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HISTÓRIA

MODERNA

Caroline Silveira Bauer


Debates historiográficos
sobre a transição
da Idade Média
para a Idade Moderna
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:

 Identificar as diferentes abordagens teóricas de estudo da Idade


Moderna.
 Explicar o surgimento da Idade Moderna do ponto de vista econômico
e seus principais pensadores.
 Descrever o surgimento da Idade Moderna do ponto de vista cultural
e seus principais pensadores.

Introdução
A Idade Moderna foi um período de transformações generalizadas nas
sociedades europeias ocidentais, levando a modificações nos âmbi-
tos cultural, econômico, político e social. Muitas vezes, essas mudanças
apresentaram traços de continuidade do período feudal, seja porque se
iniciaram ainda durante o medievo ou porque as temporalidades das
transformações eram distintas — sabemos que o tempo da política, por
exemplo, é diferente do tempo das mentalidades.
Neste capítulo, você vai estudar as diferentes interpretações elabora-
das pelos historiadores para essas transformações ocorridas na sociedade
europeia entre os séculos XIV, XV e XVI. Assim, vai conhecer o debate do
ponto de vista econômico, ou seja, da passagem do feudalismo para o
capitalismo, e do ponto de vista cultural, com as transformações ocorridas
na cultura, nas mentalidades e na religião.
2 Debates historiográficos sobre a transição da Idade Média para a Idade Moderna

A historiografia sobre a Idade Moderna


Sabemos que a história da historiografia está inserida dentro das características
culturais, econômicas, políticas e sociais de uma época, evidenciando compo-
nentes desse “pertencimento” na escolha de seus objetos, de suas abordagens,
etc. Ainda, é preciso lembrar que a historiografia é apenas uma das possibili-
dades de abordagem da Idade Moderna: o período pode ser estudado dentro
da história da arte, da história da ciência, da história da filosofia, entre outras.
Comecemos pela ideia de “modernidade”: você sabe o que significa o
“moderno” da Idade Moderna? Segundo Falcon (1977, p. 10-11), “[...] a noção
de ‘moderno’ não basta por si só para dizer algo de concreto ou definitivo sobre
o período que queremos analisar. [...] Só aos poucos, nas sociedades ocidentais,
foi havendo uma tomada de consciência quanto à modernidade nascente, em
cujo seio já se vislumbra, indecisa, a teoria do progresso”.
Assim, modernidade vincula-se a um sentimento de ruptura com o passado.
“Um dos primeiros pensadores a utilizar a ideia de modernidade foi Charles
Baudelaire, escritor francês da segunda metade do século XIX, autor de As
flores do mal, que pensava a modernidade como as mudanças que iam se
operando em seu presente, utilizando a palavra sobretudo para a observação
dos costumes, da arte e da moda” (SILVA; SILVA, 2009, p. 297). Na passagem
da Idade Média para a Idade Moderna, “ser moderno” era se opor ao mundo
medieval, e, assim, “[...] podemos definir a modernidade como um conjunto
amplo de modificações nas estruturas sociais do Ocidente, a partir de um
processo longo de racionalização da vida” (SILVA; SILVA, 2009, p. 297).
Além das obras que serão analisadas nos debates historiográficos sobre a eco-
nomia e a cultura, vamos apontar outros exemplos. Dentro do âmbito da cultura,
podemos citar as obras do historiador francês Marc Bloch, Os reis taumaturgos,
em que estudou as origens e a natureza do poder régio e do estado monárquico
vinculadas à crença mística e religiosa da cura proporcionada pelos reis por meio
do toque, prática disseminada na realeza inglesa e francesa entre os séculos XIII e
XIX; e a obra do sociólogo alemão Norbert Elias, A sociedade de corte, que analisa
como a sociedade da corte organiza toda a sociedade do Antigo Regime a partir
das relações que se estabelecem e das reciprocidades, além dos códigos sociais.
Do ponto de vista político, há, desde os anos 1980, uma tendência historio-
gráfica preocupada com a renovação das interpretações sobre o surgimento
do Estado moderno, que se dedica a outras abordagens para além do aparato
burocrático administrativo e do direito legislativo oficial, tais como as relações
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sociais clientelares e a fidelidade, a noção de linhagem e a organização domés-


tica, etc. São representativos desses estudos os historiadores Pablo Fernández
Albadalejo, Bartolomé Clavero e António Manuel Hespanha.

