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Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas como um passado que existe como um traço, mas sim como um presente vivo.
dimensões básicas 3 Essa transformação do tempo em si, de um tempo históricocronológico para
o que parece ser uma forma de temporalidade anacrônica por meio da qual
Nelson MaldonadoTorres grupos são expostos a lógicas e conflitos que são considerados como não mais
existentes, é parte dos legados da colonização e um alvo central da crítica dos
esforços decoloniais. Por isso a perspectiva do ativista decolonial tornase in‐
dispensável a qualquer esforço intelectual, incluindo aquele do historiador, e
Em sua breve, porém generalizada explicação sobre a descolonização, também por isso não se pode ficar satisfeito com a relação que Chamberlain
Chamberlain (1985, p. 1) observa que ela “é comumente entendida como o coloca entre libertação e descolonização ou entre investigação histórica e ati‐
processo pelo qual os povos do terceiro mundo ganharam a independência de vismo.
seus governantes coloniais”. Em contraste com outros pesquisadores nas ex Tomando como exemplo Os condenados da terra , de Frantz Fanon
colônias que argumentavam que a ideia de descolonização “poderia ser em‐ (2004), eu uso descolonização como um conceito que está fundamentalmente
pregada para descrever que as iniciativas para a descolonização [...] foram to‐ alinhado com o conceito de libertação, pelo menos nos modos que tem sido
madas pelos poderes metropolitanos”, e que preferem, como alternativa, o usado pelos movimentos que se opõem à colonização. Libertação expressa os
conceito de libertação, Chamberlain (1985, p. 1) afirma que um historiador desejos do colonizado que não quer atingir a maturidade e tornarse emanci‐
“deve tentar manter o equilíbrio” entre a verificação das “políticas dos pode‐ pado como os europeus iluministas que condenam a tradição – não que essa
res coloniais e as ideias e iniciativas que vieram do colonizado”. Ela também seja a única forma de conceber a emancipação –, mas sim organizar e obter
argumenta que historiadores devem “ver o problema em uma perspectiva sua própria liberdade. Um objetivo típico desses esforços tem sido tanto a in‐
mais longa”, traçando, diferentemente de libertadores e ativistas decoloniais dependência política quanto a econômica. Independência, todavia, não neces‐
não historiadores, as raízes dos movimentos de descolonização ocorridos en‐ sariamente implica descolonização na medida em que há lógicas coloniais e
tre 1947 e 1965. representações que podem continuar existindo depois do clímax específico
O apelo de Chamberlain para o equilíbrio e para uma “perspectiva mais dos movimentos de libertação e da conquista da independência. Nesse contex‐
longa” é adequado. Entretanto, limites muito óbvios aparecem em seu estudo to, decolonialidade como um conceito oferece dois lembreteschave: primei‐
quando se considera que: a) os impérios europeus permanecem como sua ro, mantémse a colonização e suas várias dimensões claras no horizonte de
principal unidade de análise; b) grande parte do seu livro concentrase no luta; segundo, serve como uma constante lembrança de que a lógica e os lega‐
Império Britânico; e c) os vastos impérios espanhol e português são mencio‐ dos do colonialismo podem continuar existindo mesmo depois do fim da colo‐
nados somente brevemente, principalmente no capítulo intitulado “Os impér‐ nização formal e da conquista da independência econômica e política. É por
ios dos menores poderes europeus”. O texto não oferece considerações apro‐ isso que o conceito de decolonialidade desempenha um importante papel em
fundadas sobre a relevância das doutrinas da “descoberta”, bem como das ex‐ várias formas de trabalho intelectual, ativista e artístico atualmente.
pedições e dos conflitos anteriores na transformação das formas de conquista Tentarei abordar aqui alguns desses problemas e oferecer uma visão da de‐
e colonização que emergiram com a virada da centralidade do Mar Medi‐ colonialidade que considere o significado da colonização e a agência do colo‐
terrâneo para o Oceano Atlântico na história e no comércio europeu e na for‐ nizado. Isso envolverá um engajamento sério com a “perspectiva mais longa”
mação do Novo Mundo. Essa “perspectiva mais longa” é crucial para se en‐ que Chamberlain invoca, a qual tem sido parte da luta por libertação, mas
tender a colonização e a descolonização, especialmente quando grupos coloni‐ também do esforço para compreendêla por meio das lentes teóricas produzi‐
zados e outrora colonizados tendem a experimentar partes dessa história não das por pensadores do antigo e do atual mundo colonizado, muitos dos quais
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foram ou são ativistas e artistas. Esse insight teórico oferece ao menos duas A modernidade ocidental é comumente entendida como a época da mais
contribuições importantes. Primeiro, ajuda a combater a linearidade da tempo‐ avançada forma de civilização em comparação a outros arranjos sóciocultur‐
ralidade que integra a lógica das ciências europeias: historicismo, empiricis‐ ais, políticos e econômicos que aparecem como menos civilizados, não civili‐
mo e positivismo. Essas correntes do pensamento tendem a abordar o conhe‐ zados, selvagens ou primitivos. A rejeição das teses de uma hierarquia de cul‐
cimento como uma soma de dados que são observados, quantificados e anali‐ turas e da superioridade da modernidade ocidental pode ser necessária, mas
sados. Os dados têm sido o modo predominante de se referir aos potenciais não é de forma alguma suficiente para desafiar as bases de uma ordem inter‐
objetos de conhecimento, como se eles aparecessem em um campo de tempo‐ nacional e de instituições que têm esse tipo de lógica e ethos colonizante. A
ralidade linear, que torna extremamente difícil explorar fenômenos que refle‐ razão para isso é que o significado e a estrutura de instituições, práticas e re‐
tem ou são encontrados na intersecção de temporalidades. Desse ponto de vis‐ presentações simbólicas ocidentais modernas já pressupõem conceitos de pro‐
ta, colonização e descolonização são a soma do visível e/ou dos eventos quan‐ gresso, soberania, sociedade, subjetividade, gênero e razão, entre muitas ou‐
tificáveis que aparecem dentro de um certo período de tempo, ambas funda‐ tras ideiaschave que têm sido definidas como pressuposto de uma distinção
mentalmente pertencentes a um momento do passado. A decolonialidade, co‐ fundamental entre o moderno e o selvagem ou primitivo, hierarquicamente
mo uma luta viva no meio de visões e maneiras competitivas de experienciar entendidas ou não. E, sendo assim, há caminhos outros múltiplos nos quais os
o tempo, o espaço e outras coordenadas básicas de subjetividade e sociabilida‐ conceitos de civilização e de modernidade têm sido definidos por meio de di‐
de humana, precisa de uma abordagem diferente. cotomias e definições essencialistas. É portanto necessário refletir criticamen‐
A teoria decolonial, como abordarei aqui, criticamente reflete sobre nosso te sobre o enredamento de marcadores de civilização com ideias que postulam
senso comum e sobre pressuposições científicas referentes a tempo, espaço, outros povos como primitivos ou selvagens, e sobre as formas nas quais a mo‐
conhecimento e subjetividade, entre outras áreaschave da experiência huma‐ dernidade ocidental sempre pressupõe definições e distinções coloniais dessa
na, permitindonos identificar e explicar os modos pelos quais sujeitos coloni‐ natureza.
