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Acta Scientiarum 21(1):175-185, 1999.

ISSN 1415-6814.

A historiografia francesa dos séculos XVIII e XIX: as visões


iluminista e romântica da Idade Média

Terezinha Oliveira
Departamento de Fundamentos da Educação, Universidade Estadual de Maringá, Av. Colombo, 5790, 87020-900, Maringá-
Paraná, Brazil.

RESUMO. O objetivo deste artigo é mostrar que a análise histórica do passado se modifica
de acordo com as questões do momento em que está sendo elaborada. Tomamos como
ponto de partida para este objetivo a comparação entre o modo como autores do século
XVIII e do século XIX conceberam a época feudal. Ainda que opostas, essas concepções têm
sua razão de ser e, por conseguinte, são válidas historicamente. Além disso, permitem uma
compreensão da época em que foram elaboradas.
Palavras-chave: Idade Média, Iluminismo, historiografia romântica.

ABSTRACT. French historiography of the 18th and 19th centuries: enlightenment


and Romantic visions of the Middle Ages. The aim of this article is to demonstrate that
the historical analyses of the past changes according to contemporary issues. The different
ways in which 18th century and 19th century authors viewed respectively the feudal system
are taken as parameters of the present analysis. Even though presenting opposite
conceptions both analyses have their raison d’être and are historically valid, besides allowing a
better understanding of the period in which they were written.
Key words: Middle Ages, enlightenment, romantic historiography.

Entre os historiadores parece ser ponto pacífico a Nossa intenção, neste artigo, é fazer o exame de
idéia de que cada época faz sua própria leitura do duas interpretações da Idade Média, a visão
passado. No entanto, não existe consenso quanto às iluminista da segunda metade do século XVIII e a
motivações que levam uma dada época a fazer sua romântica, do início do século XIX. Ainda que
leitura do passado. Aceita-se, menos ainda, a idéia de opostas, ambas possuem algo em comum.
que, em uma mesma época, podem haver distintas Distingue-as e, ao mesmo tempo, torna-as análogas
leituras ou interpretações válidas do passado. Ter o fato de que estavam comprometidas com as lutas
claras essas questões constitui um grande passo políticas da sua época. Sob esse aspecto, expressam
metodológico para a análise histórica. Com efeito, uma dada posição frente ao presente e, portanto,
dado que, em cada momento histórico, interpreta-se diante do passado.
o passado à luz de questões do presente, o É o modo como os autores se posicionam diante
historiador estará sempre trabalhando não a partir do das questões do presente que os leva a interpretarem
modo como as coisas foram, mas do modo como a o passado de uma determinada forma. Por isso, a
própria sociedade interpretou e tomou consciência análise deve considerar essas interpretações do
das questões que estavam postas. Disso decorrem passado feudal como aquilo que realmente são, isto
algumas conclusões. A primeira é que as diferentes é, como expressões das lutas políticas da época em
interpretações do passado têm sua razão de ser. que foram elaboradas.
Identificar esta constitui meio caminho andado para Disso deriva a idéia de que, se a maneira de
saber o modo de utilizar a fonte com que se está conceber a Idade Média modificou-se, isso decorre
trabalhando. A segunda, também importante, é que do fato de que os próprios embates políticos também
uma interpretação do passado pode lançar mais luzes se modificaram. Novas questões foram colocadas aos
sobre a sociedade que elaborou essa interpretação do homens, o que os obrigou a repensarem suas antigas
que sobre a época analisada. formulações e a mudarem seu enfoque acerca das
instituições.
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Dessa maneira, é possível conceber uma mesma Desse modo, não se colocava para o século XIX a
época de distintas maneiras sem que isso traga destruição das instituições do Antigo Regime, como
prejuízo para a história. O próprio modo de ocorrera no século XVIII. A tarefa, então, era
interpretar uma época converte-se em indício para se consolidar as conquistas do Terceiro estado
entender tanto o momento analisado como a época alcançadas por meio da Revolução. As análises dos
do intérprete. Assim, o modo como o século XVIII autores da Restauração expressam, portanto, este
analisou a Idade Média é uma “pista” para entender propósito.
não somente a própria Idade Média, mas o século Para consolidar a nova sociedade, era preciso
XVIII. Em nosso caso, permite entender as relações combater os setores que dificultavam esse intento.
entre o século XVIII e a feudalidade. Era necessário combater as facções que buscavam no
Por outro lado, se alguns autores do início do passado feudal os argumentos para legitimar sua
século XIX puderam considerar com certa simpatia e soberania. Necessitava-se, primeiramente, mostrar à
mesmo com paixão as relações e as instituições do nobreza, indo contra seus interesses, que esta não era
período feudal, isso decorre das circunstâncias mais a força hegemônica. Em segundo lugar, havia a
históricas do século XIX. Sem dúvida, esse modo de necessidade de mostrar aos radicais da Revolução,
interpretar o passado feudal não era, e nem poderia opondo-se às suas pretensões de estabelecer a
ser, idêntico ao do iluministas, na medida em que as soberania popular, que a Revolução já havia
questões do início do século XIX eram outras. alcançado seu objetivo. Continuá-la, tentando
A maneira como os homens do século XVIII implantar a soberania popular, significava criar um
conceberam as instituições de natureza feudal faz período de desordens, prejudicial ao
parte da luta que travavam contra elas. As classes e as desenvolvimento da sociedade.
instituições ligadas ao feudalismo esforçavam-se para Ao retornarem às origens do Terceiro estado, os
sobreviver em meio a um grande processo de historiadores da Restauração, na sua luta para
transformação. Ao procederem dessa forma, erguiam consolidar a nação fundada pela Revolução,
obstáculos aos avanços da sociedade capitaneados elaboraram um novo enfoque acerca das instituições
pelo Terceiro estado. Em virtude disso, as medievais. Do mesmo modo que os autores do
instituições do mundo feudal somente poderiam ser século XVIII, também eles dedicaram-se ao estudo
consideradas sob um prisma negativo pelos homens da Idade Média. A diferença entre eles reside na
ligados às novas forças sociais. Os iluministas, função desses estudos. Enquanto para os autores do
teóricos do Terceiro estado, consideravam o mundo século XVIII tratava-se de destruir todo e qualquer
feudal com ódio. As antigas instituições eram vistas resquício feudal, para os do século XIX a questão era
como aquilo que realmente eram: obstáculos que recuperar as origens da moderna sociedade, o que
impediam o completo estabelecimento da nova incluía o feudalismo, a realeza, a Igreja e a própria
ordem social e seu livre funcionamento. nobreza. Esses historiadores valeram-se do estudo da
Acrescente-se que, para os homens do século Idade Média para consolidarem a ordem burguesa.
XVIII, a condenação não era coisa do passado. Suas Assim, tanto para os autores do século XVIII
instituições e classes sobreviviam e afetavam suas como para os do século XIX, a finalidade era a
vidas. A feudalidade era um presente que sociedade burguesa. Entre os primeiros, o objetivo
incomodava, perturbava e atrapalhava. era estabelecê-la de vez, varrendo do solo tudo do
Em contrapartida, os indivíduos do século XIX passado que obstaculizava sua existência. Entre os
não encaravam as instituições feudais com ódio, segundos, o estudo tinha por objetivo a consolidação
como um inimigo que precisava ser destruído. Ao da sociedade burguesa. Desse modo, se o estudo da
menos parcialmente, elas já tinham sido destruídas Idade Média serviu de apoio às justificativas da
pela Revolução. Não representavam, pois, um perigo nobreza e dos radicais de esquerda na luta pelo
para a nova sociedade. A luta política tinha adquirido poder, também serviu aos propósitos dos
um novo caráter. Impunha-se, por isso, uma historiadores do século XIX, especialmente aos
reavaliação do passado. pertencentes ao grupo conhecido pelo nome de
Entretanto, se as questões tinham se modificado, Doutrinários.
bem como o modo de encarar as relações feudais, Do ponto de vista desses autores, o estudo do
persistiu o fato de que esta nova maneira de passado era importante para se conhecer as origens
conceber o passado feudal também estava vinculada de cada uma das classes que compunha a sociedade
às questões do presente. Além disso, continuava para conhecer as origens da nação. O intuito era
ligada ao Terceiro estado, agora em acelerado legitimar, através da origem, as instituições do
processo de cisão. Sua essência era, pois, outra. presente. Desse modo, ainda que estivessem
A historiografia francesa dos séculos XVIII e XIX 177

