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A EUROPA E OS POVOS SEM HISTÓRIA

ERIC R. WOLF

Tradução
Carlos Eugênio Marcondes de Moura

edUSP
SUMÁRIO

Prefácio(1997)..... 11
Prefácio(1982)..... 19

1. CONEXÕES 23

l. Introdução..
2. O Mundo em 1400 .49
3. Modos de Produção . . 103
4. A Europa, Prelúdio à Expansão . ...135

11.EM BUSCA DA RIQUEZA , 163

5. Os Ibéricos na América..... ...169


6. O Comércio de Peles .. .. .201
7. O Tráfico de Escravos. . .. .243
8. O Tráfico e a Conquista no Oriente . .283

111.O CAPITALISMO 317

9. A Revolução Industrial . .323


10. Crise e Diferenciação no Capitalismo . .357
.373
II. O Movimento das Commodities... • .423
12. Os Novos Trabalhadores ....

.459
Posfácio , .467
NotasBibliográficas..... .505
Bibliografia.. . .549
índice Remissivo .
PREFÁCIO (1997)

Já se passaram quinze anos desde que este livro viu a luz do dia. Este parece
ser o momento adequado para refletir sobre o que ele se propôs fazer e como tem
sido entendido pelos leitores. Um novo prefácio também proporciona a ocasião de
esclarecer algumas das questões suscitadas pelos que o comentaram, tanto amistosa
como criticamente.
Escrevi o livro como antropólogo,mas recorri também à história e às ciências
sociais. Tentei ser histórico, ao contemplar o desdobramentodas estruturas e dos pa-
drões ao longo do tempo. Tentei também relacionar os achados da antropologia com as
perspectivas obtidas de uma economia política historicamenteorientada, dando ênfase
ao histórico. O termo economia política, habitualmente definido como o estudo dos
meios pelos quais os recursos tornam-se disponíveis para a sociedade e para o Estado,
tende a confundir duas espécies de investigação.A primeira delas trabalha com téc-
nicas derivadas da economia de mercado, com a finalidade de avaliar a política fiscal
do Estado. A outra, à qual me associo, estuda as sociedades, os Estados e os mercados
como fenômenos históricos em desenvolvimento e, em conseqüência, questiona se as
concepções dessas ordenações, próprias da experiência capitalista, podem ser genera-
lizadas a fim de abranger todos os lugares e épocas. Devemos lembrar que Karl Marx
deu à sua obra O Capital o subtítulo "Uma Crítica da Economia Política", Emprego
assim o termo economia política com o intuito de designar investigações sobre as bases
econômicas de diferentes Estados e sociedades em suas mutáveis trajetórias.
Recorri ao mesmo tempo à história e à economia política a fim de localizar os
povos estudados pela antropologia nos campos de força mais amplos gerados pelos

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SEM HISTORIA
OS POVOS
A LUROPA L
são eternos
social. Tais sistemas não
trabalho
sistemas de poder exercido sobre o importante compreender como eles se
des-
é
desenvolvem-see mudam. Assim, no tempo e no espaço.
Embora eu
as pessoas
dobrame expandemseu alcance sobre como historiador profissional,
penso
do que
tenha escrito mais como antropólogo compreender como e por que
importante
que a história conta multo. É igualmente domínio sobre as pessoas,
e localizei
e estendem seu
esses sistemas se desenvolvem a economia se sustentam e se
como o poder e
os fundamentoslógicosda maneira entendimento
Embora não seja economista, creio que um
conduzemmutuamente.
historicamente alicerçada é imperativo para que se possa
de uma economia política Penso
circunscrevema vida das pessoas.
perceber as estruturas que determiname muito
segundoa qual isso não nos diria
de maneiradiametralmenteoposta à opinião
reais fazendo coisas reais". Talvez haja festa no céu quando
a respeitodas "pessoas
na terra é algo que apresenta
você morrer, mas o modo como esse fato é encarado
considerável relevância existencial.
na apresentação dessa pro-
O título deste livro suscitou uma dificuldade inicial
remonta ao século XIX.
blemática.A frase "povos sem história" não me pertence,
simpatia para com alguns
Marx e Engels empregaram-napara assinalar sua falta de
a
movimentosseparatistasnacionais na Europa oriental. Pretendia ser irônica, mas
ironia passou despercebidapara alguns leitores. Minha intenção foi desafiar aqueles
que julgam que os europeus foram os únicos que fizeram a história. Tomei o ano de
1400da Era Cristã como marco inicial desta apresentação precisamente porque espe-
rava deixar claro que a expansão européia, em todos os lugares onde ocorreu, deparou
com sociedades e culturas humanas caracterizadas por histórias longas e complexas.
Argumenteique tais fatos não estavam isolados uns dos outros, mas se entrelaçavam,
e essa interconexãotambém se mantinha no mundo que a Europa construiu. A his-
tória da expansãoeuropéia entremeia-secom as histórias dos povos que tal expansão
abrangeu, e as histórias deles, por sua vez, articulam-se com a história da Europa.
Como boa parte dessa história dizia respeito ao surgimento e expansão do capitalismo,
o termo Europa também pode ser lido como um signo do crescimento daquele modo
de produção. Ele foi incubado na península européia do imenso território
eurasiano e
expandiu-se em círculos cada vez mais amplos, cobrindo todos os
continentes.
Meu objetivo, ao escrever este livro, não foi apresentar um
registro da história
mundial que abrangeria o globo, nem desenvolver uma
história da expansão capitalista
enquanto tal. A idéia foi mostrar que as sociedades e
culturas humanas não seriam
adequadamentecompreendidasenquanto não aprendêssemos
a visualizá-las em seus
mútuos inter-relacionamentose interdependências
no espaço e no tempo.
Sustentei essa idéia baseado em razões
pragmáticas, mas não porque julgue
que tudo neste mundo está, em última análise,
ligado a tudo o mais. Aquilo que,
nas

12
PREFÁCIO (1997)

ciências sociais, foi denominado funcionalismo


permanece metodologicamente útil,
sobretudo quando exploramos as conexões
internas que são manifestas e óbvias. Ao
mesmo tempo, precisamos lembrar
continuamente que os elementos de qualquer con-
figuração raramente são estáveis, e é pouco
provável que jamais retornem a um estado
de equilíbrio. As conexões com as
configurações sociais são marcadas por linhas de
tensão, contradição e fratura e estão expostas às
pressões geradas nos campos mais
amplos da interação que os envolve. As sociedades e as culturas
sempre formaram
parte de sistemas maiores. Era assim antes do surgimento
do capitalismo, e isso tor-
nou-se cada vez mais evidente à medida que o modo de
produção capitalista coloni-
zava cada vez mais espaços da vida cultural e social em todo o globo. É um lugar-
comum dizer que tal expansão acarretou mudanças significativas nos ordenamentos
sociais e culturais dos povos em todos os lugares, mas continuamos enfrentando uma
tarefa maior: conceituar e explicar não apenas as causas da expansão como também
a natureza de seus efeitos.
Para caracterizar essas interdependências e suas conseqüências, recorri ao
conjunto de elaborações úteis formuladas por Karl Marx, apropriando-me do concei-
to de "modo de produção". Conforme explico no texto, considero-o analiticamente
útil e intelectualmente produtivo. Seu conceito de como uma sociedade mobiliza o
trabalho social chama a atenção, ao mesmo tempo, para as relações humanas com o
meio ambiente natural, as relações sociais dos seres humanos entre si, as estruturas
institucionais do Estado e da sociedade, que presidem a essas relações, e as idéias
por meio das quais tais relacionamentos são comunicados. O emprego desses concei-
tos sinópticos relacionais é um dos pilares importantesda tradição marxiana.
Reconheço, sem me desculpar, minha dívida para com o pensamento marxia-
no. Existe, em nossos dias, a tentação de consignar esse corpo de idéias ao ferro-ve-
lho da história intelectual, como parte do desmoronamentodos sistemas socialistas
"realmente existentes", ora obsoletos, que vieram abaixo no final da década de 1980.
Precisamos lembrar que a tradição marxiana abrangia muitas variantes do pensa-
mento e da política, alguns dos quais intelectualmente mais ricos do que as ortodo-
xias que prevaleciam politicamente. Emprego com ponderaçãoo termo marxiano,
para referir-me às variantes da tradição, em contraste com o termo marxista, que
acabou por denotar um tipo especial de política. Nosso universo intelectual e político
seria grandemente empobrecido se não recorrêssemos a esse legado marxista, assim
como a sociologia padeceria caso seus praticantes dessem as costas a Max Weber
por ele ser um ardente nacionalista alemão, ou a física sofreria se os físicos abando-
nassem Newton porque ele era um alquimista enrustido. Claro que não é necessário
venerar qualquer uma dessas figuras significativas colocando-as em um panteão de
verdades eternas. Em sua época, nem sempre eles tinham razão; algumas vezes mu-