zados experienciam a colonização, ao mesmo tempo em que fornece ferra‐ Tipicamente, o Iluminismo europeu é considerado o principal e, às vezes,
mentas conceituais para avançar a descolonização. Esse simultâneo engaja‐ o único período histórico relevante para o entendimento do ideal de civili‐
mento construtivo e crítico é a segunda contribuição fundamental e uma zação ocidental moderna. É por isso que a análise do colonialismo moderno
funçãochave do pensamento e da teoria decolonial. Mais especificamente, o tende a focar nos impérios e nas formações dos estadosnações dos séculos
pensamento e a teoria decoloniais exigem um engajamento crítico com as teo‐ XVIII e XIX, que desempenharam importante papel nesse processo – nomea‐
rias da modernidade, que tendem a servir como estruturas epistemológicas das damente, Inglaterra e França. Entretanto, como Brett Bowden (2009) demons‐
ciências sociais e humanidades europeias. O tempo/espaço da descolonização tra, a chave para o estabelecimento do “padrão de civilização” característico
não é considerado pela modernidade europeia; ao contrário, promove uma de todos os impérios europeus modernos voltase para a “descoberta” do No‐
ruptura com ela. De uma perspectiva moderna, entretanto, a decolonialidade é vo Mundo e para a conquista das Américas.
frequentemente representada como tentativa de retorno ao passado ou como A “descoberta” teve implicações profundas múltiplas, bem como um gran‐
um esforço em retroceder a formações culturais e sociais prémodernas. de impacto sobre a noção de ser civilizado. Como Bowden coloca: “Uma vez
Então, eu começarei aqui com um esforço em clarificar a relação entre moder‐ que foi determinado que ao mundo colonial faltava civilização e, consequen‐
nidade e colonização. temente, soberania, foi quase inevitável que o direito internacional criasse por
si só ‘o grande projeto de salvação de levar os marginalizados ao domínio da
Civilização moderna ocidental como modernidade/colonialida‐ soberania, civilizando o incivilizado e desenvolvendo as instituições e técnic‐
de as jurídicas necessárias para essa grande missão’” (BOWDEN , 2009, p. 128).
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Mais especificamente, “[o]s precedentes e leis estabelecidas, seguindo o con‐ fica mundo. A razão para isso é que, a partir de 1492, os humanos nos dois
tato de europeus com as pessoas do Novo Mundo, informariam depois disso a hemisférios foram conectados, o comércio tornouse global e alguns cientistas
natureza dos subsequentes encontros entre europeus e pessoas indígenas ao sociais proeminentes se referiram a esse tempo como o começo do sistema
redor do globo” (BOWDEN , 2009, p. 131). mundomoderno” (p. 175). As implicações destas teses são claras para os au‐
Para fundamentar sua tese, Bowden considera várias opiniões sobre a “de‐ tores. Para eles, “a órbita spike implica que o colonialismo, o comércio global
scoberta” das Américas. Uma delas é a ideia de Tzvetan Todorov, que afirma e o carvão promoveram o Antropoceno” (p. 177).
que “a descoberta da América, ou dos americanos, é certamente o encontro Essas considerações apoiam a afirmação de Beate Jahn, que diz que “co‐
mais surpreendente da nossa história europeia. Nós não temos o mesmo senso ntra as convicções de (quase todos) os pesquisadores europeus”, foi “a desco‐
de diferença radical na ‘descoberta’ de outros continentes e de outros povos” berta do indígena americano” que “desencadeou a revolução, ou talvez mes‐
(TODOROV , 1999 apud BOWDEN , 2009, p. 48). Os próprios intelectuais ingle‐ mo a emergência do que se tornaria mais tarde as ciências sociais modernas”
ses dos séculos XVII e XVIII atestaram o enorme significado do evento. (JAHN , 2000, p. 95). Beate Jahn identifica três níveis nos quais essa revolução
Bowden cita John Locke, que afirmou que “no início todo o mundo era Amér‐ operou: no epistemológico, no ontológico e no ético (JAHN , 2000, p. 95). Es‐
ica” (LOCKE , 1965 [1690] apud BOWDEN , 2009, p. 48). Podemos adicionar ses níveis dialogam com as dimensões básicas da realidade que foram identi‐
Adam Smith, que argumentou que “a descoberta da América e a passagem ficadas pelos teóricos decoloniais, artistas e ativistas como eixos fundamen‐
para as Índias Orientais pelo Cabo da Boa Esperança são os dois maiores e tais da colonialidade no mundo moderno: saber, poder e ser (LANDER , 2000;
mais importantes eventos registrados na história da humanidade” (SMITH , MALDONADOTORRES , 2007; MIGNOLO , 2000; QUIJANO , 1991, 2000; WYNTER ,
2005 [1776], p. 508). As impressões não se atenuam quando se chega mais 2003). O trabalho coletivo desses e de outros autores leva em consideração
perto do momento da “descoberta”. Em 1551, Francisco López de Gómara que, ao invés de conceber o colonialismo como algo que acontece na moder‐
afirmava que “[o] maior evento desde a criação do mundo, salvo a Encar‐ nidade em conjunto com outros períodos históricos, é mais sensato afirmar
nação e morte Daquele que o criou, é a descoberta das Índias, assim chamadas que a modernidade por si só, como uma grande revolução imbricada com o
de Novo Mundo” (LÓPEZ DE GÓMARA , 1979, p. 7). paradigma da “descoberta”, tornouse colonial desde seu nascedouro. Isso le‐
Os ecos dessas visões sobre a importância da “descoberta” das Américas va a uma mudança no modo de se referir à modernidade ocidental: de moder‐
podem ser encontrados no trabalho de Simon L. Lewis e Mark A. Maslin, que nidade simplesmente, como oposto ao prémoderno ou não moderno, para
propuseram que “[o]s impactos do encontro das populações humanas do Ve‐ modernidade/colonialidade, como oposto ao que está além da modernidade. É
lho e do Novo Mundo [...] podem servir para marcar o início do Antropoce‐ esse “além da modernidade”, em vez de simplesmente independência, que
no” (LEWIS; MASLIN , 2015, p. 175). O Antropoceno referese à época da tornase o principal objetivo da decolonialidade.
história mundial em que os seres humanos se tornam os agentes principais da
mudança geológica. Uma data usual para o começo de tal momento é a Revo‐
Dez teses sobre colonialidade e decolonialidade
lução Industrial, mas Lewis e Maslin a rejeitam, porque, como outros momen‐ A mudança no entendimento de modernidade, descoberta, colonialismo e
tos históricos propostos, a Revolução Industrial “não resultou de um marcador descolonização requer a definição de múltiplas ideias como parte de uma
globalmente sincrônico” (p. 177). Depois de se referir às várias implicações analítica de colonialidade e decolonialidade. Também é preciso uma noção da
da “chegada dos europeus no Caribe em 1492” (p. 174) e às mudanças massi‐ relação entre essas ideias e ao menos uma arquitetura conceitual básica que
vas que ocorreram desde então, eles sugerem “nomear a queda de CO2 na at‐ possa servir como referência no esforço de avançar a decolonialidade. Aqui
mosfera de ‘órbita spike’ e nomear as mudanças, que fazem de 1610 o co‐ apresento dez teses que objetivam contribuir para esse trabalho. 4
meço do Antropoceno, de ‘hipótese Orbis’. A palavra orbis , em latim, signi‐ Primeira tese: Colonialismo, descolonização e conceitos relacionados
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provocam ansiedade (MALDONADOTORRES , 2011a, 2011b, 2016a, 2016b). Não há nada mais terrív‐
Os impérios ocidentais e os Estadonações modernos usaram múltiplos el para os sujeitoscidadãos modernos do que a possibilidade desse giro. A
mecanismos para incutir um senso de segurança e legitimidade em seus sujei‐ imaginação deles é preenchida com imagens de vingança, e as reivindicações
tos e suas constituições. Colonialismo, descolonização e conceitos relaciona‐ mais básicas de justiça são vistas como evidência de discriminação reversa.
