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Explicação
A - As três
primeiras cartas põem ênfase nas
experiências que
cabem ao indivíduo viver no meio de
uma situação
global cada dia mais complicada.
B - Na quarta,
apresenta-se a estrutura geral das
ideias em que se
baseiam todas as cartas.
C - Nas
seguintes, esboça-se o pensamento político-
social
do autor.
D - A décima
apresenta directrizes de acção pontual
tendo em
conta o processo mundial.
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Primeira carta:
a situação que nos cabe viver. A
desintegração
das instituições e a crise de
solidariedade. Os
novos tipos de sensibilidade e
comportamento que se
perfilam no mundo de hoje. Os
critérios de
acção.
Segunda: os
factores de mudança do mundo actual e
as posturas
que habitualmente se assumem perante
essa
mudança.
Terceira:
Características da mudança e da crise em
relação
ao meio imediato em que vivemos.
Quarta:
fundamento das opiniões vertidas nas Cartas
sobre as
questões mais gerais da vida humana, as
suas
necessidades e os seus projectos básicos. O
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Explicação) - Silo
mundo
natural e social. A concentração de poder, a
violência e o Estado.
Quinta: a
liberdade humana, a intenção e a acção. O
sentido
ético da prática social e da militância; os seus
defeitos mais habituais.
Sexta:
exposição do ideário do Humanismo.
Sétima: a
revolução social.
Oitava: as
forças armadas.
Nona: os
direitos humanos.
Décima: a
desestruturação geral. A aplicação da
compreensão global à acção mínima concreta.
[ Início da Página ]
Na sexta
carta, expõem-se as ideias do humanismo contemporâneo.
A condensação conceitual deste escrito faz recordar
certas
produções políticas e culturais das quais temos
exemplo nos
"manifestos" de meados do século
XIX e XX, como acontece com o
Manifesto Comunista
e o Manifesto Surrealista. O uso da palavra
"Documento" em vez de "Manifesto"
deve-se a uma cuidadosa
escolha para se pôr à
distância do naturalismo expresso no
Humanist
Manifesto de 1933, inspirado por Dewey, e também do
social-liberalismo do Humanist Manifesto II de
1974, subscrito por
Sakharov e impregnado fortemente pelo
pensamento de Lamont.
Ainda que se notem coincidências
com este segundo manifesto no
que respeita à necessidade
de uma planificação económica e
ecológica que não
destrua as liberdades pessoais, as diferenças
quanto a
visão política e concepção do ser humano são
radicais.
Esta carta, extremamente breve em relação à
quantidade de
matérias que trata, exige algumas
considerações. O autor reconhece
os contributos das
diferentes culturas na trajectória do humanismo,
como
claramente se observa no pensamento judeu, árabe e
oriental.
Nesse sentido, o Documento não pode ser
encerrado na tradição
"ciceroniana" como
amiúde aconteceu com os humanistas
ocidentais. No seu
reconhecimento ao "humanismo histórico", o
autor resgata temas já expressos no século XII.
Refiro-me aos
poetas goliardos que, como Hugo de Orleães
e Pedro de Blois,
acabaram por compôr o célebre In
terra sumus, do Codex Buranus
(o código de
Beuern, conhecido em latim como Carmina Burana).
Silo não os cita directamente, mas volta às suas
palavras. "Eis a
grande verdade universal: o
dinheiro é tudo. O dinheiro é governo, é
lei, é
poder. É basicamente subsistência. Mas, além disso, é
a Arte,
é a Filosofia e é a Religião. Nada se faz sem
dinheiro; nada se pode
sem dinheiro. Não há relações
pessoais sem dinheiro. Não há
intimidade sem dinheiro e
mesmo a solidão repousada depende do
dinheiro".
Como não reconhecer a reflexão do In Terra sumus,
"mantém o abade o Dinheiro na sua cela
prisioneiro", quando se diz:
"... e mesmo a
solidão repousada depende do dinheiro". Ou então,
"O
Dinheiro honra recebe e sem ele ninguém é amado",
e aqui: "Não
há relações pessoais sem dinheiro.
Não há intimidade sem dinheiro".
A generalização
do poeta goliardo: "O Dinheiro, e isto é certo,
faz
com que o tonto pareça eloquente", aparece
na carta como: "Mas,
além disso, é a Arte, é a
Filsofia e é a Religião". E sobre esta última
diz-se no poema: "O Dinheiro é adorado porque
faz milagres... faz o
surdo ouvir e o coxo saltar",
etc. Nesse poema do Codex Buranus,
que Silo dá
por conhecido, ficam implícitos os antecedentes que
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Explicação) - Silo
[ Início da Página ]
Os aspectos fundamentais
do humanismo histórico foram,
aproximadamente, os
seguintes:
1 - A reacção contra
o modo de vida e os valores
medievais. Assim começou
um forte reconhecimento
de outras culturas,
particularmente da greco-romana
na arte, na ciência
e na filosofia.
2 - A proposta de uma
nova imagem do ser humano,
do qual se exaltam a sua
personalidade e a sua acção
transformadora.
4 - O interesse pela
experimentação e investigação do
mundo
circundante, como uma tendência a procurar
explicações naturais sem necessidade de
referências
ao sobrenatural.
[ Início da Página ]
Estes quatro
aspectos do humanismo histórico convergem para um
mesmo
objectivo: fazer surgir a confiança no ser humano e na
sua
criatividade e considerar o mundo como reino do
Homem, reino que
este pode dominar mediante o
conhecimento das ciências. A partir
desta nova
perspectiva expressa-se a necessidade de construir uma
nova visão do universo e da História. De igual maneira,
as novas
concepções do movimento humanista levam à
redefinição da
questão religiosa tanto nas suas
estruturas dogmáticas e litúrgicas
como nas
organizativas, que, naquele tempo, impregnam as
estruturas sociais medievais. O Humanismo, em
correlação com a
modificação das forças económicas
e sociais da época, representa
um revolucionarismo cada
vez mais consciente e cada vez mais
orientado para a
discussão da ordem estabelecida. Mas a Reforma
no mundo
alemão e a Contra-reforma no mundo latino tratam de
travar as novas ideias repropondo autoritariamente a
visão cristã
tradicional. A crise passa da Igreja às
estruturas estatais.
Finalmente, o império e a monarquia
por direito divino são
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Explicação) - Silo
[ Início da Página ]
"Depois de
percorrido este longo caminho e das últimas discussões
no campo das ideias, fica claro que o Humanismo deve
definir a sua
posição actual não só enquanto
concepção teórica como também
enquanto actividade e
prática social. O estado da questão humanista
deve ser
perspectivado com referência às condições em que o
ser
humano vive. Essas condições não são
abstractas"
"Por conseguinte,
não é legítimo derivar o Humanismo de uma teoria
sobre
a Natureza, ou uma teoria sobre a História, ou uma fé
sobre
Deus. A condição humana é tal que o encontro
imediato com a dor e
com a necessidade de superá-la é
ineludível. Tal condição, comum a
tantas outras
espécies, encontra na humana a necessidade adicional
de
prever no futuro como superar a dor e conseguir o prazer.
A sua
previsão do futuro apoia-se na experiência
passada e na intenção de
melhorar a sua situação
actual. O seu trabalho, acumulado em
produções sociais,
passa e transforma-se de geração em geração
em luta
contínua pela superação das condições naturais e
sociais
em que vive. Por isso, o Humanismo
define o ser humano como
ser histórico e com um modo de
acção social capaz de
transformar o mundo e a sua
própria natureza. Este ponto é de
capital importância
porque, ao aceitá-lo, não se poderá depois
afirmar um
direito natural, uma propriedade natural, instituições
naturais ou, por último, um tipo de ser humano no futuro
tal
qual é hoje, como se estivesse terminado para
sempre. O antigo
tema da relação do homem
com a Natureza ganha novamente
importância. Ao
retomá-lo, descobrimos esse grande paradoxo em
que o ser
humano aparece sem fixidez, sem natureza, ao mesmo
tempo
que notamos nele uma constante: a sua historicidade. É
por
isso que, esticando os termos, pode dizer-se que a
natureza do
Homem é a sua História, a sua
História social. Por conseguinte,
cada ser humano que
nasce não é um primeiro exemplar equipado
geneticamente
para responder ao seu meio, mas sim um ser
histórico que
desenvolve a sua experiência pessoal numa paisagem
social, numa paisagem humana".
"Eis
que neste mundo social, a intenção comum de superar a
dor é
negada pela intenção de outros seres humanos.
Estamos a dizer
que uns homens naturalizam outros ao
negar a sua intenção,
convertem-nos em objectos de uso.
Assim, a tragédia de estar
submetido a condições
físicas naturais estimula o trabalho social e a
ciência
para novas realizações que superem essas condições,
mas
a tragédia de estar submetido a condições sociais
de desigualdade e
injustiça estimula o ser humano à
rebelião contra essa situação em
que se nota não o
jogo de forças cegas, mas sim o jogo de outras
intenções humanas. Essas intenções humanas, que
discriminam uns
e outros, são questionadas num campo
muito diferente ao da
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Explicação) - Silo
[ Início da Página ]
"No Documento
fundacional do Movimento Humanista declara-se
que há-de
passar-se da Pré-História à verdadeira História
humana
logo que se elimine a violenta apropriação
animal de uns seres
humanos por outros. Entretanto, não
se poderá partir de outro valor
central senão do ser
humano pleno nas suas realizações e na sua
liberdade. A
proclamação «Nada por cima do ser humano e nenhum
ser
humano por debaixo de outro», sintetiza tudo isto. Se se
põe
como valor central Deus, o Estado, o Dinheiro ou
qualquer outra
entidade subordina-se o ser humano,
criando condições para o seu
ulterior controlo ou
sacrifício. Os humanistas têm claro este ponto.
Os
humanistas são ateus ou crentes, mas não partem do
ateísmo ou
da fé para fundamentar a sua visão do mundo
e a sua acção; partem
do ser humano e das suas
necessidades imediatas. Os humanistas
questionam o
problema de fundo: saber se queremos viver e decidir
em
que condições queremos fazê-lo. Todas as formas de
violência
física, económica, racial, religiosa, sexual
e ideológica, mercê das
quais se tem travado o
progresso humano, repugnam aos
humanistas. Toda a forma
de discriminação, manifesta ou larvar, é
motivo de
denúncia para os humanistas".
"Assim está
traçada a linha divisória entre o Humanismo e o
Antihumanismo. O Humanismo põe à frente a questão do
trabalho
face ao grande capital; a questão da democracia
real face à
democracia formal; a questão da
descentralização face à
centralização; a questão da
antidiscriminação face à discriminação;
a questão
da liberdade face à opressão; a questão do sentido da
vida face à resignação, a cumplicidade e o absurdo.
Porque o
Humanismo crê na liberdade de escolha possui
uma ética válida,
porque crê na intenção distingue
entre o erro e a má fé. Deste modo,
os humanistas
definem posições. Não nos sentimos saídos do nada,
mas sim tributários de um longo processo e esforço
colectivo.
Comprometemo-nos com o momento actual e
concebemos uma
longa luta rumo ao futuro. Afirmamos a
diversidade em franca
oposição à regimentação que
até agora tem sido imposta e apoiada
com explicações
de que o diverso põe em dialéctica os elementos
de um
sistema, de maneira que ao respeitar-se toda a
particularidade dá-se via livre a forças centrífugas e
desintegradoras.
Os humanistas pensam o contrário e
destacam que, precisamente
neste momento, o avassalamento
da diversidade leva à explosão
das estruturas rígidas.
É por isso que enfatizamos na direcção
convergente, na intenção convergente e opomo-nos à
ideia e à
prática de eliminação de supostas
condições dialécticas num
conjunto dado".
Termina aqui a
citação da conferência de
Silo.
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Explicação) - Silo
compreensão global
e da aplicação da acção ao ponto mínimo do
"meio imediato", o autor dá esse fenomenal
salto de escala com o
qual nos faz encontrar o
"vizinho", o companheiro de trabalho, o
amigo... Fica clara a proposta de que todo o militante
deve esquecer
a miragem do poder político
superestrutural porque esse poder está
ferido de morte
às mãos da desestruturação. De nada valerá
futuramente o Presidente, o Primeiro-Ministro, o Senador,
o
Deputado. Os partidos políticos, os grémios e os
sindicatos irão
afastando-se gradualmente das suas bases
humanas. O Estado
sofrerá mil transformações e
unicamente as grandes corporações e
o capital
financeiro internacional irão concentrando a capacidade
decisória mundial até sobrevir o colapso do Paraestado.
De que
poderia valer uma militância que tratasse de
ocupar as cascas
vazias da democracia formal?
Decididamente, a acção deve
delinear-se no meio mínimo
imediato e unicamente a partir daí, com
base no conflito
concreto, deve ser construída a representatividade
real.
Porém, os problemas existenciais da base social não se
expressam exclusivamente como dificuldades económicas e
políticas, portanto, um partido que leve adiante o
ideário humanista e
que instrumentalmente ocupe espaços
parlamentares, tem
significação institucional mas não
pode dar resposta às
necessidades das pessoas. O novo
poder construir-se-á a partir da
base social como um
Movimento amplo, descentralizado e
federativo. A pergunta
que todo o militante se deve fazer não é
"quem
será primeiro-ministro ou deputado", mas sim
"como
formaremos os nossos centros de comunicação
directa, as nossas
redes de conselhos vicinais; como
daremos participação a todas as
organizações mínimas
de base nas quais se expressa o trabalho, o
desporto, a
arte, a cultura e a religiosidade popular?" Esse
Movimento não pode ser pensado em termos políticos
formais, mas
sim em termos de diversidade convergente.
Também não se deve
conceber o crescimento desse
Movimento dentro dos moldes de um
gradualismo que vá
ganhando progressivamente espaço e estratos
sociais.
Deve ser delineado em termos de "efeito
demonstração",
típico de uma sociedade
planetária multiconectada apta para
reproduzir e adaptar
o êxito de um modelo em colectividades
afastadas e
diferentes entre si. Esta última carta, em suma, esboça
um tipo de organização mínima e uma estratégia de
acção conforme
à situação actual.
J. Valinsky
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Primeira carta) - Silo
Primeira
carta aos meus amigos
1. A
situação actual.
2. A
alternativa de um mundo melhor.
3. A
evolução social.
4. As
futuras experiências.
5. A
mudança e as relações com as pessoas.
6. Um conto
para aspirantes a executivos.
7. A
mudança humana.
Estimados amigos:
1. A
situação actual
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2. A
alternativa de um mundo melhor
Tratando de moderar os
problemas comentados fizeram-se
diferentes experiências
económicas com resultados díspares.
Actualmente,
tende-se a aplicar um sistema em que supostas leis de
mercado regularão automaticamente o progresso social,
superando
o desastre produzido pelas anteriores economias
dirigistas. Segundo
este esquema, as guerras, a
violência, a opressão, a desigualdade,
a pobreza e a
ignorância, irão retrocedendo sem se produzirem
sobressaltos de maior. Os países integrar-se-ão em
mercados
regionais até se chegar a uma sociedade
mundial, sem nenhum tipo
de barreiras. E assim como os
sectores mais pobres dos pontos
desenvolvidos irão
elevando o seu nível de vida, as regiões menos
avançadas receberão a influência do progresso. As
maiorias
adaptar-se-ão ao novo esquema que técnicos
capacitados, ou
homens de negócios, estarão em
condições de pôr a funcionar. Se
algo falha, não
será pelas naturais leis económicas, mas sim por
deficiências desses especialistas que, como sucede numa
empresa,
terão de ser substituídos todas as vezes que
seja necessário. Por
outro lado, nessa sociedade
"livre", será o público que decidirá
democraticamente entre diferentes opções de um mesmo
sistema.
[ Início da Página ]
3. A
evolução social
[ Início da Página ]
4. As
futuras experiências
[ Início da Página ]
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Primeira carta) - Silo
5. A
mudança e as relações entre as pessoas
Tanto a regionalização
dos mercados como a reivindicação localista
e das
etnias apontam à desintegração do Estado nacional. A
explosão demográfica nas regiões pobres leva a
migração ao limite
do controlo. A grande família
camponesa desagrega-se, deslocando
a geração jovem para
a aglomeração urbana. A familia urbana
industrial e
pós-industrial reduz-se ao mínimo, enquanto as
macro-
cidades absorvem contigentes humanos formados
noutras
paisagens culturais. As crises económicas e as
reconversões dos
modelos produtivos fazem com que a
discriminação irrompa
novamente. Entretanto, a
aceleração tecnológica e a produção
massiva deixam
obsoletos os produtos no instante de entrar no
circuito
de consumo. A substituição de objectos corresponde-se
com
a instabilidade e a desregulação na relação
humana. A antiga
solidariedade, herdeira do que em algum
momento se chamou
"fraternidade", acabou por
perder significado. Os companheiros de
trabalho, de
estudo e de desporto, e as amizades de outras épocas,
tomam o carácter de competidores; os membros do casal
lutam pelo
domínio, calculando, desde o começo dessa
relação, como será a
quota de benefício mantendo-se
unidos, ou como será essa quota se
se separarem. Nunca
antes o mundo esteve tão comunicado, porém
os
indivíduos padecem cada dia mais de uma angustiosa
incomunicação. Nunca os centros urbanos estiveram mais
povoados, contudo as pessoas falam de
"solidão". Nunca as
pessoas necessitaram mais
do que agora do calor humano, no
entanto qualquer
aproximação converte em suspeita a amabilidade e
a
ajuda. Assim deixaram a nossa pobre gente: fazendo crer a
todo o
infeliz que tem algo importante a perder e que
esse "algo" etéreo é
cobiçado pelo resto da
humanidade! Nessas condições, pode-se-lhe
contar este
conto como se se tratasse da mais autêntica realidade...
