituídos.
Deste
modo, o monopólio da violência que cabe ao
Estado, transfere-se
para os corpos militares. Mas eis um
primeiro ponto de discussão
àcerca do que se deve
entender por "soberania" e por
"segurança".
Se estas, ou mais modernamente o
"progresso" de um país,
requerem fontes de
aprovisionamento extraterritoriais;
navegabilidade
marítima indiscutível para proteger a deslocação de
mercadorias; controlo de pontos estratégicos com o mesmo
fim e
ocupação de territórios alheios, estamos perante
a teoria e a prática
colonial ou neo-colonial. No
colonialismo, a função dos exércitos
consiste em abrir
caminho primeiramente aos interesses das coroas
da época
e depois às companhias privadas que obtêm concessões
especiais do poder político em troca de réditos
convenientes. A
ilegalidade desse sistema foi justificada
pela suposta barbárie dos
povos ocupados, incapazes de
terem por si mesmos uma
administração adequada. A
ideologia correspondente a esta etapa
consagrou o
colonialismo como o sistema "civilizador" por
excelência.

Na época do imperialismo
napoleónico, a função do exército, que
por outro lado
ocupa o poder político, consistiu em expandir
fronteiras
com o objectivo declamado de redimir os povos oprimidos
pelas tiranias, mercê da acção bélica e da
instauração de um
sistema administrativo e jurídico
que consagrou nos seus códigos a
Liberdade, a Igualdade
e a Fraternidade. A ideologia correspondente
justificou a
expansão imperial com base no critério de
"necessidade"
de um poder constituído pela
revolução democrática face a
monarquias ilegais
baseadas na desigualdade, as quais, além do
mais, fazem
frente comum para asfixiar a Revolução.

Mais recentemente, e
seguindo os ensinamentos de Clausewitz,
tem-se entendido
a guerra como simples continuação da política e o
Estado, promotor dessa política, foi considerado como o
aparelho de
governo de uma sociedade radicada em certos
limites geográficos.
Desde aí chegou-se a definições,
caras aos geo-políticos, em que as
fronteiras aparecem
como "a pele do Estado". Em tal concepção
organológica, esta "pele" contrai-se ou
expande-se de acordo com o
tom vital dos países e assim
deve ampliar-se com o
desenvolvimento de uma comunidade
que reclama "espaço vital",
dada a sua
concentração demográfica ou económica. Desta
perspectiva, a função do exército é ganhar espaço
conforme é
reclamado por essa política de segurança e
soberania, que é
primária relativamente às
necessidades de outros países limítrofes.
Aqui, a
ideologia dominante proclama a desigualdade das
necessidades que experimentam as colectividades de acordo
com

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Oitava carta) - Silo

as suas características vitais. Esta visão


zoológica da luta pela
sobrevivência do mais apto
rememora as concepções do
darwinismo, transportadas
ilegítimamente para a prática política e
militar.

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5. A
legalidade e os limites do poder vigente

Contemporâneamente,
flutua no ar muito das três concepções que
usámos
para exemplificar como os exércitos respondem ao poder
político e se enquadram segundo os ditames que,
ocasionalmente,
este entende sobre segurança e
soberania. De maneira que se a
função do exército é
servir o Estado no que respeita a segurança e
soberania
e a concepção destes dois pontos varia de governo para
governo, as Forças Armadas terão que ater-se a isso.
Admite isto
algum limite ou excepção? Claramente
observam-se duas
excepções: 1. - Aquela em que o
poder político se constituíu
ilegítimamente e se
esgotaram os recursos civis para mudar
essa situação
anómala e 2. - Aquela em que o poder político se
constituíu legalmente, mas no seu exercício se converte
em
ilegal, tendo-se esgotado os recursos civis para mudar
a
situação anómala. Em ambos os casos, as Forças
Armadas têm
o dever de restabelecer a legalidade
interrompida, o que
equivale a continuar os actos que por
via civil não se puderam
concluir. Nestas situações, o
exército deve-se à legalidade e
não ao poder vigente.
Não se trata, então, de propiciar um estado
deliberativo do exército, mas sim de destacar a prévia
interrupção da
legalidade realizada por um poder
vigente de origem delitual ou que
se converteu em
delitual. A pergunta que se deve fazer é: de onde
provém a legalidade e quais são as suas
características?
Respondemos que a legalidade provém do
povo que é quem deu a
si próprio um tipo de Estado e um
tipo de leis fundamentais a que se
devem submeter os
cidadãos. E no caso extremo em que o povo
decidisse
modificar esse tipo de Estado e esse tipo de leis,
incumbir-
lhe-ia fazê-lo não podendo existir uma
estrutura estatal e um sistema
legal por cima daquela
decisão. Este ponto leva-nos a considerar o
facto
revolucionário, que trataremos mais adiante.

[ Início da Página ]

6. A
responsabilidade militar perante o poder político

Tem de se salientar que os


corpos militares devem estar formados
por cidadãos
responsáveis pelas suas obrigações relativamente à
legalidade do poder estabelecido. Se o poder estabelecido
funciona
com base numa democracia real em que se respeita
a vontade
maioritária por eleição e renovação dos
representantes populares,
se respeita as minorias nos
termos consagrados pelas leis e se
respeita a separação
e independência entre poderes, então não
cabe às
Forças Armadas deliberar àcerca dos acerto ou erros
desse
governo. Do mesmo modo que na implantação de um
regime ilegal
as Forças Armadas não podem sustentá-lo
mecanicamente,
invocando uma "obediência
devida" a esse regime. Mesmo
chegando ao conflito
internacional, as Forças Armadas também não
podem
praticar o genocídio seguindo instruções de um poder
febril
devido à anormalidade da situação. Porque se os
Direitos Humanos
não estão por cima de qualquer outro
Direito, não se entende para
que existe organização
social nem Estado. E ninguém pode invocar
"obediência devida" quando se trata do
assassinato, da tortura e da
degradação do ser humano.
Se alguma coisa ensinaram os tribunais
criados após a
Segunda Guerra Mundial foi que o homem de armas
tem
responsabilidades como ser humano, mesmo na
situação-limite
do conflito bélico.

Neste ponto, poder-se-á


perguntar: não é o exército uma instituição
cuja
preparação, disciplina e equipamento o converte em
factor
primário de destruição? Respondemos que as
coisas estão
montadas assim desde muito tempo antes da
situação actual e que,

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independentemente da aversão
que sentimos por todas as formas
de violência, não
podemos conceber a desaparição ou o
desarmamento
unilateral de exércitos criando vazios que seriam
preenchidos por outras forças agressivas, tal como
mencionámos
anteriormente quando nos referimos aos
ataques realizados a
países indefesos. São as
próprias Forças Armadas que têm uma
importante missão
a cumprir não obstruindo a filosofia e a
prática do
desarmamento proporcional e progressivo,
inspirando,
além do mais, os camaradas de outros países nessa
direcção e deixando claro que a função castrense no
mundo de
hoje consiste em evitar catástrofes e
servidões ditadas por
governos ilegais que não
respondem ao mandato popular.
Então, o
maior serviço que as forças armadas poderão prestar
aos
seus países e a toda a humanidade será evitar que
existam as
guerras. Esta ideia, que pode parecer
utópica, está avalizada
actualmente pela força dos
factos que demonstram a pouca
praticidade e a
perigosidade para todos quando aumenta o poder
bélico
global ou unilateral.

Gostaria de voltar ao tema


da responsabilidade militar através de
uma
exemplificação inversa. Durante a época da Guerra
Fria,
repetia-se no Ocidente uma mensagem dupla: por um
lado, a NATO
e outros blocos estabeleciam-se para
defender um estilo de vida
ameaçado pelo comunismo
soviético e, ocasionalmente, chinês. Por
outro,
empreendiam-se acções militares em áreas distantes
para
proteger os "interesses" das potências.
Na América Latina, o golpe
de Estado dado pelos
exércitos da zona tinha preferências pela
ameaça da
subversão interna. Alí, as Forças Armadas deixavam de
responder ao poder político e levantavam-se contra todo
o Direito e
contra toda a Constituição. Práticamente,
um continente se
encontrava militarizado, respondendo à
chamada "Doutrina da
Segurança Nacional". A
sequela de morte e atraso que deixaram
atrás de si
aquelas ditaduras, foi singularmente justificada ao longo
da cadeia de comando pela ideia da "obediência
devida". Com ela
explicou-se que na disciplina
castrense se seguem as ordens da
chefia imediata. Esta
perspectiva, que faz recordar as justificações
dos
genocidas do nazismo, é um ponto que deve ser
considerado na
hora de discutir os limites da disciplina
castrense. O nosso ponto de
vista quanto a este aspecto,
como já comentámos, é que se o
exército quebra a
dependência em relação ao poder político,
constitui-se numa força irregular, num bando armado fora
da lei. Este
ponto é claro mas admite uma excepção: o
levantamento militar
contra um poder político
estabelecido ilegalmente ou que se pôs em
situação
facciosa. As Forças Armadas não podem invocar
"obediência devida" a um poder ilegal porque
se convertem em
sustentáculos dessa irregularidade,
assim como noutras
circunstâncias também não podem
produzir o golpe militar fugindo à
função de cumprir o
mandato popular. Isto quanto à ordem interna e,
em
relação ao facto bélico internacional, não podem
atentar contra a
população civil do país inimigo.

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7. Reestruturação
militar

Em ordem ao recrutamento
dos cidadãos, o nosso ponto de vista é
favorável à
substituição do serviço militar obrigatório pelo
serviço
militar voluntário, sistema este que permitirá
uma maior qualificação
do soldado profissional. Porém,
a essa limitação de tropas
corresponderá também uma
redução importante do pessoal de
quadros e do pessoas
de chefia. E é claro que não se efectuará uma
reestruturação adequada sem prestar atenção aos
problemas
pessoais, familiares e sociais que isto poderá
acarretar em
numerosos exércitos que hoje mantêm um
esquema
sobredimensionado. A nova colocação laboral,
geográfica e de
inserção social desses contingentes
será equlibrada se se mantém
uma relação militar
flexível durante o tempo que requeira a
recolocação.
Na reestruturação que hoje tem lugar em diversas
partes
do mundo, deve ter-se em conta primariamente o modelo de

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país em que se efectua. Naturalmente, um sistema


unitário tem
características diferentes de um
federativo ou de diferentes países
que estão a confluir
numa comunidade regional. O nosso ponto de
vista,
favorável ao sistema federativo e aberto à
confederação
regional requer, para o correcto desenho
da reestruturação,
compromissos sólidos e permanentes
que permitam continuidade no
projecto. Se não existe uma
vontade clara das partes nesta direcção,
a
reestruturação não será possível porque o contributo
económico
de cada integrante estará submetido a
vaivéns políticos ocasionais.
Sendo esse o caso, as
tropas federais poderão existir só
formalmente e os
contingentes militares serão simplesmente o
somatório
do potencial de cada comunidade que faz parte da
federação. Isto trará também problemas de difícil
solução quanto ao
comando unificado. Em suma, será a
orientação política que terá
que dar as pautas e,
nessa situação, as forças armadas particulares
requerirão uma muito precisa e coordenada condução.