dos questionam esse senso de legitimidade no qual o sujeitocidadão moder‐ A ansiedade trazida por esses conceitos de colonização e descolonização
no, o moderno Estadonação e outras instituições modernas são construídas, está, portanto, ligada à fobia em relação às pessoas escravizadas e colonizadas
gerando, desse modo, desestabilidade. Isso inclui narrativas heroicas das ori‐ e ao terror que os sujeitoscidadãos sentem quando eles concebem o coloniza‐
gens e os propósitos das instituições modernas. Nesses relatos, o “direito” está do como um agente. Respostas a essa situação são viscerais e objetivam rela‐
sempre do lado do poder que propiciou a sua formação. Territórios indígenas tivizar a questão sobre o colonialismo e a descolonização, bem como mitigar
são apresentados como “descobertos”, a colonização é representada como um a posição do colonizado como um questionador: “isso aconteceu no passado e
veículo de civilização, e a escravidão é interpretada como um meio para aju‐ precisamos nos mover para frente”, “mas meus antepassados também foram
dar o primitivo e subhumano a se tornar disciplinado. Levantar a questão so‐ colonizados”, “meus pais eram pobres”, “eu também sou minoria”, “na verda‐
bre o significado e a importância da colonização constituise num desafio ao de, nós todos somos racistas”, “minha esposa (meu marido ou meu melhor
usual conceito de “descoberta”, e traz à tona o caráter problemático da apro‐ amigo) é como você”, “eu tento me juntar, mas vocês me rejeitam”, etc., etc.,
priação de terras e recursos e suas implicações até hoje. Também desafia a le‐ são algumas amostras das respostas. Outra resposta relacionada muito popular
gitimidade das fronteiras dos Estados e a respeitabilidade de qualquer concei‐ atualmente é “todas as vidas importam”, face à afirmação de que “vidas ne‐
to normativo e qualquer prática mediante as quais os cidadãos e as insti‐ gras importam”, em um contexto em que os negros são desproporcionalmente
tuições modernas justificam a ordem moderno/colonial, incluindo o sentido mortos pela polícia.
normativo de raça, gênero, classe e sexualidade, entre outros marcadores da Levando em consideração uma pista de Césaire, que começa o Discurso
diferença sociogenicamente gerados. Em resumo, levantar a questão do colo‐ sobre o colonialismo com uma explicação sobre civilização e decadência, po‐
nialismo perturba a tranquilidade e a segurança do sujeitocidadão moderno e demos nos referir a essas repostas como formas de uma decadência genocida
das instituições modernas. e homicida (CÉSAIRE , 2000, p. 29). Presa em uma atitude colonial decadente
A segunda razão pela qual o colonialismo, a descolonização e os conceitos promovida pela civilização ocidental moderna também decadente, a maioria
relacionados despertam ansiedade é que, por trás da questão do significado do dos sujeitoscidadãos se engaja no que Fanon chamou de jogo “de gato e rato‐
colonialismo e da descolonização, está o colonizado como um questionador e ”, cujo objetivo é atrasar para sempre o momento em que as questões sobre
potencial agente. Isso é notavelmente diferente da posição esperada deles co‐ colonialismo e descolonização são tomadas como verdadeiramente fundamen‐
mo entidades subhumanas dóceis. A ordem das coisas no mundo moderno/‐ tais (FANON , 2008, p. 99) e em que o colonizado aparece como um legítimo
colonial é tal que as questões sobre colonização e descolonização não podem questionador.
aparecer, a não ser como mera curiosidade histórica. Esperase que o coloni‐ O porquê de a produção de ansiedade caracterizar os conceitos de colonia‐
zado ou excolonizado seja tão dócil quanto grato. Conotações patológicas lismo e descolonização, assim como o colonizado como um agente questiona‐
específicas são dadas para diferentes corpos e diferentes práticas, dependendo dor, ser a primeira tese devese ao fato de essa chamar a atenção para o que
do gênero específico, do sexo, da raça e de outros marcadores. representa um a priori performativo em relação a todas as teses subsequentes.
Como ficará claro nas outras teses, trazer a questão do significado e da im‐ O a priori performativo é uma demonstração da atitude colonial decadente
portância do colonialismo indica um giro decolonial no tema e o começo de que tende a ser expressa através de múltiplas formas de evasão e máfé, em
uma atitude decolonial que levanta questões sobre o mundo moderno/colonial que os padrões da razão constantemente mudam no esforço de fazer as
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questões sobre colonialismo e descolonização inertes e irrelevantes. Nesse moderno e colonialidade. Colonialismo pode ser compreendido como a for‐
sentido, esta primeira tese é o resultado de uma metarreflexão sobre o próprio mação histórica dos territórios coloniais; o colonialismo moderno pode ser
ato de pronunciar alguma tese considerando a colonização e a descolonização. entendido como os modos específicos pelos quais os impérios ocidentais colo‐
Seria normal para a maioria dos leitores cair em várias formas de decadência nizaram a maior parte do mundo desde a “descoberta”; e colonialidade pode
ao passar por cada uma das teses. Um engajamento justo com as teses seria de ser compreendida como uma lógica global de desumanização que é capaz de
fato um ato impossível dentro de uma ordem normativa de modernidade/colo‐ existir até mesmo na ausência de colônias formais. A “descoberta” do Novo
nialidade. Pensadores, artistas e ativistas decoloniais precisam estar prepara‐ Mundo e as formas de escravidão que imediatamente resultaram daquele
dos para lidar ou decidir não lidar com essa situação. Mas, desde que se quei‐ acontecimento são alguns dos eventoschave que serviram como fundação da
ra falar sobre esses tópicos no mundo moderno/colonial, a atitude a priori colonialidade. Outra maneira de se referir à colonialidade é pelo uso dos ter‐
será de evasão e máfé. mos modernidade/colonialidade, uma forma mais completa de se dirigir
Segunda tese: Colonialidade é diferente de colonialismo e decoloniali‐ também à modernidade ocidental.
dade é diferente de descolonização Desse modo, se a descolonização referese a momentos históricos em que
os sujeitos coloniais se insurgiram contra os eximpérios e reivindicaram a
Se a primeira tese aborda a atitude básica que está em jogo na confron‐
independência, a decolonialidade referese à luta contra a lógica da coloniali‐
tação com as questões sobre o significado e a importância da colonização e da
dade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos. Às vezes o termo des‐
descolonização, a segunda introduz uma clarificação conceitual que torna
colonização é usado no sentido de decolonialidade. Em tais casos, a descolo‐
mais difícil se envolver em simplificações excessivas. Tendências usuais no
nização é tipicamente concebida não como uma realização ou um objetivo
esforço de fazer o colonialismo e a descolonização parecerem irrelevantes in‐
pontual, mas sim como um projeto inacabado. Colonialismo é também usado
cluem suas relativizações e interpretações como assuntos que somente se refe‐
às vezes no sentido de colonialidade.