estudando o passado, tinham os olhos voltados para instituições medievais como os autores do século
o presente. XVIII. Embora comprometidos com a mesma forma
Essa necessidade de pensar o presente levou social, as questões e as necessidades eram distintas.
Guizot a afirmar que a oposição não deveria ficar Vejamos este debate nos próprios autores.
presa ao passado. Não deveria buscar apoio no antigo
regime, no século XVIII ou no governo de Thierry. Tanto nas Considerations sur l'histoire de France
Napoleão. Deveria buscá-lo na sua própria história, como no Essai sur l'histoire de la formation et des progrès
para se vincular ao presente. du Tiers État2, Thierry analisou longamente a situação
Para os autores da Restauração, era preciso da França no século XIX e suas origens medievais.
defender e consolidar os novos interesses. Entre Segundo ele, a Revolução de 1789 havia varrido
esses estava, indubitavelmente, o livre da França todas as antigas tradições. No afã de tudo
desenvolvimento de todas as atividades sociais, mudar, essa revolução teria produzido um instinto de
fossem essas de natureza econômica ou intelectual. renovação jamais visto na França (Thierry, 1833:91).
Em síntese, era a idéia de progresso que Todavia, a necessidade de mudanças fez com que
predominava. todas as classes da nação tivessem como parâmetro
Ao responder às tendências que propunham a somente um futuro desconhecido. As classes que tinham
igualdade para todos, Guizot as critica por estado em luta durante séculos não encontravam
abandonarem a idéia de liberdade. A seu ver, se mais as bases para sua sustentação no presente
todos fossem considerados iguais, então as diferenças porque precisavam destruir sua tradição.
individuais, que estavam asseguradas pela liberdade, O século XVIII teria encontrado na antigüidade
desapareceriam. Com isso, essas tendências clássica os laços que fundamentavam as classes na
implantariam um sistema de governo desigual e nova sociedade. Seu passado recente não poderia
despótico. Concluiu afirmando que [...] é a rápida lhes dar o que buscavam, já que suas tradições
circulação das vantagens sociais que os amedronta [...]1. tinham sempre caráter individual, caráter de classe.
Os autores da Restauração fizeram, a partir dos Nunca estavam fundadas na razão, na idéia de
mais diversos acontecimentos, a defesa da liberdade, unidade, de nação.
da consolidação do governo do Terceiro estado e da Para estabelecer uma nova sociedade, o século
conservação da civilização. Qualquer que fosse o XVIII precisou romper com tudo que pudesse
tema, era analisado a partir desta perspectiva. Apesar lembrar as origens das classes e da nação; logo, com
das diferenças, unia-os um mesmo propósito. Em tudo que lembrasse o mundo feudal, especialmente
Guizot, a defesa da civilização e do estabelecimento o cristianismo.
da liberdade burguesa encontram-se formuladas de Por essa razão, os pensadores do século XVIII
forma explícita. Também estão presentes em valorizaram o mundo antigo. Pretendendo criar um
Thierry, ainda que, às vezes, de maneira implícita. mundo novo, distinto do que então existia, buscaram
Thierry, por exemplo, fez diversos estudos sobre as [...] nas antigas repúblicas um ideal de sociedade, de
origens da nação francesa a fim de destacar a instituições e de virtude social conforme ao que a razão e o
importância da civilização criada pelas lutas entre o entusiasmo podiam conceber de melhor, de mais simples e de
Terceiro estado e a nobreza. mais elevado (Thierry, 1833:91).
Assim, a defesa que os autores românticos Os pensadores do século XVIII não concebiam,
fizeram do governo burguês não era apenas a defesa de acordo com Thierry, que qualquer lembrança do
de uma classe. Também o era da classe que reunia as seu passado medieval pudesse servir à nova
condições para conservar e desenvolver a sociedade. sociedade que pretendiam criar. O modelo de
Sob esse aspecto, defenderam o governo burguês no governo não poderia ser o da realeza absolutista, nem
século XIX. Acreditavam que era o único que reunia o estado teocrático da Igreja Cristã. Esta república
as melhores condições para proporcionar aos “grandiosa” que tencionavam estabelecer tinha, nas
homens a civilização. Suas análises da Idade Média suas bases, os modelos das repúblicas antigas porque
têm, inclusive, esta marca. a razão e a filosofia nelas dominavam.
Ao terem como fundamento das suas Para despertar o espírito do povo para as
considerações a consolidação das leis e do governo necessárias reformas, os pensadores do século XVIII
do Terceiro estado, esses autores não encararam as buscaram estabelecer semelhanças entre a nova

