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Editoras .
COORDENADORA DA COLEÇÃO
Nilma Lino Gomes
CONSELHO EDITORIAL
Marta Araújo (Universidade de Coimbra); Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (UFSCAR);
Renato Emerson dos Santos (UERJ); Maria Nazareth Soares Fonseca (PUC Minas);
Kabengele Munanga (USP)

C ONSELHO EDITORIAL DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA UNB (SOL)
Renato Ortiz (Unicamp); Sadi Dal Rosso (UnB); Glaucia Villas­Boas (UFRJ); Marcelo Ridenti
(Unicamp); Mike Featherstone (University of London); Carlos Benedito Martins (UnB); Luís
Roberto Cardoso Oliveira (UnB); Gerard Delanty (University of Sussex)
EDITORAS RESPONSÁVEIS
Rejane Dias Cecília Martins
REVISÃO
Carla Neves
CAPA

Alberto Bittencourt (sobre ilustração de Nelson Fernando Inocêncio da Silva )
DIAGRAMAÇÃO
Larissa Carvalho Mazzoni
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP,
Brasil)

Decolonialidade  e  pensamento  afrodiaspórico  /  organizadores  Joaze  Bernardino­Costa,  Nelson


Maldonado­Torres,  Ramón  Grosfoguel.  ­­  1.  ed.  ­­  Belo  Horizonte  :  Autêntica  Editora,  2018.
(Coleção Cultura Negra e Identidades)
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978­85­513­0338­2
1.  Antropologia  2.  Colonialismo  3.  Diáspora  africana  4.  Epistemologia  5.  Negros  ­  Condições
sociais 6. Relações raciais 7. Sociologia I. Bernardino­Costa, Joaze. II. Maldonado­Torres, Nelson.
III. Grosfoguel, Ramón. IV. Série.
18­14715 CDD­305.896
Índices para catálogo sistemático:
1. Decolonialidade : Populações afrodiaspóricas : Ciências sociais 305.896
Maria Paula C. Riyuzo ­ Bibliotecária ­ CRB­8/7639

www.grupoautentica.com.br
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Analítica da colonialidade e da decolonialidade: algumas como um passado que existe como um traço, mas sim como um presente vivo.
dimensões básicas 3 Essa transformação do tempo em si, de um tempo histórico­cronológico para
o  que  parece  ser  uma  forma  de  temporalidade  anacrônica  por  meio  da  qual
Nelson Maldonado­Torres grupos são expostos a lógicas e conflitos que são considerados como não mais
existentes, é parte dos legados da colonização e um alvo central da crítica dos
esforços decoloniais. Por isso a perspectiva do ativista decolonial torna­se in‐
dispensável a qualquer esforço intelectual, incluindo aquele do historiador, e
Em  sua  breve,  porém  generalizada  explicação  sobre  a  descolonização, também por isso não se pode ficar satisfeito com a relação que Chamberlain
Chamberlain  (1985,  p.  1)  observa  que  ela  “é  comumente  entendida  como  o coloca entre libertação e descolonização ou entre investigação histórica e ati‐
processo pelo qual os povos do terceiro mundo ganharam a independência de vismo.
seus governantes coloniais”. Em contraste com outros pesquisadores nas ex­ Tomando  como  exemplo  Os  condenados  da  terra  ,  de  Frantz  Fanon
colônias  que  argumentavam que  a  ideia  de  descolonização  “poderia  ser  em‐ (2004), eu uso descolonização como um conceito que está fundamentalmente
pregada para descrever que as iniciativas para a descolonização [...] foram to‐ alinhado com o conceito de libertação, pelo menos nos modos que tem sido
madas  pelos  poderes  metropolitanos”,  e  que  preferem,  como  alternativa,  o usado pelos movimentos que se opõem à colonização. Libertação expressa os
conceito  de  libertação,  Chamberlain  (1985,  p.  1)  afirma  que  um  historiador desejos do colonizado que não quer atingir a maturidade e tornar­se emanci‐
“deve tentar manter o equilíbrio” entre a verificação das “políticas dos pode‐ pado como os europeus iluministas que condenam a tradição – não que essa
res coloniais e as ideias e iniciativas que vieram do colonizado”. Ela também seja a única forma de conceber a emancipação –, mas sim organizar e obter
argumenta  que  historiadores  devem  “ver  o  problema  em  uma  perspectiva sua própria liberdade. Um objetivo típico desses esforços tem sido tanto a in‐
mais  longa”,  traçando,  diferentemente  de  libertadores  e  ativistas  decoloniais dependência política quanto a econômica. Independência, todavia, não neces‐
não historiadores, as raízes dos movimentos de descolonização ocorridos en‐ sariamente  implica descolonização  na  medida  em que  há  lógicas coloniais  e
tre 1947 e 1965. representações  que  podem  continuar  existindo  depois  do  clímax  específico
O  apelo  de  Chamberlain  para  o  equilíbrio  e  para  uma  “perspectiva  mais dos movimentos de libertação e da conquista da independência. Nesse contex‐
longa” é adequado. Entretanto, limites muito óbvios aparecem em seu estudo to, decolonialidade como um conceito oferece dois lembretes­chave: primei‐
quando  se  considera  que:  a)  os  impérios  europeus  permanecem  como  sua ro, mantém­se a colonização e suas  várias dimensões claras no horizonte de
principal  unidade  de  análise;  b)  grande  parte  do  seu  livro  concentra­se  no luta; segundo, serve como uma constante lembrança de que a lógica e os lega‐
Império Britânico; e c) os vastos impérios espanhol e português são mencio‐ dos do colonialismo podem continuar existindo mesmo depois do fim da colo‐
nados somente brevemente, principalmente no capítulo intitulado “Os impér‐ nização formal e da conquista da independência econômica e política. É por
ios dos menores poderes europeus”. O texto não oferece considerações apro‐ isso que o conceito de decolonialidade desempenha um importante papel em
fundadas sobre a relevância das doutrinas da “descoberta”, bem como das ex‐ várias formas de trabalho intelectual, ativista e artístico atualmente.
pedições e dos conflitos anteriores na transformação das formas de conquista Tentarei abordar aqui alguns desses problemas e oferecer uma visão da de‐
e  colonização  que  emergiram  com  a  virada  da  centralidade  do  Mar  Medi‐ colonialidade que considere o significado da colonização e a agência do colo‐
terrâneo para o Oceano Atlântico na história e no comércio europeu e na for‐ nizado. Isso envolverá um engajamento sério com a “perspectiva mais longa”
mação do Novo Mundo. Essa “perspectiva mais longa” é crucial para se en‐ que  Chamberlain  invoca,  a  qual  tem  sido  parte  da  luta  por  libertação,  mas
tender a colonização e a descolonização, especialmente quando grupos coloni‐ também do esforço para compreendê­la por meio das lentes teóricas produzi‐
zados e outrora colonizados tendem a experimentar partes dessa história não das por pensadores do antigo e do atual mundo colonizado, muitos dos quais