Um problema de relativa
importância na reestruturação é aquele que
se refere
a certos aspectos das forças de segurança. As forças
de
segurança, se não são militarizadas, actuam em
relação à ordem
interna e com referência à
protecção dos cidadãos, ainda que
estejam
habitualmente involucradas em operações de controlo
muito
distantes do fim para que foram criadas. O
organigrama em que se
inscrevem em muitos países fá-las
depender directamente das
pastas políticas, tais como o
Ministério da Administração Interna,
diferente do
Ministério da Guerra ou da Defesa. Por outro lado, as
polícias, entendidas como servidoras da cidadania e
dispostas de
maneira a que se cumpra uma ordem jurídica
não lesiva para os
habitantes de um país, têm um
carácter acessório e sob jurisdição
do poder
Judicial. Porém, muitas vezes, pelo seu carácter de
força
pública, realizam operações que aos olhos dos
cidadãos as fazem
aparecer como forças militares.
Percebe-se claramente a
inconveniência dessa confusão e
é do interesse das Forças
Armadas que estas
distinções fiquem claras. Outro tanto acontece
com os
diferentes organismos do Estado que manejam corpos
secretos e de informações, imbricados e sobrepostos,
que também
não têm que ver com o regime castrense. Os
exércitos requerem um
adequado sistema de informações
que lhes permitam operar com
eficiência e que não se
assemelham nada a mecanismos de controlo
e seguimento da
cidadania, porque a sua função diz respeito à
segurança da Nação e não ao beneplácito ou à
reprovação
ideológica do governo de turno.

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8. A
posição militar no processo revolucionário

Supõe-se que numa


democracia o poder provém da soberania
popular. Tanto a
conformação do Estado como a dos organismos
que de ele
dependem derivam da mesma fonte. Assim, o exército
cumpre com a função que lhe outorga o Estado para
defender a
soberania e dar segurança aos habitantes de
um país. Desde logo,
podem ocorrer aberrações segundo
seja o exército ou uma facção
que ocupem ilegalmente o
poder, conforme vimos anteriormente.
Porém, como também
mencionámos, poderia suceder o caso
extremo em que o
povo decidisse mudar esse tipo de Estado e esse
tipo de
leis, quer dizer, esse tipo de sistema. Incumbiria ao
povo
fazê-lo, não podendo existir uma estrutura estatal
e um sistema legal
por cima daquela decisão. Sem dúvida
que as cartas constitucionais
de muitos países
contemplam a possibilidade de que elas mesmas
sejam
modificadas por decisão popular. Desta maneira poderia
ocorrer uma mudança revolucionária na qual a democracia
formal dê
lugar à democracia real. Mas se se obstruisse
esta possibilidade
estar-se-ia a negar a própria origem
de onde brota toda a legalidade.
Em tal circunstância, e
tendo-se esgotado todos os recursos civis, é
obrigação
do exército cumprir com essa vontade de mudança
apeando
a uma facção instalada, já ilegalmente, no manejo da
coisa
pública. Chegar-se-ia desse modo, mediante a
intervenção militar, à
criação de condições
revolucionárias nas quais o povo põe em

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marcha um novo
tipo de organização social e um novo regime
jurídico. Não
é necessário destacar as diferenças entre a
intervenção militar que tem como objectivo devolver ao
povo a
sua soberania arrebatada, e o simples golpe
militar que rompe a
legalidade estabelecida por mandato
popular. Em ordem às
mesmas ideias, a
legalidade exige que se respeite a vontade do
povo mesmo
no caso de que este proponha mudanças
revolucionárias.
Porque é que as maiorias não haveriam de
expressar o
seu desejo de mudança de estruturas e, ainda, porque é
que não haveriam as minorias de ter a oportunidade de
trabalhar
politicamente para conseguir uma modificação
revolucionária da
sociedade? Negar por meio da
repressão e da violência a
vontade de mudança
revolucionária compromete seriamente a
legalidade do
sistema das actuais democracias formais.

Ter-se-á observado que


não aflorámos assuntos relativos à
estratégia nem à
doutrina militar, nem tão-pouco questões de
tecnologia
e organização castrense. Não poderia ser de outro
modo.
Nós estabelecemos o ponto de vista humanista
sobre as Forças
Armadas relacionadas com o poder
político e com a sociedade.
São os
Homens de armas que tem pela frente um enorme trabalho
teorético e de implementação prática para adaptar
esquemas a este
momento tão especial que está a viver o
mundo. A opinião da
sociedade e o genuíno interesse das
Forças Armadas em conhecer
essa opinião, ainda que não
seja especializada, é de fundamental
importância.
Paralelamente, uma relação viva entre membros de
exércitos de diferentes países e a discussão franca
com a sociedade
civil é um passo importante em ordem ao
reconhecimento da
pluralidade dos pontos de vista. Os
critérios de isolamento de uns
exércitos relativamente
a outros e de ensimesmamento com respeito
às
reclamações do povo são próprios de uma época em que
o
intercâmbio humano e objectal estava restringido. O
mundo mudou
para todos, também para as forças armadas.

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9. Considerações
em torno dos exércitos e da revolução

Hoje
impõem-se duas opiniões que nos interessam
especialmente. A
primeira anuncia que a época das
revoluções passou; a segunda,
que o protagonismo
militar na tomada de decisões políticas se
atenua
gradualmente. Também se supõe que somente em certos
países atrasados ou desorganizados permanecem
ameaçadoras
aquelas rémoras do passado. Por outro lado,
pensa-se que o
sistema de relações internacionais, ao
tomar um carácter cada vez
mais sólido, irá fazendo
sentir o seu peso até que aquelas antigas
irregularidades vão entrando na linha. Sobre a questão
das
revoluções, como já se expôs, temos um diametral
ponto de vista.
Quanto a que o concerto de nações
"civilizadas" vá impôr uma Nova
Ordem em que
não haja lugar para a decisão militar, é tema por
demais discutível. Nós destacamos que é,
precisamente, nas
nações e regiões que vão tomando
carácter imperial onde as
revoluções e a decisão
militar irão fazendo sentir a sua
presença. Mais cedo
ou mais tarde, as forças do dinheiro, cada
vez mais
concentradas, enfrentar-se-ão às maiorias e, nessa
situação, banca e exército tornar-se-ão termos
antitéticos.
Estamos, pois, situados nos
antípodas da interpretação dos
processos históricos.
Só os tempos já próximos irão pôr em
evidência a
correcta percepção dos factos, que para alguns,
seguindo a tradição dos últimos anos, serão
"incríveis". Com aquela
visão, que se dirá
quando isto aconteça? Provavelmente que a
humanidade
voltou ao passsado ou, mais vulgarmente, que "o
mundo enlouqueceu". Nós cremos que fenómenos como
o
irracionalismo crescente, o surgimento de uma forte
religiosidade e
outros tantos mais não estão situados
no passado, mas sim que
correspondem a uma nova etapa que
haverá que enfrentar com toda
a valentia intelectual e
com todo o compromisso humano de que
formos capazes. Em
nada ajudará continuar a sustentar que o
melhor
desenvolvimento da sociedade se corresponde com o mundo

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actual. Mais importante será compreender que a


situação que
estamos a viver leva directamente ao
colapso de todo um sistema
que alguns consideram
defeituoso mas "aperfeiçoável". Não existe
esse sistema actual "aperfeiçoável". Pelo
contrário, nele chega ao
máximo a desumanidade de todos
os factores que se foram
amassando ao longo de muitos
anos. Se alguém julga estas
afirmações como
destituídas de fundamento, está em todo o seu
direito
na condição de apresentar por seu lado uma posição
coerente. E se pensa que a nossa posição é pessimista,
afirmamos
que face a este processo mecânico negativo,
prevalecerá a direcção
rumo à humanização do mundo,
empurrada pela revolução que
acabarão por produzir os
grandes conjuntos humanos, hoje em dia
despojados do seu
próprio destino.

Recebam com esta carta os


meus melhores cumprimentos.

Silo
10/08/93

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo

  Nona
carta aos meus amigos

1. Violações
dos direitos humanos
2. Os
Direitos Humanos, a Paz e o Humanitarismo como
pretextos de intervenção
3. Os
outros direitos humanos
4. A
universalidade dos direitos humanos e a tese
cultural

Estimados amigos:

Tenho recebido muitas


vezes correspondência em que se pergunta:
"O que é
que se passa hoje com os Direitos Humanos?"
Pessoalmente não estou em condições de dar uma
resposta
ajustada. Creio, contudo, que aqueles que
subscreveram a
Declaração Universal dos Direitos
Humanos, quer dizer, mais de 160
Estados da Terra, devem
saber o que se passa. Esses Estados
assinaram a 10 de
Dezembro de 1948, ou mais adiante, a aceitação
daquele
documento elaborado no seio das Nações Unidas. Todos
compreenderam do que é que tratava, todos se
comprometeram a
defender os direitos proclamados. Também
se assinou um Tratado
de Helsinquia e os países
designaram representantes perante as
comissões de
direitos humanos e perante os tribunais internacionais.

[ Início da Página ]

1.
Violações dos direitos humanos

[ Qualquer sugestão é bem vinda ] Se, a modo de crónica


quotidiana, pegássemos no que aconteceu
neste campo nos
últimos tempos, teríamos que recolocar a pergunta
e
formulá-la assim: "O que é que se passa com o jogo
hipócrita dos
governos em relação aos direitos
humanos?" Bastaria seguir
minimamente as agências
noticiosas, prestar atenção aos jornais,
revistas,
rádios e T.V's. para responder a essa pergunta. Tomemos
como exemplo o último relatório da Amnistia
Internacional (apenas
1992) e exponhamos sumariamente
alguns dos dados fornecidos.