Para eles, fazia-se necessário rever alguns “enviesamentos correntes” sobre


as categorias políticas desse período que, de forma anacrônica, a historio-
grafia interpretava por meio dos conceitos da política e do direito próprios
da contemporaneidade. A imagem de uma monarquia precocemente centra-
lizada escondia a pluralidade e a concorrência entre as jurisdições, assim
como as limitações éticas, doutrinais e institucionais que se impunham ao
“poder absoluto” do príncipe. Em suma, a centralidade da coroa, com suas
instituições, o seu direito e os seus oficiais, oferece uma visão distorcida,
mas, sobretudo, simplista da dinâmica política do Antigo Regime, porque a
reduz à dominação de classe, a mero instrumento da sociedade política; as
conexões com a sociedade civil passam despercebidas [...] (COELHO, 2011,
documento on-line).

Há algumas mudanças historiográficas muito importantes em relação à


modernidade que se relacionam com o desenvolvimento de estudos chamados
decoloniais ou pós-coloniais. De acordo com Ballestrin (2013), intelectuais
latino-americanos situados em diversas universidades das Américas promo-
veram uma renovação crítica e utópica das ciências sociais na América Latina
no século XX, a radicalização do argumento pós-colonial no continente.
Segundo a autora, “[...] mesmo que não linear, disciplinado e articulado, o
argumento pós-colonial em toda sua amplitude histórica, temporal, geográfica
e disciplinar percebeu a diferença colonial e intercedeu pelo colonizado. Em
essência, foi e é um argumento comprometido com a superação das relações de
colonização, colonialismo e colonialidade” (BALLESTRIN, 2013, p. 91). Foi a
partir dessas considerações que se iniciou, historiograficamente, uma crítica sobre
o colonialismo da modernidade, da hierarquia estabelecida entre as sociedades
e de uma pretensa superioridade europeia. Assim, os estudos de Anibal Quijano
(2000) e a vinculação que estabelece entre a colonialidade e a modernidade são
fundamentais: não existe modernidade sem colonialidade, ou seja, os regimes
coloniais foram encerrados, mas não a colonialidade, que é definida por Quijano
(2000) como um dos elementos específicos do capitalismo, criando uma classifi-
cação étnico-racial da população mundial e opera em todas as esferas da realidade.
Na mesma linha interpretativa, temos Enrique Dussel (2000), que destaca
um vínculo entre a modernidade e a violência, como um mito que oculta a
colonialidade. Vejamos a vinculação estabelecida pelo autor em sete pontos:
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 superioridade da civilização moderna a partir de uma visão eurocêntrica;


 a partir do estabelecimento dessa superioridade, criação de uma exigên-
cia moral de desenvolvimento dos mais “primitivos, bárbaros, rudes”;
 o caminho do “desenvolvimento” é ditado pela Europa;
 se necessário for, ou seja, se o “bárbaro” exigir, o “processo civilizador”
deve ser empregado à força;
 a dominação produz vítimas, consideradas como um ato inevitável e
no sentido de um quase-ritual de sacrifício para a civilização;
 a “modernidade” emanciparia os “bárbaros” da culpa por se oporem
ao processo civilizador;
 o processo de “civilização” pressupõe sofrimentos e sacrifícios a outros
povos “atrasados”.

Dentro da história da historiografia, foram três os principais debates sobre


o período. O primeiro deles se relaciona com a passagem ou a transição da
Idade Média para a Idade Moderna e envolve questões como a cronologia e
a periodização, sustentadas em compreensões de continuidades ou rupturas
entre esses dois momentos históricos.
Citemos, como exemplificação, a obra de Jacques Le Goff, Em Busca da
Idade Média (2005). Nela, o autor, inspirado nos debates sobre temporalidade
desenvolvidos por Fernand Braudel, desenvolve a ideia de “longa Idade Mé-
dia”, um período que teria se estendido do século IV ao século XVIII. Sua
conceituação permitiria a compreensão das continuidades existentes entre
o medievo e a modernidade, bem como as marcas indeléveis do medievo
presentes nas “novidades” da Idade Moderna. Para o autor, “[...] as mudanças
não se dão jamais de golpe, simultaneamente em todos os setores e em todos
os lugares. Eis porque falei de uma longa Idade Média que — em certos
aspectos de nossa civilização — perdura e, às vezes, desabrocha bem depois
das datas oficiais” (LE GOFF, 2005, p. 66). Para o autor (2015, p. 97), seriam
somente a Revolução Industrial e a Revolução Francesa que marcariam uma
ruptura definitiva com a Idade Média: “[...] é preciso mostrar que, nos campos
econômico, político, social e cultural, não há, no século XVI, e de fato até
meados do século XVIII, mudanças fundamentais que justifiquem a separação
entre Idade Média e um período novo, diferente, que seria o Renascimento”.
Um segundo debate diz respeito à transição do sistema feudal para o capita-
lismo mercantil, ou seja, uma discussão centrada em sistemas econômicos, que,
no entanto, revelam compreensões sobre o Estado e a sociedade. A relevância
cada vez maior de uma economia monetária interligando diferentes regiões
da Europa e do mundo e modificando de diferentes maneiras as estruturas
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socioeconômicas é, sem dúvida, um marco da modernidade, assim como a