1 2
Guizot, F. Des moyens de gouvernement et d'oposition dans Thierry, A. Considérations sur l'histoire de France. Paris:
l'état de la France. Paris: Librairie Française de Ladvoct, Garnier, 1833, 2 vs. Essai sur l'histoire de la formation et des
1821, p. 158. progrès du Tiers État. Paris: Furne, 1853, 2 vs.
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sociedade e o mundo antigo. Por um lado, a história Não se tratava mais de condenar esta ou aquela
da França não baseava sua existência na razão e na tendência, como ocorrera no período revolucionário;
filosofia. Ao contrário, a formulação teórica que não se tratava mesmo de destruir as tradições. Ao
fundamentava suas relações durante toda a Idade contrário, a necessidade que se colocava era criar
Média e, em parte, o período moderno, era a interesses gerais, na medida em que se percebia nos
teologia. Por outro lado, o povo sentia-se atraído pela espíritos recém-saídos da Revolução uma inclinação
originalidade que se apresentava na nova sociedade e para as crenças individuais.
que se mostrava distante de tudo que conheciam, tão Foi nesse contexto que se colocou como questão
filosófica que era. a recuperação das tradições francesas. Era preciso dar
Foram essas premissas que conduziram os aos homens e às instituições um sentido de unidade
espíritos franceses da Revolução a abrir mão do seu e de tradição. Era preciso despertar o interesse pelas
passado. Segundo Thierry, a Revolução francesa questões gerais, pelas questões que ultrapassassem os
tratou de destruir seus vínculos com a história da limites do momento. Foi isto que levou os franceses
nação. “Tudo o que tinha produzido, na ordem política, a da Restauração a se voltarem para o passado.
sucessão dos acontecimentos ocorridos na Gália desde a Saliente-se: mais do que para o seu passado,
queda do Império romano, cessa de existir para a revolução voltaram-se para a história. Era a história que lhes
francesa” (Thierry, 1833:138). servia de instrumento para despertar o interesse por
Para ele, as mudanças promovidas pela questões mais gerais a partir de um passado e de uma
Revolução alteraram a situação geral da França. Elas tradição comuns aos indivíduos e às classes.
atingiram radicalmente não apenas os espíritos, mas A Idade Média tornou-se o foco das atenções dos
também o estado das propriedades. Os bens estudos históricos. Era preciso pesquisar as origens
reunidos pela Igreja durante os longos séculos da sua da nação e das classes, os povos que fundaram a
existência passaram para as mãos do Estado. As leis França, suas lutas e organizações internas.
dirigidas contra os emigrados também fizeram com Para Thierry, todos os momentos que
que seus bens fossem parcialmente confiscados. compunham o mundo medieval passaram a ser
Durante o processo revolucionário, teria havido estudados, investigados. Como exemplo, temos o
uma grande transformação na propriedade. governo de Carlos Magno, a grande questão do
Praticamente metade do território francês passara das movimento comunal dos séculos doze e treze, que
mãos das duas classes privilegiadas da nação para as da foi colocada pela [...] primeira vez no seu verdadeiro
burguesia e dos camponeses. Essas mudanças lugar [...], o papel liberal da realeza e sua influência
alteraram também as funções públicas. Os cargos civis no desenvolvimento da classe burguesa, as íntimas
e militares, até então ocupados por gentis-homens, relações que podem ser estabelecidas entre a história
[...] foram ocupados pelos homens saídos da massa, desiguais política da França e a história da Igreja ao longo da
em direitos e em condição social (Idem: 139). Idade Média, a importância do feudalismo para o
Foi dentro desse quadro de mudanças profundas desenvolvimento da civilização moderna. Entretanto,
que se formou a nova nação francesa. Segundo ressaltou o autor que as pesquisas sobre esses temas
Thierry, [...] vinte e cinco milhões de cidadãos viviam sob procuraram examinar os acontecimentos [...] sem
a mesma lei, o mesmo regulamento, a mesma ordem (Idem: exageração seja romanesca, seja filosófica [...] (Idem: 186).
139). Todavia, há que se observar que esta França A questão que estava presente nesses estudos era
una e indivisível durou muito pouco. Logo, as saber em que medida os acontecimentos, as relações
distinções no interior do Terceiro estado se contraídas entre os homens medievais, seus
manifestaram. costumes e línguas influenciaram a formação e o
Essas mudanças alteraram radicalmente o espírito desenvolvimento da civilização francesa.
dos franceses. A necessidade revolucionária de se Segundo Thierry, a necessidade verificada nos
abandonar o passado trouxe consigo o abandono dos últimos cinqüenta anos da história francesa de
antigos estudos, da história. Tudo se transformou e destruir seu passado, suas raízes, estava causando um
correspondeu às necessidades e às paixões do profundo mal aos homens, porque estavam sendo
momento. Esse estado de espírito em que somente a destruídas suas instituições, as bases da sua
ação dominava e tudo se transformava em questões existência.
do presente durou perto de dez anos. Após esse Foi isso que o levou a considerar como
período de profunda perturbação social, quando foi fundamentais os documentos medievais e as
possível aos homens um pouco de repouso e de revoluções da Idade Média. Seria através deles que
tranqüilidade, retomaram-se a reflexão, as encontraríamos o sentido das origens da
lembranças e, principalmente, a história. nacionalidade francesa. Era preciso, portanto, [...] ver
A historiografia francesa dos séculos XVIII e XIX 179