As violações dos
direitos humanos aumentaram no mundo com
catástrofes
destacadas como as guerras da Jugoslávia e Somália.
Houve prisioneiros de consciência em 62 países;
torturas
institucionais em 110 e assassinatos políticos,
usados pelos
governos, em 45. A guerra na
Bósnia-Herzegovina mostrou
claramente os abusos e
carnificinas efectuados por todas as facções
contra
dezenas de milhar de pessoas que foram assassinadas,
torturadas e submetidas à fome, muitas vezes só em
razão da sua
etnia. Noutros pontos, como o Tadjiquistão
e o Azerbeijão,
observaram-se os mesmos fenómenos. As
denúncias de torturas e
maus tratos por parte das
forças de segurança elevaram-se
consideravelmente na
Alemanha, França, Espanha, Portugal,
Roménia e Itália.
Nestes casos, a raça das vítimas desempenhou
um
importante papel. Os grupos armados de oposição no
Reino
Unido, Espanha e Turquia também cometeram
transgressões sérias
aos direitos humanos. Nos Estados
Unidos, foram executadas 31
pessoas (a maior cifra desde
1977, data em que se voltara a
instaurar a pena de
morte). Milhares de civis desarmados foram
mortos na
Somália neste período. Forças de segurança e
"esquadrões da morte" assassinaram ao redor de
4000 pessoas na
América Latina. Na Venezuela, ocorreram
dezenas de detenções e
execuções de presos políticos
durante a suspensão de garantias
constitucionais que
sobreveio após as tentativas de golpe de 4 de
Fevereiro
e 27 de Novembro. Em Cuba, manteve-se encarceradas,
por
razões políticas, cerca de 300 pessoas, mas como não
se
permitiu a entrada no país de observadores
internacionais da
Amnistia, também não se pôde
verificar a exactidão destes dados.
No Brasil, a
polícia matou 111 presos durante um motim prisional em
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta9.html 1/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo

S. Paulo, enquanto na mesma cidade, Rio de Janeiro e


outros
pontos do país, centenas de crianças e outros
"indesejáveis" foram
executados. No Peru, 139
pessoas "desapareceram" e outras 65
foram
executadas extrajudicialmente pelas forças de
segurança.
Receberam-se relatórios de maus tratos
generalizados em zonas
montanhosas camponesas e ao redor
de 70 pessoas foram
condenadas a prisão perpétua após
julgamentos irregulares. Os
grupos armados de oposição
também assassinaram várias dúzias
de pessoas em
diferentes pontos do território. Na Colômbia, as
reiteradas denúncias de violações aos direitos humanos
foram
desmentidas pelo gabinete presidencial respectivo,
atribuindo as
informações a opositores políticos
interessados em falsear a imagem
da realidade política
do país. No entanto, a Amnistia denunciou que
as Forças
Armadas e os grupos paramilitares executaram
extrajudicialmente não menos de 500 pessoas, ao mesmo
tempo
que os grupos armados de oposição e as
organizações de
narcotráfico assassinaram cerca de
200. Acrescenta Amnistia que a
luta contra os militantes
islâmicos provocou uma deterioração da
situação dos
direitos humanos em vários países árabes como a
Argélia e o Egipto. Torturas, processos injustos,
assassinatos
políticos, "desaparições" e
outras violações graves foram
perpetradas por agentes
governamentais em todo o Médio Oriente.
No Egipto, a
adopção de uma nova legislação "facilitou"
a tortura dos
presos políticos e 8 militantes
islâmicos, presumíveis integrantes de
um grupo armado,
foram condenados à morte por um tribunal militar
"após um processo não equitativo". Na
Argélia, até 10.000 pessoas
foram recluídas sem
acusação ou sem processo em acampamentos
isolados no
deserto. Por sua vez, grupos fundamentalistas
declararam-se responsáveis por assassinatos de civis e
por graves
violações dos direitos humanos na Argélia e
Egipto, assim como nos
territórios ocupados por Israel.
As detenções sem processo estão
particularmente
difundidas na Síria, mas também têm lugar em
Israel,
Líbia, Iraque, Kuwait, Arábia Saudita, Marrocos e
Tunísia. Na
China, a Amnistia chamou a atenção para a
quantidade de
prisioneiros de "consciência" e
para a existência de penas que
recaiem sobre activistas
políticos sem processos judiciais prévios.

Agências noticiosas de
diferente orientação têm exibido mapas do
mundo em que
se vê dezenas de países salpicados pelo atropelo
aos
direitos humanos e outros em que se contabilizam os
mortos em
guerras religiosas e inter-étnicas. Também
aparecem diversos
pontos em que milhares de pessoas têm
perecido por causa da fome
no seu lugar de origem ou no
meio de grandes migrações.

Porém, o acima mencionado


não esgota o tema dos direitos
humanos nem,
consequentemente, as violações que estes sofrem.

[ Início da Página ]

2. Os
Direitos Humanos, a Paz e o Humanitarismo como
pretextos
de intervenção

Hoje fala-se, com renovado


vigor, dos direitos humanos. No entanto,
mudou o signo
daqueles que fazem ondular estas bandeiras. Em
décadas
passadas, o progressismo trabalhou activamente na defesa
de princípios que tinham sido consagrados pelo consenso
das
nações. Evidentemente, não faltaram as ditaduras
que, em nome
daqueles direitos, zombaram da necessidade e
da liberdade pessoal
e colectiva. Algumas explicaram que,
contanto que não se discutisse
o sistema imperante, os
cidadãos teriam acesso à habitação, saúde,
educação e trabalho. Logicamente, disseram, não se
tinha que
confundir liberdade com libertinagem e
"libertinagem" era discutir o
regime.

Hoje, a direita recolheu


aquelas bandeiras e é vista activa na defesa
dos
direitos humanos e da paz, sobretudo naqueles países que
não
domina totalmente. Aproveitando alguns mecanismos
internacionais,
organiza forças de intervenção capazes
de chegar a qualquer ponto
do globo a fim de impôr a
"justiça". Em primeiro lugar, levam

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo

medicina e
alimento para depois arremeter com balázios contra as
populações, favorecendo a facção que melhor se lhes
subordine. Em
breve, qualquer quinta coluna poderá
invocar que no seu país se
altera a paz ou se espezinham
os direitos humanos para solicitar
ajuda dos
intervencionistas. Na realidade, aperfeiçoaram-se os
primitivos tratados e pactos para a defesa mútua com
documentos
que legalizam a acção de forças
"neutrais". Assim se implanta, hoje,
rejuvenescida, a velha Pax Romana. Enfim, são as
peripécias
ornitológicas que se iniciaram com a águia
dos estandartes
legionários, vindo esta depois a tomar
forma de pomba de Picasso,
até chegar o dia de hoje em
que ao plumífero lhe cresceram garras.
Já não regressa
à Arca bíblica transportando um ramo de oliveira,
antes
volta à arca de valores levando um dólar no seu forte
bico.

Adequadamente, tempera-se
tudo com ternas argumentações. E
nisto temos que ser
cuidadosos, porque mesmo quando se
interviesse em
terceiros países por razões humanitárias
evidentes
para todos, estabelecer-se-iam precedentes para
justificar novas acções sem razões tão humanitárias
nem tão
evidentes para todos. É de observar que
como consequência do
processo de mundialização, a
O.N.U. está a desempenhar um papel
militar crescente que
encerra não poucos perigos. Uma vez mais,
está-se a
comprometer a soberania e auto-determinação dos povos
mediante a manipulação dos conceitos de paz e de
solidariedade
internacional.

Deixemos os temas da paz


para outra ocasião e olhemos um pouco
mais de perto para
os direitos humanos que, como todos sabemos,
não se
limitam a questões de "consciência", de
liberdade política e
de expressão. A protecção destes
direitos também não se reduz a
evitar a perseguição,
a prisão e a morte dos cidadãos em razão das
suas
diferenças em relação a um dado regime. Isto é, não
se
circunscreve à defesa das pessoas perante a
violência física directa
que pudesse ser exercida
contra elas. Sobre este ponto há muita
confusão e muito
trabalho desordenado, mas algumas ideias básicas
ficaram
plasmadas na Declaração.

[ Início da Página ]

3. Os
outros direitos humanos

O documento, no artigo 2º
- 1, diz: "Todos os seres humanos podem
invocar os
direitos e liberdades proclamados na presente
Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de
raça, de cor,
de sexo, de língua, de religião, de
opinião política ou outra, de
origem nacional ou
social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer
outra
situação." E alguns dos direitos proclamados são
os seguintes:
Artigo 23º - 1. "Toda a pessoa tem
direito ao trabalho, à livre escolha
do trabalho, a
condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à
protecção contra o desemprego." Artigo 25º - 1.
"Toda a pessoa tem
direito a um nível de vida
suficiente para lhe assegurar e à sua
família a saúde
e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação,
ao
vestuário, ao alojamento, à assistência médica e
ainda quanto
aos serviços sociais necessários, e tem
direito à segurança no
desemprego, na doença, na
invalidez, na viuvez, na velhice ou
noutros casos de
perda de meios de subsistência por circunstâncias
independentes da sua vontade".

Os artigos subscritos
pelos estados membros baseiam-se na
concepção da
igualdade e universalidade dos direitos humanos. Não
estão no espírito nem na exposição taxativa da
Declaração
condições como: "... esses direitos
serão respeitados contanto que
não perturbem as
variáveis macroeconómicas." Ou então: "...
os
direitos mencionados serão respeitados quando se
chegue a uma
sociedade de abundância." Não
obstante, poder-se-ia distorcer o
sentido do exposto
apelando ao Artigo 22º - "Toda a pessoa, como
membro da sociedade, tem direito à segurança social; e
pode
legitimamente exigir a satisfação dos direitos
económicos, sociais e
culturais indispensáveis à sua
dignidade e ao livre desenvolvimento

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo

da sua
personalidade, graças ao esforço nacional e à
cooperação
internacional, de harmonia com a
organização e os recursos de cada
país."
Nesse "... de harmonia com a organização e os
recursos de
cada país", dilui-se o exercício
efectivo dos direitos e isso leva-nos
directamente à
discussão dos modelos económicos.

Suponhamos um país com


suficiente organização e recursos que, de
súbito,
passa ao sistema de economia de livre mercado. Em tal
situação, o Estado tenderá a ser um simples
"administrador", ao
mesmo tempo que a empresa
privada se preocupará pelo
desenvolvimento dos seus
negócios. Os orçamentos para a Saúde,
Educação e
Segurança Social serão progressivamente reduzidos. O
Estado deixará de ser "assistencialista", por
conseguinte não terá
responsabilidade em tal
situação. A empresa privada também não
terá de se
encarregar dos problemas, já que as leis que poderiam
obrigá-la a proteger esses direitos serão modificadas.
A empresa
entrará em conflito mesmo com regulações
sobre salubridade e
segurança laboral. Porém, a ideia e
a prática salvadora da
privatização da saúde porá a
empresa em situação de preencher o
vazio deixado na
anterior etapa de transição. Este esquema repetir-
se-á
em todos os campos à medida que avance o privatismo, que
se
ocupará de oferecer os seus eficientes serviços a
quem possa pagá-
los, com o que 20% da população terá
cobertas as suas
necessidades. Quem defenderá, então,
os direitos humanos dentro
da concepção universal e
igualitária se estes se exercerão "... de
harmonia com a organização e os recursos de cada
país"? Porque,
claro, "quanto mais pequeno
seja o Estado, mais próspera será a
economia desse
país", segundo explicam os defensores dessa
ideologia. Neste tipo de discussão, passar-se-á de
repente da
declamação idílica sobre a
"abundância geral" à brutalidade
expositiva
que, com carácter de ultimato, se apresentará
aproximadamente nestes termos: "Se as leis limitam o
capital, este
abandonará o país, não chegarão
investimentos, não haverá
empréstimos internacionais
nem refinanciamento de dívidas
contraídas
anteriormente, com o que se reduzirão as exportações e
a produção e, em suma, se comprometerá a ordem
social." Assim,
com toda a simplicidade, ficará
exposto um dos muitos esquemas de
extorsão. Se isto que
acabámos de comentar o fizemos derivar da
situação de
um país com suficientes recursos, na sua passagem
para a
economia de livre mercado, é fácil imaginar o
agravamento
de condições quando o país em questão
não conte com os
requisitos básicos de organização e
recursos. Tal como se está a
delinear a Nova Ordem
mundial e em razão da interdependência
económica, em
todos os países (ricos ou pobres), o capital
estará a
atentar contra a concepção universal e igualitária dos
direitos humanos.