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foram ou são ativistas e artistas. Esse insight teórico oferece ao menos duas A  modernidade  ocidental  é  comumente  entendida  como  a  época  da  mais
contribuições importantes. Primeiro, ajuda a combater a linearidade da tempo‐ avançada forma de civilização em comparação a outros arranjos sóciocultur‐
ralidade que integra a lógica das ciências europeias: historicismo, empiricis‐ ais, políticos e econômicos que aparecem como menos civilizados, não civili‐
mo e positivismo. Essas correntes do pensamento tendem a abordar o conhe‐ zados, selvagens ou primitivos. A rejeição das teses de uma hierarquia de cul‐
cimento como uma soma de dados que são observados, quantificados e anali‐ turas  e  da  superioridade  da  modernidade  ocidental  pode  ser  necessária,  mas
sados.  Os  dados  têm  sido  o  modo  predominante  de  se  referir  aos  potenciais não é de forma alguma suficiente para desafiar as bases de uma ordem inter‐
objetos de conhecimento, como se eles aparecessem em um campo de tempo‐ nacional e de instituições que têm esse tipo de lógica e ethos colonizante. A
ralidade linear, que torna extremamente difícil explorar fenômenos que refle‐ razão para isso é que o significado e a estrutura de instituições, práticas e re‐
tem ou são encontrados na intersecção de temporalidades. Desse ponto de vis‐ presentações simbólicas ocidentais modernas já pressupõem conceitos de pro‐
ta, colonização e descolonização são a soma do visível e/ou dos eventos quan‐ gresso, soberania, sociedade, subjetividade, gênero e razão, entre muitas ou‐
tificáveis que aparecem dentro de um certo período de tempo, ambas funda‐ tras ideias­chave que têm sido definidas como pressuposto de uma distinção
mentalmente pertencentes a um momento do passado. A decolonialidade, co‐ fundamental  entre  o  moderno  e  o  selvagem  ou  primitivo,  hierarquicamente
mo uma luta viva no meio de visões e maneiras competitivas de experienciar entendidas ou não. E, sendo assim, há caminhos outros múltiplos nos quais os
o tempo, o espaço e outras coordenadas básicas de subjetividade e sociabilida‐ conceitos de civilização e de modernidade têm sido definidos por meio de di‐
de humana, precisa de uma abordagem diferente. cotomias e definições essencialistas. É portanto necessário refletir criticamen‐
A teoria decolonial, como abordarei aqui, criticamente reflete sobre nosso te sobre o enredamento de marcadores de civilização com ideias que postulam
senso  comum  e  sobre  pressuposições  científicas  referentes  a  tempo,  espaço, outros povos como primitivos ou selvagens, e sobre as formas nas quais a mo‐
conhecimento e subjetividade, entre outras áreas­chave da experiência huma‐ dernidade ocidental sempre pressupõe definições e distinções coloniais dessa
na, permitindo­nos identificar e explicar os modos pelos quais sujeitos coloni‐ natureza.
zados  experienciam  a  colonização,  ao  mesmo  tempo  em  que  fornece  ferra‐ Tipicamente, o Iluminismo europeu é considerado o principal e, às vezes,
mentas  conceituais  para  avançar  a  descolonização.  Esse  simultâneo  engaja‐ o  único  período  histórico  relevante  para  o  entendimento  do  ideal  de  civili‐
mento  construtivo  e  crítico  é  a  segunda  contribuição  fundamental  e  uma zação ocidental moderna. É por isso que a análise do colonialismo moderno
função­chave do pensamento e da teoria decolonial. Mais especificamente, o tende  a  focar  nos  impérios  e  nas  formações  dos  estados­nações  dos  séculos
pensamento e a teoria decoloniais exigem um engajamento crítico com as teo‐ XVIII e XIX, que desempenharam importante papel nesse processo – nomea‐
rias da modernidade, que tendem a servir como estruturas epistemológicas das damente, Inglaterra e França. Entretanto, como Brett Bowden (2009) demons‐
ciências sociais e humanidades europeias. O tempo/espaço da descolonização tra, a chave para o estabelecimento do “padrão de civilização” característico
não  é  considerado  pela  modernidade  europeia;  ao  contrário,  promove  uma de todos os impérios europeus modernos volta­se para a “descoberta” do No‐
ruptura com ela. De uma perspectiva moderna, entretanto, a decolonialidade é vo Mundo e para a conquista das Américas.
frequentemente  representada  como  tentativa  de  retorno  ao  passado  ou  como A “descoberta” teve implicações profundas múltiplas, bem como um gran‐
um  esforço  em  retroceder  a  formações  culturais  e  sociais  pré­modernas. de impacto sobre a noção de ser civilizado. Como Bowden coloca: “Uma vez
Então, eu começarei aqui com um esforço em clarificar a relação entre moder‐ que foi determinado que ao mundo colonial faltava civilização e, consequen‐
nidade e colonização. temente, soberania, foi quase inevitável que o direito internacional criasse por
si só ‘o grande projeto de salvação de levar os marginalizados ao domínio da
Civilização moderna ocidental como modernidade/colonialida‐ soberania, civilizando o incivilizado e desenvolvendo as instituições e técnic‐
de as  jurídicas  necessárias  para  essa  grande  missão’”  (BOWDEN  ,  2009,  p.  128).

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Mais especificamente, “[o]s precedentes e leis estabelecidas, seguindo o con‐ fica mundo. A razão para isso é que, a partir de 1492, os humanos nos dois
tato de europeus com as pessoas do Novo Mundo, informariam depois disso a hemisférios foram conectados, o comércio tornou­se global e alguns cientistas
natureza  dos  subsequentes  encontros  entre  europeus  e  pessoas  indígenas  ao sociais  proeminentes  se  referiram  a  esse  tempo  como  o  começo  do  sistema
redor do globo” (BOWDEN , 2009, p. 131). mundo­moderno” (p. 175). As implicações destas teses são claras para os au‐
Para fundamentar sua tese, Bowden considera várias opiniões sobre a “de‐ tores. Para eles, “a órbita spike implica que o colonialismo, o comércio global
scoberta” das Américas. Uma delas é a ideia de Tzvetan Todorov, que afirma e o carvão promoveram o Antropoceno” (p. 177).
que  “a  descoberta  da  América,  ou  dos  americanos,  é  certamente  o  encontro Essas considerações apoiam a afirmação de Beate Jahn, que diz que “co‐
mais surpreendente da nossa história europeia. Nós não temos o mesmo senso ntra as convicções de (quase todos) os pesquisadores europeus”, foi “a desco‐
de diferença radical na ‘descoberta’ de outros continentes e de outros povos” berta do indígena americano” que “desencadeou a revolução, ou talvez mes‐
(TODOROV , 1999 apud BOWDEN , 2009, p. 48). Os próprios intelectuais ingle‐ mo a emergência do que se tornaria mais tarde as ciências sociais modernas”
ses  dos  séculos  XVII  e  XVIII  atestaram  o  enorme  significado  do  evento. (JAHN , 2000, p. 95). Beate Jahn identifica três níveis nos quais essa revolução
Bowden cita John Locke, que afirmou que “no início todo o mundo era Amér‐ operou: no epistemológico, no ontológico e no ético (JAHN , 2000, p. 95). Es‐
ica”  (LOCKE  ,  1965  [1690]  apud  BOWDEN  ,  2009,  p.  48).  Podemos  adicionar ses níveis dialogam com as dimensões básicas da realidade que foram identi‐
Adam  Smith,  que  argumentou  que  “a  descoberta  da  América  e  a  passagem ficadas  pelos  teóricos  decoloniais, artistas e  ativistas  como eixos  fundamen‐
para  as  Índias  Orientais  pelo  Cabo  da  Boa  Esperança  são  os  dois  maiores  e tais da colonialidade no mundo moderno: saber, poder e ser (LANDER , 2000;
mais  importantes  eventos  registrados  na  história  da  humanidade”  (SMITH  , MALDONADO­TORRES , 2007; MIGNOLO , 2000; QUIJANO , 1991, 2000; WYNTER ,
2005  [1776],  p.  508).  As  impressões  não  se  atenuam  quando  se  chega  mais 2003).  O  trabalho  coletivo  desses  e  de  outros  autores  leva  em  consideração
perto  do  momento  da  “descoberta”.  Em  1551,  Francisco  López  de  Gómara que, ao invés de conceber o colonialismo como algo que acontece na moder‐
afirmava  que  “[o]  maior  evento  desde  a  criação  do  mundo,  salvo  a  Encar‐ nidade  em  conjunto  com  outros  períodos  históricos,  é  mais  sensato  afirmar
nação e morte Daquele que o criou, é a descoberta das Índias, assim chamadas que a  modernidade  por si  só,  como  uma  grande revolução  imbricada com  o
de Novo Mundo” (LÓPEZ DE GÓMARA , 1979, p. 7). paradigma da “descoberta”, tornou­se colonial desde seu nascedouro. Isso le‐
Os ecos dessas visões sobre a importância da “descoberta” das Américas va a uma mudança no modo de se referir à modernidade ocidental: de moder‐
podem ser encontrados no trabalho de Simon L. Lewis e Mark A. Maslin, que nidade  simplesmente,  como  oposto  ao  pré­moderno  ou  não  moderno,  para
propuseram que “[o]s impactos do encontro das populações humanas do Ve‐ modernidade/colonialidade, como oposto ao que está além da modernidade. É
lho e do Novo Mundo [...] podem servir para marcar o início do Antropoce‐ esse  “além  da  modernidade”,  em  vez  de  simplesmente  independência,  que
no”  (LEWIS;  MASLIN  ,  2015,  p.  175).  O  Antropoceno  refere­se  à  época  da torna­se o principal objetivo da decolonialidade.
história mundial em que os seres humanos se tornam os agentes principais da
mudança geológica. Uma data usual para o começo de tal momento é a Revo‐
Dez teses sobre colonialidade e decolonialidade
lução Industrial, mas Lewis e Maslin a rejeitam, porque, como outros momen‐ A mudança no entendimento de modernidade, descoberta, colonialismo e
tos históricos propostos, a Revolução Industrial “não resultou de um marcador descolonização  requer  a  definição  de  múltiplas  ideias  como  parte  de  uma
globalmente sincrônico”  (p. 177).  Depois de se  referir  às várias  implicações analítica de colonialidade e decolonialidade. Também é preciso uma noção da
da “chegada dos europeus no Caribe em 1492” (p. 174) e às mudanças massi‐ relação  entre  essas  ideias  e  ao  menos  uma  arquitetura  conceitual  básica  que
vas que ocorreram desde então, eles sugerem “nomear a queda de CO2 na at‐ possa  servir  como  referência  no  esforço  de  avançar  a  decolonialidade.  Aqui
mosfera  de  ‘órbita  spike’  e  nomear  as  mudanças,  que  fazem  de  1610  o  co‐ apresento dez teses que objetivam contribuir para esse trabalho. 4
meço do Antropoceno, de ‘hipótese Orbis’. A palavra orbis , em latim, signi‐ Primeira tese: Colonialismo, descolonização e conceitos relacionados