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6. Um
conto para aspirantes a executivos
Nessa sociedade de
abundância, diminuirá o suicídio, o alcoolismo,
a
toxicodependência, a insegurança citadina e a
delinquência, como
hoje já mostram os países
economicamente mais desenvolvidos (?).
Também
desaparecerá a discriminação e aumentará a
comunicação
entre as pessoas. Ninguém estará pungido
por pensar
desnecessariamente no sentido da vida, na
solidão, na doença, na
velhice e na morte, porque com
adequados cursos e alguma ajuda
terapêutica
conseguir-se-á bloquear esses reflexos que tanto
detiveram o rendimento e a eficiência das sociedades.
Todos
confiarão em todos porque a concorrência no
trabalho, nos estudos
e no casal, acabará por
estabelecer relações maduras.
Finalmente, as
ideologias terão desaparecido e já não se utilizarão
para lavar o cérebro das pessoas. Certamente que
ninguém
impedirá o protesto ou inconformidade com temas
menores, sempre
que para se expressarem paguem aos canais
adequados. Sem
confundir a liberdade com a libertinagem,
os cidadãos reunir-se-ão
em números pequenos (por
razões sanitárias) e poderão expressar-
se em lugares
abertos (sem perturbar com sons contaminantes ou
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Primeira carta) - Silo
com
publicidade que deslustre o "município", ou
como se chame
mais adiante).
Mas o mais
extraordinário ocorrerá quando já não se requeira
controlo policial, pois cada cidadão será alguém
decidido que
cuidará os outros das mentiras que algum
terrorista ideológico
pudesse tratar de inculcar. Esses
defensores terão tanta
responsabilidade que acudirão
pressurosos aos meios de
comunicação, nos quais
encontrarão imediato acolhimento para
alertar a
população; escreverão estudos brilhantes que serão
publicados imediatamente e organizarão fóruns, nos
quais
formadores de opinião de grande cultura
esclarecerão algum
desprevenido que poderia ainda estar
à mercê das forças obscuras
do dirigismo económico,
do autoritarismo, da antidemocracia e do
fanatismo
religioso. Nem sequer será necessário perseguir os
perturbadores, porque num sistema de difusão tão
eficiente ninguém
quererá aproximar-se deles para não
se contaminar. No pior dos
casos,
"desprogramar-se-ão" com eficácia e eles
agradecerão
publicamente a sua reinserção e o
benefício que lhes produzirá
reconhecer as bondades da
liberdade. Por seu lado, aqueles
esforçados defensores,
se é que não estão enviados
especificamente para
cumprir essa importante missão, serão gente
comum que
poderá sair assim do anonimato, ser reconhecida
socialmente pela sua qualidade moral, assinar autógrafos
e, como é
lógico, receber uma merecida retribuição.
A Empresa será a
grande família que favorecerá a qualificação, as
relações e o lazer. A robótica terá suplantado o
esforço físico de
outras épocas e trabalhar para a
Empresa na própria casa será uma
verdadeira
realização pessoal.
Assim, a sociedade
não necessitará de organizações que não
estejam
incluidas na Empresa. O ser humano, que tanto lutou pelo
seu bem-estar, terá finalmente chegado aos céus.
Saltando de
planeta em planeta terá descoberto a
felicidade. Instalado aí, será
um jovem competitivo,
sedutor, aquisitivo, tiunfador, e pragmático
(sobretudo
pragmático)... executivo da Empresa!"
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7. A
Mudança Humana
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Primeira carta) - Silo
social. Quando
alguém comprova que o individualismo
esquizofrénico já
não tem saída e comunica abertamente a todos os
seus
conhecidos o que é que pensa e o que é que faz, sem o
ridículo temor de não ser compreendido; quando se
aproxima de
outros; quando se interessa por cada um e
não por uma massa
anónima; quando promove o
intercâmbio de ideias e a realização de
trabalhos em
conjunto; quando claramente expõe a necessidade de
multiplicar essa tarefa de reconexão num tecido social
destruido por
outros; quando sente que mesmo a pessoa
mais "insignificante" é de
superior qualidade
humana que qualquer desalmado posto no cume
da conjuntura
epocal... Quando sucede tudo isto, é porque no
interior
desse alguém começa a falar novamente o Destino que tem
movido os povos na sua melhor direcção evolutiva; esse
Destino
tantas vezes desviado e tantas vezes esquecido,
mas sempre
reencontrado nas encruzilhadas da história.
Não só se vislumbra
uma nova sensibilidade, um novo
modo de acção, como também,
além disso, uma nova
atitude moral e uma nova disposição táctica
perante a
vida. Se me fizessem precisar o enunciado acima, diria
que as pessoas, ainda que isto se tenha repetido desde
há três
milénios atrás, hoje experimentam como uma
novidade a
necessidade e a verdade moral de tratar os
outros como cada um
quer ser tratado. Acrescentaria que,
quase como leis gerais de
comportamento, hoje se aspira
a:
1. uma certa
proporção, tratando de ordenar as
coisas
importantes da vida, levando-as em
conjunto e evitando que
algumas se adiantem e
outras se atrasem excessivamente;
2. uma certa
adaptação crescente, actuando a
favor da
evolução (não simplesmente da curta
conjuntura) e não
cooperando com as diferentes
formas de involução humana;
3. uma certa
oportunidade, retrocedendo diante
de uma
grande força (não perante qualquer
inconveniente) e
avançando na sua declinação;
4. uma certa
coerência, acumulando acções que
dão a
sensação de unidade e acordo consigo
mesmo, e pondo de
lado aquelas que produzem
contradição e que se registam
como desacordo
entre o que se pensa, sente e faz.
Silo.
21/02/91
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Primeira carta) - Silo
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Segunda carta) - Silo
Segunda
carta aos meus amigos
1. Algumas
posturas face ao processo de mudança actual.
2. O
individualismo, a fragmentação social e a
concentração de
poder nas minorias.
3. Características
da crise.
4. Os
factores positivos da mudança.
Estimados amigos:
Em carta anterior,
referi-me à situação que nos cabe viver e a certas
tendências que os acontecimentos mostram. Aproveitei
para discutir
algumas propostas que os defensores da
economia de mercado
anunciam como se se tratassem de
condições ineludíveis para todo
o progresso social.
Também destaquei a crescente deterioração da
solidariedade e a crise de referências que se verifica
neste
momento. Por último, esbocei algumas
características positivas que
se começam a observar
naquilo que chamei "uma nova
sensibilidade, uma nova
atitude moral e uma nova disposição táctica
perante a
vida".
Também recebi
correspondência a reclamar maior precisão na
definição de atitudes que se deveria assumir perante o
processo de
mudança actual. Sobre isto, creio que será
melhor tratar de entender
as posições que tomam
distintos grupos e pessoas isoladas, antes
de fazer
recomendações de qualquer tipo. Limitar-me-ei, pois, a
apresentar as posturas mais populares, dando a minha
opinião nos
casos que me pareçam de maior interesse.
[ Início da Página ]
1. Algumas
posturas face ao processo de mudança actual
No lento progresso da
humanidade foram-se acumulando factores
até ao momento
actual, em que a velocidade de mudança
tecnológica e
económica não coincide com a velocidade de
mudança nas
estruturas sociais e no comportamento humano. Este
desfasamento tende a incrementar-se e a gerar crises
pogressivas.
Esse problema é encarado de diferentes
pontos de vista. Há quem
suponha que o desajuste se
regulará automaticamente e, portanto,
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Segunda carta) - Silo
[ Início da Página ]
2. O
individualismo, a fragmentação social e a
concentração de
poder nas minorias
Porém, o individualismo
leva necessariamente à luta pela
supremacia do mais
forte e à procura do êxito a qualquer preço. Tal
postura começou com uns poucos que respeitaram certas
regras de
jogo entre si face à obediência dos muitos.
De qualquer maneira,
essa etapa esgotar-se-á num
"todos contra todos" porque mais tarde
ou mais
cedo desequilibrar-se-á o poder a favor do mais forte e
o
resto, apoiando-se entre si ou noutras facções,
terminará por
desarticular um sistema tão frágil. Mas
as minorias foram mudando
com o desenvolvimento
económico e tecnológico, aperfeiçoando os
seus
métodos a tal ponto que, nalguns lugares em situação
de
abundância, as grandes maiorias transferem o seu
descontentamento para aspectos secundários da situação
em que
têm de viver. E insinua-se que, mesmo crescendo o
nível de vida
global, as massas postergadas
contentar-se-ão esperando uma
melhor situação no
futuro, porque já não parece que venham a
questionar o
sistema, mas sim certos aspectos de urgência. Tudo
isso
mostra uma viragem importante no comportamento social. Se
isto é assim, a militância pela mudança ver-se-á
progressivamente
afectada e as antigas forças políticas
e sociais ficarão vazias de
propostas; propagar-se-á a
fragmentação grupal e interpessoal e o
isolamento
individual será medianamente suprido pelas estruturas
produtoras de bens e lazer colectivo concentradas sob uma
mesma
direcção. Nesse mundo paradoxal, terminar-se-á
de erradicar toda a
centralização e burocratismo,
rompendo-se as anteriores estruturas
de direcção e
decisão, mas a mencionada desregulação,
descentralização, liberalização de mercados e
actividades será o
campo mais adequado para que
floresça uma concentração como
não houve em nenhuma
época anterior, porque a absorção do
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Segunda carta) - Silo
capital
financeiro internacional continuará a crescer nas mãos
de
uma banca cada vez mais poderosa. Similar paradoxo
sofrerá a
classe política, ao ter que proclamar os
novos valores que fazem o
Estado perder poder, com o que
o seu protagonismo se verá cada
vez mais comprometido.
Por alguma razão se vão substituindo
desde há algum
tempo palavras como "governo" por outras como
"administração", fazendo os
"públicos" (não os "povos")
compreender que um país é uma empresa.
[ Início da Página ]
3.
Características da crise
Comentaremos a crise do
Estado nacional, a crise de regionalização
e
mundialização, e a crise da sociedade, do grupo e do
individuo.
No contexto de um processo
de mundialização crescente acelera-se
a informação e
aumenta a deslocação de pessoas e bens. A
tecnologia e
o poder económico em aumento concentram-se em
empresas
cada vez mais importantes. O mesmo fenómeno de
aceleração no intercâmbio choca com as limitações e
a lentidão que
impõem antigas estruturas como o Estado
nacional. O resultado é
que se tendem a apagar as
fronteiras nacionais dentro de cada
região. Isto leva a
que se deva homogeneizar a legislação dos
países, não
só em matéria de taxas aduaneiras e documentação
pessoal como também naquilo que tem a ver com a
adaptação dos
seus sistemas produtivos. O regime
laboral e de segurança social
seguem na mesma
direcção. Contínuos acordos entre esses países
mostram que um Parlamento, um sistema judicial e um
executivo
comum, darão maior eficácia e velocidade à
gestão dessa região. A
primitiva moeda nacional vai
cedendo lugar a um tipo de signo de
intercâmbio regional
que evita perdas e demoras em cada operação
de
conversão. A crise do Estado nacional é um facto
observável não
só naqueles países que tendem a
incluir-se num mercado regional,
mas também noutros
cujas maltratadas economias mostram uma
estagnação
relativa importante. Por todos os lados, levantam-se
vozes contra as burocracias anquilosadas e pede-se a
reforma
desses esquemas. Em pontos onde um país se
configurou como
resultado recente de partições e
anexações, ou como federação
artificial, avivam-se
antigos rancores e diferenças localistas, étnicas
e
religiosas. O Estado tradicional tem que enfrentar essa
situação
centrífuga por entre crescentes dificuldades
económicas que
questionam precisamente a sua eficácia e
legitimidade. Fenómenos
desse tipo tendem a crescer no
centro da Europa, no Leste e nos
Balcãs. Estas
dificuldades também se agudizam no Médio Oriente,
Levante e Asia Menor. Na Africa, em vários países
delimitados
artificialmente, começam a ser observados os
mesmos sintomas.
Acompanhando essa descomposição,
começam as migrações de
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Segunda carta) - Silo
povos em direcção às
fronteiras, pondo em perigo o equilíbrio zonal.
Bastará
que aconteça um desequilíbrio importante na China para
que mais de uma região seja afectada directamente pelo
fenómeno,
considerando, além disso a instabilidade
actual da antiga União
Soviética e dos países
asiáticos continentais.
Entretanto,
configuraram-se centros económica e tecnológicamente
poderosos que assumem carácter regional: o Extremo
Oriente
liderado pelo Japão, Europa e Estados Unidos. A
descolagem e a
influência dessas zonas mostra um
aparente policentrismo, mas o
desenrolar dos
acontecimentos assinala que os Estados Unidos
somam ao
seu poder tecnológico, económico e político a sua
força
militar, em condições de controlar as mais
importantes áreas de
abastecimento. No processo de
mundialização crescente, tende a
levantar-se esta
superpotência como regedora do processo actual,
em
acordo ou desacordo com os poderes regionais. Este é, no
fundo, o significado da Nova Ordem Mundial. Ao que
parece, não
chegou ainda a época da paz, ainda que se
tenha dissipado, de
momento, a ameaça de guerra mundial.
Explosões localistas,
étnicas e religiosas; desordens
sociais; migrações e conflitos bélicos
em áreas
restritas, parecem ameaçar a suposta estabilidade
actual.
Por outro lado, as áreas postergadas afastam-se
cada vez mais do
crescimento das zonas tecnológica e
economicamente aceleradas e
este desfasamento relativo
agrega ao esquema dificuldades
adicionais. O caso da
América Latina é exemplar neste aspecto,
porque ainda
que a economia de vários dos seus países
experimente um
crescimento importante nos próximos anos, a
dependência
relativamente aos centros de poder tornar-se-á cada
vez
mais notória.
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Segunda carta) - Silo
[ Início da Página ]
4. Os
factores positivos da mudança
O desenvolvimento
científico e tecnológico não pode ser posto em
causa
pelo facto de alguns avanços terem sido ou serem
utilizados
contra a vida e o bem-estar. Nos casos em que
se questiona a
tecnologia dever-se-ia fazer uma prévia
reflexão com respeito às
características do sistema
que utiliza o avanço do saber com fins
espúrios. Claro
que o progresso na medicina, comunicações,
robótica,
engenharia genética e tantos outros campos, pode ser
aproveitado em direcção destrutiva. O mesmo se pode
dizer
relativamente à utilização da técnica na
exploração irracional de
recursos, poluição
industrial, contaminação e degradação ambiental.
Mas
tudo isso denuncia o signo negativo que comanda a
economia e
os sistemas sociais. Assim, bem sabemos que
hoje se está em
condições de solucionar os problemas
de alimentação de toda a
humanidade e, contudo,
comprovamos diariamente que existe fome,
desnutrição e
padecimentos infra-humanos, porque o sistema não
está
na disposição de se dedicar a esses problemas,
resignando aos
seus fabulosos ganhos em troca de uma
melhoria global do nível
humano. Também notamos que as
tendências para as
regionalizações e, finalmente, para
a mundialização estão a ser
manipuladas por interesses
particulares em detrimento dos grandes
conjuntos. Mas
está claro que, mesmo nessa distorsão, o processo
em
direcção a uma nação humana universal abre passagem.
A
mudança acelerada que se está a apresentar no mundo
leva a uma
crise global do sistema e a um consequente
reordenamento de
factores. Tudo isso será a condição
necessária para conseguir uma
estabilidade aceitável e
um desenvolvimento harmónico do planeta.
Por
conseguinte, apesar das tragédias que se podem avistar
na
descomposição deste sistema global actual, a
espécie humana
prevalecerá sobre todo o interesse
particular. Na compreensão da
direcção da História,
que começou nos nossos antepassados
hominídios, radica
a nossa fé no futuro. Esta espécie que trabalhou
e
lutou durante milhões de anos para vencer a dor e o
sofrimento
não sucumbirá no absurdo. Por isso, é
necessário compreender
processos mais amplos do que
simples conjunturas e apoiar tudo o
que vá em direcção
evolutiva, ainda que não se vejam os seus
resultados
imediatos. O desalento dos seres humanos valorosos e
solidários atrasa o passo da História. Mas é difícil
compreender esse
sentido se a vida pessoal não se
organiza e orienta também em
direcção positiva. Aqui
não estão em jogo factores mecânicos ou
determinismos
históricos, está em jogo a intenção humana que
tende
a abrir caminho diante de todas as dificuldades.
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Silo
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo
Terceira
carta aos meus amigos
1. A
mudança e a crise
2. Desorientação
3. Crise na
vida das pessoas
4. Necessidade
de dar orientação à própria vida
5. Direcção
e mudança de situação
6. O
comportamento coerente
7. As duas
propostas
8. Chegar a
toda a sociedade a partir do meio imediato
9. O meio
em que se vive
10. A
coerência como direcção de vida
11. A
proporção nas acções como avanço em
direcção à
coerência
12. A
oportunidade das acções como avanço em
direcção à
coerência
13. A
adaptação crescente como avanço em direcção
à
coerência
Estimados amigos:
1. A
mudança e a crise
[ Início da Página ]
2.
Desorientação
As tranformações que
estão a ocorrer tomam direcções inesperadas,
produzindo uma desorientação geral em relação ao
futuro e ao que
se deve fazer no presente. Na realidade,
não é a mudança que nos
perturba, já que nela
observamos muitos aspectos positivos. O que
nos inquieta
é não saber em que direcção vai a mudança e para
onde orientar a nossa actividade. .
[ Início da Página ]
3. Crise
na vida das pessoas
A mudança
está a ocorrer na economia, na tecnologia e na
sociedade; sobretudo está a operar-se nas nossas vidas:
no nosso
meio familiar e laboral, nas nossas relações
de amizade. Estão a
modificar-se as nossas ideias e o
que acreditávamos sobre o
mundo, sobre as outras pessoas
e sobre nós mesmos. Muitas coisas
estimulam-nos, mas
outras confundem-nos e paralisam-nos. O
comportamento dos
demais e o nosso parece-nos incoerente,
contraditório e
sem direcção clara, tal como sucede com os
acontecimentos que nos rodeiam.