rem ao passado. Colonialismo e descolonização são às vezes definidos de mo‐
Um dos resultados desta tese é que, ao contrário do padrão e do conceito
do tão generalizante, que acabam se aplicando a todas as formas de cons‐
histórico ou puramente empírico do colonialismo, colonialidade é uma lógica
trução do império e de resistência, desde o começo da humanidade. Mas
que está embutida na modernidade, e decolonialidade é uma luta que busca
quando sujeitos colonizados apontam para a relevância da colonização e da
alcançar não uma diferente modernidade, mas alguma coisa maior do que a
descolonização, eles tendem a se referir particularmente às formas modernas
modernidade. Isso não significa que um número de ideias e práticas que usu‐
de colonização. A confusão massiva começa a ser feita quando o interlocutor
almente consideramos “modernas” não fará parte dessa outra ordem mundial,
imagina um conceito transhistórico de colonialismo que se aplicaria tanto ao
bem como não significa que o que chamamos de modernidade eliminou tudo
Império Romano na antiguidade quanto aos impérios não europeus anteriores
o que a própria modernidade no seu discurso autorreferido concebeu como
à descoberta do Novo Mundo. A estratégia é simples: fazer do colonialismo
diferente dela, como a filosofia antiga e uma variedade de ideias medievais. A
um conceito geral para que ele perca especificidade e quaisquer implicações
diferença é que, enquanto a modernidade ocidental atingiu uma identidade ao
sobre o presente. Isso não significa que não há laços importantes entre dife‐
inventar uma narrativa temporal e uma concepção de espacialidade que a fez
rentes formas de colonialismo e construção do império, bem como entre vár‐
parecer como o espaço privilegiado da civilização em oposição a outros tem‐
ios modos de desumanização; no entanto, a relevância contemporânea do co‐
pos e espaços, a busca por uma outra ordem mundial é a luta pela criação de
lonialismo e da descolonização é perdida se esses conceitos são abordados
um mundo onde muitos mundos possam existir, e onde, portanto, diferentes
apenas dessa forma.
concepções de tempo, espaço e subjetividade possam coexistir e também se
No esforço de obter esclarecimento sobre o significado e a importância do
relacionar produtivamente.
colonialismo e da descolonização, é útil distinguir colonialismo, colonialismo
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Terceira tese: Modernidade/colonialidade é uma forma de catástrofe po ontológica, epistemológica e ética. A catástrofe metafísica inclui o colapso
metafísica que naturaliza a guerra que está na raiz das formas moder‐ massivo e radical da estrutura EuOutro de subjetividade e sociabilidade e o
no/coloniais de raça, gênero e diferença sexual começo da relação SenhorEscravo. Isso introduz o que eu denominei em ou‐
É frequentemente reconhecido que “por todos pontos de vista, a conquista tro lugar de diferença subontológica ou diferença entre seres e aqueles abaixo
das Américas levou a uma das maiores catástrofes demográficas, se não a dos seres (MALDONADOTORRES , 2008). Isto é, a principal diferenciação entre
maior, que o mundo já viu” (JAHN , 2000, p. 73). Tudo indica que foi a maior sujeitos será menos uma questão de crença e mais de essência nessa nova or‐
catástrofe demográfica ao menos até aquele ponto, e que serviu como uma dem mundial.
fundação de modelos para outras formas de catástrofe demográfica até a atua‐ A catástrofe metafísica e a emergência da diferença subontológica não se
lidade. Essa “descoberta” e conquista tem esse caráter massivo e paradigmát‐ dão no vácuo. Se a diferença subontológica fosse apenas uma questão de se‐
ico porque não representou uma catástrofe somente demográfica, mas paração metafísica, ela não necessariamente levaria à relação de violência que
também metafísica. Com isso eu quero dizer que a “revolução” que foi a “de‐ existe entre a ordem do ser e a ordem abaixo dos seres. Entre os séculos XII e
scoberta” das Américas envolveu um colapso do edifício da intersubjetividade XV, o mundo cristão ocidental estava cada vez mais engajado em guerras pa‐
e da alteridade e uma distorção do significado da humanidade. Essa catástrofe ra supostamente defender a terra santa e seus reinos de mulçumanos e outros
metafísica está no cerne da transformação da “epistemologia, ontologia e étic‐ cristãos. Essa trajetória atinge seu clímax na Península Ibérica, onde reinos
a”, que é parte da fundação da modernidade/colonialidade e das ciências euro‐ cristãos estavam em oposição ao Império Otomano, onde cristãos começaram
peias modernas. uma doutrina de “limpeza de sangue” para ajudar a controlar potenciais dissi‐
As divisões bastante radicais entre seres humanos já existiam no Ocidente, dentes e onde os portugueses já tinham começado a viajar para novas terras na
tais como as diferenças entre cristãos e não cristãos, homens e mulheres, su‐ África e a escravizar pessoas (WYNTER , 1995; MALDONADOTORRES , 2014).
jeitos saudáveis e leprosos, entre outras distinções. Entretanto, as divisões ten‐ Todas essas práticas tiveram de ser justificadas em termos que fossem recon‐
deram a ser limitadas e contidas pela ideia monoteísta de um Deus que criou ciliados com o monoteísmo e a noção de Cadeia dos Seres. A catástrofe me‐
todos e de uma Cadeia dos Seres que ligava a criação inteira entre si e o divi‐ tafísica tornou possível que as mesmas e, até mesmo as piores ações fossem
no. A “descoberta” não só colocou em questão o caráter englobante da Escri‐ infligidas contra pessoas não cristãs vivendo fora dos reinos europeus, sem
tura e dos Antigos – nenhum dos quais parece ter dito algo sobre a existência muita necessidade de justificativa legal. Isso fez com que as ações excepcio‐
de tais terras –, como também erodiu o entendimento do universo em termos nais e os modos de comportamento que foram exibidos durante os tempos de
de uma Cadeia dos Seres tendo Deus como sua cabeça. A “descoberta” agora guerra agora se tornassem parte de uma maneira natural de se comportar em
apareceu como um agente histórico com o direito e dever de nomear o mun‐ relação aos novos povos descobertos e escravizados e às outras pessoas no
do, classificálo e usálo para o seu próprio bemestar (TODOROV , 1999; WYN‐ planeta, que seriam classificadas usando o mesmo paradigma.