A discussão anterior não


se pode colocar nos termos estritamente
gramaticais do
artigo 22º, porque nele (e em toda a Declaração dos
Direitos Humanos) não se está a pôr acima das pessoas
uma
valoração económica que relativize os seus
direitos. Também não é
legítimo introduzir argumentos
tangenciais ao explicar que, sendo a
economia a base do
desenvolvimento social, há que dedicar todos
os
esforços às variáveis macroeconómicas, para que, uma
vez
conseguida a abundância, se possa prestar atenção
aos direitos
humanos. Isso é tão toscamente linear como
dizer: "já que a
sociedade está submetida à lei
da gravidade, é necessário
concentrar-se neste problema
e, quando esteja resolvido, falaremos
dos direitos
humanos. Numa sociedade sã, os cidadãos não se
lembram
de construir em barrancos instáveis, porque dão por
assentes os condicionamentos da gravidade e, igualmente,
todo o
mundo sabe claramente o que são os
condicionamentos económicos
e a importância da sua
correcta resolução em função da vida
humana. De qualquer maneira, estas são digressões que
fogem ao
tema central.

A consideração sobre os
direitos humanos não fica reduzida a estas
últimas
questões de trabalho, remuneração e assistência, como
em
seu momento também não fora limitada aos âmbitos da
expressão
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política e da liberdade de consciência.


Destacámos algum defeito na
redacção da Declaração,
mas mesmo assim devemos convir que
bastaria uma
escrupulosa aplicação dos seus artigos por parte de
todos os governos, para que este mundo experimentasse uma
mudança positiva de grande importância.

[ Início da Página ]

4. A
universalidade dos direitos humanos e a tese cultural

Existem diversas
concepções do ser humano e esta variedade de
pontos de
vista tem muitas vezes por base as diferentes culturas a
partir das quais se observa a realidade. O que estamos a
explanar
afecta globalmente a questão dos direitos
humanos. Com efeito,
face à ideia de um ser humano
universal com os mesmos direitos e
com as mesmas
funções em todas as sociedades, hoje levanta-se a
tese
"cultural" que sustenta uma posição diferente
sobre estes
temas. Assim, os defensores dessa posição
consideram que os
supostos direitos universais do Homem
não são senão a
generalização do ponto de vista que
o Ocidente sustenta e que
pretende uma validade universal
injustificada. Tomemos, por
exemplo, o artigo 16º - 1.
"A partir da idade núbil, o homem e a
mulher têm o
direito de casar e de constituir família, sem
restrição
alguma de raça, nacionalidade ou religião.
Durante o casamento e
na altura da sua dissolução,
ambos têm direitos iguais." 16º - 2. "O
casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno
consentimento dos futuros esposos." 16º - 3.
"A família é o elemento
natural e fundamental da
sociedade e tem direito à protecção desta
e do
Estado." Estes três pontos do artigo 16º trazem
numerosas
dificuldades de interpretação e aplicação a
várias culturas que,
partindo do Médio Oriente e do
Levante, chegam à Asia e à Africa.
Quer dizer, trazem
dificuldades à maior parte da humanidade. Para
esse
mundo tão extenso e variado, nem mesmo o casamento e a
família coincidem com os parâmetros que pareciam tão
"naturais" ao
Ocidente. Por conseguinte, essas
instituições e os direitos humanos
universais a elas
referidos estão em discussão. Outro tanto acontece
se
pegarmos na concepção do Direito em geral e da
Justiça; se
confrontamos as ideias de punição com as
de reabilitação do
delinquente, tópicos estes sobre
que não há acordo mesmo entre os
países do mesmo
contexto cultural ocidental. Sustentar como válido
para
toda a humanidade o ponto de vista da própria cultura
leva a
situações francamente grotescas. Assim, nos
Estados Unidos
considera-se um atentado aos direitos
humanos universais o
seccionamento legal da mão do
ladrão, que se pratica nalguns
países árabes, enquanto
se discute academicamente se é mais
humano o gás
cianídrico, a descarga de 2000 volts, a injecção
letal,
o enforcamento ou outra macabra delícia da pena
capital. Porém,
também é verdade que, assim como neste
país há uma grande
porção da sociedade que repudia a
pena de morte, naquele outro
lugar são numerosos os
detractores de todo o tipo de castigo físico
para o
réu. O próprio Ocidente, arrastado pela mudança de
usos e
costumes, vê-se em dificuldades para sustentar a
sua ideia
tradicional da família "natural".
Pode existir hoje família com filhos
adoptivos? Claro
que sim. Pode existir família em que o casal esteja
constituído por membros do mesmo sexo? Algumas
legislações já o
admitem. O que define, então, a
família, o seu carácter "natural" ou o
compromisso voluntário de cumprir determinadas
funções? Em que
razões se pode basear a excelência da
família monogâmica de
algumas culturas em relação à
poligâmica ou poliândrica de outras
culturas? Se é
esse o estado da discussão, pode-se continuar a falar
de
um Direito universalmente aplicável à família? Quais
serão e
quais não serão os direitos humanos que se
devam defender nessa
instituição? Claramente, a
dialéctica entre a tese universalista
(pouco universal
na sua própria área) e a cultural não se pode
resolver
no caso da família (que usei como um dos muitos exemplos
possíveis), e receio que também não se possa
solucionar noutros
campos da actividade social.

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo

Digamo-lo de uma vez:


está aqui em jogo a concepção global do ser
humano,
insuficientemente fundamentada por todas as posturas em
pugna. A necessidade de tal concepção é evidente,
porque nem o
Direito em geral nem os direitos humanos em
particular poderão
prevalecer se não se clarificam no
seu significado mais profundo. Já
não é o caso de se
colocar em abstracto as questões mais gerais do
Direito.
Ou se trata de direitos que para serem vigentes
dependem do poder estabelecido, ou se trata de direitos
como
aspirações a cumprir. Sobre isto dissemos
noutra ocasião (A Lei, in
Paisagem Humana -
Humanizar a Terra): "Gentes práticas não se
perderam em teorizações e declararam que é necessário
que exista
uma lei para que exista a convivência social.
Também se tem
afirmado que a lei se faz para defender os
interesses daqueles que a
impõem. Tanto quanto parece,
é a situação prévia de poder que
instala uma
determinada lei, a qual por sua vez legaliza o poder.
Assim sendo, o poder como imposição de uma intenção,
aceite ou
não, é o tema central. Diz-se que a força
não gera direitos, mas este
contrasenso pode aceitar-se
se se concebe a força apenas como
facto físico brutal,
quando na realidade a força (económica, política,
etc.) não necessita ser exposta perceptivelmente para
estar presente
e impôr respeito. Por outro lado, mesmo a
força física (a das armas,
por exemplo), expressa na
sua descarnada ameaça, impõe
situações que são
justificadas legalmente, e não devemos
desconhecer que o
uso das armas numa ou noutra direcção
depende da
intenção humana e não de um direito..." E mais
adiante:
"Quem viola uma lei desconhece uma
situação imposta no presente,
expondo a sua
temporalidade (o seu futuro) às decisões de outros.
Mas
é claro que aquele "presente" em que a lei
começa a ter
vigência, tem raizes no passado. O
costume, a moral, a religião ou o
consenso social são
habitualmente as fontes invocadas para
justificar a
existência da lei. Cada uma delas, por sua vez, depende
do poder que a impôs. E estas fontes são revistas
quando o poder
que as originou, decaíu ou se transformou
de tal modo que a
manutenção da ordem jurídica
anterior começa a chocar com o
"razoável",
com o "sentido comum", etc. Quando o legislador
altera
uma lei ou um conjunto de representantes do povo
muda a Lei
Fundamental de um país, não se viola
aparentemente a lei em geral
porque aqueles que actuam
não ficam expostos às decisões de
outros, porque têm
nas suas mãos o poder, ou actuam como
representantes de
um poder, e nessa situação fica claro que o poder
gera
direitos e obrigações e não o inverso." Para
terminar a citação:
"os direitos humanos
não têm a vigência universal que seria
desejável
porque não dependem do poder universal do ser
humano,
mas sim do poder de uma parte sobre o todo. Se as
mais elementares reivindicações sobre o governo do
próprio corpo
são espezinhadas em todas as latitudes,
só podemos falar de
aspirações que terão que
converter-se em direitos. Os direitos
humanos não
pertencem ao passado, estão lá no futuro
absorvendo a
intencionalidade, alimentando uma luta que se
reaviva em
cada nova violação do destino do Homem. Por isso,
toda
a reclamação que se faça a favor deles tem sentido,
porque
mostra aos poderes actuais que não são
omnipotentes e que
não têm o futuro controlado."

Sobre a nossa concepção


geral do ser humano não é necessário
tornar aqui, nem
reafirmar que o reconhecimento que fazemos das
realidades
culturais diversas não invalida a existência de uma
comum estrutura humana em devir histórico e em
direcção
convergente. A luta pelo estabelecimento de
uma nação humana
universal é também a luta, a partir
de cada cultura, pela vigência de
direitos humanos cada
vez mais precisos. Se, numa dada cultura, de
repente se
ignora o direito à vida plena e à liberdade, pondo
acima
do ser humano outros valores, é porque ali algo se
desviou, algo
está em divergência com o destino comum
e, então, a expressão
dessa cultura nesse ponto preciso
deve ser claramente repudiada. É
certo que contamos com
formulações imperfeitas dos direitos
humanos, mas por
agora é o único que temos nas nossas mãos
para
defender e aperfeiçoar. Estes direitos hoje são
considerados
como simples aspirações e não podem ser
plenamente vigentes

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo

dados os poderes estabelecidos. A


luta pela plena vigência dos
direitos humanos leva,
necessariamente, ao questionamento
dos poderes actuais
orientando a acção para a substituição
destes pelos
poderes de uma nova sociedade humana.

Recebam com esta carta, os


meus melhores cumprimentos,

Silo
21/11/93

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo

  Décima
carta aos meus amigos

1. A
desestruturação e os seus limites
2. Alguns
campos importantes no fenómeno da
desestruturação
3. A
acção pontual

Estimados amigos:

Qual é o destino dos


acontecimentos actuais? Os optimistas pensam
que
entraremos numa sociedade mundial de abundância, na qual
os
problemas sociais ficarão resolvidos; uma espécie de
paraíso na
Terra. Os pessimistas consideram que os
sintomas actuais mostram
uma doença crescente das
instituições, dos grupos humanos e até
do sistema
demográfico e ecológico global; uma espécie de inferno
na Terra. Os que relativizam a mecânica histórica
deixam tudo
reservado ao comportamento que assumamos no
momento actual.
O céu ou o inferno dependerão da nossa
acção. Evidentemente, há
aqueles a quem não lhes
interessa minimamente o que venha a
acontecer a outros
que não eles mesmos.