[ Início da Página ]
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo
4.
Necessidade de dar orientação à própria vida
Portanto, é
fundamental dar direcção a essa mudança inevitável e
não há outra forma de fazê-lo senão começando por si
mesmo. Em
cada um deve dar-se direcção a estas
mudanças desordenadas cujo
rumo desconhecemos.
[ Início da Página ]
5. Direcção
e mudança de situação
Como os
indivíduos não existem isolados, se realmente
direccionam
a sua vida, modificarão a relação com os
outros na sua familia, no
seu trabalho e onde lhes caiba
actuar. Este não é um problema
psicológico que se
resolve dentro da cabeça de indivíduos isolados,
mas
sim mudando a situação em que se vive com outros
mediante
um comportamento coerente. Quando celebramos
êxitos ou nos
deprimimos por causa dos nossos fracassos,
quando fazemos
planos para o futuro ou nos propomos
introduzir mudanças na nossa
vida, esquecemos o ponto
fundamental: estamos em situação de
relacção com
outros. Não podemos explicar o que nos acontece,
nem
escolher, sem referência a certas pessoas e a certos
âmbitos
sociais concretos. Essas pessoas que têm
especial importância para
nós e esses âmbitos sociais
em que vivemos põem-nos numa
situação precisa, a
partir da qual pensamos, sentimos e actuamos.
Negar isto
ou não tê-lo em conta cria enormes dificuldades. A
nossa
liberdade de escolha e acção está delimitada
pela situação em que
vivemos. Qualquer mudança que
desejemos operar não pode ser
traçada em abstracto, mas
sim em referência à situação em que
vivemos.
[ Início da Página ]
6. O
comportamento coerente
Se
pudéssemos pensar, sentir e actuar na mesma direcção,
se o
que fazemos não nos criasse contradição com o que
sentimos,
diríamos que a nossa vida tem coerência.
Seríamos fiáveis para nós
mesmos, ainda que não
necessariamente fiáveis para o nosso meio
imediato.
Deveríamos conseguir essa mesma coerência na relação
com outros, tratando os demais como queremos ser
tratados.
Sabemos que pode existir uma espécie de
coerência destrutiva,
como observamos nos racistas, nos
exploradores, nos fanáticos e
nos violentos, mas está
clara a sua incoerência na relação
porque
tratam os outros de um modo muito diferente
daquele que desejam
para si mesmos. Essa unidade de
pensamento, sentimento e acção,
essa unidade entre o
trato que se pede e o trato que se dá, são
ideais que
não se realizam na vida diária. Este é o ponto.
Trata-se
de um ajuste de condutas a essas propostas;
trata-se de valores
que, tomados com seriedade,
direccionam a vida,
independentemente das dificuldades
que se enfrentem para realizá-
los. Se observarmos bem as
coisas, não estaticamente mas sim em
dinâmica,
compreenderemos isto como uma estratégia que deve ir
ganhando terreno à medida que passe o tempo. Aqui sim
valem as
intenções, ainda que as acções não
coincidam no princípio com
elas, sobretudo se aquelas
intenções são mantidas, aperfeiçoadas e
ampliadas.
Essas imagens do que se deseja conseguir são
referências firmes que dão direcção em todas as
situações. E isto
que dizemos não é tão complicado.
Não nos surpreende, por
exemplo, que uma pessoa oriente
a sua vida para conseguir uma
grande fortuna, no entanto,
essa pessoa pode saber
antecipadamente que não a
conseguirá. De qualquer maneira, o seu
ideal
impulsiona-a ainda que não tenha resultados relevantes.
Então,
por que razão não se pode entender que mesmo
sendo a época
adversa ao trato que se pede com o trato
que se dá, mesmo sendo
adversa a pensar, sentir e actuar
na mesma direcção, esses ideais
de vida possam dar
direcção às acções humanas?
[ Início da Página ]
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo
7. As
duas propostas
Pensar,
sentir e actuar na mesma direcção e tratar os outros
como
se deseja ser tratado, são duas propostas tão
singelas que podem
ser entendidas como simples
ingenuidades pela gente habituada às
complicações. No
entanto, atrás dessa aparente candura, há uma
nova
escala de valores em cujo ponto mais alto se põe a
coerência,
uma nova moral para a qual não é
indiferente qualquer tipo de
acção, uma nova
aspiração que implica ser consequente no esforço
para
dar direcção aos acontecimentos humanos. Por trás
dessa
aparente candura, aposta-se no sentido da vida
pessoal e social que
será verdadeiramente evolutivo ou
caminhará para a desintegração.
Já não podemos
confiar que velhos valores dêem coesão às
pessoas num
tecido social deteriorado dia-a-dia pela desconfiança, o
isolamento e o individualismo crescente. A antiga
solidariedade entre
os membros das classes,
associações, instituções e grupos vai
sendo
substituída pela concorrência selvagem a que não
escapa o
casal nem a irmandade familiar. Neste
processo de demolição,
não se elevará uma nova
solidariedade com base em ideias e
comportamentos de um
mundo que já era, mas sim graças à
necessidade
concreta de cada um de direccionar a sua vida,
para o que
terá de modificar o seu próprio meio. Essa
modificação, se é verdadeira e profunda, não se pode
pôr em
andamento por acção de imposições, por leis
externas ou por
fanatismos de qualquer tipo, mas sim pelo
poder da opinião e da
acção mínima conjunta entre as
pessoas que fazem parte do meio
em que se vive.
[ Início da Página ]
8. Chegar
a toda a sociedade a partir do meio imediato.
Sabemos que
ao mudar positivamente a nossa situação estaremos a
influir no nosso meio e outras pessoas compartilharão
este ponto de
vista, dando lugar a um sistema de
relações humanas em
crescimento. Teremos que
perguntar-nos: Por que razão deveríamos
ir mais além
de onde começamos? Simplesmente por coerência com
a
proposta de tratar os outros como queremos que nos
tratem. Ou
não levaríamos aos outros algo que se
mostrou fundamental para a
nossa vida? Se a influência
começa a desenvolver-se é porque as
relações, e
portanto os componentes do nosso meio, se ampliaram.
Esta
é uma questão que deveríamos ter em conta desde o
começo,
porque mesmo quando a nossa acção começa a
aplicar-se num
ponto reduzido, a projecção dessa
influência pode chegar muito
longe. Não tem nada de
estranho pensar que outras pessoas
decidam juntar-se na
mesma direcção. Afinal de contas, os grandes
movimentos
históricos seguiram o mesmo caminho: começaram
pequenos, como é lógico, e desenvolveram-se graças a
que as
pessoas os consideraram intérpretes das suas
necessidades e
inquietudes. Actuar no meio imediato, mas
com o olhar posto no
progresso da sociedade é coerente
com tudo o que se disse. De
outro modo, para que
faríamos referência a uma crise global que
deve ser
enfrentada resolutamente, se tudo terminasse em
indivíduos isolados para quem os outros não têm
importância? Por
necessidade das pessoas que coincidam
em dar uma nova direcção
à sua vida e aos
acontecimentos, surgirão âmbitos de discussão e
comunicação directa. Depois, a difusão através de
todos os meios
permitirá ampliar a superfície de
contacto. O mesmo acontecerá com
a criação de
organismos e instituições compatíveis com este
projecto.
[ Início da Página ]
9. O
meio em que se vive
Já
comentámos que é tão veloz e tão inesperada a
mudança, que
este impacto se está a receber como crise
na qual se debatem
sociedades inteiras, instituições e
indivíduos. Por isso, é
imprescindível dar direcção
aos acontecimentos. No entanto, como
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo
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10. A
coerência como direcção de vida
Se se
quisesse dar alguma direcção aos acontecimentos,
haveria
que começar pela própria vida e, para fazê-lo,
teríamos de ter em
conta o meio em que actuamos. Ora
bem, a que direcção podemos
aspirar? Sem dúvida,
àquela que nos proporcione coerência e apoio
num meio
tão variável e imprevisível. Pensar, sentir e actuar
na
mesma direcção é uma proposta de coerência na
vida. No entanto,
isto não é fácil porque nos
encontramos numa situação que não
escolhemos
completamente. Estamos a fazer coisas que
necessitamos,
mesmo que em grande desacordo com o que
pensamos e
sentimos. Estamos metidos em situações que não
governamos. Actuar com coerência, mais que um facto, é
uma
intenção, uma tendência que podemos ter presente,
de maneira que
a nossa vida se vá direccionando para
esse tipo de comportamento.
É claro que unicamente
influindo nesse meio, poderemos mudar
parte da nossa
situação. Ao fazê-lo, estaremos direccionando a
relação com outros e outros partilharão essa conduta.
Se a isso se
objecta que algumas pessoas mudam de meio
com certa frequência,
por causa do seu trabalho ou por
outros motivos, responderemos
que isso não modifica nada
o exposto, já que sempre se estará em
situação,
sempre se estará num dado meio. Se pretendemos
coerência, o trato que dermos aos outros terá de ser do
mesmo
género que o trato que exigimos para nós. Assim,
nestas duas
propostas encontramos os elementos básicos
de direcção até onde
chegam as nossas forças. A
coerência avança contanto avance o
pensar, o sentir e o
actuar na mesma direcção. Esta coerência
estende-se a
outros, porque não há outra maneira de fazê-lo, e, ao
estender-se a outros, começamos a tratá-los do modo que
gostaríamos de ser tratados. Coerência e solidariedade
são
direcções, aspirações de condutas a conseguir.
[ Início da Página ]
11. A
proporção nas acções como avanço em direcção à
coerência.
Como avançar
em direcção coerente? Em primeiro lugar,
necessitaremos
de uma certa proporção no que fazemos
quotidianamente.
É necessário estabelecer quais são as questões
mais
importantes na nossa actividade. Devemos priorizar o
fundamental para que as coisas funcionem, depois o
secundário e
assim seguindo. Possivelmente atendendo a
duas ou três
prioridades, teremos um bom quadro de
situação. As prioridades não
podem inverter-se,
também não podem separar-se tanto que se
desequilibre a
nossa situação. As coisas devem ir em conjunto, não
isoladamente, evitando que umas se adiantem e outras se
atrasem.
Frequentemente, cegamo-nos pela importância de
uma actividade e,
desta maneira, desequilibra-se-nos o
conjunto... no final, o que
considerávamos tão
importante também não se pode realizar,
porque a nossa
situação geral ficou afectada. Também é certo que
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo
às
vezes se apresentam assuntos de urgência a que devemos
dedicar-nos, mas é claro que não se pode viver
postergando outros
que são importantes para a situação
geral em que vivemos.
Estabelecer prioridades e levar a
actividade em proporção
adequada, é um avanço
evidente em direcção à coerência.
[ Início da Página ]
12. A
oportunidade das acções como avanço em direcção à
coerência.
Existe uma
rotina quotidiana dada pelos horários, os cuidados
pessoais e o funcionamento do nosso meio. No entanto,
dentro
dessas pautas há uma dinâmica e riqueza de
acontecimentos que as
pessoas superficiais não sabem
apreciar. Há aqueles que
confundem a sua vida com as
suas rotinas, mas isto não é assim de
todo, já que
muito frequentemente têm que escolher dentro das
condições que lhes impõe o meio. Na verdade, vivemos
entre
inconvenientes e contradições, mas convirá não
confundir ambos os
termos. Entendemos por
"inconvenientes" as moléstias e
impedimentos
que enfrentamos. Não são enormemente graves, mas
claro
que se são numerosos e repetidos aumentam a nossa
irritação
e fadiga. Certamente, estamos em condições
de superá-los: não
determinam a direcção da nossa
vida, não impedem que levemos
adiante um projecto. São
obstáculos no caminho, que vão desde a
menor
dificuldade física a problemas em que estamos a ponto de
perder o rumo. Os inconvenientes admitem uma gradação
importante, mas mantêm-se num limite que não impede de
avançar.
Coisa diferente acontece com o que chamamos
"contradições".
Quando o nosso projecto não
pode ser realizado, quando os
acontecimentos nos lançam
numa direcção oposta à desejada,
quando nos
encontramos num círculo vicioso que não podemos
romper,
quando não podemos direccionar minimamente a nossa
vida,
estamos tomados pela contradição. A contradição é
uma
espécie de inversão na corrente da vida que nos
leva a retroceder
sem esperança. Estamos a descrever o
caso em que a incoerência
se apresenta com maior crueza.
Na contradição, opõe-se o que
pensamos, o que sentimos
e fazemos. Apesar de tudo, sempre há
possibilidade de
direccionar a vida, mas é necessário saber quando
fazê-lo. A oportunidade das acções é algo que não
temos em conta
na rotina quotidiana e isto é assim
porque muitas coisas estão
codificadas. Mas, no que se
refere aos inconvenientes importantes e
às
contradições, as decisões que tomamos não podem estar
expostas à catástrofe. Em termos gerais, devemos
retroceder diante
de uma grande força e avançar com
resolução quando essa força se
debilite. Há uma
grande diferença entre o temeroso que retrocede ou
se
imobiliza ante qualquer inconveniente e aquele que actua
sobrepondo-se às dificuldades, sabendo que,
precisamente,
avançando pode torneá-las. Acontece que,
às vezes, não é possível
avançar, porque se levanta
um problema superior às nossas forças e
arremeter sem
cálculo leva-nos ao desastre. O grande problema que
enfrentemos será também dinâmico e a relação de
forças mudará,
ou porque vamos crescendo em influência
ou porque a sua
influência diminui. Quebrada a relação
anterior, é o momento de
proceder com resolução, já
que uma indecisão ou uma postergação
fará com que
novamente se modifiquem os factores. A execução da
acção oportuna é a melhor ferramenta para produzir
mudanças de
direcção.
[ Início da Página ]
13. A
adaptação crescente como avanço em direcção à
coerência.
Consideremos o tema da
direcção, da coerência que queremos
conseguir.
Adaptar-nos a certas situações terá a ver com essa
proposta, porque adaptar-nos ao que nos leva em
direcção oposta à
coerência é uma grande
incoerência. Os oportunistas padecem de
uma grande
miopia com respeito a este tema. Eles consideram que
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo
a
melhor forma de viver é a aceitação de tudo, é a
adaptação a tudo;
pensam que aceitar tudo, sempre que
provenha de quem tem poder,
é uma grande adaptação,
mas é claro que a sua vida dependente
está muito longe
do que entendemos por coerência. Distinguimos
entre a
desadaptação, que nos impede de ampliar a nossa
influência; a adaptação decrescente, que nos deixa na
aceitação das
condições estabelecidas; e a
adaptação crescente, que faz crescer a
nossa
influência em direcção às propostas que temos vindo a
comentar.
Sintetizando:
1.
Há uma mudança veloz no mundo, motorizada pela
revolução tecnológica, que está a chocar com as
estruturas estabelecidas e com a formação e os
hábitos de vida das sociedades e dos indivíduos.
2.
Este desfasamento gera crises progressivas em
todos
os campos e não há razão para supôr que se vai
deter, antes pelo contrário, tenderá a
incrementar-se.
3. O
inesperado dos acontecimentos impede prever
que
direcção tomarão os factos, as pessoas que nos
rodeiam e, em suma, a nossa própria vida.
4.
Muitas das coisas que pensávamos e
acreditávamos
já não nos servem. Também não estão
à vista
soluções que provenham de uma sociedade,
instituições e indivíduos que padecem do mesmo
mal.
5. Se
decidirmos trabalhar para fazer face a estes
problemas, teremos que dar direcção à nossa vida,
buscando coerência entre o que pensamos, sentimos
e
fazemos. Como não estamos isolados, essa
coerência
terá que chegar à relação com os outros,
tratando-os do mesmo modo que queremos para nós
mesmos. Estas duas propostas não podem ser
cumpridas
rigorosamente, mas constituem a direcção
de que
necessitamos, sobretudo se as tomarmos
como
referências permamentes e as aprofundarmos.
6.
Vivemos em relação imediata com outros e é nesse
meio onde temos que actuar para dar direcção
favorável à nossa situação. Esta não é uma
questão
psicológica, uma questão que se possa
resolver na
cabeça isolada dos indivíduos: é um
tema relacionado
com a situação que se vive.
7.
Sendo consequentes com as propostas que
tratamos de
levar adiante, chegamos à conclusão que
o que é
positivo para nós e para o nosso meio
imediato, deve
ser alargado a toda a sociedade. Junto
a outros que
coincidem na mesma direcção,
implementaremos os
meios mais adequados para que
uma nova solidariedade
encontre o seu rumo. Por isso,
apesar de actuar tão
especificamente no nosso meio
imediato não
perderemos de vista uma situação global
que afecta
todos os seres humanos e que requer a
nossa ajuda,
assim como nós necessitamos da ajuda
dos outros.
8. As
mudanças inesperadas levam-nos a pensar
seriamente
na necessidade de direccionar a nossa
vida.
9. A
coerência não começa e termina em cada um,
está
antes relacionada com um meio, com outras
pessoas. A
solidariedade é um aspecto da coerência
pessoal.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta3.html 6/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Terceira carta) - Silo
10. A
proporção nas acções consiste em estabelecer
prioridades de vida e operar com base nelas, evitando
que se desequilibrem.
11. A
oportunidade do actuar tem em conta retroceder
perante uma grande força e avançar com resolução
quando esta se debilita. Esta ideia é importante
para
efeitos de produzir mudanças na direcção da
vida, se
estamos submetidos à contradição.
12.
É tão inconveniente a desadaptação num meio em
que não podemos mudar nada, como a adaptação
decrescente, na qual nos limitamos a aceitar as
condições estabelecidas. A adaptação crescente
consiste num aumento da nossa influência no meio e
em direcção coerente.