TER , 1991; 1995). Por isso, a observação, ao invés da revelação, seria cada Essa catástrofe metafísica, ligada à civilização ocidental e à guerra, que
vez mais a chave. O desencantamento do mundo e sua concepção utilitária leva à naturalização do combate, explica porque as condições coloniais na
são partes dessa mudança, como é também o reordenamento de todas as re‐ modernidade se assemelham a zonas de guerra perpétuas, onde a extrema e a
lações humanas existentes e formas de dominação. constante violência em baixo nível são continuamente direcionadas às popu‐
Um ponto de partida para essa modernidade foi, portanto, o postulado de lações colonizadas e àqueles que são identificados como seus descendentes
uma separação que quebrou com, ou pelo menos começou a tornar irrelevan‐ (MALDONADOTORRES , 2008). Também explica porque a diferença subontológ‐
te, a noção de uma cadeia que conectava todos os seres ao Divino. Isso é o ica toma a forma de um dualismo maniqueísta por meio do qual o colonizador
que eu nomeio de catástrofe metafísica, uma catástrofe que é ao mesmo tem‐ é identificado como bom e o colonizado como mal. O maniqueísmo resiste ao
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movimento dialético, o que significa que, na colonialidade, o mundo moderno diferentemente. Inimigos masculinos tendem a ser percebidos como guerrei‐
está instalado numa guerra permanente contra o povo colonizado, seus costu‐ ros ou potenciais guerreiros que representam uma ameaça imediata, enquanto
mes e um vasto conjunto de suas criações e seus produtos como alvos mais os inimigos femininos, que podem ser tão ou mais ameaçadores que qualquer
diretos. A modernidade/colonialidade é um paradigma de guerra que se colo‐ homem, são vistos como aqueles que permitem que os inimigos se reprodu‐
ca como justo e que faz o contexto colonial sempre violento, uma situação zam e, em alguns casos, carreguem a tradição e a memória do grupo. Nesse
que normaliza a violência bem além das fronteiras das colônias e excolônias cenário é comum que os homens sejam frequentemente mais torturados e mu‐
(MALDONADOTORRES , 2008). A violência é desencadeada em múltiplas di‐ tilados do que mortos; enquanto as mulheres são igualmente mutiladas, tortu‐
reções, mesmo na metrópole, sendo que os sujeitos colonizados tendem per‐ radas, estupradas e/ou mortas.
sistentemente a ser os alvos diletos da violência sistemática. Entretanto, na Um terceiro nível inclui os resquícios das relações de gênero e concepções
medida em que qualquer violência é reconhecida nesse contexto, os próprios de sexo que existiram entre colonizados antes da colonização. Em alguns con‐
sujeitos colonizados são percebidos como razão final para tal violência. Es‐ textos, esses são mais reais e presentes que outros.
perase que eles demonstrem que não são a fonte da violência ao adotar os Por fim, em um quarto nível, sexo e gênero emergem como resultado do
costumes e modos de pensar dos colonizadores. Isso só leva alguns dos colo‐ maniqueísmo e da diferença subontológica: aqueles que aparecem abaixo da
nizados a se juntarem aos colonizadores para perpetrar ou justificar mais vi‐ zona do ser geram ansiedade e medo, mas também desejo. Essa dimensão é
olência. construída sobre uma certa “tradição pornôtrópica” de exploradores euro‐
A naturalização da guerra não ajuda a explicar somente o giro maniqueísta peus, dentro da qual “mulheres figuravam como o protótipo da aberração e
da separação ontológica e o caráter não dialético da colonialidade, como excesso sexual. O folclore as via, até mesmo mais que os homens, como pro‐
também certas dinâmicas de gênero e sexo. Guerra e gênero estão inextrinca‐ pensas à lascívia, promíscuas no limite do bestial” (MCCLINTOCK , 1995, p.
velmente ligados, e os padrões de sexo e gênero na modernidade/colonialida‐ 22). Esse pornôtrópico estava presente no próprio contexto de “descoberta” e
de têm uma conexão profunda com o modo como gênero e sexualidade apare‐ colonização do Novo Mundo (MCCLINTOCK , 1995, p. 21 22).
cem em contextos de conflito (GOLDSTEIN , 2001; MALDONADOTORRES , 2007; Como resultado, os corpos dos colonizados e escravizados podem ser con‐
SHARONI et al. , 2016). Ao mesmo tempo, a naturalização da guerra envolve cebidos, em um momento, como sem gênero ou com uma forma particular de
uma transformação de como sexo e gênero operam, não somente em contex‐ diferença de gênero, isto é, supersexualizados no sentido patológico de seus
tos pacíficos, como também em guerras tradicionais. Há uma operação com‐ órgãos sexuais e partes sexualizadas do corpo definirem o ser deles com ou
plexa referente a sexo e gênero na modernidade/colonialidade. sem gênero propriamente dito. Essas são quatro modalidades básicas, certa‐
Em um nível, a produção da diferença subontológica localiza os coloniza‐ mente entre outras, nas quais gênero e sexo trabalham na colonialidade, pro‐
dos abaixo das categorias de gênero, uma vez que elas pertencem aos seres duzindo a diferença subontológica, o maniqueísmo e a naturalização da guer‐
humanos. Os colonizados são preferencialmente concebidos como espécies de ra.
animais agressivos ou pacíficos – apesar de nunca completamente racionais –, Gênero e sexualidade também tomam dinâmicas particulares na parte “ci‐
que podem sempre se tornar violentos. Isso leva a uma dimensão da expe‐ vilizada” do mundo. No mundo “civilizado”, certos conceitos de masculinida‐
riência do ser colonizado em que estes são despojados de seu gênero e/ou de de e feminilidade adquirem status proeminente quando eles demonstram ser
sua diferença sexual (CORNELL , 2015; DAVIS , 1983; GORDON , 2015; LUGONES centrais, não só tolerando, mas também perpetuando a guerra sobre bases
, 2007). constantes. A masculinidade agressiva tornase uma norma junto com o senso
Ao mesmo tempo, em outro nível, assim como tem sido típico nas guerras de feminino, pensado para dar apoio e reproduzir tal masculinidade. O mode‐
ocidentais, os corpos dos inimigos masculinos e femininos são interpretados lo de feminilidade é o da esposa que cuida do seu marido e que ajuda a criar a
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próxima geração de homens. As mulheres que se desviam desse script perdem Extermínio, expropriação, dominação, exploração, morte prematura e con‐
respeitabilidade e podem ser suscetíveis à violência tanto ou mais que as mu‐ dições que são piores que a morte, tais como a tortura e o estupro, são ações
lheres que desempenham seus papéis como esposas e reprodutoras de ho‐ predominantes nos conflitos beligerantes. Algumas delas são às vezes consi‐
mens/guerreiros. Ao mesmo tempo, esse modelo de relação entre homens e deradas legalmente legítimas até um certo ponto, e outras são tidas no máx‐
mulheres é imposto sobre os sujeitos colonizados, o que adiciona ainda outro imo como temporárias ou são concebidas como tendo efeitos não pretendidos.
nível aos modos nos quais gênero e sexualidade funcionam no mundo coloni‐ Na modernidade/colonialidade, todas essas ações ocorrem permanentemente,
zado. Essa imposição é sistemática e ocorre de modo explícito e contundente, não como uma resposta a conflitos específicos, mas como formas de estar em
mas, talvez, mais efetivamente de modo sutil por meio da internalização de acordo com a ordem percebida da natureza e do mundo. Como o colonialis‐
ideias e ideais de normatividade de gênero via educação e mídia. O resultado mo, a colonialidade envolve a expropriação de terras e recursos, mas isso
é que o modelo de gênero e sexo do colonizador é tomado pelos sujeitos colo‐ acontece não somente através de apropriação estrangeira, mas também pelos
nizados como direcionador de suas próprias performances em seus esforços mecanismos do mercado e dos Estadosnações modernos. Isso leva a uma si‐
de parecerem normais em um mundo que os considera essencialmente anor‐ tuação de excolônias, em que os sujeitos nativos estão despossuídos. Não so‐
mais, deficientes e maus. Isso leva a formas agressivas de masculinidade beli‐ mente terras e recursos são tomados, mas as mentes também são dominadas
gerante entre aqueles considerados como perpétuos derrotados e inimigos por formas de pensamento que promovem a colonização e a autocolonização.
subhumanos. Também leva homens e mulheres colonizados a procurarem Os corpos são também explorados pelo trabalho de maneira que os mantêm
vários modos de escapar dessa condição, buscando estar com colonizadores em um status inferior ao da maioria do proletariado metropolitano. Por causa
masculinos ou assumir o lugar deles, uma situação da qual colonizadores fre‐ disso, seja o que for a descolonização, é preciso incluir a luta por redistri‐
quentemente tiram suas vantagens. buição de terras e recursos. Entretanto, ela não pode estar limitada a isso.