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provocam ansiedade (MALDONADO­TORRES , 2011a, 2011b, 2016a, 2016b). Não há nada mais terrív‐
Os  impérios  ocidentais  e  os  Estado­nações  modernos  usaram  múltiplos el  para  os  sujeitos­cidadãos  modernos  do  que  a  possibilidade  desse  giro.  A
mecanismos para incutir um senso de segurança e legitimidade em seus sujei‐ imaginação deles é preenchida com imagens de vingança, e as reivindicações
tos e suas constituições. Colonialismo, descolonização e conceitos relaciona‐ mais básicas de justiça são vistas como evidência de discriminação reversa.
dos questionam esse senso de legitimidade no qual o sujeito­cidadão moder‐ A ansiedade  trazida  por  esses  conceitos de  colonização  e  descolonização
no,  o moderno  Estado­nação  e outras  instituições  modernas  são construídas, está, portanto, ligada à fobia em relação às pessoas escravizadas e colonizadas
gerando, desse modo, desestabilidade. Isso inclui narrativas heroicas das ori‐ e ao terror que os sujeitos­cidadãos sentem quando eles concebem o coloniza‐
gens e os propósitos das instituições modernas. Nesses relatos, o “direito” está do como um agente. Respostas a essa situação são viscerais e objetivam rela‐
sempre do lado do poder que propiciou a sua formação. Territórios indígenas tivizar a questão sobre o colonialismo e a descolonização, bem como mitigar
são apresentados como “descobertos”, a colonização é representada como um a posição do colonizado como um questionador: “isso aconteceu no passado e
veículo de civilização, e a escravidão é interpretada como um meio para aju‐ precisamos  nos mover  para frente”,  “mas  meus antepassados também foram
dar o primitivo e sub­humano a se tornar disciplinado. Levantar a questão so‐ colonizados”, “meus pais eram pobres”, “eu também sou minoria”, “na verda‐
bre o significado e a importância da colonização constitui­se num desafio ao de,  nós  todos  somos  racistas”,  “minha  esposa  (meu  marido  ou  meu  melhor
usual conceito de “descoberta”, e traz à tona o caráter problemático da apro‐ amigo) é como você”, “eu tento me juntar, mas vocês me rejeitam”, etc., etc.,
priação de terras e recursos e suas implicações até hoje. Também desafia a le‐ são algumas amostras das respostas. Outra resposta relacionada muito popular
gitimidade das fronteiras dos Estados e a respeitabilidade de qualquer concei‐ atualmente é “todas as vidas importam”, face à afirmação de que “vidas ne‐
to  normativo  e  qualquer  prática  mediante  as  quais  os  cidadãos  e  as  insti‐ gras importam”, em um contexto em que os negros são desproporcionalmente
tuições  modernas  justificam  a  ordem  moderno/colonial,  incluindo  o  sentido mortos pela polícia.
normativo  de  raça, gênero,  classe  e sexualidade,  entre outros  marcadores  da Levando  em  consideração  uma  pista  de  Césaire,  que  começa  o  Discurso
diferença sociogenicamente gerados. Em resumo, levantar a questão do colo‐ sobre o colonialismo com uma explicação sobre civilização e decadência, po‐
nialismo perturba a tranquilidade e a segurança do sujeito­cidadão moderno e demos nos referir a essas repostas como formas de uma decadência genocida
das instituições modernas. e homicida (CÉSAIRE , 2000, p. 29). Presa em uma atitude colonial decadente
A segunda razão pela qual o colonialismo, a descolonização e os conceitos promovida  pela  civilização  ocidental  moderna  também  decadente,  a  maioria
relacionados despertam ansiedade é que, por trás da questão do significado do dos sujeitos­cidadãos se engaja no que Fanon chamou de jogo “de gato e rato‐
colonialismo e da descolonização, está o colonizado como um questionador e ”, cujo  objetivo é atrasar para sempre  o momento em que as questões  sobre
potencial agente. Isso é notavelmente diferente da posição esperada deles co‐ colonialismo e descolonização são tomadas como verdadeiramente fundamen‐
mo entidades sub­humanas dóceis. A ordem das coisas no mundo moderno/‐ tais (FANON , 2008, p. 99) e em que o colonizado aparece como um legítimo
colonial é tal que as questões sobre colonização e descolonização não podem questionador.
aparecer, a não ser como mera curiosidade histórica. Espera­se que o coloni‐ O porquê de a produção de ansiedade caracterizar os conceitos de colonia‐
zado  ou  ex­colonizado  seja  tão  dócil  quanto  grato.  Conotações  patológicas lismo e descolonização, assim como o colonizado como um agente questiona‐
específicas são dadas para diferentes corpos e diferentes práticas, dependendo dor, ser a primeira tese deve­se ao fato de essa chamar a atenção para o que
do gênero específico, do sexo, da raça e de outros marcadores. representa um a priori performativo em relação a todas as teses subsequentes.
Como ficará claro nas outras teses, trazer a questão do significado e da im‐ O  a  priori  performativo  é  uma  demonstração  da  atitude  colonial  decadente
portância do colonialismo indica um giro decolonial no tema e o começo de que tende a ser expressa através de múltiplas formas de evasão e má­fé, em
uma atitude decolonial que levanta questões sobre o mundo moderno/colonial que  os  padrões  da  razão  constantemente  mudam  no  esforço  de  fazer  as

