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Cinema, globalização

e interculturalidade
Cinema, globalização
e interculturalidade
Andréa França
Denilson Lopes
(Orgs.)

A^GoJ-
E d i t o r a da U n o c h a p e c ó

Chapecó, 2010
UNOCHAPECÓ
UNIVERSIDADE COMUNITARIA DA REGlAO DE CHAPECÓ

Reitor: Odilon Luiz Poli


Vice-Reitora de Ensino, Pesquisa e Extensão: Maria Luiza de Souza Lajús
Vice-Reitor de Planejamento e Desenvolvimento: Claudio Alcides Jacoski
Vice-Reitor de Administração: Sady Mazzioni

Diretor de Pesquisa e Pós-Graduação Stricto Sensu: Ricardo Rezer

© 2010 Argos Editora da Unochapecó


Este livro ou parte dele não podem ser reproduzidos por qualquer meio sem
autorização escrita do Editor.

791.4309 Cinema, globalização e interculturalidade / Andréa França,


C574 Denilson Lopes (Orgs.); - Chapecó, SC: Argos, 2010.
401 p. (Grandes Temas ; 6)

Contém artigos traduzidos do inglês para o português.


Inclui bibliografia.

1. Cinema - História e crítica. I. França, Andréa.


II. Lopes, Denilson. III. Título.

CDD 791.4309

ISBN: 978-85-7897-004-8 Catalogação Daniele Lopes CRB 14/989


Biblioteca Central Unochapecó

A^Goj-
Editora da U n o c h a p e c ó

Conselho Editorial:
Carla Rosane Paz Arruda Teo, César da Silva Camargo,
Érico Gonçalves de Assis, Maria Assunta Busato,
Maria dos Anjos Lopes Viella, Maria Luiza de Souza Lajús,
Murilo Cesar Costelli, Ricardo Rezer,
Rosana Maria Badalotti, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski

Coordenadora:
Maria Assunta Busato
Sumário

Apresentação 9

MÓDULO I
Cinema mundial, cinema intercultural

Baraka: o cinema mundial e a indústria cultural global 17


Martin Roberts
O cinema intercultural na era da globalização 43
Hudson Moura
Identificando o conceito de cinema transnacional 67
Vicente Rodríguez Ortega
Paisagens transculturais 91
Denilson Lopes
MÓDULO II
Cinema, periferia e hibridismo

Para além do Terceiro Cinema: estéticas do hibridismo 111


Robert Stam
Situando o cinema com sotaque 137
Hamid Nafícy
Outras margens, outros centros: algumas notas 163
sobre o cinema periférico contemporâneo
Angela Prysthon

MÓDULO III
Enunciados de nacionalidade e
imaginários transnacionais

Cinema chinês no novo século: perspectivas e problemas 179


Yingjin Zhang

Canibais viajantes 193


Anelise Reich CorseuiJ e Renata R. Mautner Wasserinan

Imagens de itinerância no cinema brasileiro 219


Andréa França
MÓDULO IV
Recepção e audiência

Dialeto e modernidade no cinema 245


sinófono do século XXI
Sheldon Lu
O cinema na África: dos contos ancestrais 267
às mistificações cinematográficas
Mahomed Bamba
História, tragédia e farsa: The Presidents last 281
bang nos circuitos dos festivais de cinema
Leo Goldsmith

MÓDULO V
Nas fronteiras da memoria,
do desejo e do afeto

A memoria das coisas 309


Laura U Marks
A dialética da identidade transnacional e o desejo 345
feminino em quatro filmes de Claire Denis
Rosanna Maule
o que vi quando te vi? Os diários de 371
viagem sul-americanos na França
Andrea M olfetta

Sobre os autores 397


A presentação

Esta coletânea não é apenas um somatório de artigos dedi­


cados ao tema que a intitula. Ela pretende ser um registro de pen­
samentos e questões sobre as imagens contemporâneas, sobretu­
do o cinema, permeadas pelas experiências de estrangeiridade,
ambivalência, estranhamento, nomadismo, desenraizamento. A
diversidade de abordagens sobre o tema é esclarecedora: há uma
compreensão do desafio político e estético que é colocar em
cena hoje aquilo que desaparece cotidianamente diante de to­
dos nós, isto é, a memória coletiva, a possibilidade de um mundo
comum que possa incluir aqueles que dele estavam excluídos por
diferentes razões.
Se o cenário contemporâneo - globalizado, midiático, digi­
tal - tem tematizado de forma ampla e contundente questões de
identidade individual, cultural, nacional, este livro quer pensar esse
quadro de dentro do cinema feito na década de 1990 em diante.
Em outros países, já existem diversas publicações dedicadas ao tema
da interculturalidade, da dinâmica da globalização e do cinema.
No Brasil, ainda há uma insuficiência de bibliografias nesse campo,
com poucas exceções, como o livro Crítica da imagem eurocêntrica,
de Ella Shohat e Robert Stam (2002). Nesse sentido, uma das preo­
cupações que nortearam a coletânea foi justamente a de suprir essa
lacuna. Trazer essa discussão para o âmbito do cinema significou
colocar em relevo as seguintes interrogações: de que modo os pro­
cessos de globalização das economias, o progresso e a expansão das
tecnologias da comunicação, a intensificação do fenômeno da
hibridação cultural, o questionamento dos centros hegemônicos
(Europa, EUA), o enfraquecimento das fronteiras nacionais têm afe­
tado os produtos e as obras audiovisuais? A transnacionalização do
capital, da produção audiovisual e dos espectadores auxilia na ela­
boração de novas propostas estéticas ou tende a consolidar produ­
tos homogeneizados e desvitalizados? Como as novas cinemato­
grafias (Ásia, Europa do Leste etc.) têm afetado e redefinido o pen­
samento e a prática do cinema e do audiovisual contemporâneo?
Tais perguntas auxiliam na compreensão e no que está em
jogo na proposta deste livro, composto pela reflexão de professo­
res e pesquisadores de diferentes campos teóricos e nacionalida­
des, que buscam pensar as representações, os valores e os sentidos
que as imagens - de nomadismo, fronteira, hibridismo, diáspora -
trazem consigo e, ainda, a noção ampla, polêmica e instigante de
cultura - tomada aqui não como essência fundadora e definitiva
de um povo, mas como um composto híbrido e múltiplo de
vozes, histórias e narrativas. Mais do que nunca, o cinema contem­ nem sempre essas narrativas são assim
dissonantes.

porâneo tem uma contribuição a dar a essa discussão quando cria


narrativas dissonantes da TV globalizada e imagens que instauram
tensões e imprevisibilidade, pois no centro dessas representações
existem as relações intersubjetivas - ator/personagem/espectador
relações que só podem ser experimentadas e analisadas a partir de
outros cânones não industriais-mercantis.
Os artigos presentes neste livro, alguns já publicados fora do
Brasil, mas inéditos por aqui, foram agrupados em cinco módulos
distintos:

Módulo I: Cinema mundial, cinema intercultural


Ao abordar a emergência do imaginário global através do ci­
nema e sua relação com as dimensões culturais da globalização eco­
nômica, este módulo traz contribuições conceituais e metodológicas
aos temas correlatos à inter e à transculturalidade no cinema. Além
disso, reavalia conceitualmente as inúmeras e diferentes abordagens
sobre o papel dessas imagens na produção de identidades e imagi­
nários culturais transnacionais. Interessa, nessa primeira parte, focar
e discutir os momentos em que as diferenças culturais - explora­
das nos filmes mais diversos, como Felizes Juntos (Wong Kar Wai),
Encontros e desencontros (Sofia Coppola), Paradise Now (Hany
Abu-Assad) - estão a serviço de uma política transnacional mais
ampla e não simplesmente no espaço engajado e militante do ter-
ceiro-mundismo. Contamos com a colaboração de Martin Roberts
{New School for Social Research), com “Baraka: o cinema mundial
e a indústria cultural global”; de Hudson Moura (PUC-SP), com
uO cinema intercultural na era da globalização”; de Vicente
Rodriguez Ortega (NYU), com “Identificando o conceito de cine­
ma transnacional”; e de Denilson Lopes (UFRJ), com “Paisagens
transculturais”.
Módulo II: Cinema, periferia e hibridismo
A partir de abordagens teóricas e conceituais distintas, dis­
cute-se a emergência de cinemas “menores” ao longo da década de
1990, evidenciando, porém, que, sob essa e outras nomenclaturas,
não há nenhuma unidade estética, temática ou política. Há o pres­
suposto de que, para usufruir de fato das imagens do cinema con­
temporâneo, faz-se necessário relacionar os aspectos históricos e
sociais que consolidaram a ideia de Terceiro Mundo e os fenôme­
nos culturais que fizeram parte desse contexto. Discutem-se filmes
como Central do Brasil (Walter Salles), Amores Brutos (Alejandro
González Iñarritú), Cronicamente inviável (Sergio Bianchi), entre
outros. Contamos com os artigos de Robert Stam ( N ew York
University)>“Para além do Terceiro Cinema: estéticas do hibridismo”;
de Hamid Naficy (Northwestern University), “Situando o cinema
com sotaque”; e de Angela Prysthon (UFPE), “Outras margens,
outros centros: algumas notas sobre o cinema periférico contem­
porâneo”.

Módulo III: Enunciados de nacionalidade e imaginários


transnacionais
Discute-se, neste módulo, a invenção dos enunciados de
nacionalidade no cinema, suas continuidades, seus deslocamen­
tos e suas rupturas históricas e culturais. Trata-se de analisar, atra­
vés de diferentes abordagens teóricas, que formas de imaginário
identitário e nacional estão em jogo na produção das imagens
contemporâneas, tanto na China quanto no Brasil. Em comum,
na leitura crítica e na experiência dos filmes, há o pensamento
da nação como uma dimensão não totalizável, o propósito de
desleitura do passado na invenção do novo, a afirmação de um
essencial inacabamento presente em tais enunciados que nos inter­
pela. Contamos com Yingjin Zhang (University o f California - San
Diego), “Cinema chinés no novo século: perspectivas e problemas”;
Anelise Reich Corseuil (UFSC) e Renata R. Mautner Wasserman
(Wayne State University ), “Canibais viajantes”; e Andréa França
(PUC-Rio), “Imagens de itinerância no cinema brasileiro”.

Módulo IV: Recepção e audiência


Neste módulo, os autores exploram as relações profícuas,
ainda pouco estudadas dentro das universidades brasileiras, entre
a projeção do filme e suas formas de recepção, isto é, a projeção
cinematográfica de imaginário nacional e os modos de circulação
social dessas imagens, seja em função dos festivais de cinema inter­
nacionais, das formas de coprodução transnacionais ou dos diver­
sos dialetos que porventura integram e fazem parte do mesmo país.
Trata-se de pensar de que modo a projeção do filme se duplica, cir­
culando entre a tela da sala e a tela mental do espectador. Duplo
sentido da palavra “tela”, em que o movimento do filme em direção
ao outro, à audiência, colabora de forma errática, porém decisiva,
na construção de imaginários de pertencimento. Contamos com os
artigos de Sheldon Lu {University o f California - Davis), “ Dialeto
e modernidade no cinema sinófono do século XXI”; Mahomed
Bamba (UFBA), “O cinema na África: dos contos ancestrais às mis­
tificações cinematográficas”; e Leo Goldsmith {New York University),
“Historia, tragédia e farsa: The Presidents last bang nos circuitos
dos festivais de cinema”.
Módulo V: Nas fronteiras da memória, do desejo e do afeto
A proposta dos três artigos deste módulo é explorar e com­
preender o lugar da memória e dos afetos nas imagens do cinema
transcultural. Entende-se que a questão da memória é definida num
jogo constante de posicionamentos no espaço e no tempo, de des­
locamentos e de contato/ação entre sujeitos, sendo esse universo
de reposicionamentos contínuos o próprio terreno da experiência.
Algumas imagens do cinema transcultural trazem consigo, tornam
visível e constroem efetivamente memórias perdidas, afetivas,
subterrâneas, históricas. Essas imagens dizem respeito à subjetivida­
de daqueles que nelas estão envolvidos e, nesse sentido, abrem uma
janela sobre o interior complexo dos seres (personagens e especta­
dores). Contamos com Laura U. Marks (Simon Fraser University),
“A memória das coisas”; Rosanna Maule (Concordia University), “A
dialética da identidade transnacional e o desejo feminino em qua­
tro filmes de Claire Denis”; Andrea Molfetta (UBA), “O que vi quan­
do te vi? Os diários de viagem sul-americanos na França”.
MODULO I
Cinema mundial,
cinema intercultural
Baraka: o cinema mundial e a
indústria cultural global*1

M artin Roberts

Encolhendo o planeta

Após três mil anos da crescente valorização


da especialização e alienação nas extensões
tecnológicas dos nossos corpos, nosso mundo
comprimiu-se de forma dramática. Eletricamente
reduzido, o globo não é mais que uma aldeia.
Marshall McLuhan2

Desde o m om en to em que M arshall M cLuhan proclam ou


que as com unicações tecnológicas tinham “ reduzido” o m u n do
eletricam ente à d im en são de u m a aldeia global, parece que o
planeta Terra tem encolhido: a TV via satélite, os program as de
milhagem das com panhias aéreas e, é claro, a internet estão “ tran s­

* Tradução de Raquel Maysa Keller, f N.T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação).
1. Este texto é uma versão traduzida e reduzida do artigo “ Baraka: World Cinema and
the Global Culture Industry”. Cinem a Journal, v. 37, n. 3, p. 62-82, primavera 1998.
2. McLuhan, M arshall. U nderstanding M edia. New York: McGraw Hill, 1964.
formando o mundo num lugar menor”. Trinta anos depois do li­
vro Meios de comunicação como extensões do homem , a aldeia
global se tornou um lugar-comum, e McLuhan foi canonizado,
pela revista Wired\ como um profeta visionário de um mundo no
qual a distância já não importa mais. Os comerciais de TV mos­
tram famílias conversando ao celular com parentes do outro lado
do planeta, ou membros de uma tribo africana, felizes, usando
notebooks.
Este texto considera os impactos dessas evoluções no âmbi­
to cinematográfico. Por um lado, a história do cinema se confun­
de, desde o início, com processos globais do colonialismo até suas
consequências pós-coloniais. Atualmente, o cinema se tornou uma
forma de cultura global, porém diferente em suas manifestações
locais. Ao mesmo tempo, o discurso de McLuhan da aldeia global
tanto reflete quanto empresta um ímpeto adicional ao apareci­
mento de uma ideia imaginária do “mundo”, e este imaginário
global, como veremos adiante, tem assumido grande importância
no cinema contemporâneo. O cinema atual tem um papel signifi­
cativo na articulação e na perpetuação do que poderia ser chama­
do de mitologias globais: discursos ideológicos sobre o mundo e
a sua relação com a humanidade.
Ultimamente a crescente atenção em relação ao que ora é
chamado de “cinema mundial” ora de “cinema global” parece curi­
osa, já que a produção cinematográfica, a distribuição e o consu­
mo têm sido um assunto global. Há inúmeros estudos sobre a
indústria do cinema não ocidental, e o “Cinema Mundial” é abor­
dado atualmente como a “Literatura Mundial” foi estudada, na
língua inglesa, em departamentos, antes do advento dos estudos
pós-coloniais/ Ainda que as indústrias cinematográficas, em mui­
tas partes do mundo, permaneçam com intenso caráter nacional, a
atividade comercial de produção e de consumo cinematográficos é,
também, de natureza transnacional, como bem sabe todo o afri­
cano que cresceu vendo filmes de faroeste, musicais indianos,
filmes de arte marcial. Os estudos feitos até agora, como artigos
sobre a colonização mundial das telas de cinema por Sylvester
Stallone e Arnold Schwarzenegger, deixam claro que o comércio
transnacional de norte a sul, do oriente ao ocidente é uma questão
extremamente unilateral, mas tal ponto de vista (se é que algum
dia foi verdadeiro) está se tornando ultrapassado, já que se mostra
cada vez mais evidente que o comércio cultural é agora bilateral.
Em muitos casos, na verdade, decidir realmente de “onde” um fil­
me é e para “quem” ele é direcionado está ficando cada vez mais
com plicado: um film e de um diretor do Senegal p ode ser
coproduzido com dinheiro alemão e suíço, editado em Zurique
e, mais provavelmente, ser exibido para grandes públicos em Nova
Iorque e não em Dakar.4O cinema transnacional, os filmes de co­
munidades diaspóricas que vivem em cidades cosmopolitas do
Primeiro Mundo, se tornou um gênero em proliferação, que com­
pete com cinemas nacionais mais antigos.5

3. Ver, por exemplo: Armes, Roy. Third World Film Ahiking und the West. Berkeley:
University of California Press, 1987.
4. Aqui estou pensando no filme Hyènes(1992) de Djibril-Diop Mambety.
5. Ver, por exemplo: Naficy, Hamid. Phobic Spaces and Liminal Panics: Independent
Transnational Film Genre. In: Wilson, Rob; Dissanayake, Wimal (Eds.). Global/
Local: cultural production and the transnational imaginary. Durham, NC: Duke
University Press, 1996. p. 119-144.

IQ
Enquanto m uita atenção foi dedicada ultim am ente ao
surgimento de cinemas transnacionais e de diaspora, deu-se me­
nos atenção ao impacto da globalização sobre o filme europeu e
estadunidense. Tenho em mente aqui o número crescente de filmes
desde 1960 que são, de formas diferentes, sobre algo chamado o
“próprio mundo”. Entre eles se destacamM ondo Cane, de Gualtiero
Jacopetti e Franco Prosperi (1963); Sans Soleii\ de Chris Marker
(1982); Powaqaatsiy de Godfrey Reggio (1988); A té o Fim do
M undo , de Wim Wenders (1991); Uma N oite sobre a Terra, de
Jim Jarmusch (1991); Planeta Azul, da IMAX (1991). Ao mesmo
tempo em que os filmes em questão pertencem a cinemas nacio­
nais diferentes, a gêneros de filmes diferentes e dirigem-se a pú­
blicos diferentes, eles compartilham um a preocupação temática
com a globalização, com as novas formações culturais da ordem
mundial pós-colonial, e se esforçam para enquadrá-las em um a
visão totalizante do “mundo”. Concentro-me aqui em filmes des­
se tipo.
O filme específico que discutirei detalhadamente é Baraka
(EUA, 1992), filme de longa duração, documentário sem palavras
dirigido e film ad o p o r R on Fricke e p ro d u z id o p o r M ark
M agidson.6 Explicitamente inspirado pelos trabalhos do mitólogo
Joseph Campbell e filmado em 24 países, o filme apresenta um
retrato global do mundo e seus povos. Baraka é o último filme de

6. “ Uma palavra sufista antiga com form as em m uitas línguas”, o anúncio


promocional do filme explica, o termo baraka “pode ser simplesmente traduzido
como uma bênção, ou como a respiração, ou essência da vida a partir da qual o
processo de evolução é revelado.”
uma série de projetos relacionados com os quais Fricke esteve
envolvido desde o início da década de 1980, incluindo os filmes
Koyaanisqatsi (1983) e Powaqaafc/ (1988) de Godfrey Reggio, dos
quais ele foi o produtor e, mais recentemente, Chronos (1985),
filmado em oito países, que ele dirigiu e que foi, de alguma forma,
um protótipo para Baraka.
Embora tenha sido distribuído em mais de 20 países e tenha
recebido muitas resenhas na mídia popular, Baraka foi virtual­
mente ignorado pelos estudiosos acadêmicos de cinema.7 Pode­
ríamos atribuir isso à novidade de seu lançamento, ao número
absoluto de filmes competindo pela atenção do estudioso hoje
ou a sua relativa marginalidade comparada a filmes mais rentá­
veis (um critério em si mesmo questionável). Uma das razões
pelas quais o filme parece ter escorregado pelas fendas dos estu­
dos de cinema pode ser a dificuldade para localizá-lo dentro das
categorias usuais de gênero existentes na análise fílmica. Os pro­
blemas começam simplesmente ao tentar definir exatamente que
tipo de filme Baraka é. Ainda que orgulhosamente pertença a uma
categoria geral de documentário ou filme não narrativo, dife­
rentemente da maioria dos documentários, ele foi distribuído
com ercialm ente, e seu tem po de film agem (96 m in.) mal
corresponde à duração padrão do drama. Uma vez aceito como
documentário, pergunta-se: que tipo de documentário? Bill Nichols
distingue entre dois tipos de documentário: o historiográfico e o

7. O único artigo acadêmico que encontrei sobre Baraka até hoje foi a resenha de:
Staples, Amy. Mondo Meditations. American Anthropologist, n. 96, p. 662-668,1994.
etnográfico.8O primeiro é exemplificado pelo documentário po­
lítico (incluindo filmes de propaganda), desde o trabalho de Dziga
Vertov até o Terceiro Cinem a, e concebe o filme com o um
catalisador para a m udança social/política. O docum entário
etnográfico tem historicamente se preocupado com a docum en­
tação das cham adas sociedades ern risco de desaparecim ento
ameaçadas pela modernidade global. Enquanto Baraka apresen­
ta semelhanças com essas categorias, sugiro aqui que não per­
tence a nenhuma e é, de muitas maneiras, oposto a cada uma
delas. A fascinação de Baraka com as características geográficas
espetaculares da paisagem natural (quedas d ’água, vulcões, des­
filadeiros profundos, arcos naturais etc.) se alinha a um gênero
de documentário que Nichols não considera, o docum entário
sobre a natureza, que tem sido básico na televisão estadunidense
desde os filmes do Maravilhoso M undo de Disney, da década de
1950, até o D iscovery Channel. Além das telas de televisão, os
docum entários sobre a natureza têm sido m uito distribuídos
através dos cinemas IMAX e Omnimax. Ainda, em bora o tema
faça com que Baraka tenha algo em com um com tais filmes - ele
foi distribuído em cópias de 70 mm. - , não foi distribuído para
os cinemas IMAX. Pode-se até sugerir que Baraka ultrapasse as
fronteiras do próprio cinema, tendo, de algum a form a, mais em
comum com outras mídias, como música, pintura de paisagens
ou fotografia.

8. Ver: Nichols, Bill. At the Limits of Reality (TV). In: Blurred Boundaries’, questions of
Meaning in Contemporary Culture. Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 43-63.
Sugiro aqui que, para compreender a significância cultural
de um filme como Baraka>precisamos ir além dos gêneros cine­
matográficos, e, até mesmo, além do próprio cinema. Isso en­
volve tratá-lo menos como um documentário, e mais como uma
modalidade - cinematográfica, neste caso - de um discurso que
se estende além de um espectro mais amplo de mídia e reflete
processos históricos e globais culturais maiores. Embora Baraka
seja um caso especial, ele é sintomático de processos que aconte­
cem na produção cultural hoje e, por essa razão, pode servir como
um modelo útil para repensar velhos paradigmas e para elaborar
direções futuras para os estudos de mídia.

Notas de campo da aldeia global

Embora nos apresente, conforme seus materiais prom o­


cionais, “Um mundo sem palavras”, i t e r a i certamente é um mun­
do com música: o filme inteiro é acompanhado por uma trilha
sonora contínua e não inclui som sincronizado.9A própria trilha
sonora (disponível em CD) abrange gravações de campo feitas
durante a filmagem; gravações de World M usic e com sonorida­
des semelhantes, pela dupla anglo-australiana Dead Can Dance
(Brendan Perry e Lisa Gerrard); e música eletrônica do compositor

9. Mesmo nas sequências de dança em que a música que acompanha a dança pode­
ria ter sido gravada ao mesmo tempo, a trilha sonora não ¿ “natural”; foi dublada
depois. Agradeço a David Tamés por ter me mostrado isso.
f
N ew Age Michael Stearns.10Logo após o lançamento de Baraka>
seu produtor, Mark Magidson, lançou o documentário de um
concerto da dupla Dead Can Dance chamado Toward The W ithin
(1993) - Em direção ao interior - , que inclui um videoclipe com
trechos deBaraka. Poderíamos, então, perguntar se Baraka é mais
bem visto como um filme com uma trilha sonora de World M usic
ou uma extensão de um vídeo de World Music. Se certas sequências
de Baraka poderiam tranquilamente passar como vídeos de músi­
ca na MTV, o contrário seria igualmente verdadeiro: um videoclipe
de Deep Forest>um projeto de dois produtores franceses que com ­
bina amostras de canções de “pigm eus” da África Central com
batidas de dança urbana, parece admiravelmente uma versão de
cinco minutos de Baraka.
Essa intersecção entre World M usic t cinema não é exclusiva
de Baraka. Nos últimos anos, um número crescente de filmes com
trilhas sonoras de World M usic começaram a aparecer.11A meta­
morfose da World M usic nos filmes mundiais de certa forma sur­
preende. Um aspecto da integração horizontal das indústrias

10. Sobre World M usic, ver meu artigo ‘“World Music’ and the Global Cultural
Economy”. In: D iaspora:A Journal o f Transnational Studies, 2.2> p. 229-242,1992.
Tratando a WorldM usic não como uma categoria etnomusicológica, mas comer­
cial, como a música vendida na seção “ WorldM usic7das principais lojas de discos
do Primeiro Mundo. O artigo busca identificar algumas das condições subjacentes
à emergência da World M usic como um novo tipo de mercadoria no mercado
global.
1 1 .0 filme sobre música cigana de Tony Gatlif, Latcho Drom (1993), poderia ser
descrito como um filme de World Music, que tem afinidades com Baraka. Até o
Fim do Mundo (1993), de Wim Wenders, exibe uma trilha sonora mundial gené­
rica, incluindo canções de “pigmeus” do tipo Deep Forest.
midiáticas da década de 1990 tem sido a relação cada vez mais
simbiótica entre o cinema e a música popular, e o lugar central da
World M usic em Baraka pode ser visto como típico nesse sentido.
A inter-relação entre a World M usic e o cinema no caso de Baraka >
entretanto, levanta algumas questões interessantes. Se a emergência
da World M usic como uma categoria de m arketing maior dentro
da música popular pode ser atribuída aos processos globais, tais
como, a descolonização, a imigração ou a globalização do capitalis­
mo, como esses processos têm afetado o cinema? O “cinema m un­
dial” hoje emerge como uma nova categoria de cinema comercial
comparável à emergência da World M usic7.
Na ordem mundial imperial, os encontros ocidentais com seus
outros colonizados foram mediados por, e grandemente confinados
a, administradores (sobretudo homens) coloniais, missionários,
comerciantes, cientistas naturais, antropólogos e exploradores di­
versos. O que Mary Louise Pratt chama de “zona de contato” - o
espaço transcultural da troca simbólica criada pelo encontro entre
os poderes coloniais do Ocidente e as pessoas originárias de suas
colônias - permaneceu muito restrito aos postos do próprio
colonialismo.12Tudo isso - não deveria ser enfatizado - agora m u­
dou. No mundo pós-independência de corporações transnacionais,
mercados globais de trabalho, viagens aéreas de longa distância e
televisão global, nas sociedades antes separadas pelas vastas dis­
tâncias espaciais, encontram-se e convivem, de forma rotineira,

12. Pratt, Mary Louise. Os olhos Jo Império: relatos de viagem e transculturação.


Bauru: EDUSC, 1999.
migrantes econômicos, refugiados, exilados, diplomatas, executi­
vos, turistas. A zona de contato, antes o privilégio de relativamente
poucos, passou por um processo de democratização e é hoje uma
condição cultural global.
Uma consequência dessas mudanças dentro do ex-colonial, mas
ainda capitalista, Primeiro Mundo tem sido a etnografização do con­
sumo de massa. Enquanto, por algum tempo, a etnografia esteve
engajada num reexame crítico de seus objetivos e metodologias e
na sua razão de ser>13seus objetos tradicionais de estudo têm sido
cada vez mais absorvidos pelas indústrias culturais contemporâ­
neas: a escrita etn ográfica se torn a escrita de viagem ; a
etnomusicologia, World M usic; os artefatos etnográficos, bijuteri­
as ou mobílias étnicas; os museus etnográficos, lojas étnicas; um
documentário etnográfico se torna Baraka. Mesmo a viagem de
campo etnográfica vem sendo cooptada pela indústria cultural
global na forma de etnoturismo> no qual os turistas de Primeiro
Mundo, arm ados com notebooks e film adoras, encenam fanta­
sias do Primeiro Contato com quem Dean MacCannell chama de
ex-primitivos, em aldeias “tribais” cuidadosamente preservadas
da Amazônia até a Indonésia.14
No século XVIII, de acordo com Mary Louise Pratt, a con­
junção histórica entre a expansão colonial europeia e os sistemas

13. Ver: Marcus, George E.; Fischer, Michael (Eds.). Anthropology'as Cultural Critique:
an Experimental Moment in the Human Sciences. Chicago: University of Chicago
Press, 1986.
14. Sobre os ex-primitivos, ver: MacCannell, Dean. Cannibalism Today. In: Empty
Meeting Grounds: The Tourist Papers. New York: Routledge, 1992. p. 17-73. Para
urn relato prazeroso do etnoturismo, ver: O’Rourke, P. J. Up the Amazon. Rolling
Stone, p. 60-72,25 nov. 1993.
de classificação iluministas, com a possibilidade dos sistemas de im­
por um modelo unificador e padrão de significado sobre o mun­
do, levou à emergência do que ela chama de uma “consciência
planetária” europeia15. No mundo da zona de contato global do
final do século XX, essa mitologia eurocêntrica do mundo, fiel­
mente passada adiante pela National Geographie, pela The Family
o f Man e pelos documentários de David Attenborough, tornou-se
onipresente na cultura de massa contemporânea, desde os slogans
de “We Are The World” até as United Colors o f Benetton. Como o
mundo tornou-se a aldeia global, parece que a cultura de massa
euro-americana procurou não somente capturar, mas também
comercializar a aldeia global. Os publicitários foram rápidos em reco­
nhecer que não somente os mercados globais, mas o próprio con­
ceito do global pode ser uma ferramenta de marketing poderosa.
No campo do cinema, os processos que descrevi talvez se­
jam mais evidentes na dissolução da dominação dos filmes do
Primeiro Mundo por Hollywood e pelos cinemas europeus. Mais
do que em qualquer outro período na história do cinema, os fil­
mes disponíveis nas cidades cosmopolitas como Nova Iorque, To­
ronto, Londres, Paris ou Sidney possuem uma variedade global,
em vez de somente euro-americana. Os festivais de cinema da Amé­
rica do Sul, da África e da Ásia complementam o número crescente
de filmes transnacionais e da diáspora. O documentário etnográfico,
antes um subcampo especializado de antropologia acadêmica,
atualmente atrai grande público para eventos como o Festival Anual
Margaret Mead em Nova Iorque. Para consumidores em cidades
cinema e comida
como essas, ir ao cinema e comer fora se tornaram mais ou menos
ações intercambiáveis, escolhe-se um filme como se escolhe um
restaurante. É uma questão de escolha a partir de um cardápio de
opções étnicas.16Embora o público desses cinemas seja, sem dú­
vida, branco e de classe média em sua maioria, seria errôneo
presumir que ele se abasteça (por assim dizer) exclusivamente de
exotismo euro-americano. De fato, em cidades como aquelas que
mencionei, seus públicos podem ser transnacionais como os pró­
prios filmes, e assisti-los pode ser uma maneira tanto de se
reconectar com a própria cultura, quanto de satisfazer uma curio­
sidade turística sobre alguém.
Outra consequência dos processos globais que descrevo tem
sido a emergência do que pode ser chamado de imaginário global
dentro do filme euro-americano. Baraka é, de fato, somente um
filme de uma série de filmes que coletivamente atestam a emergên­
cia desse imaginário global no cinema euro-americano desde a dé­
cada de 1950. Três principais categorias podem ser distinguidas: o
filme de exploração global, mais bem exemplificado pelo notório
M ondo Ckr?e( 1963); a vanguarda internacional (Wenders, Herzog,

16. Vale a pena observar nessa conexão quão frequentemente a comida é o foco central
dos filmes não ocidentais ou, até mesmo, dos filmes anglo-americanos (A Festa de
Babette, Tampop o, Dim Sum , Como Água para Chocolate; entre inúmeros outros):
é possível assistir a O Banquete de Casamento, de Ang Lee, ou a Comer Beber
Viver e comer fora em um restaurante chinês depois. Em tais casos, a diferença
entre comer e assistir, consumir comida exótica e consumir filme exótico se torna
virtualmente imperceptível; o consumo do exótico está presente no próprio filme.
Ottinger, Jarmusch, os irmãos Kaurismaki); e o globalism o de
mesa de café de Powaqaatsion Baraka. Cada uma dessas categorias
pode ser vista como definida por um modo particular de com ­
prometimento com o mundo que retratam: o carnavalesco (fil­
mes M ondo ), o cosmopolita (a vanguarda internacional) e o libe-
ral-humanista (Baraka e filmes semelhantes).
Embora suas origens possam ser rastreadas até os filmes de
aventura colonial da década de 1930, M ondo Caneo, a série cada
vez mais abominável de filmes que inspirou estão entre os primei­
ros exemplos do surgimento de um imaginário global no cinema
comercial euro-americano.17 O mundo que retratam é reconheci­
damente o voyeurismo de P. T. Barnum, anomalias, espetáculos de
carnaval, um mundo exótico e grotesco de rituais “bizarros” e prá­
ticas culturais, sejam práticas de sociedades “civilizadas”, sejam de
sociedades “primitivas.” De form a significativa, entretanto, dado
que os filmes M ondo originais datam da década imediatamente
após a independência das antigas colônias europeias, a m undo
que retratam é tam bém um m undo em caos, no qual a frágil
infraestrutura da “civilização” erguida pelos poderes europeus é
varrida pela selvageria primitiva (Africa Addio); sua visão do m un­
do, portanto, permanece reconhecidamente neocolonial.
O cinema cosmopolita da vanguarda internacional consti­
tui um segundo modo do imaginário global cinematográfico. Nos
filmes de Marker, Wenders, Herzog ou Jarmusch, toma a forma de

17. Sobre os filmes Mondo, ver: Staples, Amy. An interview with Dr. Mondo. American
Anthropologist, 97.1, 1995.
um a observação m undana, um tanto cansada, um a ordem m un­
dial cada vez m ais transnacional e da m udança cultural associada
com essa ordem. Paris, Berlim, Nova Iorque, Rom a, Helsinki, São
Paulo, Ulan Bator: autoconscientem ente nôm ades, essas cidades e
seus protagonistas despreocupados são os descendentes pós-m o-
dernos de fíâneur de Baudelaire, cosm opolitas sem raiz procuran­
do seus cam inhos ao redor do globo em busca do sem pre novo e
diferente.18 O turism o, os p on tos turísticos e os p róprios turis­
tas são tipicam ente m otivos de desdém e sátira, em bora diretores
e protagonistas não sejam m enos turistas que outras pessoas. O
que talvez seja in teressan te so b re os film es desse tip o é seu
cosm opolitism o evidente, com seu inerente desdém em relação
ao paroquialism o do nacional. O apelo a tal ideologia torna-se
m ais com preensível quando lem bram os que um a das form as mais
prestigiadas de consum o burguês evidente, neste século, tem sido

18. Sobre flâneur, ver: Baudelaire, Charles. O Pintor da Vida M oderna. In: C uriosida­
des E stéticas: a arte rom ântica e outras obras críticas. Paris: Classiques Garnier,
1962; e Benjamin, Walter. Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo,
trad. Harry Zohn. Londres: Verso, 1983. A literatura sobre o fíânerieé extensa; para
um a introdução, ver: Tester, Keith (Ed.). The Flâneur. Nova Iorque: Routledge,
1994. O flâneur nunca foi (e não é) exclusivamente masculino, é claro; e ñánerie
como um a atividade especificamente feminina no século XIX também foi bem do­
cumentada, ver: Wolff, Janet. The Invisible Flâneuse: Women and the Literature of
Modernity. Theory, C ulture an d Society, edição especial sobre “ The Fate of
Modernity’’, 2.3,1985; Bowlby, Rachel. Ju st Looking: Consumer Culture in Dreiser,
Gissing, and Zola. London: Methuen, 1985; Wilson, Elizabeth. The Sphinx in the
City. Urban Life, the Control o f Disorder, and Women. Berkeley: University of
California Press, 1991. A última encarnação do flâneur é o flâneur eletrônico, vague­
ando pela rede global de computadores da World Wide Web como sua contraparte
baudeleriana vagueou na cidade do século XIX; ver: Mitchell, William J. City o f Bits:
Space, Place, and the Infobahn. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1995. p. 7.
a viagem . No cinem a de Wenders ou Jarm usch, Herzog ou
Kaurismaki, o publico euro-americano de classe média pode ex­
perimentar o glam our do cosmopolitismo sem sair de casa, mes­
mo que o orçamento o impeça de viajar pelo mundo tão facil­
mente quanto os diretores e protagonistas parecem fazer.
O que chamei de globalismo de mesa de café de Baraka tem
uma história mais longa tanto em relação aos filmes M ondo quan­
to ao cinema cosmopolita da vanguarda, estendendo-se desde a fun­
dação da National Geographie Society em 1888, passando pela m os­
tra fotográfica e pelo livro da década de 1950, The Family o f Man,
de Edward Steichen, e chegando nas mitologias globais contem ­
porâneas do Discovery Channel}9Ideologicamente, o globalismo
assume a forma de um humanism o liberal, cuja metáfora quase
obsessiva é aquela da família. Apesar de diferenças culturais, ele
afirma, a raça hum ana é, no fim das contas, parte da m esm a fam í­
lia global, compartilhando um conjunto com um de experiências
de vida: nascimento, morte, sexualidade, filhos, comida, amor, cren­
ça no sobrenatural, guerra. Essa ideologia, cultuada por muito tem­
po, neste século, nas mesas de café (e, desde a década de 1950, nas
telas de TV) das famílias estadunidenses de classe média, de m o­
derada intelectualidade, permanece onipresente hoje, desde livros
de fotos recentes à mitologia N ew Age de Joseph Campbell.