aceleração do processo de centralização de poder operado por monarcas e
príncipes europeus desde o século XII, e que se beneficia dessa economia de
mercado na formação dos primeiros Estados modernos.
Por fim, podemos citar um terceiro debate, que diz respeito à dimensão
cultural, às transformações ocorridas nas mentalidades. Nesse sentido, é
fundamental relacionar a produção de um pensamento caracterizado pelo
antropocentrismo e pela racionalidade e as necessidades das práticas co-
merciais e mercantis, que emergem das áreas mais urbanizadas da Europa,
principalmente das cidades, como as situadas no norte da Itália.

As origens econômicas da Idade Moderna


Como afirmado anteriormente, um dos principais debates sobre as origens
econômicas da modernidade se deu em relação à transição do sistema feudal
para o sistema capitalista e em referência à origem do capitalismo na sociedade
europeia ocidental em meados dos séculos XIV, XV e XVI.
A origem do capitalismo interessou uma série de autores. Karl Marx e Max
Weber foram dois pensadores que dedicaram parte de suas investigações para
buscar a conformação das relações econômicas e sociais que deram origem
ao capitalismo. A partir de meados do século XX, os historiadores também
passaram a se interessar pela temática. Na década de 1940, o historiador francês
Maurice Dobb, em seu livro Estudos sobre o desenvolvimento do capitalismo,
lançou a tese de que o capitalismo era proveniente da circulação de mercadorias
entre o campo e a cidade, proveniente da crise estrutural do sistema feudal.
Dobb (1983, p. 7) utilizava as categorias forjadas por Marx para explicar
as características do capitalismo:

[...] temos o significado inicialmente conferido por Marx, que não buscava a
essência do capitalismo num espírito de empresa nem no uso da moeda para
financiar uma série de trocas com objetivo de ganho, mas em determinado
modo de produção. Por modo de produção, ele não se referia apenas ao estado da
técnica — a qual chamou de estágio de desenvolvimento das forças produtivas
— mas à maneira pela qual se definia a propriedade dos meios de produção e
às relações sociais entre os homens, que resultavam da de suas ligações com
o processo de produção. Assim, o capitalismo não era apenas um sistema de
produção para o mercado — um sistema de produção de mercadorias, como
Marx o denominou — mas um sistema sob o qual a própria força de trabalho
“se tornara uma mercadoria” e era comprada e vendida no mercado como
qualquer outro objeto de troca. Seu pré-requisito histórico era a concentração
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da propriedade, dos meios de produção em mãos de uma classe, que consistia


apenas numa pequena parte da sociedade, e aparecimento consequente de uma
classe destituída de propriedade, para a qual a venda de sua força de trabalho
era a única fonte de subsistência. [...] O que diferencia o uso dessa definição
em relação às demais é que a existência do comércio e do empréstimo de di-
nheiro, bem como a existência de uma classe especializada de comerciantes
ou financistas, ainda que fossem homens de posses, não basta para constituir
uma sociedade capitalista. Os homens de capital, por mais ambiciosos, não
bastam — seu capital tem de ser usado na sujeição do trabalho.