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A EUROPA E OS POVOS SEM HISTÓRIA

davam de teoria e de opinião; algumas de suas afirmações não passaram no teste do


tempo. Sobretudo no exemplo de Marx, é necessário traçar uma linha divisória entre
o analista e o profeta. Muitas de suas análises ainda nos dizem algo, mas sua visão
do modo como uma nova classe "em si" poderia vir a adquirir uma consciência "para
si" era despida de realismo sociológico mesmo em sua própria época.
O recurso aos conceitos marxianos também nos leva aos debates duradouros que
suscitam interrogações sobre a tradição marxiana como maneira de pensar o mundo.
Essa tradição foi definida algumas vezes como algo que entra em duas categorias:
"marxismo orgânico" e "marxismo prometéico". O marxismo orgânico propunha-se
a ser uma ciência, um conjunto disciplinado de postulados logicamente encadeados
que poderia ser usado para formular leis gerais de desenvolvimento social na histó-
ria. O marxismo prometéico incluía a esperança da libertação humana em relação à
exploração econômica e política e comemorava o desejo revolucionário como algo
que desbravaria o caminho para aquele futuro desejado.
Alguns leitores que se aproximaram de A Europa e os Povos sem História a
partir de posições políticas decididamente opostas caracterizaram o livro como um
exercício em torno do marxismo orgânico. Ou encararam-no como um cavalo de
Tróia intelectual, ou lamentaram sua falta de entusiasmo prometéico. Com efeito, usei
conceitos marxistas, mas não como noções fundadoras de uma ciência que objetiva-
va desenvolver leis de generalidade universal. Encaro tais conceitos como suposições
que orientam e guiam a pesquisa e a descoberta. São aproximações iniciais à tarefa
muito mais extensa de delinear o que poderá estar operando em determinados casos.
Esse esforço também pode envolver o emprego de estratégias explanatórias adicio-
nais ou alternativas. Quanto a Prometeu, creio que as glorificações da vontade apre-
sentam muito mais probabilidades de subscrever insurreições elitistas do que movi-
mentos com amplas bases populares e que objetivam a mudança. A própria história
de Prometeu não é também das mais encorajadoras. Ele roubou o fogo dos deuses e
o transmitiu aos seres humanos, mas pagou por isso, terminando acorrentado em um
rochedo por toda a eternidade, com a águia de Zeus alimentando-se de seu fígado.
Faço estas considerações para definir, com maior clareza, do que trata A Eu-
ropa e os Povos sem História. Este livro não tenta apresentar uma teoria marxiana
integrada do desenvolvimento global. Recorre aos conceitos marxianos para locali-
zar os povos que a antropologia estudou naqueles campos de força aos quais eles se
sujeitavam. Conforme notaram alguns leitores, meu livro não é uma investigação em
torno de conceitos. Se isso for uma falha, a única coisa que posso declarar é que este
é o livro que escrevi; outros escreverão seus próprios livros. Focalizei, por exemplo,
a história e a distribuição das principais mercadorias no capitalismo, mas não aderi
ao conceito interessante, embora problemático, de "fetichismo das mercadorias". Foi

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PREFÁCIO ( 1997/

minha intenção demonstrar os meios pelos quais a produçãoe o comércio das mer-
cadorias atraíam as pessoas que produziam tais mercadorias.pois essa incorporação
tem conseqüênciaspara a vida das pessoas.
Ao contrário das alegações de alguns comentaristas,não afirmei, neste livro ou
em outras publicações,que essa incorporação às redes capitalistasdestrói necessaria-
mente as práticas e os entendimentosculturaisdos povos, distintose historicamente
alicerçados,ou torna seus esquemasculturais inoperantese irrelevantes.Retratei,Isto
sim, os apropriadores e produtores das mercadorias como "agentes do capitalismo",
assim como retratei as várias populaçõesde trabalhadoresnas empresas capitalistas
como pessoas que ganham salários, pondo sua força de trabalho à venda, sob condi-
ções capitalistas. Se agi assim, foi por estar convencido de que as vidas das pessoas
no mundo inteiro têm sido cada vez mais ditadas pelos mercados capitalistas, incluin-
do os mercados que colocam a força de trabalho à venda. Isso não significafornecer
"tristes tropos" de "cosmologias do capitalismo". A expansão capitalista pode ou não
tornar inoperantes determinadasculturas, mas sua difusão por demais real suscita in-
terrogações: como os sucessivos grupos de pessoas atraídas para a órbita capitalista
estruturam e reestruturam sua compreensãocom a finalidadede reagir às oportuni-
dades e exigências de sua nova condição? Levantar essas questõesnão significao fim
da etnografia, muito pelo contrário —requer-se urgentemente mais etnografia. precisa-
mente porque não podemos obter as respostas fundamentados apenas na teoria.
Também se faz necessário mais etnografia para avaliar adequadamentealguns
conceitos românticos, ainda não examinados, sobre a natureza da açáo humana no
mundo. Tais idéias são cada vez mais populares e serviram de substrato a algumas
reaçóes a este livro. Um determinado conceito retrata os seres humanos como ine-
rentemente criativos e sempre prontos para reinventar quem são e quem querem ser.
Outro conceito afirma que os seres humanos resistirão instintivamenteà dominação
e que essa "resistência" pode ser pensada e estudada como uma categoria unitária.
Acredito que, nesse caso, o desejo tornou-se pai e mãe do pensamento.As pessoas
nem sempre resistem aos constrangimentos em que se encontram e nem podem rein-
ventar-se com toda a liberdade por meio de construçõesculturais de sua própria es-
colha. A remoldagem cultural e a mudança cultural prosseguem continuamente sob
condições variáveis, mas também altamente determinadas. Estas podem ampliar a
criatividade ou inibi-la, estimular a resistência ou dissipá-la. Somente a investigação
empírica pode dizer-nos como diferentes pessoas, em suas particulares e variadas
circunstâncias,conformam e adaptam suas compreensõesculturais e delas se desfa-
zem ou, alternativamente, se encontram bloqueadas ao fazê-lo. Resta descobrir por
que e como alguns grupos de pessoas adaptam suas compreensões culturais ao ca-
pitalismo e prosperam por agirem assim, enquanto isso não acontece com outras.

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A EUROPA E OS POVOS SEM HISTÓRIA

Meu emprego do conceito de capitalismo neste livro também precisa ser


es-
clarecido. Em todos os lugares o modo capitalista de produção pode ser
motivado
pelo mesmo Inter-relacionamento dinâmico da acumulação do capital e da
força de
trabalho, mas tal inter-relação pode revestir-se de muitas formas e assumir
muitos
disfarces diferentes. Em A Europa e os Povos sem História enfatizo a
combinação
da propriedade e do gerenciamento capitalista com a produção da fábrica
por parte
do trabalhador assalariado como um meio estratégico que possibilitou ao
capitalismo
desfazer outros modos de produção. No entanto, sob outras circunstâncias.
a pro-
duçáo capitalista seguiu adiante graças ao patrocínio do capital mercantil.
Poderia
parecer também que as novas tecnologias de controle e de informação,
baseadas em
computadores, acopladas a novos meios de transporte, podem subscrever
um capi-
talismo mais descentralizado, no intuito de intensificar a acumulação do
capital por
meio da produção nas unidades domésticas e nas oficinas "flexíveis". No
plano his-
tórico, esse modo esteve suJeito a fases de expansão e contração. Tais
mudanças de
fase são acompanhadas por mudanças no mix dos produtos, na tecnologia
e organiza-
çüo empregadas para produzi-los, na distribuição geográfica de fábricas
e mercados,
no recrutamento de novos trabalhadores e pessoal que atua no setor de
serviços. O
modo capitalista pode, portanto, ser impulsionado por uma lógica unitária
e ainda
assim produzir simultaneamente diferenciação e heterogeneidade em
razão da gran-
de variabilidade de suas operaçOes. Enfatizo essa questão no
livro. À medida que o
capitalismo expande seu alcance e ocupa novos nichos, ele estrutura
novos e diversi-
ficados cenários empresariais. Tais cenários atraem novos trabalhadores,
bem como
novas classes médias e estratos empresariais. Todos enfrentam o
problema de como
adequar suas variadas compreensões culturais a uma economia
política em constante
mudança. Não é possível, a priori, predizer como essas adaptações
se realizam.
No final, formular as perguntascorretas e encontrar respostas
satisfatórias
exige que voltemos a questões de teoria básica. Todas as
ciências sociais, incluindo
a antropologia, têm os pés em duas realidades: a realidade
do mundo natural e sua
transformação pelas técnicas e pela organização e a realidade dos
esquemas de um
conhecimento organizado e das operações simbólicas aprendidas
e comunicadas en-
tre os seres humanos. A contradistinçào entre essas duas
realidades tem atormentado
a filosofia ocidental, incluindo as perspectivas marxianas,
e ressurge continuamente
na antropologia, independentementedas prestidigitaçOes
dialéticas que realizamos
para transpor o fosso divisório. Uma maneira de lidar com
esse impasse tem sido
desconsiderá-lo. Alguns antropólogos encaram o comportamento
no mundo material
como algo primário e não levam em conta os eventos mentais
relatados pelas próprias
pessoas. Outros concedem prioridade a esquemas mentais tais
como eles são defini-
dos pelas próprias pessoas e tratam o comportamento, no mundo
material, como um

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PREFÁCIO ( 1997)

epifenômeno dessas compreensões cerebrais. Outros


ainda atribuem igual importân-
cia e valor ao comportamentomaterial e aos
fatos mentais, adiando simplesmente
qualquer discussão sobre como eles poderiam ser reconciliados.
A chave para se resolver a questão talvez não esteja
imediatamente à mão, mas
quem sabe poderemos avançar nossa pesquisa, tendo em vista a explicação, por meio
de respostas parciais, ao focalizarmos a articulação de determinados domínios nos
quais os eventos materiais e mentais se interseccionam. No epílogo de A Europa e
os Povos sem História sugiro um meio de o fazer: prestar maior atenção ao trabalho
social, na sociedade, e aos esquemas mentais que definem quem faz o quê, na divisão
desse trabalho. Isso tem muitas implicações. Primeiramente, requer nossa apreensão,
ao nos darmos conta de que as tarefas sociais e os esquemas mentais se distribuem
variavelmenteentre os homens e as mulheres,os jovens e os velhos, os ricos e os
pobres, as pessoas fixadas em seus lares e os imigrantes, os que têm poder e os dele
desprovidos, as pessoas que se comunicam com os espíritos e as que não se comu-
nicam. Isso, por sua vez, direciona nossa atenção para os processos que põem em
acordo e correspondência esses repertórios, variáveis e socialmente distribuídos, de
entendimentos e elaborações do imaginário. Poderíamos então começar a examinar
mais detidamente como o conhecimento é acumulado, comunicado ou contido em
desempenhos verbais e não-verbais; como as ordens cosmológicas são estruturadas
e invocadas para construir e acumular algumas formas de poder, enquanto abafam
e desarticulam outras; como certos esquemas mentais passam a dominar outros, na
formação dos géneros, classes e etnicidades, ainda que esquemas alternativos con-
testem essa hegemonia. Nesld investigação, as unidades deveriam ser 'lidas pelos
processos em que firmamos nossa atenção, no lugar de assumirmos arbitr.ariamente
entidades culturais e societárias delimitadas. A economia política, historicamente
embasada, e a história político-econômica serão ambas necessárias, bem como a et-
nografia de campo e a análise cultural. Parte desse trabalho já vem sendo realizado,
porém resta muito mais a ser feito.