19. Para uma visão histórica geral do N ational Geographic, ver: Bryan, C. D. B. The
National Geographic Society. 100 Years of Adventure and Discovery. New York: H.
N. Abrams, 1987. Para uma história crítica, ver: Lutz, Catherine; Collins, Jane.
Reading N ational Geographie. Chicago: Chicago University Press, 1993. Ver tam­
bém: Steichen, Edward. The Family o f Man. New York: Simon and Schuster, 1955.
A visão panorâmica de Baraka sobre o natural global e a diver­
sidade cultural, sua mensagem de Mundo-Ünico, sua esteticização de
paisagens e sociedades exóticas o situam exatamente dentro da tradi­
ção liberal-humanista da National Geographie e da The Family o f
Man. Enquanto documenta a diversidade cultural global, o filme está,
ao mesmo tempo, preocupado com o molde da diversidade dentro
de um humanismo demasiadamente amplo, afirmando um senti­
mento de comunidade que transcende a diferença cultural. Como a
National Geographic, o filme de Fricke não tem medo de encarar as
realidades cruéis da ordem mundial do século XX, como mostra sua
passagem por Dachau, pelos campos de matança do Camboja, pelos
poços com queima de petróleo no Kuwait, pela Praça Tiananmen,
pelas operárias nas fábricas de cigarro na Indonésia ou pelas prostitu­
tas de Patpong e, ao mesmo tempo, evita assumir posições políticas e
críticas que poderiam causar impacto sobre seu sucesso comercial,
adotando o ponto de vista da “testemunha” universal. Como a National
Geographic, o filme parece mais preocupado com o impacto estético
ou emocional de seus sujeitos do que com as histórias geopolíticas
ou desigualdades econômicas relacionadas a eles. O sentimento
dominante em suas sequências de desabrigo, pobreza, prostituição
ou trabalho alienado é de lamento: “Se pelo menos pudéssemos
perceber que somos todos parte da mesma família!”, parece dizer
o filme.
Em seus artigos sobre Baraka e filmes Mondo, Amy Staples
descreveu ambos como sendo “a antítese do filme etnográfico”, le­
vantando a questão da relação entre Baraka e filmes como Mondo
Cane. Quanto ao tema e à estrutura formal, os filmes aparentemen­
te têm muito em comum: como Mondo Cane, Baraka constrói seu
retrato do m undo através de uma estrutura não linear de colagem
com cortes desconcertantes, que passam abruptamente de uma
cultura a outra e com uma descontextualização radical de seus
sujeitos. M esm o assim , essas estratégias são em pregadas nos dois
filmes com propósitos ideologicamente opostos (se igualmente
unlversalizantes): se o ponto de vista de M ondo Cane era essencial­
mente niilista, preocupado com a desconstrução da oposição civili­
zado/selvagem de hoje e em afirmar a barbaridade fundamental da
humanidade, a visão humanista de Baraka da espiritualidade global o
torna, de muitas formas, a antítese de M ondo Cane. Se Baraka é um
descendente tardio da exibição colonial e da National Geographic, o
filme M ondo (“o filho feio e bastardo do documentário e do cinemi-
nha” ) é seu gêmeo demoníaco.20
As três categorias de cinema global que identifiquei deveriam
ser vistas não como desenvolvimentos sequenciais, mas como ten­
dências paralelas dentro'da cultura de mídia euro-americana con­
temporânea. Longe de ser um regresso ao neocolonialism o da
década de 1960, por exemplo, os filmes M ondo têm passado por
uma renovação nos últimos anos como parte da loucura atual pelo
kitsch exótico, de “ Filmes Incrivelmente Estranhos” até com pila­
ções da música lounge “ Exótica” das trilhas sonoras de filmes am ­
bientados na década de 1950. Com o o exotismo autoconsciente
do recente livro de cabeceira “alternativo” Strange Ritual, de David

20. Charles Kilgore (também conhecido como D r. Mondo), citado em: Staples, Amy.
An Interview with Dr. Mondo. American Anthropologist, p. 111.
Byrne, deixa claro, os rótulos “bizarro”, “sobrenatural” e “estranho”
de M ondo hoje estão bem vivos, ainda que de forma deslocada e
irónica.210 voyeurismo exótico das décadas de 1950 e 1960 reapare­
ce na década pós-moderna de 1990 como camp global.

Nostalgia imperialista

Em um artigo inspirado pelos recentes filmes euro-am eri­


canos que lidam com o período colonial ( O ut o f Africa, A Passage
to India), Renato Rosaldo sugere que tais filmes exemplificam o
que ele chama de nostalgia imperialista. O objeto da nostalgia não
é a antiga ordem imperial ou colonial com o tal, m as um a ordem
anteriora ela, em que o colonialismo era responsável por erradicar
a cultura tradicional e os m odos de vida das sociedades nativas. A
nostalgia imperialista, de acordo com Rosaldo, consiste em com-
padecer-se pela passagem do que foi destruido.22 Tal nostalgia, ele
sugere, no final das contas, serve para atenuar a culpa que brota do

21. Byrne, David. Strange Ritual'. Pictures and Words. San Francisco: Chronicle Books,
1995.
22. “A nostalgia imperialista gira em torno de um paradoxo: uma pessoa mata alguém e
então fica de luto pela vitima. De uma maneira mais atenuada, alguém deliberadamente
altera uma forma de vida e então se arrepende porque as coisas não permaneceram
como eram antes da intervenção. Em mais uma eliminação, as pessoas destroem
seu meio ambiente e então adoram a natureza. Em qualquer de suas versões, a
nostalgia imperialista usa uma pose de ‘anseio inocente’ não só para captar a imagi­
nação das pessoas como também para esconder sua cumplicidade com a dom ina­
ção brutal.” Rosaldo, Renato. Nostalgia Imperialista. In: Culture and Truth: The
Remaking of Social Analysis. Boston: Beacon Press, 1989. p. 69-70.
comprometimento do sujeito colonial - até mesmo por responsa­
bilidade - com o estado das coisas pelas quais ele está lamentando.
De Tristes Trópicos de Lévi-Strauss até o contemporâneo turismo
étnico, a cultura euro-americana é permeada por essa nostalgia, e,
como os recentes documentários sobre a criação de Fitzcarraldo de
Herzog ou Apocalypse N ow de Coppola (e os próprios filmes)
mostram, é igualmente difundida no cinema contemporâneo.23
A melancolia de Baraka em sua viagem mundial por lojas
que exploram empregados, favelas, desabrigados, pobreza, casas
de prostituição e cenários de guerra civil e internacional oferece
um exemplo impressionante do que Rosaldo chama de nostalgia
imperialista. Um filme como Baraka, Rosaldo poderia argumen­
tar, brota precisamente da culpa do Primeiro Mundo capitalista
em relação à desordem social, econômica e cultural que ele gerou
no mundo como um todo, acompanhada de uma nostalgia por
um mundo puro e imaginário anterior à modernidade capitalista.
Esse mundo imaginário, o objeto da nostalgia, é aparente na reve­
rência do filme ao meio ambiente, às sociedades aborígines e aos
sistem as religiosos pré-m odernos do budism o, hinduísm o,
islamismo e cristianismo. Assistir a filmes como Baraka, poderia
se dizer, capacita o público do Primeiro Mundo a se comover com

23. Estou me referindo ao documentário Burden o f Dreams (1982), de Les Blank, e


também ao livro que o acompanha: Blank, Les; Bogan, James. Burden o f Dreams'.
Screenplay, Journals, Reviews, Photographs. Berkeley, California: North Atlantic
Books, 1984; e O Apocalipse de um Cineasta (1991), de Fax Bahr e George
Hickenlooper, Esses documentários de making o f podem ser vistos como um
subgénero emergente do cinema global contemporáneo.
o que o capitalismo destruiu, ao mesmo tempo que o absolve de
qualquer responsabilidade sobre isso. O fato de ser precisamente a
censura pública da ordem económica mundial o que faz de Baraka
um filme possível em primeira instância não é o menor de seus
tantos paradoxos.
Confrontados com as realidades desconfortáveis da ordem
mundial pós-colonial, os filmes da N ational Geographic , do
Discovery Channele Baraka servem, em última instância, como
uma fonte de reafirmação: mais do que o abismo económico
que separa “nós” de “eles”, tais filmes mostram o que suposta­
mente temos em comum. Enquanto documentam realidades
desconfortáveis, eles também sugerem que essas realidades não
nos dizem respeito diretamente, eles amenizam quaisquer ansie­
dades que “nós” possamos ter e qualquer responsabilidade so­
bre isso. Em um mundo feito supostamente menor a cada dia
pela mídia, negligenciamos o quão efetivas são essas mídias para
manter o mundo em seu lugar, assegurando - como os limites
que separavam espectadores dos povos nativos exibidos nas fei­
ras mundiais - que estes não se aproximem tanto para não causar
desconforto.

O livro do film e: rep e n san d o


o “ C in em a M u n d ia l”

Em 1994, o Instituto Britânico de Cinema publicou um livro


intitulado World Cinema: Diary o f a Day, um dos vários projetos
semelhantes produzidos naquela época para comemorar o cente-
nário do nascimento do cinem a.24 O livro foi o resultado de um
projeto por meio do qual se solicitou a cerca de mil trabalhadores
de todos os setores da indústria cinematográfica m undial que m an­
tivessem um diário de suas atividades em um dia escolhido aleato­
riamente (10 de junho) durante o verão de 1993. Os apontam entos
do diário produzido foram então editados e reorganizados em um a
série de capítulos correspondentes aos estágios da produção de um
filme, da concepção inicial até a exibição ao público, oferecendo
por meio disso um olhar instantâneo global de “um dia na vida da
indústria cinem atográfica”25.
O livro é talvez m ais interessante pelo que revela sobre a di­
m ensão transnacional da produção de filmes m undiais da atualida­
de e sobre a econom ia cultural global dentro da qual essa produção
acontece.26 N o geral, ele oferece um retrato fascinante de um dia

24. Cowie, Peter (Ed.). World Cinem a: D iary o f a Day. Woodstock, NY: Overlook Press,
1994. Ver também: Nowell-Smith, Geoffrey (Ed.). The O xford D ictionary o f World
Cinema. Oxford: Oxford University Press, 1996; e Stone, Judy. Eye on the World:
Conversations With International Filmmakers. Los Angeles: Silman-James Press,
1997. No próprio cinema, o filme francês Lum ière et Com pagnie{ 1995), uma com ­
pilação de quarenta curtas feitos com a câmera original dos irm ãos Lumière por
diretores de filme de todo o mundo, tem, de torma semelhante, pretensões globais.
25. Nos últimos anos, estes livros “ um dia na vida” apareceram com o um a variante
interessante do que eu chamei anteriormente d e “globalismo de cabeceira.” Tendo
começado suas vidas como uma série de relatos de culturas nacionais {Um D ia na
Vida da América, Um Dia na Vida do Japão etc.), eles recentemente foram além do
nacional, com o o recente Um Dia na Vida do CyberEspaço, de Rick Smolan,
atesta. As am bições panorâm icas e globais de tais livros fazem com que eles te­
nham uma forte afinidade com filmes com o Baraka-, ficamos imaginando quanto
tem po vai levar para a publicação de Um D ia na Vida do M undo.
26. Sobre a econom ia cultural global, ver: Appadurai, Arjun. Disjuntura e Diferença
na Economia Cultural Global. In: D im ensões C ulturais da Globalização. Lisboa:
Teorema, 2004.
típico da produção de filmes e a frustração normalmente associa­
da a essa atividade. Ao mesmo tempo, o livro tem vários proble­
mas. Um dos mais obvios é que, enquanto nos diz muito sobre o
fazerum filme, não nos diz nada sobre o não menos importante ato
de assistirm filme. E dessa forma, concentrando-se na produção em
vez da recepção, o livro, de forma questionável, nos apresenta so-
mente metade do quadro do cinema mundial contemporáneo, ig­
norando completamente sua outra metade: o público de cinema.27
Um segundo problema reside nas suposições totalizantes
subjacentes à categoria do próprio “cinema mundial”. Quaisquer
que sejam as condições geopolíticas e econômicas para sua emer­
gência histórica, e quão variadas sejam suas inúmeras manifesta­
ções locais, presume-se que a criação de um filme é hoje uma for­
ma cultural global. Poderíamos dizer que essa suposição parece
incontestável, uma simples observação de fato; mas não pretendo
contestá-la aqui. Ao mesmo tempo, é interessante que a categoria
de “cinema mundial”, como exemplificada por livros como este
em questão aqui, foi usada exclusivamente pelos estudiosos e crí­
ticos de cinema do Primeiro Mundo, e não por aqueles das maio­
res nações pós-coloniais produtoras de filmes. Além disso, a ob­
servação ostensivamente neutra de “cinema mundial” como um
fato do mundo contemporâneo precisa ser situada dentro do con­
texto histórico mais amplo do imperialismo europeu e de tentati-

27. Em algum outro lugar, nos estudos contemporâneos sobre cinema, uma atenção
considerável foi dedicada ao estudo dos públicos globais, por exemplo: Ang, Ien.
Desperately Seeking the Audience. New York; London: Routledge, 1991; e Living
Room Wars-. Rethinking Media Audiences for a Postmodern World. New York;
London: Routledge, 1996.
vas semelhantes dos poderes coloniais para supostamente impor
categorias “universais” ao mundo como um todo. Por fim, vale a
pena lembrar que, precisamente devido à dificuldade histórica do
cinema com o colonialismo, muitos diretores pós-coloniais - refi­
ro-me a diretores do Terceiro Cinema em particular - se preocupa­
ram exclusivamente com a definição de suas práticas cinematográ­
ficas em oposição aos cinemas estadunidense e europeu. Embora
tais diretores hoje tenham de operar dentro da economia cultural
global como qualquer outro, provavelmente estarão mais apreen­
sivos com a assimilação dos seus trabalhos dentro da categoria
“cinema mundial” do que, digamos, um diretor francês ou inglês.
Resumindo, a categoria de “cinema mundial” prova, em uma aná­
lise mais detalhada, ser menos “natural” e menos problemática
como pareceria em princípio e pode, até mesmo, ser vista como
um construto totalizante que, de alguma forma, torna a categoria
de “cinema mundial” a contrapartida dos estudos cinematográfi­
cos para Baraka.
Outro problema do Cinema Mundial\ e mais relevante para
a presente discussão, como sugeri, é o fato de que, enquanto o
livro revela muito sobre os processos globais que afetam a forma
como a produção cinematográfica acontece hoje, pouco nos diz
sobre a emergência de um discurso a respeito da globalização den­
tro do próprio cinema global contemporâneo. Está claro, pelo
menos, que a globalização teve, e continua tendo, um impacto
significativo sobre o conteúdo fílmico no mundo todo, seja a obra
feita por um diretor etnográfico estadunidense, um diretor euro­
peu de vanguarda, um diretor africano morando em Paris ou um
iraniano em Los Angeles.
A comparação entre o Cinema M undial e Baraka leva, en­
tão, à conclusão de que a categoria de “cinema mundial” precisa
ser repensada. Enquanto o “cinema mundial” e o “cinema global”
têm sido, nos últimos anos, matéria de atenção crítica crescente,
um corpo substancial de filmes que se engajam em um discurso
sobre a globalização - do qual Baraka é somente um exemplo -
foi, até o momento, deixado de fora da discussão. Se for correto,
vale a pena refletir por que isso acontece. Talvez se deva a uma
confusão conceituai sobre os usos do próprio termo “cinema mun­
dial” que, embora cada vez mais presente na atualidade, é usado
em um sentido muito diferente de “música mundial”. Como vi­
mos há pouco, o termo é mais frequentemente utilizado para sig­
nificar “a indústria de cinema global”, em vez do sentido mais res­
trito, que uso neste texto, de filmes que explicitamente se inserem
em um discurso sobre algo chamado “mundo”. À parte das impli­
cações ideológicas de um termo tão globalizante, poderíamos que­
rer nos informar sobre a utilidade analítica de um a categoria
conceituai que - na esfera da produção cinematográfica, pelo me­
nos - inclui potencialmente tudo.
Outra razão pela qual as discussões sobre o “cinema mundial”
e o “cinema global” envolveram os tipos de filmes que venho dis­
cutindo aqui pode ser simplesmente uma suspeita sobre o global
em si. Acostumamo-nos a valorizar a particularidade do local e a
rejeitar discursos globalizantes, com suas pretensões de falar por to­
dos, como monolíticos e hegemônicos. Isso pode ser algo bom;
mas, enquanto tivermos uma boa razão para suspeitar do global,
não significa que, se o ignorarmos, ele simplesmente desaparece­
rá. De fato, o oposto parece mais verdadeiro: quanto mais o igno-
ramos mais difundido ele se torna. Estudos do cinema “global” ou
“mundial”, entretanto, têm a tendência de se concentrar primeira­
mente nas práticas cinematográficas transnacionais ou locais, de­
finidas por resistência ao global (frequentemente tratado hoje em
dia como sinônimo de capitalismo), em vez de se concentrar no
global como tal.28 Sem negar a importância de práticas de resis­
tência, precisamos também perguntar o que está em jogo no con­
tínuo desejo euro-americano de enquadrar a diversidade cultural
global dentro de seu olhar que inclui tudo, e se filmes como Baraka
não são, de muitas formas, uma resposta contra-hegemônica aos
cinemas atuais transnacionais de resistência. Em uma ordem m un­
dial pós-colonial na qual as sociedades do Primeiro Mundo se
encontram cada vez mais fragmentadas pela imigração do Tercei­
ro Mundo, com sua homogeneidade cultural desestabilizada e con­
testada pelas culturas de suas antigas colônias, a visão global de
Baraka pode ser vista como uma reação à ameaça que tal mundo
apresenta à autoridade cultural euro-americana, que, ao reinscrever
o mundo dentro do campo reafirmativo de um olhar euro-america­
no, procura uma estrutura discursiva neocolonial sobre um m un­
do escorregadio cada vez mais além de seu controle.
Repensar o “cinema mundial” hoje, em primeira instância,
envolve diferenciá-lo das indústrias de filmes globais, uma catego­

28. Ver: Jameson, Fredric. The Geaf>oliticãiAesthetic". Cinema and Space in the World System.
Bloomington, Indiana: Indiana University Press; London: British Film Institute, 1992;
Ver: MacDonald, Scott. Premonitions of a Global Cinema. In: Avant-Garde Film:
Motion Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 123-125.
ria que potencialmente inclui tudo, e dos cinemas transnacionais,
definidos por sua política de diferença multicultural. Envolve tam­
bém realocar o próprio cinema como um meio dentro do contex­
to maior das indústrias culturais globais. Isso significa tratar o
cinema, como historicamente tem sido o caso, não isolado de
outras mídias, mas como parte de um continuum maior, desde
diário de viagem, de moda até música popular, que articulam respostas
euro-americanas para as novas realidades multiculturais da ordem
mundial pós-colonial. O cinema euro-americano tem tido, e conti­
nuará a ter, um papel significativo na articulação dessas respostas,
mas esse papel, até o momento, praticamente não foi analisado.
Concentrar-se nele mais diretamente pode levar a um entendi­
mento certamente menos globalizante, mas, no final das contas, mais
claro, do lugar do “cinema mundial” dentro da economia cultural
global contemporânea.
O cinema intercultural
na era da globalização

Hudson Moura

Nunca se viram tantos deslocamentos humanos quanto no


século XX. A Segunda Guerra Mundial provocou uma nova expe­
riência no movimento de populações, experiência que se tornou
uma das mais significativas e traumáticas dos últimos tempos. O
mapa mundial foi retraçado, e muitas culturas foram dispersas ou
transferidas de uma região a outra. Nosso tempo, segundo Said
(2000), é, sem dúvida, a era dos refugiados, das pessoas em movi­
mento, da imigração em massa.
Tem-se a impressão de que cada vez mais as pessoas cruzam
fronteiras e transformam suas experiências em uma poderosa he­
rança de resistência. E as mídias são testemunhas desse fenômeno.
Muitos artistas transformam os traumas do deslocamento numa
importante renovação do pensamento e em reflexão sobre a socie­
dade contemporânea.
Novos pontos de vista e novas impressões são criados com o
descer e subir de barreiras, muros e alfândegas. Novas geografias
e linguagens são impostas a um conjunto inteiro de culturas e anti­
gas nações. Como aproximar o cinema às novas realidades e subje­
tividades dessas novas fronteiras?
Há um número sem igual de artistas e intelectuais que ex­
ploram o tema do deslocamento e da interculturalidade em suas
manifestações criativas por meio de filmes, exposições de arte e
obras literárias, tanto quanto cientistas e estudiosos consagram seus
estudos. Uma série de publicações em inglês que abordam o tema
o nomeiam de transnacionalismo, diáspora e pós-colonialismo.
Nos estudos cinematográficos, quando esses pesquisadores anali­
sam casos como o cinema intercultural, eles sempre mapeiam a
questão dentro de uma perspectiva sociopolítico-econômica de um
Estado-nação. Assim sendo, é preciso sempre estar atento a termos e
conceitos como nacionalismo, identidade, multiculturalismo e a
temas como etnia, raça, numa aproximação sociológica e antropo­
lógica em detrimento de outras áreas, como a estética e a filosofia,
pontos de vista mais abordados pelas publicações em francês. A
teoria de língua francesa, mais baseada nos estudos filosóficos,
semiológicos, literários e estéticos, concentra-se na questão da
alteridade do indivíduo e suas subjetividades, tomando uma outra
perspectiva na análise da experiência do deslocamento no cinema,
por exemplo, quando o nomeiam cinema de exílio, minoritário,
marginal. Essa diferença de caminhos, muitas vezes, interfere no
resultado final de análise dos filmes.
Em todo caso, em ambas as teorias, o cinema intercultural ques­
tiona o pertencimento a uma cultura, a uma comunidade, ao cinema
contemporâneo, e, através da intermidialidade, o pertencimento a
uma só mídia e ao sujeito da modernidade.
Cinemas emergentes: hibridismo,
interculturalismo e multiculturalismo

Nos Estudos Culturais, o termo “intercultural” é distinto de ou­


tros termos e teorias como o multiculturalismo, o transnacionalismo,
o pós-colonialismo, entre outros, apesar de esses compartilharem a
mesma experiência de envolver dois ou mais regimes culturais. O
conceito de intercultural foi sempre associado a uma marca da imi­
gração e da descolonização, o que não é mais o caso. O intercultural
se desenvolveu em outras áreas, como o comércio, o direito, a edu­
cação, entre outras. Essa indissociabilidade do termo em relação à
imigração contribui para enrijecer e limitar o conceito (Coly, 2005).
Todas as boas e, principalmente, as más características que podiam
ser associadas à imigração acabam se transferindo diretamente para
o intercultural.
A interculturalidade no cinema tenta traduzir em imagens a
experiência de viver entre duas ou mais culturas e sociedades di­
ferentes, que concebem novas formas de pensar e de conhecimen­
to (Marks, 2000). É um cinema compartilhado por pessoas que
sofreram o deslocamento e que viveram m odos híbridos e para
quem a representação do cinema convencional - o cinema clássi­
co - não é suficiente.
Cinema multicultural, m estizo , pós-colonial, transnacional,
híbrido, minoritário... muitas denominações para um gênero que
se torna cada vez mais importante. Sua principal característica é a
de explorar, de uma maneira original, as técnicas cinematográfi­
cas sobre temas e narrativas (roteiros) já bem conhecidos. Qual é
a particularidade do cinema intercultural perante essas outras de­
nominações?
Principalmente, porque o ponto de vista mudou, nós deve­
mos rever a prática: não é mais um olhar “forasteiro” que observa
uma realidade exótica, mas sim um olhar estrangeiro, vindo do
interior mesmo dos cinemas nacionais. Parafraseando Deleuze e
Guattari (1975) sobre a literatura menor, não é somente a possibi­
m enor de uma lin­
lidade de instaurar do interior um exercício
guagem m aior que permite definir o cinema emergente.
Assim, esses cinemas emergentes se originam do olhar de
novos cineastas provindos de uma nova realidade, criada princi­
palmente nos países que acolheram os imigrantes de ex-colônias,
como a França e a Inglaterra, ou de novos imigrantes, como o
Canadá, os Estados Unidos e o Brasil. A necessidade desses cineas­
tas de sustentarem uma imagem, rara em outros tempos, assume
uma importância mais profunda e uma amplitude maior nos rotei­
ros habituados aos clichês e às imagens convencionais eurocêntricas
do Outro, do estrangeiro, da cultura e das novas práticas sociais
dos imigrantes.
Esses cineastas estão longe de repetir as imagens de marginalidade
ou a violência habitualmente ligadas aos imigrantes da classe po­
pular ou de mostrar o estrangeiro como exótico. Eles se voltam
para o assunto da língua, da classe social, do trabalho e sua inser­
ção na sociedade. O cinema se torna, assim, uma mídia portadora
de significação para essa comunidade e um meio privilegiado de
comunicação e experimentação artística. É sobretudo através de um
olhar integrador, de transferência, de adaptação e de aceitação do
“Outro” (sua cultura, sua língua) que eles mostram que fazem parte
da sociedade e que devem reivindicar seus lugares. A sociedade
não é mais a mesma, assim como as imagens que ela produz.
Os cinemas emergentes geram práticas cinematográficas
singulares tal como o fato de conceber o quadro fílmico como um
espaço de escritura - títulos, subtítulos, textos em línguas estran­
geiras ou de traduções - e a utilização de várias línguas, vozes,
músicas e sotaques diferentes, e o cotejamento de culturas distin­
tas e a preferência pelos temas do deslocamento, do exilio, da
diáspora, da viagem (Naficy, 2001, p. 25).
Cineastas exilados, emigrados e refugiados fazem “textos de
autor” (Naficy, 2001), intertextuais, transculturais, traduções de sen­
tidos e de identidades. Os cineastas podem pertencer a mais de
urna cultura (Marks, 2000, p. 7). Nesse momento, não é mais urna
simples transcrição ou tradução de urna cultura para outra, mas
sim o fato de habitar um espaço múltiplo, composto por diversas
culturas, e, muitas vezes, esse espaço não é muito claro, ou seja,
bem definido.
Se bem que esse multiculturalismo é formado por vários
grupos étnicos e culturais, e isso implica sempre a presença de
uma cultura dominante - branca, ocidental, europeia. Uma cultu­
ra híbrida é variável e impossível de categorizar. A hibridação,
segundo Homi Bhabha (apud Marks, 2000, p. 7), revela o proces­
so de exclusão pelo qual as nações e certas identidades culturais
são formadas, forçando a cultura dominante a se explicar. O cine­
ma híbrido se coloca numa relação de poder no qual ele se reflete
(Bhabha apud Marks, 2000, p. 8). Isso quer dizer que, na sua carac­
terística híbrida, o cinema intercultural é sempre colocado numa
relação de força na sua forma contestatória em relação a uma esté­
tica dominante.
A tensão do prefixo “inter” de intercultural

Nos filmes A
esquiva ( VEsquive, 2004), de Abdellatif Kechiche,
Em direção ao sul( 2005), de Laurent Cantet, e Portas do paraíso
(2006), de Swel e Imael Noury, as diferenças e as tensões sociais
geram um mosaico multicultural e excludente. Essas tensões entre
classes, subalternos e colonizadores, e os vários conjuntos de uma
mesma sociedade vivendo lado a lado, se fazem sentir na própria
materialidade cinematográfica. Kechiche, em A esquiva J, oferece à
linguagem , tanto cinem atográfica quanto falada, um a nova
performance, distante dos clichês, e acentua as particularidades de
duas línguas (o erudito e o popular) entre dois m undos. Esta pon­
te entre essas duas realidades distintas (o imigrante e a terra de
inserção) constrói um novo imaginário na tela. Mas até que pon­
to esses cineastas querem documentar, mistificar ou vangloriar a
realidade-situação dos imigrantes? Até onde podem os afirmar que
esta nova “periferia” cinematográfica deslancha um novo concei­
to de “adaptação” no discurso midiático?
O cinema intercultural não pode ser entendido simplesmente
como multicultural ou como pluralista (cultura, religião, políti­
ca), pois ele atribui uma tensão que se deixa perceber pela im po­
sição do prefixo “inter”. Isso significa que o intercultural determi­
na sempre uma fronteira e uma tensão do “entre” duas ou mais

1. Eu faço uma análise sobre a questão da comunicação num artigo precedente: “Le
cinéma émergent et ses pratiques interculturelles”, publicado pela revista Les Enjeux
de Tinformation et de ¡a communication (Mou ra, 2007).
culturas (ou, em termos cinematográficos, “entre” planos). Essas
culturas não são amalgamadas ou juntadas num discurso unifor­
me e homogêneo, como poderíamos caracterizar o hibridismo e
o multiculturalismo. Num discurso heterogêneo e único no seu
gênero, interculturalidade é colocar em relação duas ou várias
culturas e identidades. Ela pode ser também aquela que não com ­
partilha. Isto é, um processo que marca uma tensão dos diferen­
tes, o que pode ser mesmo da ordem do intransponível e gerar a
incompreensão.
A interculturalidade no cinema pressupõe uma emergência de
formas e de discursos, o que o torna difícil de ser classificado. Sua
prática desvenda sua característica única, tanto do ponto de vista
técnico quanto do tema tratado. O intercultural não é um dado fixo
que pede uma análise, mas um processo, uma comunicação, uma
correlação: a análise ela mesma. “Assim, se o multicultural pára no
nível da constatação, o intercultural opera uma démarche, ele não
corresponde a uma realidade objetiva.” (Abdallah-Pretceille, 2002).
Aproximando o caráter marginal e o alternativo do cinema
intercultural à concepção deleuziana de literatura menor, sua carac­
terística de agente coletivo da enunciação é inegável. O privado se
torna de uma certa maneira um assunto público e sociopolítico
que vai buscar uma reação do espectador. O intercultural pertence à
questão cultural, entre indivíduos, identidades e grupos, entre o
singular e o universal. Apesar de estes dois termos - cultural e
intercultural - não se fundirem em si mesmos, eles podem ser
primordiais para compreendermos as diferenças, como tão bem
caracterizou Abdallah-Pretceille, pois um indivíduo vindo de um a
cultura não pode ser considerado seu representante. Entretanto,
o cinema intercultural é com certeza um agente coletivo, pois o
intercultural é sempre e fundamentalmente concebido a partir
do relacional, colocando a cultura do Outro à prova e como pas­
sível de troca.
É como se o cinema intercultural contribuísse através de sua
representação/correlação “ à invenção do povo”2 (Deleuze, 1985,
p. 283). O povo assim como a história não são dados pelo filme ou
eles ainda não estão lá, eles serão esboçados ou nascerão no filme
pelo intermédio de uma análise/leitura do espectador. Dessa ma­
neira, o cinema intercultural se caracteriza como uma possibili­
dade de utornar-se filme”, na qual o espectador é convidado a fazer
a síntese.
Filmes como Calendário, de Atom Egoyan, ou Viagem na
Armênia , de Robert Guédiguian, não ensinam e não informam nada
além sobre a história do genocídio ou da diáspora armênia, mas
servem como pontos de reflexão e de questionamento. Enfim, é
dentro desse formato “alternativo” e não “classificatório” que o ci­
nema intercultural quer ser inserido pela simples razão de não
querer cair nas armadilhas do clichê e do convencional. A experi­
mentação na forma e no conteúdo e o inesperado de sua proposta
fazem parte de sua característica emergente de pensar fora dos
padrões dominantes e estabelecidos - outside the box.

2. “No cinema Americano [... ] o povo já está lá, real antes de ser atual, ideal sem ser
abstrato.” (Deleuze, 1985, p. 282).
A intermidialidade e a crise do sujeito

Cada vez mais, a interculturalidade no cinema pressupõe uma


certa inovação do discurso cinematográfico. Na busca de novos
caminhos para urna nova identificação e interação do espectador
com a imagem que vê na tela, muitos diretores optam pela
interação do cinema com outras mídias e discursos. Eles inovam
no tratamento narrativo e conceituai da imagem e acabam reno­
vando a prática cinematográfica.
No filme Notebook on cities and clothes, de Wim Wenders, a
intermidialidade se situa precisamente nos movimentos entre duas
cidades e duas mídias. O espectador perde a noção se a imagem na
tela é uma imagem cinematográfica ou videográfica, se ela se refere
a Tóquio ou Paris, ou ainda, se ela é uma imagem do passado ou do
futuro, segundo a cronologia do filme. É neste discurso fragmenta­
do que se descobre o filme e seus personagens. O estilista Yamamoto,
por exemplo, personagem central do documentário, se sente como
um cidadão do mundo, estando em casa em qualquer grande ci­
dade, seja Paris, Nova Iorque ou Tóquio. As imagens adquirem um
sentido todo especial na montagem, na superposição de planos e
nos movimentos de câmera, justamente na passagem entre uma
imagem e outra. É no caminho do “entre” uma coisa e outra que se
conhece a “identidade”3 procurada, tanto a dos personagens quanto
a do discurso fílmico.