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questões  sobre  colonialismo  e  descolonização  inertes  e  irrelevantes.  Nesse moderno  e  colonialidade.  Colonialismo  pode  ser  compreendido  como  a  for‐
sentido, esta primeira tese é o resultado de uma metarreflexão sobre o próprio mação  histórica  dos  territórios  coloniais;  o  colonialismo  moderno  pode  ser
ato de pronunciar alguma tese considerando a colonização e a descolonização. entendido como os modos específicos pelos quais os impérios ocidentais colo‐
Seria normal para a maioria dos leitores cair em várias formas de decadência nizaram a maior parte do mundo desde a “descoberta”; e colonialidade pode
ao passar por cada uma das teses. Um engajamento justo com as teses seria de ser compreendida como uma lógica global de desumanização que é capaz de
fato um ato impossível dentro de uma ordem normativa de modernidade/colo‐ existir até mesmo na ausência de colônias formais. A “descoberta” do Novo
nialidade. Pensadores, artistas e ativistas decoloniais precisam estar prepara‐ Mundo  e  as  formas  de  escravidão  que  imediatamente  resultaram  daquele
dos para lidar ou decidir não lidar com essa situação. Mas, desde que se quei‐ acontecimento são alguns dos eventos­chave que serviram como fundação da
ra  falar  sobre  esses  tópicos  no  mundo  moderno/colonial,  a  atitude  a  priori colonialidade. Outra maneira de se referir à colonialidade é pelo uso dos ter‐
será de evasão e má­fé. mos  modernidade/colonialidade,  uma  forma  mais  completa  de  se  dirigir
Segunda tese: Colonialidade é diferente de colonialismo e decoloniali‐ também à modernidade ocidental.
dade é diferente de descolonização Desse modo, se a descolonização refere­se a momentos históricos em que
os  sujeitos  coloniais  se  insurgiram  contra  os  ex­impérios  e  reivindicaram  a
Se  a  primeira  tese  aborda  a  atitude  básica  que  está  em  jogo  na  confron‐
independência, a decolonialidade refere­se à luta contra a lógica da coloniali‐
tação com as questões sobre o significado e a importância da colonização e da
dade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos. Às vezes o termo des‐
descolonização,  a  segunda  introduz  uma  clarificação  conceitual  que  torna
colonização é usado no sentido de decolonialidade. Em tais casos, a descolo‐
mais  difícil  se envolver  em  simplificações  excessivas.  Tendências  usuais  no
nização  é  tipicamente  concebida  não  como  uma  realização  ou  um  objetivo
esforço de fazer o colonialismo e a descolonização parecerem irrelevantes in‐
pontual, mas sim como um projeto inacabado. Colonialismo é também usado
cluem suas relativizações e interpretações como assuntos que somente se refe‐
às vezes no sentido de colonialidade.
rem ao passado. Colonialismo e descolonização são às vezes definidos de mo‐
Um dos resultados desta tese é que, ao contrário do padrão e do conceito
do  tão  generalizante,  que  acabam  se  aplicando  a  todas  as  formas  de  cons‐
histórico ou puramente empírico do colonialismo, colonialidade é uma lógica
trução  do  império  e  de  resistência,  desde  o  começo  da  humanidade.  Mas
que  está  embutida  na  modernidade,  e  decolonialidade  é  uma  luta  que  busca
quando  sujeitos  colonizados  apontam  para  a  relevância  da  colonização  e  da
alcançar  não  uma  diferente  modernidade,  mas  alguma  coisa  maior  do  que  a
descolonização, eles tendem a se referir particularmente às formas modernas
modernidade. Isso não significa que um número de ideias e práticas que usu‐
de colonização. A confusão massiva começa a ser feita quando o interlocutor
almente consideramos “modernas” não fará parte dessa outra ordem mundial,
imagina um conceito trans­histórico de colonialismo que se aplicaria tanto ao
bem como não significa que o que chamamos de modernidade eliminou tudo
Império Romano na antiguidade quanto aos impérios não europeus anteriores
o  que  a  própria  modernidade  no  seu  discurso  autorreferido  concebeu  como
à descoberta do Novo Mundo. A estratégia é simples: fazer do colonialismo
diferente dela, como a filosofia antiga e uma variedade de ideias medievais. A
um conceito geral para que ele perca especificidade e quaisquer implicações
diferença é que, enquanto a modernidade ocidental atingiu uma identidade ao
sobre o presente. Isso não significa que não há laços importantes entre dife‐
inventar uma narrativa temporal e uma concepção de espacialidade que a fez
rentes formas de colonialismo e construção do império, bem como entre vár‐
parecer como o espaço privilegiado da civilização em oposição a outros tem‐
ios modos de desumanização; no entanto, a relevância contemporânea do co‐
pos e espaços, a busca por uma outra ordem mundial é a luta pela criação de
lonialismo  e  da  descolonização  é  perdida  se  esses  conceitos  são  abordados
um mundo  onde  muitos mundos  possam  existir,  e  onde,  portanto,  diferentes
apenas dessa forma.
concepções  de  tempo,  espaço  e  subjetividade  possam  coexistir  e  também  se
No esforço de obter esclarecimento sobre o significado e a importância do
relacionar produtivamente.
colonialismo e da descolonização, é útil distinguir colonialismo, colonialismo

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Terceira tese: Modernidade/colonialidade é uma forma de catástrofe po ontológica, epistemológica e ética. A catástrofe metafísica inclui o colapso
metafísica que naturaliza a guerra que está na raiz das formas moder‐ massivo e radical da estrutura Eu­Outro de subjetividade e sociabilidade e o
no/coloniais de raça, gênero e diferença sexual começo da relação Senhor­Escravo. Isso introduz o que eu denominei em ou‐
É frequentemente reconhecido que “por todos pontos de vista, a conquista tro lugar de diferença subontológica ou diferença entre seres e aqueles abaixo
das  Américas  levou  a  uma  das  maiores  catástrofes  demográficas,  se  não  a dos seres (MALDONADO­TORRES , 2008). Isto é, a principal diferenciação entre
maior, que o mundo já viu” (JAHN , 2000, p. 73). Tudo indica que foi a maior sujeitos será menos uma questão de crença e mais de essência nessa nova or‐
catástrofe  demográfica  ao  menos  até  aquele  ponto,  e  que  serviu  como  uma dem mundial.
fundação de modelos para outras formas de catástrofe demográfica até a atua‐ A catástrofe metafísica e a emergência da diferença subontológica não se
lidade. Essa “descoberta” e conquista tem esse caráter massivo e paradigmát‐ dão no vácuo. Se a diferença subontológica fosse apenas uma questão de se‐
ico  porque  não  representou  uma  catástrofe  somente  demográfica,  mas paração metafísica, ela não necessariamente levaria à relação de violência que
também metafísica. Com isso eu quero dizer que a “revolução” que foi a “de‐ existe entre a ordem do ser e a ordem abaixo dos seres. Entre os séculos XII e
scoberta” das Américas envolveu um colapso do edifício da intersubjetividade XV, o mundo cristão ocidental estava cada vez mais engajado em guerras pa‐
e da alteridade e uma distorção do significado da humanidade. Essa catástrofe ra supostamente defender a terra santa e seus reinos de mulçumanos e outros
metafísica está no cerne da transformação da “epistemologia, ontologia e étic‐ cristãos.  Essa  trajetória  atinge  seu  clímax  na  Península  Ibérica,  onde  reinos
a”, que é parte da fundação da modernidade/colonialidade e das ciências euro‐ cristãos estavam em oposição ao Império Otomano, onde cristãos começaram
peias modernas. uma doutrina de “limpeza de sangue” para ajudar a controlar potenciais dissi‐
As divisões bastante radicais entre seres humanos já existiam no Ocidente, dentes e onde os portugueses já tinham começado a viajar para novas terras na
tais como as diferenças entre cristãos e não cristãos, homens e mulheres, su‐ África  e  a  escravizar  pessoas  (WYNTER  ,  1995;  MALDONADO­TORRES  ,  2014).
jeitos saudáveis e leprosos, entre outras distinções. Entretanto, as divisões ten‐ Todas essas práticas tiveram de ser justificadas em termos que fossem recon‐
deram a ser limitadas e contidas pela ideia monoteísta de um Deus que criou ciliados com o monoteísmo e a noção de Cadeia dos Seres. A catástrofe me‐
todos e de uma Cadeia dos Seres que ligava a criação inteira entre si e o divi‐ tafísica tornou possível que as mesmas e, até mesmo as piores ações fossem
no. A “descoberta” não só colocou em questão o caráter englobante da Escri‐ infligidas  contra  pessoas  não  cristãs  vivendo  fora  dos  reinos  europeus,  sem
tura e dos Antigos – nenhum dos quais parece ter dito algo sobre a existência muita necessidade de justificativa legal. Isso fez com que as ações excepcio‐
de tais terras –, como também erodiu o entendimento do universo em termos nais e os modos de comportamento que foram exibidos durante os tempos de
de uma Cadeia dos Seres tendo Deus como sua cabeça. A “descoberta” agora guerra agora se tornassem parte de uma maneira natural de se comportar em
apareceu como um agente histórico com o direito e dever de nomear o mun‐ relação  aos  novos  povos  descobertos  e  escravizados  e  às  outras  pessoas  no
do, classificá­lo e usá­lo para o seu próprio bem­estar (TODOROV , 1999; WYN‐ planeta, que seriam classificadas usando o mesmo paradigma.
TER  ,  1991;  1995).  Por  isso,  a  observação,  ao  invés  da  revelação,  seria  cada Essa  catástrofe  metafísica,  ligada  à  civilização  ocidental  e  à  guerra,  que
vez  mais  a  chave.  O  desencantamento  do  mundo  e  sua  concepção  utilitária leva  à  naturalização  do  combate,  explica  porque  as  condições  coloniais  na
são  partes dessa mudança, como é também o reordenamento de todas  as re‐ modernidade se assemelham a zonas de guerra perpétuas, onde a extrema e a
lações humanas existentes e formas de dominação. constante violência em baixo nível são continuamente direcionadas às popu‐
Um ponto de partida para essa modernidade foi, portanto, o postulado de lações  colonizadas  e  àqueles  que  são  identificados  como  seus  descendentes
uma separação que quebrou com, ou pelo menos começou a tornar irrelevan‐ (MALDONADO­TORRES , 2008). Também explica porque a diferença subontológ‐
te,  a noção  de  uma cadeia  que  conectava todos  os seres  ao Divino. Isso  é  o ica toma a forma de um dualismo maniqueísta por meio do qual o colonizador
que eu nomeio de catástrofe metafísica, uma catástrofe que é ao mesmo tem‐ é identificado como bom e o colonizado como mal. O maniqueísmo resiste ao