Silo
17/12/91
[ Início da Página ]
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta3.html 7/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo
Quarta
carta aos meus amigos
1. Arranque
das nossas ideias
2. Natureza,
intenção e abertura do ser humano
3. A
abertura social e histórica do ser humano
4. A
acção transformadora do ser humano
5. A
superação da dor e do sofrimento como projectos
vitais
básicos
6. Imagem,
crença, olhar e paisagem
7. As
gerações e os momentos históricos
8. A
violência, o Estado e a concentração de poder
9. O
processo humano
Estimados amigos:
Esclarecido o anterior,
tratarei de resumir nesta carta as ideias que
fundamentam
as minhas opiniões, críticas e propostas, tendo
especial cuidado de não ir muito além do slogan
publicitário, porque,
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 1/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo
Brincadeiras à parte,
comecemos já o inventário das nossas ideias,
pelo menos
das que consideramos mais importantes. Devo realçar
que
boa parte delas foram apresentadas na conferência que
dei em
Santiago de Chile em 23/05/91.
[ Início da Página ]
1.
Arranque das nossas ideias.
[ Início da Página ]
2.
Natureza, intenção e abertura do ser humano.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 2/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo
[ Início da Página ]
3. A
abertura social e histórica do ser humano.
É-me
insuficiente a definição do Homem pela sua
sociabilidade, já
que isto não contribui para a
distinção em relação a numerosas
espécies; a sua
força de trabalho também não é o característico,
comparada com a de animais mais poderosos; nem sequer a
linguagem o define na sua essência, porque sabemos de
códigos e
formas de comunicação entre diversos
animais. Ao invés, ao
encontrar-se cada novo ser humano
com um mundo modificado por
outros e ao ser constituído
por esse mundo intencionado, descubro a
sua capacidade de
acumulação e incorporação no temporal;
descubro a sua
dimensão histórico-social, não simplesmente social.
Vistas assim as coisas, posso tentar uma definição,
dizendo: o
Homem é o ser histórico cujo modo de acção
social transforma a sua
própria natureza. Se admito
isto, terei de aceitar que esse ser pode
transformar
intencionalmente a sua constituição física. E assim
está
a acontecer. Começou com a utilização de
instrumentos que, postos
adiante do seu corpo como
"próteses" externas, lhe permitiram
alongar a
sua mão, aperfeiçoar os seus sentidos e aumentar a sua
força e qualidade de trabalho. Naturalmente não estava
dotado para
os meios líquido e aéreo e, no entanto,
criou condições para se
deslocar neles, até começar a
emigrar do seu meio natural, o
planeta Terra. Hoje, além
disso, está a internar-se no seu próprio
corpo mudando
os seus órgãos; intervindo na sua química cerebral;
fecundando in vitro e manipulando os seus genes.
Se, com a ideia
de "natureza", se quis
assinalar o permanente, tal ideia é hoje
inadequada,
ainda que se queira aplicá-la ao mais objectal do ser
humano, isto é, ao seu corpo. E no que se refere a uma
"moral
natural", a um "direito
natural" ou a "instituições naturais",
encontramos, opostamente, que nesse campo tudo é
histórico-social
e nada aí existe por natureza.
[ Início da Página ]
4. A
acção transformadora do ser humano.
Contígua à concepção
da natureza humana tem estado a operar
outra que nos
falou da passividade da consciência. Esta ideologia
considerou o Homem como uma entidade que operava em
resposta
aos estímulos do mundo natural. O que começou
em tosco
sensualismo, pouco a pouco foi afastado por
correntes historicistas
que conservaram no seu seio a
mesma ideia em torno da
passividade. E ainda quando
privilegiaram a actividade e a
transformação do mundo
em relação à interpretação dos seus
factos,
conceberam a referida actividade como resultante de
condições externas à consciência. Porém, aqueles
antigos
preconceitos em torno da natureza humana e da
passividade da
consciência hoje impõem-se,
transformados em neo-evolucionismo,
com critérios tais
como a selecção natural que se estabelece na luta
pela
sobrevivência do mais apto. Tal concepção zoológica,
na sua
versão mais recente, ao ser transplantada para o
mundo humano,
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 3/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo
Mencionámos as
concepções que para explicar o Homem começam
de
generalidades teóricas e sustentam a existência de uma
natureza
humana e de uma consciência passiva. Em sentido
oposto, nós
sustentamos a necessidade de arranque a
partir da particularidade
humana; sustentamos o fenómeno
histórico-social e não natural do
ser humano e também
afirmamos a actividade da sua consciência
transformadora
do mundo de acordo com a sua intenção. Vimos a
sua vida
em situação e o seu corpo como objecto natural
percebido
imediatamente e submetido, também
imediatamente, a numerosos
ditames da sua intenção. Por
conseguinte, impõem-se as seguintes
perguntas: como é
que a consciência é activa, quer dizer, como é
que
pode intencionar sobre o corpo e através dele
transformar o
mundo? Em segundo lugar, como é que a
constituição humana é
histórico-social? Estas
perguntas devem ser respondidas a partir da
existência
particular, para não recair em generalidades teóricas a
partir das quais se desprende depois um sistema de
interpretação.
Desta maneira, para responder à
primeira pergunta, ter-se-á que
apreender com evidência
imediata como é que a intenção actua
sobre o corpo e,
para responder à segunda, haverá que partir da
evidência da temporalidade e da intersubjectividade no
ser humano
e não de leis gerais da História e da
sociedade. No nosso trabalho,
Contribuições ao
Pensamento, trata-se de dar resposta
precisamente a
essas duas perguntas. No primeiro ensaio de
Contribuições,
estuda-se a função que cumpre a imagem na
consciência,
destacando a sua aptidão para mover o corpo no
espaço.
No segundo ensaio do mesmo livro, estuda-se o tema da
historicidade e sociabilidade. A especificidade destes
temas afasta-
nos em demasia da presente carta, por isso
remetemos para o
material citado.
[ Início da Página ]
5. A
superação da dor e do sofrimento como projectos vitais
básicos.
Dissemos em Contribuições
que o destino natural do corpo humano
é o mundo e
basta ver a sua conformação para verificar esta
asserção. Os seus sentidos e os seus aparelhos de
nutrição,
locomoção, reprodução, etc., estão
naturalmente conformados para
estar no mundo, mas, além
disso, a imagem lança através do corpo
a sua carga
transformadora; não o faz para copiar o mundo, para ser
reflexo da situação dada, mas sim, pelo contrário,
para modificar a
situação previamente dada. Neste
acontecer, os objectos são
limitações ou ampliações
das possibilidades corporais e os corpos
alheios aparecem
como multiplicações dessas possibilidades, já que
são
governados por intenções que se reconhecem similares
às que
manejam o próprio corpo. Por que razão
necessitaria o ser humano
de transformar o mundo e
transformar-se a si mesmo? Pela situação
de finitude e
carência espacio-temporal em que se encontra e que
regista como dor física e sofrimento mental. Assim, a
superação da
dor não é simplesmente uma resposta
animal, mas sim uma
configuração temporal em que prima
o futuro e que se converte em
impulso fundamental da
vida, ainda que esta não se encontre urgida
num momento
dado. Por isso, à parte a resposta imediata, reflexa e
natural, a resposta diferida para evitar a dor está
impulsionada pelo
sofrimento psicológico ante o perigo e
está representada como
possibilidade futura ou facto
actual, em que a dor está presente
noutros seres
humanos. A superação da dor aparece, pois, como um
projecto básico que guia a acção. Isso é o que
possibilitou a
comunicação entre corpos e intenções
diversas, no que chamamos
a "constituição
social". A constituição social é tão histórica
como a
vida humana, é configurante da vida humana. A sua
transformação é
contínua, mas de um modo diferente à
da natureza, porque nesta as
mudanças não se dão
mercê de intenções.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 4/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo
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6. Imagem,
crença, olhar e paisagem.
[ Início da Página ]
7. As
gerações e os momentos históricos.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 5/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo
A organização social
continua-se e amplia-se, mas isto não pode
acontecer
sómente pela presença de objectos sociais que foram
produzidos no passado e que se utilizam para viver o
presente e
projectar-se para o futuro. Tal mecânica é
demasiado elementar para
poder explicar o processo da
civilização. A continuidade está dada
pelas gerações
humanas que não estão postas uma ao lado da
outra, mas
antes, coexistindo, interactuam e transformam-se. Estas
gerações, que permitem continuidade e desenvolvimento,
são
estruturas dinâmicas, são o tempo social em
movimento, sem o qual
a civilização cairia no estado
natural e perderia a sua condição de
sociedade.
Acontece, por outro lado, que em qualquer momento
histórico coexistem gerações de distinto nível
temporal, de distintas
retenção e futurização, que
configuram paisagens de situação e
crenças diferentes.
O corpo e o comportamento de crianças e
anciãos delata,
para as gerações activas, uma presença de onde se
vem
e para onde se vai. Por sua vez, para os extremos dessa
tripla
relação, também se verificam ubicações de
temporalidade extremas.
Mas isto não permanece jamais
parado, porque, enquanto as
gerações activas envelhecem
e os anciãos morrem, as crianças vão-
se transformando
e começam a ocupar posições activas. Entretanto,
novos
nascimentos reconstituem continuamente a sociedade.
Quando, por abstracção, se "detém" o
incessante fluir, podemos
falar de "momento
histórico", no qual todos os membros situados no
mesmo cenário social podem ser considerados
"contemporâneos",
viventes de um mesmo tempo;
mas observamos que não são
coetâneos, que não têm a
mesma idade, a mesma temporalidade
interna quanto a
paisagens de formação, quanto a situação actual e
quanto a projecto. Na realidade, uma dialéctica
geracional
estabelece-se entre as "franjas"
mais contíguas, que tratam de
ocupar a actividade
central, o presente social, de acordo com os
seus
interesses e crenças. É a temporalidade social interna
que
explica estruturalmente o devir histórico, em que
interactuam
distintas acumulações geracionais e não a
sucessão de fenómenos
linearmente postos um ao lado do
outro, como no tempo de
calendário, segundo nos tem
explicado alguma ou outra Filosofia da
História.
Constituído socialmente
num mundo histórico no qual vou
configurando a minha
paisagem, interpreto aquilo a que lanço o meu
olhar.
Está a minha paisagem pessoal, mas também uma paisagem
colectiva que responde, nesse momento, a grandes
conjuntos.
Como dissemos antes, coexistem, num mesmo
tempo presente,
distintas gerações. Num momento, para
exemplificar a grosso modo,
existem aqueles que
nasceram antes do transístor e os que o
fizeram entre
computadores. Numerosas configurações diferem em
ambas
as experiências, não só no modo de actuar como também
no
de pensar e sentir... e aquilo que na relação social
e no modo de
produção funcionava numa época, deixa de
fazê-lo lentamente ou,
às vezes, de modo abrupto.
Esperava-se um resultado no futuro e
esse futuro chegou,
mas as coisas não saíram do modo que tinham
sido
projectadas. Nem aquela acção, nem aquela
sensibilidade, nem
aquela ideologia coincidem com a nova
paisagem que se vai
impondo socialmente.
[ Início da Página ]
8. A
violência, o Estado e a concentração de poder.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 6/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo
requer
um tipo avançado de coordenação a salvo de toda a
concentração de poder, seja esta privada ou estatal.
Quando se
pretende que a privatização de todas as
áreas económicas põe a
sociedade a salvo do poder
estatal, oculta-se que o verdadeiro
problema está no
monopólio ou oligopólio que transfere o poder das
mãos
estatais para as mãos de um Paraestado, manejado, já
não
por uma minoria burocrática, mas sim pela minoria
particular que
aumenta o processo de concentração.
As diversas estruturas
sociais, desde as mais primitivas às mais
sofisticadas,
tendem à concentração progressiva até que se
imobilizam e começa a sua etapa de dissolução, da qual
arrancam
novos processos de reorganização num nível
mais alto do que o
anterior. Desde o começo da
História, a sociedade aponta à
mundialização e assim
se chegará a uma época de máxima
concentração de
poder arbitrário, com características de império
mundial, já sem possibilidades de maior expansão. O
colapso do
sistema global acontecerá pela lógica da
dinâmica estrutural de
qualquer sistema fechado, em que
necessáriamente tende a
aumentar a desordem. Mas, assim
como o processo das estruturas
tende à mundialização,
o processo de humanização tende à abertura
do ser
humano, à superação do Estado e do Paraestado; tende
à
descentralização e à desconcentração a favor de
uma coordenação
superior entre particularidades sociais
autónomas. Que tudo acabe
num caos e num reinício da
civilização ou comece uma etapa de
humanização
progressiva já não dependerá de inexoráveis
desígnios mecânicos, mas sim da intenção dos
indivíduos e dos
povos, do seu compromisso com a
mudança do mundo e de uma
ética da liberdade que, por
definição, não poderá ser imposta. E
haver-se-á de
aspirar já não a uma Democracia formal, manejada
como
até agora pelos interesses das facções, mas sim a uma
Democracia real, na qual a participação directa possa
realizar-se
instantâneamente, graças à tecnologia de
comunicação, hoje em dia
em condições de fazê-lo.
[ Início da Página ]
9. O
processo humano.
Necessariamente, aqueles
que reduziram a humanidade de outros,
provocaram com isso
nova dor e sofrimento, reiniciando-se no seio
da
sociedade a antiga luta contra a adversidade natural, mas
agora
entre aqueles que querem "naturalizar"
outros, a sociedade e a
História e, por outro lado, os
oprimidos que necessitam humanizar-
se, humanizando o
mundo. Por isso, humanizar é sair da
objectivação para
afirmar a intencionalidade de todo o ser humano e
a
primazia do futuro sobre a situação actual. É a imagem
e
representação de um futuro possível e melhor, o que
permite a
modificação do presente e o que possibilita
qualquer revolução e
qualquer mudança. Por
conseguinte, não basta a pressão de
condições
opressivas para que se desencadeie a mudança, antes
pelo
contrário, é necessário dar-se conta que a mudança é
possível
e que depende da acção humana. Esta luta não
é entre forças
mecânicas, não é um reflexo natural;
é uma luta entre intenções
humanas. E é isto
precisamente o que nos permite falar de
opressores e
oprimidos, de justos e injustos, de heróis e cobardes.
É
o único que permite praticar com sentido a
solidariedade social e o
compromisso com a libertação
dos discriminados, sejam estes
maiorias ou minorias.
Enfim, considerações
mais detalhadas em torno da violência, do
Estado, das
instituições, da lei e da religião, aparecem no
trabalho
intitulado A Paisagem Humana, incluído
no livro Humanizar a Terra,
para o qual remeto
para não exceder os limites desta carta.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 7/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quarta carta) - Silo
Na próxima carta,
sairemos destes temas estritamente doutrinais
para nos
referirmos novamente à situação actual e à acção
pessoal
no mundo social.
Silo
19/12/91
[ Início da Página ]
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta4.html 8/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo
Quinta
carta aos meus amigos
1. O tema
mais importante: saber se se quer viver e em que
condições se quer fazê-lo
2. A
liberdade humana, fonte de todo o sentido
3. A
intenção, orientadora da acção
4. Que
faremos com a nossa vida?
5. Os
interesses imediatos e a consciência moral
6. O
sacrifício dos objectivos em troca de
conjunturas de
sucesso. Alguns defeitos habituais
7. O Reino
do Secundário
Estimados amigos:
[ Início da Página ]
1. O tema
mais importante: saber se se quer viver e em que
condições se quer fazê-lo.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 1/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo
Milhões de
pessoas lutam hoje por subsistir, ignorando se amanhã
poderão vencer a fome, a doença, o abandono. As suas
carências
são tais que qualquer coisa que tentem para
sair desses problemas
complica ainda mais as suas vidas.
Ficarão imóveis num suicídio
simplesmente adiado?;
tentarão actos desesperados?; que tipo de
actividade ou
de risco ou de esperança estarão dispostas a
enfrentar?
Que fará todo aquele que por razões económicas ou
sociais ou simplesmente pessoais se encontre em
situação limite?
Em qualquer caso, o tema mais
importante consistirá sempre em
saber se se quer viver e
em que condições se quer fazê-lo.
[ Início da Página ]
2. A
liberdade humana, fonte de todo o sentido.
Mesmo aqueles
que não se encontrem em situação limite
questionarão
a sua condição actual, formando um esquema de vida
futura. Mesmo aquele que prefira não pensar na sua
situação ou que
transfira para outros essa
responsabilidade, escolherá um esquema
de vida. Assim, a
liberdade de escolha é uma realidade desde o
momento em
que nos questionamos o viver e pensamos nas
condições
em que queremos fazê-lo. Que lutemos ou não por esse
futuro, sempre a liberdade de escolha fica em pé. E é
unicamente
este facto da vida humana que pode justificar
a existência dos
valores, da moral, do direito e da
obrigação, ao mesmo tempo que
permite refutar toda a
política, toda a organização social, todo o
estilo de
vida que se instale sem justificar o seu sentido, sem
justificar para que serve ao ser humano concreto e
actual. Qualquer
moral ou lei ou constituição social
que parta de princípios
supostamente superiores à vida
humana, coloca esta em situação
de contingência,
negando o seu essencial sentido de liberdade.
[ Início da Página ]
3. A
intenção, orientadora da acção.
Nascemos
entre condições que não escolhemos. Não escolhemos o
nosso corpo nem o meio natural nem a sociedade nem o
tempo e o
espaço que nos calhou por sorte ou por
desgraça. A partir daí, e em
algum momento, contamos
com liberdade para nos suicidarmos ou
continuar a viver e
para pensar nas condições em que o queremos
fazer.
Podemos revoltar-nos contra uma tirania e triunfar ou
morrer
na empresa; podemos lutar por uma causa ou
facilitar a opressão;
podemos aceitar um modelo de vida
ou tratar de modificá-lo.