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PREFÁCIO (1982)

Em 1968 escrevi que a antropologia precisava descobrir a história, uma história


que poderia dar conta dos modos pelos quais o sistema social do mundo moderno
passou a existir, e isso contribuiria para que todas as sociedades, incluindo a nossa,
fizessem sentido. um sentido até mesmo analítico. Eu acreditava que uma história
analítica se tornava necessária a fim de contrapor-se à ascendência, nas ciências
humanas, de uma racionalidade formal que já não investigava as causas das açóes
humanas, mas procurava soluções meramente técnicas para problemas concebidos
basicamente em termos técnicos. Nossos métodos se tornavam mais sofisticados, po-
rém sua produção tornava-se cada vez mais um lugar-comum. Para frear a descida ao
plano da trivialidade, pensava eu, precisávamos investigar as causas do presente no
passado. Somente assim poderíamos chegar a compreender as forças que impelem as
sociedades e as culturas aqui e agora. Este livro nasceu de tais convicções.
Ficou claro para mim. desde o início, que não se poderia desenvolver uma
história analítica como essa partindo-se do estudo de uma única cultura ou nação,
de uma única área cultural ou até mesmo de um único continente em determinada
época. Tornava-se necessário voltar às percepções de uma antropologia mais antiga e
recuperar a inspiração que guiou antropólogos como Alfred Kroeber e Ralph Linton
em seus esforços no sentido de desenvolver uma história global da cultura. Ao que
parece, esquecemos que eles compreenderam que as populações humanas constroem
suas culturas em interação umas com as outras e não se isolando.
Aquela antiga antropologia pouco tinha a dizer, entretanto, sobre as grandes
forças que governavam a interaçào das culturas desde 1492, forças que impulsionavam

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A EUROPA E OS POVOS SEM HISTÓRIA

a Europa em direçüo à expansão comercial e ao capitalismo industrial. No entanto,


as conexões culturais que esses antropólogos procuravam delinear só podem tornar-
se inteligíveis quando inseridas em seu contexto político e económico. Os achados
da antropologia precisam, portanto, ser repensados à luz de uma nova economia po-
lítica. historicamente orientada.
Esse repensar deve transcender os meios costumeiros de descrever a história
ocidental e tem de levar em conta a participação conjunta dos povos ocidentais e não-
ocidentais nesse processo de amplitude mundial. A maioria dos grupos estudados
pelos antropólogos há muito se viu envolvida nas mudanças forjadas pela expansão
européia e tem contribuído para tais mudanças. Já não podemos nos contentar com
escrever apenas a história das elites vitoriosas ou com detalhar a subjugaçãodos
grupos étnicos dominados. Os historiadores sociais e os sociólogos que recorrem
à história têm demonstrado que as pessoas comuns eram tanto agentes do processo
histórico como suas vítimas e testemunhas silenciosas. Precisamos, assim, desvendar
a história dos "povos sem história" —as histórias ativas dos "primitivos", do campe-
sinato, dos trabalhadores, dos imigrantes e das minorias acossadas.
Tendo em vista tal finalidade, este livro procura cruzar as linhas de demarcação
que separam as várias disciplinas humanas umas das outras e abolir as fronteiras en-
tre história ocidental e não-ocidental. Foi escrito na crença de que hoje uma melhor
compreensão de nossa condição humana se encontra a nosso alcance.
O projeto deste livro surgiu de reavaliações intelectuais que marcaram o fim
da década de 1960. Foi levado adiante ao longo de um ano de pesquisas realizadas
na Inglaterra em 1973-1974,tornadas possíveis mediante a concessão de uma bolsa
de pesquisas por parte do National Endowment for the Humanities. Reconheço, com
duradoura gratidão, o apoio prestado pelo Endowment.
Comecei a escrever este livro na primavera de 1974.A redaçào final foi com-
pletada em 1981. Vários amigos leram-na com olhar crítico. Sou agradecido, por
isso, a Roderick Aya, Richard Fox, Asraf Ghani, Shirley Lindenbaum, Rayna Rapp,
Roger Sanjek. Jane Schneider e Peter Schneider. Samuel Bowles e Sidney Mintz dis-
puseram-se a corresponder-se comigo a respeito de várias idéias. Sempre que não
segui o conselho deles, a responsabilidadeé exclusivamenteminha. Lamento que
meu amigo Angel Palerm tenha morrido antes de ler este trabalho. Sinto falta de
seus comentários penetrantes.
Por conselhos relativos a fontes, devo agradecimentos a Anne Bailey, Mario
Bick, Charles Bishop, Warren DeBoer, Ashraf Ghani. Herbert Gutman, Shirley Hune,
Herbert Klein. Carol Kramer, Hermann Rebel, Roger Sanjek, Gerald Sider, Juan Villa-
marín, Elizabeth Wahl e Frederick Wyatt. Recebi conselhos e ajuda sobre material
iconográfico de Anna Roosevelt, James G. E. Smith e Donald Werner, do Museum of

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PREFÁCIO (1982)

the American Indian, Heye Foundation; de Robert Carneiro, Barbara Conklin e Gor-
don Ekholm, do American Museum of Natural History; de William Sturtevant,da
Smithsonian Institution, bem como de Lambros Comitas, June Finfer, Fred Popper,
Lucie Wood Saunders, Bernd B. Shapiro e Archibald Singham. Noel Diaz e Caryl
Davis desenharam mapas excelentes. Muito devo a todos eles. Sou também extrema-
mente grato a The School of Oriental and African Studies e a The London School of
Economics and Political Science, University of London, por me dar acesso ao acervo
de suas bibliotecas. Ao longo de todo o meu trabalho, o Herbet H. Lehman College,
da City University of New York, e o Ph.D. Program in Anthropology, The Graduate
School and University Center, City University of New York, proporcionaram um am-
biente inusitadamente estimulante para a pesquisa, o ensino e o intercâmbio de idéias.
Quero exprimir minha gratidão por esta oportunidade que me foi concedida.
Nenhum desses esforços, entretanto, teria frutificado sem o conselho, a argúcia
editorial e o constante encorajamento de Sydel Silverman, minha amiga, auxiliar,
esposa e, antes de tudo, crítica antropológica."Di tante cose quant'i'ho vedute, dal
tuo podere e dalla tua bontate riconosco Ia grazia e Ia virtute" (Paradiso, XXXI).
A ela, com amor e admiração, dedico este livro.

21
saoxaN0D
Imagem antenor.
Camana parte de Alepo. Gravura em cobre de Theodore de Bry, 1599(cortesia da Divisão de Livros e
Manuscritos Raros. The New York Public Library. e Fundaçóes Astor. Lenox e Tilden).
INTRODUÇÃO

A proposição central deste livro


é que o mundo do género humano
uma multiplicidade, uma totalidade de constitui
processos interligados, e que as investigações
que desagregam essa totalidade em fragmentos
e. em seguida, deixam de reagregá-
Ia. falsificam a realidade. Conceitos como
"nação", "sociedade" e "cultura" nomeiam
apenas fragmentos e ameaçam transformar os nomes
em coisas. Somente ao entender
tais nomes como feixes de relacionamentos. voltando
a inseri-los no campo de que
foram abstraídos. é que poucrnos ter a esperança de evitar
inferência. nganosase
aumentar nossa cota de compreensão.
Em certo nível, tornou-se lugar-comum afirmar que todos nós habitamos
"um
mundo". Existem conexões ecológicas: Nova York padece da gripe de Hong Kong;
os vinhedos da Europa são destruídos por parasitas de plantas que vieram dos Esta-
dos Unidos. Existem conexões demográficas: os jamaicanos ermgram para Londres,
os chineses para Cingapura. Existem conexõeseconómicas:o fechamentotemporá-
rio dos poços de petróleo no Golfo Pérsico paralisa fábricasem Ohio; uma balança
de pagamentos desfavorável nos Estados Umdos faz escoar dólares americanos para
contas bancárias em Frankfurt ou Yokohama;os Italianos produzem automóveis Fiat
na União Soviética; os japoneses construíram um sistema hidrelétnco no Ceilão.
Existem conexões políticas: guerras iniciadas na Europa desencadeiam reverberações
em todo o globo; tropas americanas intervém na orla da Asia; tinlandesesVigiama
fronteira entre Israel e o Egito.
Isso é verdadeiro não apenas em relação ao presente como também ao passado
Doenças originárias da Eurásia devastaram a populaçãonativa das Américas e da

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A EUROPA E OS POVOS SEM HISTÓRIA