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movimento dialético, o que significa que, na colonialidade, o mundo moderno diferentemente. Inimigos masculinos tendem a ser percebidos como guerrei‐
está instalado numa guerra permanente contra o povo colonizado, seus costu‐ ros ou potenciais guerreiros que representam uma ameaça imediata, enquanto
mes  e um vasto conjunto de  suas criações e  seus produtos como alvos  mais os inimigos femininos, que podem ser tão ou mais ameaçadores que qualquer
diretos. A modernidade/colonialidade é um paradigma de guerra que se colo‐ homem, são vistos como aqueles que permitem que os inimigos se reprodu‐
ca  como  justo  e  que  faz  o  contexto  colonial  sempre  violento,  uma  situação zam e, em alguns casos, carreguem a tradição e a memória do grupo. Nesse
que normaliza a violência bem além das fronteiras das colônias e ex­colônias cenário é comum que os homens sejam frequentemente mais torturados e mu‐
(MALDONADO­TORRES  ,  2008).  A  violência  é  desencadeada  em  múltiplas  di‐ tilados do que mortos; enquanto as mulheres são igualmente mutiladas, tortu‐
reções, mesmo na metrópole, sendo que os sujeitos colonizados tendem per‐ radas, estupradas e/ou mortas.
sistentemente  a  ser  os  alvos  diletos  da  violência  sistemática.  Entretanto,  na Um terceiro nível inclui os resquícios das relações de gênero e concepções
medida em que qualquer violência é reconhecida nesse contexto, os próprios de sexo que existiram entre colonizados antes da colonização. Em alguns con‐
sujeitos  colonizados  são  percebidos  como  razão  final  para  tal  violência.  Es‐ textos, esses são mais reais e presentes que outros.
pera­se  que  eles  demonstrem  que  não  são  a  fonte  da  violência  ao  adotar  os Por fim, em um quarto nível, sexo e gênero emergem como resultado do
costumes e modos de pensar dos colonizadores. Isso só leva alguns dos colo‐ maniqueísmo e da diferença subontológica: aqueles que aparecem abaixo da
nizados a se juntarem aos colonizadores para perpetrar ou justificar mais vi‐ zona  do ser geram ansiedade e medo, mas também desejo. Essa dimensão  é
olência. construída  sobre  uma  certa  “tradição  pornô­trópica”  de  exploradores  euro‐
A naturalização da guerra não ajuda a explicar somente o giro maniqueísta peus,  dentro  da  qual  “mulheres  figuravam  como  o  protótipo  da  aberração  e
da  separação  ontológica  e  o  caráter  não  dialético  da  colonialidade,  como excesso sexual. O folclore as via, até mesmo mais que os homens, como pro‐
também certas dinâmicas de gênero e sexo. Guerra e gênero estão inextrinca‐ pensas  à  lascívia,  promíscuas  no  limite  do  bestial”  (MCCLINTOCK  ,  1995,  p.
velmente ligados, e os padrões de sexo e gênero na modernidade/colonialida‐ 22). Esse pornô­trópico estava presente no próprio contexto de “descoberta” e
de têm uma conexão profunda com o modo como gênero e sexualidade apare‐ colonização do Novo Mundo (MCCLINTOCK , 1995, p. 21­ 22).
cem em contextos de conflito (GOLDSTEIN , 2001; MALDONADO­TORRES , 2007; Como resultado, os corpos dos colonizados e escravizados podem ser con‐
SHARONI et al. , 2016). Ao  mesmo  tempo, a naturalização da guerra envolve cebidos, em um momento, como sem gênero ou com uma forma particular de
uma transformação de como sexo e gênero operam, não somente em contex‐ diferença de  gênero,  isto é, supersexualizados no sentido  patológico  de seus
tos pacíficos, como também em guerras tradicionais. Há uma operação com‐ órgãos  sexuais  e  partes  sexualizadas  do corpo definirem o ser  deles  com ou
plexa referente a sexo e gênero na modernidade/colonialidade. sem  gênero  propriamente  dito.  Essas  são  quatro  modalidades  básicas,  certa‐
Em um nível, a produção da diferença subontológica localiza os coloniza‐ mente entre outras, nas quais gênero e sexo trabalham na colonialidade, pro‐
dos  abaixo  das  categorias  de  gênero,  uma  vez  que  elas  pertencem  aos  seres duzindo a diferença subontológica, o maniqueísmo e a naturalização da guer‐
humanos. Os colonizados são preferencialmente concebidos como espécies de ra.
animais agressivos ou pacíficos – apesar de nunca completamente racionais –, Gênero e sexualidade também tomam dinâmicas particulares na parte “ci‐
que  podem  sempre  se  tornar  violentos.  Isso  leva  a  uma  dimensão  da  expe‐ vilizada” do mundo. No mundo “civilizado”, certos conceitos de masculinida‐
riência do ser colonizado em que estes são despojados de seu gênero e/ou de de  e  feminilidade  adquirem  status  proeminente  quando  eles  demonstram  ser
sua diferença sexual (CORNELL , 2015; DAVIS , 1983; GORDON , 2015; LUGONES centrais,  não  só  tolerando,  mas  também  perpetuando  a  guerra  sobre  bases
, 2007). constantes. A masculinidade agressiva torna­se uma norma junto com o senso
Ao mesmo tempo, em outro nível, assim como tem sido típico nas guerras de feminino, pensado para dar apoio e reproduzir tal masculinidade. O mode‐
ocidentais, os corpos dos inimigos masculinos e femininos são interpretados lo de feminilidade é o da esposa que cuida do seu marido e que ajuda a criar a