Entre tantas opiniões,


importa-nos aquela que faz depender o futuro
daquilo que
façamos hoje. Contudo, mesmo nesta posição, há
diferenças de critério. Alguns dizem que como esta
crise foi
provocada pela voracidade da Banca e das
empresas
multinacionais, ao chegar a um ponto perigoso
para os seus
interesses, estas porão em marcha
mecanismos de recuperação, tal
como sucedeu em
ocasiões anteriores. Em matéria de acção,
[ Qualquer sugestão é bem vinda ] propiciam a
adaptação gradual aos processos de reconversão do
capitalismo em benefício das maiorias. Outros, pelo
contrário,
indicam que não se trata de fazer depender
toda a situação do
voluntarismo das minorias, portanto
trata-se de manifestar a vontade
das maiorias mediante a
acção política e o esclarecimento do povo
que se
encontra extorquido pelo esquema dominante. Segundo eles,
chegará um momento de crise geral do sistema e essa
situação
deve ser aproveitada para a causa da
revolução. Mais além, estão
aqueles que sustentam que
tanto o capital como o trabalho, as
culturas, os países,
as formas organizativas, as expressões
artísticas e
religiosas, os grupos humanos e até os indivíduos
estão
enredados num processo de aceleração
tecnológica e de
desestruturação que não controlam.
Trata-se de um longo processo
histórico que hoje vive
uma crise mundial e que afecta todos os
esquemas
políticos e económicos, não dependendo destes a
desorganização geral nem a recuperação geral. Os
defensores
dessa visão estrutural insistem que é
necessário forjar uma
compreensão global destes
fenómenos, ao mesmo tempo que
se actua nos campos
mínimos de especificidade social, grupal e
pessoal. Dada
a inter-conexão do mundo, não sustentam um
gradualismo
com êxito que seria adoptado socialmente ao
longo do
tempo, antes tratam de gerar uma série de "efeitos
demonstração" suficientemente enérgicos para
produzir uma
inflexão geral do processo.
Consequentemente, exaltam a
capacidade construtiva do ser
humano para se dedicar a transformar
as relações
económicas, modificar as instituições e lutar sem
descanso para desarmar todos os factores que estão a
provocar
uma involução sem retorno. Nós aderimos a
esta última postura.
Está claro que tanto esta como as
anteriores foram simplificadas e,
além disso, eludiu-se
múltiplas variantes que derivam de cada uma
delas.

[ Início da Página ]

1. A
desestruturação e os seus limites

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta10.html 1/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo

Torna-se pertinente
destacar os limites da desestruturação política,
considerando que esta não se deterá até chegar à base
social e ao
indivíduo. Exemplifiquemos. nalguns países
torna-se mais evidente
que noutros a perda do poder
político centralizado. Graças ao
fortalecimento das
autonomias ou à pressão das correntes
secessionistas,
ocorre que determinados grupos de interesses, ou
simples
oportunistas, desejariam parar o processo justamente no
ponto em que o controlo da nova situação ficasse nas
suas mãos.
De acordo com essas aspirações, o cantão
secessionado ou a nova
república separada do país
anterior, ou a região autónoma libertada
do poder
central, deveriam permanecer como as novas estruturas
organizativas. Mas acontece que estes poderes começam a
ser
questionados pelas micro-regiões, pelos municípios
ou comunas,
pelos condados, etc.. Ninguém vê por que
razão uma região
autónoma libertada do poder central
deveria, por sua vez, centralizar
o poder relativamente a
unidades menores, por mais que se desse
como pretexto o
uso do mesmo idioma, ou um folclore comum, ou
uma
imponderável "colectividade histórica e
cultural", porque quando
se trata de cobrança
fiscal e de finanças, o folclore fica somente
para o
turismo e para as companhias discográficas. Caso os
municípios se emancipassem do poder autonómico, as
freguesias
aplicariam a mesma lógica e assim haveria de
continuar essa cadeia
até aos vizinhos que vivem
separados por uma rua. Alguém poderia
dizer:
"Porque é que nós que vivemos deste lado da linha,
teríamos
de pagar os mesmos impostos que os que vivem do
outro lado? Nós
temos condições de vida mais altas e
os nossos impostos vão
solucionar os problemas dessa
outra gente que não quer progredir
com o seu esforço. O
melhor é que cada um se arranje com o que é
seu".
Desde logo, em cada casa da vizinhança poder-se-iam
escutar
as mesmas inquietudes e ninguém poderia parar
esse processo
mecânico justamente no ponto em que lhe
interessasse. Quer dizer,
não se travaria tudo com um
simples processo de feudalização ao
estilo medieval,
determinado por populações reduzidas e distantes e
por
relações de intercâmbio esporádicas através de vias
de
comunicação controladas pelos feudos em luta ou por
bandos
cobradores de portagens. A situação não se
assemelha à de outras
épocas em matéria de produção,
consumo, tecnologia,
comunicações, densidade
demográfica, etc..

Por outro lado, as


regiões económicas e os mercados comuns
tendem a
absorver o poder decisório dos antigos países. Numa
dada
região, as autonomias poderiam eludir a antiga
unidade nacional,
mas também os municípios, ou grupos
de municípios, tenderiam a
"saltar" os velhos
níveis administrativos e pedir a sua integração na
nova superestrutura regional, reclamando a sua
participação como
membro pleno. Aquelas autonomias, ou
municípios, ou grupos de
municípios, que contassem com
um forte potencial económico
poderiam ser levados a
sério pela unidade regional.

Não é de excluir que, na


guerra económica entre os diferentes
blocos regionais,
alguns países membros comecem a estabelecer
relações
"bilaterais ou multilaterais" escapando à
órbita do mercado
regional em que estão incluídos.
Porque é que a Inglaterra, por
exemplo, não poderia
estabelecer relações mais estreitas com o
N.A.F.T.A. da
América do Norte, conseguindo de início excepções
dentro da C.E.E. e depois, de acordo com o avanço dos
negócios, o
que é que impediria que se incluísse no
novo mercado regional
abandonando o anterior? E se o
Canadá entrasse num processo de
secessão, o que é que
impediria que o Quebec começasse
negociações fora da
região do N.A.F.T.A.? Já não poderiam existir
na
América do Sul organizações do tipo da A.L.A.L.C. ou
do Pacto
Andino se a Colômbia e o Chile começassem a
integrar as suas
economias com vista à adesão ao
N.A.F.T.A., perante um
MERCOSUR que se veria afectado por
possíveis secessões no
Brasil. Por outro lado, se a
Turquia, a Argélia e outros pontos do sul
do
Mediterrâneo começassem a sua integração na C.E.E.,
os países
excluídos reforçariam a sua mútua
aproximação para negociar como
conjunto com outras
áreas geográficas. E o que é que se passaria
no
contexto dos blocos regionais que hoje se visualizam, com

https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta10.html 2/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo

potências como a China, Rússia e o Leste europeu, dadas


as suas
rápidas transformações centrífugas?

Provavelmente, as coisas
não virão a resultar como nos exemplos
que demos, mas a
tendência para a regionalização pode tomar
caminhos
inesperados e resultar num esquema bem diferente do
que
hoje se pensa com base na contiguidade geográfica e,
portanto,
com base no vulgar preconceito geo-político.
De modo que uma
nova desordem pode ocorrer dentro de
esquemas recentes que têm
como objectivo não só a
união económica mas também uma
intenção de bloco
político e militar. E como, em suma, será o grande
capital a decidir a melhor evolução dos seus negócios,
ninguém
deveria estar muito seguro imaginando mapas
regionais arranjados
de acordo com a contiguidade
geográfica, na qual a estrada, a via
férrea e o enlace
radial foram os protagonistas, mas que hoje
tendem a
ficar redesenhados por um tráfego aéreo e marítimo de
grande volume e pela comunicação mundial via satélite.
Já na época
do colonialismo, a continuidade geográfica
foi substituída por um
tabuleiro ultramarino de grandes
potências, que foi declinando com
os dois conflitos
mundiais. A reacomodação actual, para alguns,
retrotrai
o problema a etapas pré-coloniais, fazendo-lhes imaginar
que uma região económica deve estar organizada num continuum
espacial com o qual projectam o seu nacionalismo
particular para
uma espécie de "nacionalismo"
regional.

Em suma, estamos a dizer


que os limites da desestruturação não
estão
determinados, no particular, pelos novos países
emancipados ou pelas autonomias libertadas de um poder
central, e que também não estão determinados, no
geral, por
regiões económicas organizadas com base na
contiguidade
geográfica. Os limites mínimos na
desestruturação estão a
chegar ao simples vizinho e ao
indivíduo e os máximos à
comunidade mundial.

[ Início da Página ]

2. Alguns
campos importantes no fenómeno da desestruturação

Gostaria de destacar,
entre tantos outros possíveis, três campos de
desestruturação: o político, o religioso e o
geracional.

Fica claro que os partidos


se alternarão ocupando o já reduzido
poder estatal,
ressurgindo como "direita", "centro"
e "esquerda". Já
acontecem e acontecerão
muitas "surpresas" ao comprovar-se que
as
forças dadas por desaparecidas emergem novamente e que
agrupamentos e alinhamentos entronizados desde há
décadas atrás
se dissolvem no meio do descrédito
geral. Isto não é uma novidade
no jogo político. O que
é mesmo original é que tendências
supostamente opostas
poderão suceder-se sem modificar
minimamente o processo
desestruturador, que, desde logo, as
afectará também a
elas próprias. E se se trata de propostas,
linguagem e
estilo político, poderemos assistir a um sincretismo
geral no qual os perfis ideológicos ficarão cada dia
menos nítidos.
Perante uma luta de slogans e formas
vazias, o cidadão médio ir-se-
á afastando de toda a
participação para se concentrar no mais
perceptual e
imediato. Mas a desconformidade social far-se-á sentir
crescentemente mediante o espontaneísmo, a
desobediência civil, a
desordem e o surgimento de
fenómenos psico-sociais de
crescimento explosivo. É
neste ponto que aparece com perigosidade
o
neo-irracionalismo, o qual pode vir a liderar assumindo
formas de
intolerância como bandeira de luta. Neste
sentido, é claro que se um
poder central pretende
asfixiar as reclamações independentistas, as
posições
tenderão a radicalizar-se arrastando as agrupações
políticas à sua própria esfera. Que partido poderá
ficar indiferente
(com risco de perder a sua influência)
se explode, num dado ponto,
a violência motivada pela
questão territorial, étnica, religiosa ou
cultural? As
correntes políticas terão de tomar posição como hoje
sucede em vários lugares de África (18 pontos em
conflito); América
(Brasil, Canadá, Guatemala e
Nicarágua, sem considerar as

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo

reivindicações das
colectividades indígenas do Equador e outros
países da
América do Sul, e sem atender à agudização do
problema
racial nos E.U.A.); Asia (10 pontos, contando o
conflito sino-tibetano,
mas sem destacar as diferenças
inter-cantonais que estão a surgir
ao longo de toda a
China); Asia do Sul e do Pacífico (12 pontos,
incluindo
as reivindicações das colectividades autóctones da
Austrália); Europa Ocidental (16 pontos); Europa
Oriental (4 pontos,
tomando a República Checa e a
Eslováquia, a ex-Jugoslávia, o
Chipre e a ex-União
Soviética como um só ponto cada uma, pois de
outro modo
as zonas em conflito podem elevar-se a 30, tendo em
conta
os vários países dos Balcãs e a ex-União Soviética,
com
dificuldades interétnicas e fronteiriças em mais de
vinte repúblicas
repartidas para além da Europa
Oriental); Oriente e Médio Oriente (9
pontos).