3. No filme, um documentário sobre a moda e o estilista japonês Yoshi Yamamoto,


o diretor Wim Wenders questiona a identidade tanto do estilista, dele próprio e de
suas profissões, quanto da natureza das imagens (cinematográficas, videográficas
e fotográficas).
A imagem de N otebook se constrói no meio, no intervalo
de imagens; ela não existe nem de um lado e nem do outro. Será
essa a intermidialidade por excelência, onde não há nem referên­
cia e nem referente absoluto, único?
Seguindo a ideia deleuziana da crise da representação no cine­
ma clássico na década de 1940 e, ao meu ver, do cinema moderno na
década de 1970, com o aparecimento do cinema intercultural4, a
interm idialidade com prova um a outra crise: a do sujeito da
enunciação. Uma crise do sujeito provindo da modernidade de que
uma mídia não é mais considerada apta a conservar ou a mostrar.
A intermidialidade fragmenta e apaga este sujeito “clássico” da
modernidade, o sujeito que representava o mundo. Ela produz de
uma certa forma um novo sujeito da enunciação. Nesse quadro, o
que importa, como mostra Mariniello (2000, p. 8), não é mais o co­
nhecimento do mundo, o qual um sujeito veria através de um meio
(mídia), mas um outro tipo de conhecimento que não pode mais ser
o mesmo. O desafio é a possibilidade de abrir caminhos em direção
a esse outro conhecimento. A criação desse outro conhecimento se­
ria, assim, o privilégio desses sujeitos “contemporâneos” produzidos
pela interação de mídias, como o cinema e o vídeo.

4. A geração de cineastas-produtores, como Steven Spielberg e George Lucas, foi


responsável pelo renascimento do cinema de gênero (ou de entretenimento), co­
locando-o novamente em alta no mercado mundial. Este “contra-ataque” do
cinema americano com os megaorçamentos nas décadas de 1970 e 1980 não foi
por acaso. Isso foi uma reação direta e pesada da indústria cinematográfica de
Hollywood contra os cinemas nacionais e locais provindos do mundo inteiro,
desde os grandes movimentos cinematográficos pós-guerra, como o neorrealismo,
a Nouvelle Vague, o jovem cinema alemão, o Cinema Novo, o cinema indepen­
dente estadunidense, entre tantos outros.
A interação das mídias, a intermidialidade, desloca o núcleo
de atenção e de pertinência: a narração e a discursividade não são
mais centrais. O sujeito, como um ponto de vista único e especial,
torna-se mais complexo. Inserido neste espaço do entremídias,
esse novo sujeito é um questionamento sobre o sujeito moderno,
encaminhando-o em direção a uma nova configuração do saber
ou, ao menos, revelando a sua necessidade.
A causa desse questionamento é a mudança no nível do co­
nhecimento e da subjetividade que passa pela crise da relação en­
tre linguagem e mundo:

[...] o fluxo de sons e imagens adquiriu uma rapidez tal que esta não
se deixa mais ser submetida/entendida pela linguagem e reduzida a
uma série de agenciamentos lógicos. Qual conhecimento então? E
qual sujeito do conhecimento? E o cinema, qual papel ele atua no
aparecimento deste novo conhecimento? (Mariniello, 2000, p. 10).

A intermidialidade permite aos cineastas uma gama enor­


me de novos procedimentos de experimentação e de participação
de dispositivos no filme, possibilitando ao público testemunhar
os impulsos e as decisões tomadas tanto pelo personagem quanto
por aqueles engajados em um processo em que o diretor também
está envolvido.
Em Notebook não é mais a diferença entre espaço e tempo,
entre duas cidades ou dois personagens, mas o encontro e a dis­
tância de um ponto qualquer a outro, do grão de prata da película
ao pixel eletrônico da fita magnética, por exemplo. Essas mídias e
práticas significantes se contaminam e acabam gerando novos dis­
cursos. Discursos esses que vão além da capacidade expressiva de
um só meio, o que chamamos assim, esse processo e conjunção,
de intermidialidade.
A intermidialidade é a conjunção entre duas ou mais mídias,
ou, ainda, pode se situar entre duas ou várias práticas significantes:
música, literatura e pintura, suponhamos, no interior de uma mídia,
como o cinema. Mas se nós, afirma Mariniello (2000), analisarmos
o movimento de uma prática a outra, nós o paramos, nós o de­
com pom os, e assim nós perdemos sua natureza dinâmica. A
intermidialidade está mais para o movimento e o devir, lugar de
um pensamento não mais entendido como continuidade e unida­
de, mas como intervalo e diferença. A interculturalidade cinemato­
gráfica guarda esse mesmo desafio na compreensão da confluência
de culturas e mesmo de gêneros e histórias que a compõem. Não
conseguimos de fato apreendê-la em toda sua força e dinâmica nar­
rativa se tentamos considerar seus elementos em separado ou se
tentamos encarcerá-la dentro de um gênero ou cultura, principal­
mente considerando a quebra de padrões, a heterogeneidade e as
inovações técnicas que lhe são características.
No cinema intercultural, alguns diretores tentam transfor­
mar o discurso para ir além da representação, da experiência e do
conhecimento do mundo. Entretanto, um dos pressupostos da arte
moderna é justamente o de opor-se à representação e fazer do meio
(mídia) o sujeito. “O que a arte moderna visa, parecido com a am­
bição fenomenológica, é o retorno à essência mesma das coisas, a
esta essência sem representação, onde a mediação não seria ocultação,
mas revelação.” (Nouss, 1995, p. 118). Assim, alguns cineastas ten­
tam permitir ao espectador uma experiência e um contato com a
coisa em si, sem recurso de diálogos ou de roteiro.
O termo conhecimento ou “experiência” permite também
compreender que a arte moderna tenta mostrar a vida na sua crueza
ou na sua dureza, fora de uma estética que seria normativa (Nouss,
1995, p. 121). Entretanto, nas passagens midiáticas, e sempre em
relação à questão da não representação, que Lyotard classifica como
nova linguagem estética, “o belo se apaga diante do verdadeiro, e
esta relação de verdade no real pede não mais para imitá-lo ou para
expressá-lo no que há de representável, mas também no que há de
irrepresentavel" (Nouss, 1995, p. 121). O exílio e a interculturalidade
são algumas dessas experiências, difíceis tanto de representar quan­
to de espacializar.
Nas passagens cinema/vídeo em N otebook de Wim Wenders,
ou em Calendário, de Atom Egoyan, ou, ainda, em Caché (2005),
de Michael Haneke, a conjunção e a justaposição de duas mídias
não objetivam somente colocar o espectador em contato com as
mídias elas mesmas, mas, sobretudo, objetivam romper o contra­
to espectador-filme para levar o sujeito a incorporar e a personifi­
car o meio (mídia). O sujeito seria assim o ponto de vista do não
olhar, uma tentativa de m ostrar o que não se consegue distinguir,
ou de mediatizar com apenas um a mídia. É essa nova im agem
que se forma entre duas mídias. Em Caché\ a imagem-vídeo surge
como uma consciência do passado do personagem, como espe­
lho e como imprecisão da imagem. Ao tentar colocar o persona­
gem em contato com o sofrimento e com a condição alheia, o
vídeo cria uma transparência opaca da realidade e força o perso­
nagem de Daniel Auteil, aquele que é fonte do preconceito e do
racismo contra os exilados, a tomar contato com o “ verdadeiro”
reflexo de sua imagem. Mas isso somente torna-se possível quan­
do a imagem-vídeo está inserida dentro do filme, ou seja, é o movi­
mento entre uma imagem e outra que nos permite compreender e
nos inserir na dinâmica entre realidades, virtualidades, tempos e
culturas na qual o personagem de Auteil imerge.
Tradução, comm odities e gêneros

A cultura exílica situa-se na interseção e nos interstícios de


outras culturas (Naficy, 1993, p. 2). O discurso exílico tem de lidar
com a problemática de lugares múltiplos. A desterritorialização
que o exílio produz tem criado “outros mundos e conhecimen­
tos” de pessoas desafetadas, que voluntária ou involuntariamente
não estão ou não querem fixar-se a uma só identidade. Os exilados,
segundo Naficy, têm a possibilidade de criar identidades híbridas e
culturas sincréticas que simbólica e materialmente tomam empres­
tadas de ambas as culturas, a do passado e a do presente, o que para
Salman Rushdie faz parte do processo de tradução pessoal.
Em seu artigo autobiográfico “Pátrias imaginárias” (“Imaginary
homelands” ), Rushdie enfatiza que escritores como ele, exilados,
emigrados ou expatriados, podem ser perseguidos por um sentimento
de perda, uma necessidade de recuperação do passado, de reencontro
consigo mesmos, correndo o risco de se tornarem estátuas de sal
(Rushdie, 1992, p. 10). Mas como eles não são mais capazes de re­
conquistar o que se perdeu, tenderão a criar ficções, não cidades ou
vilas reais, mas aquelas invisíveis, pátrias imaginárias, criações “ima­
ginativamente” verdadeiras. No entanto, como o escritor adverte,
verdade imaginária é, simultaneamente, louvável e duvidosa.
A natureza parcial dessas memórias, sua fragmentação, sua
imprecisão, seu caráter hesitante e desproporcionado, é o que as
fazem, para Rushdie, ser tão evocativas quanto valiosas: “Os cacos
de memória adquirem um status maior, uma ressonância maior,
porque são restos; a fragmentação faz coisas triviais parecerem
sím bolos, e m undanidades adquirirem qualidades m ísticas.”
(Rushdie, 1992, p. 12). O exílio exige uma auto tradução por parte
do autor. Tradução, para Rushdie, quer dizer na sua maneira exílica
de se expressar uma dualidade de línguas e de espaços memoriais.
Isso, a princípio, é um ganho adquirido pela proficiência de vá­
rias línguas e culturas literárias daquele que escapa de uma só
identidade estática e fixa. O exílio torna-se assim uma experiên­
cia positiva do conhecimento e da alteridade que ultrapassa a
negatividade estéril e improdutiva, dando vazão a uma riqueza de
narrações e histórias. Segundo Rushdie, o exílio é gerador de uma
errância positiva, enraizada, de cruzamentos literários, um encon­
tro com o Outro, e uma rejeição ao espaço recluso.

A palavra ‘tradução’ vem, etimológicamente, do latim: carregar


através. Depois de termos sido carregados pelo mundo afora,
nós somos homens traduzidos. Supõe-se normalmente que algo
sempre se perde na tradução; eu me atenho, obstinadamente, à
noção de que algo também pode ser ganho. (Rushdie, 1992, p.
17, grifo nosso).

A perda ou o ganho dessa tradução de sensibilidades e sen­


tidos se verifica na impossibilidade ou incapacidade de não po­
der se comunicar através de uma imbricação e multiplicidade de
línguas, culturas ou mídias. O cinema intercultural e o de exílio
permitem a exploração de fronteiras imaginárias, principalmente
através da intermidialidade e de uma percepção consciente dos
clichês e da mídia. No filme filipino Todo Todo Teros (2006), de
John Torres, o digital é usado como recurso narrativo e como
materialidade midiática. A manipulação e a presença da imagem
são constantes e tratadas como uma ameaça terrorista. A imagem se
torna complô e ameaça de um mundo cada vez mais inserido den­
tro de uma problemática globalizada. O terrorismo se torna assim
não uma ameaça real para a pobreza, miséria e subserviência
filipina, mas uma figura de estilo e tratamento estético sobre a
banalização da globalização.
Já no filme palestino Paradise now (2005), de Hany Abu-Assad,
o terrorism o não é uma alegoria da globalização, e sim uma
legitimação da resistência identitária e de luta contra a opressão.
O terrorismo é algo imanente na cultura palestina e mundial de
hoje, por razões distintas. No filme, a realidade tom a proporções
maiores que a própria ficção, e o questionamento de o que é real
ou fictício se torna sem sentido, pois a real devastação do espaço
torna impossível qualquer tipo de ficção. A presença material da
atualidade dos escombros torna-se materialidade fílmica. É como
se o ilogismo da situação palestina num m undo globalizado e m o­
derno fosse inumano, incompreensível, inaceitável e “não narrati­
vo”. O discurso pessoal e político confunde-se com as noções de
Estado-nação, povo e cultura, como no longo m onólogo do per­
sonagem central, Said (Kais Nashif), antes de embarcar para Israel
com uma bom ba atada a seu corpo:

Uma vida sem dignidade não vale nada. Sobretudo, quando ela
nos lembra, dia após dia, nossa humilhação e nossa fraqueza. E o
mundo observa tudo isto, covardemente, indiferente. Se a gente
se encontra sozinho em face dessa opressão, a gente deve encon­
trar um meio de pôr fim a essa injustiça. Eles devem entender que
se não há segurança para nós, não haverá tampouco para eles.
Eles convenceram o mundo todo, e a eles mesmos, de que eles são
vítimas. Como pode o ocupante ser vítima? Se eles endossam o
papel de opressor e de vítima, eu não tenho outra escolha que a
de ser, ao mesmo tempo, vítima e assassino.
A ameaça iminente de sua integridade física e da cultura de
seu povo é incorporada literalmente pelo personagem através de
um ato incompreensível de resistência e alteridade. Ele se afirma
integralmente, corpo e mente. A cultura do Outro, ou seja, a israe­
lense, está presente-ausente na tela de uma maneira sutil, subjacente
e onisciente. Essa tensão e opressão entre culturas legitima o dis­
curso pessoal do personagem e o torna imediatamente político e
identitário, como um rompimento de barreiras e auto afirmação.
O ato extremo de se imolar junto com o Outro revela também, no
filme, a impossibilidade de continuar a sustentar uma imagem ou
história que não o corresponde.
Os filmes emergentes tentam quebrar as amarras do cinema
de gênero, que por décadas vem aprisionando e impedindo temas
como a migração e a colonização, e estabelecer uma real e complexa
noção do tema da interculturalidade nas telas. A estereotipagem do
migrante pelo cinema clássico influencia na maneira, por exemplo,
de como pensamos os conceitos de interculturalidade ou de exílio.
Se fizermos uma analogia entre gênero cinematográfico, com
suas estruturas, tipos e normas, e uma caixa, essa imagem nos dá
uma ótima possibilidade de pensarmos as estratégias dos cinemas
emergentes e interculturais nas suas tentativas de romper com es­
tas embalagens e se conceberem “fora da caixa” ( outside the box).
Os filmes In this world (2002), de Michael W interbottom,
e Zulu 9 ( 2001), de Alan Gilsenan, mesclam os gêneros cinemato­
gráficos, documentário e drama, e colocam a “caixa” não como
uma simples metáfora, mas como uma prática concreta do contra­
bando de imigrantes. Os filmes mostram alternativas desesperadas
dos migrantes para cruzar as fronteiras, submetendo-se à exploração
dos atravessadores que os contrabandeiam de forma ilegal através
de contéineres pela Europa.
No filme de Winterbottom, dois jovens escapam da miséria
e da guerra do Afeganistão pagando atravessadores, a fim de po­
derem cruzar as fronteiras de vários países ocupados e em guerra
e conseguirem chegar a Londres. Eles tomam os caminhos mais
difíceis e inusitados, como cruzar desertos, atravessar montanhas
durante a noite ou viajar dentro de um contêiner sem luz e com
pouco ar. Zulu 9 (2001), de Alan Gilsenan, mostra o contrabando
de imigrantes africanos para a Irlanda em caminhões-baús de car­
ga tóxica.
O neoliberalismo econômico abriu as portas para a globalização
de produtos e serviços, inclusive a importação e a exportação ilegal
de mão de obra barata. Os migrantes tornam-se commodities eco­
nômicas, objetos transnacionais (Marks, 2000; Herr, 2007). Esse
movimento do mundo conhecido (lugar de origem) ao mundo
ainda não conhecido (exílio) representa movimentos através de
um apparatus do estado em que uma pessoa é transportada e radi­
calmente deslocada de seu espaço. A caixa é a transição, o transpor­
te, uma jornada impossível de ser representada. Enquanto o cinema
de gênero age como fornecedor de fantasia e desencadeador da
diferença, a representação de pessoas imigrantes repousa numa
tensão entre fantasia e experiência da realidade (Herr, 2007). Com
essa realidade difícil de apreender é que os filmes emergentes ten­
tam estabelecer uma ponte. Assim, a busca é por uma estrutura
narrativa aberta, como uma ferramenta para opor ou deslocar um
olhar profundamente alienado.
A globalização da imagem

A miséria humana e o movimento migratório são dois te­


mas recorrentes no cinema intercultural. Um derivado do outro e
vice-versa. Esses temas se tornaram uma preocupação essencial
no final do século XX. A degradação da condição humana, em
países devastados pela fome e pela guerra, parece caminhar lado a
lado com a gradativa especulação de um termo contemporâneo que
caiu facilmente na alienação, na banalização, e que perde cada vez
mais seu sentido: globalização ou, como preferem os franceses,
mundialização. Entre discussões intermináveis e muitas vezes
infecundas de teóricos e suas opiniões, prós e contras, sobre a
globalização, às vezes, essas concepções tomam proporções enor­
mes e incompreensíveis, que o cinema intercultural (assim como o
cinema político da década de 1970) busca denunciar, e têm trágicas
consequências, que ele busca combater. Por outro lado, é preciso
entender a questão da globalização cultural e seus produtos
comunicacionais. Devemos concebê-la como tradução de uma
compreensão da obra artística ou como acesso a essas obras? A
globalização cultural é uma transformação ou criação de sentidos?
Tornou-se senso comum dizer que globalização cria a
massificação e a homogeneização cultural e social. Entretanto, se­
gundo Pieterse, globalização é um processo multidimensional, que
encampa uma larga e variada gama de práticas sociais, políticas e
culturais humanas. O autor coloca a globalização como um “pro­
blema descentralizado” (Pieterse, 2006), mas que vem sendo visto
como uma ocidentalização do mundo. Em verdade, a globalização
ocorre por meio de hibridações culturais e estruturais que geram
novas formas de organização social e cultural.
Appadurai vê a globalização como um fenômeno fluido e di­
nâmico atrelado ao movimento migratório mundial (ambos vo­
luntários e involuntários) e a disseminação de imagens e textos via
mídia eletrônica. Num ambiente pós-colonial e de saturação
midiática, novas formas de desejo e subjetividades são desencadeadas.
Desenhado sob concepções pós-estruturalistas, Appadurai prevê o
globo como entrecruzado por fluxos que ele denomina “dutos”
(Appadurai, 2006), os quais enquadram os mundos constante­
mente modificados da nova paisagem global. Como seria esta pai­
sagem no cinema? Como fica o cinema intercultural numa era
globalizada?
Em sua diversidade de pontos de vista, o cinema oferece uma
variada gama de conceitualizações sobre o mundo globalizado. Os
filmes vêm mostrando nessa evolução mundial que a complexida­
de do tema merece uma complexidade de comportamentos e nar­
rativas. Alguns predizem numa imposição de uma “cultura mundi­
al virtual”, sobrepondo as culturas e as identidades, resultado da
desmaterialização da cultura e sua globalização.
Em Encontros e desencontros (Lostin translation, 2003), de
Sofia Coppola, os personagens não parecem perdidos na tradu­
ção, como sugere o título em inglês, ou traduzidos infielmente,
como sugere o título em francês. O ato ou a necessidade de se
autotraduzir dos personagens estadunidenses na paisagem japo­
nesa simplesmente não se impõe, afinal esta é a vantagem de um
mundo globalizado: a ausência do estranhamento e da distância.
Os dois personagens, estadunidenses, estão completamente
ancorados no mundo moderno. Charlotte é uma recém-graduada em
filosofia em uma das mais prestigiadas universidades nova-iorquinas,
e Bob é um ex-astro de Hollywood, em plena crise de meia-idade.
Eles se encontram por acaso, hospedados num grande hotel interna­
cional em Tóquio por alguns dias. E está lá por um anúncio publici­
tário, e ela, acompanhando seu marido, que é fotógrafo.
Ambos estão deslocados e sofrem de uma profunda depressão,
o que os impede de dormir, estão literalmente fora de uma ordem
habitual das coisas, em pleno esgotamento da defasagem/diferença
de fuso horário. Se Tóquio não os inspira com sua modernidade
sem igual e seus mosteiros milenares, em suas casas, nos Estados
Unidos, a situação se repete. Enquanto ela não consegue se fazer
entender por sua melhor amiga, que evita escutar o seu choro,
ele se sente constantemente importunado por sua mulher sobre a
escolha do carpete ou sobre a atenção que não dá aos filhos.
As centenas de japoneses que vemos circularem na tela ser­
vem apenas como elementos de decoração de um grande cenário
pós-moderno de uma sociedade cosmopolita, representada por
seu grande hotel internacional - habitado por outros hóspedes
estadunidenses: o fotógrafo de celebridades, a atriz de filmes de ação
e a cantora do bar do hotel - e suas ruas impregnadas de néon. Os
personagens não tecem nenhum comentário sobre a cidade ou a
cultura japonesa que expresse algum interesse ou curiosidade, algo,
no mínimo, inesperado para uma graduada em filosofia de Yale.
Todos são completamente indiferentes às origens, costumes e sen­
sibilidades japonesas. Os nativos de Tóquio estão presentes e, ao
mesmo tempo, invisíveis numa paisagem que não consegue ir além
dos clichês. Seria isto uma comunidade globalizada em que o dis­
tante se torna tão próximo quanto indiferente?
Em contraponto às contradições e aos sentimentos de perda
referencial dos personagens de Encontros e desencontros está um
outro documentário de Wim Wenders, Tokyo-Ga. Esse filme ex­
plora o universo do diretor japonês Yasujiro Ozu, um ídolo do ci­
neasta alemão, e como ele mesmo define: “um tesouro sagrado do
cinema”. Tokyo-Ga envereda na busca de uma tradução e identifica­
ção. Enquadrar ou temporalizar a imagem como fez Ozu são tare­
fas que o cineasta alemão leva a sério. Wenders explora em detalhes
certos costumes banais dos japoneses à maneira de Ozu. A presença
da história, da língua e da escrita se acumula aos temas ozunianos
sobre o cotidiano e a degradação da família. Temas universais e com­
preensíveis, mesmo que através de uma sensibilidade e ponto de
vista particulares a uma cultura ancestral como a de Ozu. Nunca o
cinema foi tão minimalista e original quanto nas imagens da bana­
lidade de um Japão cada vez mais ocidentalizado e aberto aos qua­
tro ventos do mundo.
A questão no cinema não reside em saber como se articula
uma cultura globalizada ou como se representa um mundo
globalizado, mas sim o que faz uma imagem ser considerada
globalizada entre tantas interculturalidades.

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Identificando o conceito
de cinema transnacional*

Vicente Rodríguez Ortega

Em 2001, a BMW desenvolveu uma campanha de marketing


audiovisual para suas diferentes linhas de produtos baseada em
uma série de curtas-metragens, que poderiam ser acessadas pela
internet e nos quais estrelava Clive Owen. Os filmes seriam vistos
primeiramente na internet.1Com base no conceito original de
David Fincher, a empresa alemã incumbiu cinco diretores que
estavam em evidência para dirigir cada curta. O projeto foi deno­
minado The Hire (Os contratados).
Antes da atualização ocorrida no final de outubro de 2005, o
site oficial dos filmes da BMW (www.bmwfilms.com) levava os
usuários a selecionar o local de onde estavam acessando o site: “Para
uma melhor experiência digital disponível em sua região do mun-

* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N.T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Alguns dos filmes foram apresentados em cinemas antes das apresentações na internet.
Hoje é possível adquirir o DVD da série inteira (temporadas I e II). Na estreia da
segunda temporada no Teatro Apollo, em Nova Iorque, os filmes foram apresenta­
dos digitalmente, utilizando-se o programa Microsoft Windows Media Player.
do, por favor, selecione seu país”.2 Embora o mapa-múndi, à es­
querda na tela, tenha nuances de branco que separam os diferen­
tes territórios geopolíticos em nosso atlas mundial atual, os países
estão agrupados em grupos regionais, com poucas exceções (os
Estados Unidos e o Canadá estão sozinhos). Quando os usuários
dão dois cliques em seu país de origem (se for possível, já que as
dimensões do mapa são mínimas e alguns países são parcialmen­
te invisíveis), eles são agrupados com outros usuários de países
que a BMW considera pertencerem ao mesmo público-alvo (ou
seja, toda a África é um só território em termos de acesso com o
clique; o México fica agrupado com a América Central e o Caribe).
Obviamente a opção que o usuário tem ao escolher seu país - e,
portanto, seu status geral, cultural e econômico - faz lembrar o
jogo de tabuleiro War>já que a estrutura do mapa não somente
estabiliza hierarquias de tamanho (o Brasil é m aior que os Esta­
dos Unidos em termos de extensão, mas está agrupado dentro do

2. Em 21 de outubro de 2005, a BMW retirou a série The H ire da web e redesenhou


o site. Agora, quando os usuários digitam bmwfilms.com, eles são redirecionados
para www.bmwusa.com/bmwexperience/films.htm. A empresa alemã continua a
exibir The H ire como uma façanha artística inédita na história do entretenimento
digital ao mesmo tempo que promove o caráter distinto do seu produto. Pode-se
ler no texto on-line: “a inédita série de filmes The H ireàz BM W ignorou conven­
ções e criou o fenômeno conhecido com o filmes on-line. A web nunca mais foi a
mesma. Esses oito curtas de diretores aclamados de Hollywood revolucionaram
de forma efetiva o mundo do entretenimento interativo, enquanto exibiram os
limites absolutos de máxima performance automotiva exclusiva da BMW. Com
mais de 100 milhões de espectadores e vários prêmios, a série de filmes The Hire
serviu como mais uma prova de que, quando se trata de inovação e tecnologia, a
BMW tem estado à frente de seu tempo”.
quadro latino-americano, não podendo ser clicado isoladamente,
por exemplo), mas também reflete os interesses de mercado da
BMW, que privilegia a América do Norte como marco territorial
chave.3Essa estrutura de grupo é planejada para permitir que a
BMW monitore o grau de interesse na série The H ire em cada
área de mercado e, portanto, oriente as estratégias de marketing
futuras da empresa com relação aos produtos que o filme anun­
cia. Manuel Castells reconhece que frequentemente pessoas e na­
ções são excluídas do panorama global, da conectividade mundial
possibilitada pela tecnologia digital não somente por falta de co­
nexão, mas também porque elas “se tornam dependentes de eco­
nomias e culturas em que têm pouca chance de encontrar seu pró­
prio caminho de bem-estar material e identidade cultural”.4 Em
outras palavras, o mapeamento modificado de regiões do mundo
em The Hire aponta para os centros a partir dos quais essas práticas
de tomadas de decisão provêm. Entretanto, o usuário de internet,
ao clicar duas vezes em qualquer lugar no mapa, é levado de volta à
mesma tela principal de apresentação: e a figura de Clive Owen

3. Wari denominado“o jogo da dominação global”, exibe um mapa mundial dividido


em territórios imaginários. Os jogadores possuem um exército e, depois de recebe­
rem aleatoriamente certos territórios, devem cumprir uma missão (conquistar a
Ásia e a América Latina, por exemplo) ou destruir todos os exércitos. Cada conti­
nente tem um valor para o seu exército. De forma indicativa, a América Latina e a
Atrica não somente estão divididas cm um número menor de territórios que a
Europa e a América do Norte, mas também possuem um valor menor em termos
de pontos.
4. Castells, Manuel. The Internet Galaxy: Reflections on the Internet, Business and
Society. London; New York: Oxford University Press, 2001. p. 247.
saúda os usuários a partir do centro da tela. Acima, na tela, pode­
mos ver o título de cada filme da série. À esquerda, há urna breve
explicação sobre a figura de Owen, juntamente com uma descri­
ção da série como sendo feita pelos “melhores talentos de
Hollywood” A página da web está, invariavelmente, em inglés.
Consequentemente, o acesso a The Hire, apesar de prometer
especificidade cultural através de agrupamento regional, devido
ao seu caráter digital, recorre ao inglês, a língua de trocas culturais
e econômicas sempre em expansão, para anular o movimento em
direção à diferenciação que a primeira página de acesso prometia.
Em outras palavras, a BMW faz uma operação paradoxal de reco­
nhecimento multicultural e homogeneização global que coloca
todos os usuários - de onde quer que eles sejam - no mesmo saco
de língua-inglesa-como-língua-franca. Uma vez que os usuários
clicam em uma das áreas selecionadas e registram-se, a fim de ver
o filme (um requisito), não é mais possível voltar à tela inicial,
“De onde você está acessando esta página?”. O usuário foi identi­
ficado como, digamos, africano, e a navegação/safári da internet é
automaticamente redirecionada à página da web para sua apresen­
tação regional. Sob o álibi da escolha, executa-se uma prática de
controle.
Além disso, um olhar mais atento aos diretores da primeira
temporada de The Hire problematiza a caracterização simplista da
série como sendo feita pelo “melhor de Hollywood”. Por outro lado,
aponta para a tentativa da BMW de apelar a uma variedade de gru­
pos demográficos de usuários com gostos diferentes para filmes -
os quais a empresa alemã estrategicamente associa com o mode­
lo particular de carro que cada filme exibe. A lista de diretores
inclui Ang Lee, um diretor formado pela Universidade de Nova
Iorque, que conquistou o mercado global de filmes com O Ti­
gre e o Dragão; Alejandro Gonzalez Iñárritu, cujo único filme
anterior a 2001 foi Amores Brutos, também um sucesso interna­
cional, que oferece uma experiência cinética pelos meandros da
cidade do México, ao mesmo tempo que mobiliza a condição
de hip-hop como a linguagem dominante da música popular
nos anos 1990 e que tem sido comparado aos quebra-cabeças
eletrizantes de Quentin Tarantino; John Frankheimer, um vete­
rano de Hollywood, cuja carreira abrange mais de 40 anos com
filmes que vão desde Sob o Domínio do Mal até Jogo Dura, Guy
Ritchie, uma figura-chave contemporânea do cinema britânico
moderninho, que tinha dirigido dois filmes cult de sucesso co­
mercial, Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch ( Por­
cos e Diamantes) e se tornou uma celebridade bem estabelecida
em razão de sua associação artística e sentimental com Madonna;
finalmente, Wong Kar-Wai, um diretor autoral de Hong Kong
que, até aquele ponto da sua carreira, tinha repetidamente evita­
do Hollywood desde que ganhou reconhecimento mundial na
metade da década de 1990 e continuou a produzir devaneios
fílmicos altamente idiossincráticos à margem do cinema comer­
cial de Hong Kong.
Ao passo que Frankheimer e Lee tinham trabalhado em
Hollywood por volta de 2001, os outros não tinham. De fato, am­
bos, Gonzalez Iñárritu e Ritchie, foram para Hollywood depois
de fazer The Hire, e Lee mudou-se, gradativamente, do mundo
independente que lançou sua carreira, em associação com o
estúdio Good Machine de James Schamus, para o universo
hollyw oodiano.5 Wong, ao contrário, continua a trabalhar em
Hong Kong, financiando seus filmes através da sua própria empre­
sa de produção, a Jet Tone Films, e de uma variedade de investido­
res europeus e chineses.6 Seus filmes não chegaram até as salas de
cinema multiplex, permanecendo, entretanto, como pontos de re­
ferência no cinema de arte.
O produtor executivo da primeira temporada de The Hire,
David Fincher, afirma que o objetivo foi produzir cinco filmes in­
dependentes que poderiam ser babeados da internet ( downloadable
independent films) e mostrariam cinco modelos diferentes de car­
ros, feitos por cinco diretores diferentes para basicamente “dar às
pessoas uma razão para assistir aos filmes”7. A justaposição das
palavras downloadable e independent que Fincher faz situa a preo­
cupação do cinema independente dentro do alcance global de
todos os acessos à internet e sinaliza o estado dos acontecimen­
tos na indústria do cinema estadunidense após a passagem de
Tempo de Violência e Sexo, m entiras e videotapes do cinema
independente para o cinema comercial. Assim, em um cenário
cinematográfico em que os canais de televisão IFC e Sundance

5. O estúdio Good Machine foi comprado pela Universal. Schamus e Lee, entretanto,
continuaram sua parceria criativa na Universal produzindo filmes como Hulk
(2003) e O Segredo de Brokeback Mountain (2005) através do estúdio Focus
Features, sua subsidiária mais “artística”.
6. 2046, por exemplo, foi coproduzido por Fortissimo Film, France 3 Cinema,
Shanghai Film Studies, ZDF e Arte France Cinema, entre outros. Wong depois fez
seu primeiro filme em língua inglesa, Um Beijo Roubadoycujos direitos foram
comprados pela companhia de produção e distribuição de filmes The Weinstein
Company.
7. No making o f do DVD “The Hire. Primeira Temporada”.
se tornaram grandes franquias e as filiais independentes dos es­
túdios de Hollywood se multiplicaram, o título de filme inde­
pendente não mais se refere ao mundo experimental do centro de
Nova Iorque de Jonas Mekas ou aos filmes baratos de John
Cassavetes da metade da década de 1950. Como vários estudiosos
observaram, a distinção entre filmes independentes e filmes
hollywoodianos se tornou cada vez mais obscura, a ponto de se
tornar um rótulo de marketing funcionando da mesma forma que
as marcas Versace ou Channel.8A ênfase da BM W ao mostrar os
melhores talentos de Hollywood como estratégia de marketing e a
definição, por Fincher, dos filmes como independentes apontam,
de fato, para a eterna luta entre as empresas de produção - almejan­
do produzir receita - e o talento criativo - tentando a todo custo
manter intacta a liberdade criativa. Ao mesmo tempo, entretanto,
marcam a confusão existente no cenário cinematográfico atual quan­
do se discute se um filme é uma produção independente ou de
estúdio.9A permutabilidade desses dois termos no contexto de toda
a série The Hire, portanto, não somente indica a insignificância
parcial (quase total, ousa-se dizer) em se distinguir os dois termos
hoje, mas, de forma mais importante, os caminhos convergentes que
esses dois modos de produção tomaram nos últimos quinze anos.