Oceania. A sífilis deslocou-se do Novo Mundo para o Velho Mundo. Os europeus,


suas plantas e animais invadiram as Américas; a batata, o milho, a mandioca, todos
de origem americana. espalharam-se pelo Velho Mundo. Um número enorme de afri-
canos foi transportado à força para o Novo Mundo; trabalhadores chineses e indianos
endividados foram embarcadospara o SudesteAsiático e para as Índias Ocidentais.
Portugal criou um enclave português em Macau, ao largo do litoral da China. Os
holandeses, usando mão-de-obra obtida em Bengala, construíram Batávia. Crianças
irlandesas foram vendidas como servas, nas Indias Ocidentais. Escravos africanos
fugitivos encontraram refúgio nas serras do Suriname. A Europa aprendeu a copiar
os produtos têxteis indianos e a porcelana chinesa, a beber chocolate proveniente das
Américas. a fumar o tabaco, igualmente americano, a usar numerais arábicos.
Esses fatos nos são familiares. Indicam contato e conexões, laços e inter-relacio-
namentos. No entanto os acadêmicos para quem nos voltamos a fim de compreender o
que vemos insistem, em sua grande maioria, em ignorá-losJOs historiadores, os eco-
nomistas e os cientistas políticos escolhem nações separadas como estrutura básica de
suas investigações./A sociologia continua dividindo o mundo em sociedades separadas.
Até mesmo a antropologia, outrora muito preocupada em averiguar como os traços
culturais se difundiram através do mundo. divide seu objeto de estudo em exemplos
característicos: cada sociedade com sua cultura característica, concebida como um
sistema integrado e limitado que se opõe a outros sistemas igualmente limitados.
Se a particularidade social e cultural e a separação mútua fossem uma marca
da humanidade, seria de se esperar encontrá-la mais facilmente entre os chamados
primitivos, os povos "sem história", supostamente isolados do mundo externo e entre
si. Partindo desse pressuposto,o que teríamos feito dos achados arqueológicos que
incluem artigos europeus e que surgemem sítios da fronteira do Niágara já em 1570?
O que pensar da ausência, por volta de 1670,em sítios do subgrupo onondaga dos
iroqueses. de quase todo artigo de manufatura nativa, a não ser cachimbos? Do outro
lado do Atlântico, a organizaçãoe as orientações de extensas populações africanas
foram transformadas de modo substancial pelo tráfico de escravos. Como os negreiros
europeus somente deslocavam os escravos do litoral africano para sua destinação nas
Américas, o lado do tráfico que se encarregavado fornecimento estava inteiramente
em mãos africanas. Foi a "base africana", sobre a qual se erigiu, segundo as palavras
do mercantilista inglês Malachy Postlethwayt, "a magnífica superestrutura do comér-
cio e do poder10naval americano". Da Senegâmbia,na África Ocidental, à Angola,
população após população foi atraída para esse comércio, que se ramificou em terras
longínquas do interior e afetou povos que Jamais haviam visto um comerciante eu-
ropeu no litoral. Qualquer relato sobre os kru, fanti, ashanti, Ijaw, igbo, congo, luba.
lunda ou ngola que trate cada grupo como uma "tribo" auto-suficiente se equivoca

1
INTRODUÇÃO

em relação ao passado e ao presente africano. Além do mais. o comércio com os iro-


queses e a África Ocidental acabou afetando a Europa. Entre 1670e 1760 aqueles ín-
dios solicitaram tecidos tingidos de escarlate e azul. feitos no Stroudwater Valley, em
Gloucestershire. Essa foi também uma das primeiras regiões onde os tecelões ingleses
perderam sua autonomia e tornaram-se mão-de-obra contratada nas fábricas. Talvez
existisse uma conexão entre o comércio americano e o início da Revolução Industrial
no vale do Stroud. Inversamente, os mais de 5.500 mosquetes fornecidos à Costa do
Ouro em apenas três anos (1658-1661)enriqueceram os armeiros de Birmingham,
onde foram feitos (Jennings, 1977: 99-100; Daaku, 1970: 150-151).
Se existem conexões em todos os lugares, por que insistimos em transformar
fenómenos dinâmicos, interligados, em coisas estáticas. desligadas? Parte disso se
deve, talvez, ao modo como aprendemos nossa própria história. Fomos ensinados,
nas salas de aula e fora delas. que existe uma entidade chamada Ocidente e que se
pode pensar nesse Ocidente como uma sociedade e uma civilização independentes e
em oposição a outras sociedades e civilizações. Muitos de nós até mesmo crescemos
acreditando que o Ocidente possui uma genealogia segundo a qual a Grécia antiga
gerou Roma, Roma gerou a Europa cristã, a Europa cristã gerou a Renascença, a
Renascença gerou o Iluminismo, o Iluminismo gerou a democraciapolítica e a Re-
volução Industrial. A indústria, cruzada com a democracia, por sua vez produziu os
Estados Unidos, encarnando o direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade.
Esse esquema de desenvolvimentoé enganoso. Enganoso,em primeiro lugar,
porque transforma a história em uma história de sucesso moral, uma corrida no tem-
po na qual cada corredor passa a tocha da liberdade para o próximo, que com ele se
reveza. A história converte-se, assim, em um conto sobre como a virtude se amplia,
como o virtuoso vence os maldosos. Freqúentemente ela se transforma, passando a ser
uma história de como os vencedores provam que são virtuosos e bons ao ganharem.
Se a história é a realização de um objetivo moral no tempo. entáo os que reivindicam
tal propósito são, devido a esse fato, os agentes prediletos dessa mesma história.
passa
O esquema também é enganoso em um segundo sentido. Se a história não
genealogia,
de um conto sobre a expansão dos objetivos morais, então cada elo da
e não um multi-
cada corredor da corrida é apenas um precursor da apoteose final,
própria época e lugar. E
plicador de processos sociais e culturais em ação, em sua
por exemplo, caso a interpre-
no entanto o que aprenderíamos sobre a Grécia antiga,
empunhando bem alto a tocha do
tássemos como uma Srta. Liberdade pré-histórica,
pouca compreensão sobre os
propósito moral na noite bárbara? Obteríamos muito
ou a relação entre os homens li-
conflitos de classe que abalavam as cidades gregas,
perguntar por que havia mais gregos
vres e seus escravos. Não teríamos motivos para
Aliança Helénica contra os persas.
lutando nas fileiras dos reis persas do que nas da
A EUROPA OS POVOS SEM HISTÓRIA

Não haveria o menor interesse em saber que havia mais gregos habitando o sul da
Itália e a Sicília, então denominada Magna Grécia, do que a própria Grécia. Nem
teríamos qualquer motivo para indagar por que, em breve, haveria mais mercenários
gregos nos exércitos estrangeiros do que nas organizações militares de suas próprias
cidades natais. Colonos gregos fora da Grécia, mercenários gregos em exércitos es-
trangeiros, escravos da Trácia, Frígia ou Pafalagônia em lares gregos implicam rela-
çóes helênicas com gregos e nào-gregos fora da Grécia. No entanto, o esquema que
nos orienta não nos incentivaria a fazer indagações sobre tais relacionamentos.
Em nenhum outro lugar este esquema de construção de mitos é mais visível do
que nas versões dos manuais escolares de história dos Estados Unidos. Ali, uma com-
plexa orquestração de forças antagónicas é comemorada como se fosse o desabrochar
de uma essência imemorial. Nessa perspectiva, as fronteiras sempre mutáveis dos Es-
tados Unidos e os repetidos envolvimentos do governo nas guerras internas e externas,
declaradas e não declaradas, são condensados por meio do entendimento teleológico
de que treze colónias, agarradas à borda ocidental do continente, em menos de um sé-
culo fincariam a bandeira americana nas costas do Pacífico. No entanto, esse resultado
tinal foi apenas o desfecho da disputa entre muitos relacionamentos contraditórios. As
colónias declararam sua independência, ainda que a maioria de sua população —colo-
nos europeus, americanos nativos e escravos africanos —favorecesse os tóris. A nova
república quase soçobrou devido à questão da escravidão, ao lidar com ela em uma
série de comprometimentos problemáticos, criando dois países confederados, cada um
dos quais com sua própria zona de expansão. Certamente havia terra a ser apropriada
no novo continente, mas primeiro teria de ser tomada dos americanos nativos que a
habitavam, sendo então transformada em resplandecentes propriedades rurais. Jefferson
adquiriu o território da Louisiana a baixo preço, mas somente depois que a revolta dos
escravos haitianos contra seus senhores tranceses reduziu a quase nada a importância
da região, no esquema francês, como fonte de alimento para os engenhos e fazendas
do Caribe. A ocupação da Flórida signiticou o fechamento de um dos principais pontos
de fuga dos escravos do sul. A guerra contra o México tornou o sudoeste do país um
lugar seguro para a escravidão e as plantações de algodão. Os proprietários de terra
hispânicos que se interpunham à corrida americana em direçào ao Pacífico tornaram-se
"bandidos" ao defenderem o que era seu contra os recém-chegados anglófonos. Então
o Norte e o Sul —uma região importava sua força de trabalho da Europa, a outra.
África —travaram uma das guerras mais sangrentas da história. Durante algum tem-
po o Sul tornou-se uma colónia do Norte vitorioso. Mais tarde modificou-se o alinha-
mento entre as duas regiões, e o "cinturão do sol" passou a predominar à medida que
declinava a influência do Noroeste industrial. Ficou claro que a república não era nem
indivisível nem dotada de fronteiras que eram uma dádiva de Deus.