Os políticos também
terão de fazer eco da radicalização que as
religiões
tradicionais vão experimentando, como ocorre entre
muçulmanos e hindus na India e Paquistão, entre
muçulmanos e
cristãos na ex-Jugoslávia e Líbano,
entre hindus e budistas no Sri
Lanka. Deverão tomar
posição nas lutas inter-seitas dentro de uma
mesma
religião, como se passa na zona de influência do Islão
entre
sunitas e xiitas, e na zona de influência do
cristianismo entre
católicos e protestantes. Terão de
participar na perseguição religiosa
que começou no
Ocidente através da Imprensa e da instauração de
leis
limitadoras da liberdade de culto e de consciência. É
evidente
que as religiões tradicionais tenderão a
acossar as novas formas
religiosas que estão a despertar
em todo o mundo. Segundo os
bem-pensantes, normalmente
ateus mas objectivamente aliados da
seita dominante, a
fustigação aos novos grupos religiosos "não
constitui uma limitação à liberdade de pensamento, mas
sim uma
protecção à liberdade de consciência que se
vê agredida pela
lavagem ao cérebro dos novos cultos,
os quais, além do mais,
atentam contra os valores
tradicionais, a cultura e a forma de vida da
civilização". Deste modo, políticos alheios ao
tema religioso
começam a tomar partido nesta orgia de
caça às bruxas porque,
entre outras coisas, vislumbram
a popularidade massiva que
começam a conseguir estas
novas expressões de fé de fundo
revolucionarista. Já
não poderão dizer, como no século XIX, " a
religião é o ópio dos povos", já não poderão
falar do isolamento
adormecido das multidões e dos
indivíduos, quando as massas
muçulmanas proclamam a
instauração de repúblicas islâmicas;
quando o budismo
no Japão (desde o colapso da religião nacional
xintoísta no final da segunda guerra mundial) motoriza a
tomada do
poder pelo Komeitó; quando a Igreja Católica
tende à formação de
novas correntes políticas após o
desgaste do social-cristianismo e
do Terceiro Mundismo na
América Latina e África. Em todo o caso,
os filósofos
ateus dos novos tempos terão que mudar os termos e
substituir no seu discurso o "ópio dos povos"
pela "anfetamina dos
povos".

Os dirigentes terão que


definir posições com respeito a uma
juventude que toma
características de "grupo de risco
maioritário"
porque lhe são atribuídas
tendências perigosas para a droga, a
violência e a
incomunicação. Estes dirigentes que insistem em
ignorar
as raizes profundas desses problemas, não estão em
condições de dar respostas adequadas por meio da
participação
política, do culto tradicional, ou das
ofertas de uma civilização
decadente manejada pelo
Dinheiro. Entretanto, está-se a facilitar a
destruição
psíquica de toda uma geração e o surgimento de novos
poderes económicos que medram vilmente com a angústia e
o
abandono psicológico de milhões de seres humanos.
Muitos se
interrogam agora a que se deve o crescimento da
violência entre os
jovens, como se não tivessem sido as
velhas gerações e a actual,
que detém o poder, as que
aperfeiçoaram uma violência sistemática,
aproveitando
inclusivamente os avanços da ciência e da tecnologia
para tornar mais eficientes as suas manipulações.
Alguns destacam
um certo "autismo" juvenil e,
tendo em conta essa apreciação,
poderia estabelecer-se
relações entre o prolongamento de vida dos
adultos e o
maior tempo de capacitação requerido para que os

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo

jovens
superem o limiar de postergação. Esta explicação tem
por
onde se lhe pegue, mas é insuficiente na hora de
entender
processos mais amplos. O observável é que a
dialéctica geracional,
motor da História, ficou
provisoriamente obstruída e com isso abriu-
se um
perigoso abismo entre dois mundos. Aqui é oportuno
recordar
que quando algum pensador advertiu há décadas
atrás sobre
aquelas tendências que hoje já se
expressam como problemas reais,
os mandarins e os seus
formadores de opinião não souberam mais
do que
rasgar-se as vestes acusando tal discurso de promover a
guerra geracional. Naqueles tempos, uma poderosa força
juvenil que
deveria ter exprimido o advento de um
fenómeno novo, mas também
a continuação criativa do
processo histórico, foi desviada para as
difusas
exigências da década de 60 e empurrada para um
guerrilheirismo sem saída em vários pontos do mundo. Se
se
pretende actualmente que as novas gerações canalizem
o seu
desespero no tumulto musical e no estádio de
futebol, limitando as
suas reivindicações à camisola e
ao poster de inocentes
proclamações, haverá novos
problemas. Tal situação de asfixia cria
condições
catárticas irracionais aptas para ser canalizadas pelos
fascistas, os autoritários e os violentistas de todo o
tipo. Não é
semeando a desconfiança em relação aos
jovens, nem suspeitando
de cada criança como um
criminoso em potência, que se
estabelecerá o diálogo.
Aliás, ninguém mostra entusiasmo em dar
participação
nos meios de comunicação social às novas gerações,
ninguém está disposto à discussão pública destes
problemas, a
menos que se trate de "jovens
exemplares" que reproduzam a
temática politiqueira
com música rock ou se dediquem, com espírito
de
escuteiros, a limpar pinguins todos sujos de petróleo
sem
questionar o grande capital como promotor do desastre
ecológico!
Receio seriamente que qualquer organização
genuinamente juvenil
(seja ela laboral, estudantil,
artística ou religiosa) será suspeita das
piores
maldades não estando apadrinhada por um sindicato, um
partido, uma fundação ou uma igreja. Depois de tanta
manipulação,
continuar-se-á a perguntar por que razão
não se integram os jovens
nas maravilhosas propostas que
faz o poder estabelecido e
continuar-se-á a responder
que o estudo, o trabalho e o desporto
mantêm ocupados os
futuros cidadãos de proveito. Nesse caso,
ninguém se
deveria preocupar pela falta de
"responsabilidade" de
gente tão atarefada.
Porém, se o desemprego continua a trepar, se a
recessão
se torna crónica, se o desamparo se propaga por onde
quer que seja, veremos em que se transforma a não
participação de
hoje. Por diferentes motivos (guerras,
fomes, desemprego, fadiga
moral), desestruturou-se a
dialéctica geracional produzindo-se
aquele silêncio de
duas longas décadas, aquela quietude que tende
agora a
ser comovida por um grito e por uma acção desesperada
sem destino.

Por todo o exposto, parece


claro que ninguém poderá orientar
razoavelmente os
processos de um mundo que se dissolve. Esta
dissolução
é trágica, mas também anuncia o nascimento de uma
nova
civilização, a civilização mundial. A ser isto assim,
também se
há-de estar a desintegrar um tipo de
mentalidade colectiva ao
mesmo tempo que emerge uma nova
forma de tomar consciência do
mundo. Sobre este ponto
gostaria de trazer aqui o dito na primeira
carta:
"... está a nascer uma sensibilidade que se
corresponde com
os novos tempos. É uma sensibilidade que
capta o mundo como
uma globalidade e que se dá conta de
que as dificuldades das
pessoas em qualquer lugar acabam
por implicar outras, ainda que se
encontrem a muita
distância. As comunicações, o intercâmbio de
bens e a
veloz deslocação de grandes contingentes humanos de um
ponto para outro, mostram esse processo de
mundialização
crescente. Também estão a surgir novos
critérios de acção ao
compreender-se a globalidade de
muitos problemas, percebendo-se
que a tarefa daqueles que
querem um mundo melhor será efectiva
se se a faz crescer
a partir do meio no qual se tem alguma
influência. Ao
contrário de outras épocas cheias de frases ocas com
as
quais se procurava reconhecimento externo, hoje
começa-se a
valorizar o trabalho humilde e sentido,
mediante o qual não se
pretende engrandecer a própria
figura, mas sim mudar-se a si

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo

mesmo e ajudar o meio


imediato familiar, laboral e de relação a fazê-
lo. Os
que gostam realmente das pessoas não desprezam essa
tarefa sem estridências, incompreensível, ao invés,
para qualquer
oportunista formado na antiga paisagem dos
líderes e da massa,
paisagem na qual ele aprendeu a usar
outros para ser catapultado
para a cúpula social. Quando
alguém comprova que o individualismo
esquizofrénico já
não tem saída e comunica abertamente a todos os
seus
conhecidos o que é que pensa e o que é que faz, sem o
ridículo temor de não ser compreendido; quando se
aproxima de
outros; quando se interessa por cada um e
não por uma massa
anónima; quando promove o
intercâmbio de ideias e a realização de
trabalhos em
conjunto; quando claramente expõe a necessidade de
multiplicar essa tarefa de reconexão num tecido social
destruído por
outros; quando sente que mesmo a pessoa
mais "insignificante" é de
superior qualidade
humana que qualquer desalmado posto no cume
da conjuntura
epocal...Quando sucede tudo isto, é porque no interior
desse alguém começa a falar novamente o Destino que tem
movido
os povos na sua melhor direcção evolutiva; esse
Destino tantas
vezes desviado e tantas vezes esquecido,
mas sempre reencontrado
nas encruzilhadas da história.
Não só se vislumbra uma nova
sensibilidade, um novo
modo de acção, como também, além disso,
uma nova
atitude moral e uma nova disposição táctica perante a
vida".

Centenas de milhar de
pessoas em todo o mundo aderem hoje às
ideias plasmadas
no Documento Humanista. Existem os
comunista-humanistas;
os social-humanistas; os ecologista-
humanistas que, sem
renunciar às suas bandeiras, dão um passo
rumo ao
futuro. Há os que lutam pela paz, pelos direitos humanos
e
pela não-discriminação. Desde logo, há ateus e
gente com fé no ser
humano e na sua transcendência.
Todos estes têm em comum uma
paixão pela justiça
social, um ideal de irmandade humana com base
na
convergência da diversidade, uma disposição para
saltar por
sobre todo o preconceito, uma personalidade
coerente em que a
vida pessoal não está separada da
luta por um mundo novo.

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3. A
acção pontual

Ainda restam militantes


políticos que se inquietam em saber quem
será
primeiro-ministro, presidente, senador ou deputado. É
possível
que não compreendam rumo a que
desestruturação estamos a
avançar e que pouco
significam as mencionadas "hierarquias" em
ordem à transformação social. Também haverá mais de
um caso em
que a inquietude está ligada à situação
pessoal de supostos
militantes preocupados pela sua
posição no âmbito do negócio
político. A pergunta,
em todo o caso, deve estar referida a
compreender
como priorizar os conflitos nos lugares em que
cada um
desenvolve a sua vida quotidiana, e a saber como
organizar frentes de acção adequadas com base nesses
conflitos. Em todos os casos, deve ficar claro
que características
devem ter as comissões laborais e
estudantis de base, os centros de
comunicação directa e
as redes de conselhos vicinais; o que se deve
fazer para
dar participação a todas as organizações mínimas em
que
se expresse o trabalho, a cultura, o desporto e a
religiosidade
popular. E aqui convém esclarecer que
quando nos referimos ao
meio imediato das pessoas,
formado por companheiros de trabalho,
parentes e amigos,
devemos mencionar, em particular, os lugares
em que se dão essas relações.