8. Biskind, Peter. Down and dirty pictures. Miramax, Sundance, and the Rise of
Independent Film. New York: Simon & Schuster, 2004; e Holmlund, Chris; Wyatt,
Justin. Contemporary American Independent Film : from the margins to the
mainstream. London; New York: Routledge, 2005.
9. Holmlund, Chris; Wyatt, Justin, idem.
Além disso, a acessibilidade de The Hire, utilizando a quase
total disponibilidade por meio da internet como ferramenta-chave
de marketing.; indica que essa série foi concebida como uma expe­
riência de observação on-line potencialmente onipresente em cada
canto do mundo. Enquanto esse grupo de diretores multiculturais
e multinacionais, com abordagens altamente diferenciadas às
potencialidades expressivas e narrativas do meio cinematográfi­
co, produziu, de fato, filmes bastante distintos, a presença recor­
rente dos carros da BMW os liga como iniciativa fundamental­
mente comercial que distribui produtos finais semelhantes: o
engajamento dinâmico dos espectadores na apreciação de uma
variedade de viagens audiovisuais fluidas nas quais o logotipo e a
estrutura da BMW prevalecem. Em outras palavras, The Hire uti­
liza a prática ubíqua no cinema contemporâneo da colocação do
produto à frente de sua estrutura textual: o que mais importa, no
final das contas, são os diferentes modelos de carro exibidos. Ao
mesmo tempo, o estilo cinematográfico distintivo desses direto­
res e a “assinatura” conferida a cada um dos filmes resumem o
trabalho que vai envolver o encontro do espectador com cada mo­
delo de carro e os estilos de vida que eles devem catalisar.
Para a segunda temporada de The Hire\a BMW contratou
três novos diretores para produzir filmes. Tony Scott, um queridinho
da indústria com uma reputação íntegra; John Carnahan, jovem
diretor, e a sensação do momento, que tinha acabado de fazer
NarCj aclamado pela crítica; e John Woo, o derradeiro diretor
autoral de filme de ação de Hong Kong, com excelente reputa­
ção no mercado asiático na década de 1980 e na primeira meta­
de da década de 1990, e que se tornou um diretor de primeira
linha de Hollywood depois do sucesso global de A Outra Face e
de Missão Impossível II. Cada um se saiu como o esperado. O
filme de Woo, The Hostage\por exemplo, parece ser uma compi­
lação de todos os seus excessos pirotécnicos emocionantes de ve­
locidade múltipla.
Após os oito episódios da série The H ire estarem comple­
tos, os carros da BMW foram reimaginados áudio, visual e narra­
tivamente por oito diretores com conhecimentos artísticos e cul­
turais extremamente diversos. O comprador potencial da BMW
tinha oito mundos diferentes para fazer sua escolha, oito tipos
diferentes de carros para comprar. De forma ideal para a empresa
alemã, todos os tipos de usuários podiam passar os olhos por suas
coleções e encontrar seu nicho ideal - cada carro embrulhado nos
valores de alta produção e nos códigos cinematográficos e cultu­
rais do filme que o exibia.
Conseguimos identificar cada filme destes da BMW como
estadunidense, alemão, taiwanês ou mexicano? Talvez taiwanês-ameri-
cano ou chinês-argentino? Todos eles são de fato filmes multiculturais
e transnacionais em termos de produção, estética, talento e temas. O
conhecimento sociocultural distinto de cada diretor mobiliza um
dominante cultural específico - quer dizer, o uso de música argen­
tina na peça de Wong sinalizando seu gosto por música latina - ,
mas seu projeto total está, sem dúvida, imbuído de uma série de
processos transculturais que não podem ser identificados com
precisão ao associar qualquer de seus filmes às tradições cinema­
tográficas particulares e aos discursos culturais gerados dentro
dos limites de uma única fronteira geopolítica. O que nos diz essa
circulação migratória de talento no cenário cinematográfico con-
temporáneo, que a série da BMW tão salientemente resume, sobre
as formas pelas quais a estética cinematográfica e os diretores cir­
culam hoje em torno das diversas indústrias de filme no mundo?
Como podemos entender suas práticas respectivas de direção
como tendo um apelo global além de sua especificidade cultural e
nacional?
As discussões contemporâneas sobre o conceito de cinema
nacional estão invariavelmente ligadas ao conflito entre a promo­
ção e a proteção de práticas locais que personificam a especificidade
cultural de uma nação e a realidade ostensiva de um mercado con­
sumidor que favorece a gigantesca Hollywood no mundo todo. A
defesa feroz dos países europeus ocidentais (liderados pela Fran­
ça) para excluir setores audiovisuais do tratado de GATT ( General
Agreement on Tariffs and Trade, Acordo Geral sobre Tarifas e Co­
mércio), em 1993, e a briga dos Estados Unidos por sua inclusão
revelam não somente o entendimento diferenciado de cinema como
cultura ou comércio respectivamente, mas também o papel central
dos Estados-nações na era atual e sua mudança de posicionamento
estratégico como estruturas operantes que são, ao mesmo tempo,
inclusivas e exclusivas.10Se admitirmos a queda do bloco soviéti­
co, a liberalização do mercado na China, a compreensão madura
da União Europeia como um estado supranacional efetivamente
operante, a posse multinacional cada vez maior das empresas cine­
matográficas e a expansão das redes eletrônicas com a consequente

10. Miller, Toby et al. Global Hollywood. London: BFI, 2001. p. 36.
multiplicação dos canais através dos quais produtos de mídia são
distribuídos, exibidos e consumidos, devemos reconhecer uma
expansão desterritorializada do mercado cinematográfico em di­
reções múltiplas que favorecem aqueles com mais recursos eco­
nômicos e tecnológicos para divulgar seus produtos. Além disso,
se aceitarmos que as “zonas de contato” entre culturas diferentes têm
aumentado dramaticamente nas últimas duas décadas e que, como
consequência, culturas diferentes foram expostas a uma gama maior
de práticas estéticas e ideológicas, fixar uma teorização do cine­
ma através de paradigmas territoriais - tais como, o conceito de ci­
nema nacional - parece ultrapassado, senão, enganoso. Como, então,
o cinema engaja essas práticas neste contexto multitecnológico,
multicultural, ímpar e polimático da atualidade que foi rotulada de
era global? Como pode o microcosmo distinto que um conjunto
diverso de filmes oferece ao espectador permitir ao pensador social
e cultural distanciar-se das especificidades dos diferentes ambientes
que elas abordam diretamente e da macropolítica do global? Pri­
meiramente, parece que, em um mundo de entrelaçamentos inten­
sificados entre discursos de mídia que atravessam fronteiras nacio­
nais, a compreensão do modo cinemático como operante de modo
transnacional nos daria, de fato, um modus operandi frutífero para
atacar esse empreendimento. Entretanto, o que significa exatamen­
te adotar uma abordagem transnacional para o cinema contempo­
râneo? O cinema nao é, desde seu início, uma prática transnacional
na qual artistas, artesaos, modelos econômicos, redes de distribuição
e exibição e agentes culturais têm costumeiramente cruzado frontei­
ras e interagido uns com os outros e, dessa forma, moldado então a
história do cinema como um processo contínuo de transfertilização
transterritorial? Mesmo se admitirmos que agora o grau dessas tro­
cas tem feito sucesso repentino a partir de ambos os pontos de vista
econômico e estético nas últimas duas décadas, não deveríamos tam­
bém realçar que o funcionamento dessas novas “comunidades
imaginadas” é, ao mesmo tempo, codependente das configurações
específicas de formas locais de produção cultural entre os parti­
cipantes de cada uma dessas comunidades? Não há tendências es­
pecíficas que configuram a interação entre o cinemático e o social
em um estilo transnacional que mantém um status privilegiado? O
primeiro passo para propriamente teorizar sobre a utilidade de uma
abordagem “transnacional” para o cinema é identificar a lógica
dominante que hoje estrutura a produção, a circulação, a exibição
e a recepção do filme. Para realizar esse objetivo, necessitamos iden­
tificar as diferentes faces dessa estrutura transnacional.

Uma abordagem transnacional para o cinema:


a economia, a estética e o social

Sem negligenciar a especificidade cultural, um entendimento


transnacional de criação de filmes explora os mecanismos através dos
quais os fluxos culturais e ideológicos interagem uns com os outros
além das fronteiras territoriais e analisa textos cinemáticos diferen­
tes de forma dialógica e desterritoríalizada. Embora enfatize a troca
e a diversidade em vez da unidade e da homogeneidade, essa es­
trutura reconhece o papel dos diferentes Estados-nações em fi­
nanciar ou capacitar práticas de criação cinematográfica. Como
Elizabeth Ezra e Tom Rowden declaram,
[...] o cinema apresenta fronteiras em graus variados, sujeitas à
mesma mobilidade das pessoas... Em termos gerais, a mobilida­
de do cinema, assim como a mobilidade humana, é determinada
por fatores geopolíticos e pela estirpe financeira.11

Além disso, certas estéticas e certas abordagens transitam mais


facilmente que outros através das fronteiras. Uma das principais per­
guntas que os estudiosos deveriam tentar responder é que estilos de
cinema, desde a narrativa, a pontos de vista audiovisuais e gerais,
possuem apreciação global e quais não, e qual é a relação entre as
redes de circulação que possibilitam essa distribuição (ou falta) de
bens cinemáticos no mundo inteiro, os pontos de vista críticos con­
trários que esse conjunto diverso de filmes oferece na era geopolítica
atual e as idiossincrasias de suas estruturas estéticas rivais.
O conhecimento sobre cinema tem promovido, tradicional­
mente, o estabelecimento de critérios distintos, a fim de organizar
seu campo heterogêneo de estudo em estruturas de cinema nacionais
facilmente distinguíveis. A maior parte dos livros e artigos sobre o
cinema ainda privilegia uma série de textos e autores canônicos, con­
figurações gerais ou movimentos artísticos gerais, criando uma his­
tória e uma teoria teleológica de criação cinematográfica que negli­
gencia o caráter polifónico, não coesivo e indeterminado da criação
artística - por exemplo, estabelecendo uma série de critérios para de-

11.Ezra, Elizabeth; Rowden,Terry. General Introduction: what is transnational cinema.


In: .... TransnationalCincmx the film reader. London; New York: Routledge,
2006. p. 5.
terminar as características de um movimento de cinema nacional,
por exemplo, “Cinema Novo Alemão” - , e fazendo leituras sintomá­
ticas de um texto cinemático para fixar seus múltiplos significados
em urna taxonomía de filmes aceita que pertence ao movimento do
filme em questão. O projeto do cinema transnacional rejeita total­
mente essas zonas de conforto e procura desemaranhar as maneiras
não programáticas através das quais a criação cinematográfica con­
temporânea opera. Primeiramente, ele está aberto para identificar no­
vos modos nos quais diretores de diferentes regiões do mundo po­
dem estabelecer vetores de interação entre eles quando se trata de
estética e como estas escolhas estilísticas são informadas pelo amplo
cenário sociocultural e econômico no qual os filmes são produzidos
e consumidos. Em segundo lugar, avalia os canais que possibilitam a
interação transterritorial entre filmes. Em outras palavras, avalia que
filmes fazem sucesso e quais não fazem nas redes globais de circula­
ção e a razão disso - por exemplo, qual é a relação entre Cães de Alu­
guel e os filmes de ação de Hong Kong em termos estéticos e qual é o
papel da influência de Tarantino/Miramax na distribuição dos filmes
asiáticos estrangeiros no mercado dos Estados Unidos após o sucesso
econômico e de crítica de Tempo de Violência? Terceiro, trata da
relação entre a presença crescente dos filmes de Hollywood no mun­
do todo e a expansão das redes de comunicação e informação na era
global. Ainda, ao mesmo tempo, ele se recusa a reduzir as inúmeras
decisões que são feitas diariamente nos estúdios de Hollywood a um
todo monolítico. Deve-se, então, evitar avaliações generalizantes quan­
do nos referimos a esse tipo de intervenção cultural, estética e econô­
mica no cenário mundial cinematográfico. O que se pode fazer, por
outro lado, é identificar a lógica dominante que está em jogo no cine­
ma hollywoodiano contemporâneo e analisá-la em relação a outras
formas de produção, abordagens estéticas aos modelos cinemáticos e
econômicos que coabitam o espaço entre o social e o cinemático na
era contemporânea.
A circulação diversificada de talento cinematográfico atra­
vés de territórios nacionais define um dos processos através dos
quais os estúdios de Hollywood incorporam diretores bem-sucedi-
dos de algum lugar ao seu mecanismo ideológico, econômico e
estético dominante, na tentativa de ampliar o escopo de seus pro­
dutos e, simultaneamente, enfraquecer a possibilidade de uma in­
dústria nacional adversária feita de filmes produzidos no exterior.
Essa “lavagem cerebral” não é necessariamente um produto do de­
senvolvimento das tecnologias de informação e de entretenimento
nas últimas duas décadas. De fato, inúmeros diretores estrangeiros
migraram para Hollywood desde o cinema mudo, passando por todo
o século XX e durante o início do século XXI. Nesse sentido, as con­
junturas de história têm, de fato, um papel-chave nos processos
migratórios - ou seja, a ascensão do partido nazista na Alema­
nha está diretamente relacionada à emigração de vários diretores
para Hollywood no final da década de 1920 e durante a de 1930 - ,
mas seria errôneo simplesmente afirmar que a história social e
política determina completamente as operações artísticas e eco­
nômicas em funcionamento em um período particular do cine­
ma. Há uma série de variáveis - o próprio desejo do diretor em
explorar diferentes projetos de cinema, as mudanças na legislação
cultural de um determinado território geopolítico, o funciona­
mento de redes independentes de distribuição de film es, a
especificidade de mídia através da qual objetos fílmicos circulam
etc. - que definem as coordenadas exatas dessas práticas migra­
tórias. Além disso, estaríamos errados se não reconhecêssemos que,
desde os estágios iniciais de expansão do cinema como forma de
entretenimento de massa, o talento e a estética cinematográficos
atravessaram fronteiras como resultado de fatores tanto artísticos
quanto econômicos - ou seja, no período do cinema mudo, os
estúdios de Hollywood e a UFA (Universum-Film AF) tentaram
se expandir mundo afora e competiram entre si, a fim de obter o
controle de outros mercados estrangeiros e de redes de distribui­
ção e exibição do concorrente. Portanto, não há necessariamente
uma relação de causa/efeito direta entre as redes de expansão glo­
bal de comunicação e informação e o entendimento de criação
cinematográfica como uma prática transnacional. Contudo, é cer­
to que recentemente testemunhamos uma internacionalização
crescente de produção, distribuição, exibição e consumo de fil­
mes, uma situação que requer um construto teórico mais amplo
para abordar a criação do cinema contemporâneo, que esteja em
sintonia com as formas radicalmente novas de produção - por
exemplo, o estabelecimento do vídeo digital como alternativa
de baixo custo em relação aos filmes de 35 mm - e recepção -
por exemplo, a possibilidade de ver filmes na internet - facilita­
das pela expansão das redes de comunicação e informação no
mundo todo. Além disso, o domínio global de Hollywood so­
bre o mercado aumentou dramaticamente, favorecido pela li­
beração de capital, pelo desenvolvimento tecnológico das in­
dústrias de mídia - VCRs, DVDs, televisão a cabo - , pela
privatização das estações de televisão, antes operadas pelo esta­
do, e pelo colapso histórico dos modelos econômicos e sociais
concorrentes.12Ainda, os filmes são somente um dos muitos pas­
sos da cadeia de mercadorias na qual a mídia audiovisual atua no
campo cultural. Os lançamentos comerciais são fundamentalmente
um trampolim para outras “janelas de mercado” que se abrem tão
logo uma casa de cinema fecha. Como Charles Acland observa:

A centralidade crescente da migração intermidiática de textos


[... ] indica que a significância cultural e financeira total de qual­
quer trabalho pode som ente ser medida através de suas
encarnações midiáticas. Os assim chamados desastres de bilhete­
ria podem bem ganhar força posteriormente, quando aparecem
no DVD, em vídeo e na televisão, ou quando se movem para
outros mercados.13

Portanto, se desejarmos compreender totalmente como os pro­


cessos de troca funcionam dentro do campo cinemático, temos de
enfatizar tanto a dinâmica transterritorial quanto a transmidiática
que o impulsionam, enquanto detectamos que formas de narrati­
va audiovisual conseguiram solidificar seu status dom inante fun­
cionando dentro desses entrecruzamentos contínuos, e frequente­
mente imprevisíveis, de cinema e discursos socioculturais.

12. Balio, Tino. ‘A Major Presence in AU the W orld’s Im portant M arkets’: The
Globalization ot Hollywood in the 1990’s. In: Turner, Graeme (E d .). The Film
Cultures Render. London: Routledge, 2002; Miller, Toby et al. Global Hollywood.
London: BFI, 2001; Rosen, Staley. Hollywood, Globalization and Film Markets in
Asia: Lessons For China? Não publicado.
13. Acland, Charles R. Screen Traffic. Movies, Multiplexes, and Global Culture.
Durham: Duke University Press, 2003. p. 24-25.
Além disso, chamar Hollywood de estadunidense é enganoso,
já que a década de 1990 marcou a era de fusões corporativas e o
estabelecimento de conglomerados multinacionais. Como Janet
Staiger declara: “Quem tentasse imaginar a que ‘nação’ ‘pertence’
um grande conglomerado de cinema, estaria tentando o impossí­
vel - e o desnecessário?14Hollywood, então, está constantemente
negociando a dinâmica do mercado e readaptando seus produtos
às demandas dos consumidores. Por exemplo, após o estúdio
Vertigo Entertainement ter entrado em acordo para refazer o fil­
me de terror japonês Ringu ( O Chamado) com a empresa de pro­
dução original e o estúdio DreamWorks, com base nos Estados
Unidos, com incrível sucesso em 2003, Hollywood se interessou na
refilmagem tanto dos bem-aclamados filmes de terror asiáticos (Água
Negra, O Grito, Pulse, O Hospedeiro) quanto dos clássicos de ter­
ror estadunidenses ( Despertar dos Mortos, O Massacre da Serra
Elétrica, The Hitchhiker - O Caroneiro, O Sacrifício) e a produção
de prequels (histórias anteriores) há muito esquecidas (OExorcista:
O Início O Massacre da Serra Elétrica: O Início). 15 Embora esse
,

ciclo de refilmagem de filmes de terror da Ásia Oriental dentro de


Hollywood esteja fadado a desaparecer mais cedo ou mais tarde e a
ser substituído por outra tendência “quente”, ele claramente sinaliza

14. Staiger, Janet. A Neo-Marxist Approach: World Film Trade and Global Culture
Flows. In: Williams, Alan (Ed.). Film and Nationalism. New Brunswick; New
Jersey: Rutgers University Press, 2002. p. 234.
15. Roy Lee, cofundador do estúdio Vertigo Entertainment, é talvez a figura-chave na
refilmagem de filmes asiáticos em Hollywood. É notável que seu trabalho não está
limitado a filmes de terror, já que, recentemente, foi produtor executivo do ganha­
dor do Oscar Os Infiltrados, uma refilmagem de Confiitos Internos, de Andrew Lau.
as maneiras pelas quais a transfertilização estética e econômica
entre filmes, oriundos de diferentes nações, funciona de um modo
transnacional. Hollywood não somente atrai talentos de todo o
mundo como estratégia para enfraquecer outros “cinemas nacio­
nais”, mas tam bém incorpora a estética de outras tradições
cinemáticas - incluindo aquelas do cinema de arte, de filmes expe­
rimentais e de outras indústrias comerciais nacionais - na conti­
nuidade orientada para seu objetivo e em narrativas baseadas em
ação/espetáculo/romance em uma tentativa de capturar a maior
fatia de mercado possível. Em outras palavras, Hollywood funcio­
na com um processo de “diferenciação planejada”, atingindo com
cada filme não somente o mercado doméstico, mas também o
global, e determinados grupos étnicos, etários ou nacionais. Con­
forme Richard Maltby reconhece, na era contemporânea

[...] as maiores companhias, agindo principalmente como pro­


dutoras e distribuidoras, gradualmente chegaram a um acordo
sobre a fragmentação da audiência, uma preocupação com ideias
demográficas e públicos-alvo derivados de pesquisa de mercado,
mercados globalizados e novos sistemas de distribuição16.

Isso significa, como Jonathan Rosenbaum declarou, que o ci­


nema estadunidense não mais existe, é, na atualidade, um produto
multinacional que preserva seu nome estadunidense original como
um rótulo comercial para vender “o pacote”; ou que, como Sydney

16. Maltby, Richard.‘Nobody knows everything’: Post-classical historiographies and


consolidated entertainment. In: Neale, Stephen; Smith, Murray ( Eds.). Contemporary
Hollywood Cinema. London; New York: Routledge, 1998. p. 23.
Pollack objetivamente declara, Hollywood está simplesmente
“fazendo um tipo de filme europeu homogeneizado, produzido
novamente para algum tipo de público que não precisa ter cultura
para entendê-lo”17. O caráter multinacional de Hollywood, no que
se refere a talento, local de produção, posse e investimento, é inegá­
vel; entretanto, negar que, dentro de suas formações narrativas, uma
série de valores é privilegiada - por exemplo, a capacidade do herói
individual para resolver conflitos, heteronomia tividade etc. - e que
esses valores estão frequentemente relacionados à reafirmação pa­
triótica da identidade nacional da América seria totalmente equivo­
cado. Ao unir estes princípios fundamentais com os mitos e tropos
de base da identidade construída nos Estados Unidos como uma
nação, Hollywood parece, aos nossos olhos, incorporar uma série
de padrões nacionais-transformados-em-universais que devem de­
finir aquela categoria escorregadia frequentemente designada como
“condição humana”.18
Assim estruturado, o conceito de cinema nacional contra o
domínio de Hollywood corre o risco de “reduzir a ideia de um
cinema nacional à economia de escala e, portanto, a um conceito
de valor, a saber, bem-estar econômico”19. Ele também ignora a
rica troca cinemática, transnacional, que está ocorrendo hoje em
paralelo com a dominação de Hollywood sobre o mercado cine­
matográfico global. Pois aqueles indivíduos que são privilegiados

17. Allen, Michael. Contemporary US Cinema. London: Pearson Education, 2003. p. 71.
18. Jameson, Fredric. Notes on Globalization as a Philosophical Issue. In: Jameson,
Fredric; Miyoshi, Masao (Eds.). The Cultures o f Globalization. Durham; London:
Duke University Press, 1998.
19. Hayward, Susan. French National Cinema. London: Routledge, 1993. p. 91.
suficientemente para serem fisgados em direção ao ámbito
transnacional de fluxos globais podem, de fato, ter acesso a uma
quantidade de quase infinita de produtos audiovisuais que mol­
dam suas práticas sociais e imaginações em um modo multicultural
e modelam suas intervenções cinemáticas para contrarrepresentar
os modelos dominantes em funcionamento nos mercados globais
de filmes. Além disso, os diretores não são mais necessariamente
o produto da instrumentalização, nem de talentos dos estúdios, nem
do circuito de filmes artísticos; eles são os viciados em loja de vídeo,
em televisão a cabo, ou os diretores de comerciais de televisão e de
vídeo musical, ou um grupo de adolescentes que tem uma câmera e
fazem sucesso com uma brilhante ideia que, repentinamente, se torna
um evento midiático badalado na web. Em outras palavras, a troca
estética e a influência não são mais moldadas notadamente nos cantos
escuros de um cinema, mas no cenário transmidiático da expansão
comunicativa e do desenvolvimento tecnológico. Além disso, esses
processos de troca não ocorrem somente como uma prática de
cooptação, fortificando o monstro Hollywood e enfraquecendo as
indústrias de cinema nacionais menos poderosas. O padrão reverso
tem definido de forma significativa as formas pelas quais os direto­
res trabalham fora das fronteiras econômicas, de distribuição e de
exibição hollywoodianas têm planejado competir com Hollywood
recentemente. Ou seja, esses produtores frequentemente tentam se
apropriar das configurações gerais e narrativas dos sucessos de
Hollywood pelo mundo afora, a fim de conquistar uma fatia de seu
mercado doméstico e, ocasionalmente, um pedaço do bolo inter­
nacional. Enquanto refletem sobre as especificidades nacionais das
formações sociopolíticas e culturais de seus próprios países - , por
exemplo, Shirina. Coreia do Sul; Tesis na Espanha; Am elien a Fran­
ça - eles também “hollywoodizam” seus filmes de várias maneiras,
apelando para o status privilegiado do gênero de filme estadunidense
nas telas do cinema e da televisão de suas respectivas nações.
Consequentemente, embora Ezra e Rowden possam estar um pouco
certos ao afirmar que

Hollywood, como condutor padrão do cinema popular no siste­


ma mundial, até agora se mostrou capaz de cooptar as forças de
hibridismo e diferença de forma efetiva o suficiente para evitar o
desarranjo ou a perda significativa de hegemonia global20.

Devemos sempre lembrar que a trajetória oposta de cooptação


é também completamente operante nos mercados de cinema glo­
bais. Mais ainda, a apropriação dos filmes de Hollywood por outras
indústrias nacionais é realmente uma das maneiras básicas através
das quais as indústrias de filme nacionais têm conseguido se man­
ter em circulação historicamente e, com frequência, expandir o al­
cance de seus produtos. As refilmagens de Bollywood dos filmes de
Hollywood ( Clube da Luta, Ghajani\Sarkaretc.), por exemplo, neu­
tralizam a americanidade cultural da obra que refilmam e adap­
tam-na às idiossincrasias culturais, aos lugares-comuns genéricos
e à narrativa característica do cinema indiano comercial, para apelar
ao gosto e ao conhecimento de seu público-alvo principal, o qual
não está limitado ao mercado nacional, mas também ao do Oriente

20. Ezra, Elizabeth; Rowden, Terry. General Introduction: what is transnational cinema.
In:______ . Transnational Cinema: the film reader. London; New York: Routledge,
2 0 0 6 . p. 11.
Médio, da Ásia Oriental e às comunidades da diáspora do Sul da Ásia
espalhadas pelo mundo. Uma abordagem transnacional ao cinema
deve, então, deixar claros os vários modos ideológicos através dos
quais Hollywood e outras tradições cinemáticas e modos de pro­
dução interagem uns com os outros e reconhecem suas implicações
na recepção, relacionadas a um conjunto maior ou menor de esco­
lhas que os espectadores têm em espaços geopolíticos diferentes.
Por essa razão, esse projeto rejeita estruturas antagonistas infrutífe­
ras - tais como, “Hollywood versus outros cinemas nacionais” - e
objetiva analisar os múltiplos caminhos em que ocorrem as trocas
cinemáticas, mediadas ou sob o radar de Hollywood.
Uma abordagem transnacional para o cinema não necessaria­
mente segue um modelo crítico que tenta simplesmente identificar
o transnacional dentro de um campo nacional específico delimitado
por fronteiras territoriais. Mesmo que estudiosos tenham realmente
produzido esforços notáveis acompanhando essa abordagem, ao se­
guir a dimensão transnacional intrínseca do conceito de cinema na­
cional em termos tanto econômicos quanto estéticos, a estrutura que
proponho enfatiza, em vez disso, o caráter relacional do cinemático
e sua capacidade de criar pontes representacionais, ideológicas e
sociais entre diferentes formações socioculturais, entre nações. Este
modus operandi crítico toma como seu ponto de partida o reconhe­
cimento de que o cinemático nacional é uma categoria flutuante que
continuamente circula em uma variedade de campos transterritoriais
culturais, sujeitos a redefinições à medida que forças sociais, ideoló­
gicas e econômicas concorrentes tentam reconfigurá-lo, seguindo
pautas distintas. Esse caminho, no meu ponto de vista, dita a ma­
neira mais abrangente de abordar o entrelaçamento intensificado
do cinemático no cenário geopolítico contemporâneo.
Paisagens transculturais

Denilson Lopes

O debate sobre globalização e multiculturalismo tem aberto


diversas possibilidades a partir de termos como pós-colonialismo,
subalternidade, fronteiras, hibridismo, império etc. Nossa proposta
se insere na busca de alternativas à nação como categoria de análise da
cultura sem aderir à celebração puramente mercadológica e
tecnocrática de uma globalização anódina. Ao criticar a nação como
um sistema ou unidade, várias posições tentaram complexificá-la,
considerando-a uma narrativa (Bhabha, 1998) que suscita con­
tranarrativas para melhor compreender seus processos de inclusão e
exclusão, ou totalidade contraditória e fragmentada (Cornejo Polar,
2000) a partir do conceito de heterogeneidade. Essas posições, entre
outras, sem dúvida, avançaram a discussão de forma sensata, mas, por
vezes, é mais frutífero ser insensato, se quisermos ir mais longe. Em
vez de resgatar ou reler a nação, argumentarei em favor do termo
“paisagem transcultural”.
Para a delimitação do que seriam paisagens transculturais,
além do diálogo preferencial que faremos com Arjun Appadurai
e Nestor Garcia Canclini, seria importante lembrar que o campo
semântico desse termo tem uma genealogia latino-americana que
remonta a temas recorrentes como os da mestiçagem e do sincretismo.
Nossa proposta pode ser compreendida como um adensamento,
mas também uma descontinuidade em relação a esses debates com
larga tradição, respectivamente e sobretudo nas questões raciais e
religiosas. O termo transculturação em si também não é novo,
remete a Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar; trabalho
clássico de Fernando Ortiz (1940), retomado para uma análise li­
terária, embora seu alcance não se restrinja a ela, por Angel Rama
em Transculturación narrativa em América Latina (1982), mas, so­
bretudo, se articula com a noção de entrelugar desenvolvida por
Silviano Santiago e recuperada por Mary Louise Pratt na expres­
são zona de contato.
Se desde a década de 1960 a categoría do entrelugar tem sido
explorada por Silviano, tanto em seus ensaios quanto em sua ficção,
como uma forma de redefinir a nação para além da exclusividade
ou centralidade da classe social, incluindo as experiências negra,
índia e gay, para o nosso objetivo, o entrelugar é fundamental
para pensarmos um projeto transnacional a partir do Brasil. O
silenciamento sobre o negro e o índio no plano nacional encontra
equivalentes internacionais em um voltar as costas eurocêntrico em
relação à América Hispânica e à África. Esta perspectiva nos abre a
porta para pensar a relação mais ainda silenciada entre América La­
tina e Extremo Oriente, sem desconhecer uma triangulação com as
culturas europeias e norte-americanas, mas posicionando-as num
diálogo de trânsitos múltiplos e multidirecional.
O entrelugar, portanto, não é apenas “rompimento conceituai
com o primado da origem”, sem levar em consideração “relações
de subordinação efetiva”, dentro de uma “crítica de caráter filosó­
fico abstrato”, para usar as palavras de Roberto Schwarz em “Nacio­
nal por subtração”, publicado em Que horas são (1987). O que
está em pauta, como afirma Eneida Leal Cunha em “Leituras da
dependência cultural” (1997, p. 132), é a diferença entre a matriz
marxista da crítica de Schwarz e a matriz nietzschiana e o pensa­
mento da diferença que marca o olhar de Silviano Santiago. O
entrelugar não é uma abstração, um não lugar, mas uma outra cons­
trução de territórios e formas de pertencimento, não simplesmente
“uma inversão de posições” no quadro internacional, mas um
questionamento desta hierarquia a partir da antropofagia cultu­
ral, da traição da memória e da noção de corte radical (Santiago,
1982, p. 19-20), embasadas teoricamente no simulacro e na dife­
rença, a fim de propor uma outra forma de pensar o social e o
histórico, diferente das críticas marcadas por uma filosofia da re­
presentação.
O entrelugar é uma estratégia de resistência que incorpora o
global e o local, que busca solidariedades transnacionais por meio
do comparativismo para apreender nosso hibridismo (Santiago,
1982, p. 19), fruto de quebras de fronteiras culturais. A aposta de
Silviano acontece no sentido de um multiculturalismo crítico e
não apenas de inclusão numa sociedade de consumo. Nesse senti­
do, o entrelugar não encena apenas o privilégio social de ricos e
intelectuais, mas as migrações e as diásporas de massas de traba­
lhadores, enfatizadas em O cosmopolitismo do pobre (2004) e As
raízes e os labirintos da América Latina (2006b).
Ao pensarmos, portanto, em paisagens transculturais, não
mais nos colocamos no espaço engajado do terceiro-mundismo,
mas procuramos transversalidades que atravessem diferentes paí­
ses e culturas, sem ignorar as desigualdades nas relações de poder.
Buscamos responder ao contexto desenvolvido a partir da década
de 1970, e com mais força a partir da década de 1990, quando cida­
des globais são construídas e podemos ver o Primeiro Mundo no
Terceiro, assim como o Terceiro Mundo no Primeiro, compondo
um quadro não em continuação ao imperialismo europeu do sé­
culo XIX, mas, sobretudo, nos moldes do império, como descrito
por Toni Negri e Michael Hardt.
Nosso desafio está em ir além não só de marcas nacionais,
mas das configurações continentais. Apesar do interesse e da ren­
tabilidade que o conceito de diáspora tem trazido a este debate,
fundamentado pelo trânsito massivo de trabalhadores, normal­
mente o encenado é um drama intercultural. O risco seria uma
constante referência a uma origem cada vez mais remota, na me­
dida em que as gerações se sucedem e são relocalizadas (como
no caso da cultura “latina” nos EUA). É importante resgatar que
mesmo a interculturalidade se produz mais através dos meios de
comunicação de massa do que por movimentos migratórios, para
retomarmos uma provocação feita por Canclini (2000, p. 79), mas à
qual não se deu a atenção devida, sem esquecer que as diásporas e as
interculturalidades midiáticas são complementares (Appadurai, 1996,
p. 4). No entanto, são as migrações midiáticas que explicitam mais a
perda de uma origem, na delimitação das paisagens transculturais,
multiplicando as mediações e leituras, numa história, às vezes, difícil
de perceber, e criando frutos, por vezes, inesperados.
A paisagem se transformou em rica categoria, como defen­
de Arjun Appadurai, para compreendermos as disjunções entre
economia, cultura e política na contemporaneidade a partir de paisa-
gens étnicas ( ethnoscapes), midiáticas ( inediascapes), tecnológicas
( technoscapes), financeiras ( financescapes) e ideológicas ( ideoscapes).
Essas paisagens não são

[...] relações objetivamente dadas que têm a mesma aparência a


partir de cada ângulo de visão, mas, antes, são interpretações
profundamente perspectivas, modeladas pelo posicionamento
histórico, lingüístico e político das diferentes espécies de agentes.
(Appadurai, 1999, p. 312).

Essas paisagens são “formas fluidas e irregulares” (Appadurai,


1999, p. 313), ao contrário de comunidades idealizadas, são luga­
res onde se vive (Appadurai, 1999), ainda que não sejam lugares
necessariamente geográficos. Não se trata de negar as relações tra­
dicionais de proximidade, vizinhança e localidade, mas pensar a
nossa sociabilidade como também constituída por “comunida­
des de sentimento transnacional” (Appadurai, 1996, p. 8). A esta
perspectiva culturalista pretendemos somar a tradição da história
da arte, para conceber a paisagem não só como espaço de relações
sociais, mas como imagem, “artifício”, até “construção retórica”
(Cauquelin, 1989, p. 2 0 ,2 2 , 2 7 ,3 0 ).
Unindo essas duas perspectivas originárias da história da arte
e dos Estudos Culturais, retomo o desafio que Appadurai lança
no início de M odernity at large (1996), sem que ele mesmo consi­
ga, contudo, desenvolvê-lo a contento. Nosso objetivo aqui seria
procurar tornar mais rentável sua proposta, não só para etnografias,
mas na análise de produtos culturais e obras artísticas. Atrás da pro­
posta de uma paisagem transcultural está uma compreensão, cada
vez mais recorrente, tanto de que “a globalização não é só a histó­
ria da homogeneização cultural” (Cauquelin, 1989, p. 11) reduzida
a uma hegemonia estadunidense, quanto de que não se trata de
aderir a uma fuga em localismos isolacionistas.
Ao evitar dualismos, o culturalismo aqui defendido é a
mobilização consciente de diferenças culturais a serviço de uma
política transnacional mais ampla. Essas paisagens transculturais que
estamos procurando delinear são entrelugares. Seu mapeamento
radicaliza as propostas sobre o hibridismo - processos socioculturais
de intersecção e transação constituidoras de interculturalidades - ,
evitando que o multiculturalismo se torne um processo de segre­
gação (Canclini, 2001, p. 14, 20), ou, como prefiro, afirma uma
cultura pop transnacional para além das oposições entre tradi­
cional e moderno, quebrando as distinções e hierarquias entre o
culto, o popular e o massivo (Canclini, 1997, p. 283), e que constitui
“translocalidades” (Appadurai, 1996, p. 192) pelos fluxos midiáticos.
Ao redimensionar o próximo e o distante, criamos uma moldura
para diferenças não necessariamente decorrentes de especificidades
nacionais1, opondo-se “a qualquer discurso essencialista de iden­
tidade, autenticidade e pureza culturais” (Canclini, 2001, p. 16).
Não se trata de mitificar o mercado, mas de compreendê-lo como
parte indissociável não só das condições de produção e circulação
de bens culturais, mas como parte de nossa vida cotidiana, de nos­
sos afetos e memórias, também como dado estético fundamental
e com importantes consequências teórico-metodológicas.