28
INTRODUÇÃO

É concebível que as coisas pudessemter sido diferentes. Poderia ter surgido


uma República Floridiana poliglota, uma América Mississípianafrancófona, uma
Nova Biscaia hispânica, a República dos Grandes Lagos, uma Colúmbia. abrangendo
os atuais Oregon, Washington e Colúmbia Britânica. Somente se pressupuséssemos
um impulso —dádiva divina —em direção à unidade geopolítica do continente nor-
te-americano essa retrojeção poderia carecer de sentido. Em vez disso. ela nos con-
vida a compreender,em termos materiais,o que ocorreu em cada momentocrítico
e o modo como alguns relacionamentosganharam ascendênciasobre outros. Assim,
nem a Grécia antiga, nem Roma, nem a Europa cristã, nem a Renascença,nem o
Iluminismo, nem a RevoluçãoIndustrial,nem a democraciae nem mesmo os Esta-
dos Unidos jamais foram algo impulsionado em direção a seu objetivo expansionista
por alguma mola propulsora imanente,constituindoantes um conjuntotemporal e
espacialmente mutável e mutante de relacionamentosou de relacionamentosentre
conjuntos de relacionamentos.
A questão é mais do que académica. Ao transformar nomes em coisas, criamos
falsos modelos de realidades. Ao dotar as nações,as sociedadesou as culturas com
as qualidades de objetos internamente homogéneose externamente distintos e limi-
tados, criamos um modelo do mundocomo se ele fosse um salão de sinuca global.
no qual as entidades giram e se encostamumas às outras como se fossem duras e
redondas bolas de bilhar. Assim, torna-se fácil classificar o mundo em diferentes bo-
Ias coloridas, declarando que "o Ocidente é o Ocidente, o Oriente é o Oriente" e que
"jamais os dois se encontrarão".E assim que um Ocidente,levadoà quintessência,
é contraposto a um Oriente, igualmente levado à quintessência, onde a vida custava
pouco e multidões servis se aviltavam,submetidasa toda variedadede despotismos.
Mais tarde, à medida que os povos, em outrosclimas, começarama afirmar sua in-
consignamos
dependência económica e política em relação ao Ocidente e ao Oriente,
pretendentesa um status
a um Terceiro Mundo de subdesenvolvimentoesses novos
bolas de bilhar conceituais,
histórico, como se eles fossem uma categoria residual de
em desenvolvimento.Talvez,
em contraste com o Ocidente desenvolvidoe o Oriente
tornado instrumentosintelec-
inevitavelmente,essas categorias reificadastenham se
mundo"moderno"do Ocidente.
tuais no prosseguimentoda Guerra Fria. Existia o
do comunismo,uma "doença da
Existia o mundo do Oriente, que se tornara presa
o TerceiroMundo, ainda preso
modernização" (Rostow, 1960). Existia, finalmente,
rumo à modernização.Se pelo menos
à "tradição" e estrangulado em seus esforços
de romper com essas amarras, ele poderia
o Ocidente conseguisse encontrar meios aque-
e espalhada pelo Oriente, colocando
talvez salvar a vítima da infecção incubada vida, da liberdadee
—a estrada da
Ie Terceiro Mundo na estrada da modernização
mesmo Ocidente.O horripilanterebento desse
da busca da felicidade, própria desse

29
A EUROPA E OS POVOS SEM HISTÓRIA

modo de pensar o mundo foi a teoria do "recrutamento forçado para a urbanização"


(Huntington, 1968: 655). segundo a qual os vietnamitas poderiam ser impulsionados
em direção à modernizaçãoao serem encaminhadosàs cidades por meio dos bom-
bardeios aéreos e do desfolhamentoda vegetaçãodo campo. E assim que os nomes
tornam-se coisas e as coisas marcadascom um X podem tornar-se alvos de guerra.

O Surgimento das Ciências Sociais

O hábito de tratar entidades que têm um nome, tais como os iroqueses, a Gré-
cia, a Pérsia ou os Estados Unidos, como entidades fixas, opostas umas às outras por
uma arquitetura interna estável e por fronteiras externas, interfere em nossa capa-
cidade de compreender seu mútuo encontro e confronto. Com efeito, essa tendência
dificultou a compreensão de tais encontros e confrontos. Dispor blocos construtivos
imaginários em pirâmides denominadasOriente e Ocidente, Primeiro, Segundo e
Terceiro Mundo simplesmente encobre essa dificuldade. Assim, é provável que este-
jamos lidando com algumas deficiências conceituais em nosso modo de encarar os
fenómenos políticos e sociais, não se tratando apenas de uma aberração temporária.
Parecemos ter seguido o caminho errado na nossa compreensão de um momento críti-
co do passado. Foi uma falsa escolha, que confunde nosso pensamento no presente.
Esse momentocrítico é identificável.Ocorreu em meados do século passa-
do, quando a investigaçãosobre a natureza e as variedades do gênero humano di-
vidiu-se em especialidadese disciplinas separadas (e desiguais). Essa divisão foi
fatal. Não só levou ao estudo especializadoe intensivode determinados aspectos
da existência humana mas transformou as razões ideológicas dessa divisão em
uma justificativa intelectual para as próprias especialidades. Em nenhum outro
domínio isso é mais óbvio do que no da sociologia. Antes da sociologia tínha-
mos a economia política, um campo de investigaçãopreocupado com a "riqueza
das nações". a produçãoe a distribuiçãoda riqueza dentro e entre as entidades
políticas e as classes que as compunham.Com a aceleração da empresa capita-
lista no século XVIII, essa estrutura de Estado e de classes passou a sofrer uma
pressão cada vez maior de grupos e categorias sociais novos e "ascendentes" que
clamavam pela decretação de seus direitos, em oposição aos grupos defendidos
e representados pelo Estado. No plano intelectual, esse desafio assumiu a forma
de uma reivindicação de novos laços sociais, económicos, políticos e ideológicos,
agora conceituados como "sociedade", contra o Estado. A maré montante do des-
contentamento, opondo a "sociedade" à ordem política e ideológica,desembocou
na desordem, na rebelião e na revolução.O espectro da desordeme da revolução

30
INTRODUÇÃO

suscitou a questão de como a ordem poderia ser restaurada e mantida e, na verda-


de, de como a ordem social poderia ser possível. A sociologia esperava responder
à "questão social". Conforme Rudolph Heberle notou, ela tinha "uma origem emi-
nentemente política [...l Saint-Simon, Auguste Comte e Lorenz Stein concebiam a
nova ciência da sociedade como um antídoto ao veneno da desintegração social"
(citado em Bramson, 1961: 12, n. 2).
Esses primeiros sociólogos alcançaram seu objetivo separando o campo das
relações sociais da economia política. Eles chamavam a atenção para aqueles laços
observáveis, até então mal estudados, que ligam as pessoas umas às outras enquanto
indivíduos, grupos e associações ou como membros de instituições. Em seguida fi-
zeram desse campo de relações sociais o objeto de sua preocupação intensiva. Eles e
seus sucessores expandiram tal preocupação para inúmeros postulados teóricos, em-
pregando-os para delimitar a sociologia em relação à ciência política e à economia.
Eu resumiria assim esses postulados comuns:
l. No decurso da vida social, os indivíduos estabelecem relações mútuas. Tais
relações podem ser abstraídas do contexto econômico, político ou ideológico em que
se localizam e tratadas como algo sui generis. Elas são autônomas,constituem um
domínio próprio, o domínio do social.
2. A ordem social depende do crescimento e ampliação das relações sociais entre
os indivíduos. Quanto maior a densidade desses laços e quanto mais amplo seu objetivo,
maior a ordenação da sociedade. A maximização dos laços de parentesco e de vizinhan-
ça, de grupo e de associação, conduz portanto à ordem social. Inversamente, se esses
laços não forem maximizados, a ordem social será questionada. O desenvolvimento de
muitos e variados laços também diminui o perigo de polarização em classes.
com a
3. A formação e manutenção desses laços está fortemente relacionada
entre os indivíduos que deles
existência e propagação de costumes e crenças comuns
não
participam. O consenso moral, sobretudo quando baseado em uma crença que
costume, intensifica a maxi-
passa por um exame e pela aceitação não-racional do
da mera utilidade e o exercício
mização dos laços sociais; as expectativasem torno
enfraquecê-los.
de uma razão simplesmente técnica tendem a
sociais e a difusão das crenças e costumes
4. O desenvolvimento das relações
concebida como uma totalidade de relações
a elas associados criam uma sociedade
constituem a sociedade; a sociedade,
sociais entre os indivíduos. As relações sociais
à qual se pode imputar a ordenação e
por sua vez, é o lugar da coesão, da unidade
forem ordenadas e recorrentes, a sociedade
a previsibilidade. Se as relações sociais
alcance dessa estrutura é coextensivo com
possuirá uma estrutura interna estável. O
Sempre que estas últimas se tornam nota-
a Intensidade e gama das relações sociais.
a sociedade depara com seus limites.
velmente menos intensas e menos freqüentes,

31
A EUROPA E OS POVOS SEM HISTÓRIA

transformada em uma construçãoteórica, apriorística.O desfecho foi uma série de


análises de exemplos inteiramente separados.
Houve três grandes tentativascom o objetivode transcender as fronteirasdo
microcosmo. Uma delas, a de Robert Redfield,recorreu à teoria sociológica.Ela
aplicou a polaridadedo Gemeinschafte do Gesellschafta exemplosantropológi-
cos, usando as "comunidades"como representações ou simplificações desses "tipos
imaginados de sociedades".Assim é que as comunidadesde X-Cacal e Chan Kom,
no Iucatã, foram usadaspara exemplificaro ponto extremofolk de um continuum
folk-urbano universalde relaçõessociais e de compreensõesculturais. As duas lo-
calizações esclareciam a teoria, mas ela não conseguia explicar os processos políti-
cos e econômicos que moldavamas comunidades:X-Cal como um estabelecimento
implantado pelos rebeldes de fala maia durante as Guerras de Casta do século XIX
e Chan Kom como uma aldeia de agricultores libertados do sistema de hacienda
pela Revolução Mexicanae que se fixaramcomo povoadores em uma região de
fronteira, com o apoio do Partido Socialista Iucatecano. A exemplo da teoria do Ge-
meinschft-Gesellschaft,os conceitosde Redfieldcaminharam unicamente em uma
direção, chegando até a teoria, mas não se desprendendo dela.
Uma segunda tentativa de gerar uma elaboração teórica para compreendero
microcosmo estudado em um contexto mais amplo foi o conceito de Julian Steward
relativo aos níveis de integração sociocultural. O conceito, derivado da filosofia da
"evolução emergente", propunha-se a sugerir que unidades da mesma espécie, quan-
do submetidasa processos integrativos,poderiam conter novas unidades que não
apenas incluíam as do nível mais baixo mas também exibiam características quanti-
tativamente diferentes no nível emergentemais elevado. Steward usou inicialmente
o conceito para contrapor-se a argumentos que tratavam a "comunidade" como uma
pequena réplica da "nação", como se fossem fenômenos estruturais qualitativamente
idênticos.Em seguida passou a elaboraruma edificaçãoconceitual na qual as uni-
dades, no nível da família, tornaram-separtes de um nível comunitário; as unidades
do nível comunitário tornaram-se partes de um nível regional e as unidades de nível
regional passaram a ser partes do nível da nação.
Embora o termo integração sugira um processo, o conceito não é processual,
mas estrutural. Ele sugere a arquitetura de um todo e de suas partes, que só após o
fato precisam ser especificadas substantivamente. O modelo é, assim, uma represen-
tação "oca" da complexidadesocietáriae teoricamenteaplicávela todos os univer-
sos socioculturais complexos. Entretanto, ele não declara quais são os processos que
geram a estrutura, quais os traços específicosque a integram ou qual o conteúdo de
qualquer uma de suas partes. O conhecimento sobre os processos não emana do mo-
delo mas deve ser acrescentado a ele. Assim, quando Steward se voltou para o estudo