Essa interpretação gerou um debate sobre a transição do feudalismo para o


capitalismo, com outro pensador, Paul Sweezy, que se prolongou pelas décadas
de 1950 e 1960. Sweezy (1977 apud MARIUTTI, 2004), ao se contrapor à tese
defendida por Dobb, afirma que a principal característica da economia feudal
é a de produzir valores de uso. Assim, o valor de troca se desenvolve devido
ao comércio. Ao contrário de Dobb, Sweezy (1977 apud MARIUTTI, 2004)
denomina o período de transição do modo de produção feudal ao modo de
produção capitalista como um sistema de produção pré-capitalista de merca-
dorias, pois os elementos predominantes não eram feudais e nem capitalistas,
propondo a coexistência de diversas classes dominantes.
Ainda no âmbito dos estudos marxistas, o historiador inglês Perry Anderson
publicou, na década de 1970, o livro Linhagens do Estado Absolutista, no qual
trabalhou as origens do capitalismo a partir do surgimento do estado absolutista.
Para o autor (ANDERSON, 1998), as estruturas de poder deveriam ser enten-
didas a partir das relações econômicas, com o objetivo de legitimar e garantir a
dominação de uma classe sobre outra. Para Anderson (1998), não existiria uma
ruptura no modo de produção na passagem do medievo para a modernidade e,
dessa forma, o Estado absolutista não representaria uma reordenação do poder na
sociedade: seu objetivo seria manter a ordem feudal. Isso não significa que essas
estruturas possuíssem inovações, como a codificação do direito, a formação de
exércitos regulares, a burocracia permanente, a unificação de sistemas tributários,
a diplomacia; mas toda essa maquinaria estaria voltada para um objetivo que
não é novo: a manutenção da ordem feudal, a dominação e a exploração dos
camponeses a partir de uma relação que os mantém vinculados à terra.
Contudo, Roiz (2009) assinala que todas essas análises naturalizavam o
surgimento do capitalismo e que a passagem das sociedades para esse sistema
se tratava de uma fatalidade ou necessidade a partir de uma visão linear e
progressiva da história. Essa visão era assentada em um marxismo vulgar,
em que as transformações econômicas, políticas e sociais deveriam ser com-
preendidas a partir da sucessão de “modos de produção”.
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Criticando essa versão determinista da história, a historiadora estadunidense


Ellen Wood propôs uma nova interpretação para as origens do capitalismo
em seu livro As Origens do Capitalismo, lançado em 1999 e publicado em
português em 2001. De acordo com a autora (WOOD, 2001, p. 13-14):

[...] na maioria das descrições do capitalismo e de sua origem, na verdade não


há origem. O capitalismo parece estar sempre lá, em algum lugar, precisando
apenas ser libertado de suas correntes — dos grilhões do feudalismo, por
exemplo — para poder crescer e amadurecer. O efeito dessas explicações é
enfatizar a continuidade entre as sociedades não capitalistas e capitalistas e
negar ou disfarçar a especificidade do capitalismo.

Diferentemente do apontado pela historiografia sobre a origem do capitalismo,


Wood afirma que o capitalismo não é o mercado (já que não se trata de uma
originalidade da modernidade), não é o Estado (pois havia outras instituições
prévias responsáveis pela organização institucional do território), nem o dinheiro ou
trabalho, que existiam em outras épocas. Não seriam esses fatores que explicariam o
que é o capitalismo e sua especificidade nessa conjuntura histórica (WOOD, 2001).
Para Wood (2001, p. 14),

O capitalismo é um sistema em que os bens e serviços, inclusive as necessidades


mais básicas da vida, são produzidos para fins de troca lucrativa; em que até
a capacidade humana de trabalho é uma mercadoria à venda no mercado; e
em que, como todos os agentes econômicos dependem do mercado, os requi-
sitos da competição e da maximização do lucro são as regras fundamentais
da vida. Por causa dessas regras, ele é um sistema singularmente voltado
para o desenvolvimento das forças produtivas e o aumento da produtividade
do trabalho através de recursos técnicos. Acima de tudo, é um sistema em
que o grosso do trabalho da sociedade é feito por trabalhadores sem posses,
obrigados a vender sua mão de obra por um salário, a fim de obter acesso aos
meios de subsistência. No processo de atender às necessidades e desejos da
sociedade, os trabalhadores também geram lucros para os que compram sua
força de trabalho. Na verdade, a produção de bens e serviços está subordinada
à produção do capital e do lucro capitalista. O objetivo básico do sistema
capitalista, em outras palavras, é a produção e a autoexpansão do capital.