1. Alberto Moreiras (2001) questiona se os Estudos Culturais podem desenvolver um


estilo de pensamento que não esteja mais associado com postulados estético-historicistas
destinados à construção e ao fortalecimento do estado nacional-popular. Aposto
nessa possibilidade neste artigo.
É importante frisar que esta proposta se insere num quadro
mais amplo de uma estética da comunicação que temos desenvol­
vido nos últimos anos. Não se trata aqui de resumir esse debate,
mas apenas de lembrar que, apesar de considerarmos os filmes como
materialidades e não como linguagens específicas, apontamos um
diálogo importante a ser desenvolvido com a área de estudos do
cinema. Embora haja grande quantidade de análises fílmicas que
exploram temas correlatos à inter e à transculturalidade, tive dificul­
dades em encontrar trabalhos que fossem contribuições conceituais.
Destaco quatro livros que discutem essa questão a partir do cinema
e que têm sido estímulos im portantes para o meu trabalho:
Unthinking eurocen trism, de Robert Stam e Ella Shohat (1994), The
skin o f the film , de Laura Marks (2000), An accented cinema>de
Hamid Naficy (2001), e Terras e fronteiras, de Andréa França (2003).
Antes de dialogar com esses autores, há um ponto de partida
neste recorte que gostaria de compartilhar. Trata-se de uma impres­
são de que a crítica cinematográfica brasileira, na universidade, tem
se concentrado, majoritariamente, em estudar o cinema brasileiro,
ainda que não lhe falte conhecimento atualizado da produção in­
ternacional. Nos poucos estudos feitos entre nós sobre filmes não
brasileiros, como também nos estudos feitos sobre o cinema bra­
sileiro, o crítico não problematiza seu lugar de fala, sua condição
periférica, colocando-se no espaço puro da teoria mesclado com
uma cinefilia voraz.
Num país ainda muito carente de boas bibliotecas, cinematecas
e arquivos públicos atualizados para realizar pesquisas de grande
i envergadura para além dos horizontes nacionais, o crítico brasileiro,
15 quando faz pesquisas de maior fôlego fora de um foco no cinema
brasileiro, ainda centra-se na produção estadunidense e na da
Europa Ocidental, não levando em consideração as cinematografias
africana, asiática2e até mesmo de outros países latino-americanos.
O nacional pode ser aquilo que nos fala mais, mas também pode
ser uma armadilha, uma forma de silenciamento, sobretudo ao
sermos convidados, quando somos convidados, para eventos fora
do Brasil para falar sobre um cinema menor no cenário interna­
cional e em grande parte desconhecido, forma de não questio­
nar nem teórica nem analiticam ente os debates dos centros
hegemônicos do saber, colocando-nos como servis comentadores,
divulgadores e epígonos. Enquanto aos críticos dos países cen­
trais é franqueado o mundo, nosso trabalho interessaria só à
medida que representássemos e falássemos sobre nossa cultura
nacional, como espaço concedido de fala para poucos ouvirem,
migalhas a que alguns se atiram avidamente. Como nos provoca
Mitsushiro Yoshimoto, em “The difficult of being radical: the dis­
cipline of film studies and the postcolonial world order”, publicado
em Boundary 2,

[...] nós precisamos cuidadosamente reexaminar se, por nos


engajarmos nos estudos de cinemas nacionais, não estamos me­
canicamente reproduzindo em vez de analisando o quadro ideo­
lógico pós-colonial construído pelas nações pós-industrias oci­
dentais. (Yoshimoto, 1991, p. 257).

2. Neste caso, para uma perspectiva dialógica relativa ao cinema contemporâneo,


interessei-me em particular por Caminhos de K iarostam ide Jean-Claude
Bernardet (2004), e pelo artigo “Towards a positive definition of world cinema”, de
Lúcia Nagib (2006).
Por outro lado, para constituirmos consistentemente uma crí­
tica transcultural, em vez de querermos ser reconhecidos no campo
da teoría ou como especialistas em pé de igualdade com os estudi­
osos nativos de outras cinematografias, a estratégia comparatista
pode ser mais rica e eficiente, sempre levando em consideração a
afirmação de George Yudice, em “We are not the world”, publicado
na Social Text>de que

[...] ao selecionarmos qualquer texto para representações cultu­


rais deve-se estar atento às redes de disseminação que tornaram
aquele texto disponível. Depois de tudo que foi dito, não deve­
mos tratar os textos como se eles estivessem inocentemente lá,
prontos para serem apanhados. (Yudice, 1992, p. 212).

Nesse sentido, a leitura de Unthinking eurocentrism >de


Robert Stam e Ella Shohat (1994), traduzido para o português como
Crítica da imagem eurocêntrica (2006), é uma importante referên­
cia, primeiro por assumir o hibridismo como traço epistemológico
e analítico, desarticulando hierarquias entre cinema de autor e ci­
nema comercial, analisando tanto produtos culturais massivos
quanto obras experimentais em um contínuo; também por uma
busca de categorias de trânsito entre culturas. Os autores não ata­
cam as culturas europeias, mas criticam o eurocentrismo como
“um discurso que coloca como única fonte de saber a Europa” e
que apresenta seus valores e padrões como universais (Stam;
Shohat, 1994, p. 2-3). O eurocentrismo se constitui mais como
um posicionamento implícito do que como um posicionamento
político consciente (Stam; Shohat, 1994, p. 4), com consequências
que vão além do ponto de vista historiográfico, que considera a
arte e a teoria dos países centrais como as únicas matrizes possí-
veis, cabendo aos outros países uma posição marginal, meros
apêndices na história mundial, suas culturas reduzidas a fatos
sociais sem validade estética ou lembradas por alguns momen­
tos de fulguração, quando não simplesmente exotizados. O
multiculturalismo, preconizado por Stam e Shohat, descoloniza a
representação não só em termos de artefatos culturais (como seria
no caso de políticas de representações a partir de identidades estrei­
tas), mas também nas relações de poder entre comunidades (Stam;
Shohat, 1994). Posição atenta à identificação de quem produz e dis­
tribui os produtos audiovisuais (Stam; Shohat, 1994, p. 47, 103).
Contudo, nosso foco se localizará, sobretudo, não em en­
tender as estratégias de comunidades nacionais, étnicas e locais de
criar e distribuir suas próprias imagens, mas na leitura de conste­
lações de filmes que encenem, a partir da década de 1990, diferentes
facetas da relação interdependente entre o global e o local. Filmes
que seriam lidos por se posicionarem menos numa tradição
experimental3e mais entre o cinema clássico e o cinema moder­
no, como obras artísticas e produtos culturais, incluindo alguns
elementos do que Hamid Naficy chamou de accented cinema', fil­
mes produzidos num modo capitalista mesmo que alternativo,
não sendo necessariamente oposicionais, no sentido de se defini­
rem primordialmente contra um cinema dominante unaccented\
nem são necessariamente radicais, porque eles atuam como agentes
de assimilação e legitimação de cineastas e suas audiências, não ape­

3. Nesse sentido, diferente do projeto de Laura Marks, que privilegia uma tradição
experimental, ou mesmo de Hamid Naficy, que privilegia uma espécie de cinema
transnacional independente através de sua rubrica de um accented cinema.
nas como agentes de expressão e desafio (Naficy, 2001, p. 26). Di­
ferentemente do cinema do Terceiro Mundo, em que o mais im­
portante era a defesa da luta armada ou da luta de classe em uma
perspectiva marxista, trata-se de um cinema feito por pessoas
deslocadas ou comunidades diaspóricas, menos engajado com o
povo ou com as massas do que marcado por experiências de
desterritorialização (Naficy, 2001, p. 30-31).
Por fim, ainda que partindo de referenciais e objetos distin­
tos, nossa proposta se encontra com a de Andréa França quanto
ao desejo de pensar para além das cinematografias nacionais (Fran­
ça, 2003, p. 24). O que desenvolvi a partir do entrelugar até as paisa­
gens transculturais dialoga e ganha uma espessura cinematográfica
na noção de fronteira que não só separa e demarca, mas gera outros
espaços:

O cinema inventa espaços de solidariedade transnacionais, espa­


ços que ensejam uma espécie de adesão silenciosa. O cinema tem
a potência de acentuar a singularidade de uma comunidade de
diferentes. (França, 2003, p. 25).

Para exemplificarmos essa perspectiva transcultural, podería­


mos mencionar os filmes de Wong Kar-Wai, onde ocorre um cons­
tante trânsito da música erudita ao pop estadunidense, da ópera
chinesa à música latino-americana; de qualquer forma, fazendo
da música uma chave para os seus filmes (ver Yeh, 1999, p. 1). A
repetição com que certas músicas, temas ou motivos aparecem no
decorrer de um mesmo filme faz pensar no uso que a publicidade
massiva utiliza para fixar slogans, vender produtos, e, mais além,
na valorização da redundância em detrimento da densidade como
elemento estético no cenário pós-moderno. É o próprio diretor
que afirma que gostaria que as pessoas lembrassem do filme quan­
do ouvissem a música, ao inverso do clipyem que a imagem ven­
de a música (apud Bordwell, 2000, p. 278-279).
Para pensar esse trânsito transcultural, fundindo som e ima­
gem, é que a ideia de “audiotopia” vem nos ajudar. Se a utopia não
está em nenhum lugar, o termo foucaultiano de uma heterotopia
representa “um tipo de utopia efetivamente encarnada, caracteri­
zada pela justaposição em um único lugar de vários espaços que
são incompatíveis entre si” (Kun, 1997, p. 289). As “audiotopias”
seriam instantes específicos das heterotopias, “espaços sônicos de
desejos utópicos efetivos onde vários lugares normalmente incom­
patíveis são reunidos não somente no espaço de uma peça particu­
lar de música, mas na produção de espaço social e mapeamento de
espaço geográfico que a música faz possível” (Kun, 1997, p. 289).
A função de ouvir “audiotopias” é focar no próprio espaço da mú­
sica “espaços sociais, geografias e paisagens que a música possibi­
lita, reflete e profetiza” (Kun, 1997, p. 289-290). Em última instân­
cia, as “audiotopias” são “zonas de contato entre espaços sônicos e
sociais” (Kun, 1997, p. 289-290).
Como no início de Felizesjuntos (1987), de Wong Kar-Wai,
onde podemos ver na tomada aérea das cataratas do Iguaçu, na
fronteira entre Brasil, Argentina e Paraguai, imagem do desencontro
entre os amantes, mas que traduz todo um encantamento, apesar
de toda dor, ao som de Caetano Veloso, cantando em espanhol
“Cucurrucucú Paloma”, um clássico da música popular mexicana,
composto por Tomás Méndez. Mais uma vez temos um interessan­
te encontro entre Ásia e América Latina através da circulação da
música latino-americana, desde a primeira metade do século passa­
do, seja via filmes hollywoodianos, seja pela presença de cantores
filipinos em Xangai, o mais importante centro cultural na China
ñas décadas de 1930 e 1940, como também podemos ver na obra de
Stanley Kwan. Ou, para dar um outro exemplo, “Perfídia”, um outro
clássico da música popular latino-americana que pode aparecer tanto
nos filmes de Wong Kar-Wai quanto reciclada pelo grupo de rock
Café Tacuba, ou ainda em Alexandria, why,; filme de Youssef Chahine
que se passa na década de 1940. Os filmes de Wong Kar-Wai teriam
uma visão muito limitada, se os compreendêssemos apenas situa­
dos na história de Hong Kong ou da China, como depreendemos
de uma recorrência quase obsessiva das canções cantadas por Nat
King Cole, cantor favorito de sua mãe, entre outras canções clássicas
hispano-americanas, com frequência interpretadas por cantores
estadunidenses, que fizeram a circulação da música latino-ameri­
cana passar pelos EUA. Também seria interessante lembrar das mú­
sicas pop inglesas que aparecem cantadas em chinês. Por fim, as
constantes referências a Manuel Puig não são gratuitas, já que
encarna, como nenhum outro, uma erudição calcada na cultura de
massa. Esses trânsitos, especialmente entre América Latina e Ásia,
representam a gênese de um interessante caso de interculturalidade,
desconstrutor de purismos nacionais, definido mais pelos proces­
sos midiáticos do que por grandes fluxos migratórios, diásporas
(cf. Canclini, 2000, p. 79), que exigem, certamente, melhor estudo.
Voltando ao filme Felizes juntos, a tomada das cataratas do
Iguaçu, no início do filme, abre uma outra possibilidade de leitu­
ra, talvez mais do que pela música, pela constituição de uma pai­
sagem transcultural. Os jovens amantes de Hong Kong, que vivem
em condições precárias em Buenos Aires, com vidas marcadas
inicialmente pela solidão e pelo isolamento, veem na viagem às
cataratas uma possibilidade de renovação do seu vínculo. O que
acontece é exatamente o contrário: a separação sem que nenhum
dos dois vá às cataratas, restando delas apenas a imagem num
souvenir que fica no apartamento onde moram. No entanto, a
imagem grandiosa aparece no filme interrompendo a estrutura
narrativa, marcada pelas idas e vindas da relação.
A suspensão narrativa, diferente da discrição que as trilhas
sonoras têm comumente no cinema clássico hollywoodiano
(Gorbman, 1987, p. 71-73), leva-nos a ouvir as imagens e a ver o
som. Esse espaço de fronteira cultural, de desencontro amoroso,
traduz tudo o que não pode ser falado em palavras; como o abis­
mo sugando a água do rio, assim também os amantes são traga­
dos cada vez mais na complexidade de seus afetos.
No fim do filme, só Fai (Tony Leung) vai às cataratas, que
aparecem, então, ao som de um tango de Astor Piazolla. Em Fai,
molhado pela água do rio, tem-se a mágoa e a dor que a água
parece levar num ato de renascimento; é nesse lugar estrangeiro
que Fai se encontra, antes da volta para Hong Kong.
Na segunda parte do filme, aparece Chang, colega de traba­
lho de Fai, no restaurante chinês em que ambos trabalham. Por
possuir um ouvido extremamente aguçado, a questão da impor­
tância dos sons mais banais na composição do filme é realçada. É
pelo som da voz de Fai ao telefone que Chang se aproxima dele. E
é também Chang que leva a gravação dos soluços e lágrimas de
Fai, cena equivalente ao renascimento sob as cataratas do Iguaçu,
até o “fim do mundo” Ushuaia, na Terra do Fogo, uma outra re­
gião marcada pela magnitude, na fronteira entre Argentina e Chi­
le, no extremo-sul da América.
Por fim, quando Fai passa por Taipei, onde a família de Chang
mora, ouvimos “Happy together”, música dos Turtles, mais uma
leitura do amor romântico heterossexual para uma chave gay, como
no caso do uso do tango, mas também contemporânea, marcada
pela fragilidade e pela rapidez também dos afetos, que aponta para
uma possibilidade de encontro e felicidade, mesmo diante da
distância geográfica. É na transitividade da música entre cultu­
ras que encontramos uma das paisagens mais ricas para pensar o
pertencimento de forma pós-identitária e translocal.

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MÓDULO II
Cinema, periferia
e hibridismo
Para além do Terceiro Cinema
estéticas do hibridismo*'

Robert Stam

No final da década de 1960 e início da de 1970, no despertar


da vitória vietnamita sobre os franceses, da revolução cubana e da
independência argelina, os intelectuais do Terceiro Mundo exigi­
ram uma “revolução tricontinental” (com Ho Chi Minh, Che
Guevara e Frantz Fanón como figuras talismânicas). No cinema,
essa ideologia terceiro-mundista foi cristalizada em uma onda de
ensaios-manifestos militantes - Estética da Fome, de Glauber Ro­
cha (1965); Em direção ao Terceiro Cinema, de Fernando Solanas e
Otávio Getino (1969) e Por um Cinema Imperfeito, de Julio Garda
Espinosa (1969) - e em declarações e manifestos dos Festivais de
Cinema do Terceiro Mundo, exigindo uma revolução tricontinental
na política e outra no cinema, na estética e na forma narrativa. Ro­
cha exigia um cinema “faminto” de “filmes tristes, feios”; Solanas

* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N.T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Este artigo é uma versão traduzida e reduzida de “Beyond Third Cinema: The
Aesthetics of Hybridity”, publicado em: Guneratne, Anthony; Dissanayake, Winmal
(Eds.). Rethinking Third Cinema. New York; Londres: Routledge, 2003.
e Getino exigiam docum entários m ilitantes de guerrilha; e
Espinosa, um cinema “imperfeito”, fortalecido pelas formas “bai­
xas” de cultura popular, em que o processo de comunicação era
mais importante que o produto, em que os valores políticos eram
mais importantes que os “valores de produção”.
O trabalho de Frantz Fanón exerceu forte influência nessas
teorias e nos filmes influenciados por elas. O filme La Hora de Los
Homos, de Solanas e Getino (H our o f the Furnaces, 1968), não
somente cita o adágio de Fanón de que “Cada espectador é um
covarde ou um traidor”, mas também orquestra uma constelação
de temas fanonianos - os estigmas psíquicos do colonialismo, o
valor terapêutico da violência anticolonial e a necessidade urgen­
te de urna nova cultura e de um novo ser humano. Os manifestos
de filmes terceiro-mundistas também enfatizam militância e vio­
lência anticolonial, literária/política, no caso de Solanas-Getino, e
metafórica/estética, no caso de Rocha. “Somente através da dialética
da violência”, escreveu Rocha, “alcançaremos lirismo.”
O “Terceiro Cinema” ofereceu uma versão modulada fanoniana
da estética de Brecht, tensionada pela “cultura nacional”. Ao mesmo
tempo, ofereceu uma estratégia prática de produção que trans­
formou a escassez, como disse Ismail Xavier, em “um significante”2.
Apesar de o “Terceiro Cinema” representar uma alternativa váli­
da para o modelo hollywoodiano dominante em um primeiro
momento, é importante lembrar que ele representa somente um

2. Ver: Xavier, Ismail. Allegories o f Underdevelopment Aesthetics and Politics in


Modern Brazilian Cinema. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1997.
modelo alternativo de fazer filme. Em vez de comparar todos os mo­
delos alternativos com o “Terceiro Cinema” como um tipo ideal,
é mais útil, penso eu, imaginar um amplo espectro de práticas
alternativas.
De fato, o discurso cultural no Terceiro Mundo, e especial­
mente na América Latina e no Caribe, foi fecundo em neologismos
nas estéticas literárias e cinemáticas: “lo real maravilloso america-
no” (Carpentier), a “estética da fome” (Glauber Rocha), o cinema
“megotage” ou “toco de cigarro” (Ousmane Sem bene), “ cine
im perfecto5 (Julio Garda Espinosa), a “estética do lixo” (Rogerio
Sganzerla), a estética da “salamandra” (Leduc) em oposição à esté­
tica do dinossauro de Hollywood, “ terrorismo cupini” (Guilhermo
del Toro), “antropofagia” (os modernistas brasileiros), “Tropicália”
(Gilberto Gil e Caetano Veloso), “rasquachismo” (Tomas-Ibarra
Frausto), “estética do macaco significante” (Henry Louis Gates),
“estética nómade” (Teshome G abriel), “estética da diáspora”
(Kobena Mercer), “estética neo-hoodoo ’ (Ishmael Reed) e esté­
tica “santería’ (Arturo Lindsay). A maior parte dessas estéticas
alternativas revalorizam, por inversão, o que previamente fora
visto como negativo, especialm ente dentro de um discurso
colonialista. Portanto, o ritual do canibalismo, por séculos o pró­
prio nome do selvagem, o outro desprezível, se torna, com os
modernistas brasileiros, um tropo anticolonialista e um termo
de valor. (Lembrem que até o triunfante movimento literário
“realismo mágico” inverte a visão colonial de mágica como su­
perstição irracional.) Ao mesmo tempo, essas estéticas com par­
tilham o traço jiu-jítsu de transformar fraqueza estratégica em
força tática. Ao se apropriar de um discurso existente para seus
próprios fins, elas organizam e preparam a força do dominante
contra a dominação.
Neste ponto, gostaria de me concentrar em três aspectos re­
lacionados com essas estéticas: (1) seu hibridismo constitutivo;
(2) sua multiplicidade cronotópica; (3) seu tema comum da re­
denção do detrito. Depois de discutir as qualificações especiais
do cinema para compreender tal estética híbrida e multitemporal,
concluirei com o caso brasileiro da “estética do lixo” como o pon­
to de convergência de todos os nossos temas, especificamente exa­
minando literal e figurativamente três filmes “sobre” o lixo.

Hibridismo

Embora o hibridismo seja uma característica permanente


da arte e do discurso cultural na América Latina - realçada em
termos como mestizaje, indianismo, diversalité, creolité, raza cós­
mica - , foi recentemente recodificado como um sintoma do mo­
mento pós-moderno, pós-colonial e pós-nacionalista3. A valori­
zação do hibridismo, é importante observar, deveria ser vista como
urna forma de jiu-jitsu, já que no discurso colonial a questão do
hibridismo foi relacionada ao preconceito relacionado à mistura
de raças, à “degeneração do sangue” e à suposta indolência de

3. Àqueles de nós que trabalham na área da cultura latino-americana, área em que


“hibridismo” e “mestizaje” têm sido lugares-comuns críticos há décadas, é sempre
uma surpresa ver que Homi Bhabha, embora não seja falha dele mesmo, tem sido
repetidamente “creditado” com o conceito de “hibridismo”.
mulatos. Porém, se o discurso nacionalista da década de 1960
traçou linhas distintas entre Primeiro Mundo e Terceiro Mundo,
opressor e oprimido, o discurso pós-nacionalista substituiu tais
binarismos por um espectro mais matizado de diferenciações
sutis, em um novo regime global, em que o Primeiro e o Terceiro
Mundo estão mutuamente imbricados. As noções de identidade
ontologicamente referenciais se metamorfoseiam em um jogo
conjuntural de identificações. A pureza abre caminho para a “con­
taminação” Paradigmas rígidos se dissolvem em metonimias es­
corregadias. Posturas militantes, eretas, abrem caminho para uma
série de “posicionamentos”. Uma vez que as fronteiras sólidas se
tornam mais frágeis, uma iconografia de fronteiras de arame far­
pado se transforma em imagens de fluidez e cruzamento. Uma
retórica de integridade imaculada abre caminho para gramáticas
miscigenadas e para metáforas misturadas. Um discurso de “im­
perialismo da mídia” abre espaço para a reciprocidade e o “nati­
vo”. Tropos coloniais de dualismo irreconciliável abrem caminho
para tropos pós-coloniais, atraindo diversas modalidades de mis­
tura: religiosa (sincretismo); botânica (hibridismo); linguística
(crioulização); e genética (mestizaje).
Embora o hibridismo exista onde quer que as civilizações
entrem em conflito, combinem-se e se sintetizem, ele alcançou
um tipo de paroxismo violento com a colonização europeia nas
Américas. A conquista moldou um novo mundo de praticas e ideo­
logias de mistura, fazendo das Américas a cena de combinações
sem precedentes entre povos indígenas, africanos, europeus e, mais
tarde, de diásporas imigrantes de todo o mundo. Porém, o
hibridismo nunca foi um encontro pacífico, um parque temático
livre de tensão; sempre esteve profundamente emaranhado com a
violência colonial. Enquanto para alguns o hibridismo é vivido
como qualquer outra metáfora dentro do livre jogo derrideano,
para outros ele está vivo como memória visceral cheia de dor. De
fato, como termo receptáculo descritivo, o “hibridismo” falha ao
não diferenciar as diversas modalidades do híbrido, tais como, a
imposição colonial (por exemplo, a Igreja Católica edificou uma cons­
trução em cima de um templo inca destruído) ou outras interações
como a assimilação obrigatória, a cooptação política, a paródia cul­
tural, a exploração comercial, a apropriação ou a subversão. O
hibridismo, em outras palavras, é carregado de poder e assimetria.
O hibridismo também coopta. Na América Latina, frequentemente
a identidade nacional tem sido oficialmente articulada como
híbrida, por meio de ideologias dissimuladamente integradoras
que mencionam algo por alto, mas escondem hegemonias raciais
sutis.
O cantor e compositor brasileiro Gilberto Gil chama aten­
ção para a natureza carregada de poder do sincretismo em sua
canção de 1989, De Bob Dylan a Bob Mariey: um samba provoca­
ção. A letra nos informa que Bob Dylan, depois de se converter ao
cristianismo, fez um álbum de reggae, retornando assim à casa de
Israel pelo caminho do Caribe. A letra colocou em operação um
número amplo de paralelos culturais, entre a simbologia judaica e
o “rastafarianismo” jamaicano, entre a perseguição dos judeus (e
muçulmanos) e a supressão europeia das religiões africanas (“Quan­
do os africanos chegaram nestes litorais/ não havia liberdade de
religião”), por fim, contrastando o sincretismo progressivo de um
Bob Marley (que morreu “porque além de ser preto era também
judeu”) com a alienação de um Michael Jackson, que “além de
ficar branco... se torna triste”. Gil celebra, dessa forma, o hibridismo
e o sincretismo, mas os articula em relação às relações de poder
assimétricas produzidas pelo colonialismo. Para as pessoas opri­
midas, o sincretismo artístico não é um jogo, mas uma negocia­
ção árdua, um exercício, como nos diz a letra da canção, de “resis-
. a •» « j• - yy
tencia e rendição .

Multiplicidade cronotópica

A literatura teórica atual revela involuntariamente um fascínio


com a noção de temporalidades espaciais simultâneas, sobrepostas.
O tropo do palimpsesto amplamente disseminado, o pergaminho
sobre o qual estão inscritos os vestígios de diversos momentos da
escrita do passado, contém essa ideia de temporalidades múltiplas.
O momento pós-moderno também é visto como caoticamente
plural e contraditório; enquanto sua estética é vista com o um agre­
gado de estilos datados historicamente, aleatoriamente rem onta­
dos no presente. Mas esse espaço-tempo oxímoro só é encontrado
na literatura teórica recente. Estava previsto na “nostalgia revolu­
cionária” de Benjamin; na conjugação do agora e do “ainda não”
de Ernst Bloch; na visão de velocidade múltipla de história de
Braudel; na “sobredcterminação” e no “desenvolvimento desigual”
de Althusser; nos discursos “residuais e emergentes” de Raymond
Williams; na “nostalgia do presente” de Jameson; na “com pressão
tempo-espaço” de David Harvey. O dialogismo de Bakhtin, na mes­
ma linha, faz alusão à matriz temporal de declarações comunicativas
sobrepostas que “alcançam ” o texto não som ente através de cita­
ções reconhecíveis, mas tam bém por um processo sutil de disse­
m inação. Em um a form ulação m uito sugestiva, Bakhtin evoca as
épocas múltiplas intertextualm ente “enterradas” no trabalho de
Shakespeare. A respeito dos tesouros “sem ânticos” que Shakespeare
“incrustava em seus trabalhos”, Bakhtin escreve:

[...] foram criados e coletados através dos séculos e até mesmo de


milênios: eles ficaram escondidos na linguagem, e não somente
na linguagem literária, mas também naquelas camadas da lingua­
gem popular que antes da época de Shakespeare não tinham en­
trado para a literatura, nas formas e gêneros diversos do discurso
da comunicação, nas formas de uma cultura nacional poderosa
(fundamentalmente formas carnavalescas) que foram moldadas
através dos milênios, nos gêneros de espetáculo teatral (peças de
mistério, farsas e assim por diante), em enredos cujas raízes vol­
tam à antiguidade pré-histórica.4 (Bakhtin, 1986, p. 5).

Bakhtin, portanto, aponta para a natureza tem poralm ente


palim pséstica de todos os textos artísticos, vistos dentro de uma
m ilenar longue duree5. Essa estética não é terreno exclusivo de es­
critores canônicos, já que o dialogismo opera dentro de toda a pro­
dução cultural, seja letrada ou não, erudita ou ignorante.

4. Bakhtin, M . M . R esponse to a question fro m the Novy M ir editorial staff. In:


M cG ee, Vern (E d .). Speech Genres and Other Late Essays. Austin: U niversity o f
Texas Press, 1986. p. 5.
5. Ibidem , p. 3.
A redenção do detrito

A terceira característica dessa estética híbrida de bricolagem


é sua motivação pela redenção estratégica do inferior, do despre­
zado, do imperfeito e do “sem valor”, como parte de uma virada
social. Essa redenção estratégica do marginal também aparece nas
esferas da alta teoria e dos Estudos Culturais. É possível pensar, por
exemplo, na recuperação de Derrida do marginal no texto filosófi­
co clássico; na exaltação de Bakhtin do “grotesco redentor” e dos
gêneros inferiores “ridicularizados”; no “lixo da história” de Ben­
jamin e sua visão do trabalho da arte, com o constituinte de si
mesma, a partir de fragmentos aparentemente insignificantes; na
recuperação de Deleuze e Guattari dos estados psíquicos estigma­
tizados, tal como, a esquizofrenia; na irônica reapropriação do
kitsch por Camp; na recuperação pelos Estudos Culturais das for­
mas subliterárias e “estilos subculturais”; e nas “armas dos fracos”
de James Scott.
No cinema, uma “estética do lixo” desempenha um tipo de
jiu-jítsu ao recuperar materiais cinematográficos usados. Para os
diretores sem muitos recursos, o m inim alism o do raw footage
(material sem corte) reflete a necessidade prática e também uma
estratégia artística. Em um filme com o H our o f the Furnaces, o
raw footage pouco promissor é transformado em arte, assim com o
a alquimia da montagem som-imagem transforma os metais de
base dos títulos, as pausas e o som bruto em virtuosidade rítmica.
Diretores de compilação como Bruce Conner, Mark Rappaport,
Sherry Millner e Ernest Larsen reorganizam e reeditam materiais
fílmicos existentes, enquanto tentam voar abaixo do radar das le-
galidades burguesas. Craig Baldwin, um programador de cinema
de São Francisco, dá nova forma a out-takes (segmento de filme
ou vídeo editado na versão final, em geral por falha técnica) e a
materiais de dominio público, transformando-os em filmes de com­
pilação bem humorados. Em Sonic Outlaws, ele e seus colabora­
dores discutem um detournement midiático que emprega o po­
der carismático da mídia dominante contra ela mesma, expondo,
a todo momento, o menosprezo real em relação ao zelo dos di­
reitos autorais. O filme anticolombo de Baldwin, No Coronado!
(1992), ambientado no século XV, por exemplo, desmitifica o con­
quistador cuja busca desesperada pelas sete cidades míticas de
Cibola o levou a urna jornada infrutífera, criminosa, por onde é
hoje o sudoeste estadunidense. Para relatar seu épico calamitoso,
Baldwin posiciona não somente suas próprias dramatizações en­
cenadas, mas também restos de arquivos filmicos: cenas de mate­
rial de arquivo, filmes pedagógicos, documentários industriais,
filmes de capa e espada, épicos históricos bregas.
No contexto afrodiaspórico, a redenção do detrito evoca
uma outra estratégia historicamente tensa, especificamente as for­
mas que os negros desalojados do novo mundo encontraram para
metamorfosear artigos desperdiçados em arte. A diáspora africa­
na, vinda das culturas artisticamente desenvolvidas, mas agora ca­
rentes de liberdade, educação e possibilidades materiais, conse­
guiu extrair a beleza a partir das próprias entranhas de privação,
seja através do uso musical dos barris de óleo descartados (os tam­
bores de aço de Trinidad), da utilização das partes de animais que
seriam jogadas fora na culinária (comida souiyfeijoada), ou do uso
em tecelagem de sobras de tecido (patchwork). Essa “negação da
negação” também tem a ver com uma relação especial com a his­
tória oficial. Como aqueles cuja história foi destruída e mal repre­
sentada, como aqueles cuja história foi dispersa e diasporizada
em vez de celebrada e incorporada no grand récit como as gran­
des histórias dominantes e como aqueles cuja história foi fre­
quentemente contada, dançada e cantada em vez de escrita, os
povos oprimidos foram obrigados a recriar seu passado a partir
de pedacinhos e restos e de destroços de história. Essas estéticas
artesanais e que fazem h istó ria p erson ificam uma arte de
descontinuidade - pedacinhos heterogêneos formando uma col­
cha de retalhos, por exemplo, que incorporam diversos estilos,
períodos de tempo e materiais - , alinham-se com o modernismo
artístico como uma arte de “quebra” e “descontinuidade” jazzística
e pertencem a um pós-modernismo antecipatório como uma arte
de reciclagem e pastiche.
As estéticas alternativas são multitemporais ainda em outro
sentido. Elas estão constantemente enraizadas em tradições não
realistas, frequentemente tradições culturais não ocidentais, apre­
sentando outros ritmos históricos, outras estruturas narrativas e
outras atitudes com relação ao corpo e à espiritualidade. Ao in­
corporar tradições paramodernas em estéticas m odernizantes
ou pós-modernizantes, elas problematizam dicotomias simples, tais
como, tradicional e moderno, realista e modernista, modernista e
pós-modernista. De fato, a projeção das práticas culturais do Ter­
ceiro Mundo, intocadas pelo modernismo vanguardista ou m e­
diadas pela massa pós-m odernista, com frequência codifica
subliminarmente uma visão do Terceiro Mundo como “subdesen­
volvido”, ou “em desenvolvimento”, como se pertencesse a outra
zona temporal à parte do sistema global do mundo capitalista re­
cente. Um olhar menos neodarwiniano veria todos os “mundos”
em um mesmo momento histórico, combinados com subordina­
ção ou dominação. O tempo, em todos os mundos, não em estágios
diferentes, é embaralhado e palimpséstico, com o pré-moderno, o
moderno e o pos-moderno coexistindo globalmente, embora o
“dominante” possa variar de região para região.
As vanguardas do mundo são também caracterizadas por urna
temporalidade aguçadamente paradoxal. Assim como a vanguarda
europeia se tornou “avançada” por se apoiar no “primitivo”, artistas
não europeus, numa versão estética da “nostalgia revolucionária”, tam­
bém se apoiaram nos elementos mais tradicionais de suas culturas,
elementos menos “pré-modernos” (um termo reconhecidamente dú­
bio que estabelece a modernidade como fim) que “paramodernos”.
Nas artes, a distinção arcaico/modernista muitas vezes não é perti­
nente no sentido de que ambos os termos compartilham uma recusa
das convenções do realismo mimético. Trata-se então menos de jus­
tapor o arcaico e o moderno e mais de ordenar o arcaico paradoxal­
mente; se modernizar, em uma temporalidade dissonante que com­
bina uma communitas passada imaginária com uma utopia futura
igualmente imaginária. Na tentativa de forjar uma linguagem
libertadora, por exemplo, as tradições de filmes alternativos se apoiam
em fenômenos paramodernos, tais como, religião popular e rituais
mágicos. Nos filmes africanos e afrodiaspóricos Tee/en (Senegal),
Jitt (Zimbábue), QuartierMozart (Camarões), OAmuleto de Ogum
(Brasil), Patakin (Cuba), A Deusa Negra (Nigéria) e O Talentoso (Es­
tados Unidos), os espíritos mágicos se tornam um recurso estético,
um meio de libertação do linear, das convenções de causa e efeito da
poética narrativa de Aristóteles, uma forma de voar acima da força
gravitacionaJ do verismo, de desafiar a “gravidade” do tempo crono­
lógico e do espaço literal.
O cinema, eu argumentaria, é idealmente equipado para
expressar hibridismo cultural e temporal. O cinema é temporal­
mente híbrido, antes de tudo, em um sentido intertextual, no qual
ele “herda” todas as formas de arte e tradições milenares associa­
das com seus diversos temas. (A música ou a arte pictórica de
qualquer período histórico pode ser citada, ou imitada, dentro do
cinema.) Mas o cinema é também temporalmente híbrido em ou­
tro sentido mais técnico. Como uma tecnologia de representação,
mistura variados tempos e espaços. É produzido em uma conste­
lação de tempos e espaços, mas representa outra constelação (nar­
rativa) de tempos e lugares e é recebido, além disso, em outro
tempo e espaço (teatro, casa, sala de aula). A conjunção de som e
imagem significa que cada um não somente representa dois tipos
de tempo, mas também que se influenciam mutuamente de for­
ma sincrética. Tomadas estáticas atemporais podem ser inscritas
com temporalidade por meio do som. A panóplia de técnicas
cinemáticas disponíveis multiplica mais ainda esses tempos e es­
paços já múltiplos. A superimposição redobra o tempo e o espa­
ço, assim como a montagem e os quadros múltiplos fazem com a
imagem. A capacidade de sobreposições palimpsésticas de im a­
gens e sons facilitadas pelas novas tecnologias computacionais e
de vídeo amplificam ainda mais as possibilidades de fratura, rup­
tura e polifonia. Um “patchwork eletrônico pode entrelaçar sons
e imagens a fim de quebrar uma narrativa linear, abrindo espaço
para utopias (e distopias) de m anipulação infin ita. O fluxo
sequencial “normal” pode ser interrompido e desviado para levar
em consideração a simultaneidade e o paralelismo. Mais do que
uma sequência aristotélica de exposição, identificação, suspense,
pathos (sofrimento) e catarse, o texto audiovisual se torna uma
tapeçaria. Essas mídias são capazes de misturas cam aleónicas à la
Zeligy inserções digitais à la Forrest Guinpe imagens/sons m últi­
plos à la Numero Deux. Essas novas mídias podem com binar
imagens sintetizadas com capturadas. Elas podem prom over um
“encontro inicial” entre Elton John e Louis Arm strong, com o no
comercial da Diet Coke de 1991, ou perm itir que Natalie Cole
cante com seu pai, falecido há algum tempo. Potencialm ente, a
m ídia audiovisual é m enos ligada p o r trad içõ es can ô n icas,
institucionais e estéticas; ela possibilita o que Arlindo M achado
chama de “hibridização de alternativas”.
O cinema em particular e a m ídia audiovisual em geral são,
em termos balditinianos “mxAticvoriotópicos”. Em bora Bakhtin de­
senvolva seu conceito do “cronotopo” (de khrónos, tempo, e tópos,
lugar) para sugerir a relação indissociável entre tempo e espaço no
romance, ele também parece idealmente apropriado ao cinema onde
“indicadores espaciais e temporais se fundem em um todo co n ­
creto cuidadosamente considerado”6. (Esse conceito tam bém nos
poupa do absurdo de “escolher” entre tempo e espaço como foco
teórico.) A descrição de Bakhtin (1981, p. 84) do romance com o o
lugar onde o tempo “torna-se denso, assume um corpo, torna-se