38
INTRODUÇÃO

da "mudança contemporânea nas sociedades tradicionais", o modelo permaneceu em


silêncio sobre a penetração do capitalismo, o crescimento de uma especialização e
de uma divisão do trabalho em nível mundial e o desenvolvimentoda dominação por
algumas populações em relação a outras. Infelizmente Steward foi forçado a recuar
para o estudo comparativo de exemplos separados e para os conceitos insatisfatórios
da tradição e da modernização.
A terceira tentativa de ultrapassar o estudo microscópico da população em
determinadas localidades assumiu a forma de uma restauraçãodo evolucionismo.
O pensamento evolucionista na antropologia, tão proeminente no século XIX, fora
bloqueado pela declaração segundo a qual "a ocorrência extensa da difusão [...] corta
pela raiz qualquer teoria de leis históricas" (Lowie, 1920:434). A oposição entre os
evolucionistas e os difusionistas era menor do que o interesse que eles manifestavam
por fenômenos muito diferentes. Os evolucionistas haviam reconhecido os fatos da
difusão, mas sentiam-se justificados por abstrair desses fatos seu modelo de sucessivos
estágios de desenvolvimento social e cultural. Os difusionistas, por sua vez, puseram
de lado o problema suscitado pelas grandes desigualdades quanto à tecnologia e à
organização dos diferentes povos, enfocando em vez disso a transmissão das formas
culturais de um grupo a outro. Enquanto os evolucionistasdescartavam um interes-
se pela história de determinadas sociedades e culturas, os difusionistas descartavam
qualquer interesse pela matriz ecológica, econômica, social, política e ideológicana
As duas
qual as formas culturais estavam sendo transmitidas no espaço e no tempo.
diversas. Os fun-
escolas de pensamento manifestavam, portanto, preocupações muito
em favor
cionalistas, por sua vez, rejeitavam a "história conjetural" dos difusionistas
isolado.
da análise do funcionamento interno em um todo supostamente
Quando Leslie White reintroduziu a perspectiva evolucionista na antropolo-
a validez do modelo an-
gia americana, nas décadas de 1940e 1950,ele reafirmou
modelo de evolução universal
terior proposto por Tylor, Morgan e Spencer. A esse
que descrevia a evolução
ou unilinear Julian Stewardopôs um modelo multilinear,
Sahlins e Service
como um processo de ramificação sucessiva. Subseqüentemente
evoluçãogeral e a evolu-
procuraram unificar as duas abordagens,contrapondoa
processo evolucionista. A evolução
ção específica como aspectos duais do mesmo
de uma exploração da energia me-
geral foi definida por eles como uma "passagem
a níveis menos elevados de integração
nor para uma maior, mais baixa em relação
adaptabilidadegeral" (Sahlins & Service,
e mais baixa em relação a uma maior
específica como "a passagem filogenética,
1960: 22-23). Eles definiam a evolução
sentidos, a modificação adaptativa de
ramificadora e histórica da cultura em vários
reconhecendo a convergência como um
determinadas culturas" (1960: 38). Embora
à filogenia biológica, Sahlins e Service a
aspecto da filogenia cultural em oposição

39
12

OS NOVOS TRABALHADORES

A essência do capital está na sua capacidade de mobilizar o labor social ao


comprar a força de trabalho e pô-la em funcionamento.Isso exige um mercado no
qual a capacidade de trabalho dos seres humanos pode ser compradae vendida como
qualquer outra commodity. Os compradores da força de trabalho oferecem salários
que os vendedores aceitam em troca de uma commodity, seu próprio trabalho. O mer-
cado cria a ficção segundo a qual essa compra e venda é uma troca simétrica entre
parceiros, mas na realidade as transações do mercado subscrevem um relacionamen-
to assimétrico entre as classes. Por essas transações os trabalhadoresrecebem como
pagamento uma porção do produto de seu próprio trabalho, sob a forma de salários,
renunciando ao restante, que é valor excedente, em favor da classe capitalista.
As classes trabalhadoras, ao ingressarem na indústria ou na agricultura prati-
cada nas plantações sob a égide do modo de produçãocapitalista,constituíram um
novo fenômeno no mundo, uma novidade bem compreendidapor muitos observado-
res no século XIX. O surgimento dessas classes trabalhadorasforneceu uma agenda
oculta para a história moderna e as ciências sociais, mas só com muita hesitação os
estudiosos passaram a reconhecer o seu papel na criação de novos tipos de sociedade.
Sua emergência no palco da história promoveu o temor da irrupção das massas e da
desordem social e exagerou as esperanças de uma iminente renovaçãosocial. Para os
historiadores basicamente preocupados com as açôes dos poderosos, as novas classes
trabalhadoras não tinham história, apenas uma anti-história. Para os cientistas sociais
que definiram a sociologia basicamente como uma ciência "moral", as novas "massas"
emergentes significavam desenraizamento e anomia. Para os humanistas preocupados

423
A EUROPA E OS POVOS SEM HISTÓRIA

em defender as mais elevadas realizações do Espírito Humano, o proletariado evocava


a imagem dos ostrogodos que já apunhalavam os seus cavalos nos confins da Cidade.
Para os revolucionários, as classes trabalhadores encarnavam a promessa da transfor-
mação social, e os "novos homens" proporcionavam uma antítese da Civilização.
Mesmo quando começaram a examinar mais de perto esses novos homens, os
cientistas sociais os trataram sobretudo como um problema social, criado pelo fato de
terem sido cortados de suas próprias raízes através da destribalização ou da imigra-
ção, e não como atores sociais por si mesmos reagindo às novas condições. Mesmo
os historiadores do trabalho concentraram-se inicialmente na história das organiza-
ções e movimentos trabalhistas, isto é, estavam mais interessados nos esforços para
transcender a condição do que em delinear essa própria condição. Assim, a pesqui-
sa preocupou-se sobretudo com o que estava ausente condições e características
que existiram um dia e que já não existiam ou condições que ainda estavam por
vir. Menos foi dito sobre o que estava presente, a matriz relacional e o conteúdo da
existência da classe trabalhadora. Só recentemente alguns historiadores passaram a
escrever a história processual e relacional das classes trabalhadoras, em boa par-
te no mesmo espírito de uma história que começou a ser escrita sobre populações
supostamente imobilizadas em um plano atemporal de evolução. Na verdade esses
dois ramos da história são apenas um. As trajetórias dos "povos sem história" nos
vários continentes do globo concatenam-se e convergem para a matriz maior criada
pela expansão européia e o modo de produção capitalista.

Mercados de Trabalho

No decorrer do século XIX a industrialização


e a introdução de certos cultivares
em larga escala na agricultura caminharam a passo
acelerado. À medida que afluía
para novas áreas de oportunidades e para novos ramos
de atividades, o capital reu-
niu as máquinas em agregados cada vez maiores
e levou batalhões de trabalhadores
sempre renovados para o crescente exército
industrial. A manufatura a produção
na qual "o ritmo foi estabelecido pelo homem,
e não pelas máquinas"
121) cedeu cada vez mais à "maquinofatura", (Landes, 1969:
na qual a máquina determinava o
ritmo do trabalho. As economias políticas
foram reformuladas, os
romperam e passaram por novos arranjos e laços sociais se
as pessoas passaram
necimento para regiões de demanda. de regiões de for-
Muitos índices revelam o aumento da
escala da produção e
demanda de mão-de-obra industrial. Avalia-se refletem a crescente
que desde o início
na segunda metade do século XVIII, o vapor da industrializaçãO,
que movia as máquinas
em todo o mun-

424
OS NOVOS TRABALHADORES

do correspondia a cerca de 4 milhões de hp em 1850e a cerca de 18,5 milhões de hp


decorridos apenas vinte anos. A produção do carvão, estratégico para o crescimento da
industrialização, cifrava-se em 15 milhões de toneladas anuais em 1800, 132 milhões
de toneladas em 1860 e 701 milhões de toneladas em 1900. A produção mundial de
minerais elevou-se de I milhão de toneladas métricas em 1820 a 65 milhões em 1910.
A energia inanimada produzida a partir do carvão, da linhita, do petróleo, da gasolina
natural, do gás natural e da força hidráulica elevava-se a 1,1bilhão de megawatts-hora
em 1860, 6,1 bilhões em 1900 e 21 bilhões em 1950 (Cipolla, 1962: 48, 49,51; Woo-
druff, 1971: 9). A distância percorrida pelos trilhos das estradas de ferro passou de
332 quilómetros em 1831para mais de 300 mil quilômetros em 1876;a tonelagem dos
navios a vapor passou de 32 mil toneladas em 1831para 3,3 milhões de toneladas em
1876(Hobsbawm, 1975:310). No mundo inteiro os portos ficaram abarrotados com os
produtos das plantações destinados ao embarque para a Europa e os Estados Unidos.
As unidades de produção aumentaram quanto ao tamanho, acelerando a deman-
da de mão-de-obra. Na década de 182()o cotonifício médio em Lancashire empregava
entre cem e duzentos operários, mas em Oldham, em 1851,um terço dos trabalhadores
já estava empregado em cotonifícios de mais de 250 operários (Chapman, 1972: 26;
Foster, 1974: 91). Em 1841, mais da metade dos mineradores de Oldham estava em
minas que empregavam mais de duzentos trabalhadores. Agregados bem maiores de
trabalhadores também surgiram cedo e tornaram-se mais comuns ao longo dos anos.
Assim, em 1815-1816,Robert Owen empregava entre 1600-17()0 trabalhadores em
Nova Lanark (Chapman, 1972: 32). Em 1849 a maior siderúrgica do Reino Unido,
em Nova Dowlais, tinha mais de 7 mil operários (Landes, 1969: 121). Em 1848 havia
apenas 72 trabalhadores na fábrica da Krupp em Essen, mas quase 12 mil em 1873;
em Le Creusot, na França, a Companhia Schneider empregava 12500 trabalhadores
em 1870, mais da metade dos moradores da cidade (Hobsbawm, 1975: 213). A agri-
cultura também exigia trabalhadores, levando a agregações de cerca de 2 mil em uma
plantação no litoral do Peru e de vários milhares nas propriedades de Java.
O novo regime de trabalho inaugurado pelo modo capitalista dotou o empreen-
dedor capitalista de maior flexibilidade para enfrentar as oportunidades e exigências
do crescimeneo. No modo ordenado segundo o parentesco, os parentes não podem
ser empregados ou despedidos. Um senhor tributário precisa recorrer à força militar
ou a um equivalente funcional para expandir ou diminuir o número de produtores
de excedentes sob escravos se vê tolhido em sua
sua jurisdição. Mesmo o senhor de
capacidade de manipular a força de trabalho à sua disposição, pois precisa proteger
0 seu investimento em escravos, alimentando-os durante as épocas em que não traba-
lham. Já os empresários capitalistas podem contratar e despedir os trabalhadores ou
estabelecer variações em seus salários como reação a circunstâncias mutáveis. Alte-