o fundo das coisas sob a letra das crônicas, tirar dos escritos consolidar uma sociedade a partir das classes que a
dos beneditinos o que estes sábios homens não tinham visto, compunham.
o que viram de uma maneira imparcial e incompleta, sem
nada concluir deles, sem medir seu alcance. Era nesses Guizot. As questões que norteavam as análises de
documentos que a história dos franceses seria Thierry da Idade Média são encontradas também em
encontrada. Segundo Thierry, não verificamos neles Guizot. A necessidade de consolidar as instituições
grandes análises políticas sobre suas épocas, pois lhes sociais, de estabelecer a paz e a ordem entre as
faltavam [...] a compreensão e o sentimento das grandes classes, de obter a unidade da nação, fez que Guizot
transformações sociais (Idem: 180-1). Todavia, o fato de se voltasse para a Idade Média. Para este, as questões
se dedicarem ao estudo das leis, dos atos públicos, relativas à Idade Média não se limitavam aos
das fórmulas judiciarias, dos contratos privados, por interesses de erudição e de crítica histórica. Segundo
terem, também, conservado estes documentos ele, [...] a idade média é ainda, para nós, uma coisa
aparentemente mortos, os monges conservaram a completamente diferente do que matéria de ciência, que
vida dessa época. corresponde a interesses mais atuais, mais diretos, [...] a
Caberia aos franceses do século XIX dar vida aos sentimentos mais gerais, mais vivos do que da pura
documentos da Idade Média. Tudo em função da 3
curiosidade . Ela tinha, pois, um interesse político. Era
importância política que a idéia de unidade e de preciso mostrar o caráter positivo e geral dessa época
história nacional exerciam sobre os espíritos histórica, já que as origens da nação encontram-se aí.
envolvidos na luta pela consolidação das novas leis e São essas premissas que informam sua interpretação.
instituições. Foi em virtude dessa questão que a Em decorrência das questões postas no século
preocupação com as origens da nação ganhou corpo XIX, não encontramos em Guizot a condenação do
entre os historiadores da Restauração. mundo feudal. Ao contrário, verificamos uma
Foi em torno da preocupação com a formação da preocupação em compreender suas instituições
nação francesa e da busca de uma identidade como uma época histórica, como uma forma de ser
nacional que os historiadores dessa nova escola se dos homens. Isto não poupa o mundo feudal,
uniram em busca do passado. Os historiadores se evidentemente, de uma visão crítica. Guizot observa:
voltaram para o passado, mais precisamente para as
[...] o estado social da idade média foi
origens do Terceiro estado. Na recuperação da
constantemente, sobretudo na França, insuportável e
história medieval, estava embutida a luta pela
odioso. Nunca o berço de uma nação lhe inspirou
consolidação da nação fundada em 1789. semelhante antipatia; nunca o regime feudal, suas
Precisamente por ser essa questão que dominava instituições, seus princípios, obtiveram esta adesão
os historiadores românticos, Thierry observou que a irrefletida, fruto do hábito, que os povos
idéia de unidade, de uma história das origens da freqüentemente deram aos piores sistemas de
França era algo novo. Essas inquietações não faziam organização social (Idem, v. III, 25).
parte das questões do século XVIII. Com o propósito de romper com a concepção
Na verdade, a diferença histórica que separava negativa que os franceses tinham do seu passado,
essas duas correntes historiográficas tão próximas e propõe-se estudar esse período da história. Pretende
que as conduziu a visões distintas da Idade Média é o mostrar que as instituições feudais contribuíram
momento em que cada uma se colocou na luta em decisivamente para o desenvolvimento da civilização.
favor do Terceiro estado. No século XVIII, as A idéia inovadora dos autores do século XIX,
questões estavam colocadas no plano da liberdade do particularmente de Guizot, é colocar como
indivíduo, da justiça dos indivíduos, daí a argumento histórico e político o fato de que as
importância adquirida pelo direito romano. As origens da nação francesa, portanto, da moderna
questões apresentavam-se sob a forma de questões civilização européia, remontam o período das
filosóficas e da necessidade de um rompimento invasões e que, fundamentalmente, sua estruturação
radical com o que pudesse estar identificado com o ocorrera a partir dos laços fundados pelo feudalismo.
mundo feudal. Na verdade, a idéia de um retorno à época das
No século XIX, as questões giravam em torno da invasões, com o intuito de captar as origens da nação,
consolidação da ordem burguesa, do intuito de se não é original do século XIX e dos autores da
dar aos indivíduos a idéia de unidade, de governo Restauração. Desde o século XVI, encontramos
único, enfim, de constituir realmente uma nação
coesa, com leis e direitos iguais para todos. Não se
tratava mais de destruir a sociedade - ou, pelo 3
Guizot, F. Histoire de la civilisation en France, depuis de la
menos, suas ordens privilegiadas -, mas de formar, chute de l'Empire Romain. Paris: Didier Émile Perrin,
1844, 4 vs., v. I, p. 25.
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obras que colocam as origens da França no seguinte, onde os homens agiam segundo sua
momento das invasões. Os movimentos de vontade, segundo suas forças, foi que Guizot ressalta
reivindicação da nobreza, por exemplo, baseam-se que existia, no mundo medieval, um profundo
nas conquistas dos francos para justificar seus instinto de liberdade. Embora essa liberdade fosse
privilégios e sua condição de classe dominante em mediada pela força, permitia aos homens uma
suas disputas com a realeza. Também na primeira grande mobilidade e diversidade de interesses. Na
metade do século XVIII, encontramos obras que se verdade, salienta que esse espírito de liberdade e de
voltam ao mundo medieval, às leis feudais, para independência que dominava na civilização tinha seu
explicar as origens da França. É o caso das obras do vínculo ou origem no mundo medieval, no homem
conde de Boulainvilliers, do abade Dubos, de bárbaro. Por isso observa que a idéia de
Montesquieu e de Mably. independência e de sociedade diversificada eram
A novidade dos autores do século XIX é terem frutos “naturais” do estágio em que a sociedade
retomado o estudo dessa época após a Revolução medieval se encontrava.
francesa. Depois das perturbações de 89, os Não constituía problema o fato dos homens
românticos foram os primeiros - na França, ressalte- medievais serem livres, de não terem nenhum laço,
se - a recuperar essa época como um período nenhuma instituição externa às suas relações
positivo da história. Além disso, outro motivo os pessoais. Ao contrário, essa era a forma de ser dessa
conduziu ao estudo da Idade Média. Foi o fato de sociedade. Esse era o caráter das suas relações as
que todas as classes da sociedade estavam buscando quais se faziam por meio de subordinação individual;
no mundo medieval a origem e a justificativa da sua as bases dessas relações era a ligação do homem ao
soberania sobre as demais classes. homem, a fidelidade do indivíduo ao indivíduo (Idem, v.
A diferença entre os autores da Restauração e as III, 58). Observa ainda que essa característica não
demais tendências do século XIX, que buscavam no existia no mundo romano. Nesse, as relações dos
passado medieval a justificativa para sua hegemonia indivíduos estavam vinculadas às cidades, não existia
reside no fato de que aqueles retomavam a história o crivo do domínio pessoal.
de todas as classes, sem exclusão de nenhuma. É Ao ressaltar que os princípios gerais dominantes
verdade que retomaram focando a história do da civilização moderna, como os da liberdade e
Terceiro estado. individualidade, tiveram suas origens no mundo
A consolidação das leis e das instituições da medieval, Guizot destaca que a civilização moderna
nação, bem como o estabelecimento da paz entre as era herdeira direta do mundo medieval. Ao apontar
classes, após o período revolucionário, constitui o para esses vínculos, afasta-se da intransigência para
móvel da análise de Guizot. Por não necessitar com a feudalidade que constatamos nos textos do
condenar a Idade Média e nem defendê-la, Guizot século XVIII. O homem medieval e suas instituições
não se encontrava na situação de ter que se foram elementos importantes no processo de
posicionar de forma parcial diante dela. Colocava-se- formação da civilização. A fidelidade, a
lhe a necessidade de entender em que medida essa espontaneidade e a liberdade eram consideradas
época havia contribuído para o desenvolvimento da características inerentes ao homem medieval. Guizot
civilização moderna e da nação francesa. aprecia e destaca sempre esse elemento positivo.
Em razão disto, Guizot não a descreve como uma Foi sob esse prisma que Guizot descreveu as
espécie de idade de ouro ou como uma época de transformações que levaram este mundo errante e
trevas, o que verificamos em outros autores. variável a sedimentar-se e formar lentamente outro,
Apresenta-a como a forma social possível para os com base na rotina, na fixação de um local para a
homens naquelas condições; como a forma que eles habitação da família, em um certo distanciamento
poderiam ter ou estavam prontos para ter. Sob este dos bandos errantes. Aos poucos, os chefes
prisma, analisa os costumes, as leis e as instituições guerreiros foram se estabelecendo apenas com
medievais. aqueles companheiros mais próximos, com seus
Ao formarem uma nova sociedade, a partir dos servidores.
escombros do mundo romano, os povos germânicos No momento em que os bandos errantes
imprimiram seu caráter, sua idéia de independência. começaram a sentir a necessidade de fixar-se em
Ao mesmo tempo, a facilidade da sujeição, a idéia de algum lugar, em deixar uma propriedade para os
movimento e de mudança estavam presentes nos seus filhos, isto significa que algo novo estava
seus espíritos. conduzindo os espíritos dos homens. Esse novo era
Pelo fato de se tratar de uma época inconstante, precisamente o feudalismo.
onde quem era livre num dia poderia não o ser no
A historiografia francesa dos séculos XVIII e XIX 181