Também nos podemos enganar na
escolha. Podemos crer que ao
aceitar todo o estabelecido
numa sociedade, por perverso que seja,
nos adaptamos
perfeitamente e que isso nos oferece as melhores
condições de vida; ou então, podemos supôr que ao
questionar tudo,
sem fazer diferenças entre o importante
e o secundário, ampliamos
o nosso campo de liberdade,
quando na realidade, a nossa
influência para mudar as
coisas diminui num fenómeno de
inadaptação
acumulativo. Podemos, por último, priorizar a acção,
ampliando a nossa influência numa direcção possível
que dê sentido
à nossa existência. Em todos os casos,
teremos que escolher entre
condições, entre
necessidades, e fá-lo-emos de acordo com a nossa
intenção e com o esquema de vida que nos proponhamos.
Desde
logo, a própria intenção poderá ir mudando em
tão acidentado
caminho.
[ Início da Página ]
4. Que
faremos com a nossa vida?
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 2/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 3/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo
[ Início da Página ]
5. Os
interesses imediatos e a consciência moral.
Devemos escolher as
condições em que queremos viver. Se
actuamos contra o
nosso projecto de vida, não escaparemos à
contradição
que nos colocará à mercê de uma longa cadeia de
acidentes. Nessa direcção, qual será o travão que
poderemos
aplicar aos factos da nossa própria vida?
Somente o dos interesses
imediatos. Assim, podemos
imaginar numerosas situações limite de
que trataremos
de sair sacrificando todo o valor e todo o sentido,
porque o nosso primário será o benefício imediato.
Para evitar
dificuldades, trataremos de eludir qualquer
compromisso que nos
aproxime da situação limite, mas
há-de acontecer que os próprios
acontecimentos nos
porão em posições que não teremos escolhido.
Não se
requer uma especial subtileza para compreender que
acontecerá com as pessoas que nos são mais próximas se
partilharem a mesma postura. Por que razão não haveriam
elas de
escolher contra nós se estão movidas por
idêntico imediatismo? Por
que razão toda uma sociedade
não haveria de tomar a mesma
direcção? Não existiria
limite para a arbitrariedade e venceria o
poder
injustificado; fá-lo-ia com manifesta violência se
encontrasse
resistências e, a não ser assim,
bastar-lhe-ia a persuasão de valores
insustentáveis a
que teríamos de aderir como justificação, sentindo
no
fundo dos nossos corações o sem-sentido da vida.
Então, teria
triunfado a desumanização da Terra.
Escolher um projecto de
vida entre condições impostas está longe
de ser um
simples reflexo animal. Pelo contrário, é a
característica
essencial do ser humano. Se eliminamos
aquilo que o define,
pararemos a sua História e
poderemos esperar o avanço da
destruição em cada passo
que se dê. Se se depõe o direito de
escolher um
projecto de vida e um ideal de sociedade,
encontrar-
nos-emos com caricaturas de Direito, de valor e
de sentido. Se essa
é a situação, que podemos
sustentar contra toda a neurose e a
desordem que
começamos a sentir à nossa volta? Cada um de nós
verá
o que faz com a sua vida, mas também cada um deve ter
presente que as suas acções chegarão mais além de si
mesmo e
isto será assim desde a menor à maior
capacidade de influência.
Acções unitivas, com
sentido, ou acções contraditórias ditadas pelo
imediatismo, são ineludíveis em toda a situação em
que se
comprometa a direcção de vida.
[ Início da Página ]
6. O
sacrifício dos objectivos em troca de conjunturas de
sucesso. Alguns defeitos habituais.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 4/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo
que não
estamos a falar da mudança de condições e de tácticas
em
que todo aquele que participa compreende a relação
entre elas e o
objectivo mobilizador proposto. Também
não nos estamos a referir
aos erros de apreciação que
se podem cometer nas implementações
concretas. Estamos
a observar a imoralidade que distorce as
intenções e
perante a qual é imprescindível pôr-se alerta. É
importante estarmos atentos a nós próprios e esclarecer
outros para
que saibam antecipadamente que, ao quebrar os
seus
compromissos, as nossas mãos ficam tão livres como
as suas.
[ Início da Página ]
7. O
Reino do Secundário.
É de tal forma a
situação actual que acusadores de todo o tipo e
penugem
exigem explicações em tom inquisidor, dando por assente
que se lhes deve demonstrar inocência. O interessante de
tudo isto
é que a sua táctica reside no enfâse do
secundário e,
consequentemente, no ocultamento das
questões primárias. De
algum modo, essa atitude faz
recordar o funcionamento da
Democracia nas empresas. Com
efeito, os empregados discutem
sobre se, no escritório,
as secretárias devem estar perto ou longe
das janelas;
se há que colocar flores ou cores agradáveis, o que
não
está mal. Posteriormente votam e, por maioria,
decide-se o destino
dos móveis e da decoração, o que
também não está mal. Porém, no
momento de discutir e
propôr uma votação em torno da direcção e
das
acções da empresa, produz-se um silêncio aterrador...
imediatamente a Democracia congela-se, porque na
realidade está-
se no Reino do Secundário. Não acontece
nada diferente com os
fiscais do Sistema. De súbito, um
jornalista coloca-se nesse papel,
fazendo com que o nosso
gosto por certas comidas pareça suspeito
ou exigindo
"compromisso" e discussão em questões
desportivas,
astrológicas ou de catecismo. Desde logo,
nunca falta alguma
acusação grosseira à qual,
supõe-se, devemos responder e não
escasseia a montagem
de contextos, a utilização de palavras
carregadas de
dois sentidos e a manipulação de imagens
contraditórias. É bom recordar que aqueles que se
colocam num
bando oposto a nós têm o direito a que lhes
expliquemos por que
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 5/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Quinta carta) - Silo
Os anteriores comentários
relativamente a algumas expressões do
Reino do
Secundário, não trazem nada de novo, mas às vezes vale
a pena prevenir militantes distraídos que, tratando de
comunicar as
suas ideias, não notam o estranho
território em que foram recluídos.
Silo
04/06/92
[ Início da Página ]
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta5.html 6/6
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sexta carta) - Silo
Sexta
carta aos meus amigos
DOCUMENTO
DO MOVIMENTO HUMANISTA
1. O
capital mundial
2. A
Democracia formal e a Democracia real
3. A
posição humanista
4. Do
humanismo ingénuo ao humanismo consciente
5. O campo
Anti-humanista
6. As
frentes de acção humanistas
Estimados amigos:
[ Início da Página ]
DOCUMENTO DO MOVIMENTO
HUMANISTA
Os humanistas são
mulheres e homens deste século, desta época.
Reconhecem
os antecedentes do Humanismo histórico e inspiram-
se nos
contributos das diferentes culturas, não só daquelas
que
neste momento ocupam um lugar central. São, além
disso, homens
e mulheres que deixam para trás este
século e este milénio e se
projectam para um novo
mundo.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta6.html 1/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sexta carta) - Silo
Os humanistas são
internacionalistas, aspiram a uma nação humana
universal. Compreendem globalmente o mundo em que vivem e
actuam no seu meio imediato. Não desejam um mundo
uniforme
mas sim múltiplo: múltiplo nas etnias,
línguas e costumes; múltiplo
nas localidades, nas
regiões e nas autonomias; múltiplo nas ideias e
nas
aspirações; múltiplo nas crenças, no ateísmo e na
religiosidade;
múltiplo no trabalho; múltiplo na
criatividade.
Porém, entre as
aspirações humanistas e as realidades do mundo
de hoje,
levantou-se um muro. Chegou, pois, o momento de
derrubá-
lo. Para isso é necessária a união de todos
os humanistas do
mundo.
[ Início da Página ]
1. O
capital mundial
Paralelamente, a velha
solidariedade evapora-se. Em suma, trata-se
da
desintegração do tecido social e do advento de milhões
de seres
humanos desconectados e indiferentes entre si,
apesar das penúrias
gerais. O grande capital domina não
só a objectividade, graças ao
controlo dos meios de
produção, como também a subjectividade,
graças ao
controlo dos meios de comunicação e informação.
Nestas
condições, pode dispôr a seu gosto dos recursos
materiais e sociais
tornando irrecuperável a natureza e
descartando progressivamente o
ser humano. Para isso
conta com a tecnologia suficiente. E assim
como esvaziou
as empresas e os estados, esvaziou a Ciência de
sentido
convertendo-a em tecnologia para a miséria, a
destruição e o
desemprego.
Os humanistas não
necessitam de abundar em argumentos quando
enfatizam que
hoje o mundo está em condições tecnológicas
suficientes para solucionar, em curto espaço de tempo,
os
problemas de vastas regiões no que respeita a pleno
emprego,
alimentação, saúde, habitação e
instrução. Se esta possibilidade não
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sexta carta) - Silo
se realiza é
simplesmente porque a especulação monstruosa do
grande
capital está a impedi-lo.
O grande capital já
esgotou a etapa de economia de mercado e
começa a
disciplinar a sociedade para enfrentar o caos que ele
mesmo produziu. Perante esta irracionalidade, não se
levantam
dialecticamente as vozes da razão, mas sim os
mais obscuros
racismos, fundamentalismos e fanatismos. E
se este neo-
irracionalismo vai liderar regiões e
colectividades, então a margem
de acção das forças
progressistas fica dia-a-dia mais reduzida. Por
outro
lado, milhões de trabalhadores já tomaram consciência,
tanto
das irrealidades do centralismo estatista, como das
falsidades da
Democracia capitalista. E assim acontece
que os operários se
levantam contra as suas cúpulas
gremiais corruptas, do mesmo
modo que os povos questionam
os partidos e os governos. Mas é
necessário dar uma
orientação a estes fenómenos, pois de outro
modo
estancar-se-ão num espontaneísmo sem progresso. É
necessário discutir no seio do povo os temas
fundamentais dos
factores de produção.
Quanto à objecção de
que enquadrar o capital, tal como está
enquadrado o
trabalho, produz a sua fuga para pontos e áreas mais
proveitosas, deve esclarecer-se que isto não acontecerá
durante
muito mais tempo, já que a irracionalidade do
esquema actual leva-o
à sua saturação e à crise
mundial. Essa objecção, além do
reconhecimento de uma
imoralidade radical, desconhece o processo
histórico da
transferência do capital para a banca, resultando disso
que o próprio empresário se vai convertendo em
empregado sem
decisão dentro de uma cadeia em que
aparenta autonomia. Por
outro lado, à medida que se
agudize o processo recessivo, o próprio
empresariado
começará a considerar estes pontos.
Os humanistas sentem a
necessidade de actuar não só no campo
laboral como
também no campo político para impedir que o Estado
seja
um instrumento do capital financeiro mundial, para
conseguir
que a relação entre os factores de produção
seja justa e para
devolver à sociedade a sua autonomia
arrebatada.
[ Início da Página ]
2. A
Democracia formal e a Democracia real
a
representatividade e o respeito pelas minorias.
A teórica independência
entre poderes é um contrasenso. Basta
pesquisar na
prática a origem e composição de cada um deles para
comprovar as íntimas relações que os ligam. Não
poderia ser de
outra maneira. Todos fazem parte de um
mesmo sistema. De
maneira que as frequentes crises de
atropelo de uns por outros, de
sobreposição de
funções, de corrupção e irregularidade,
correspondem-se com a situação global, económica e
política, de
um dado país.
Quanto à
representatividade. Desde a época da extensão do
sufrágio universal, pensou-se que existia um só acto
entre a eleição
e a conclusão do mandato dos
representantes do povo. Mas à
medida que decorreu o
tempo, viu-se claramente que existe um
primeiro acto
mediante o qual muitos elegem poucos e um segundo
acto em
que estes poucos traem aqueles muitos, representando
interesses estranhos ao mandato recebido. Esse mal já se
incuba
nos partidos políticos reduzidos a cúpulas
separadas das
necessidades do povo. Aí na máquina
partidária, já os grandes
interesses financiam
candidatos e ditam as políticas que estes
deverão
seguir. Tudo isto evidencia uma profunda crise no
conceito
e na implementação da representatividade.
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sexta carta) - Silo
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3. A
posição humanista
O progresso da humanidade,
em lenta ascensão, necessita
transformar a natureza e a
sociedade, eliminando a violenta
apropriação animal de
uns seres humanos por outros. Quando isto
aconteça,
passar-se-á da Pré-História a uma plena História
humana.
Entretanto, não se pode partir de outro valor
central senão de o do
ser humano pleno nas suas
realizações e na sua liberdade. Por isso,
os humanistas
proclamam: "Nada por cima do ser humano e
nenhum ser
humano por baixo de outro". Se se põe como valor
central Deus, o Estado, o Dinheiro ou qualquer outra
entidade,
subordina-se o ser humano criando condições
para o seu ulterior
controlo ou sacrifício. Os
humanistas têm este ponto claro. Os
humanistas são
ateus ou crentes, mas não partem do seu ateísmo
ou da
sua fé para fundamentar a sua visão do mundo e a sua
acção;
partem do ser humano e das suas necessidades
imediatas. E se na
sua luta por um mundo melhor, crêem
descobrir uma intenção que
move a História em
direcção progressiva, pôem essa fé ou essa
descoberta
ao serviço do ser humano.
Os humanistas questionam o
problema de fundo: saber se se quer
viver e decidir em
que condições fazê-lo.
Todas as formas de
violência física, económica, racial, religiosa,
sexual
e ideológica, mercê das quais se tem travado o
progresso
humano, repugnam aos humanistas. Toda a forma
de discriminação,
manifesta ou larvar, é um motivo de
denúncia para os humanistas.
liberdade face à
opressão; a questão do sentido da vida face à
resignação, à cumplicidade e ao absurdo.
Porque o Humanismo se
baseia na liberdade de escolha, possui a
única ética
válida do momento actual. De igual modo, porque
acredita
na intenção e na liberdade, distingue entre o erro e a
má fé,
entre o equivocado e o traidor.
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4. Do
humanismo ingénuo ao humanismo consciente
Vastas camadas de
estudantes e docentes, normalmente sensíveis
à
injustiça, irão tornando consciente a sua vontade de
mudança na
medida em que a crise geral do sistema os
afecte. E, certamente, a
gente da Imprensa em contacto
com a tragédia quotidiana, está hoje
em condições de
actuar na direcção humanista, do mesmo modo
que
sectores da intelectualidade cuja produção está em
contradição
com as pautas que este sistema desumano
promove.
[ Início da Página ]
5. O
campo Anti-humanista
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta6.html 6/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sexta carta) - Silo
Não é necessário
estender-se demasiado na consideração das
direitas como
instrumentos políticos do Anti-humanismo. Nela a má
fé
chega a níveis tão altos que, periodicamente, se
publicitam como
representantes do "Humanismo".
Nessa direcção, também não tem
faltado a astuta
clericalha (1) que tem pretendido teorizar com base
num
ridículo "Humanismo Teocêntrico" (?). Essa
gente, inventora de
guerras religiosas e inquisições;
essa gente que foi verdugo (2) dos
pais históricos do
Humanismo ocidental, arrogou-se as virtudes das
suas
vítimas, chegando inclusivé a "perdoar os
desvios" daqueles
humanistas históricos. Tão
enorme é a má fé e o bandoleirismo na
apropriação
das palavras que os representantes do Anti-humanismo
tentaram mesmo cobrir-se com o nome de
"humanistas".
Seria impossível
inventariar os recursos, instrumentos, formas e
expressões de que dispõe o Anti-humanismo. Em todo o
caso,
esclarecer sobre as suas tendências mais solapadas
contribuirá para
que muitos humanistas espontâneos ou
ingénuos revejam as suas
concepções e o significado da
sua prática social.
[ Início da Página ]
6. As
frentes de acção humanistas
O Humanismo organiza
frentes de acção no campo laboral,
habitacional,
gremial, político e cultural com a intenção de ir
assumindo o carácter de movimento social. Ao proceder
assim, cria
condições de inserção para as diferentes
forças, grupos e indivíduos
progressistas sem que estes
percam a sua identidade nem as suas
características
particulares. O objectivo de tal movimento consiste
em
promover a união de forças capazes de influir
crescentemente
sobre vastas camadas da população,
orientando com a sua acção a
transformação social.
Silo
05/04/93
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https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta6.html 7/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo
Sétima
carta aos meus amigos
1. Caos
destrutivo ou revolução
2. De que
revolução falamos?
3. As
frentes de acção no processo revolucionário
4. O
processo revolucionário e a sua direcção
Estimados amigos:
Hoje falaremos da
Revolução social. Como pode isto ser? Alguns
bem-pensantes dizem-nos que a palavra
"Revolução" caíu em
desuso após o fracasso
do "Socialismo real". Possivelmente, nas
suas
cabeças sempre se aninhou a crença de que as
revoluções
anteriores a 1917 eram preparações da
Revolução "a sério". É claro
que se
fracassou a Revolução "a sério", já não se
pode voltar ao
tema. Como de costume, os bem-pensantes
exercitam a censura
ideológica e atribuem-se a
prerrogativa de outorgar ou não direito de
cidadania às
modas e às palavras. Estes funcionários do espírito
(ou
melhor, dos meios de difusão) continuam a ter em
relação a nós
diferenças diametrais: eles pensavam
que o monolitismo soviético
era eterno e agora que o
triunfo do Capitalismo é uma realidade
irremovível.
Eles davam por assente que o substancial de uma
revolução era o derramamento de sangue; que a
decoração
imprescindível eram as bandeiras ao vento,
as marchas, os gestos e
os discursos inflamados. Na sua
paisagem de formação sempre
actuou a cinematografia e a
moda Pierre Cardin. Hoje, por exemplo,
quando pensam no
Islão imaginam uma moda feminina que os
[ Qualquer sugestão é bem vinda ] inquieta e
quando falam do Japão não deixam de se alterar, para
além do plano económico, pelo kimono sempre a ponto de
ser
exumado. Se, enquanto crianças, se nutriram de
celulóide e livros de
piratas, depois sentiram-se
atraídos por Katmandú, a tournée insular,
a
defesa ecológica e a moda "natural"; se, ao
invés, saborearam os
westerns e os filmes de
acção, delinearam, depois, o progresso em
termos de
guerra competitiva ou a revolução em termos de
pólvora.