6. Ver Bakhtin, The DialogicImagination, editado por Michael Holquist e Caryl Em er­
son. Austin: University o f Texas Press, 1981. p. 84. Os term os na discussão que segue
podem ser encontrados nas páginas 8 4 -8 5 do “Essay C h ro n o to p e ” (p. 8 4 -2 5 8 ).
artisticamente visível” e “o espaço torna-se responsável e recep­
tivo aos movimentos de tempo, enredo e história” parece, de al­
guma forma, até mais adequada ao filme que à literatura. Ao passo
que a literatura acontece dentro de um espaço virtual e léxico, o
“cronotopo” cinemático é bastante literal, disposto concretamente
em uma tela com dimensões específicas e desenvolvido em tempo
literal (geralmente 24 quadros por segundo), um tanto diferente
do que determinados filmes de tempo-espaço fictícios poderiam
construir. Portanto, o cinem a personifica a relação inerente de
tempo (khrónos) e espaço (tópos); trata-se espaço temporalizado
e tempo espacializado, o local onde o tempo acontece e o lugar
tem seu tempo.
A natureza multipistas da mídia audiovisual a capacita a o r­
questrar histórias múltiplas, até contraditórias, temporalidades e
perspectivas. Ela não oferece um “canal de história”, mas múltiplos
canais para representações históricas m ultifocais e de múltiplas
perspectivas. Aqui me interessa especialmente um tipo de com bi­
nação entre representações do estado palimpséstico, multinacional,
e o cinema como um meio palimpséstico e polivalente que pode
entrar em cena e rep resen tar um h ib rid ism o tran sg ressor.
Constitutivamente múltiplo, o cinema é idealmente apropriado
para encenar o que Nestor García Canclini, em um contexto m ui­
to diferente, chama de “heterogeneidade m ultitemporal”7. 0 fato
de que o cinema dominante, em grande parte, optou por urna

7. Ver: Canclini, Néstor García. Culturas Híbridas: Estrategias para entrar y salir de la
modernidad. M exico City: Grijalbo, 1989; ou: Canclini, N éstor García. Culturas
híbridas: estratégias para entrar e sair da m odernidade. São Paulo: Edusp, 1990.
estética linear e homogeneizante na qual caminhos reforçam cami­
nhos dentro de uma totalidade wagneriana, de forma alguma, oblitera
a verdade igualmente saliente de que o cinema (e as novas mídias)
é infinitamente rico em potencialidades polifónicas. O cinema
possibilita que sejam postas em cena contradições culturais
temporalizadas não somente dentro da tomada, por meio do
mise-en-scène, do cenário, do figurino etc., mas também via
interação e contradições entre os diversos caminhos, que podem
mutuamente seguir, empurrar, rebater, assombrar e relativizar um
ao outro. Cada caminho pode desenvolver sua própria velocidade;
a imagem pode ser acelerada enquanto a música é desacelerada, ou
a trilha sonora pode ser temporariamente multiplicada por referên­
cias a variados períodos históricos. Um cinema culturalmente
polirrítmico, multitemporal, contrapontístico e de múltiplas ve­
locidades se torna uma possibilidade real.
Por meio do lixo, a cultura brasileira é apresentada como
um local misto. O lixo, nesse sentido, fica no ponto de convergên­
cia de nossos três temas: hibridismo, multiplicidade “cronotópica”
e redenção do detrito. O lixo é híbrido, em primeiro lugar, como
espaço diasporizado, heterotópico da mistura promíscua do rico
e do pobre, do centro e da periferia, do industrial e do artesanal,
do doméstico e do público, do durável e do transitório, do orgâ­
nico e do inorgânico, do nacional e do internacional, do local e do
global. Metáfora pós-moderna e pós-colonial ideal, o lixo é mis­
turado, sincrético, um texto social radicalmente descentrado. Ele
pode também ser interpretado, segundo Charles Jencks, como
“heterópolis”; e conforme Edward Soja, seguindo Foucault, como
“heterotopia,” ou seja, a justaposição em um lugar real de “vários
locais que são eles mesmos incompatíveis”8. Como um lugar de
memórias e vestígios enterrados, o lixo é um exemplo do que David
Harvey chama de “compressão do tempo-espaço” típica da acelera­
ção produzida pelas tecnologias contemporâneas de transporte, co­
municação e inform ação. Em term os foucaultianosy o lixo é
“heterocrônico”, ele concentra o tempo em um espaço circunscri­
to. (Já foi sugerido que a arqueologia é simplesmente uma forma
sofisticada de estudo do lixo.) O monte de lixo pode ser visto como
um tesouro arqueológico achado precisamente por causa de seu
caráter concentrado, sinedóquico e comprimido. Como história
congelada, o lixo revela um passado analisado. Como tempo mate­
rializado no espaço, ele se torna coagulado socialmente, uma desti­
lação pegajosa das contradições da sociedade.
Como a quintessência do negativo - evidenciada em expres­
sões como “lixo ambulante”, “im undície!” e “fonte de contam ina­
ção” o lixo pode tam bém ser um objeto de jiu -jítsu artístico e
de resgate irônico. Um sistema de reciclagem ecologicamente cons­
ciente na Austrália se nomeia “lixo reverso”. (Isto não é para dizer
que a apreciação do lixo é sempre marginal: o potencial subversi­
vo do lixo com o m etáfora é sugerido no rom ance O Leilão do
Lote 49\de Thom as Pynchon, no qual a heroína coleta indícios e
vestígios que revelam a rede alternativa de L.I.X.O. com o um tipo
de contracultura fora dos canais de com unicação dom inantes.)

8. Ver: Jencks, Charles. Heteropolis. Los Angeles, the Riots and the Strange Beauty of
HeteroArehiteeture. London: Academy Editions, 1993; Soja, Edward W. Thirdspaee.
Journeys to Los Angeles and O ther Real-and- Imagined Places. O xford: Blackwells,
1996.
Em termos estéticos, o lixo pode ser visto como uma colagem
aleatoria ou uma enumeração surrealista, um caso de definição ao
acaso, uma pilha randómica de objets trouvése papiers col/és, um
lugar de justaposições violentas e surpreendentes.
O lixo, como a morte e o excremento, é um grande nivelador
social, o local de encontro do mal-cheiroso e do bacana. É o final da
linha para o que Mary Douglas chama de “assunto fora de lugar”. Em
termos sociais, é um contador de verdades. Como um estrato mais
baixo do soa us, o “fundo” simbólico ou cloaca maxima do corpo
político, o lixo sinaliza o retorno do reprimido; é o lugar onde
camisinhas usadas, absorventes ensanguentados, agulhas infectadas
e bebês rejeitados são deixados; o lugar de descanso final de tudo
o que a sociedade produz e reprime, que esconde e faz segredo.
Podemos lembrar da tomada final de Os Esquecidos, de Buñuel,
que mostra o cadáver do protagonista despedaçado no filme sen­
do naturalmente largado em uma pilha de lixo na cidade do Mé­
xico; a cena reaparece em O Beijo da Mulher Aranhayde Babenco,
no qual o cadáver de Molina é jogado em um monte de lixo, en­
quanto a voz do narrador comunica oficialmente sua morte. Ma­
terial excessivo, o lixo é o id da sociedade; fumega e tem cheiro
abaixo da soleira da racionalização e da sublimação ideológicas.
Ao mesmo tempo, o lixo é reflexo de prestígio social; riqueza e
status estão correlacionados com a capacidade de uma pessoa (ou
uma sociedade) em descartar mercadorias, ou seja, gerar lixo. Como
híbrido, o lixo também está carregado de poder. A elite pode trans­
formar uma favela em um bairro nobre, aterrar um terreno para
construir prédios luxuosos ou despejar lixo tóxico em uma vizi­
nhança pobre.
Três documentários brasileiros recentes tratam diretamente
o tema do lixo. O Fio da Memória, de Eduardo Coutinho ( The
Thread ofMemory> 1991), um filme realizado como parte da co­
memoração do centenário da abolição, reflete sobre as consequências
da escravidão no presente. Em vez de se estruturar em uma narrati­
va coerente e linear, o filme oferece uma história baseada em peda­
ços e fragmentos disjuntivos. Aqui os fios entrelaçados, ou pedaços
agrupados, tornam-se emblemáticos do tecido fragmentário da
vida negra no Brasil. O fio condutor consiste do diário de Gabriel
Joaquim dos Santos, um homem velho e negro que criou a casa
de seus sonhos como um trabalho de arte, feito completamente
de lixo e detritos: azulejos rachados, pratos quebrados, latas vazi­
as. Para Gabriel, a cidade do Rio representa o “poder da riqueza”,
enquanto sua casa, construída dos “restos da cidade”, representa
o “poder da pobreza”. O lixo então se torna um meio ideal para
aqueles que foram marginalizados, que se sentem “deprimidos”,
que, como no verso da canção de bluesyse sentem “com o uma lata
sobre aquele depósito de lixo velho”9. Um impulso transform a­
dor toma um objeto considerado sem valor e o transform a em
algo de valor. Aqui a restauração do valor de um objeto jogado
fora explica, por analogia, o processo de revelar o valor escondido
do artista desprezado, desvalorizado. Ao mesmo tempo, testemu­
nhamos um exemplo de estratégia e de engenhosidade em situação

9. Minha form ulação obviam ente reflete e africaniza a linguagem do con h ecid o e n ­
saio de Frederic Jameson “A Literatura do Terceiro M undo na Era do C apitalism o
M ultinacional”, Texto Social, n. 15, ou ton o 1986.
de escassez. O lixo dos que têm se transforma no tesouro dos que
nada têm; o frio úmido e insalubre é metamorfoseado no sublime
e no belo; o que fora uma monstruosidade é transformado em ali­
vio para olhos machucados. A lâmpada queimada, ícone gasto da
inventividade moderna, torna-se um emblema de beleza. Com gran­
de facilidade de improvisação, Gabriel, pobre, precariamente alfa­
betizado, apropria-se de produtos descartados da sociedade indus­
trial para seus próprios propósitos recreativos, em procedimentos
que inadvertidamente evocam aqueles do modernismo e da van­
guarda: o “estranhamento” dos formalistas, os “objetos encontra­
dos” dos cubistas, a “refuncionalização” de Brecht, o “détournement”
dos situacionistas. Essa recuperação de fragmentos também tem
uma dimensão espiritual na cultura africana. Em toda a África cen­
tral e ocidental, ao monte de lixo é uma metáfora para o nefasto,
um ponto de contato com o mundo dos m ortos”. As vasilhas que­
bradas exibidas nos túmulos do Congo, Robert Farris Thompson
nos informa, servem como lembretes de que objetos quebrados
se tornam novamente um todo no outro m undo.10
O título de outro vídeo sobre lixo, o documentário Boca de
Lixo, de Coutinho, diretamente o conecta à “estética do lixo”, já
que seu título se refere ao bairro da luz vermelha de São Paulo,
onde eram produzidos, no início, os filmes de “lixo”. O filme gira
em torno dos brasileiros empobrecidos que sobrevivem graças a
um depósito de lixo fora do Rio, onde trabalham arduamente e

10. Ver: Thom pson, Robert F.; C om et, Joseph. The Four Moments o f the S u it. Congo
Art in Two Worlds. W ashington: Galeria Nacional, 1981. p. 179.
têm como pano de fundo os braços estendidos do sempre miseri­
cordioso Cristo no Corcovado. Nesse ponto, a câmera é testemu­
nha da miséria social. Esmiuçando o lixo, os participantes execu­
tam uma triagem do que é “vomitado” pela loteria diária de
excremento, separando o plástico do metal e da matéria comestí­
vel. Já que muitas das faces são femininas e negras, o filme tam­
bém revela a feminilização e a racialização da miséria social. Aqui
vemos o ponto final de toda uma lógica mercantil permeável, o
télos lógico da sociedade de consumo e seu éthos de obsolescência
planejada. O lixo se torna a manhã seguinte do romance do novo (o
romance Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, trata de uma cidade
tão enamorada do novo que descarta todos os seus objetos diaria­
mente). Na fantasmagoria miserável do depósito, as mesmas mer­
cadorias que foram transformadas em fetiche pela propaganda,
valorizadas pela montagem e evidenciadas com luz de fundo estão
agora despidas de sua aura de poder carismático. Somos confronta­
dos com a parte inferior fissurada da globalização e com seu discur­
so simples de um mundo sob a rotina consumista. O mundo do
capitalismo transnacional é mais do que um eterno mundo de cons­
tante e diário movimento para a miséria. Finalmente, testemunha­
mos a face escondida do sistema global, todas as agonias sublima­
das mascaradas pela panaceia eufórica do “neoliberalismo”.
Se Fio de memória vê o lixo como recurso artístico, Boca de
Lixo revela sua dimensão existencial humana. Aqui, os habitantes
do lixo têm nomes (Jurema, Enoch), apelidos (“Costeleta”), fam í­
lia, memórias e esperanças. Em vez de assumir uma abordagem
miserabilista, Coutinho nos mostra pessoas que são criativas, irô­
nicas e críticas, que dizem ao diretor o que olhar e como interpre-
tar o que ele vê. Enquanto para Coutinho o roubo das imagens
dos outros com propósitos sensacionalistas é o “pecado original”
da reportagem televisiva,11 os habitantes do lixo repetidamente in­
sistem que “Aqui ninguém rouba”, como se respondendo às acusa­
ções imaginárias dos interlocutores de classe média. Em vez dos
prazeres suspeitos de uma “simpatia” condescendente, o especta­
dor da classe média é obrigado a se confrontar com pessoas vi­
brantes que ousam sonhar, responder e até mesmo criticar os di­
retores de cinema. Os “nativos”, nessa etnografía do lixo, não são o
objeto, mas os agentes do conhecim ento. Ao fínal do filme, os
participantes se assistem em um videocassete, num gesto reflexi­
vo que remete aos filmes africanos de Jean Rouch que é agora
familiar com a “mídia nacional”. Em vez de banidos patéticos, os
sujeitos do filme existem em um continuum com os trabalhado­
res brasileiros em geral; eles incorporam o país com o um todo; já
tiveram outros empregos, já trabalharam em outras cidades, já la­
butaram nas casas da elite. E criticamente absorveram e processa­
ram as mesmas representações de mídia que todos os outros e, por­
tanto, têm “respostas prontas” para o centro; eles desaprovam o que
Janice Perlman chama de “mito da marginalidade”. No filme, um
pensador popular diz aos diretores que o lixo é o começo e o fim
de um princípio cíclico de nascimento e renascimento o que
vai, vem. O lixo é mostrado como energia armazenada, contendo
nela mesma as sementes de sua própria transformação. O lixo se

11. Citado na Revista IJSP\ n. 19, p. 148, set./out./nov. 1993.


torna uma forma de karma social, o encontro adiado entre aque­
les que têm condições de desperdiçar e aqueles que não podem
deixar de guardar o que já foi jogado fora. Aqueles que vivem à
base do lixo também decoram suas casas com ele. Enquanto a elite
desperdiça comida quase como uma questão de princípio, o po­
bre é obrigado a limpar seu próprio prato, e os dos outros.
Ilha das Flores, de Jorge Furtado (1989), traz a “estética do
lixo” para a era pós-moderna, enquanto também demonstra a ca­
pacidade do cinema de ser veículo para reflexão estética e política.
Em vez da estetização do lixo, aqui o lixo é tanto o tema quanto a
estratégia formal. Descrito por seu autor como uma “carta a um
marciano que não sabe nada sobre a Terra e seus sistemas sociais”,
o curta de Furtado usa animação ao estilo Monty Python, cenas
de arquivo e técnicas do documentário reflexivos para denunciar
a distribuição de riqueza e comida no mundo. A Ilha das Flores
do título é um depósito de lixo brasileiro onde mulheres e crian­
ças famintas, em grupos de dez, têm cinco minutos para procurar
comida. Mas antes de chegarmos ao depósito de lixo, ficamos sa­
bendo do itinerário de um tomate que sai da fazenda e vai para o
supermercado, daí para uma cozinha burguesa, para a lata de lixo
até chegar na “Ilha das Flores”. A colagem editada de Furtado está
estruturada como um léxico ou um glossário social, ou melhor, uma
enumeração surrealista de palavras-chave como “porcos”, “di­
nheiro” e “seres humanos”. As definições são interconectadas e
multicronotópicas; elas levam a múltiplas situações e enquadramentos
históricos. Para seguir a trajetória do tomate, precisamos conhecer
a origem do dinheiro: “O dinheiro foi criado no século VII a.C.
Cristo era judeu, e judeus são seres humanos.” Enquanto o público
ainda está rindo dessa transição brusca, o filme vai diretamente para
o resíduo fotográfico do holocausto, no qual os judeus, feito lixo,
são jogados nas pilhas do campo de concentração. (Os nazistas,
somos lembrados, tinham suas próprias formas mórbidas de
reciclagem.) O tempo todo o filme transita entre definições
minimalistas do humano e o ideal grandioso de liberdade evoca­
do pela citação final do filme: “Liberdade, essa palavra / que o
sonho humano alimenta / que não há ninguém que explique / e
ninguém que não entenda.”12
Mas esse resumo explica pouco a experiência do filme, de
seu jogo com a forma e as expectativas documentárias. Em pri­
meiro lugar, o próprio visual do filme - comerciais de TV antigos,
anúncios em jornais, manuais de cuidado com a saúde - constitui
um tipo de lixo visual. (Somos lembrados de que, na época do cine­
ma mudo, os filmes eram vistos como diversão descartável em vez
de produtos artísticos duráveis e, portanto, não valia a pena guardá-
los; durante a Primeira Guerra Mundial, eram até reciclados devido
a seu conteúdo de prata e chumbo.) Muitas das tomadas - dos
porcos, dos tomates - são repetidas, desafiando a linguagem con­
vencional do cinema clássico, a qual sugere que as tomadas de­
veriam ser tanto bonitas quanto únicas. Em segundo lugar, o filme,
cujo preâmbulo declara que “este não é um filme de ficção”, satiriza
o entusiasmo positivista pelo detalhe factual ao oferecer precisão
inútil e gratuita: “Estamos em Belém Novo, cidade de Porto Alegre,

12. N. de T.: Meirelles, Cecília. Romanceiro da Inconfidência. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 2005.
estado do Rio Grande do Sul. Mais precisamente a trinta graus,
doze minutos e trinta segundos de latitude sul, e cinquenta e um
graus, onze minutos e vinte e três segundos de longitude oeste.”
Em terceiro lugar, o filme debocha dos aparelhos e protocolos da
ciência racionalista, por meio de esquemas classificatórios absur­
dos, “Dona Anete é mamífera, bípede, fêmea, católica romana”, e
silogismos tautológicos, “O Sr. Suzuki é japonês e, portanto, um
ser humano.” Enfim , o filme parodia as convenções do filme
educativo, com sua voz de narrador que denota autoridade e com
perguntas do tipo quiz, tais como, “O que é um jogo de perguntas
e respostas de história?” A música de abertura é uma versão sinteti­
zada da canção tema de Voz do Brasil\ o programa oficial de rádio
amplamente detestado que incomoda os brasileiros desde a era
Vargas. O humor se torna um tipo de armadilha; o espectador,
que começa rindo, acaba, se não chorando, pelo menos refletin­
do seriamente. Ouvimos que polegares opositores e um telencéfalo
altamente desenvolvido deram aos “seres humanos a possibilida­
de de fazer muitas melhorias no planeta”; a tomada de uma explo­
são nuclear serve como ilustração. Ouvimos também que graças à
universalidade do dinheiro nós agora somos “livres!”; um trecho
isolado do “Coro de Aleluia” pontua o pensamento. Furtado evo­
ca o velho tema do carnaval de porcos e salsichas, mas com uma
guinada política; aqui os porcos, dada a distribuição injusta da
cadeia alimentar, comem melhor que as pessoas. Nessa reciclagem
culinária, recebemos uma análise social do lixo; a verdade de uma
sociedade está em seus detritos. O socialmente periférico aponta
para o simbolicamente central. Em vez de as margens invadirem o
centro como no carnaval, aqui o centro cria as margens, ou me­
lhor, não há margens; o tomate liga a família urbana burguesa ao
pobre rural, através da linguiça e do tomate, dentro de uma teia de
relações globais.
Nesses filmes, o depósito de lixo se torna uma posição crítica
estratégica da qual se vê a sociedade como um todo. Ele revela a for­
mação social vista “de baixo”. Como o depósito sobredeterminado
de significados sociais, como uma concentração de significantes
empilhados, o lixo é o lugar onde relações híbridas e multicronotópicas
são refaturadas e reinscritas. O lixo define e ilumina o mundo; a
lata de lixo, para reciclar o aforismo de Trotsky, é história. O lixo
oferece uma base de dados de cultura material a partir da qual se
pode ler costumes ou valores sociais. Polissêmico e polifónico, o
lixo pode ser visto literalmente - lixo como fonte de comida para
pessoas pobres, lixo como local de desastre ecológico - , mas pode
também ser lido sintomaticamente como uma metáfora para denún­
cia social - pessoas pobres tratadas como lixo, lixo como o “depósi­
to” de produtos farmacêuticos ou de programas de TV “enlatados”,
favelas (e prisões) como depósitos de lixo humano. Esses filmes
revelam os “subtextos escondidos” do lixo, um texto alegórico a ser
decifrado, uma forma de colonialismo social em que a verdade de
uma sociedade pode ser “lida” em seus produtos descartados.
Situando o cinema com sotaque * 1

Hamid Naficy

Diretores com sotaque

Os diretores da diáspora e do exílio discutidos neste artigo


são personagens “locais, porém universais”, que trabalham no
interstício das formações sociais e das práticas cinematográficas.
A maioria deles é oriunda de países de Terceiro Mundo e pós-colo-
niais (ou do hemisfério sul) e, desde a década de 1960, tem migra­
do para centros cosmopolitas onde vivem sob tensão e dissenso
com seu país de origem e com o país onde atualmente vivem. De
um modo geral, eles trabalham de forma independente, fora do sis­
tema de estúdio ou das indústrias cinematográficas dom inantes,
utilizando-se de modos de produção intersticiais e coletivos que
criticam tais empresas. C onsequentem ente, presum e-se que eles

* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N .T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já teita e utilizada na p u b licação].
1. Este artigo é um a versão traduzida e reduzida de “Situating A ccented C in em a”,
publicado em : Naficy, Hamid. An Accented Cinema. Princeton: Princeton University
Press, 2001.
sejam mais propensos às tensões da marginalidade e da diferença.
Pelo fato de compartilharem dessas características, a própria exis­
tência de tensões e diferenças ajuda a impedir que os diretores
com sotaque se tornem um grupo homogêneo ou um movimento
cinematográfico. As tensões e diferenças que os filmes codifi­
cam não são facilmente resolvidas por narrativas conhecidas e
esquemas genéricos, daí seu agrupamento em um estilo com
sotaque. As variações entre os filmes são geradas por muitos fa­
tores, enquanto suas similaridades se originam principalmente
do que os diretores têm em comum: a subjetividade liminar e a
posição intersticial na sociedade e na indústria cinematográfica.
O que constitui o estilo com sotaque é a combinação e o cruza­
mento dessas variações e similaridades.
Os diretores com sotaque vieram morar e fazer filmes no Oci­
dente em dois agrupamentos gerais. O primeiro foi deslocado ou
atraído para o Ocidente, desde o fim da década de 1950 até a metade
da de 1970, devido à descolonização do Terceiro Mundo, às guerras
para a libertação nacional, à invasão da Polônia e da Tchecoslováquia
pela União Soviética, à ocidentalização e a um tipo de “descolonização
interna” no próprio Ocidente, envolvendo os diversos movimentos
pelos direitos civis, de contracultura e antiguerra. Na verdade, como
Frederic Jameson observa, o início do período chamado “anos 60”
deve ser situado na descolonização do Terceiro Mundo, que influen­
ciou de forma significativa os movimentos sociopolíticos do Pri­
meiro Mundo (1984, p. 180 apud Hollanda, 1992).
O segundo grupo surgiu nas décadas de 1980 e 1990 como
um resultado da decadência do nacionalismo, do socialismo e do
comunismo; das rupturas causadas pelo surgimento de economias
mundiais pós-industriais; da ascensão de formas militantes do
Islã; do retorno de guerras religiosas e étnicas; da fragmentação de
Estados-nações; das mudanças na política de imigração europeia,
australiana e americana, incentivando a imigração não Ocidental;
e do desenvolvimento tecnológico e consolidação dos computa­
dores e da mídia.
Os diretores com sotaque são o resultado desse desloca­
mento binário pós-colonial e dessa difusão pós-m oderna ou
modernidade tardia. Devido ao deslocamento das margens para o
centro, eles se tomaram sujeitos na história mundial. Conquistaram
o direito de expressão e ousaram conquistar os meios de representa­
ção. Embora marginalizados, estão no centro, e suas habilidades em
acessar os meios de reprodução podem se mostrar tão poderosas
aos que também vivem à margem na era pós-industrial quanto
teria sido a tomada dos meios de produção pelos operários da era
industrial.
Ao se mapear o cinema estrangeiro, é importante diferenci­
ar três tipos de filme que o constituem: étnico, do exílio e da
diáspora. Essas distinções não são fixas. Alguns filmes pertencem
naturalmente a uma dessas classificações, enquanto a maioria apre­
senta as características dos três tipos em níveis diferentes. Há tam ­
bém subdivisões dentro de cada tipo. Além disso, no decorrer de
suas carreiras, muitos diretores se mudam não apenas de um país
para outro, mas também de um tipo de filme para outro, de acor­
do com a trajetória de suas viagens identitárias e de suas com uni­
dades de origem.
Tradicionalmente, o exílio é entendido com o a expulsão
devido a alguma quebra de norma ou crime, com proibição de
retorno. O exílio pode ser interno ou externo, dependendo do
local para onde alguém é enviado. As extraordinárias limitações
que os cineastas exilados internamente sofreram, as restrições, as
privações e a censura em países totalitários são bem conhecidas.
O que tem sido menos analisado é a forma como tais restrições,
ao desafiarem os diretores, os forçam a desenvolver um estilo au­
toral. Muitos diretores que conseguiram escapar do exílio interno
se recusam a seguir esse estilo, a fim de entrar numa batalha justa
em casa - uma luta que frequentemente define não apenas o estilo
de seus film es, mas tam bém sua id en tid ad e co m o figuras
opositoras de valor. Por trabalharem sob um regime de exílio in­
terno, eles escolhem seu “local de luta” e seu potencial de transfor­
mação social (Harlow, 1991, p. 150). Quando se manifestam desse
lugar - em casa - , eles têm um impacto, mesmo quando punidos,
o que acontece frequentemente. Na verdade, o interrogatório, a
censura e a prisão são provas de que suas vozes são ouvidas. Mas
se saírem para o exílio externo do Ocidente, onde têm liberdade
política para falar, pode ser que ninguém os ouça entre a cacofonia
de tantas vozes competindo por atenção no mercado. Nesse caso,
a famosa pergunta de Gayatri Spivak “Os subalternos podem fa­
lar?” terá de ser substituída por “Os subalternos podem ser ouvi­
dos?”. Devido à globalização, os exílios internos e externos entre os
países não são isolados. Na verdade, há muito movimento e troca
entre eles.
Neste estudo, o termo “exílio” refere-se, especialmente,
a exílios externos: indivíduos ou grupos que voluntária ou
involuntariamente partiram de seus países e que mantêm uma
relação ambivalente com seus países e suas culturas de origem.
Embora não retornem a seu país, nutrem um desejo intenso de
voltar - um desejo que é representado nas narrativas de seus fil­
mes. Nesse ínterim, eles rememoram a terra natal, tornando-a fe­
tiche na forma de sons emotivos, imagens e cronotopos que cir­
culam intertextualmente na cultura popular do exílio, inclusive
em filmes e vídeos musicais. Em síntese, a primeira relação dos
exilados é com seus países e suas culturas de origem; com a visão,
o som, o gosto e a sensação de uma experiência original de um
outro lugar em outros tempos. Os exilados, especialmente os ci­
neastas que foram forçados a partir, tendem a querer definir, ao
menos durante o período liminar de deslocamento, todas suas vi­
das não somente em relação com o país de origem, mas também
em termos políticos. Como resultado disso, seus primeiros filmes
tendem a representar seus países de origem e seu povo mais do
que a si mesmos.
A autoridade dos exilados como diretores autores deriva de
sua posição de sujeitos que habitam em espaços intersticiais e locais
de luta. Na verdade, toda autoria artística implica o distanciamento -
banimento e algum tipo de exílio - da sociedade maior. As ten­
sões e ambivalências resultantes produzem a complexidade e a
intensidade que são tão características às grandes obras artísticas e
literárias. Da mesma forma que o tabu sexual permite a procria­
ção, o exílio por banimento incentiva a criatividade. É claro que
nem todo sujeito exilado produz uma arte significativa ou dura­
doura, mas muitas das grandes ou mais duradouras obras literári­
as e cinematográficas foram criadas por escritores e diretores exi­
lados. Mas o exílio pode resultar em uma forma conflituosa de
liminaridade caracterizada pela oscilação entre os extremos. É uma
zona de ansiedade e imperfeição em que a vida oscila entre o êxta­
se da confiança e o desalento da dúvida.
Para os exilados externos, as relações de origem com a terra
natal e as relações de aceitação com a sociedade que os acolhe es­
tão continuamente sendo testadas. Libertados do velho e do novo,
eles estão “desterritorializados”, em bora perm aneçam entre o ve­
lho e o novo, o antes e o depois. Por estarem localizados numa
zona tão escorregadia, podem ficar impregnados de um excesso
híbrido, ou podem se sentir profundam ente destituídos e divi­
didos, até mesmo, fragmentados. O diretor e poeta lituano Jonas
Mekas, que passou quatro anos na Europa em ambientes de pes­
soas deslocadas, antes de desembarcar nos Estados Unidos, expli­
cou seu sentimento de fragmentação da seguinte maneira:

Mexeu com tudo o que eu acreditava - todo o meu idealismo,


minha fé na bondade e no progresso da humanidade, tudo foi
abalado. De alguma forma, tentei manter-me inteiro. Sincera­
mente, eu não era mais um todo; eu era mil pedaços dolorosos. E
não me surpreendi quando, ao chegar em Nova Iorque, encontrei
outras pessoas que se sentiam da mesma forma. Havia poetas,
cineastas, pintores - pessoas que também estavam fragmentadas
em mil pedaços dolorosos, (apud O’Grady, 1973, p. 229).