Guizot nos transmite sempre a idéia de aversão à Idade Média caracterizavam o


movimento, de mudança. Ao mencionar que tudo posicionamento e as obras, principalmente dos
estava se transformando em feudo, adverte que este iluministas, desse período.
era o único estado social possível que poderia ter se O fato de os autores do século XVIII combaterem
estabelecido quando as invasões cessaram. a Idade Média não significa que estavam condenando a
Acrescenta que, justamente por isso, atingia a todos, história ou que a concebiam de forma moralista ou
assumia a forma universal. Em toda parte onde cessou a preconceituosa. Suas análises expressavam seu
barbárie, tudo tomou a forma feudal. Prosseguindo, empenho no estabelecimento das novas relações
observa que, no momento em que as relações sociais. Era necessário uma concepção que
estavam assumindo a forma feudal, reinava a apresentasse a Idade Média como o reino da opressão,
anarquia, o caos; tudo estava isolado. A sensação era da tirania e do obscurantismo. Afinal, as instituições
que a sociedade tinha se desconjuntado. Em seu lugar, feudais eram uma realidade - e uma realidade que
nascia uma multidão de pequenas sociedades obscuras, estorvava. Sua destruição era uma exigência para o
isoladas, incoerentes (Idem, v. III, 91-2). Nesse livre curso do novo modo de ser dos homens.
momento, quem olhasse para a sociedade teria a Ao compararmos a análise da Idade Média da
impressão de que tudo era e tudo conduzia para a segunda metade do século XVIII com a do início do
dissolução. Os homens da época revelavam receio de século XIX e, principalmente, ao entendermos as
uma destruição geral. Mas o historiador não deve ver motivações políticas que davam sustentação a um e a
apenas o caos. Do seio desse estava nascendo uma outro, percebemos que, apesar de diametralmente
nova sociedade. divergentes, não devemos apresentar uma análise
É o temor do caos a que poderiam conduzir as como superior ou preferível à outra. Ambas são
lutas travadas em sua época que informa a análise de produto da história, o que nos fornece, igualmente, a
Guizot da Idade Média. Esse autor não se possibilidade de apresentar uma dada concepção de
identificava com as forças radicais em luta. Não se Idade Média, mais do que como uma maneira de ser
posicionava ao lado dos que desejavam um retorno da Idade Média, como uma concepção da própria
ao passado nem ao lado dos que desejavam história. Rompemos, assim, com duas posturas
aprofundar as conquistas da Revolução. Estava teóricas dogmáticas. A primeira, que julga existir
empenhado na consolidação das novas relações uma maneira “científica” de entender a Idade Média.
sociais, o que não poderia ser obtido por essas duas A segunda, que acredita existir uma forma “correta”
tendências. Por isso, apresenta o passado feudal de ser do homem e, por conseguinte, apresenta o
exatamente como passado, como uma época para a processo histórico como etapas que, em última
qual não se poderia retornar. Tinha sido uma etapa - análise, levariam a sociedade a atingir essa forma.
importantíssima, diga-se de passagem - para a Além disso, ainda que os autores setecentistas
constituição da moderna sociedade, mas que esgotara sejam extremamente críticos com relação ao
suas virtualidades. Valoriza-o, reconhecendo sua feudalismo, rejeitando mesmo como absurdas suas
importância, opondo-se aos partidários da instituições, isso não nos impede de utilizá-los para o
Revolução, mas não desejava o seu retorno. entendimento das suas motivações políticas. Eles
próprios nos permitem, através das suas críticas às
O século XVIII e a Idade Média instituições feudais, apreender as diferenças históricas
entre suas lutas e as lutas dos autores do início do
Se autores do século XIX, em especial Guizot,
século XIX. Permitem-nos vincular essas lutas às
puderam apresentar o período feudal como um dado
respectivas concepções acerca da Idade Média.
momento do desenvolvimento dos homens, isso não
Faremos, primeiramente, uma análise das críticas
significa que sua concepção não tenha um
à situação da França em geral - século XVIII - e, em
comprometimento político. Essa e a dos demais
seguida, em função do próprio acirramento dos
autores encontram-se estreitamente vinculadas à
conflitos, examinaremos as críticas que Voltaire e
situação política do início do século XIX e ao
Beaumarchais fizeram às instituições de origem
posicionamento que adotaram diante dessa situação.
feudal.
Isto implica que não podemos exigir dos autores do
século XVIII idêntica compreensão dessa época.
Montesquieu. As Cartas persas4 de Montesquieu são
Nesse século, os homens enfrentavam outras
fundamentais para a análise da situação da França dos
questões.
O propósito dos escritos da segunda metade do
século XVIII era tudo abolir, lançar por terra 4
Montesquieu, Cartas Persas. Belo Horizonte: Itatiaia,
qualquer lembrança da Idade Média. O ódio, a 1960.
182 Oliveira