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próxima geração de homens. As mulheres que se desviam desse script perdem Extermínio, expropriação, dominação, exploração, morte prematura e con‐
respeitabilidade e podem ser suscetíveis à violência tanto ou mais que as mu‐ dições que são piores que a morte, tais como a tortura e o estupro, são ações
lheres  que  desempenham  seus  papéis  como  esposas  e  reprodutoras  de  ho‐ predominantes nos conflitos beligerantes. Algumas delas são às vezes consi‐
mens/guerreiros.  Ao  mesmo  tempo,  esse  modelo  de  relação  entre  homens  e deradas legalmente legítimas até um certo ponto, e outras são tidas no máx‐
mulheres é imposto sobre os sujeitos colonizados, o que adiciona ainda outro imo como temporárias ou são concebidas como tendo efeitos não pretendidos.
nível aos modos nos quais gênero e sexualidade funcionam no mundo coloni‐ Na modernidade/colonialidade, todas essas ações ocorrem permanentemente,
zado. Essa imposição é sistemática e ocorre de modo explícito e contundente, não como uma resposta a conflitos específicos, mas como formas de estar em
mas,  talvez,  mais  efetivamente  de  modo  sutil  por  meio  da  internalização  de acordo com a ordem percebida da natureza e do mundo. Como o colonialis‐
ideias e ideais de normatividade de gênero via educação e mídia. O resultado mo,  a  colonialidade  envolve  a  expropriação  de  terras  e  recursos,  mas  isso
é que o modelo de gênero e sexo do colonizador é tomado pelos sujeitos colo‐ acontece não somente através de apropriação estrangeira, mas também pelos
nizados  como  direcionador  de  suas  próprias  performances  em  seus  esforços mecanismos do mercado e dos Estados­nações modernos. Isso leva a uma si‐
de parecerem normais em um mundo que os considera essencialmente anor‐ tuação de ex­colônias, em que os sujeitos nativos estão despossuídos. Não so‐
mais, deficientes e maus. Isso leva a formas agressivas de masculinidade beli‐ mente terras e recursos são tomados, mas as mentes também são dominadas
gerante  entre  aqueles  considerados  como  perpétuos  derrotados  e  inimigos por formas de pensamento que promovem a colonização e a autocolonização.
sub­humanos.  Também  leva  homens  e  mulheres  colonizados  a  procurarem Os  corpos  são  também explorados pelo  trabalho  de  maneira  que os  mantêm
vários  modos  de  escapar  dessa  condição,  buscando  estar  com  colonizadores em um status inferior ao da maioria do proletariado metropolitano. Por causa
masculinos ou assumir o lugar deles, uma situação da qual colonizadores fre‐ disso,  seja  o  que  for  a  descolonização,  é  preciso  incluir  a  luta  por  redistri‐
quentemente tiram suas vantagens. buição de terras e recursos. Entretanto, ela não pode estar limitada a isso.
A colonialidade não se refere somente à imposição dos papéis de gênero Quinta tese: A colonialidade envolve uma transformação radical do sa‐
ocidentais sobre o colonizado, como também à combinação dessa prática com ber, do ser e do poder, levando à colonialidade do saber, à colonialidade
as múltiplas formas de desgenerificar e regenerificar que estão ligadas ao ma‐ do ser e à colonialidade do poder
niqueísmo, à diferença subontológica e aos entendimentos não ocidentais ain‐
As visões de mundo não podem ser sustentadas apenas pela virtude do po‐
da existentes de sexo e de gênero. Isso é parte do processo por meio do qual
der. Várias formas de acordo e consentimento precisam ser partes delas. Idei‐
sujeitos  colonizados  são  destruídos  em  pedaços  quando  não  são  mortos.  O
as sobre o sentido dos conceitos e a qualidade da experiência vivida (ser), so‐
que  quer  que  a  descolonização  signifique  nesse  contexto,  está  evidente  que
bre o que constitui o conhecimento ou pontos de vista válidos (conhecimento)
não  é  simplesmente  a  afirmação  de  formas  indígenas  de  conceber  gênero  e
e sobre o que representa a ordem econômica e política (poder) são áreas bás‐
sexo ou a rejeição do patriarcado como se ele não tivesse sido modificado pe‐
icas que ajudam a definir como as coisas são concebidas e aceitas em uma da‐
la colonialidade do gênero e do sexo no mundo colonizado. Essas são áreas­
da  visão  de  mundo.  A  identidade  e  a  atividade  (subjetividade)  humana
chave  no  estudo  da  colonialidade  e  da  decolonialidade,  particularmente  na
também produzem e se desenvolvem dentro de contextos que têm funciona‐
análise do papel constitutivo e constituinte de gênero, raça e sexualidade no
mentos  precisos  de  poder,  noções  de  ser  e  concepções  de  conhecimento.  A
mundo moderno/colonial (ESPINOSA MIÑOSO; CORREAL; MUÑOZ , 2014).
colonialidade  do  saber,  ser  e  poder  é  informada,  se  não  constituída,  pela
Quarta tese: Os efeitos imediatos da modernidade/colonialidade incluem catástrofe metafísica, pela naturalização da guerra e pelas várias modalidades
a naturalização do extermínio, expropriação, dominação, exploração, da diferença humana que se tornaram parte da experiência moderna/colonial
morte prematura e condições que são piores que a morte, tais como a enquanto, ao mesmo tempo, ajudam a diferenciar modernidade de outros pro‐
tortura e o estupro jetos civilizatórios e a explicar os caminhos pelos quais a colonialidade orga‐

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niza  múltiplas  camadas  de  desumanização  dentro  da  modernidade/coloniali‐ na teoria da colonialidade e decolonialidade, em conexão com a sociogênese
dade. fanoniana e pela identificação profunda de alguns dos elementos mais básicos
Como  eu  já  apontei,  a  “revolução”  da  “descoberta”  não  consistiu  apenas do saber, poder e ser, chega­se a este diagrama:
de ações particulares, tais como uma despossessão sem precedentes e a elimi‐
nação da vida humana, mas também concebeu uma catástrofe metafísica e a
emergência de um paradigma (um paradigma de guerra) com formas particu‐
lares do saber, ser, poder e subjetividade no seu centro. É somente em virtude
da articulação de formas do ser, poder e saber que a modernidade/colonialida‐
de  poderia  sistematicamente produzir  lógicas  coloniais,  práticas  e  modos  do
ser que apareceram, não de modo natural, mas como uma parte legítima dos
objetivos  da  civilização  ocidental  moderna.  Colonialidade,  por  isso,  inclui  a
colonialidade do saber, a colonialidade do poder e a colonialidade do ser co‐
mo três componentes fundamentais da modernidade/colonialidade.
Cada uma dessas principais dimensões do que constitui uma visão de mun‐
do tem ao menos três componentes básicos, e cada um deles inclui referência
ao sujeito corporificado:
Saber: sujeito, objeto, método.
Ser: tempo, espaço, subjetividade.
Poder: estrutura, cultura, sujeito.
Comum  às  três  dimensões  é  a  subjetividade.  O  que  quer  que  um  sujeito A  colonialidade  do  ser  envolve  a  introdução  da  lógica  colonial  nas  con‐
seja, ele é constituído e sustentado pela sua localização no tempo e no espaço, cepções e na experiência de tempo e espaço, bem como na subjetividade. A
sua posição na estrutura de poder e na cultura, e nos modos como se posiciona colonialidade do ser inclui a colonialidade da visão e dos demais sentidos, que
em relação à produção do saber. são meios em virtude dos quais os sujeitos têm um senso de si e do seu mun‐
Fanon mostrou esse tipo de relação entre o subjetivo e o objetivo em sua do.  Uma  exploração  da  colonialidade  do  ser,  portanto,  requer  uma  averi‐
consideração sobre a sociogênese (FANON , 2008, p. xv). Fanon também viu o guação da colonialidade do tempo e espaço, bem como da subjetividade, in‐
sujeito tanto como produto quanto como um gerador da estrutura social e cul‐ cluindo a colonialidade do ver, do sentir e do experienciar. A colonialidade do
tural, além de possuidor de uma completa visão de mundo de um tempo. Ou‐ saber e a colonialidade do poder envolvem a mesma operação em relação aos
tro modo de enunciar isso é identificar o sujeito não apenas como elemento­ elementos que as constituem. O mais direto e óbvio fio que unifica a colonia‐
chave  na  constituição  do  ser,  poder  e  saber,  mas  também  como  o  elemento lidade do poder, do saber e do ser é o sujeito colonizado, que eu proponho que
que mais obviamente conecta essas dimensões principais das quais nós toma‐ concebamos, seguindo Fanon, como um damné , ou condenado.
mos como real uns para os outros. O sujeito, portanto, é um campo de luta e Os  condenados  são  os  sujeitos  que  são  localizados  fora  do  espaço  e  do
um espaço que deve ser controlado e dominado para que a coerência de uma tempo humanos, o que significa, por exemplo, que eles são descobertos junto
dada ordem e visão de mundo continue estável. com suas terras em vez de terem o potencial para descobrirem algo ou de re‐
Ao trazer as dimensões básicas de uma visão de mundo (ser, poder, saber), presentarem um empecilho para a conquista de seu território. Os condenados
que também foram identificadas como chave geral e ampla de áreas de análise não podem assumir a posição de produtores do conhecimento, e a eles é dito
que não possuem objetividade. Do mesmo modo, os condenados são represen‐