Nem a fusão híbrida e nem a fragmentação são totais, per­


manentes ou indolores. De um lado, como os “indecidíveis” de
Derrida, os novos exilados podem ser “ambos ou nenhum ”: o
fármaco, que é tanto o remédio quanto o veneno; o hímen, que
representa tanto a membrana quanto sua violação; e o todo, sen­
do tanto a incorporação quanto a substituição (apud Bauman,
1994, p. 145-146). Por outro lado, eles podem ser conveniente­
mente chamados, nas palavras de Salman Rushdie, de “plurais e
parciais” (Rushdie, 1994, p. 15). Como sujeitos parciais, fragmen­
tados e m ú ltip los, esses d iretores são capazes de produzir
ambiguidade e dúvida sobre os valores tidos como garantidos em
seus países de origem e do país em que se encontram. Eles tam ­
bém podem transcender e transformar a si mesmos para produzi­
rem identidades híbridas, sincréticas, reais ou virtuais. Porém, ne­
nhuma dessas identidades construídas e impuras é totalmente se­
gura, como demonstra a ameaça de morte de Aiatolá Khomeini
para Salman Rushdie.
É claro que nem todos os exilados transnacionais sentem
uma dúvida fundam ental, lutam por uma au tocon stitu ição
performática ou buscam imagens virtuais ou utópicas. Entretan­
to, os que permanecem nas longas e afetuosas crises e tensões da
migração por exílio, da liminaridade e da intersticialidade, po­
dem se tornar fontes veementes da criatividade e do dinamismo
que produz na literatura e no cinema obras como as de Joyce e
Marguerite Duras, Joseph Conrad e Fernando Solanas, Ezra Pound
e Trinh T. Minh-ha, Samuel Beckett e Sohrab Shahid, Saless, Salman
Rushdie e Andrei Tarkovsky, Garcia Marquez e Atom Egoyan,
Vladimir Nabokov e Raul Ruiz, Gertrude Stein e Michel Khleifi,
Assia Djebar e lonas Mekas.
Originalmente, o termo diáspora faz referência à dispersão
do povo grego após a destruição da cidade de Aegina, aos judeus
após seu exílio na Babilônia e ao povo armênio após as invasões
persas e turcas e a consequente expulsão em meados do século
XVI. O paradigma clássico da diáspora envolveu os judeus, po­
rém muitos autores defendem que esse termo não define apenas a
dispersão do povo judeu, mas tam bém a m ilhares de pessoas
que historicamente são submetidas a dispersões - um processo
que ainda continua em grande escala. O termo foi apropriado por
outros povos que também sofreram dispersão, com o os afro-ame-
ricanos nos Estados Unidos e os afro-caribenhos na Inglaterra, para
definir o processo pelo qual foram sequestrados de seus lares afri­
canos e forçados a se dispersar no mundo novo. Nesta e em outras
recodificações, o conceito de diáspora se aproxima muito do sen­
tido de exílio. Consequentemente, como destaca Khachig Toloyan,
a palavra “diáspora” perdeu sua especificidade e precisão originais
e tornou-se uma “categoria promiscuamente ampla, utilizada para
incluir todos os fenômenos adjacentes aos quais está relacionada,
mas dos quais, na verdade, difere nas suas maneiras de constitui­
ção” (Toloyan, 1996, p. 8).
Neste texto serão apontadas, de forma concisa, as diferen­
ças e semelhanças entre exílio e diáspora. A diáspora, como o exí­
lio, frequentemente começa com trauma, ruptura e coerção e en­
volve a dispersão de povos para lugares fora de sua terra natal.
Algumas vezes, porém, a dispersão é causada por um desejo de
expandir o comércio, por trabalho ou por questões coloniais e
imperiais. Assim, os movimentos diaspóricos podem ser classifi­
cados de acordo com os fatores que os motivam. Robin Cohen
(1997) sugeriu os seguintes exemplos e classificações: diásporas
de vítimas/refugiados (como os judeus, africanos e armênios);
diásporas de trabalho/serviço (indianos); diásporas de comércio/
negócios (chineses e libaneses); diásporas imperiais/colonialistas
(ingleses e russos); diásporas culturais/híbridas (caribenhos).
Como os exilados, as pessoas na diáspora têm uma identidade em
seu país de origem antes de partirem, e sua identidade diaspórica
é construída de acordo com sua identidade prévia. Entretanto, di­
ferentemente do exílio, que pode tornar-se individual ou coleti­
vo, a diáspora é necessariamente coletiva, tanto em sua origem
quanto em seu destino. Consequentem ente, a identidade da
diáspora é constituída de memórias coletivas de um país de ori­
gem normalmente idealizado. Essa idealização pode ser baseada
na ideia de Estado, envolvendo o amor por uma terra natal real,
ou pode ser menos estatal, baseada em um desejo por uma terra
natal que ainda está por vir. A diáspora armena antes e depois da
era Soviética foi baseada num Estado, ao passo que a diáspora
palestina, desde a criação de Israel em 1948, é sem Estado, gerada
pelo desejo palestino de criar um Estado soberano.
Além disso, as pessoas na diáspora mantêm um senso de
consciência e distinção étnica de longo prazo, que é consolidado
pela hostilidade intermitente, tanto de seu país de origem quanto
da sociedade em que agora se encontram . Entretanto, ao con trá­
rio dos exilados, que mantêm uma relação vertical e prim ária
com seu país de origem , a consciência diaspórica é horizontal
e multilocalizada, envolvendo não apenas seu país de origem ,
mas também com unidades com patriotas em outros lugares.
Consequentemente, pluralidade, multiplicidade, hibridismo são
proeminentes entre as pessoas da diáspora, enquanto entre os exi­
lados políticos a dualidade e o binarismo são dominantes.
Essas diferenças tendem a moldar os filmes da diáspora e
do exílio de forma diferente. Os cineastas diaspóricos tendem a se
concentrar menos que os do exílio nas relações emotivas com um
único país de origem ou na asserção de que eles representam seu
país e seu povo. Assim, seus trabalhos não se detêm em retrospecção,
perda e falta ou em termos estritamente político-partidários. Seus
filmes são marcados mais que os filmes de exílio pela pluralidade e
pela representação da identidade. Em síntese, enquanto o binarismo
e a subtração marcam os filmes de exílio, a adição e a multiplicidade
caracterizam o cinema diaspórico. Muitos cineastas da diáspora são
discutidos aqui individualmente, como os armênios. Os cineastas
negros e asiáticos britânicos são discutidos coletivamente.

Cineastas pós-coloniais étnicos e de identidade

Embora as comunidades exiladas, diaspóricas e étnicas prote­


jam suas fronteiras reais e simbólicas, a fim de preservar um pouco
da identidade coletiva que as distingue da camada social e da ideo­
logia predominantes, elas se distinguem pela força relativa de sua
conexão com comunidades compatriotas. Os cineastas pós-coloni­
ais étnicos e de identidade são étnicos e diaspóricos, mas eles dife­
rem da etnia pós-estúdio estadunidense, como Woody Allen, Francis
Ford Copolla e Martin Scorsese, pelo fato de que alguns deles ou
são imigrantes ou nasceram no Ocidente após 1960. Eles também
diferem dos cineastas da diáspora pela ênfase em sua identidade
racial e étnica dentro do país em que se encontram.
A ênfase diferente sobre a relação com o lugar gera filmes
estrangeiros diferentes. Assim, o cinema de exílio é marcado pelo
seu foco no aqui e agora em seu país de origem; o cinema diaspórico,
pela relação vertical com seu país de origem e pela relação late­
ral com as comunidades e experiências da diáspora; e o cinema
pós-colonial étnico e de identidade, pelas exigências do aqui e
agora no país onde os cineastas residem. Como resultado desse
foco no aqui e agora, filmes de identidade étnica tendem a lidar
com o que Werner Sollors classificou como “o drama central da
cultura americana”, que emerge dos conflitos entre relações de des­
cendência, enfatizando laços de sangue e etnicidade; e relações de
aceitação, enfatizando afiliações construídas e contratuais (1986,
p. 6). Em outras palavras, o cinema de exílio e diaspórico se preo­
cupa em ser; o cinema de identidade, em se tornar; enquanto o
primeiro é conciliador, o segundo é contestador. Em bora tal dra­
ma esteja presente também, até certo ponto, em filmes diaspóricos
e de exílio, o drama do local do país em que agora residem os
diretores faz com que filmes étnicos e de identidade sejam dife­
rentes das duas outras categorias, nas quais as narrativas são fre­
quentemente centradas em algum outro lugar.
Alguns dos problemas-chave do cinema étnico e de identida­
de estão codificados na “política dos hifenizados”. Reconhecidos
como um marcador crucial de etnia e autenticidade em uma Améri­
ca multicultural, nomes de grupos como negro, chicano/a, oriental
e pessoas de cor têm sido gradualmente substituídos por ter­
mos hifenizados, como afro-americano, latino-am ericano e asiá-
tico-americano. A adoção do hífen no cinema de identidade é vista
como um marcador de resistência ao poder homogeneizador e
hegemonizador da ideologia da miscigenação. Entretanto, usar e
manter o hífen também apresenta várias conotações negativas. O
hífen pode conter uma falta ou a ideia de que pessoas hifenizadas
são, de alguma forma, subordinadas às pessoas não hifenizadas, ou
que elas são “iguais, mas não exatamente iguais”, ou que nunca se­
rão totalmente aceitas ou confiáveis como são os verdadeiros cida­
dãos. Além disso, o termo pode sugerir uma lealdade dividida, o
que é um lembrete doloroso para certos grupos de cidadãos ameri­
canos. O hífen pode também sugerir uma mente dividida, uma iden­
tidade irrevogavelmente partida ou um tipo de paralisia entre duas
culturas ou nações. Finalmente, o hífen pode alimentar discursos
nacionalistas que assumem essências autênticas que se encontram
fora de qualquer ideologia e precedem ou se afastam da nação.
Em termos nacionalistas, o hífen expressa relações verticais
que enfatizam relações de descendência, raízes, profundidade, he­
rança, continuidade, homogeneidade e estabilidade. São relações
alegorizadas em sagas de famílias e em narrativas de conflito entre
mãe e filha e entre gerações nos filmes chineses-americanos, tais
como, Um Amor em Chinatown (1989) e O Clube da Felicidade e
da Sorte (1993) de Wayne Wang. A tarefa do diretor nessa modali­
dade, nas palavras de Stuart Hall, é “descobrir, escavar, trazer à luz
e expressar através da representação cinemática” aquela identida­
de cultural coletiva herdada, aquele “eu verdadeiro” (1994, p. 393).
Com função contestadora, o hífen pode operar horizontalmente,
realçando relações de consentimento, rupturas, heterogeneidade,
deslizamentos e mediação como em Surname Viet Given Name
Nam fl985), de Trinh T. Minh-ha, e Masala (1990), de Srinivas
Krishna. Nessa modalidade, os diretores não recuperam um passa­
do existente nem impõem uma coerência imaginária e frequente­
mente transformada em fetiche sobre suas experiências e históri­
as fragmentadas. Em vez disso, ao enfatizar a descontinuidade e
a singularidade, eles demonstram estar no processo de tornar-se
“sujeitos no ‘jogo’ contínuo de história, cultura e poder” (Hall, 1994,
p. 394). O filme premiado Who Killed Vincent Chin? (1988), de
Christine Choy e Rene Tajima, é realmente um tratado sobre a pro­
blemática do hífen no contexto asiático-americano; o filme tem
como mote o assassinato de um sino-americano por desempre­
gados brancos de uma empresa de carros de Detroit que, ressenti­
dos com a importação de carros japoneses, confundiram-no com
um japonês.
Considerado um signo de identidade hibridizada, múltipla,
ou identidade construída, o hífen pode se tornar libertário, porque
pode ser representado e significado. Cada hífen é, na realidade,
um conjunto de hífens, que consiste em vários outros hífens que
fazem interseção e se sobrepõem e que, por sua vez, explicitam
conexões inter e intraétnicas e nacionais. Essa fragmentação e m ul­
tiplicação podem operar contra o essencialismo, o nacionalismo
e o dualismo. Face a face com demasiadas opções e significados,
entretanto, alguns sugeriram remover o hífen, enquanto outros
propuseram substituí-lo pelo sinal de adição (+). O documentário
Italianamerican (1974), de Martin Scorsese, inteligentemente re­
move o hífen e o espaço e liga o “ítalo” com o “americano” para
sugerir um terceiro termo composto. O título do filme, do mais
étnico dos diretores de cinema da Nova Hollywood, postula que
não há italianidade que preceda ou que se afaste da americanidade.
Neste texto, mantive o hífen, já que esta é a forma de escrita mais
popular dessas designações étnicas compostas.
Os termos compostos que apresentam o hífen também apre­
sentam problemas, pois, ao mesmo tempo que cada termo pro­
duz aliança simbólica entre membros díspares de um grupo, ele
tende a encobrir suas diversidades e especificidades. O termo “asi­
ático-americano”, por exemplo, inclui pessoas de raízes nacionais e
culturais tão diversas como Filipinas, Vietnã, Camboja, Coreia, Ja­
pão, Tailândia, China, Laos, Taiwan, Indonésia, Malásia, índia,
Bangladesh e Paquistão. A fim de refinar a expressão, são criados
termos pouco usados como “diásporas do sudeste asiático”. Pro­
cessos e políticas semelhantes de nomeação foram criados pelos
cineastas britânicos “negros”.
As distribuidoras de filmes independentes, como Third World
Newsreel, Icarus-First Run Films e Women Make Movies, exploram
o hífen e a política do cinema de identidade, ao classificar esses filmes
temáticamente ou por sua designação hifenizada. Tais classificações
de destacam para aqueles interessados nesse tipo de filme, mas tam­
bém limitam o marketing e os discursos críticos sobre esses filmes,
ao encorajar o público a interpretá-los mais com base no seu con­
teúdo étnico e na política de identidade e menos com base na visão
autoral e nas inovações estilísticas. Vários diretores pós-coloniais de
etnia e de identidade são discutidos individual e coletivamente.
Diáspora, exílio e etnicidade não são estados fixos; antes dis­
so, são processos fluidos que, sob certas circunstâncias, podem se
transformar um no outro e ir além. Também não há progressão
direta e pré-determinada do exílio para a etnia, embora os apara-
tos ideológicos e económicos dominantes tendam a favorecer urna
trajetória assimilativa - do exilio para a diáspora, para a etnicidade,
para o cidadão, para o consumidor.
[...]

A abordagem estilística

A forma como os filmes são interpretados e recebidos tem mui­


to a ver com a maneira como estão enquadrados discursivamente.
Às vezes, os filmes de grandes diretores imigrantes, tais com o,
Alfred Hitchcock, Luis Buñuel e Jean-Luc Godard, estão enqua­
drados na categoria “internacional” de cinema. Mais frequente­
mente, eles são classificados tanto dentro de cinemas nacionais dos
países que os acolheram quanto de gêneros e estilos de filme con­
solidados. Portanto, os filmes de F. W. Murnau, Douglas Sirk, George
Cukor, Vincent Minnelli e Fritz Lang são geralmente considera­
dos exemplares do cinema estadunidense, do estilo hollywoodiano
clássico, ou do melodrama e do cinema noir; Obviamente, os tra­
balhos desses e de outros diretores consolidados são também dis­
cutidos sob a rubrica de “cinema autoral”. Por outro lado, muitos
diretores independentes exilados que fazem filmes sobre o exílio e
culturas e políticas de suas terras natais (como Abid Med Hondo,
Michel Khleifi, Mira Nair e Ghasem Ebrahimian) ou aqueles dire­
tores das minorias que fazem filmes sobre suas comunidades ét­
nicas (Rea Tajiri, Charles Burnett, Christine Choy, Gregory Nava,
Haile Gerima e Julie Dash) normalmente são marginalizados como
meramente nacionais, Terceiro Mundo, Terceiro Cinema, cinema
de identidade, cineastas que são incapazes de atingir totalmente
públicos mais convencionais. Através de financiamento, progra­
mação de festivais e estratégias de marketing, esses diretores são
frequentemente encorajados a se engajar em “direção ao salvamen­
to”, ou seja, fazer filmes que sirvam para preservar e recuperar he­
ranças culturais e étnicas. Outros diretores do exílio, como Jonas
Mekas, Mona Hatoum, Chantal Akerman, Trinh T. Minh-ha, Isaac
Julien e Shirin Neshat, são classificados como de vanguarda, en­
quanto outros, como Agnès Varda e Chris Marker, são considera­
dos inclassificáveis.
Embora essas abordagens classificatórias sejam importantes
para enquadrar filmes, a fim de melhor entendê-los, ou melhor
vendê-los, elas também servem para determinar excessivamente e
limitar os significados potenciais dos filmes. Suas consequências
indesejáveis são particularmente graves para os filmes estrangeiros,
porque as abordagens classificativas não são estruturas neutras. Elas
são “construtos ideológicos” mascarados como categorias neutras
(Altman, 1989, p. 5). Ao forçar a classificação dos filmes estrangei­
ros em uma das categorias estabelecidas, as próprias bases culturais
e políticas que os constituem são agrupadas, mal-interpretadas ou
obliteradas ao mesmo tempo. Tais esquemas tradicionais também
tendem a confinar os diretores em guetos discursivos que pecam
por não refletir ou responder por sua evolução pessoal e transfor­
mações estilísticas ao longo do tempo. Uma vez rotulados como
“étnicos”, “etnográficos” ou “hifenizados”, os diretores com sota­
que assim permanecem, discursivamente, mesmo que já tenham
mudado. Por outro lado, há aqueles como Gregory Nava, Spike
Lee, Euzhan Paley e Mira Nair que já trocaram, com variados graus
de sucesso, o cinema étnico, do Terceiro Mundo pelo cinema co­
mercial, ao contar suas historias étnicas e nacionais de formas mais
reconhecidamente narrativas.
[».]

Estilo com sotaque

Se o cinema clássico tem, de forma geral, esperado que com ­


ponentes de estilo, com o mise-en-scène, filmagem e edição pro­
duzam uma versão realista do mundo, o sotaque do exílio deve
ser representado com o realmente é, se não subvertido, pelo m e­
nos modulado diferentemente. Henry Louis Gates Jr. caracterizou
textos negros com o “m ulatos” ou “m ulatas”, que contêm dupla
voz e uma herança de dois tons:

Esses textos falam as línguas românicas e germânicas padrão com


estruturas literárias, mas quase sempre falam com um sotaque
distinto e ressonante, um acento que significa (principalmente)
as várias tradições literárias vernáculas negras, que ainda estão
sendo escritas. (1988).

Filmes estrangeiros tam bém são textos “m ulatos” Eles são


criados com a c o n sc iê n c ia das vastas h istó ria s dos m o d os
cinemáticos predominantes. São tam bém criados de uma nova
forma, constituída tanto pelas estruturas de sentim ento dos pró­
prios cineastas com o sujeitos deslocados, quanto pelas tradições
de produções culturais diaspóricas e de exílio que os precede­
ram. Das tradições cinem áticas, eles adquirem um conjunto de
vozes; e, das tradições diaspóricas e de exílio, adquirem outras
vozes. Essa dupla consciência constitui o estilo com sotaque que
não somente significa para além do exílio e outros cinemas, mas
também significa a condição do próprio exílio. Significa mais que
as tradições cinemáticas, em função dos seus modos de produção
artesanais e coletivos, os quais enfraquecem o modo de produção
dominante, e das estratégias narrativas, que subvertem o tratamento
realista do tempo, do espaço e da causalidade. Também significa,
e para além do exílio, ao expressar, alegorizar, comentar e criticar
as condições de sua própria produção e desterritorialização. Am­
bos os atos de significar e significação são constitutivos do estilo
com sotaque, cujas características-chave são discutidas a seguir. O
que transforma essas características em atributos de estilo é a sua
inscrição repetida em um único filme, na obra inteira de cada dire­
tor ou nos trabalhos de vários diretores deslocados independen­
temente de seu local de origem ou residência. Por fim, o estilo
demonstra seus deslocamentos e, ao mesmo tempo, serve para
localizá-los como autores.

Língua, voz, tratamento

Na linguística, sotaque se refere somente à pronúncia, en­


quanto dialeto faz referência também à gramática e ao vocabulá­
rio. Mais especificamente, o sotaque tem duas definições-chave:
“O efeito sonoro cumulativo daquelas características de pronún­
cia que identificam o lugar, social ou regional, de uma pessoa” e
“A ênfase que faz com que uma determinada palavra ou sílaba se
sobressaia no fluxo de fala.” (Crystal, 1991, p. 2). Ao passo que os
sotaques podem ser padronizados (por exemplo, como sotaques
ingleses, esco ceses, in d ian o s, canadenses, australianos ou
estadunidenses), é impossível falar sem um sotaque. Há várias ra­
zões para as diferenças de sotaque. No inglês, a maior parte dos
sotaques é regional. Os falantes de inglês como segunda língua
também têm sotaques decorrentes de suas características regio­
nais e de sua língua nativa. As diferenças de sotaque frequente­
mente se correlacionam com outros fatores: origem social e de
classe, religião, nível educacional e posição política (Asher, 1994,
p. 9). Mesmo que, do ponto de vista linguístico, todos os sotaques
sejam igualmente importantes, nem todos os sotaques possuem
igual valor social e político. As pessoas utilizam os sotaques para
julgar não somente o posicionamento social dos falantes, mas tam­
bém suas personalidades. Dependendo do sotaque, alguns falantes
podem ser considerados regionais, caipiras, vulgares, feios ou cô­
micos, ao passo que outros podem ser tidos como educados, de
classe alta, sofisticados, bonitos e distintos. O sotaque, portanto, é
uma das marcas mais pessoais e poderosas de identidade de grupo
e de solidariedade, assim como de diferença individual e de perso­
nalidade. As principais notícias das redes internacionais de televi­
são e de rádio nacionais são norm alm ente proferidas com o sota­
que “oficial”, ou seja, o sotaque que é considerado padrão, neutro
e isento de valores.
No cinema, o sotaque padrão, neutro, isento de valor, repre­
senta o cinem a dom inante produzido pelo modo de produção
predominante na sociedade. Isso exemplifica o cinema clássico e
o novo hollyw oodiano, cujos film es são realistas e pretendem
ser somente um entretenim ento, portanto, livres de ideologia ou
sotaque. Por essa definição, todos os cinemas alternativos têm sota­
que, mas cada um aparece de certa forma específica, o que o faz dis­
tinto. O cinema discutido aqui obtém seu sotaque de seus modos
de produção artesanal e coletivo e das localizações desterritorializadas
dos cineastas e dos públicos. Consequentemente, nem todos os fil­
mes estrangeiros são exilados e diaspóricos, mas todos os filmes
exilados e diaspóricos têm sotaque. Se na linguística o sotaque per­
tence somente à pronúncia, não envolve a gramática e o vocabulá­
rio, o sotaque diaspórico e de exílio permeia a estrutura profunda
do filme: sua narrativa, estilo visual, personagens, assunto, tema e
enredo. Assim, o estilo com sotaque no filme funciona tanto como
acento (sotaque) quanto dialeto na linguística. As discussões so­
bre sotaques e dialetos são geralmente confinadas à literatura oral
e às apresentações faladas. Pouco foi escrito - além da acentuação
tipográfica das palavras - sobre o que Taghi Modarressi chamou
de “escrita com sotaque” (1992, p. 9).
Em seu nível mais rudimentar, a produção de filmes com so­
taque envolve personagens dublados e atores que falem com um
sotaque literal. No cinema hollywoodiano clássico, os sotaques dos
personagens não são um indicador confiável da etnia dos atores.
No cinema estrangeiro, entretanto, os sotaques dos personagens
são, com frequência, étnicamente codificados, pois, neste cinema,
mais frequentemente do que nunca, a etnia do ator, a etnia do
personagem e a etnia da persona da estrela coincidem. Entretanto,
em alguns desses filmes, a coincidência é problematizada, como nos
filmes epistolares de Chantal Akerman (Notícias de Casa, 1976) e
Mona Hatoum (Measures o f Distance, 1988). Em cada um desses
trabalhos, uma filha diretora lê, com sotaque inglês, as cartas que
recebeu da mãe. O público pode supor que são as vozes das mães
(completa coincidência entre os três sotaques), mas já que nenhum
dos filmes declara qual voz estamos ouvindo, a coincidência é sub­
vertida e os espectadores devem especular sobre o verdadeiro re­
lacionamento do sotaque com a identidade, a etnia e a autentici­
dade do falante ou confiar na informação extratextual.
Uma das grandes privações do exílio é a deterioração gradu­
al e a perda potencial da língua materna, pois a língua serve para
moldar não somente a identidade individual, mas também as iden­
tidades regionais e nacionais anteriores ao deslocamento. Amea­
çados por essa perda catastrófica, muitos diretores com sotaque
obstinadamente insistem em escrever os diálogos em suas línguas
originais - em detrimento da distribuição maior dos filmes. To­
davia, a maioria dos filmes com sotaque é bilíngue, até mesmo
multilíngue, multivocal e multiacentuada, como Calendar, de
Egoyan (1993), que contém uma série de monólogos no telefone
em uma dúzia de línguas não traduzidas, ou On Top o f the Whale,
de Raul Ruiz (1981), cujo diálogo é falado em mais de uma dúzia
de línguas, uma delas inventada pelo próprio Ruiz. Se o cinema
dominante é movido pela hegemonia do som sincrónico e por
um alinhamento rigoroso de falante e voz, os filmes com sotaque
são contra-hegemônicos, pois, como muitos, deixam de enfatizar
som sincrónico, insistem em narrações em primeira pessoa e, em
outras narrações dubladas proferidas com um forte sotaque do
país de imigração, criam lapso entre voz e falante e inscrevem no
dia a dia pausas não dramáticas e longos silêncios.
Os filmes com sotaque enfatizam fetiches visuais da terra na­
tal e do passado (paisagem, monumentos, fotografias, lembranças,
cartas) e também marcadores visuais de diferença e de pertencimento
(postura, olhar, estilo de roupa e comportamento). Eles acentuam,
de form a equivalente, o oral, o vocal e o musical - ou seja, sota­
ques, entonações, vozes, música e canções, que também demar­
cam identidades coletivas e individuais. Essas vozes podem per­
tencer a pessoas reais e fictícias, como a voz narrativa de Mekas
em seus filmes de reminiscencias; ou podem ser vozes fictícias
com o em Letter from Siberia, de Marker (1958), e em Sunless
(1982); ou podem ser vozes com sotaque, cuja identidade não está
firm em en te estabelecida, com o nos film es m encionados de
Akerman e Hatoum. Os quatro filmes de Sergei Paradjanov não
são som ente intensam ente visuais em sua encenação teatral e
marcada por tableaux vivants (quadros vivos), mas também pro­
fundamente orais da forma que são estruturados: como narrati­
vas orais que são contadas à câmera.
A ênfase em sotaques musicais e orais redireciona nossa aten­
ção da hegemonia do visual e da modernidade para a questão acús­
tica do exílio e a mistura de pré-modernidade e pós-modernidade
nos filmes. Tanto a polifonia quanto a heteroglossia localizam e si­
tuam os filmes como textos diferentes cultural e temporalmente.
Cada vez mais, os filmes com sotaque estão usando a tela
como uma placa para a escrita, na qual aparecem múltiplos textos
nas línguas originais e na tradução na forma de títulos, legendas,
intertítulos ou blocos de texto. A manifestação caligráfica desses
textos deixa de enfatizar a questão visual, ao mesmo tempo em que
enfatiza a textualidade e as questões de tradução e de arte intercultural.
Por serem multilíngues, os filmes com sotaque requerem legendas
extensas somente para traduzir os diálogos. Entretanto, muitos de­
les vão além disso, ao experimentar a tipografia na tela como um
modo suplementar de narração e expressão. Os filmes Lost, Lost,
Lost, de Mekas, Nome Vet, Sobrenome Nam, de Trinh, e History
and Memory, de Tajiri (1992), possuem múltiplas apresentações
de textos em inglês na tela ligados, de forma complicada, com o
diálogo e com as vozes narrativas, as quais possuem também pro­
núncia com sotaque. Nos casos em que o texto na tela é escrito em
línguas “estrangeiras”, como em Homage by Assassination, de
Suleiman (1991), e em Measures o f Distance, de Hatoum, que apre­
sentam palavras em árabe, o sotaque oral é complementado por
um acento caligráfico. A inscrição desses acentos visuais e orais
transforma o ato de assistir ao filme, de somente assistir, em assis­
tir e literalmente ler a tela.
Ao incorporar voz narrativa, tratamento direto, multilínguas
e multivozes, os filmes com sotaque, particularmente a variedade
epistolar, desestabilizam o narrador onisciente e o sistema narra­
tivo do cinema e do jornalismo dominantes. As cartas dos filmes
frequentemente contêm o tratamento direto dos personagens (ge­
ralmente na primeira pessoa do singular), o discurso indireto do
diretor (como o contador da história) e o discurso indireto livre
do filme no qual a voz direta contamina a indireta. Calendar; de
Egoyan, combina todos esses três discursos para criar confusão
com relação a que está acontecendo, quem está falando, quem está
se dirigindo a quem, quando o fotógrafo diegético e sua esposa
na tela (representada pela esposa real de Egoyan) se retiram e onde
as pessoas históricas de Atom Egoyan e Arsinee Khanjian com e­
çam. O estilo com sotaque em si é um exemplo de discurso indire­
to livre para forçar o cinema dominante a falar em um dialeto
minoritário.
O estilo com sotaque não é um gênero de filme totalmente
reconhecido e aprovado, e os diretores do exílio e da diáspora
nem sempre fazem filmes com sotaque. De fato, a maior parte
deles gostaria de estar no lugar de Egoyan, mover-se dos nichos
do cinema marginal para o mundo do cinema de arte ou, até mes­
mo, para o cinema popular. O estilo permite aos críticos rastrearem
a evolução do trabalho não só de um diretor, mas também de um
grupo. A produção de filmes asiático-americanos tem gradualmen­
te evoluído de um foco étnico para uma sensibilidade diaspórica
e de exílio, enquanto os cineastas iranianos exilados evoluíram
em direção a uma sensibilidade diaspórica. Essas evoluções sinali­
zam a transformação tanto dos diretores quanto de seus públicos.
Elas também sinalizam a apropriação dos cineastas, de seus pú­
blicos e de certas características do estilo com acento pelo cinema
dominante e por seus produtos independentes. Uma vez que o
estilo vai além do conhecimento para situar os cineastas dentro
de suas formações, locações culturais e práticas cinemáticas, o
estilo com sotaque não é nem hermético, nem homogêneo ou
autônomo. Ele corre em linhas sinuosas e evolui. É um elemento
inalienável do processo social material e do modo de produção
diaspórico e de exílio.

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Outras m argens, outros centros:
algumas notas sobre o cinema
periférico con tem porân eo

Angela Prysthon

O sucesso recente de algumas cinematografias nacionais ou


regionais (caso, por exemplo, do cinema iraniano e do asiático na
década de 1990, ou do cinema latino-americano nos últimos cin­
co anos) faz com que lembremos muito vividamente da década
de 1960 e dos movimentos culturais que refletiam as profundas
transformações pelas quais o mundo estava passando na época.
Das novas ondas aos novos cinemas, passando pelos neorrealismos
e cinemas livres, especialmente a partir do final da década de 1950,
o cinema (e o estudo do cinema também pode ser incluído numa
percepção mais abrangente do fenômeno) passou a ser fortemen­
te marcado pela política, pelo engajamento, pela dissidência, pela
opção pelas “margens”. Desde uma personagem como a adoles­
cente da classe operária inglesa Jo (Rita Tushingham), de Um gos­
to de mel (Tony Richardson, 1961, Inglaterra), que engravida de
um marinheiro negro e emula um “casamento” com um jovem
estudante gay, até o judeu Ariel (Daniel Hendler), de O abraço
partido (Daniel Burman, 2004, Argentina), com a sua vontade
de se tornar “polaco”, passando pela denúncia dos filmes mais
explicitamente políticos e chegando à representação da política
das minorias contemporâneas. Nessa, em certo sentido, ao longo de
todas essas décadas, o conceito de Terceiro Mundo e o radicalismo
a ele associado foram sendo transpostos ao cinema (alguns cine­
astas e teóricos ainda usam o termo “Terceiro Cinema” para se
referir ao cinema dos países não desenvolvidos ou ao cinema fei­
to às margens da estética hollywoodiana).
Entretanto, é evidente que o atual interesse pelas cinemato­
grafias periféricas não pode ser completamente equacionado ao
espírito da contracultura e do cinema da década de 1960. É im­
portante sublinhar o que há de distinto na inclinação corrente
pelos discursos identitários no cinema contemporâneo. Para en­
tender o cinema contemporâneo, faz-se necessário relacionar as­
pectos históricos que consolidaram a ideia de Terceiro Mundo e
os fenômenos culturais que fizeram parte desse contexto. Tam­
bém se faz relevante delinear os movimentos que refletiam as pro­
fundas transformações pelas quais o mundo estava passando e que,
por sua vez, tam bém definiam o espírito da época de modo
paradigmático. Destacamos a influência que o conceito de Tercei­
ro Mundo teve para a construção dos imaginários cinematográfi­
cos (não apenas os cinematográficos, é evidente).
O termo “Terceiro Mundo” começou a ser utilizado por
demógrafos e geógrafos franceses na década de 1950 como a outra
peça no quebra-cabeças do mundo pós Segunda Guerra Mundial,
em relação a um primeiro mundo capitalista e ocidental e um se­
gundo mundo socialista. Nessa época, talvez com o valor de eufe­
mismo, ele substitui a ideia mais difusa, menos organizada e mais
traumática de “países pobres”. A partir das lutas de independência
das colônias europeias na África e na Ásia, o termo adquire um
certo prestígio. A unidade pretendida por ele traz, pois, em seu
bojo, uma dimensão revolucionária. A dimensão de relevar as di­
ferenças em prol de um ideal libertário legitimaria então a noção
de Terceiro Mundo. Na conferência de Bandung, em 1955, o ter­
mo teve a sua primeira expressão política oficial, quando se reu­
niram todas as nações “não alinhadas” - ou seja, nem ao primeiro
mundo, nem ao segundo (Harlow, 1987).
A concepção libertária de Terceiro Mundo foi favorecida por
paradigmas apresentados nos séculos e, principalmente, nas déca­
das anteriores: pelo existencialismo, pelas leituras que o terceiro
mundo fez de Sartre, pelo próprio declínio do humanismo (Jameson,
1984). Um modelo estabelecido por Frantz Fanón, em Les damnés
dela terre>de 1963, obra precursora, em certa medida, da unidade,
do “chamamento” ao Terceiro Mundo. Um chamamento de luta, de
violência, de uma relativa rejeição dos cânones “ocidentais”: uma
tentativa de se livrar de certas concepções de cultura, sociedade, his­
tória, política. O impacto da visão de Fanon é notável por sua disse­
minação em todo(s) o(s) mundo(s) (especialmente no “terceiro”,
obviamente). A sua influência se deve tanto à sua teorização sobre
descolonização e violência, à sua apreensão do espírito da época e
à denúncia anti-imperialista que ele inspira, quanto à sua capaci­
dade de pensar essa descolonização como construção violenta, sim,
mas com fins utópicos.
Uma provável unidade terceiro-m undista possibilitaria a
atuação destacada do Terceiro Mundo no “mundo”, na ordem in­
ternacional. A voz coletiva desse legado de pobreza e exploração
se fez ouvir mais forte durante a década de 1960 e com as revolu-
ções vencedoras e com as fracassadas, que assustam e maravilham
este “mundo”. Desde o pós-guerra, a Nouvelle Vague francesa re­
voluciona esteticamente o cinema e o neorrealismo italiano e, al­
gum tempo depois, o Free Cinema britânico mostra uma Europa
quase terceiro-mundista: os estudantes em maio de 1968, o movi­
mento estadunidense contra a Guerra do Vietnã, os hippies
estadunidenses “instituindo” uma contracultura. O “mundo” viu
Cuba, as guerrilhas, Che, a revolução cultural chinesa: a cultura
mundial acabou sendo influenciada e acabou influenciando os mo­
vimentos políticos simultaneamente.
O conceito de Terceiro Mundo serve, a partir da década de
1960 - para além das delimitações eufemísticas e conservadoras da
geografia contemporânea - , para estabelecer uma unidade de cunho
libertário e idealista. Os processos de descolonização, de
conscientização social e de luta política, desencadeados no globo ao
longo deste período, não se esgotam em si mesmos: eles fazem parte
da grande crise da modernidade que implica também uma reorga­
nização (ou desorganização) cultural em todos os cantos do globo.
Uma das mais diretas e evidentes influências da consciência tercei­
ro-mundista (e todas as suas implicações) foi a própria constituição
da ideia de Terceiro Cinema.
De acordo com a ideia de transformação da sociedade pela
conscientização trazida à tona pelos ideais terceiro-mundistas, os
principais temas dos filmes do Terceiro Cinema serão a pobreza, a
opressão social, a violência urbana das metrópoles inchadas e m i­
seráveis, a recuperação da história dos povos colonizados e oprimi­
dos e a constituição das nações. Os praticantes do Terceiro Cinema
se recusam a adotar um modelo único de estratégias formais ou a se
transformarem em um “estilo” embora isso não tenha significado
que eles estivessem alheios ao cinema mundial e à ideia de um
modelo, se aberto, ao menos em linhas gerais, unificador.
Além de buscar os temas nas esferas marginalizadas da socieda­
de, estes cineastas demonstram laços estilísticos estreitos com o
neorrealismo italiano e a Nouvelle Vague francesa. Tais influências
serão sentidas em dois níveis principais: o neorrealismo italiano
serve como proposta similar de abordagem formal, que pode ser
aproveitada por sua simplicidade, baixo custo e linguagem direta;
e a Nouvelle Vague como afirmação do “cinema de autor”, o que
possibilita a consolidação das linguagens individuais dos princi­
pais expoentes do movimento. A partir desses elementos, emerge
um conjunto de procedimentos mais ou menos comuns à maio­
ria dos diretores engajados na denúncia social.
Por um lado, técnicas abertas e simples (em contraste com a
sofisticação tecnológica do modelo de estúdios hollywoodianos);
por outro, a veiculação de ideias complexas e revolucionárias,
como a liberação terceiro-mundista, as teorias do subdesenvol­
vimento etc. O Terceiro Cinem a pode ser visto, assim, como
um statement sobre o cosm opolitism o de duas vias: primeiro,
como interpretação latino-am ericana das últimas tendências es­
téticas europeias (cosm opolitism o “à moda antiga”) com o o
neorrealismo e a Nouvelle Vague; segundo, como negação desse
cosmopolitismo tradicional, no qual existe um centro metropoli­
tano definindo o que os povos subalternos devem fazer. No Ter­
ceiro Cinema, os destituídos são colocados no centro. A atitude é
de rebeldia, e não apenas a rebeldia estética, mas a rebeldia políti­
ca e de ação social.
É irrefutável que o Terceiro Cinema, que teve na América
Latina seus primeiros e talvez mais eminentes cineastas e teóricos
(Fernando Solanas e Octavio Getino na Argentina, Glauber Rocha
no Brasil, Jorge Sanjinés na Bolívia) (Dissanayake; Guneratne, 2003,
p. 3), teve seu período áureo exatamente na mesma época em que o
chamamento terceiro-mundista ecoava com mais força, ou seja,
durante a década de 1960, ápice da contracultura e momento crucial
de formação, prática e teorização de uma “estética geopolítica”
(Jameson, 1995). Assim como as utopias terceiro-mundistas fo­
ram definhando ao longo da década de 1980, também a noção de
Terceiro Cinema foi gradualmente perdendo lugar (tanto nas sa­
las de exibição quanto na própria pesquisa na área de cinema e
audiovisual).
A década de 1980 foi quase definitiva para o terceiro-mundismo
(para o conceito de Terceiro Mundo, para a estética terceiro-mundista,
para a prática revolucionária terceiro-mundista que restou dela).
Primeiro porque foi a partir dessa década que se questionou teori­
camente com mais ênfase a validade do termo, justamente a partir
dos Estudos Culturais e do pós-colonialismo. Também na década
de 1980, começamos a assistir ao caos do segundo mundo, culmi­
nando na sua “dissolução” como segundo mundo, simbolizada
pela queda do Muro de Berlim em 1989. O não alinhamento às
grandes potências se esgotou como estratégia de resistência e opo­
sição ideológica. Por isso, também, a estética terceiro-mundista
radical pereceu e outras “terceiras margens” foram buscadas, já que
não parecia funcionar mais a apologia do oprimido. Talvez tenha
acontecido a desilusão final do Terceiro Mundo como categoria
unificada e indivisível:
The term Third World\ post-colonial critics insist, was quite
vague in encompassing within one uniform category vastly
heterogeneous historical circumstances and in locking in fixed
positions, structurally if not geographically, societies and
populations that shifted with changing global relationships.
(Dirlik, 1994, p. 3 3 2 )1.