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1. Caos
destrutivo ou revolução
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https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta7.html 2/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo
2. De que
revolução falamos?
Em carta anterior
definimos posições sobre as questões do trabalho
face
ao grande capital; da Democracia real face à formal; da
descentralização face à centralização; da
anti-discriminação face à
discriminação; da
liberdade face à opressão. Se, no momento actual,
o
capital se vai transferindo gradualmente para a banca, se
a banca
se vai assenhoreando das empresas, dos países,
das regiões e do
mundo, a revolução implica a
apropriação da banca, de tal maneira
que esta cumpra a
prestação do seu serviço sem cobrar em troca
juros
que, em si mesmos, são usurários. Se, na constituição
de uma
empresa, o capital recebe lucros e o trabalhador
salário ou
remuneração; se, na empresa, a gestão e a
decisão estão nas mãos
do capital, a revolução
implica que o lucro se reinvista, se
diversifique ou se
utilize na criação de novas fontes de trabalho e
que a
gestão e decisão sejam partilhadas pelo trabalho e o
capital.
Se as regiões ou províncias de um país estão
atadas à decisão
central, a revolução implica a
desestruturação desse poder, de
maneira que as
entidades regionais conformem uma república
federativa e
que o poder dessas regiões seja igualmente
descentralizado a favor da base comunal, de onde terá de
partir toda
a representatividade eleitoral. Se a saúde e
a educação são tratadas
de modo desigual para os
habitantes de um país, a revolução
implica educação
e saúde gratuitas para todos, porque, em suma,
esses
são os dois valores máximos da revolução e eles
deverão
substituir o paradigma da sociedade actual
determinado pela riqueza
e pelo poder. Pondo
tudo em função da saúde e da educação, os
complexíssimos problemas económicos e tecnológicos da
sociedade actual terão o enquadramento correcto para o
seu
tratamento. Parece-nos que procedendo
de modo inverso não se
chegará a conformar uma
sociedade com possibilidades evolutivas.
O grande
argumento do capitalismo é pôr tudo em dúvida
perguntando sempre de onde sairão os recursos e como
aumentará
a produtividade, dando a entender que os
recursos saiem dos
empréstimos bancários e não do
trabalho do povo. Aliás, de que
serve a produtividade se
depois se esfuma das mãos de quem
produz? Não nos diz
nada de extraordinário o modelo que tem
funcionado por
algumas décadas em certas partes do mundo e que
hoje
começa a desarticular-se. Que a saúde e a educação
desses
países aumentam maravilhosamente, é algo que
está por se ver à
luz do crescimento das pragas não
só físicas mas também
psicosociais. Se faz parte da
educação a criação de um ser humano
autoritário,
violento e xenófobo; se faz parte do seu progresso
sanitário o aumento do alcoolismo, a toxicodependência
e o suicídio,
então de nada vale tal modelo.
Continuaremos a admirar os centros
de educação
organizados, os hospitais bem equipados e trataremos,
além disso, de que estejam ao serviço do povo sem
distinções.
Quanto ao conteúdo e
significado da saúde e da educação, há
demasiado a
discutir com o sistema actual.
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo
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3. As
frentes de acção no processo revolucionário
Gostaria agora de me
estender nalgumas considerações práticas a
respeito da
criação das condições necessárias para a unidade,
organização e crescimento de uma força social
bastante, que
permita posicionar-se em direcção a um
processo revolucionário.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta7.html 4/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo
que apontam
ao protagonismo jornalístico e à promoção
eleitoralista.
Nas épocas em que um partido com recursos
económicos
suficientes podia hegemonizar a
fragmentação, a ideia das "frentes"
eleitorais era viável. Hoje a situção mudou
drásticamente e, no
entanto, a esquerda tradicional
continua com tais procedimentos
como se nada tivesse
acontecido. Torna-se necessário rever a
função do
partido no momento actual e perguntar-se se são os
partidos políticos as estruturas capazes de pôr em
marcha a
revolução. Porque se o sistema acabou por
metabolizar os partidos
convertendo-os em
"cascas" de uma acção que os grandes capitais
e a banca controlam, um partido superestrutural sem base
humana
poder-se-á aproximar do poder formal (não do
poder real), sem por
isso introduzir a mais mínima
variação de fundo. A acção política
exige, por
agora, a criação de um partido que logre
representatividade eleitoral em diferentes níveis. Mas
deve estar
claro, desde o primeiro momento, que essa
representatividade tem
por objectivo orientar o conflito
para o seio do poder estabelecido.
Neste contexto, um
membro do partido que consegue
representatividade popular
não é um funcionário público, mas sim
um referente
que evidencia as contradições do sistema e organiza a
luta em direcção à revolução. Por outras palavras, o
trabalho político
institucional ou partidário é
entendido aqui como a expressão de um
fenómeno social
amplo que possui a sua própria dinâmica. Deste
modo, o
Partido pode desenvolver a sua máxima actividade em
épocas eleitorais, mas as diferentes frentes de acção
que,
ocasionalmente, lhe servem de base utilizam o mesmo
facto eleitoral
para destacar conflitos e ampliar a sua
organização. Há aqui
diferenças importantes em
relação à concepção tradicional do
partido. Com
efeito, até algumas décadas atrás, pensava-se que o
partido era a vanguarda de luta que organizava diferentes
frentes de
acção. Aqui está-se a pôr tudo em sentido
contrário. São as frentes
de acção que organizam e
desenvolvem a base de um movimento
social e é o partido
a expressão institucional desse movimento. Por
sua vez,
o partido deve criar condições de inserção para
outras
forças políticas progressistas, já que não
pode pretender que
aquelas percam a sua identidade
fundindo-se no seu seio. O partido
deve ir mais além da
sua própria identidade formando com outras
forças uma
"frente" mais ampla que insira todos os
factores
progressistas fragmentados. Mas não se passará
do acordo de
cúpulas se o partido não conta com uma
base real que oriente esse
processo. Por outro lado, esta
ideia não é reversível, no sentido de
que o partido
faça parte de uma frente que organizam outras
superestruturas. Haverá uma frente política com outras
forças se
estas se atêm às condições que estabelece
o partido cuja força real
é dada pela organização de
base. Passemos, pois, a considerar as
diferentes frentes
de acção.
É necessário que
diferentes frentes de acção realizem o seu
trabalho na
base administrativa dos países, apontando à comuna ou
município. Cabe desenvolver, na área fixada, frentes de
acção
laborais e habitacionais, comprometendo a
acção nos conflitos
reais devidamente priorizados. Isto
significa que a luta pela
reivindicação imediata não
tem significado se ela não deriva em
crescimento
organizativo e posicionamento para passos
posteriores.
Está claro que todo o conflito deve ser explicado em
termos relacionados directamente com o nível de vida,
com a saúde
e a educação da população
(coerentemente, os trabalhadores da
saúde e da
educação devem converter-se em simpatizantes
imediatos
e posteriormente em quadros necessários para a
organização directa da base social).
Quanto às organizações
gremiais, apresenta-se aqui o mesmo
fenómeno dos
partidos do sistema, por isso não se trata aqui de
planear o controlo do sindicato ou do grémio, mas sim a
aglutinação
de trabalhadores que, como consequência,
releguem o controlo da
cúpula tradicional. Deve
promover-se todo o sistema de eleição
directa, todo o
plenário e assembleia que comprometa os dirigentes
e
lhes exija a tomada de posições nos conflitos
concretos, de
maneira a que respondam aos requerimentos
da base ou sejam
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo
Finalmente, a activação
de instituições sociais e culturais, actuando
desde a
base social, é de extrema importância porque permitem
aglutinar colectividades discriminadas ou perseguidas, no
contexto
do respeito pelos direitos humanos, dando-lhes
uma direcção
comum apesar das suas diferenças
particulares. A tese de que cada
etnia, colectividade ou
grupo humano discriminado deve tornar-se
forte em si
mesmo para enfrentar o atropelo, padece de uma
importante
deficiência de apreciação. Essa postura parte da ideia
de
que "misturar-se" com elementos estranhos
lhes faz perder a
identidade, quando, na realidade, a sua
posição isolada os expõe e
leva-os a ser erradicados
com maior facilidade, ou então, coloca-os
em posição
de se radicalizarem de tal modo que os perseguidores
justifiquem a acção directa contra eles. A melhor
garantia de
sobrevivência de uma minoria discriminada é
fazer parte de
uma frente com outros que encaminham a
luta pelas suas
reivindicações numa direcção
revolucionária. Ao fim e ao cabo, é
o
sistema globalmente considerado que criou as condições
de
discriminação e estas não desaparecerão enquanto
essa ordem
social não for transformada.
[ Início da Página ]
4. O
processo revolucionário e a sua direcção
É pelo exercício da
violência que uma minoria impõe as suas
condições ao
conjunto social e organiza uma ordem, um sistema
inercial, que continua o seu desenvolvimento. Vistas
assim as
coisas, tanto o modo de produção como as
relações sociais
consequentes; tanto a ordem jurídica
como as ideologias
dominantes que regulam e justificam a
dita ordem, e tanto o
aparelho estatal ou paraestatal
através do qual se controla o todo
social, se revelam
como instrumentos ao serviço dos interesses e
intenções da minoria instalada. Mas o desenvolvimento
do sistema
continua mecanicamente, mais além das
intenções dessa minoria
que luta por concentrar cada
vez mais os factores de poder e
controlo, provocando com
isto uma nova aceleração no
desenvolvimento do sistema,
o qual progressivamente vai
escapando ao seu domínio.
Desta maneira, o aumento da desordem
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta7.html 6/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Sétima carta) - Silo
Silo
07/08/93
[ Início da Página ]
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Oitava carta) - Silo
Oitava
carta aos meus amigos
1. Necessidade
de uma redefinição do papel das forças
armadas
2. Permanência
de factores agressivos na etapa de distensão
3. Segurança
interior e reestruturação militar
4. Revisão
dos conceitos de soberania e segurança
5. A
legalidade e os limites do poder vigente
6. A
responsabilidade militar perante o poder
político
7. Reestruturação
militar
8. A
posição militar no processo revolucionário
9. Considerações
em torno dos exércitos e da revolução
Estimados amigos:
[ Início da Página ]
1.
Necessidade de uma redefinição do papel das forças
armadas
A reivindicação
limítrofe que outrora preocupava forças armadas
contíguas, hoje toma outra direcção dada a tendência
para a
secessão no interior de alguns países. As
disparidades económicas,
étnicas e linguísticas tendem
a modificar fronteiras que se supunham
inalteráveis, ao
mesmo tempo que ocorrem migrações em grande
escala.
Trata-se de grupos humanos que se mobilizam para fugir de
situações desesperadas, ou para conter ou expulsar de
áreas
definidas outros grupos humanos.
[ Início da Página ]
2.
Permanência de factores agressivos na etapa de
distensão
Ainda não
desapareceu a agressividade de potências que, a seu
tempo, deram por concluída a Guerra Fria. Actualmente,
existem
violações de espaços aéreos e maríti-mos;
aproximações
imprudentes a territórios longínquos;
incursões e instalação de
bases; afiançamentos de
pactos militares; guerras e ocupação de
territórios
estrangeiros pelo controlo de vias de navegação ou
possessão de fontes de recursos naturais. Os
antecedentes
estabelecidos pelas guerras da Coreia,
Vietname, Laos e Camboja;
pelas crises do Suez, Berlim e
Cuba, pelas incursões em Granada,
Trípolis e Panamá
mostraram ao mundo a desproporção da acção
bélica
tantas vezes aplicada sobre países indefesos e pesam na
hora de falar de desarmamento. Estes factos adquirem
especial
gravidade porque, em casos como o da Guerra do
Golfo, se realizam
nos flancos de países de grande
importância, que poderiam
interpretar tais manobras como
sendo lesivas para a sua segurança.
Esses excessos
estão a produzir efeitos residuais nocivos ao
fortalecer
a frente interna de sectores que julgam os seus governos
incompetentes para travar esses avanços. Isto, desde
logo, pode
chegar a comprometer o clima de paz
internacional tão necessário
no momento actual.
[ Início da Página ]
3.
Segurança interior e reestruturação militar
Se é certo que a
desocupação e a recessão tendem a crescer nos
países
industrializados, é possível que estes sejam palco de
convulsões ou desordens, invertendo-se, em alguma
medida, o
quadro que se apresentava em décadas
anteriores em que o conflito
se desenrolava nas
periferias de um centro que continuava a crescer
sem
sobressalto. Acontecimentos como os de Los Angeles, o ano
passado, poderiam estender-se a mais de uma cidade e
inclusivamente a otros paises. Por último, o fenómeno
do terrorismo
vislumbra-se como perigo de proporções
dado o poder de fogo com
que podem hoje contar
indivíduos e grupos relativamente
especializados. Esta
ameaça, que chegaria a expressar-se por meio
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta8.html 2/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Oitava carta) - Silo
do
artefacto nuclear, ou de explosivos deflagrantes e
moleculares de
alto poder, atinge também outra áreas
como a das armas químicas e
bacteriológicas de reduzido
custo e fácil produção.
[ Início da Página ]
4.
Revisão dos conceitos de soberania e segurança
Na concepção tradicional
deu-se às Forças Armadas a função de
resguardar a
soberania e a segurança dos países, dispondo do uso
da
força de acordo com o mandato dos poderes constituídos.
Deste
modo, o monopólio da violência que cabe ao
Estado, transfere-se
para os corpos militares. Mas eis um
primeiro ponto de discussão
àcerca do que se deve
entender por "soberania" e por
"segurança".
Se estas, ou mais modernamente o
"progresso" de um país,
requerem fontes de
aprovisionamento extraterritoriais;
navegabilidade
marítima indiscutível para proteger a deslocação de
mercadorias; controlo de pontos estratégicos com o mesmo
fim e
ocupação de territórios alheios, estamos perante
a teoria e a prática
colonial ou neo-colonial. No
colonialismo, a função dos exércitos
consiste em abrir
caminho primeiramente aos interesses das coroas
da época
e depois às companhias privadas que obtêm concessões
especiais do poder político em troca de réditos
convenientes. A
ilegalidade desse sistema foi justificada
pela suposta barbárie dos
povos ocupados, incapazes de
terem por si mesmos uma
administração adequada. A
ideologia correspondente a esta etapa
consagrou o
colonialismo como o sistema "civilizador" por
excelência.
Na época do imperialismo
napoleónico, a função do exército, que
por outro lado
ocupa o poder político, consistiu em expandir
fronteiras
com o objectivo declamado de redimir os povos oprimidos
pelas tiranias, mercê da acção bélica e da
instauração de um
sistema administrativo e jurídico
que consagrou nos seus códigos a
Liberdade, a Igualdade
e a Fraternidade. A ideologia correspondente
justificou a
expansão imperial com base no critério de
"necessidade"
de um poder constituído pela
revolução democrática face a
monarquias ilegais
baseadas na desigualdade, as quais, além do
mais, fazem
frente comum para asfixiar a Revolução.
Mais recentemente, e
seguindo os ensinamentos de Clausewitz,
tem-se entendido
a guerra como simples continuação da política e o
Estado, promotor dessa política, foi considerado como o
aparelho de
governo de uma sociedade radicada em certos
limites geográficos.
Desde aí chegou-se a definições,
caras aos geo-políticos, em que as
fronteiras aparecem
como "a pele do Estado". Em tal concepção
organológica, esta "pele" contrai-se ou
expande-se de acordo com o
tom vital dos países e assim
deve ampliar-se com o
desenvolvimento de uma comunidade
que reclama "espaço vital",
dada a sua
concentração demográfica ou económica. Desta
perspectiva, a função do exército é ganhar espaço
conforme é
reclamado por essa política de segurança e
soberania, que é
primária relativamente às
necessidades de outros países limítrofes.
Aqui, a
ideologia dominante proclama a desigualdade das
necessidades que experimentam as colectividades de acordo
com
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Oitava carta) - Silo
[ Início da Página ]
5. A
legalidade e os limites do poder vigente
Contemporâneamente,
flutua no ar muito das três concepções que
usámos
para exemplificar como os exércitos respondem ao poder
político e se enquadram segundo os ditames que,
ocasionalmente,
este entende sobre segurança e
soberania. De maneira que se a
função do exército é
servir o Estado no que respeita a segurança e
soberania
e a concepção destes dois pontos varia de governo para
governo, as Forças Armadas terão que ater-se a isso.
Admite isto
algum limite ou excepção? Claramente
observam-se duas
excepções: 1. - Aquela em que o
poder político se constituíu
ilegítimamente e se
esgotaram os recursos civis para mudar
essa situação
anómala e 2. - Aquela em que o poder político se
constituíu legalmente, mas no seu exercício se converte
em
ilegal, tendo-se esgotado os recursos civis para mudar
a
situação anómala. Em ambos os casos, as Forças
Armadas têm
o dever de restabelecer a legalidade
interrompida, o que
equivale a continuar os actos que por
via civil não se puderam
concluir. Nestas situações, o
exército deve-se à legalidade e
não ao poder vigente.
Não se trata, então, de propiciar um estado
deliberativo do exército, mas sim de destacar a prévia
interrupção da
legalidade realizada por um poder
vigente de origem delitual ou que
se converteu em
delitual. A pergunta que se deve fazer é: de onde
provém a legalidade e quais são as suas
características?
Respondemos que a legalidade provém do
povo que é quem deu a
si próprio um tipo de Estado e um
tipo de leis fundamentais a que se
devem submeter os
cidadãos. E no caso extremo em que o povo
decidisse
modificar esse tipo de Estado e esse tipo de leis,
incumbir-
lhe-ia fazê-lo não podendo existir uma
estrutura estatal e um sistema
legal por cima daquela
decisão. Este ponto leva-nos a considerar o
facto
revolucionário, que trataremos mais adiante.