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tados  em  formas  que  os  fazem  se  rejeitar  e,  enquanto  mantidos  abaixo  das negra da colonialidade moderna e emerge como um pensador e escritor. Pele
dinâmicas usuais de acumulação e exploração, podem apenas aspirar ascender negra é menos um livro sobre sujeitos negros e mais uma narrativa cataliza‐
na estrutura de poder pelos modos de assimilação que nunca são inteiramente dora com dimensões poéticas, analíticas e performativas, que busca ilustrar a
exitosos. A colonialidade do poder, ser e saber objetiva manter os condenados profundidade  da  colonialidade  como  um  problema  e,  em  contrapartida,  ani‐
em seus lugares, fixos, como se eles estivessem no inferno. Esse é o inferno mar a formação de uma atitude decolonial e gerar a ideia de decolonialidade
em relação ao qual o céu e a salvação do civilizado são concebidos e sobre os como um projeto. Entender o drama doloroso na busca pela atitude certa toma
quais ele está acoplado. o lugar da obsessão por métodos. A partir dessa perspectiva fanoniana, a atitu‐
de é mais fundamental que o método.
Sexta tese: A decolonialidade está enraizada em um giro decolonial ou
em um afastar­se da modernidade/colonialidade Steve Biko também entendeu o caráter fundamental da atitude quando de‐
finiu consciência negra como “uma atitude da mente e um caminho da vida, o
A mais básica expressão do giro decolonial está no nível da atitude, levan‐
mais positivo chamado que emana do mundo negro ao longo tempo” (BIKO ,
do à formação de uma atitude decolonial. O condenado, como entidade que é
2002 [1978], p. 91). Enquanto método define a relação entre um sujeito e um
criada no cruzamento da colonialidade do saber, poder e ser, tem o potencial
objeto, atitude refere­se à orientação do sujeito em relação ao saber, ao poder
de se distanciar dos  imperativos e normas que são  impostos sobre ele e que
e  ao  ser.  Portanto,  uma  mudança  na  atitude  é  crucial  para  um  engajamento
buscam mantê­lo separado de si. É o desejo do Eu de “tocar o outro, sentir o
crítico contra a colonialidade do poder, saber e ser e para colocar a decolonia‐
outro, revelar­me no outro”, contra os efeitos devastadores da catástrofe me‐
lidade como um projeto. A atitude decolonial é, então, crucial para o projeto
tafísica, que faz a formação dessa atitude possível, mesmo diante dos obstác‐
decolonial e vice­versa.
ulos apresentados pela lógica da modernidade/colonialidade (FANON , 2008, p.
Ao contrário da concepção habermasiana de modernidade como um proje‐
206).
to  inacabado  e  da  proposta  foucaultiana  de  modernidade  como  uma  atitude
Explicar a formação da atitude decolonial requer uma fenomenologia que
histórico­crítica, a decolonialidade é tanto uma atitude como um projeto ina‐
eu  estou  elaborando  em  outro  texto  em  diálogo  com  Pele  negra,  máscaras
cabado  que  busca  “construir  o  mundo  do  Ti”  5  (MALDONADO­TORRES  ,
brancas , de Fanon, mas que parcialmente aparece aqui e nas teses remanes‐
2016a).Construir o mundo do Ti implica uma oposição à catástrofe metafísic‐
centes. O tema da atitude é crucial em Pele negra , de Fanon. Basta conside‐
a, ao paradigma da guerra e à separação ontológica. Essa luta é buscada com
rar que um dos objetivos principais do livro é estudar as “várias atitudes men‐
amor – como atitude positiva do condenado – e raiva – como uma forma de
tais”  que  pessoas  negras  adotam  “em  face  da  civilização  branca”.  Atitude  é
negação que é inspirada e orientada pela atitude positiva do amor. Amor e rai‐
tanto  um  objeto  da  análise  quanto  um  elemento­chave  na  concepção  do  co‐
va são expressões do “sim” e do “não” que Fanon identifica como primárias
nhecimento avançado no livro. Não acidentalmente Fanon refere­se às atitu‐
da agência decolonial e da atitude decolonial.
des logo depois de fazer sua afirmação frequentemente citada sobre métodos:
Como  projeto  inacabado,  o  giro  decolonial  requer  uma  genealogia  que
“Nós deixamos os métodos para os botânicos e matemáticos. Existe um ponto
mostre seus vários  momentos através  da  história juntamente com  uma feno‐
em que os métodos se dissolvem” (FANON , 2008, p. 16). Fanon pode “deixar
menologia,  ambas  como  parte  de  sua  analítica.  Outra  parte  dessa  analítica
os métodos aos botânicos e matemáticos”, mas ele não pode igualmente dei‐
consiste na identificação do giro decolonial no âmbito do saber, poder e ser.
xar a atitude para trás; a atenção aos sujeitos negros como não patológicos re‐
As teses restantes capturam diferentes expressões  da atitude  decolonial e do
quer  uma  ruptura  com  a  atitude  moderno/colonial  que  é  predominante  nas
giro  decolonial  em  cada  um  desses  níveis.  Com  amor  e  raiva,  o  condenado
ciências europeias e em outros lugares. A partir disso, Pele negra oferece uma
emerge como um pensador, um criador/artista, um  ativista. Eu não pretendo
rota analítica dupla por meio da qual o autor reflete sobre atitudes enquanto
reduzir o saber ao pensamento, o ser à arte e o poder ao ativismo, mas eu pen‐
também descreve o drama do processo pelo qual ele rompe com a atitude anti‐