Dessa forma, a autora desenvolve uma análise não somente sobre o que é o
capitalismo, mas combate as versões deterministas da história, que abordavam o
processo histórico na Europa Ocidental como uma sucessão de modelos de produ-
ção, como se o feudalismo fosse sucedido, naturalmente, pelo sistema capitalista.
Wood afirma que, para além das variedades existentes nas relações feudais, de
acordo com cada um dos países, a desintegração das relações vassálicas deu origem
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a outras tantas formas de organização econômica e social das quais o capitalismo,


tal como estudamos em uma vertente mercantilista, foi apenas uma.
A interpretação mais inovadora da autora reside, entretanto, no desloca-
mento da explicação da origem do capitalismo das atividades comerciais e
mercantis para as atividades agrárias.
Essa visão é compartilhada por Le Goff (2015, p. 99), em sua proposição
de uma “longa Idade Média”, em que existe uma permanência no imaginário,
nas práticas sociais, nas formas de trabalho e na economia de práticas do
medievo: “[...] no início do século XVI, e mesmo além dele, subsiste na Europa
uma economia rural de longa duração. Essa ruralidade, então, até mesmo se
reforça, dado que aqueles que enriquecem graças ao comércio e ao banco
nascente reinvestem grande parte de seus benefícios nas terras. É o caso, na
Itália, dos banqueiros genoveses e florentinos [...]”.

As origens culturais da Idade Moderna


A origem cultural da Idade Moderna, ou seja, o marco que representaria
uma ruptura em relação ao medievo, foi consagrada historicamente como o
Renascimento, caracterizado como um movimento intelectual, centrado no
homem, propiciado pelo desenvolvimento comercial e os debates culturais
realizados nas universidades e em círculos de saber, como entre os humanistas.
Essa visão foi forjada no século XIX por historiadores como Michelet e
Burckhardt, que, ao estabelecerem parâmetros para seus presentes, elabora-
ram determinadas narrativas para o passado. “Definido por Michelet como
uma ‘passagem ao mundo moderno’, o Renascimento marca um retorno ao
paganismo, ao gozo, à sensualidade, à liberdade. Foi a Itália que ensinou isso
às outras nações europeias — em primeiro lugar à França, por ocasião das
guerras da Itália, e depois à Alemanha e à Inglaterra” (LE GOFF, 2015, p. 49).
Para Burckhardt (2009 apud LE GOFF, 2015, p. 54), “[...] diferentemente da
Idade Média, em que o indivíduo se encontrava limitado pela religião, pelo
ambiente social, pelas práticas comunitárias, o homem do Renascimento pode,
sem entraves, desenvolver sua personalidade”.
Percebemos com essas citações como ambos os autores se preocupavam
em marcar uma ruptura entre a Idade Média e a Idade Moderna no âmbito da
cultura. Jacob Burckhardt teria sido um dos primeiros a elevar a categoria de
“Renascimento” a um conceito, categoria histórica possuidora de unidade e
abrangência, que baliza e define a modernidade europeia (FLORENZANO,
1996). “Coube ao historiador holandês Johan Huizinga (1872-1945) o mérito
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de ter demonstrado — no ensaio O problema do Renascimento (1920) — que


a palavra Renascimento, indicando um determinado período da civilização,
entrou em uso, pela primeira vez, nos círculos intelectuais parisienses, na
década de 1820” (FLORENZANO, 1996, p. 20).
O Renascimento, sem dúvida, foi um momento em que houve um importante
desenvolvimento das artes plásticas e visuais, da ciência e do pensamento, e que
trouxe um interesse acentuado pela produção cultural da Antiguidade Clássica
greco-romana. Entretanto, segundo Le Goff (2015), as características utilizadas
para assinalar as especificidades do Renascimento não seriam suficientes para
conformar um novo período histórico. Algumas das formas de pensamento que
marcariam a mudança, como o humanismo, o individualismo e o racionalismo
podem ser encontradas desde o século XII na sociedade medieval.

Colombo, medieval ou moderno? Cortés, nobre feudal ou humanista? Bar-


tolomeu de las Casas, precursor da modernidade dos direitos do homem ou
herdeiro tardio da escolástica tomista? Só um pouco menos artificiais são as
tentativas para separar as duas facetas de uma mesma personalidade, uma
moderna e outra medieval. Assim, Colombo poderá ser julgado moderno
por sua audácia de aventureiro, mas medieval por seu misticismo. Como
se uma não fosse intimamente ligada à outra, e como se o misticismo
católico, com Teresa de Ávila e muitos outros, não alcançasse os cumes
durante a época dita moderna! Todas essas interrogações e hipóteses re-
pousam sobre uma visão convencional (e largamente pejorativa) da Idade
Média, e supõem que exista uma ruptura tão radical entre a idade Média e
o Renascimento que eles constituiriam duas categorias exclusivas, e que,
mesmo se renunciamos a uma data fronteiriça única, continue possível
classificar cada ser ou cada foto conforme essa alternativa. Mas se se
admite que essa visão deva ser criticada, chega-se à ideia de que a maior
parte das leituras da Conquista repousa sobre uma visão dramaticamente
deformada da Idade Média e sobre uma ideia insustentável da ruptura entre
esta e os tempos modernos (BASCHET, 2006, p. 32).