A colonialidade não se refere somente à imposição dos papéis de gênero Quinta tese: A colonialidade envolve uma transformação radical do sa‐
ocidentais sobre o colonizado, como também à combinação dessa prática com ber, do ser e do poder, levando à colonialidade do saber, à colonialidade
as múltiplas formas de desgenerificar e regenerificar que estão ligadas ao ma‐ do ser e à colonialidade do poder
niqueísmo, à diferença subontológica e aos entendimentos não ocidentais ain‐
As visões de mundo não podem ser sustentadas apenas pela virtude do po‐
da existentes de sexo e de gênero. Isso é parte do processo por meio do qual
der. Várias formas de acordo e consentimento precisam ser partes delas. Idei‐
sujeitos colonizados são destruídos em pedaços quando não são mortos. O
as sobre o sentido dos conceitos e a qualidade da experiência vivida (ser), so‐
que quer que a descolonização signifique nesse contexto, está evidente que
bre o que constitui o conhecimento ou pontos de vista válidos (conhecimento)
não é simplesmente a afirmação de formas indígenas de conceber gênero e
e sobre o que representa a ordem econômica e política (poder) são áreas bás‐
sexo ou a rejeição do patriarcado como se ele não tivesse sido modificado pe‐
icas que ajudam a definir como as coisas são concebidas e aceitas em uma da‐
la colonialidade do gênero e do sexo no mundo colonizado. Essas são áreas
da visão de mundo. A identidade e a atividade (subjetividade) humana
chave no estudo da colonialidade e da decolonialidade, particularmente na
também produzem e se desenvolvem dentro de contextos que têm funciona‐
análise do papel constitutivo e constituinte de gênero, raça e sexualidade no
mentos precisos de poder, noções de ser e concepções de conhecimento. A
mundo moderno/colonial (ESPINOSA MIÑOSO; CORREAL; MUÑOZ , 2014).
colonialidade do saber, ser e poder é informada, se não constituída, pela
Quarta tese: Os efeitos imediatos da modernidade/colonialidade incluem catástrofe metafísica, pela naturalização da guerra e pelas várias modalidades
a naturalização do extermínio, expropriação, dominação, exploração, da diferença humana que se tornaram parte da experiência moderna/colonial
morte prematura e condições que são piores que a morte, tais como a enquanto, ao mesmo tempo, ajudam a diferenciar modernidade de outros pro‐
tortura e o estupro jetos civilizatórios e a explicar os caminhos pelos quais a colonialidade orga‐
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niza múltiplas camadas de desumanização dentro da modernidade/coloniali‐ na teoria da colonialidade e decolonialidade, em conexão com a sociogênese
dade. fanoniana e pela identificação profunda de alguns dos elementos mais básicos
Como eu já apontei, a “revolução” da “descoberta” não consistiu apenas do saber, poder e ser, chegase a este diagrama:
de ações particulares, tais como uma despossessão sem precedentes e a elimi‐
nação da vida humana, mas também concebeu uma catástrofe metafísica e a
emergência de um paradigma (um paradigma de guerra) com formas particu‐
lares do saber, ser, poder e subjetividade no seu centro. É somente em virtude
da articulação de formas do ser, poder e saber que a modernidade/colonialida‐
de poderia sistematicamente produzir lógicas coloniais, práticas e modos do
ser que apareceram, não de modo natural, mas como uma parte legítima dos
objetivos da civilização ocidental moderna. Colonialidade, por isso, inclui a
colonialidade do saber, a colonialidade do poder e a colonialidade do ser co‐
mo três componentes fundamentais da modernidade/colonialidade.
Cada uma dessas principais dimensões do que constitui uma visão de mun‐
do tem ao menos três componentes básicos, e cada um deles inclui referência
ao sujeito corporificado:
Saber: sujeito, objeto, método.
Ser: tempo, espaço, subjetividade.
Poder: estrutura, cultura, sujeito.
Comum às três dimensões é a subjetividade. O que quer que um sujeito A colonialidade do ser envolve a introdução da lógica colonial nas con‐
seja, ele é constituído e sustentado pela sua localização no tempo e no espaço, cepções e na experiência de tempo e espaço, bem como na subjetividade. A
sua posição na estrutura de poder e na cultura, e nos modos como se posiciona colonialidade do ser inclui a colonialidade da visão e dos demais sentidos, que
em relação à produção do saber. são meios em virtude dos quais os sujeitos têm um senso de si e do seu mun‐
Fanon mostrou esse tipo de relação entre o subjetivo e o objetivo em sua do. Uma exploração da colonialidade do ser, portanto, requer uma averi‐
consideração sobre a sociogênese (FANON , 2008, p. xv). Fanon também viu o guação da colonialidade do tempo e espaço, bem como da subjetividade, in‐
sujeito tanto como produto quanto como um gerador da estrutura social e cul‐ cluindo a colonialidade do ver, do sentir e do experienciar. A colonialidade do
tural, além de possuidor de uma completa visão de mundo de um tempo. Ou‐ saber e a colonialidade do poder envolvem a mesma operação em relação aos
tro modo de enunciar isso é identificar o sujeito não apenas como elemento elementos que as constituem. O mais direto e óbvio fio que unifica a colonia‐
chave na constituição do ser, poder e saber, mas também como o elemento lidade do poder, do saber e do ser é o sujeito colonizado, que eu proponho que
que mais obviamente conecta essas dimensões principais das quais nós toma‐ concebamos, seguindo Fanon, como um damné , ou condenado.
mos como real uns para os outros. O sujeito, portanto, é um campo de luta e Os condenados são os sujeitos que são localizados fora do espaço e do
um espaço que deve ser controlado e dominado para que a coerência de uma tempo humanos, o que significa, por exemplo, que eles são descobertos junto
dada ordem e visão de mundo continue estável. com suas terras em vez de terem o potencial para descobrirem algo ou de re‐
Ao trazer as dimensões básicas de uma visão de mundo (ser, poder, saber), presentarem um empecilho para a conquista de seu território. Os condenados
que também foram identificadas como chave geral e ampla de áreas de análise não podem assumir a posição de produtores do conhecimento, e a eles é dito
que não possuem objetividade. Do mesmo modo, os condenados são represen‐
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tados em formas que os fazem se rejeitar e, enquanto mantidos abaixo das negra da colonialidade moderna e emerge como um pensador e escritor. Pele
dinâmicas usuais de acumulação e exploração, podem apenas aspirar ascender negra é menos um livro sobre sujeitos negros e mais uma narrativa cataliza‐
na estrutura de poder pelos modos de assimilação que nunca são inteiramente dora com dimensões poéticas, analíticas e performativas, que busca ilustrar a
exitosos. A colonialidade do poder, ser e saber objetiva manter os condenados profundidade da colonialidade como um problema e, em contrapartida, ani‐
em seus lugares, fixos, como se eles estivessem no inferno. Esse é o inferno mar a formação de uma atitude decolonial e gerar a ideia de decolonialidade
em relação ao qual o céu e a salvação do civilizado são concebidos e sobre os como um projeto. Entender o drama doloroso na busca pela atitude certa toma
quais ele está acoplado. o lugar da obsessão por métodos. A partir dessa perspectiva fanoniana, a atitu‐
de é mais fundamental que o método.