primórdios do século XVIII. Acima de tudo, circularem. A riqueza nas mãos da Igreja não ativava
constituem um estudo profundo da sociedade a produção, não estimulava o comércio. A
francesa desse período. agricultura estava abandonada. Prejudicava a
Através da correspondência que um personagem indústria. Nesses países, além da produção estar
fictício, de origem persa, que visitava a França, prejudicada, os homens estavam desacostumados ao
trocava com um amigo que ficara na Pérsia, trabalho. Em função das próprias condições sociais,
Montesquieu faz duras críticas à sociedade. Não os indivíduos preferiam dedicar-se ao aprendizado
perdoa nenhuma das categorias sociais. Ataca a de algumas palavras da “língua morta” do que
Igreja, os poetas, as mulheres, a nobreza e assim por trabalhar para sobreviver. Como coloca, quando um
diante. homem conseguia este pecúlio [...] já se pode deitar e
Em uma carta de 1713, observa criticamente que dormir quanto a fazer cabedal, que dentro de um claustro
cada uma das três classes ou estados que formavam o acha uma vida sossegada, que, no século, lhe teria custado
alto escalão encarava as demais com um profundo suores e fadigas (Idem, 208).
desprezo. Ao criticar a religião cristã e defender o
protestantismo, esse autor defendia não um
Na França há três espécies de estados: a Igreja, a
espada e a toga. Cada um deles dedica um soberano determinado credo, mas a liberdade para as
desprezo aos outros dois; e assim, o que deveria ser atividades que poderiam proporcionar o
desprezado por ser um parvo, muitas vezes só o é por desenvolvimento da nação francesa.
ser togado. Se nas Cartas Persas encontramos a descrição da
Até os mais ínfimos artífices contendem acerca da França do início do século XVIII como uma nação
excelência da arte que escolheram; cada um se sem liberdade e com muita miséria, com uma crítica
sobrepõe ao que abraçou outra profissão, segundo a ferina às suas classes e instituições, no livro Do
idéia que para si formou da superioridade da sua
espírito das leis5, sua obra mais conhecida e editada,
(Idem: 92).
Montesquieu dedica-se a tratar das leis sociais que
Em outra carta (nº C16), de 1718, ao discutir a dominavam os homens. Em um dos seus livros, trata
questão do aumento da população, Montesquieu foi das leis feudais e das duas tendências teóricas então
tão ferino em relação ao celibato que a Igreja Cristã existentes que explicavam as origens da nação
impunha aos seus sacerdotes quanto mais tarde o foi francesa a partir da herança medieval, quais sejam, a
Voltaire. No seu entender, ao impedir o aumento da de Boulainvilliers e a de Dubos. O primeiro
população, o celibato atingia diretamente todos os justificava a soberania da nobreza e o segundo, da
ramos da sociedade. Impedia o desenvolvimento da realeza.
agricultura, obstaculizava o comércio e prejudicava a Essas duas tendências teóricas dominavam na
indústria. Ao retirar os homens da produção para França no início do século XVIII. A partir delas,
aprenderem cinco ou seis palavras de uma língua Montesquieu propõe-se a discutir as leis feudais. Sua
morta, contribuía para diminuir a riqueza da intenção é mostrar que nenhum sistema histórico
sociedade. deveria inclinar-se mais para um lado do que para
Montesquieu observou que o celibato não era outro. Antes, deveria haver um equilíbrio entre eles.
apenas um grande mal ao indivíduo como também Em razão desse equilíbrio, analisa as leis feudais
para a sociedade. As casas religiosas constituíam-se de uma perspectiva histórica, sem tomar, em tese,
em sorvedouros de homens não somente porque os partido pela nobreza ou pelo Terceiro estado.
impedia de aumentar a população mas também Somos, todavia, obrigados a considerar as
porque canalizava grande parte dos recursos da nação observações de Thierry. Segundo esse, embora
para os sustentar. Segundo esse autor, cada casa Montesquieu tivesse se proposto a estudar as leis
religiosa apresenta uma família imortal, onde ninguém feudais sem se inclinar para nenhuma das duas
nasce, e que se mantém as custas de todas as demais (Idem: teorias que explicavam as origens da nação, acabou
207). por se inclinar pelo sistema de Boulainvilliers.
Prosseguindo em sua crítica, assinala que a Essa inclinação não constitui um problema. Ao
religião em geral não era prejudicial aos homens. contrário, por ser a nobreza a classe dominante do
Considera a católica prejudicial. Inclusive, compara mundo feudal, era “natural” que a sociedade
as condições em que se encontrava a produção em possuísse, na sua essência, o perfil dessa classe. Em
um país católico com as condições da produção de última instância, Montesquieu analisa as leis de um
um país protestante. Nota que, entre os católicos, a
maior parte dos bens do Estado estava nas mãos da
5
Igreja. Isso era um empecilho para as riquezas Montesquieu, Do Espírito das Leis. São Paulo: Abril
Cultural, 1973.
A historiografia francesa dos séculos XVIII e XIX 183