Mais recentemente, em livro publicado pela primeira vez em inglês em 1987,


Peter Burke (2008) criticou as interpretações de Burckhardt, Michelet e outros, que
confeririam ao Renascimento o caráter de um período específico, com caracterís-
ticas homogêneas, o que foi classificado por Burke como um “mito”. Para Burke
(2008), esses autores procuraram estabelecer um contraste, um rompimento entre
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o Renascimento e a Idade Média, e entre a Itália e o restante da Europa, e, nessa


empreitada, ignoraram que muitas das invenções celebradas durante o Renasci-
mento têm sua origem na Idade Média, para além da sobrevivência de tradições.
Em suas próprias palavras,

Como todas as autoimagens, a dos académicos e dos artistas do Renascimento


era tão reveladora quanto enganadora. [...] Estes homens deviam mais do que
julgavam à “Idade Média” que tão frequentemente denunciavam. Se sobres-
timaram a sua distância do passado recente, subestimaram a sua distância
do passado longínquo, a Antiguidade que tanto admiravam. A sua versão do
Renascimento era um mito na medida em que apresentava uma descrição enga-
nadora do passado: que era um sonho, um desejo cumprido, uma re-encenação
ou representação do antigo mito do eterno retorno (BURKE, 2008, p. 12).

Dessa forma, alguns autores têm sugerido compreender o Renascimento


muito mais como uma síntese de inovações que foram sendo gestadas em um
longo período, mais que características de um novo momento histórico. Isso
não significa negar as inovações artísticas, científicas e filosóficas, mas, sim,
compreendê-las como resultado de um processo que se dá durante o medievo.
Do ponto de vista cultural, também existem os debates sobre a Reforma
Protestante e seu caráter de rompimento em relação a uma ordem anterior.
Mesmo entre os historiadores que aceitam uma longa duração para a Idade
Média, existe uma relutância em prolongar esse período para a além do século
XVI, em função das consequências culturais, econômicas, políticas e sociais
da Reforma Protestante e da Contrarreforma Católica. A quebra da unidade da
Igreja Católica, as mudanças no mapa político europeu, as guerras em maior
escala, como a Guerra dos Trinta Anos, são mudanças importantíssimas.
Contudo, na defesa de seu argumento de uma “longa Idade Média”, Le Goff
(2015) afirma, como sabemos, que a Idade Média é uma época profundamente
religiosa, marcada pelo poderio da Igreja e pela presença da religião em todas
as esferas do cotidiano. Sem dúvida alguma, a Reforma e as Guerras Religiosas
representaram uma mudança, quase uma ruptura nesse cenário.

A fé cristã apresenta-se doravante sob ao menos duas formas, a católica


tradicional e a reformada nova, que também é chamada de protestante
e que compreende diversas orientações: anglicanismo na Grã-Bretanha,
luteranismo e calvinismo no continente, sendo que o primeiro se espalha
preferencialmente nas regiões germânicas e nórdicas, e o segundo nas de
língua romana (LE GOFF, 2015, p. 86).
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Entretanto, ainda assim, trata-se do cristianismo. Para além da adoção ou


não da perspectiva de uma longa duração da Idade Média na questão religiosa,
é importante assinalar que houve, sim, uma continuidade bastante importante:
mesmo que tenha havido uma fragmentação da Igreja Católica, a religião seguiu
como uma força dominante na vida social, intrinsecamente vinculada à política.
Assim, a polarização entre o teocentrismo e o antropocentrismo, como se houvesse
um processo imediato e definitivo de laicização e secularização das relações
econômicas, políticas e sociais, é falsa. Isso somente aconteceria no século XVIII,
quando poderíamos vislumbrar uma verdadeira ruptura nas mentalidades.

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Leituras recomendadas
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