Sexta tese: A decolonialidade está enraizada em um giro decolonial ou
em um afastarse da modernidade/colonialidade Steve Biko também entendeu o caráter fundamental da atitude quando de‐
finiu consciência negra como “uma atitude da mente e um caminho da vida, o
A mais básica expressão do giro decolonial está no nível da atitude, levan‐
mais positivo chamado que emana do mundo negro ao longo tempo” (BIKO ,
do à formação de uma atitude decolonial. O condenado, como entidade que é
2002 [1978], p. 91). Enquanto método define a relação entre um sujeito e um
criada no cruzamento da colonialidade do saber, poder e ser, tem o potencial
objeto, atitude referese à orientação do sujeito em relação ao saber, ao poder
de se distanciar dos imperativos e normas que são impostos sobre ele e que
e ao ser. Portanto, uma mudança na atitude é crucial para um engajamento
buscam mantêlo separado de si. É o desejo do Eu de “tocar o outro, sentir o
crítico contra a colonialidade do poder, saber e ser e para colocar a decolonia‐
outro, revelarme no outro”, contra os efeitos devastadores da catástrofe me‐
lidade como um projeto. A atitude decolonial é, então, crucial para o projeto
tafísica, que faz a formação dessa atitude possível, mesmo diante dos obstác‐
decolonial e viceversa.
ulos apresentados pela lógica da modernidade/colonialidade (FANON , 2008, p.
Ao contrário da concepção habermasiana de modernidade como um proje‐
206).
to inacabado e da proposta foucaultiana de modernidade como uma atitude
Explicar a formação da atitude decolonial requer uma fenomenologia que
históricocrítica, a decolonialidade é tanto uma atitude como um projeto ina‐
eu estou elaborando em outro texto em diálogo com Pele negra, máscaras
cabado que busca “construir o mundo do Ti” 5 (MALDONADOTORRES ,
brancas , de Fanon, mas que parcialmente aparece aqui e nas teses remanes‐
2016a).Construir o mundo do Ti implica uma oposição à catástrofe metafísic‐
centes. O tema da atitude é crucial em Pele negra , de Fanon. Basta conside‐
a, ao paradigma da guerra e à separação ontológica. Essa luta é buscada com
rar que um dos objetivos principais do livro é estudar as “várias atitudes men‐
amor – como atitude positiva do condenado – e raiva – como uma forma de
tais” que pessoas negras adotam “em face da civilização branca”. Atitude é
negação que é inspirada e orientada pela atitude positiva do amor. Amor e rai‐
tanto um objeto da análise quanto um elementochave na concepção do co‐
va são expressões do “sim” e do “não” que Fanon identifica como primárias
nhecimento avançado no livro. Não acidentalmente Fanon referese às atitu‐
da agência decolonial e da atitude decolonial.
des logo depois de fazer sua afirmação frequentemente citada sobre métodos:
Como projeto inacabado, o giro decolonial requer uma genealogia que
“Nós deixamos os métodos para os botânicos e matemáticos. Existe um ponto
mostre seus vários momentos através da história juntamente com uma feno‐
em que os métodos se dissolvem” (FANON , 2008, p. 16). Fanon pode “deixar
menologia, ambas como parte de sua analítica. Outra parte dessa analítica
os métodos aos botânicos e matemáticos”, mas ele não pode igualmente dei‐
consiste na identificação do giro decolonial no âmbito do saber, poder e ser.
xar a atitude para trás; a atenção aos sujeitos negros como não patológicos re‐
As teses restantes capturam diferentes expressões da atitude decolonial e do
quer uma ruptura com a atitude moderno/colonial que é predominante nas
giro decolonial em cada um desses níveis. Com amor e raiva, o condenado
ciências europeias e em outros lugares. A partir disso, Pele negra oferece uma
emerge como um pensador, um criador/artista, um ativista. Eu não pretendo
rota analítica dupla por meio da qual o autor reflete sobre atitudes enquanto
reduzir o saber ao pensamento, o ser à arte e o poder ao ativismo, mas eu pen‐
também descreve o drama do processo pelo qual ele rompe com a atitude anti‐
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so que a predominância usual destas principais áreas na luta contra a coloni‐ mento crítico emerge não pela virtude da dúvida hiperbólica, mas, pelo menos
zação pode ser explicada parcialmente pelas relações próximas delas com ca‐ parcialmente, como um efeito de sofrimento hiperbólico. Em vez de se tornar
da uma das dimensões básicas da colonialidade: saber, poder e ser. A decolo‐ um agente em seu próprio sofrimento, Fanon reza para que seu corpo perma‐
nialidade, portanto, tem a ver com a emergência do condenado como pensa‐ neça aberto e desviese criticamente de qualquer coisa que promova isolamen‐
dor, criador e ativista e com a formação de comunidades que se juntem à luta to, fechamento e sofrimento sistemático.
pela descolonização como um projeto inacabado. A decolonialidade requer um compromisso com o corpo como algo aberto,
como uma zona de contato, como uma ponte e zona de fronteira que, segundo
Sétima tese: Decolonialidade envolve um giro epistêmico decolonial, por
meio do qual o condenado emerge como questionador, pensador, teórico Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa, aproximam um amplo número de mulhe‐
e escritor/comunicador res negras que avançam em várias formas do que poderiam ser considerados
feminismos decoloniais (MORAGA ; ANZALDÚA , 1981; ANZALDÚA ; KEATING ,
Em Pele negra, máscaras brancas, Fanon não decide somente estudar ati‐
2002). Isso é parte do que Walter Mignolo tem se referido como corpopolít‐
tudes antinegros encontradas nos próprios sujeitos negros, mas também mos‐
ica do conhecimento, em adição à geopolítica do conhecimento e em oposição
trar um caminho que inclua a emergência da atitude decolonial, e com ela a
à teoeegopolítica do conhecimento, e é também o que ele e Madina Tlosta‐
possibilidade de o condenado escrever e se comprometer com a decolonialida‐
nova concebem como uma forma de “teorizar a partir das fronteiras” (MIGNO‐
de como um projeto. Esse é o cerne do que eu tenho chamado, em algum lu‐
LO , 2006, 2010; MIGNOLO ; TLOSTANOVA , 2006). A crítica decolonial encontra
gar, de meditações fanonianas, em que o condenado corporificado, e não o
sua âncora no corpo aberto. Quando o condenado comunica as questões crític‐
ego cogito ou o ego transcendental , aparece no centro da análise, não sim‐
as que estão fundamentadas na experiência vivida do corpo aberto, temos a
plesmente para melhor conhecer, mas também para mais radicalmente mudar
emergência de um outro discurso e de uma outra forma de pensar. Por essa
o mundo.