[ Início da Página ]
6. A
responsabilidade militar perante o poder político
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Oitava carta) - Silo
independentemente da aversão
que sentimos por todas as formas
de violência, não
podemos conceber a desaparição ou o
desarmamento
unilateral de exércitos criando vazios que seriam
preenchidos por outras forças agressivas, tal como
mencionámos
anteriormente quando nos referimos aos
ataques realizados a
países indefesos. São as
próprias Forças Armadas que têm uma
importante missão
a cumprir não obstruindo a filosofia e a
prática do
desarmamento proporcional e progressivo,
inspirando,
além do mais, os camaradas de outros países nessa
direcção e deixando claro que a função castrense no
mundo de
hoje consiste em evitar catástrofes e
servidões ditadas por
governos ilegais que não
respondem ao mandato popular.
Então, o
maior serviço que as forças armadas poderão prestar
aos
seus países e a toda a humanidade será evitar que
existam as
guerras. Esta ideia, que pode parecer
utópica, está avalizada
actualmente pela força dos
factos que demonstram a pouca
praticidade e a
perigosidade para todos quando aumenta o poder
bélico
global ou unilateral.
[ Início da Página ]
7. Reestruturação
militar
Em ordem ao recrutamento
dos cidadãos, o nosso ponto de vista é
favorável à
substituição do serviço militar obrigatório pelo
serviço
militar voluntário, sistema este que permitirá
uma maior qualificação
do soldado profissional. Porém,
a essa limitação de tropas
corresponderá também uma
redução importante do pessoal de
quadros e do pessoas
de chefia. E é claro que não se efectuará uma
reestruturação adequada sem prestar atenção aos
problemas
pessoais, familiares e sociais que isto poderá
acarretar em
numerosos exércitos que hoje mantêm um
esquema
sobredimensionado. A nova colocação laboral,
geográfica e de
inserção social desses contingentes
será equlibrada se se mantém
uma relação militar
flexível durante o tempo que requeira a
recolocação.
Na reestruturação que hoje tem lugar em diversas
partes
do mundo, deve ter-se em conta primariamente o modelo de
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta8.html 5/8
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Oitava carta) - Silo
Um problema de relativa
importância na reestruturação é aquele que
se refere
a certos aspectos das forças de segurança. As forças
de
segurança, se não são militarizadas, actuam em
relação à ordem
interna e com referência à
protecção dos cidadãos, ainda que
estejam
habitualmente involucradas em operações de controlo
muito
distantes do fim para que foram criadas. O
organigrama em que se
inscrevem em muitos países fá-las
depender directamente das
pastas políticas, tais como o
Ministério da Administração Interna,
diferente do
Ministério da Guerra ou da Defesa. Por outro lado, as
polícias, entendidas como servidoras da cidadania e
dispostas de
maneira a que se cumpra uma ordem jurídica
não lesiva para os
habitantes de um país, têm um
carácter acessório e sob jurisdição
do poder
Judicial. Porém, muitas vezes, pelo seu carácter de
força
pública, realizam operações que aos olhos dos
cidadãos as fazem
aparecer como forças militares.
Percebe-se claramente a
inconveniência dessa confusão e
é do interesse das Forças
Armadas que estas
distinções fiquem claras. Outro tanto acontece
com os
diferentes organismos do Estado que manejam corpos
secretos e de informações, imbricados e sobrepostos,
que também
não têm que ver com o regime castrense. Os
exércitos requerem um
adequado sistema de informações
que lhes permitam operar com
eficiência e que não se
assemelham nada a mecanismos de controlo
e seguimento da
cidadania, porque a sua função diz respeito à
segurança da Nação e não ao beneplácito ou à
reprovação
ideológica do governo de turno.
[ Início da Página ]
8. A
posição militar no processo revolucionário
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Oitava carta) - Silo
marcha um novo
tipo de organização social e um novo regime
jurídico. Não
é necessário destacar as diferenças entre a
intervenção militar que tem como objectivo devolver ao
povo a
sua soberania arrebatada, e o simples golpe
militar que rompe a
legalidade estabelecida por mandato
popular. Em ordem às
mesmas ideias, a
legalidade exige que se respeite a vontade do
povo mesmo
no caso de que este proponha mudanças
revolucionárias.
Porque é que as maiorias não haveriam de
expressar o
seu desejo de mudança de estruturas e, ainda, porque é
que não haveriam as minorias de ter a oportunidade de
trabalhar
politicamente para conseguir uma modificação
revolucionária da
sociedade? Negar por meio da
repressão e da violência a
vontade de mudança
revolucionária compromete seriamente a
legalidade do
sistema das actuais democracias formais.
[ Início da Página ]
9. Considerações
em torno dos exércitos e da revolução
Hoje
impõem-se duas opiniões que nos interessam
especialmente. A
primeira anuncia que a época das
revoluções passou; a segunda,
que o protagonismo
militar na tomada de decisões políticas se
atenua
gradualmente. Também se supõe que somente em certos
países atrasados ou desorganizados permanecem
ameaçadoras
aquelas rémoras do passado. Por outro lado,
pensa-se que o
sistema de relações internacionais, ao
tomar um carácter cada vez
mais sólido, irá fazendo
sentir o seu peso até que aquelas antigas
irregularidades vão entrando na linha. Sobre a questão
das
revoluções, como já se expôs, temos um diametral
ponto de vista.
Quanto a que o concerto de nações
"civilizadas" vá impôr uma Nova
Ordem em que
não haja lugar para a decisão militar, é tema por
demais discutível. Nós destacamos que é,
precisamente, nas
nações e regiões que vão tomando
carácter imperial onde as
revoluções e a decisão
militar irão fazendo sentir a sua
presença. Mais cedo
ou mais tarde, as forças do dinheiro, cada
vez mais
concentradas, enfrentar-se-ão às maiorias e, nessa
situação, banca e exército tornar-se-ão termos
antitéticos.
Estamos, pois, situados nos
antípodas da interpretação dos
processos históricos.
Só os tempos já próximos irão pôr em
evidência a
correcta percepção dos factos, que para alguns,
seguindo a tradição dos últimos anos, serão
"incríveis". Com aquela
visão, que se dirá
quando isto aconteça? Provavelmente que a
humanidade
voltou ao passsado ou, mais vulgarmente, que "o
mundo enlouqueceu". Nós cremos que fenómenos como
o
irracionalismo crescente, o surgimento de uma forte
religiosidade e
outros tantos mais não estão situados
no passado, mas sim que
correspondem a uma nova etapa que
haverá que enfrentar com toda
a valentia intelectual e
com todo o compromisso humano de que
formos capazes. Em
nada ajudará continuar a sustentar que o
melhor
desenvolvimento da sociedade se corresponde com o mundo
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Oitava carta) - Silo
Silo
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[ Início da Página ]
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo
Nona
carta aos meus amigos
1. Violações
dos direitos humanos
2. Os
Direitos Humanos, a Paz e o Humanitarismo como
pretextos de intervenção
3. Os
outros direitos humanos
4. A
universalidade dos direitos humanos e a tese
cultural
Estimados amigos:
[ Início da Página ]
1.
Violações dos direitos humanos
As violações dos
direitos humanos aumentaram no mundo com
catástrofes
destacadas como as guerras da Jugoslávia e Somália.
Houve prisioneiros de consciência em 62 países;
torturas
institucionais em 110 e assassinatos políticos,
usados pelos
governos, em 45. A guerra na
Bósnia-Herzegovina mostrou
claramente os abusos e
carnificinas efectuados por todas as facções
contra
dezenas de milhar de pessoas que foram assassinadas,
torturadas e submetidas à fome, muitas vezes só em
razão da sua
etnia. Noutros pontos, como o Tadjiquistão
e o Azerbeijão,
observaram-se os mesmos fenómenos. As
denúncias de torturas e
maus tratos por parte das
forças de segurança elevaram-se
consideravelmente na
Alemanha, França, Espanha, Portugal,
Roménia e Itália.
Nestes casos, a raça das vítimas desempenhou
um
importante papel. Os grupos armados de oposição no
Reino
Unido, Espanha e Turquia também cometeram
transgressões sérias
aos direitos humanos. Nos Estados
Unidos, foram executadas 31
pessoas (a maior cifra desde
1977, data em que se voltara a
instaurar a pena de
morte). Milhares de civis desarmados foram
mortos na
Somália neste período. Forças de segurança e
"esquadrões da morte" assassinaram ao redor de
4000 pessoas na
América Latina. Na Venezuela, ocorreram
dezenas de detenções e
execuções de presos políticos
durante a suspensão de garantias
constitucionais que
sobreveio após as tentativas de golpe de 4 de
Fevereiro
e 27 de Novembro. Em Cuba, manteve-se encarceradas,
por
razões políticas, cerca de 300 pessoas, mas como não
se
permitiu a entrada no país de observadores
internacionais da
Amnistia, também não se pôde
verificar a exactidão destes dados.
No Brasil, a
polícia matou 111 presos durante um motim prisional em
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta9.html 1/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo
Agências noticiosas de
diferente orientação têm exibido mapas do
mundo em que
se vê dezenas de países salpicados pelo atropelo
aos
direitos humanos e outros em que se contabilizam os
mortos em
guerras religiosas e inter-étnicas. Também
aparecem diversos
pontos em que milhares de pessoas têm
perecido por causa da fome
no seu lugar de origem ou no
meio de grandes migrações.
[ Início da Página ]
2. Os
Direitos Humanos, a Paz e o Humanitarismo como
pretextos
de intervenção
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta9.html 2/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo
medicina e
alimento para depois arremeter com balázios contra as
populações, favorecendo a facção que melhor se lhes
subordine. Em
breve, qualquer quinta coluna poderá
invocar que no seu país se
altera a paz ou se espezinham
os direitos humanos para solicitar
ajuda dos
intervencionistas. Na realidade, aperfeiçoaram-se os
primitivos tratados e pactos para a defesa mútua com
documentos
que legalizam a acção de forças
"neutrais". Assim se implanta, hoje,
rejuvenescida, a velha Pax Romana. Enfim, são as
peripécias
ornitológicas que se iniciaram com a águia
dos estandartes
legionários, vindo esta depois a tomar
forma de pomba de Picasso,
até chegar o dia de hoje em
que ao plumífero lhe cresceram garras.
Já não regressa
à Arca bíblica transportando um ramo de oliveira,
antes
volta à arca de valores levando um dólar no seu forte
bico.
Adequadamente, tempera-se
tudo com ternas argumentações. E
nisto temos que ser
cuidadosos, porque mesmo quando se
interviesse em
terceiros países por razões humanitárias
evidentes
para todos, estabelecer-se-iam precedentes para
justificar novas acções sem razões tão humanitárias
nem tão
evidentes para todos. É de observar que
como consequência do
processo de mundialização, a
O.N.U. está a desempenhar um papel
militar crescente que
encerra não poucos perigos. Uma vez mais,
está-se a
comprometer a soberania e auto-determinação dos povos
mediante a manipulação dos conceitos de paz e de
solidariedade
internacional.
[ Início da Página ]
3. Os
outros direitos humanos
O documento, no artigo 2º
- 1, diz: "Todos os seres humanos podem
invocar os
direitos e liberdades proclamados na presente
Declaração, sem distinção alguma, nomeadamente de
raça, de cor,
de sexo, de língua, de religião, de
opinião política ou outra, de
origem nacional ou
social, de fortuna, de nascimento ou de qualquer
outra
situação." E alguns dos direitos proclamados são
os seguintes:
Artigo 23º - 1. "Toda a pessoa tem
direito ao trabalho, à livre escolha
do trabalho, a
condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à
protecção contra o desemprego." Artigo 25º - 1.
"Toda a pessoa tem
direito a um nível de vida
suficiente para lhe assegurar e à sua
família a saúde
e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação,
ao
vestuário, ao alojamento, à assistência médica e
ainda quanto
aos serviços sociais necessários, e tem
direito à segurança no
desemprego, na doença, na
invalidez, na viuvez, na velhice ou
noutros casos de
perda de meios de subsistência por circunstâncias
independentes da sua vontade".
Os artigos subscritos
pelos estados membros baseiam-se na
concepção da
igualdade e universalidade dos direitos humanos. Não
estão no espírito nem na exposição taxativa da
Declaração
condições como: "... esses direitos
serão respeitados contanto que
não perturbem as
variáveis macroeconómicas." Ou então: "...
os
direitos mencionados serão respeitados quando se
chegue a uma
sociedade de abundância." Não
obstante, poder-se-ia distorcer o
sentido do exposto
apelando ao Artigo 22º - "Toda a pessoa, como
membro da sociedade, tem direito à segurança social; e
pode
legitimamente exigir a satisfação dos direitos
económicos, sociais e
culturais indispensáveis à sua
dignidade e ao livre desenvolvimento
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta9.html 3/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo
da sua
personalidade, graças ao esforço nacional e à
cooperação
internacional, de harmonia com a
organização e os recursos de cada
país."
Nesse "... de harmonia com a organização e os
recursos de
cada país", dilui-se o exercício
efectivo dos direitos e isso leva-nos
directamente à
discussão dos modelos económicos.
A consideração sobre os
direitos humanos não fica reduzida a estas
últimas
questões de trabalho, remuneração e assistência, como
em
seu momento também não fora limitada aos âmbitos da
expressão
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta9.html 4/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo
[ Início da Página ]
4. A
universalidade dos direitos humanos e a tese cultural
Existem diversas
concepções do ser humano e esta variedade de
pontos de
vista tem muitas vezes por base as diferentes culturas a
partir das quais se observa a realidade. O que estamos a
explanar
afecta globalmente a questão dos direitos
humanos. Com efeito,
face à ideia de um ser humano
universal com os mesmos direitos e
com as mesmas
funções em todas as sociedades, hoje levanta-se a
tese
"cultural" que sustenta uma posição diferente
sobre estes
temas. Assim, os defensores dessa posição
consideram que os
supostos direitos universais do Homem
não são senão a
generalização do ponto de vista que
o Ocidente sustenta e que
pretende uma validade universal
injustificada. Tomemos, por
exemplo, o artigo 16º - 1.
"A partir da idade núbil, o homem e a
mulher têm o
direito de casar e de constituir família, sem
restrição
alguma de raça, nacionalidade ou religião.
Durante o casamento e
na altura da sua dissolução,
ambos têm direitos iguais." 16º - 2. "O
casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno
consentimento dos futuros esposos." 16º - 3.
"A família é o elemento
natural e fundamental da
sociedade e tem direito à protecção desta
e do
Estado." Estes três pontos do artigo 16º trazem
numerosas
dificuldades de interpretação e aplicação a
várias culturas que,
partindo do Médio Oriente e do
Levante, chegam à Asia e à Africa.
Quer dizer, trazem
dificuldades à maior parte da humanidade. Para
esse
mundo tão extenso e variado, nem mesmo o casamento e a
família coincidem com os parâmetros que pareciam tão
"naturais" ao
Ocidente. Por conseguinte, essas
instituições e os direitos humanos
universais a elas
referidos estão em discussão. Outro tanto acontece
se
pegarmos na concepção do Direito em geral e da
Justiça; se
confrontamos as ideias de punição com as
de reabilitação do
delinquente, tópicos estes sobre
que não há acordo mesmo entre os
países do mesmo
contexto cultural ocidental. Sustentar como válido
para
toda a humanidade o ponto de vista da própria cultura
leva a
situações francamente grotescas. Assim, nos
Estados Unidos
considera-se um atentado aos direitos
humanos universais o
seccionamento legal da mão do
ladrão, que se pratica nalguns
países árabes, enquanto
se discute academicamente se é mais
humano o gás
cianídrico, a descarga de 2000 volts, a injecção
letal,
o enforcamento ou outra macabra delícia da pena
capital. Porém,
também é verdade que, assim como neste
país há uma grande
porção da sociedade que repudia a
pena de morte, naquele outro
lugar são numerosos os
detractores de todo o tipo de castigo físico
para o
réu. O próprio Ocidente, arrastado pela mudança de
usos e
costumes, vê-se em dificuldades para sustentar a
sua ideia
tradicional da família "natural".
Pode existir hoje família com filhos
adoptivos? Claro
que sim. Pode existir família em que o casal esteja
constituído por membros do mesmo sexo? Algumas
legislações já o
admitem. O que define, então, a
família, o seu carácter "natural" ou o
compromisso voluntário de cumprir determinadas
funções? Em que
razões se pode basear a excelência da
família monogâmica de
algumas culturas em relação à
poligâmica ou poliândrica de outras
culturas? Se é
esse o estado da discussão, pode-se continuar a falar
de
um Direito universalmente aplicável à família? Quais
serão e
quais não serão os direitos humanos que se
devam defender nessa
instituição? Claramente, a
dialéctica entre a tese universalista
(pouco universal
na sua própria área) e a cultural não se pode
resolver
no caso da família (que usei como um dos muitos exemplos
possíveis), e receio que também não se possa
solucionar noutros
campos da actividade social.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta9.html 5/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta9.html 6/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Nona carta) - Silo
Silo
21/11/93
[ Início da Página ]
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo
Décima
carta aos meus amigos
1. A
desestruturação e os seus limites
2. Alguns
campos importantes no fenómeno da
desestruturação
3. A
acção pontual
Estimados amigos:
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1. A
desestruturação e os seus limites
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta10.html 1/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo
Torna-se pertinente
destacar os limites da desestruturação política,
considerando que esta não se deterá até chegar à base
social e ao
indivíduo. Exemplifiquemos. nalguns países
torna-se mais evidente
que noutros a perda do poder
político centralizado. Graças ao
fortalecimento das
autonomias ou à pressão das correntes
secessionistas,
ocorre que determinados grupos de interesses, ou
simples
oportunistas, desejariam parar o processo justamente no
ponto em que o controlo da nova situação ficasse nas
suas mãos.