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so que a predominância usual destas principais áreas na luta contra a coloni‐ mento crítico emerge não pela virtude da dúvida hiperbólica, mas, pelo menos
zação pode ser explicada parcialmente pelas relações próximas delas com ca‐ parcialmente, como um efeito de sofrimento hiperbólico. Em vez de se tornar
da uma das dimensões básicas da colonialidade: saber, poder e ser. A decolo‐ um agente em seu próprio sofrimento, Fanon reza para que seu corpo perma‐
nialidade, portanto, tem a ver com a emergência do condenado como pensa‐ neça aberto e desvie­se criticamente de qualquer coisa que promova isolamen‐
dor, criador e ativista e com a formação de comunidades que se juntem à luta to, fechamento e sofrimento sistemático.
pela descolonização como um projeto inacabado. A decolonialidade requer um compromisso com o corpo como algo aberto,
como uma zona de contato, como uma ponte e zona de fronteira que, segundo
Sétima tese: Decolonialidade envolve um giro epistêmico decolonial, por
meio do qual o condenado emerge como questionador, pensador, teórico Cherríe Moraga e Gloria Anzaldúa, aproximam um amplo número de mulhe‐
e escritor/comunicador res negras que avançam em várias formas do que poderiam ser considerados
feminismos  decoloniais (MORAGA ;  ANZALDÚA ,  1981;  ANZALDÚA ;  KEATING  ,
Em Pele negra, máscaras brancas, Fanon não decide somente estudar ati‐
2002). Isso é parte do que Walter Mignolo tem se referido como corpo­polít‐
tudes antinegros encontradas nos próprios sujeitos negros, mas também mos‐
ica do conhecimento, em adição à geopolítica do conhecimento e em oposição
trar um caminho que inclua a emergência da atitude decolonial, e com ela a
à teo­e­ego­política do conhecimento, e é também o que ele e Madina Tlosta‐
possibilidade de o condenado escrever e se comprometer com a decolonialida‐
nova concebem como uma forma de “teorizar a partir das fronteiras” (MIGNO‐
de como um projeto. Esse é o cerne do que eu tenho chamado, em algum lu‐
LO , 2006, 2010; MIGNOLO ; TLOSTANOVA , 2006). A crítica decolonial encontra
gar,  de  meditações  fanonianas,  em  que  o  condenado  corporificado,  e  não  o
sua âncora no corpo aberto. Quando o condenado comunica as questões crític‐
ego cogito ou o  ego transcendental , aparece no centro da análise, não sim‐
as  que  estão  fundamentadas  na  experiência  vivida  do  corpo  aberto,  temos  a
plesmente para melhor conhecer, mas também para mais radicalmente mudar
emergência  de um outro  discurso e  de uma  outra  forma  de  pensar.  Por  essa
o mundo.
razão, a escrita para muitos  intelectuais negros e de cor  é  um evento  funda‐
A transição da solidão da condenação para a possibilidade da comunicação
mental. A escrita é uma forma de reconstruir a si mesmo e um modo de com‐
passa pela formulação de questões críticas. É esse o porquê de a formulação
bater  os  efeitos  da  separação  ontológica  e  da  catástrofe  metafísica.  Por  isso
de questões ser tão importante nos trabalhos dos  agentes da descolonização,
Fanon  escreveu  Pele  negra  ,  apesar  de  “ninguém  a  ter  solicitado”;  por  isso
tais como Aimé Césaire, que em seu Discurso sobre o colonialismo colocou
Anzaldúa  considerou  a  escrita  “uma  forma  de  vida”;  e  também  por  isso  era
“o que, fundamentalmente, é a colonização?” como “uma questão inicialmen‐
tão revolucionário os escritos de Biko circularem com o título Escrevo o que
te  inocente”,  que  deve  ser  vista  e  respondida  “francamente”,  o  que  a  torna
eu quero (2002 [1978]).
também “perigosa” (CÉSAIRE , 2000, p. 32). Fanon também considerou o mo‐
mento do questionamento como chave; como narrador e analista em seu Pele Oitava tese: Decolonialidade envolve um giro decolonial estético (e fre‐
negra, máscaras brancas, ele conclui o texto com uma prece para fazer com quentemente espiritual) por meio do qual o condenado surge como cria‐
que  ele  seja  sempre  alguém  que  questione  (FANON  ,  2008,  p.  206).  Como  a dor
mente do colonizado está dominada por histórias e ideias que o fazem confir‐ Viver de uma maneira que afirme a abertura do corpo faz parte da atitude
mar  a  colonialidade  do  saber,  poder  e  ser,  Fanon  reza  para  que  seu  corpo  o decolonial que não somente permite a possibilidade do questionamento crític‐
torne  alguém  que  sempre  questione.  Ele  concebe  o  corpo  como  uma  “porta o, mas também a emergência de visões do eu, dos outros e do mundo que de‐
aberta de toda consciência” e, portanto, sua prece é para que o corpo perma‐ safiam os conceitos de modernidade/colonialidade. O corpo aberto é um cor‐
neça aberto e contra qualquer imperativo sociogenicamente gerado que queira po questionador, bem como criativo. Criações artísticas são modos de crítica,
fechá­lo. Essa é uma concepção de subjetividade e de formação de questões autorreflexão e proposição de diferentes maneiras de conceber e viver o tem‐
bastante diferente da que se encontra em René Descartes. Aqui, o questiona‐ po, o espaço, a subjetividade e a comunidade, entre outras áreas. A decolonia‐

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lidade requer não somente a  emergência de uma mente crítica, mas também renúncia das instituições e práticas que mantêm a modernidade/colonialidade.
de sentidos reavivados que objetivem afirmar conexão em um mundo defini‐ A  plataforma  decolonial  para  muitos  sujeitos  críticos  e  criativos  cooptados
do  por  separação.  A  criação  artística  decolonial  busca  manter  o  corpo  e  a pela lógica do reconhecimento talvez termine aqui, e eles se tornam, em uma
mente abertos, bem como o sentido aguçado de maneira que melhor possam ocasião ou mais que em uma ocasião, agentes da colonialidade.
responder  criticamente  a  algo  que  objetiva  produzir  separação  ontológica. O  ativismo  tradicional  também  pode  cair  em  tais  formas  de  cooptação  e
Nesse sentido, a criação artística decolonial pode ser entendida como uma for‐ decadência. Isso acontece quando ativistas se consideram mais radicais que os
ma de estender a prece que Fanon faz ao seu corpo. A performance estética teóricos e artistas, por exemplo, como se o verdadeiro ativismo não procuras‐
decolonial é, entre outras coisas, um ritual que busca manter o corpo aberto, se juntar essas áreas e mobilizá­las contra os muros de separação criados pela
como uma fonte contínua de questões. Ao mesmo tempo, esse corpo aberto é modernidade/colonialidade.  O  ativismo  não  é,  portanto,  algo que  existe  fora
um corpo preparado para agir. do pensamento ou da criação. O ativismo ocorre através deles, assim como na
O giro estético decolonial é um distanciamento da colonialidade da visão e discussão  de  estratégias  para  mudar  instituições  específicas  na  sociedade.
do sentido. É um aspecto­chave da decolonialidade do ser, incluindo a decolo‐ Mas, para que o giro decolonial se torne um projeto, nenhuma dessas áreas de
nialidade do tempo, espaço e subjetividade. Ele está também conectado à de‐ atividades pode existir isoladamente. A agência do condenado é definida pelo
colonialidade da espiritualidade, um ponto que é bem expresso por Anzaldúa pensamento, pela criação e pela ação, de um modo que busque trazer juntas as
quando ela escreve que, “na etnopoética e performance do xamã, meu povo, várias expressões do condenado para mudar o mundo.
os indígenas, não separavam o artístico do funcional, o sagrado do secular, a
Décima tese: A decolonialidade é um projeto coletivo
arte da vida cotidiana. Os propósitos religiosos, sociais e estéticos da arte es‐
tavam todos interligados” (ANZALDÚA , 2007, p. 88). A espiritualidade está em A emergência do condenado como um questionador, um orador, um escri‐
grande parte conectada à decolonialidade do ser e também ao abarcamento da tor e um sujeito criativo é um evento impossível dentro da lógica e dos termos
unidade de saber, poder e ser. A estética decolonial tem também esse caráter: do mundo moderno/colonial. O impossível ocorre toda vez que o condenado
liga  e  interliga,  conecta  e  reconecta  o  eu  consigo  mesmo,  o  conhecimento aparece  dessas  maneiras. A  resposta é  previsível: a  ordem  moderna/colonial
com as ideias, as ideias com as questões, as questões com os modos de ser. busca  descartar  a  anomalia  tanto  rejeitando,  minimizando,  humilhando,  ma‐
tando e exotizando quanto estereotipando o condenado. A atitude decolonial
Nona tese: A decolonialidade envolve um giro decolonial ativista por
envolve  renúncia  aos  sistemas  de  valores  que  permitem  que  a  resposta  que
meio do qual o condenado emerge como um agente de mudança social
busca desqualificar o condenado como uma anomalia funcione. Mas um con‐
O pensamento e a criatividade não podem por si só mudar o mundo. Pode‐ denado sozinho não pode ir muito longe.
mos também adicionar outras atividades, tal como a espiritualidade, e, mesmo A decolonialidade, entretanto, não é um projeto de salvação individual, e
assim,  elas  não  podem  mudar  o  mundo.  O  condenado  precisa  aproveitar  a sim um projeto que aspira “construir o mundo do Ti”. O pensamento, a criati‐
multiplicidade de atividades, pensamento, criatividade, etc., e torná­los parte vidade e a ação são todos realizados não quando se busca reconhecimento dos
de estratégias e esforços para efetivamente descolonizar o poder, o saber e o mestres, mas quando estendemos as mãos aos outros condenados. São os con‐
ser. Isso exige a emergência do condenado como um agente de mudança, co‐ denados  e  os  outros,  que  também  renunciam  à  modernidade/colonialidade,
mo alguém que evita a tentação de fazer das atividades do pensamento e da que pensam, criam  e  agem juntos  em  várias  formas de comunidade  que  po‐
criatividade zonas de refúgio da colonialidade. Nessas posições, o acadêmico, dem perturbar e desestabilizar a colonialidade do saber, poder e ser, e assim
o teórico e o artista podem facilmente ser cooptados quando buscam reconhe‐ mudar o mundo. A decolonialidade é, portanto, não um evento passado, mas
cimento de arenas específicas, tais como o mundo acadêmico e o artístico. O um projeto a ser feito. O diagrama final representa algumas dessas peças fun‐
giro  decolonial  requer  uma  suspensão  da  lógica  de  reconhecimento  e  uma damentais.

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