425
A EUROPA E OS povos SEM HISTÓRIA

rações na taxa de lucro ocasionam mudanças no fornecimento e na remuneraçãoda


mão-de-obra e, em conseqüência, flutuações no tamanho e no caráter dos mercados
de trabalho. A acumulação intensificada abre novos setores do mercado de trabalho
ou expande setores antigos; a acumulação desacelerada estreita as oportunidades de
trabalho ou as transfere para regiões onde o custo da mão-de-obra é mais baixo. A
medida que ocorrem mudanças na acumulação do capital, as conseqüentes mudanças
quanto à demandade mão-de-obraalteram, por sua vez, a emergênciae a estabili-
zação das diferentes classes trabalhadoras.
Sob o capitalismo, os empresários também podem variar o uso que fazem da
mão-de-obra em relação ao maquinário, convocando trabalhadores adicionais para
operar as máquinas disponíveis ou reduzindo sua quantidade ao substituí-los pelo
trabalho humano. Nesse contínuo empenho pela acumulação, o modo de produção
capitalista tendeu historicamente a aumentar a proporção do capital investido em fá-
bricas e matérias-primas em relação ao capital que remunerava a força de trabalho.
As unidades industriais que usaram máquinas para aumentar a escala da produção
enquanto diminuíam o custo da mão-de-obra para cada unidade produzida tenderam
a substituir as unidades industriais que apresentavam maior proporção entre a força
de trabalho e a fábrica. Essa tendência, entretanto, não é nem linear ao longo do tem-
po nem geral em qualquer momento. Qualquer que seja a época, a competição entre
os capitalistas implica uma distribuição das indústrias, de ramos das indústrias e de
empresas no interior das indústrias caracterizadas por associações muito diferentes
de capital. Assim, as unidades industriais que se apóiam mais em máquinas e ma-
térias-primas do que na força de trabalho sempre coexistirão e se defrontarão com
unidades industriais que recorrem mais à força de trabalho.
Circunstâncias especiais podiam favorecer empresas que apresentassem maior
mescla de elevada mão-de-obra com pouco emprego de máquinas. Por exemplo,
mulheres e crianças sem habilitações e que recebiam baixos salários, empregando
a antiga técnica de fiação desenvolvidapor Arkwright em fábricas que contaram
com abundante suprimento de água, poderiam competir durante algum tempo com
máquinas de fiar mais aperfeiçoadas e produtivas (Chapman, 1972: 20-21). Ocorreu
uma situação semelhante na reação retardada das manufaturas têxteis do continente
europeu em relação à competição inglesa (Landes, 1969: Cap. 3). Algumas vezes
pode ser eficiente e proveitoso, para empresários que trabalham com uma proporção
elevada entre maquinário e mão-de-obra,delegar fases do processo de trabalhoa
firmas que operam em nível mais baixo. Aumentos na escala das fábricas e firmas
cuja intenção era baixar os custos da produção por unidade produzida podem, na
verdade, atingir um ponto crítico no qual os custos dessa unidade não se modificam
e podem até mesmo elevar-se. Esses pontos críticos não são simplesmente 0 desfechO

426
OS NOVOS

(le (le crehcinsento, he relacionmn intimamente colli fotorct'


(le concentrnçno, localiznçno. gerenci"liicnto, (la e

Invorcce em detrimento (ln lorça (le trnbnlho, gerar cuja com-


1)0hiçno é naih bnixn,
varinçno entre unidndeu induhtrinihcom dilèrcntcs de cnpital
nl no njercndo de trobnlho. produzindo vnrinçôeu nn quantitativo c qua,
'i
de tnno-(le-obro, O re%tlltodoé que o mercado de trab/llho é negjnentndo" e
"diferenci'ido", e nno homogeneo (Gordon. 1972).A qunlquermomento. in.
que dihponljnm de elevaclliproporçnode capital entre a lilbricn e força
de traballjo exigirno um alto nivel de capacitaçno e um treinunjento l'ormnl ou e er
cido no enjprego, pagartio snlârios relativamente elevadog, concederno
no status e procurarno obter n ehtabili(lndc (le l'orçn de ti'"bnlljo. no posso
que da indcihtl'ia que npresentnm mcnor proporçno de capital enttc n t'âbricn e

ligadns no status. nno (Iarno enl'0%e capacitnçno e ex igêncillh ligndii% fortnaçao e


reconerno n A"illl, »eglnentos do
lijrçn (le trabnlho inutÔvclou rot1itiW1,
do de trabnlho c trnblllhlldores que ntendiam demandas geradn» nehhehvâri0N heg-
ment0N n orgnni'/.nd0h hicrurquicomentc em relaçno nn qual
"[il'ihtocrncindo trabnlho", Nitundltno ponto mais allo. obtinhli
elevadas quanto h renda e 00 prestigio e nn qual os trabalhndorch.situad0h nn
bicrnrquiil
recebiam snlârios numn hitunçno de emprego inhtdvel. Sejnclhunte
pode carocteri'/.nr determinadn unidnde industrinl; elli pode (Ic re er o contraste e ih
tente entre regiÔe". industriais interligJi(lns com (litercnteh (ln ind(ihtl'in e. no
plano internncionnl, pode manter uma l'orçll de trnbnlho ejnprcgndn ctn
diferentes tipoh de emprcgo indtlhtrinl.em (lilërcntehpnisen e continente",
A distribuiçno (IONcapitais e (log merendos de trnbnlho e conseq(iente dilèrcn-
ciuçtio(In de trabnlho nos plnnos local, regionali nncionale internacionnl jamnis
e estâveih. Assim como n vongunrda (10% emprecndedorcs industriai" pode
margem no decorrer (ln competiçno. (ln l'orti)" n nrihtocrncia do
trnbnlho(lo (lin (le ontem pode ser sub"titllida pelli" mnquilili%.ornando he parte
redundante A liistôrio mtl(l/tnçn tecnologica
de trnbnlho do (lin de
0 capitiiliN11)0 repletn (le exejnplos de forçn de trnblilli0 espcciali/li(ln
que sofreu os el'eit0%(111"desqunlilicnçno" (Ilurnwoy. 1979'.Wnrnet' & l,ow, 1947),
AO jnesmo tempo. n grande (Itlnnti(lade de trnbnlhndorch locali/.nd0h egli determinndn
ne ni empregndo
regino pode lileil'"h (lo "exército de rehervn industrinl",
e (lesenjpregndo. (levi(lo no (leslocanjento (Io copill'l outrns regiôe%,O (Icelinio
(la inclii%triotextil da Novo Inglntcrtli devi(lo trannferenciii fnbric:lthe do capital
A EUROPA E OS POVOS SEM HISTÓRIA

para o Sul dos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, bem como o mais
recente deslocamento da atividade manufatureira para regiões de mão-de-obra mais
barata, como Taiwan, Hong Kong e Coréia, oferece uma ilustração atual de um pro-
cesso que se repetiu continuamente sob a égide do modo capitalista.

As Classes Trabalhadoras

Quando o termo classes trabalhadoras surgiu, por volta de 1815,ele assumiu


a forma de um plural, descrevendo uma pluralidade de classes. Embora o desenvol-
vimento das classes trabalhadoras, em todos os lugares, "reproduza" a relação geral
do trabalho com o capital, as características de determinadas classes trabalhadoras
demonstram uma ampla variação. Elas se diferenciam quanto à origem, ao ponto de
entrada no mercado de trabalho, à composição e aos modos como se relacionam com
outros grupos e categorias sociais.
As diferenças de origem podem colocar vários recursos à disposição das novas
classes trabalhadoras. Um grupo de artesãos como os sopradores de vidro de Carmaux,
no Sudoeste da França, formou uma variação de classe trabalhadora diferente da dos
mineradores da mesma região. Os sopradores de vidro eram descendentes de uma cor-
poração de hábeis artesãos migratórios que tinham amplas "conexões" cosmopolitas.
Os mineiros descendiam de um campesinato detentor de pequenas propriedades, com
raízes e fala locais, que exerciam a atividade mineradora durante as entressafras. À
medida que perdiam suas terras, tornavam-se cada vez mais dependentes da mineração
industrial, o que nivelou as diferenças de capacitação e status entre eles (Scott, 1974;
Trempé, 1971). As classes trabalhadoras alemãs continham uma porcentagem muito
elevada de artesãos qualificados; as classes trabalhadoras russas eram recrutadas sobre-
tudo entre os filhos e filhas do campesinato (Walker, 1971;Moore, 1978; Lyashchenko,
1949). Alguns países recorriam às classes trabalhadoras principalmente em seus terri-
tórios nacionais; outros, como os Estados Unidos, estruturaram sua força de trabalho
sobretudo pela importação de diferentes categorias e grupos étnicos do estrangeiro.
As circunstâncias particulares ligadas ao recrutamento das classes trabalha-
doras aumentam ainda mais a variabilidade dessas classes. Uma classe trabalhadora
"antiga" mostrará características diferentes das classes "novas". A classe trabalhadora
inglesa, subdividida numa multiplicidade de "ofícios" e recrutada para trabalhar em
fábricas de porte relativamente pequeno, desenvolveu-se como reação às demandas do
mercado, muito pouco semelhantes às enfrentadas pela nova
classe trabalhadora russa
do final do século XIX (Gordon, 1941), da classe trabalhadora
chinesa das primeiras
décadas do século XX (Chesneaux, 1962) ou dos bemba, que
passaram a trabalhar
nas minas de cobre da Rodésia na década de 1920 (Epstein,
1958).