dado período histórico. Isto é o que nos interessa. Ao teorias que dominavam a França no início do século
colocar as questões dos duelos, da lei da XVIII. Sua concepção combate a tese de que uma
primogenitura, da honra de guerra, permite-nos dessas duas classes teve primazia na formação da
entender os mecanismos dessa sociedade, seus nação. Estavam em germe no momento das invasões,
valores morais, a forma de ser desses homens. mas não estavam constituídas. Isso somente veio a
Ao tratar dessa sociedade, Montesquieu não ocorrer com o estabelecimento do feudalismo.
retrata apenas seus aspectos progressistas. Também Analisamos essas duas obras em função da
aborda aqueles que poderíamos julgar nocivos ao comparação que estamos fazendo entre a forma
desenvolvimento da sociedade. Entretanto, mesmo como o século XVIII e o século XIX conceberam a
sob este aspecto, seu estudo não possui uma forma Idade Média.
que poderíamos considerar preconceituosa. Por Nas Cartas Persas, Montesquieu fez uma
exemplo, ao mostrar o caráter extremamente profunda crítica à situação em que se encontrava a
violento dos reis bárbaros, destaca o fato de que toda França, seja em relação à produção, seja em relação
a sociedade era violenta. Aceitava, por isso, que seus às classes. Procuramos mostrar que nenhum setor da
reis também o fossem. sociedade foi poupado. Suas críticas à sociedade do
A violência e a força eram os elementos século XVIII assumiram características idênticas às
fundantes das relações bárbaras. Tudo era feito e que encontramos nos autores do final desse século.
resolvido pela violência. As leis eram ditadas e Na obra Do espírito das leis, não encontramos de
desacreditadas de acordo com os interesses dos reis. forma incisiva a crítica à sociedade do século XVIII.
Não havia nenhuma instituição, nenhuma lei, que Ao tratar das origens das leis feudais, portanto, das
mediasse essa violência. Montesquieu chamou a origens da nação, Montesquieu referiu-se à forma
atenção para o fato de que o próprio cristianismo como foi gerada, como os costumes se
havia conseguido estabelecer um pouco de paz e de transformaram em leis. Não encontramos, no
trégua através da violência, pelo temor que incutia entanto, semelhanças entre sua análise e as
nos homens a idéia de salvação ou de punição. A concepções formuladas pelos iluministas. Ao
violência era a forma de ser desses homens. contrário, há uma grande diferença entre a forma
Ao tratar da lei de primogenitura, observa que como tratou as instituições medievais no início do
essa lei surgiu no momento em que os feudos se século e a maneira como esses as colocaram na
formaram. Ressalta que não fazia parte dos costumes segunda metade do século XVIII. Essa diferença
bárbaros. Apenas mais tarde passou a vigorar entre os deve-se ao agravamento dos conflitos das relações
francos. sociais na França.
Ao tratar da lei de primogenitura e dos feudos,
Montesquieu refuta a teoria de Boulainvilliers que Beaumarchais. Se nas Cartas persas, obra do início do
afirmava que desde as primeiras invasões a nobreza século XVIII, a crítica de Montesquieu incidia sobre
já existia e tudo tinha sido dado na forma de feudo. a falta de liberdade, sobre a religião, sobre a lei de
Sua análise mostra o contrário. Os feudos e a lei de primogenitura, enfim, sobre as instituições que, ao
primogenitura foram instituídos na sociedade a partir seu ver, estavam criando obstáculos ao livre
de certo grau de desenvolvimento, quando foi desenvolvimento da França, na peça de teatro As
possível aos espíritos uma certa estabilidade, certa bodas de Fígaro6, encenada pela primeira vez em 1784,
paz. Em última instância, sua intenção era mostrar a nobreza é ridicularizada, apresentada como uma
que a nobreza não existiu desde sempre na França, classe cuja marca distintiva é a inutilidade. Ainda que
mas se constituiu com os feudos. Beaumarchais não o tivesse afirmado e, talvez, muito
Esse mesmo propósito levou-o a mostrar que a menos pretendesse fazê-lo, o fato é que a conclusão
realeza da primeira raça, que denominou “reis que se podia chegar era que se tratava de uma classe
homicidas”, não tinha ligação direta com a realeza dispensável.
que se formou com o desenvolvimento do sistema Nessa peça, a crítica à nobreza tem como
feudal. Aqueles primeiros reis eram antes chefes elemento desencadeador o direito da pernada. Esse
guerreiros do que propriamente reis, isto é, que era um antigo direito que o senhor feudal tinha de
reinavam sobre a nobreza. Com isso, pretende passar a noite de núpcias com as donzelas do seu
refutar a teoria do abade Dubos, para quem a realeza domínio quando essas se casavam. Este direito
tinha existido desde as invasões e era quem havia “natural” encontrava-se em desuso no século XVIII,
formado a nação francesa.
O estudo de Montesquieu das origens da nação
6
francesa tem o caráter político de refutar essas duas Beaumarchais, As bodas de Fígaro. Rio de Janeiro: Zahar,
1991.
184 Oliveira