razão, a escrita para muitos intelectuais negros e de cor é um evento funda‐
A transição da solidão da condenação para a possibilidade da comunicação
mental. A escrita é uma forma de reconstruir a si mesmo e um modo de com‐
passa pela formulação de questões críticas. É esse o porquê de a formulação
bater os efeitos da separação ontológica e da catástrofe metafísica. Por isso
de questões ser tão importante nos trabalhos dos agentes da descolonização,
Fanon escreveu Pele negra , apesar de “ninguém a ter solicitado”; por isso
tais como Aimé Césaire, que em seu Discurso sobre o colonialismo colocou
Anzaldúa considerou a escrita “uma forma de vida”; e também por isso era
“o que, fundamentalmente, é a colonização?” como “uma questão inicialmen‐
tão revolucionário os escritos de Biko circularem com o título Escrevo o que
te inocente”, que deve ser vista e respondida “francamente”, o que a torna
eu quero (2002 [1978]).
também “perigosa” (CÉSAIRE , 2000, p. 32). Fanon também considerou o mo‐
mento do questionamento como chave; como narrador e analista em seu Pele Oitava tese: Decolonialidade envolve um giro decolonial estético (e fre‐
negra, máscaras brancas, ele conclui o texto com uma prece para fazer com quentemente espiritual) por meio do qual o condenado surge como cria‐
que ele seja sempre alguém que questione (FANON , 2008, p. 206). Como a dor
mente do colonizado está dominada por histórias e ideias que o fazem confir‐ Viver de uma maneira que afirme a abertura do corpo faz parte da atitude
mar a colonialidade do saber, poder e ser, Fanon reza para que seu corpo o decolonial que não somente permite a possibilidade do questionamento crític‐
torne alguém que sempre questione. Ele concebe o corpo como uma “porta o, mas também a emergência de visões do eu, dos outros e do mundo que de‐
aberta de toda consciência” e, portanto, sua prece é para que o corpo perma‐ safiam os conceitos de modernidade/colonialidade. O corpo aberto é um cor‐
neça aberto e contra qualquer imperativo sociogenicamente gerado que queira po questionador, bem como criativo. Criações artísticas são modos de crítica,
fechálo. Essa é uma concepção de subjetividade e de formação de questões autorreflexão e proposição de diferentes maneiras de conceber e viver o tem‐
bastante diferente da que se encontra em René Descartes. Aqui, o questiona‐ po, o espaço, a subjetividade e a comunidade, entre outras áreas. A decolonia‐
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lidade requer não somente a emergência de uma mente crítica, mas também renúncia das instituições e práticas que mantêm a modernidade/colonialidade.
de sentidos reavivados que objetivem afirmar conexão em um mundo defini‐ A plataforma decolonial para muitos sujeitos críticos e criativos cooptados
do por separação. A criação artística decolonial busca manter o corpo e a pela lógica do reconhecimento talvez termine aqui, e eles se tornam, em uma
mente abertos, bem como o sentido aguçado de maneira que melhor possam ocasião ou mais que em uma ocasião, agentes da colonialidade.
responder criticamente a algo que objetiva produzir separação ontológica. O ativismo tradicional também pode cair em tais formas de cooptação e
Nesse sentido, a criação artística decolonial pode ser entendida como uma for‐ decadência. Isso acontece quando ativistas se consideram mais radicais que os
ma de estender a prece que Fanon faz ao seu corpo. A performance estética teóricos e artistas, por exemplo, como se o verdadeiro ativismo não procuras‐
decolonial é, entre outras coisas, um ritual que busca manter o corpo aberto, se juntar essas áreas e mobilizálas contra os muros de separação criados pela
como uma fonte contínua de questões. Ao mesmo tempo, esse corpo aberto é modernidade/colonialidade. O ativismo não é, portanto, algo que existe fora
um corpo preparado para agir. do pensamento ou da criação. O ativismo ocorre através deles, assim como na
O giro estético decolonial é um distanciamento da colonialidade da visão e discussão de estratégias para mudar instituições específicas na sociedade.
do sentido. É um aspectochave da decolonialidade do ser, incluindo a decolo‐ Mas, para que o giro decolonial se torne um projeto, nenhuma dessas áreas de
nialidade do tempo, espaço e subjetividade. Ele está também conectado à de‐ atividades pode existir isoladamente. A agência do condenado é definida pelo
colonialidade da espiritualidade, um ponto que é bem expresso por Anzaldúa pensamento, pela criação e pela ação, de um modo que busque trazer juntas as
quando ela escreve que, “na etnopoética e performance do xamã, meu povo, várias expressões do condenado para mudar o mundo.
os indígenas, não separavam o artístico do funcional, o sagrado do secular, a
Décima tese: A decolonialidade é um projeto coletivo
arte da vida cotidiana. Os propósitos religiosos, sociais e estéticos da arte es‐
tavam todos interligados” (ANZALDÚA , 2007, p. 88). A espiritualidade está em A emergência do condenado como um questionador, um orador, um escri‐
grande parte conectada à decolonialidade do ser e também ao abarcamento da tor e um sujeito criativo é um evento impossível dentro da lógica e dos termos
unidade de saber, poder e ser. A estética decolonial tem também esse caráter: do mundo moderno/colonial. O impossível ocorre toda vez que o condenado
liga e interliga, conecta e reconecta o eu consigo mesmo, o conhecimento aparece dessas maneiras. A resposta é previsível: a ordem moderna/colonial
com as ideias, as ideias com as questões, as questões com os modos de ser. busca descartar a anomalia tanto rejeitando, minimizando, humilhando, ma‐
tando e exotizando quanto estereotipando o condenado. A atitude decolonial
Nona tese: A decolonialidade envolve um giro decolonial ativista por
envolve renúncia aos sistemas de valores que permitem que a resposta que
meio do qual o condenado emerge como um agente de mudança social
busca desqualificar o condenado como uma anomalia funcione. Mas um con‐
O pensamento e a criatividade não podem por si só mudar o mundo. Pode‐ denado sozinho não pode ir muito longe.
mos também adicionar outras atividades, tal como a espiritualidade, e, mesmo A decolonialidade, entretanto, não é um projeto de salvação individual, e
assim, elas não podem mudar o mundo. O condenado precisa aproveitar a sim um projeto que aspira “construir o mundo do Ti”. O pensamento, a criati‐
multiplicidade de atividades, pensamento, criatividade, etc., e tornálos parte vidade e a ação são todos realizados não quando se busca reconhecimento dos
de estratégias e esforços para efetivamente descolonizar o poder, o saber e o mestres, mas quando estendemos as mãos aos outros condenados. São os con‐
ser. Isso exige a emergência do condenado como um agente de mudança, co‐ denados e os outros, que também renunciam à modernidade/colonialidade,
mo alguém que evita a tentação de fazer das atividades do pensamento e da que pensam, criam e agem juntos em várias formas de comunidade que po‐
criatividade zonas de refúgio da colonialidade. Nessas posições, o acadêmico, dem perturbar e desestabilizar a colonialidade do saber, poder e ser, e assim
o teórico e o artista podem facilmente ser cooptados quando buscam reconhe‐ mudar o mundo. A decolonialidade é, portanto, não um evento passado, mas
cimento de arenas específicas, tais como o mundo acadêmico e o artístico. O um projeto a ser feito. O diagrama final representa algumas dessas peças fun‐
giro decolonial requer uma suspensão da lógica de reconhecimento e uma damentais.
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