Falando em termos
espaciais, a unidade mínima de acção é a
comunidade
de vizinhos, na qual se percepciona todo o
conflito,
mesmo que as suas raizes estejam muito distantes.
Um
centro de comunicação directa é um ponto vicinal no
qual se há-de
discutir todos os problemas económicos e
sociais, todos os
problemas de saúde, de educação e de
qualidade de vida. A
preocupação política consiste em
priorizar essa vizinhança, antes do
que o município, do
que o condado, do que a província, do que a

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo

região ou
do que o país. Na verdade, muito antes de se formarem os
países, existiam as pessoas congregadas como grupos
humanos
que, ao se radicarem, se converteram em vizinhos.
Depois, e à
medida que se foram montando superestruturas
administrativas, foi-
se-lhes arrebatando a sua autonomia
e o seu poder. Desses
habitantes, desses vizinhos, deriva
a legitimidade de uma dada
ordem e de aí se deve erguer
a representatividade de uma
democracia real. O município
deve estar nas mãos das unidades
vicinais e, se isto é
assim, não se pode planear como objectivo
colocar
deputados e representantes em diferentes níveis, como
acontece na política cupular, já que essa colocação
deve ser
consequência do trabalho da base
social organizada. O conceito de
"unidade
vicinal" tanto é válido para uma povoação
extensa como
para uma povoação concentrada em bairros
ou edificações em
altura. A conexão entre unidades
vicinais deve decidir a situação de
uma dada comuna e
essa comuna não pode, inversamente,
depender nas suas
decisões de uma superestrutura que dita ordens.
No
momento em que as unidades vicinais ponham em marcha um
plano humanista de acção municipal e esse município ou
comuna
organize a sua democracia real, o "efeito
demonstração" far-se-á
sentir muito mais além
dos limites desse bastião. Não se trata de
planear um
gradualismo que deva ir ganhando terreno até chegar a
todos os cantos de um país, mas sim de mostrar, na
prática, que
num dado ponto está a funcionar um novo
sistema.

Os problemas de pormenor
que todo o exposto apresenta são
numerosos, mas o seu
tratamento neste escrito parece excessivo.

Recebam com esta última


carta os meus melhores cumprimentos.

Silo
15/12/93

[ Início da Página ]

  

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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Conferência) - Silo

  Conferência
de apresentação do livro "Cartas
aos meus
amigos"

Agradeço às
instituições organizadoras deste Primeiro Encontro da
Cultura Humanista o convite que oportunamente me enviaram
para
apresentar o livro, de edição chilena,
"Cartas aos Meus Amigos".
Agradeço as palavras
pronunciadas por Luis Felipe García em
representação
de Virtual Ediciones.

Agradeço a intervenção
de Volodia Teitelboim, a quem gostaria de
responder
futuramente e comentar, com o detalhe que merecem,
muitos
dos brilhantes conceitos que expressou nesta ocasião.

Agradeço a presença de
destacadas personalidades da cultura, dos
meios de
comunicação social e, evidentemente, dos numerosos
amigos que hoje nos acompanham.

Nesta breve exposição,


gostaria de ambientar o livro que hoje se
lança
publicamente, destacando que não se trata de uma obra
sistemática, mas sim de uma série de comentários
apresentados no
conhecido, e tantas vezes utilizado,
estilo epistolar. Desde as
"epístolas morais"
de Séneca, chegou até hoje uma farragem de
exposições que se disseminaram pelo mundo e que
tiveram, com
certeza, uma influência e interesse
díspares. Hoje, são já muito
conhecidas as
"cartas abertas" que, ainda que pareçam
dirigidas a
uma pessoa, uma instituição ou um governo,
estão escritas com a
intenção de chegar mais além do
destinatário explícito, quer dizer,
com a intenção de
chegar aos grandes públicos. Foi neste último
[ Qualquer sugestão é bem vinda ] sentido
que se pensou o nosso presente trabalho. O título
completo
do volume é "Cartas aos meus amigos sobre
a crise social e pessoal
no momento actual". Quem
são estes "amigos" a quem se dirigem
as
missivas? São, sem dúvida, aquelas pessoas que
coincidem ou
diferem da nossa postura ideológica, mas
que, em todos os casos, o
fazem com a genuína intenção
de lograr uma maior compreensão e
uma melhor adequação
da acção para superar a crise que estamos
a viver. Isso
quanto ao destinatário. Quanto à temática, não se
deixou de destacar o campo de crise no qual se inscrevem
tanto as
sociedades como os indivíduos. Consideramos o
conceito de crise
no seu sentido mais habitual de final
de um acontecer que se resolve
numa ou noutra direcção.
A "crise" faz sair de uma situação e entrar
noutra nova que levanta os seus próprios problemas.
Entende-se
popularmente a "crise" como uma fase
perigosa de que pode
resultar algo benéfico ou
pernicioso para as entidades que a
experimentam e estas
entidades são, neste caso, a sociedade e os
indivíduos.
Para alguns, é redundante considerar os indivíduos uma
vez que estes já são implicados ao falar-se de
sociedade, mas do
nosso ponto de vista isto não é
correcto e a pretensão de fazer
desaparecer um dos
termos apoia-se numa análise que não
partilhamos. Com
isto, dou por concluído o comentário sobre o título
do
livro.

[ Início da Página ]

Ora bem, a ordem razoável


do discurso indica que se deveria entrar
no tema com o
estudo dos conteúdos da obra. No entanto,
preferiríamos
não seguir essa sequência escolar, mas antes
adentrar-nos nas intenções que determinaram toda esta
produção.
Estas intenções consistem em recolher o
pensamento do Novo
Humanismo e verter o seu ditame sobre
a situação que nos cabe
viver. O Novo Humanismo está a
advertir para a crise geral da
civilização e está a
propôr umas medidas mínimas a tomar para
superar esta
crise. O Novo Humanismo está consciente do
apocalipsismo
de final de século e de final de milénio de acordo com
o que ensina a História. Bem sabemos que nestas
conjunturas
epocais se levantam as vozes de quem proclama
o fim do mundo e
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Conferência) - Silo

que, traduzidas a diverso folclore,


assinalam o fim do ecossistema,
ou o fim da História, ou
o fim das ideologias, ou o fim do ser humano
apanhado
pela máquina, etc. Nada disto sustenta o Novo
Humanismo,
que diz simplesmente: "Hei, amigos, há que mudar o
rumo!" Ninguém quer ouvir-nos? Estamos equivocados?
Tanto
melhor; se estamos equivocados é porque as coisas
avançam por
um caminho justo e vamos percorrendo a via
para o Paraíso na
Terra. Alguns estruturalistas
dir-nos-ão que a crise actual é uma
simples
reacomodação do sistema, um reordenamento necessário
de factores num sistema que continua a realimentar o
progresso;
alguns pós-modernistas afirmarão que
simplesmente se desajustou
o relato do século XIX e que
os "decisores" sociais estão a oferecer
um
incremento de poder e de pacificação graças à
transparência
tecnológica e comunicacional. Ah, bem,
amigos!, podemos
descansar confiando em que a Nova Ordem
se encarregará de
pacificar o mundo. Não mais
Jugoslávias, Médio Oriente, Burundi ou
Sri Lanka. Não
mais fomes, não mais 80% da população mundial no
limiar e abaixo do limiar de subsistência. Não mais
recessão, não
mais despedimentos, não mais
destruição das fontes de trabalho.
Agora sim,
administrações cada vez mais limpas, taxas de
escolaridade e de educação crescentes, diminuição da
delinquência
e da insegurança dos cidadãos,
diminuição do alcoolismo e da
toxicodependência... em
suma, conformidade e felicidade crescentes
para todos.
Isso está bem, amigos. Sejamos pacientes, o Paraíso
está próximo!... Mas se isto não fosse assim, se a
situação actual
continuasse a deteriorar-se ou se se
perdesse o controlo, quais
seriam as alternativas a
seguir?

É esse o discurso das


"Cartas aos meus amigos". E não cremos que
seja ofensivo considerar, a modo de tímida opinião, a
possibilidade
de que aconteça um penoso desenlace.
Ninguém se ofende por os
edifícios contarem com as suas
escadas de emergência, por os
cinemas e os lugares de
reunião pública estarem apetrechados com
extintores,
com saídas de emergência; ninguém protesta por os
estádios desportivos se verem obrigados a habilitar
portões de saída
suplementares. E, evidentemente,
quando se vai ao cinema ou se
entra num edifício, não
se está a pensar em incêndios ou
catástrofes, porque
tudo se entende no contexto da prudência. Se
não se
incendeia o edifício, nem o cinema, nem se produz a
desordem no estádio, tanto melhor!

Na sexta Carta abriga-se o


Documento dos Humanistas, no qual
estes expõem as suas
ideias mais gerais, a sua alternativa à crise.
Não é
um Documento desmancha-prazeres, não é um ideário
pessimista, é uma exposição sobre a crise e uma
apresentação de
alternativas. Ao lê-lo, mesmo aqueles
que não estivessem de acordo
deveriam dizer: "Bem,
é uma alternativa. Devemos cuidar destes
rapazes, as
sociedades necessitam de escadas de emergência. Não
são nossos inimigos, são a voz da sobrevivência".

[ Início da Página ]

O Documento dos
Humanistas, que a sexta Carta recolhe, diz-nos:
"Os
humanistas põem à frente a questão do trabalho face ao
grande
capital; a questão da democracia real face à
democracia formal; a
questão da descentralização face
à centralização; a questão da
antidiscriminação
face à discriminação; a questão da liberdade face
à
opressão; a questão do sentido da vida face à
resignação, à
cumplicidade e ao absurdo... Os
humanistas são internacionalistas,
aspiram a uma nação
humana universal. Compreendem globalmente
o mundo em que
vivem e actuam no seu meio imediato. Não
desejam um
mundo uniforme, mas sim múltiplo: múltiplo nas etnias,
línguas e costumes; múltiplo nas localidades, nas
regiões e nas
autonomias; múltiplo nas ideias e nas
aspirações; múltiplo nas
crenças, no ateísmo e na
religiosidade; múltiplo no trabalho; múltiplo
na
criatividade. Os humanistas não querem amos; não querem
dirigentes nem chefes, nem se sentem representantes
nem
chefes de ninguém..." E, no final do
Documento, conclui-se: "Os
humanistas não são
ingénuos nem se engulosinam com declarações

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de épocas
românticas. Nesse sentido, não consideram as suas
propostas como a expressão mais avançada da
consciência social,
nem pensam a sua organização em
termos indiscutíveis. Os
humanistas não fingem ser
representantes das maiorias. Em
todo o caso, actuam
de acordo com o seu parecer mais justo
apontando às
transformações que crêem mais adequadas e
possíveis
neste momento que lhes cabe viver".

Não está plasmado neste


Documento um forte sentimento de
liberdade, de
pluralismo, de auto-limitação? A isso bem se pode
chamar proposta alternativa e de nenhuma maneira proposta
avassaladora, uniformizadora e absoluta.