tinha sido substituído pelo ato simbólico do senhor os antigos conquistadores - e os comuns - os que
passar as pernas sobre o leito nupcial de seus tinham sido conquistados -, assume uma nova
servidores. feição. Os conquistadores passaram a ser
A sátira reside no fato de um senhor pretender caracterizados como aves de rapina, como tiranos.
recuperar esse “direito” por ocasião do casamento de O combate à Idade Média aparece com toda a
Fígaro. Embora seja uma obra satírica, encontramos, clareza. Note-se que Voltaire contrapõe a nobreza ao
entremeados às confusões e aos desencontros, povo. É preciso observar que, para ele, e também
momentos em que seu autor atinge de forma para essa época, o povo era constituído por todos os
fulminante a nobreza nos mais variados aspectos. trabalhadores, comerciantes, manufatores,
Para a nova sociedade, o nascimento, a origem, o camponeses, por todos os que não pertenciam aos
sangue já não eram mais elementos vitais, e sim a estados privilegiados. Prossegue traçando mais um
força de vontade, o espírito inovador, o talento. paralelo entre os privilegiados e o Terceiro estado,
Contrapõe, por isso, o talento ao direito de aprofundando a diferença entre eles. Enquanto os
nascimento. Essa contraposição constitui a tônica privilegiados guerreavam entre si, a fim de ver quem
desse período. Era o talento que caracterizava a nova ficaria com os despojos do povo, este, apesar de ser a
época. Eram as qualidades individuais, não as de parte mais numerosa e respeitável da sociedade, era
casta, que constituíam o fundamento da nova visto “como animais inferiores.”
sociedade. O domínio das leis e dos costumes feudais era
Se até então a origem, o sangue tinham sido tão grande na França no século XVIII que
fundamentais para os homens, se estes definiam a influenciava negativamente o comércio e todas as
condição do indivíduo, caracterizando uma época demais atividades ligadas às novas relações sociais.
histórica, a partir da segunda metade do século A manutenção das instituições feudais tornara-se
XVIII, preocupar-se com essas questões, aceitar esses um fardo para os homens comprometidos com as
valores significava estar comprometido com a antiga novas atividades. Conservavam-se ainda, no século
forma da sociedade. XVIII, leis que tinham sido vitais em um dado
A partir dessa época, o que se reivindicava era período histórico, na medida em que tornaram
que a linhagem não deveria mais determinar o lugar possível a preservação dos homens em uma época
que os homens deveriam ocupar na sociedade, mas o onde predominava a anarquia e o saque. A lei da
espírito, a inteligência, a vontade, o talento, enfim, primogenitura e o morgadio encontram-se as estas
eram as qualidades pessoais que deveriam ser as instituições que permitiram a organização da
marcas distintivas. sociedade.
No século XVIII, essas instituições, leis e
Pela sorte do nascimento
Um nasce rei, e outro pastor; costumes haviam perdido sua vitalidade, deixando de
O acaso determina o distanciamento ser essenciais para a existência dos homens. Tinham-
Só a inteligência pode mudar seu valor (Idem, 208). se criado novas condições que prescindiam do poder
da força como elemento de organização social.
Todavia, se em Beaumarchais verificamos uma Como as leis feudais tinham perdido sua razão de
crítica à nobreza e aos privilégios feudais por meio da ser, sua manutenção havia-se tornado
ironia, da utilização do ridículo, em Voltaire incompreensível para os cidadãos: Cem vezes fui
percebemos uma mudança significativa. Talvez tentado a atear fogo ao convento e fazer-me turco. Meus pais
devido à própria radicalização do conflito entre a me obrigaram, na idade de Quinze anos, a tomar este
nobreza e o Terceiro estado, talvez pelo próprio detestado hábito, para deixar maior fortuna a um maldito
estilo de Voltaire, o fato é que a crítica torna-se primogênito que Deus confunda! A inveja, a discórdia, o
ferina. rancor habitam no convento (Voltaire, 1979:217).
Se a permanência da lei da primogenitura
Voltaire. Voltaire foi um dos mais expressivos
incomodava e empobrecia setores proprietários da
defensores da nova época histórica que estava sociedade, obrigando-os à clausura, não era diferente
emergindo. Exatamente por isso, sua crítica às a situação dos camponeses franceses submetidos a
antigas leis sociais adquire um elevado grau de toda sorte de encargos feudais, em pleno século
radicalidade. XVIII.
Para ele, as instituições feudais não eram somente Provavelmente, de todas as instituições
obstáculos que precisavam ser superados: eram pertencentes ao mundo feudal, nenhuma atraiu
inimigas da humanidade. Precisavam, por isso, ser maior ódio dos autores do século XVIII do que a
destruídas. O direito de conquista, que então Igreja Católica. Não somente a filosofia tornou-se
justificava a divisão da sociedade entre privilegiados -
A historiografia francesa dos séculos XVIII e XIX 185

materialista para atingir o coração da religião, como Eis, pois, a situação em que se encontravam os
se escreveram romances criticando a Igreja e a homens na França. Desde os comerciantes até os
religião. camponeses, todos estavam submetidos às
Desse modo, a maneira como o século XVIII instituições feudais, ou melhor dito, ao que delas
interpreta a Igreja tem sua explicação. Esta tem suas tinha sobrado.
raízes no embate que então se travava contra a Foram essas situações históricas distintas que
feudalidade. De tal forma a constituição da sociedade fizeram com que os autores do século XVIII viessem
feudal, a consolidação e a institucionalização da a condenar as instituições medievais e os autores do
religião se confundiam que cada uma sofreu as século XIX procurassem apontar seus aspectos
vicissitudes da outra. Foi para atingir a sociedade positivos. Para os primeiros, destruir as tradições, o
feudal em seu âmago que se atacou a antiga religião, passado e, com ele, a Igreja, era condição para o
comprometida com o mundo medieval. Foi através desenvolvimento da civilização. Para os segundos,
do ataque à religião que os ilustrados do século passava-se o inverso. A recuperação das origens das
XVIII atacaram o despotismo feudal e absolutista. classes, das tradições da nação e, com elas, do papel
Nessa ocasião, portanto, a crítica à Igreja Católica era civilizador da Igreja cristã, era o único caminho
um dos elementos da luta geral contra a feudalidade. possível para consolidar o Estado formado pela
Ao combater a religião, os filósofos da Revolução Revolução. Dito de outro modo, prosseguir com a
combatiam, de um lado, o que lembrava o passado e, civilização.
de outro, a base teórica da antiga sociedade, já que, Reconhecer a razão de ser de cada uma das visões
como observou Tocqueville, a Igreja era o primeiro dos significa reconhecer sua validade histórica. Ainda
poderes políticos. Na verdade, a questão que se que opostas, ambas proporcionam ao estudioso da
colocava para o século XVIII era a separação entre o Idade Média elementos para sua compreensão
poder civil e o clerical. Todavia, para os histórica.
revolucionários, essa separação teria que ocorrer a
partir da destruição da Igreja enquanto instituição Referências bibliográficas
política.
Beaumarchais. As bodas de fígaro. Rio de Janeiro: Zahar,
Tocqueville destaca outra razão para o profundo
1991.
ataque dos filósofos à Igreja. Segundo ele, os demais
Guizot, F. Des moyens de gouvernement et d'opposition dans
poderes políticos somente se faziam sentir de vez em
l'état actuel de la France. Paris: Librairie Française de
quando. A Igreja, por sua vez, era a parte do governo Ladvocat, 1821.
que estava mais próxima porque estava [...] Guizot, F. Histoire de la civilisation en France, depuis de la chute
encarregada de fiscalizar os trâmites do pensamento e de l'Empire Romain. Paris: Didier Émile Perrin, 1884, 4v.
censurar os escritos, incomodava-os diretamente Montesquieu. Cartas persas. Belo Horizonte: Itatiaia, 1960.
(Tocqueville, 1979:75-6). Ao lutarem pela liberdade
Montesquieu. Do Espírito das leis. São Paulo: Abril
geral dos espíritos, os filósofos lutavam, em última Cultural, 1973.
instância, em causa própria. No entanto, essa luta
Thierry. Considérations sur l'histoire de France. Paris: Garnier,
assumiu a forma geral porque libertava todos do 1833, 2v.
domínio da Igreja. Thierry. Essai sur l'histoire de la formation et des progrès du Tier
Embora a Igreja tenha sido a instituição de État. Paris: Furne, 1853, 2 v.
origem medieval mais criticada e visada pelos Tocqueville, A. O antigo regime e a revolução. Brasília: UnB,
iluministas, as demais que também tiveram sua 1979.
origem nessa época e que ainda existiam na França Voltaire. Contos. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
do século XVIII foram igualmente condenadas por
Received on November 26, 1998.
estarem impedindo o livre curso da nova sociedade.
Accepted on February 23, 1999.

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