De acordo com essas aspirações, o cantão
secessionado ou a nova
república separada do país
anterior, ou a região autónoma libertada
do poder
central, deveriam permanecer como as novas estruturas
organizativas. Mas acontece que estes poderes começam a
ser
questionados pelas micro-regiões, pelos municípios
ou comunas,
pelos condados, etc.. Ninguém vê por que
razão uma região
autónoma libertada do poder central
deveria, por sua vez, centralizar
o poder relativamente a
unidades menores, por mais que se desse
como pretexto o
uso do mesmo idioma, ou um folclore comum, ou
uma
imponderável "colectividade histórica e
cultural", porque quando
se trata de cobrança
fiscal e de finanças, o folclore fica somente
para o
turismo e para as companhias discográficas. Caso os
municípios se emancipassem do poder autonómico, as
freguesias
aplicariam a mesma lógica e assim haveria de
continuar essa cadeia
até aos vizinhos que vivem
separados por uma rua. Alguém poderia
dizer:
"Porque é que nós que vivemos deste lado da linha,
teríamos
de pagar os mesmos impostos que os que vivem do
outro lado? Nós
temos condições de vida mais altas e
os nossos impostos vão
solucionar os problemas dessa
outra gente que não quer progredir
com o seu esforço. O
melhor é que cada um se arranje com o que é
seu".
Desde logo, em cada casa da vizinhança poder-se-iam
escutar
as mesmas inquietudes e ninguém poderia parar
esse processo
mecânico justamente no ponto em que lhe
interessasse. Quer dizer,
não se travaria tudo com um
simples processo de feudalização ao
estilo medieval,
determinado por populações reduzidas e distantes e
por
relações de intercâmbio esporádicas através de vias
de
comunicação controladas pelos feudos em luta ou por
bandos
cobradores de portagens. A situação não se
assemelha à de outras
épocas em matéria de produção,
consumo, tecnologia,
comunicações, densidade
demográfica, etc..
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta10.html 2/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo
Provavelmente, as coisas
não virão a resultar como nos exemplos
que demos, mas a
tendência para a regionalização pode tomar
caminhos
inesperados e resultar num esquema bem diferente do
que
hoje se pensa com base na contiguidade geográfica e,
portanto,
com base no vulgar preconceito geo-político.
De modo que uma
nova desordem pode ocorrer dentro de
esquemas recentes que têm
como objectivo não só a
união económica mas também uma
intenção de bloco
político e militar. E como, em suma, será o grande
capital a decidir a melhor evolução dos seus negócios,
ninguém
deveria estar muito seguro imaginando mapas
regionais arranjados
de acordo com a contiguidade
geográfica, na qual a estrada, a via
férrea e o enlace
radial foram os protagonistas, mas que hoje
tendem a
ficar redesenhados por um tráfego aéreo e marítimo de
grande volume e pela comunicação mundial via satélite.
Já na época
do colonialismo, a continuidade geográfica
foi substituída por um
tabuleiro ultramarino de grandes
potências, que foi declinando com
os dois conflitos
mundiais. A reacomodação actual, para alguns,
retrotrai
o problema a etapas pré-coloniais, fazendo-lhes imaginar
que uma região económica deve estar organizada num continuum
espacial com o qual projectam o seu nacionalismo
particular para
uma espécie de "nacionalismo"
regional.
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2. Alguns
campos importantes no fenómeno da desestruturação
Gostaria de destacar,
entre tantos outros possíveis, três campos de
desestruturação: o político, o religioso e o
geracional.
https://student.dei.uc.pt/~jsilva/movimento/arquivo/cartas/carta10.html 3/7
15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo
reivindicações das
colectividades indígenas do Equador e outros
países da
América do Sul, e sem atender à agudização do
problema
racial nos E.U.A.); Asia (10 pontos, contando o
conflito sino-tibetano,
mas sem destacar as diferenças
inter-cantonais que estão a surgir
ao longo de toda a
China); Asia do Sul e do Pacífico (12 pontos,
incluindo
as reivindicações das colectividades autóctones da
Austrália); Europa Ocidental (16 pontos); Europa
Oriental (4 pontos,
tomando a República Checa e a
Eslováquia, a ex-Jugoslávia, o
Chipre e a ex-União
Soviética como um só ponto cada uma, pois de
outro modo
as zonas em conflito podem elevar-se a 30, tendo em
conta
os vários países dos Balcãs e a ex-União Soviética,
com
dificuldades interétnicas e fronteiriças em mais de
vinte repúblicas
repartidas para além da Europa
Oriental); Oriente e Médio Oriente (9
pontos).
Os políticos também
terão de fazer eco da radicalização que as
religiões
tradicionais vão experimentando, como ocorre entre
muçulmanos e hindus na India e Paquistão, entre
muçulmanos e
cristãos na ex-Jugoslávia e Líbano,
entre hindus e budistas no Sri
Lanka. Deverão tomar
posição nas lutas inter-seitas dentro de uma
mesma
religião, como se passa na zona de influência do Islão
entre
sunitas e xiitas, e na zona de influência do
cristianismo entre
católicos e protestantes. Terão de
participar na perseguição religiosa
que começou no
Ocidente através da Imprensa e da instauração de
leis
limitadoras da liberdade de culto e de consciência. É
evidente
que as religiões tradicionais tenderão a
acossar as novas formas
religiosas que estão a despertar
em todo o mundo. Segundo os
bem-pensantes, normalmente
ateus mas objectivamente aliados da
seita dominante, a
fustigação aos novos grupos religiosos "não
constitui uma limitação à liberdade de pensamento, mas
sim uma
protecção à liberdade de consciência que se
vê agredida pela
lavagem ao cérebro dos novos cultos,
os quais, além do mais,
atentam contra os valores
tradicionais, a cultura e a forma de vida da
civilização". Deste modo, políticos alheios ao
tema religioso
começam a tomar partido nesta orgia de
caça às bruxas porque,
entre outras coisas, vislumbram
a popularidade massiva que
começam a conseguir estas
novas expressões de fé de fundo
revolucionarista. Já
não poderão dizer, como no século XIX, " a
religião é o ópio dos povos", já não poderão
falar do isolamento
adormecido das multidões e dos
indivíduos, quando as massas
muçulmanas proclamam a
instauração de repúblicas islâmicas;
quando o budismo
no Japão (desde o colapso da religião nacional
xintoísta no final da segunda guerra mundial) motoriza a
tomada do
poder pelo Komeitó; quando a Igreja Católica
tende à formação de
novas correntes políticas após o
desgaste do social-cristianismo e
do Terceiro Mundismo na
América Latina e África. Em todo o caso,
os filósofos
ateus dos novos tempos terão que mudar os termos e
substituir no seu discurso o "ópio dos povos"
pela "anfetamina dos
povos".
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo
jovens
superem o limiar de postergação. Esta explicação tem
por
onde se lhe pegue, mas é insuficiente na hora de
entender
processos mais amplos. O observável é que a
dialéctica geracional,
motor da História, ficou
provisoriamente obstruída e com isso abriu-
se um
perigoso abismo entre dois mundos. Aqui é oportuno
recordar
que quando algum pensador advertiu há décadas
atrás sobre
aquelas tendências que hoje já se
expressam como problemas reais,
os mandarins e os seus
formadores de opinião não souberam mais
do que
rasgar-se as vestes acusando tal discurso de promover a
guerra geracional. Naqueles tempos, uma poderosa força
juvenil que
deveria ter exprimido o advento de um
fenómeno novo, mas também
a continuação criativa do
processo histórico, foi desviada para as
difusas
exigências da década de 60 e empurrada para um
guerrilheirismo sem saída em vários pontos do mundo. Se
se
pretende actualmente que as novas gerações canalizem
o seu
desespero no tumulto musical e no estádio de
futebol, limitando as
suas reivindicações à camisola e
ao poster de inocentes
proclamações, haverá novos
problemas. Tal situação de asfixia cria
condições
catárticas irracionais aptas para ser canalizadas pelos
fascistas, os autoritários e os violentistas de todo o
tipo. Não é
semeando a desconfiança em relação aos
jovens, nem suspeitando
de cada criança como um
criminoso em potência, que se
estabelecerá o diálogo.
Aliás, ninguém mostra entusiasmo em dar
participação
nos meios de comunicação social às novas gerações,
ninguém está disposto à discussão pública destes
problemas, a
menos que se trate de "jovens
exemplares" que reproduzam a
temática politiqueira
com música rock ou se dediquem, com espírito
de
escuteiros, a limpar pinguins todos sujos de petróleo
sem
questionar o grande capital como promotor do desastre
ecológico!
Receio seriamente que qualquer organização
genuinamente juvenil
(seja ela laboral, estudantil,
artística ou religiosa) será suspeita das
piores
maldades não estando apadrinhada por um sindicato, um
partido, uma fundação ou uma igreja. Depois de tanta
manipulação,
continuar-se-á a perguntar por que razão
não se integram os jovens
nas maravilhosas propostas que
faz o poder estabelecido e
continuar-se-á a responder
que o estudo, o trabalho e o desporto
mantêm ocupados os
futuros cidadãos de proveito. Nesse caso,
ninguém se
deveria preocupar pela falta de
"responsabilidade" de
gente tão atarefada.
Porém, se o desemprego continua a trepar, se a
recessão
se torna crónica, se o desamparo se propaga por onde
quer que seja, veremos em que se transforma a não
participação de
hoje. Por diferentes motivos (guerras,
fomes, desemprego, fadiga
moral), desestruturou-se a
dialéctica geracional produzindo-se
aquele silêncio de
duas longas décadas, aquela quietude que tende
agora a
ser comovida por um grito e por uma acção desesperada
sem destino.
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo
Centenas de milhar de
pessoas em todo o mundo aderem hoje às
ideias plasmadas
no Documento Humanista. Existem os
comunista-humanistas;
os social-humanistas; os ecologista-
humanistas que, sem
renunciar às suas bandeiras, dão um passo
rumo ao
futuro. Há os que lutam pela paz, pelos direitos humanos
e
pela não-discriminação. Desde logo, há ateus e
gente com fé no ser
humano e na sua transcendência.
Todos estes têm em comum uma
paixão pela justiça
social, um ideal de irmandade humana com base
na
convergência da diversidade, uma disposição para
saltar por
sobre todo o preconceito, uma personalidade
coerente em que a
vida pessoal não está separada da
luta por um mundo novo.
[ Início da Página ]
3. A
acção pontual
Falando em termos
espaciais, a unidade mínima de acção é a
comunidade
de vizinhos, na qual se percepciona todo o
conflito,
mesmo que as suas raizes estejam muito distantes.
Um
centro de comunicação directa é um ponto vicinal no
qual se há-de
discutir todos os problemas económicos e
sociais, todos os
problemas de saúde, de educação e de
qualidade de vida. A
preocupação política consiste em
priorizar essa vizinhança, antes do
que o município, do
que o condado, do que a província, do que a
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Décima carta) - Silo
região ou
do que o país. Na verdade, muito antes de se formarem os
países, existiam as pessoas congregadas como grupos
humanos
que, ao se radicarem, se converteram em vizinhos.
Depois, e à
medida que se foram montando superestruturas
administrativas, foi-
se-lhes arrebatando a sua autonomia
e o seu poder. Desses
habitantes, desses vizinhos, deriva
a legitimidade de uma dada
ordem e de aí se deve erguer
a representatividade de uma
democracia real. O município
deve estar nas mãos das unidades
vicinais e, se isto é
assim, não se pode planear como objectivo
colocar
deputados e representantes em diferentes níveis, como
acontece na política cupular, já que essa colocação
deve ser
consequência do trabalho da base
social organizada. O conceito de
"unidade
vicinal" tanto é válido para uma povoação
extensa como
para uma povoação concentrada em bairros
ou edificações em
altura. A conexão entre unidades
vicinais deve decidir a situação de
uma dada comuna e
essa comuna não pode, inversamente,
depender nas suas
decisões de uma superestrutura que dita ordens.
No
momento em que as unidades vicinais ponham em marcha um
plano humanista de acção municipal e esse município ou
comuna
organize a sua democracia real, o "efeito
demonstração" far-se-á
sentir muito mais além
dos limites desse bastião. Não se trata de
planear um
gradualismo que deva ir ganhando terreno até chegar a
todos os cantos de um país, mas sim de mostrar, na
prática, que
num dado ponto está a funcionar um novo
sistema.
Os problemas de pormenor
que todo o exposto apresenta são
numerosos, mas o seu
tratamento neste escrito parece excessivo.
Silo
15/12/93
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Conferência) - Silo
Conferência
de apresentação do livro "Cartas
aos meus
amigos"
Agradeço às
instituições organizadoras deste Primeiro Encontro da
Cultura Humanista o convite que oportunamente me enviaram
para
apresentar o livro, de edição chilena,
"Cartas aos Meus Amigos".
Agradeço as palavras
pronunciadas por Luis Felipe García em
representação
de Virtual Ediciones.
Agradeço a intervenção
de Volodia Teitelboim, a quem gostaria de
responder
futuramente e comentar, com o detalhe que merecem,
muitos
dos brilhantes conceitos que expressou nesta ocasião.
Agradeço a presença de
destacadas personalidades da cultura, dos
meios de
comunicação social e, evidentemente, dos numerosos
amigos que hoje nos acompanham.
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O Documento dos
Humanistas, que a sexta Carta recolhe, diz-nos:
"Os
humanistas põem à frente a questão do trabalho face ao
grande
capital; a questão da democracia real face à
democracia formal; a
questão da descentralização face
à centralização; a questão da
antidiscriminação
face à discriminação; a questão da liberdade face
à
opressão; a questão do sentido da vida face à
resignação, à
cumplicidade e ao absurdo... Os
humanistas são internacionalistas,
aspiram a uma nação
humana universal. Compreendem globalmente
o mundo em que
vivem e actuam no seu meio imediato. Não
desejam um
mundo uniforme, mas sim múltiplo: múltiplo nas etnias,
línguas e costumes; múltiplo nas localidades, nas
regiões e nas
autonomias; múltiplo nas ideias e nas
aspirações; múltiplo nas
crenças, no ateísmo e na
religiosidade; múltiplo no trabalho; múltiplo
na
criatividade. Os humanistas não querem amos; não querem
dirigentes nem chefes, nem se sentem representantes
nem
chefes de ninguém..." E, no final do
Documento, conclui-se: "Os
humanistas não são
ingénuos nem se engulosinam com declarações
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Conferência) - Silo
de épocas
românticas. Nesse sentido, não consideram as suas
propostas como a expressão mais avançada da
consciência social,
nem pensam a sua organização em
termos indiscutíveis. Os
humanistas não fingem ser
representantes das maiorias. Em
todo o caso, actuam
de acordo com o seu parecer mais justo
apontando às
transformações que crêem mais adequadas e
possíveis
neste momento que lhes cabe viver".
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Conferência) - Silo
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É altamente provável a
consolidação de um império mundial que
tenderá a
homogeneizar a economia, o Direito, as comunicações, os
valores, a língua, os usos e costumes. Um império
mundial
instrumentalizado pelo capital financeiro
internacional que não
haverá de reparar sequer nas
próprias populações dos centros de
decisão. E nessa
saturação, o tecido social continuará o seu
processo
de descomposição. As organizações políticas e
sociais, a
administração do Estado, serão ocupadas
pelos tecnocratas ao
serviço de um monstruoso Paraestado
que tenderá a disciplinar as
populações com medidas
cada vez mais restritivas à medida que a
descomposição
se acentue. O pensamento terá perdido a sua
capacidade
abstractiva substituído por uma forma de funcionamento
analítico e passo a passo segundo o modelo
computacional. Ter-se-
á perdido a noção de processo e
estrutura resultando disso simples
estudos de
linguística e análise formal. A moda, a linguagem e os
estilos sociais, a música, a arquitectura, as artes
plásticas e a
literatura acabarão desestruturadas e, em
todo o caso, ver-se-á
como um grande avanço a mistura
de estilos em todos os campos,
tal como ocorreu noutras
ocasiões da História com os ecletismos da
decadência
imperial. Então, a antiga esperança de uniformizar tudo
nas mãos de um mesmo poder desvanecer-se-á para sempre.
Neste
obscurecimento da razão, nesta fadiga dos povos
ficará o campo
livre para os fanatismos de todo o signo,
para a negação da vida, o
culto do suicídio, o
fundamentalismo descarnado. Já não haverá
ciência nem
grandes revoluções do pensamento... só tecnologia que
nessa altura será chamada "Ciência".
Ressurgirão os localismos, as
lutas étnicas e os povos
postergados abalançar-se-ão sobre os
centros de
decisão num turbilhão em que as macrocidades,
anteriormente superpovoadas, ficarão desabitadas.
Contínuas
guerras civis sacudirão este pobre planeta em
que não desejaremos
viver.
Se o que se perspectiva
nas cartas com base no modelo explicado é
de todo
incorrecto, não temos razão para nos preocuparmos. Se,
ao
invés, o processo mecânico das estruturas
históricas leva a direcção
comentada, é hora de se
peguntar como pode o ser humano mudar
a direcção dos
acontecimentos. Por sua vez, quem poderia produzir
essa
formidável mudança de direcção senão os povos que
são,
precisamente o sujeito da História? Teremos
chegado a um estado
de maturidade suficiente para
compreender que a partir de agora
não haverá
progresso se não é de todos e para todos? Esta é a
segunda hipótese que se explora nas Cartas.
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15/11/2021 Cartas aos meus Amigos (Conferência) - Silo
É nesta segunda
possibilidade, é nesta segunda alternativa que
apostam
os humanistas de hoje. Têm demasiada fé no ser humano
para crer que tudo terminará estupidamente. E ainda que
não se
sintam a vanguarda do processo humano,
dispõem-se a
acompanhar esse processo na medida das suas
forças e ali onde
estejam posicionados.
Silo
Santiago do Chile. Maio de 1994
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