428
OS NOVOSTRABALHADORES

As classes trabalhadoras também variam quanto à sua composição. Grande parte


da força de trabalho recrutada para trabalhar nas fábricas têxteis inglesas da primeira
fase da industrialização consistia em mulheres, crianças e aprendizes pobres. Na Nova
Inglaterra os operários, no início, eram basicamente mulheres jovens e solteiras. Já a
força de trabalho das fábricas de Bombaim instaladas após 1850 era constituída prin-
cipalmente por homens adultos e casados. As classes trabalhadoras se diferenciam,
além disso, quanto à localização, amplitude geográfica e capacidade assistencial dos
laços sociais que asseguram a sua manutenção e reprodução. Nas cidades fabris in-
glesas, por volta de 1850, as unidades constituintes das trabalhadoras eram
famílias nucleares ou pertencentes a uma mesma linhagem que enfrentavam o pro-
blema da sobrevivência, enviavam as mulheres e os filhos para trabalhar ou se agre-
gavam em grupos domésticos mais amplos. No centro têxtil de Oldham, um terço das
mães com filhos de onze anos ou menos iam trabalhar, o mesmo acontecendo com
um quarto dessas crianças. Muitas famílias se agregavam em acomodações compar-
tilhadas (Foster, 1974: 96-99). Ao mesmo tempo, nas cidades fabris, as pessoas se
empenhavam em manter laços com seus parentes que moravam no campo, freqüente-
mente preocupadas em maximizar as vantagens mútuas (ver Anderson, 1971:99). Em
contraste com o exemplo inglês, na Índia os operários têxteis deixavam as mulheres
e os filhos com suas famílias nas aldeias natais, voltando mais tarde para deixar que
outros membros da famflia ocupassem seu lugar no trabalho (Morris, 1960). Em ou-
tros lugares a experiência da classe trabalhadora envolvia apenas uma fase do ciclo
de vida. Por exemplo, eram sobretudo as filhas solteiras dos agricultores pioneiros
que se recrutavam para trabalhar nas fábricas têxteis da Nova Inglaterra. Seus salários
permitiam que as famílias dedicadas à agricultura permanecessem em sua região, e
as mulheres regressavam a essas famílias por ocasião do casamento. Na Africa do
Sul, essa comutação durante o ciclo de vida estava consignada no próprio contrato
de trabalho. Os trabalhadores eram levados para as minas a partir de diferentes reser-
vas "tribais" e obrigados a voltar para elas quando seu contrato expirava; inibiu-se,
assim, o desenvolvimento de uma classe trabalhadora com residência permanente.
Entre os que imigravam para os Estados Unidos, no período que se estendeu de 1879
a 1918, a proporção entre os sexos era quase de dois homens para uma mulher. Os
fatores ligados à distância e às despesas com a viagem inibiam o retorno a países de
origem, e a maioria dos imigrantes permaneceu no Novo Mundo; não obstante, mais
de 30% dos novos imigrantes regressaram à Europa após a década de 1880 (Rosen-
blum, 1973: 72-73, 126).
Assim, as características de uma classe trabalhadora são determinadas não
apenas pelo nexo salarial mas também por laços de parentesco, localidade e associa-
çãO,transpondo a distância existente entre as aldeias e cidades de origem e as novas

429
A EUROPA E OS POVOS SEM HISTÓRIA

vizinhanças nas localizações industriais. Existem conexões com os pais e irmãos,


noivos, esposas e filhos que ficaram em casa; com parentes, no novo lugar de resi-
dência; com os patrões, no local de trabalho; com os agentes da emigração, com os
agiotas, com os sacerdotes; com os amigos, vizinhos, companheiros de trabalho, com
relacionamentos estabelecidos em hospedarias, tavernas e sedes de sindicatos; com os
confrades das paróquias, das irmandades religiosas e dos clubes de emissão de "pa-
pagaios". As classes trabalhadoras não "se constituem" apenas no lugar de trabalho;
são o desfecho de muitos laços que se estendem para a sociedade maior. É essa teia
de conexões mais ampla que também determina a política das classes trabalhadoras
a capacidade de determinadas classes trabalhadoras de desafiar os empregadores
e os governos, de organizar associações, sindicatos, organizações partidárias e me-
lhorar as condições de seu trabalho e de suas vidas.

Urbanização

O desenvolvimento das classes trabalhadoras relacionou-se intimamente com


o crescimento acelerado das cidades após 1800 e com o enorme aumento no tocante
ao tamanho, densidade e heterogeneidade das populações urbanas. Em 1600, apenas
1,6% da população da Europa vivia em cidades de 100 mil habitantes ou mais; em
1700 a cifra era de 1,9%; em 1800 alcançava 2,2%. A Inglaterra, país pioneiro da
industrialização, liderou a urbanização. Em 1801 cerca de um décimo da população
da Inglaterra e de Gales vivia em cidades de 100 mil habitantes ou mais. Em 1840
essa porcentagem duplicara e no final do século voltou a duplicar. "Em 1900 a Grã-
Bretanha era uma sociedade urbanizada" (Davis, 1965: 43). Ingressando na indus-
trialização um pouco mais tarde do que a Grã-Bretanha, outros países da Europa em
breve seguiram uma trajetória paralela de expansão urbana.
O movimento da população em direção a centros urbanos grandes e densos,
ligados à indústria em larga escala, reverteu uma tendência anterior. Durante dois
séculos, de 1600 a 1800, a difusão do sistema de produção tinha disseminado ilhas
de "industrialização antes da industrialização" em todo o campo. Durante esse pe-
ríodo, a proporção de europeus que moravam em cidades de mais de 20 mil pessoaS
não cresceu significativamente e pode muito bem ter declinado a despeito de um
substancial crescimento da população (Tilly, 1976). A população havia-se mudado
dos grandes centros para cidades menores e para o campo provavelmente devido ao
ingresso dos trabalhadores agrícolas e dos artesãos nas indústrias rurais e de fundo
de quintal. Após 1800 a industrialização capitalista impulsionou as pessoas na dire-
ção oposta e, ao transformar as áreas rurais em reservas de mão-de-obra industrial,
também agiu no sentido de desindustrializar o campo.
OS NOVOS TRABALHADORES

A mudança para uma concentração urbana maior não foi simplesmente quanti-
tativa, mas acarretou também uma mudança qualitativa nos mecanismos que aloca-
vam as pessoas aos espaços e atividades. Os centros mais antigos de administração
política do comércio ou de comunicação simbólica agora se haviam transformado
em eixos do novo modo de produção. A maquinofatura fez surgirem novas cidades
fabris, como Manchester e Essen, e rodeou as cidades existentes com um anel de
distritos industriais. O desenvolvimento dos serviços financeiros e as necessidades de
comunicação nos negócios estiveram na base do crescimento dos distritos comerciais,
com bancos, escritórios e clubes. As florescentes classes trabalhadoras se fixaram
em bairros ou distritos a elas destinados, caracterizadospela construção em larga
escala de alojamentos que abrigavam várias famílias. Foram construídas instalações
portuárias, e os trilhos das estradas de ferro, os pátios e as estações transformaram a
paisagem urbana. Longe dos distritos industriais, dos bairros da classe trabalhadora
e dos pátios para embarque de carga, os capitães da indústria e do comércio erigiram
novas mansões e casas de campo.

A Mão-de-obra em Movimento

Para atender à crescente demanda de força de trabalho, a mão-de-obra começou


a afluir de regiões onde as pessoas eram subempregadas ou deslocadas da agricultu-
ra ou das indústrias de fundo de quintal, dirigindo-se às regiões de atividade indus-
trial ou agrícola intensificada. O subseqüente crescimento e expansão do capitalismo
provocou maciças realocações de populações, à medida que as pessoas levavam sua
mão-de-obra e seus recursos de áreas onde eles eram redundantes ou obsoletos para
novas áreas fundamentais de acumulação. Com isso não se pretende afirmar que os
movimentos populacionais sempre ocorrem como reação a aumentos e diminuições
da demanda. A mão-de-obra é freqüentemente submetida a coações, e os governos
nem sempre estão dispostos a permitir que os seus cidadãos emigrem. Algumas vezes
os movimentos populacionais antes precedem do que seguem o aumento da atividade
econômica, e o maior fornecimento de trabalhadores achata os salários e favorece
os investimentos. Ainda assim, de um modo geral o capitalismo sempre encontrou
os trabalhadores quando e onde necessitava deles e no mundo inteiro os movimentos
migratórios conduziram a força de trabalho ao mercado.
Ao abordar o tema da migração, os cientistas sociais distinguem habitualmen-
te a migração "interna" da migração "internacional" ou contrastam fluxos de popu-
lação "continentais" e "intercontinentais". Os movimentos que ultrapassam grandes
distâncias físicas ou fronteiras politicamente demarcadas criam problemas especiais

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