E como é este processo de


crise? Para onde aponta? Nas diversas
cartas
exemplifica-se sobre um mesmo modelo. O modelo de
sistema
fechado. Este começou no surgimento do Capitalismo.
A
Revolução Industrial foi-o potenciando. Os Estados
nacionais, nas
mãos de uma burguesia cada vez mais
poderosa, começaram a
disputar entre si o mundo. As
antigas colónias passaram das
cabeças coroadas para as
mãos das companhias privadas. E a
Banca começou a sua
tarefa de intermediação, de endividamento de
terceiros
e de apoderamento das fontes de produção. Foi já a
Banca
que financiou as campanhas militares das burguesias
ambiciosas,
emprestou e endividou as partes em conflito e
quase sempre saíu a
ganhar de todo o conflito. Quando as
burguesias nacionais ainda
concebiam o crescimento em
termos de exploração inclemente da
classe trabalhadora,
em termos de crescimento industrial, em termos
de
comércio, referenciando sempre como centro de gravidade
o
próprio país que manejavam, já a Banca tinha saltado
por cima das
limitações administrativas do Estado
nacional. Chegaram as
revoluções socialistas, o crack
da Bolsa e as reacomodações dos
centros financeiros,
mas estes continuaram em crescimento e
concentração.
Depois do último estertor nacionalista das burguesias
industriais, depois do último conflito mundial, ficou
claro que o
mundo era um só, que as regiões, os países
e os continentes
ficavam ligados e que a indústria
necessitava do capital financeiro
internacional para
sobreviver. O Estado nacional começou já a ser
um
estorvo para a circulação de capitais, bens, serviços,
pessoas e
produtos mundializados. Começou a
regionalização. E com isso a
antiga ordem começou a
desestruturar-se. O velho proletariado, que
a seu tempo
era a base da pirâmide social enraizada nas indústrias
extractivas primárias e que passou pouco a pouco a fazer
parte dos
regimentos de trabalhadores industriais,
começou a perder
uniformidade. As indústrias
secundárias e terciárias, os serviços
cada vez mais
sofisticados foram absorvendo mão-de-obra numa
reconversão contínua dos factores de produção. Os
antigos grémios
e sindicatos perderam poder de classe,
direccionando-se para
reivindicações imediatas de tipo
salarial e ocupacional. A revolução
tecnológica
provocou novas acelerações num mundo díspar, no qual
vastas regiões postergadas se afastavam cada vez mais
dos centros
de decisão. Essas regiões colonizadas,
espoliadas e destinadas a
ocupar sectores de
abastecimento bruto na divisão internacional do
trabalho, cada vez vendiam mais barata a sua produção e
cada vez
compravam mais cara a tecnologia necessária ao
seu
desenvolvimento. Entretanto, as dívidas contraídas
para seguir o
modelo de desenvolvimento imposto
continuavam a crescer. Chegou
o momento em que as
empresas necessitaram de se flexibilizar, de
se
descentralizar, de se agilizar e competir. Tanto no mundo
capitalista como no socialista, as estruturas rígidas
começaram a
rachar ao mesmo tempo que se impunham
despesas cada vez mais
sufocantes para manter em
crescimento os complexos militar-
industriais. Sobrevém,
então, um dos momentos mais críticos da
História
humana. E é ali, do campo socialista, a partir de onde
começa o desarmamento unilateral. Só a História futura
poderá
determinar se aquilo foi um erro ou foi,
precisamente, o que salvou o
nosso mundo do holocausto
nuclear. Toda esta sequência é fácil de
reconhecer. E
assim chegamos a um mundo em que a concentração
do
poder financeiro mantém prostrada toda a indústria,
todo o
comércio, toda a política, todo o país, todo o
indivíduo. Começa a

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etapa do sistema fechado e num


sistema fechado não resta outra
alternativa que a sua
desestruturação. Nesta perspectiva, a
desestruturação
do campo socialista aparece como o prelúdio da
desestruturação mundial que se acelera
vertiginosamente.

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Este é o momento de crise


em que estamos situados. Mas a crise
tende a resolver-se
em diversas variantes. Por simples economia de
hipóteses
e, além disso para exemplificar a traços largos, nas
Cartas
esboçam-se duas possibilidades. Por um lado, a
variante da entropia
dos sistemas fechados e, por outro
lado, a variante da abertura de
um sistema fechado mercê
da acção não natural mas sim intencional
do ser
humano. Vejamos a primeira matizada com uma descrição
algo pitoresca.

É altamente provável a
consolidação de um império mundial que
tenderá a
homogeneizar a economia, o Direito, as comunicações, os
valores, a língua, os usos e costumes. Um império
mundial
instrumentalizado pelo capital financeiro
internacional que não
haverá de reparar sequer nas
próprias populações dos centros de
decisão. E nessa
saturação, o tecido social continuará o seu
processo
de descomposição. As organizações políticas e
sociais, a
administração do Estado, serão ocupadas
pelos tecnocratas ao
serviço de um monstruoso Paraestado
que tenderá a disciplinar as
populações com medidas
cada vez mais restritivas à medida que a
descomposição
se acentue. O pensamento terá perdido a sua
capacidade
abstractiva substituído por uma forma de funcionamento
analítico e passo a passo segundo o modelo
computacional. Ter-se-
á perdido a noção de processo e
estrutura resultando disso simples
estudos de
linguística e análise formal. A moda, a linguagem e os
estilos sociais, a música, a arquitectura, as artes
plásticas e a
literatura acabarão desestruturadas e, em
todo o caso, ver-se-á
como um grande avanço a mistura
de estilos em todos os campos,
tal como ocorreu noutras
ocasiões da História com os ecletismos da
decadência
imperial. Então, a antiga esperança de uniformizar tudo
nas mãos de um mesmo poder desvanecer-se-á para sempre.
Neste
obscurecimento da razão, nesta fadiga dos povos
ficará o campo
livre para os fanatismos de todo o signo,
para a negação da vida, o
culto do suicídio, o
fundamentalismo descarnado. Já não haverá
ciência nem
grandes revoluções do pensamento... só tecnologia que
nessa altura será chamada "Ciência".
Ressurgirão os localismos, as
lutas étnicas e os povos
postergados abalançar-se-ão sobre os
centros de
decisão num turbilhão em que as macrocidades,
anteriormente superpovoadas, ficarão desabitadas.
Contínuas
guerras civis sacudirão este pobre planeta em
que não desejaremos
viver.

Enfim, esta é a parte do


conto que se tem repetido em numerosas
civilizações
que, num dado momento, creram no seu progresso
infinito.
Todas essas culturas terminaram na dissolução, mas,
afortunadamente, quando umas caíram noutros pontos
erigiram--se
novos impulsos humanos e, nessa
alternância, o velho foi superado
pelo novo. É claro
que num sistema mundial fechado não sobra
espaço para o
surgimento de outra civilização, mas sim para uma
longa
e escura idade média mundial.

Se o que se perspectiva
nas cartas com base no modelo explicado é
de todo
incorrecto, não temos razão para nos preocuparmos. Se,
ao
invés, o processo mecânico das estruturas
históricas leva a direcção
comentada, é hora de se
peguntar como pode o ser humano mudar
a direcção dos
acontecimentos. Por sua vez, quem poderia produzir
essa
formidável mudança de direcção senão os povos que
são,
precisamente o sujeito da História? Teremos
chegado a um estado
de maturidade suficiente para
compreender que a partir de agora
não haverá
progresso se não é de todos e para todos? Esta é a
segunda hipótese que se explora nas Cartas.

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Se encarna nos povos a


ideia de que (e é bom repeti-lo) não haverá
progresso
se não é de todos e para todos, então a luta será
clara.
No último escalão da desestruturação, na base
social, começarão a
soprar os novos ventos. Nos
bairros, nas comunidades de vizinhos,
nos locais de
trabalho mais humildes começará a regenerar-se o
tecido
social. Este será, aparentemente, um fenómeno
espontâneo.
Repetir-se-á no surgimento de múltiplas
agrupações de base que os
trabalhadores já libertos da
tutela das cúpulas sindicais formarão.
Aparecerão
numerosos agrupamentos políticos, sem organização
central, em luta com as organizações políticas
cupulares. Começará
a discussão em cada fábrica, em
cada escritório, em cada empresa.
A partir das
reivindicações imediatistas ir-se-á ganhando
consciência
da situação mais ampla, na qual o trabalho
terá mais valor humano
que o capital e na qual o risco
do trabalho será mais claro que o
risco do capital na
hora de considerar prioridades. Chegar-se-á
facilmente
à conclusão de que o lucro da empresa deve ser
reinvestido na abertura de novas fontes de trabalho ou
derivar para
outros sectores nos quais a produção
continue a aumentar em vez
de derivar para franjas
especulativas que acabam por engrossar o
capital
financeiro, que produzem esvaziamento empresarial e que
levam à posterior quebra do aparelho produtivo. O
empresário
começará a dar-se conta de que se converteu
em simples
empregado da Banca e que, nesta emergência, o
seu aliado natural
é o trabalhador. O fermento social
começará novamente a activar-se
e desencadear-se-á a
luta clara e franca entre o capital especulativo,
no seu
nítido carácter de força abstracta e desumana, e as
forças do
trabalho, verdadeira alavanca da
transformação do mundo.
Começará a compreender-se de
uma vez por todas que o progresso
não depende da dívida
que se contrai junto dos bancos, mas sim
que os bancos
devem atribuír créditos à empresa sem cobrar juros.
E
também se tornará claro que não haverá forma de
descongestionar a concentração que conduz ao colapso se
não
é mediante uma redistribuição da riqueza a favor
das áreas
postergadas. A Democracia real,
plebiscitária e directa será uma
necessidade porque se
quererá saír da agonia da não-participação e
da
ameaça constante da revolta popular. Os poderes serão
reformados porque já terá perdido toda a credibilidade
e todo o
significado a estrutura da democracia formal
dependente do capital
financeiro. Este segundo libreto de
crise apresentar-se-á, sem
dúvida, depois de um
período de incubação em que os problemas se
agudizarão. Então, começará essa série de avanços e
retrocessos
em que cada êxito será multiplicado como
efeito demonstração nos
lugares mais remotos graças
às comunicações instantâneas. Nem
sequer se tratará
da conquista dos Estados nacionais, mas sim de
uma
situação mundial em que se irão multiplicando estes
fenómenos
sociais antecessores de uma mudança radical
na direcção dos
acontecimentos. Deste modo, em vez do
processo desembocar no
colapso mecânico tantas vezes
repetido, a vontade de mudança e
de direcção dos povos
começará a percorrer o caminho rumo à
nação humana
universal.

É nesta segunda
possibilidade, é nesta segunda alternativa que
apostam
os humanistas de hoje. Têm demasiada fé no ser humano
para crer que tudo terminará estupidamente. E ainda que
não se
sintam a vanguarda do processo humano,
dispõem-se a
acompanhar esse processo na medida das suas
forças e ali onde
estejam posicionados.

Não quero tomar mais


tempo a comentar o livro que hoje temos nas
nossas mãos.
Desejaria somente reconhecer a paciência e a
tolerância
que vocês mostraram ao seguir esta aborrecida
exposição.

Nada mais, muito obrigado.

Silo
Santiago do Chile. Maio de 1994

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