Diálogos contemporâneos

Se a década de 1980 representa uma espécie de vácuo para o


Terceiro Cinema (e para a estética terceiro-mundista) como um todo,
a segunda metade da década de 1990 significou a reemergência
de muitas das questões ligadas ao imaginário político-social das
décadas de 1960 e 1970. Entretanto, o que podemos chamar de
“reinsurgência da periferia” ou “reencenação da subalternidade” se
deu de maneira muito distinta do discurso engajado precedente.
Poderíamos dizer que, de maneira geral, a década de 1980
foi um período que não parecia fazer parte do dominante cultural
dos principais países “terceiro-mundistas” produtores de cinema
(em especial a América Latina). A representação de aspectos polí­
ticos, a tematização das identidades nacionais e das realidades mais
desoladoras foram quase que totalmente abandonadas, e, quando
ainda se insistia numa temática mais próxima àquela do Terceiro

1. “O term o Terceiro Mundo, os críticos pós-coloniais insistem , era um tan to vago


ao abarcar num a categoria unitorm e circunstâncias históricas am plam ente hete­
rogêneas e ao colocar em posições estrutu ralm ente fixas sociedades e populações
que se deslocaram com as relações globais cam biantes.”
Cinema original, o resultado refletia uma espécie de esvaziamento.
Contudo, a retomada evidenciada na década de 1990 representa
menos uma drástica mudança e mais um gradual amadurecimento
dos preceitos culturais (e até teóricos) anteriores. As próprias ten­
dências acadêmicas mundiais rumo a uma valorização do ex­
cêntrico, do periférico, do marginal (Bhabha, 1998) tiveram um
efeito revigorante sobre os cinemas nacionais. Até mesmo os reno­
vados paradigmas filosóficos e sociológicos trazidos à tona pelos
Estudos Culturais e teorias pós-coloniais, embora de forma m ui­
to lateral e específica, contribuíram não apenas para o redespertar
do interesse no agora chamado World Cinema^ mas para revitalizar
os instrumentos de leitura e recepção dos filmes.
Pois, se do ponto de vista teórico parece evidente que um dos
elementos mais essenciais no campo cultural nas últimas décadas
do século XX é o descentramento - em vários sentidos e não apenas
no territorial (descentramento do sujeito e das identidades provo­
cado pela fragmentação social, descentramento geográfico facilita­
do pelo desenvolvimento tecnológico, e descentramento cultural
favorecido pelas tendências multiculturalistas e pelos diálogos
interculturais que se intensificam a partir da década de 1980) - , o
impacto da gama de processos que redimensiona o papel da peri­
feria, das margens e do Terceiro Mundo na história e na teoria vai
ser igualmente indiscutível no estabelecimento e na consolidação
de estéticas cinematográficas alternativas.
Os descentramentos (teóricos, estéticos e materiais) supõem
também a dissolução de fronteiras, de heterogeneidade cultural,
de interpenetração de discursos, de diálogo entre “mundos”. Mun­
do tecnológico e mundo natural. “Primeiro” e “terceiro” mundos.
Global e local. Universal e regional. Metrópoles e aldeias. Ociden­
te e Oriente. Discursos “originais” e hibridismos. Cânones e mar­
gens. Territórios que se sobrepõem uns aos outros, interstícios
constantemente ampliados. Um encontro, um diálogo tenso entre
mundos que às vezes se opõem e às vezes se complementam. Uma
política de diferenças vai sendo engendrada por meio de comple­
xas negociações, sobreposições e deslocamentos culturais. Os
descentramentos da sociedade contemporânea vão tendo, natu­
ralmente, um forte impacto na maneira como se vive, se pensa e se
constrói a noção de diálogo intercultural. São complexos proces­
sos de “realinhamento de fronteiras” que afetam profundamente
não apenas a produção cultural contemporânea, mas a forma de
pensá-la, de analisá-la e de catalogá-la.
O cinema periférico tem emergido nos últimos anos como
uma espécie de moda cultural dos grandes centros. Está quase que
automaticamente preservado o “direito de exibição” por essas “de­
nominações de origem”. Esse lugar de destaque - conquistado so­
bretudo a partir do final da década de 1990 e início da de 2000
com filmes como O balão branco (Jafar Panahi, 1995, Irã); Cen­
traldo Brasil(Walter Salles, 1998, Brasil), Amores Brutos (Alejandro
González Iñarritú, 1999, México), Nove rainhas (Fabián Bielinsky,
1999, Argentina), Amor à flor da pele (Wong Kar-Wai, 2000, Hong
Kong) - não é definido por uma unidade estética ou temática (em­
bora possamos agrupar algumas recorrências, evidentemente, ao
longo das duas últimas décadas), mas sim pela vaguíssima possi­
bilidade de redelineamento da noção de Terceiro Cinema através
do termo World Cinema e do conceito de multiculturalismo.
Entretanto, é possível enumerar e comentar (de modo talvez
excessivamente panorâmico e superficial) algumas características
do antes chamado Terceiro Cinema a partir da década de 1990.
Começamos notando que há urna busca explícita pela inserção
no mercado de cultura mundial; tal inserção está, de certo modo,
garantida pelo espirito do tempo, um momento bem propicio no
qual a cultura periférica não apenas passa a ser percebida pela cul­
tura central, como passa a ser consumida na metrópole, o ponto
em que a diferença cultural passa a ser encarada quase como estra­
tégia de marketing. Caso, por exemplo, do cinema latino-am eri­
cano, que, ao final da década de 1990, passa a ser rotulado de “Ci­
nema Buena Onda” por certa imprensa internacional2. Em alguns
filmes e cineastas, fica evidente a forte inclinação para o passado,
numa tentativa explícita de rearticulação da tradição, o que, m ui­
tas vezes, parece ser o sinal de urna nostalgia, o sintoma de urna
saudade cultural, como também pode ser a explicitação de um diá­
logo dessa tradição com a modernidade. Pode ser a subversão da
ideia de identidade nacional, tendo em vista um cosmopolitismo
ex-cêntrico. No cinema brasileiro, por exemplo, esta tendência vai
ser bem marcada, considerando especialmente a herança da estéti­
ca do Cinema Novo e as tentativas revisionistas da história recente

2. Várias revistas e veículos do m ercado cultural europeu reúnem diretores de o ri­


gem diversa, com o Fernando Meirelles, Pablo Trapero, Fabián Bielinsky, W alter
Salles etc., sob a égide de Cinema Buena Onda. Buena Ondaé tam bém o nom e de
uma das produtoras associadas do filme Família rodante(2 0 0 4 , A rgentina), de
Pablo Trapero, entre outros.
do país. Esse cinema apresenta, num direto contraponto à cultura
yuppie'yconsumista e frívola de um primeiro pós-modernismo
da década de 1980, uma tentativa de rearticulação com a tradição
e afirma constantemente as narrativas da nação, mas frequente­
mente procurando subverter noções fechadas sobre identidade.
O passado, a tradição, a história passam a ser material fundamen­
tal dessa produção cinematográfica.
Tais opções revelam uma espécie de segundo pós-modernis-
mo cinematográfico ligado ao Terceiro Cinema, em oposição ao
preexistente na década de 1980 (marcado pela superficialidade, pelo
artifício, pela influência estadunidense). Um pós-modernismo re­
gido pelos princípios de “recuperação”, de “reciclagem”, de “reto­
mada” da tradição, da história, e de um certo autoexotismo em
oposição ao gosto pelo estrangeiro, pelo cosmopolitismo tradi­
cional, pelo discurso intemacionalista do pós-modernismo da dé­
cada anterior. Nesse sentido, vão sendo definidas modernidades
periféricas. O caso do cinema asiático é especialmente notável
pela sofisticação visual com que essas versões alternativas da
m odernidade são apresentadas. Pensem os em film es com o
Oldboy (Chanwook Park, 2005) ou O gosto da melancia (Tsai
Ming-Liam, 2004) que, sem a urgência de rejeitar os cânones
narrativos hegemônicos e populares, pelo contrário, dialogando
muito diretamente com eles (no caso de Park, os filmes de aven­
tura e ação, o imaginário pós-moderno ocidental; no caso de
Ming-Liam, os musicais), vão estabelecendo novos paradigmas
estéticos - simultaneamente globais e locais - e redefinindo de
modo muito peculiar a ideia de pós-moderno.
Talvez a característica mais relevante do cinema periférico
contemporâneo seja justam ente a maneira com o ele se volta para
a documentação do pequeno, do marginal, do periférico, mes­
mo que para isso se utilize de técnicas e formas de expressão (às
vezes, até equipe de produção) de origem central, metropolitana,
hegemônica, marcando assim uma distância enorme da tradição
cinematográfica terceiro-mundista da década de 1960. A diferen­
ça, a história e a identidade periféricas, tal com o representadas
pelo cinema contem porâneo, se tornam peças constitutivas da
tentativa de integração ao modelo capitalista global. A ideia de
articulação periférica e da identidade nacional com uma roupa­
gem “globalizada” nesses filmes não só faz parte do establishment>
como mostra, de forma muito clara, o funcionam ento do merca­
do cultural globalizado.
Também a cidade desenhada pelo “novo” Terceiro Cinema
pouco tem a ver com os clichês recorrentes (um exemplo muito
interessante está na forma como Buenos Aires é representada no
filme Felizes juntos, do chinês Wong Kar-Wai, que mostra um ca­
sal gay, originário de Hong Kong, em férias em Buenos Aires; de­
pois de gastar todo o dinheiro que tinham, passam por uma série
de contratempos que os impede de voltar para a Ásia; a ideia parece
ter sido subverter o olhar, mostrar uma tradução asiática da Améri­
ca Latina, assim, tornando-se um dos exemplos mais bem acabados
de diálogo intercultural do cinema recente). E é precisamente atra­
vés de imagens urbanas pouco usuais e da opção estética pelo pe­
queno, pelo detalhe, pelo periférico que os filmes constroem uma
representação alternativa, mais plena de nuances e mais complexa,
do mundo contem porâneo. Rem ontando, em certa medida, à
temática do Terceiro Cinema original (desvalidos, subalternos,
excluídos), porém sem deixar de privilegiar os aspectos técnicos
do cinema (a maior parte da produção contemporânea periférica
tem imagem e som comparáveis às grandes produções do cinema
mainstream), o cinema periférico contemporâneo atualizaria o dis­
curso do terceiro-mundismo (ou seja, uma maneira pós-moder-
na de falar da subalternidade, do periférico), retirando dele o tom
politicamente engajado explícito, a “estética da fome” e a técnica
propositadamente limitada.
Enfim, a partir dessas notas mais gerais sobre o Terceiro Ci­
nema - ou cinema periférico contemporâneo - , vislumbramos
não somente a vaga delimitação de uma estética cinematográfica
contemporânea - uma estética da identidade e da diferença - , mas
uma espécie de dominante cultural que poderia ser diretamente
associado a outras esferas da cultura. O cinema tem sido, aliás, o
cerne de uma significativa parcela das publicações recentes na área
de Estudos Culturais (como Shiel; Fitzmaurice, 2006; Barber, 2002;
Vitali; Willemen, 2006; Grant; Kuhn, 2006; Badley; Palmer; Schneider,
2006; entre muitos outros). Há, portanto, um notável interesse das
teorias da cultura em dar conta dessa produção cinematográfica,
reconhecendo nela simultaneamente um corpus relevante de obje­
tos materiais do contemporâneo (passíveis de análise formal) e um
campo de representações (e muitas vezes também de práticas) de
subversão e resistência subculturais.

R e fe r ê n c ia s

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M Ó D U L O III
Enunciados de nacionalidade
e imaginários transnacionais
Cinema chinês no novo século:
perspectivas e problemas*'

Yingjin Zhang

Introdução: um sentimento de euforia

O ano 2005 foi celebrado com o o ano do centenário do ci­


nema chinês, e ninguém duvidaria do crescimento extraordiná­
rio do cinema da China continental no novo século (para não
tornar extensa a discussão, os cinemas de Hong Kong e de Taiwan
não são discutidos neste texto). Os números de produção e de bi­
lheteria corroboram um sentimento geral de euforia. Excluindo os
títulos feitos para a televisão, as produções anuais de filmes aumen­
taram quatro vezes, de 83, em 2000, para 330, em 2006. As receitas
totais de bilheterias também subiram de 960 milhões de renminbis
em 2000, para 2.620 milhões, em 2006,2enquanto a bilheteria de

* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N.T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Este artigo é uma versão traduzida d e“Chinese cinema in the New Century: Prospects
and Problems”, publicado em World Literature Today,; v. 81, n. 4, jul./ago. 2 0 0 7 .
2. Qianlong.com lançam ento em: 20 de janeiro de 2007. Disponível em : < h ttp ://
new s.qianlong.com /28874/2007/01/20/2502@ 3626854.htm >. Outras estatísticas ci­
tadas neste artigo são tiradas de várias fontes, tais com o Zhongguo dianyingnianjian
(o livro do ano dos filmes chineses), 2000-2004 - Beijing: Zhongguo dianying nianjian
filmes domésticos subiu de 280 milhões de renminbis, em 2000,
para 1.200 milhões, em 2005. Além disso, os novos registros de
bilheteria para os filmes domésticos foram estabelecidos um após
o outro. No fim de janeiro de 2002, O Funeral do Chefão (2001),
de Feng Xiaogang, obteve lucros de 11 milhões de renminbis em
apenas 40 dias,3 e continuou fazendo sucesso até atingir o recorde
de 42 milhões. Um ano mais tarde, H erói (2002), de Zhang Yimou,
tomaria conta do país e reivindicaria o maior recorde de todos os
tempos - 250 milhões de renminbis em exibição doméstica. O
Clã das Adagas Voadoras (2004), de Zhang Yimou, The Promise
(2005), de Chen Kaige, e The Banquet (2006), de Feng Xiaogang,
reconfirmaram a expansão aparentemente infinita do cinema chi­
nês, cada filme obtendo entre 140 e 170 milhões de renminbis
somente na China.
Apesar da euforia sobre as perspectivas de bilheteria, proble­
mas fundamentais continuam a constranger o cinema chinês, que
cresceu dentro de uma indústria assimétrica, forte em produção,
porém fraca em exibição. Se investigarmos os sucessos da bilhete­
ria doméstica anual, torna-se óbvio que muitos filmes de sucesso
são coproduções financiadas em sua maioria por capital estran­
geiro, e alguns dos dez de maior sucesso poderiam até mesmo
ser um fracasso quando os custos de produção e promoção são
contabilizados. Além disso, a definição de “filme nacional” se tor­
na questionável quando a coprodução estrangeira está envolvida. De

chubanshe, 2001-2005), assim como artigos em revistas acadêmicas Dangdaidianying


(Cinema contemporâneo) e Dianyingyishu {Filme arte) poucos anos atrás.
3. Ver: Zhang, Yingjin. Chinese National Cinema. London: Routledge, 2004. p. 292.
fato, a Columbia Ásia esteve por trás de vários sucessos “nacionais”,
como O Funeral do Chefão, de Feng Xiaogang (estrelando
Donald Sutherland), e Cell Phone (2003), Guerreiros do Céu e da
Terra (2003), de He Ping, e Kung-fusão (2004), de Stephen Chiau,
investindo de um a quatro milhões de dólares em cada título, exceto
em Kung-fusão.^ Realmente, em 2003, sem considerar as duas
coproduções da Columbia Ásia, o capital de Hong Kong estava por
trás de seis das dez produções, embora as produções de Hong Kong,
tais como, Kung-fusão, não possam legitimamente contar como pro­
duções continentais. O envolvimento em grande escala de Hong
Kong e de Hollywood na produção de filmes continentais nos faz
lembrar que o cinema chinês tem sido completamente fortalecido
por fluxos de capital transnacional, que facilitam o recrutamento
do elenco típico de estrelas multinacionais da China continental, de
Hong Kong, Taiwan, Japão, Coreia do Sul e, até mesmo, de
Hollywood. Por outro lado, os sentimentos nacionalistas estão em
alta, pois autoridades chinesas e estudiosos seletivamente usam a
bilheteria das coproduções para fortalecer a explosão econômica
do país.
Neste breve levantamento, começo com a coprodução de
alto orçamento como o desenvolvimento mais espetacular no
novo século. Volto também minha atenção para outras novas ten­
dências interessantes, tais como, o trânsito de duas vias dos filmes
alternativos e comerciais em uma tentativa de mapear perspecti­
vas e problemas no campo dinâmico do cinema chinês.

4. Hong, Yin; Qingsheng, Zhan. “2005 Zhongguo dianying chanye beiwang” (Memo­
rando sobre a indústria de tilines chineses em 2005), Dianyingyishu, n. 2, p. 11,2006.
Produção e exibição transnacional

Em meu mapeamento anterior do cinema chinês pré-2000,


aponto quatro tipos principais de produção de filmes: cinema al­
ternativo (pouco conhecido e independente), cinema de arte (ci­
nema autoral), cinema comercial (entretenimento) e cinema com
propósito político (propaganda com patrocínio do Estado).5No
novo século, o governo reduziu seu investimento monetário na
propaganda via filmes, e o cinema com propósito político gradu­
almente perdeu seu espaço no mercado, embora alguns títulos ain­
da conseguissem chegar à lista dos dez filmes mais bem-sucedidos
com forte apoio governamental, tais como, Decisão Fatal {2000) e
D eng Xiaoping (2003).6Em vez de investir dinheiro, o governo
agora regula o mercado de filmes, ao estimular empresas privadas a
participar da produção e a competir com os sucessos de Hollywood.
O resultado imediato é a eufórica “era dos campeões de bilhete­
ria” ( dapian shidai), quando os investimentos não governamen­
tais sobre as produções alcançaram 75% em 2005.
Sem dúvida, Hollywood é a primeira fonte de inspiração
para os filmes de sucesso chineses. Há uma década, quando a
China começou a importar os sucessos de Hollywood já com

5. Zhang, Yingjin. Industry and Ideology: a Centennial Review of Chinese Cinema.


WorldLiterature Today, n. 3-4, p. 8-13, Oct./Dec. 2003.
6. Desde 1995, Dianyingyishu tern publicado a classificação anual dos dez filmes
chineses de maior sucesso, mais frequentemente na terceira edição de cada ano, às
vezes com receitas de bilheteria aproximadas.
compartilhamento de receitas, os cineastas chineses foram rápidos
na resposta, ao assegurar financiamento privado (incluindo Hong
Kong) para alguns filmes de arte de alto orçamento, como The
Emperors Shadow (1996), de Zhou Xiaowen, que custou 40 mi­
lhões de renminbis na produção. Ainda assim, em 2005, The
Promise ostentava uma produção recorde de 310 milhões de
renminbis, ultrapassando os custos de Herói em 70 milhões de
renminbis. Certamente, investimentos extravagantes como esses
trouxeram resultados espetaculares: em 2004, quando a China im­
portou 21 filmes hollywoodianos (comparados com dez ou me­
nos antes de 2000), os filmes nacionais ultrapassaram os filmes es­
trangeiros em exibição e asseguraram 55% da fatia de mercado (que
subiria para 60% em 2005). A bilheteria nacional de O Clã das Ada­
gas Voadoras (150 milhões de renminbis) bateu a do O Senhor dos
Anéis III(87 milhões de renminbis) em 2004 e, dessa forma, sinali­
zou uma virada no destino do cinema feito na China.7
A corrida para produzir filmes de sucesso chineses é moti­
vada pela convicção dos produtores dominantes de que os filmes
de alto orçamento são a única forma de assegurar retorno finan­
ceiro em um ambiente de negócios arriscado. A coprodução, por­
tanto, constitui uma estratégia de compartilhamento de riscos, e,
devido a isso, seus números cresceram continuamente de 16,
em 2002, para 38, em 2004. São dois os objetivos principais:
atrair capital de Hong Kong e de outros lugares e entrar nos

7. Hong,Yin; Xiaoteng,Wang.“Zhongguo dianying chanye beiwang” (Memorando


sobre a indústria de filmes chinesa), Dangdaidianying, n. 2, p. 24,2005.
mercados estrangeiros em parceria com distribuidores internacio­
nais credenciados. Após o sucesso inesperado de O Tigre e o Dragão
(1999), de Ang Lee, que arrecadou 128,1 milhões de dólares somen­
te nos Estados Unidos, os diretores chineses perceberam que os mer­
cados estrangeiros continuam sendo um território novo a ser con­
quistado na era da globalização. Na carona das artes marciais, Herói
facilmente recuperou seus custos de produção de 240 milhões de
renminbis, quando recebeu 53,71 milhões de dólares nos Estados
Unidos e 132,53 milhões de dólares pelo mundo (taxa de câmbio
de 1 dólar = RMB 8.3).8A atração pelos grandes lucros foi tanta que
Feng Xiaogang abandonou sua marca de estilo comédia, que fez
dele a bilheteria chinesa mais consistente desde o final da década de
1990, para dirigir um filme de época deslumbrante, The Banqueta
que se parece mais com H erói e The Promise e menos com as
comédias anteriores meio amargas centradas em moradores comuns
da cidade.
O problema com os recentes filmes de sucesso chineses é seu
conteúdo altam ente superficial in crem en tad o com efeitos
audiovisuais fascinantes, incluindo a atuação de estrelas do cinema
e efeitos especiais digitais de última geração. Invariavelmente fil­
mados na China antiga, esses filmes épicos tentam atingir muitas
coisas ao mesmo tempo: arquitetura e paisagens espetaculares,

8. Rosen, Stanley. Chinese Cinema in the Era of Globalization: Prospects for Chinese
Films on the International Market, with Special Reference to the United States. In:
Retrospective and Outlook. International Forum for the Centennial Anniversary of
Chinese Cinema,ed. China Film Archive, uma conferência, Pequim, Dec. 2005. p. 570.
figurino e cenário coloridos, habilidades sobre-humanas de ar­
tes marciais, música e danças sensuais, assim como rostos e cor­
pos femininos bonitos. Um triângulo romântico banal é inseri­
do na narrativa, com pouca ou nenhuma lógica e com diálogos
desinteressantes, até mesmo embaraçosos. Sexo e violência domi­
nam a tela, mas mitos antigos não conseguem disfarçar a cumplici­
dade ideológica dos sucessos recentes com o poder dominante, sua
ambição imperial e decadência.
Ironicamente, igualmente espetacular como os recordes de
bilheteria dos sucessos chineses é sua condenação difundida entre
o público chinês. Espectadores desapontados desabafam sua raiva
na internet, e os críticos expressam sua insatisfação na mídia. Cer­
tamente, os filmes de sucesso se tornaram eventos midiáticos na­
cionais no novo século: oferecem não somente entretenimento, mas
também um convite para o público participar dos debates públi­
cos. De qualquer forma, os filmes bem-sucedidos recebem muita
atenção, enquanto seus produtores e exibidores alegremente con­
seguem a publicidade de que precisam.

Entre o alternativo e o sucesso comercial

Outro tipo de exibição transnacional é buscado no âmbito


alternativo, pela produção independente de filmes de arte alterna­
tivos com o apoio moral e financeiro dos festivais de cinema inter­
nacionais e das empresas estrangeiras sem fins lucrativos. Assim
como os filmes de sucesso almejam capital transnacional, os direto­
res chineses independentes procuram fama internacional por meio
da exibição transnacional de seus filmes desafiadores, às vezes sub­
versivos. Na pista do sucesso dos primeiros cineastas da sexta
geração, na década de 1990, novos talentos chineses surgem qua­
se todo ano em festivais de cinema internacionais, em filmes de
ficção (por exemplo, Enter the Clowns [200 \], de Cui Zi’en, Blind
Shañ [2001 ], de Li Yang, e Red Snow [2006], de Peng Tao), assim
como em documentários (por exemplo, Along the Railroad\2000\,
de Du Haibin, West o f the Track [2001 ], de Wang Bing, e The Box
[2001] de Ying Weiwei).
Entretanto, a mudança recente mais importante na produ­
ção de filmes alternativos é a via de mão dupla entre o alternativo
e o sucesso comercial. Depois de lançar dois filmes aprovados pelo
estado em 1999, Zhang Yuan se tornou comercial e dirigiu I Love
You (2002) e Chá Verde (2003), este último trazendo as grandes
estrelas Jiang Wen e Zhao Wei e o fotógrafo de fama internacional
Christopher Doyle. Wang Xiaoshuai, por outro lado, prefere se mo­
vimentar entre o alternativo e o comercial. Depois de seu sucesso
com uma coprodução transnacional, Bicicletas de Pequim (2001),
Wang dirigiu um filme alternativo, À Deriva (2003), e retornou
para um projeto aprovado pelo estado, Sonhos com Shangai
(2005). Seguindo seus passos, Jia Zhangke completou sua trilogia
alternativa de Shanxi com Plataforma (2000) e Prazeres Desco­
nhecidos (2002) e, então, inesperadamente, lançou O Mundo
(2004), aprovado pelo estado, e Em Busca da Vida (2006). Ambos
os filmes, entretanto, conseguiram manter sua solidariedade ca­
racterística pelas pessoas necessitadas. Todavia, a reputação desses
diretores ainda tem mais peso no exterior que na China, embora
Zhang Yuan tenha gradualmente perdido sua posição vanguardista
no exterior.
O novo século é testemunha de uma produção esporádica
daqueles diretores da sexta geração que ficaram no sistema estatal e
dirigiram filmes de arte de baixo orçamento. Antes de Feng Xiaogang
se interessar por coproduções de sucesso, ele se apresentava como
um diretor informal e foi o produtor executivo de Cala, My Dog
(2003), de Lu Xuechang, que foi elogiado pelos críticos como urna
alternativa para os sucessos comerciais de Zhang Yimou, ao enfocar a
vida cotidiana, ordinária, de um anti-herói. Os companheiros de Lu
da sexta geração, diretores, tais como, Guan Hu e Li Xin, também
dirigiram filmes com visões autorais persistentes, mas seu impacto
sobre o mercado é mínimo.
Outro novo desenvolvimento é a tentativa de direção pelos
famosos cineastas da quinta geração: o début da direção de Gu
Changwei, Peacock (2004), oferece um olhar idiossincrático so­
bre uma cidade provinciana e pequena na década de 1970, en­
quanto Mulheres de Jasmim (2004), de Hou Yong, registra as mu­
danças culturais em Shangai desde a década de 1930 até a de 1980,
através de quatro gerações de relacionamentos entre mães e filhas.
O tema “memória” é igualmente forte em uma nova diretora, Xu
Jinglei, cujos Meu pai e eu (2003) e Carta a uma mulher desco­
nhecida (2004) estabelecem-na como uma diretora versátil que
escreveu seus próprios roteiros e atuou como atriz principal. Uma
outra diretora jovem é Li Yu, que segue a trajetória recente de di­
retores independentes ao dirigir O peixe e o elefante (2001), um
filme alternativo sobre um casal de lésbicas, e Dam Street (2005),
um filme comercial filmado em uma cidade provinciana e rico
em cores locais. Duas diretoras veteranas continuaram suas car­
reiras: Li Shaohong passou de sua interpretação realista em The
RedSuit{2000) para um filme de fantasia, Baober in Love(2004),
enquanto Ning Ying expandiu suas aventuras urbanas em Eu amo
Pequim (2000) e em Movimento Perpétuo (2005).
Entre outros diretores famosos, Huo Jianqi impressionou
críticos com seus filmes de alta qualidade: Amor azul (2000), Life
Show(2002) e Nuan (2003). Os dois primeiros tratam da mudan­
ça do éthos urbano, e o último atinge uma bilheteria impressio­
nante no Japão. Consciente ao experimentar a mistura de gêneros
e a fertilização intermidiática, Lu Chuan brinca com histórias de
detetive e suspense em A armaperdida (2002) e, subsequentemente,
com aventura e meio ambiente em Kekexili (2004), um filme de
tirar o fôlego, parcialmente patrocinado pela National Geographic;
Li Xin brinca com a fantasia urbana no multissegmentado Dazzling
(2002); Meng Jinghui integra o teatro do absurdo, humor negro e
sequências animadas em Chicken Poets (2002); e Ning Hao mes­
cla ação, comédia e história de detetive em Pedra Louca (2006),
um filme surpreendentemente popular coproduzido pela Focus
Film, de Andy Lau (Hong Kong) e pela Warner China Film HG
Corporation, o primeiro empreendimento comercial de produ­
ção conjunta da China envolvendo diretamente um investimento
de Hollywood.
Enquanto a quarta geração gradualmente desapareceu da li­
nha de frente da produção de filmes no novo século, nem todos os
diretores da quinta geração foram atrás do gênero “sucesso comer­
cial”. Huang Jianxin, por exemplo, continua sua exploração urbana
em A Certidão de Casamento (2001), embora tenha abandonado a
sátira amarga característica de seus filmes do início da década de
1990 e optado pelo humor suave e sentimental, o que provavel­
mente ajudou o filme a chegar ao sexto lugar entre os dez maiores
sucessos do ano. A carreira de Tian Zhuangzhuang é mais com­
plicada, mas, como vários dos protegidos da sexta geração, ele pre­
feriu ficar dentro do sistema estatal após ter sido banido da dire­
ção devido a The Blue Kite (1993). Ele só voltou a dirigir filmes
em Springtime in a Small Town (2002), uma refilmagem do clás­
sico homônimo de Fei Mu. Depois disso, dirigiu um documentário
financiado pelo Japão, Delamu (2004), que rastreia uma rota de co­
mércio feita a cavalo através das montanhas no sudoeste da China.

Conclusão: uma indústria assimétrica

O breve levantamento mencionado sobre as produções de


filme no novo século indica que não há falta de talentos no cine­
ma chinês. Um problema fundamental, todavia, é o fato de a maio­
ria das produções cinematográficas não ser exibida em cinemas
e, portanto, ficar sujeita a perdas financeiras a cada ano. Em 2004,
as receitas com exibição dos três filmes nacionais de maior suces­
so foram praticamente as mesmas dos outros 209 filmes nacio­
nais. Isso significa que a média de receita de bilheteria para 209
filmes foi de aproximadamente 2 milhões, ou 0,7 milhões depois
do acerto trilateral de participação na receita envolvendo distri­
buidores e exibidores. O custo dos filmes de mais baixo orçamento
oscila entre 1,5 e 3 milhões, e a marca de 5 milhões é frequentemen­
te considerada segura, abaixo seria difícil recuperar o investimen-
to da produção. Tendo em vista essa situação, 85% das produções
de baixo orçamento nunca foram exibidas e, portanto, nunca recu­
peraram os investimentos feitos. Obviamente, os investidores po­
dem pagar parte de seus custos de produção com direitos de vídeo,
solenidades de premiação e contratos com o canal de filmes CCTV.
O canal de filmes de propriedade do Estado, por outro lado, aventu­
rou-se em coproduções, e três de seus títulos coproduzidos ficaram
entre os dez mais em 2002. Ainda assim, com mais de dois terços dos
filmes perdendo dinheiro a cada ano, o cinema chinês é, pensando
positivamente, uma indústria assimétrica que, por sua vez, possui
uma base instável.
Estudiosos e pessoas da indústria cinematográfica listaram
outros problemas que restringem o cinema chinês, tais como, uma
difundida pirataria de vídeos, entradas de cinema com preços
exorbitantes (RMB 40-80), venda de bilhete no mercado informal
e ausência de um sistema de classificação que faz com que a cen­
sura seja uma questão imprevisível. O governo tratou de alguns
desses problemas instalando bilheterias computadorizadas e en­
corajando as casas de cinema a oferecer bilhetes pela metade do
preço às terças-feiras. Além disso, ouvem-se regularmente, na im­
prensa e em conferências acadêmicas, chamadas para estabelecer
cadas de cinema de arte. Entretanto, a indústria de filme permane­
ce insignificante em termos de contribuição financeira para o de­
senvolvimento econômico atual na China, e é fantasioso esperar
soluções rápidas para problemas que existem há décadas. Por en­
quanto, o governo está satisfeito em ver o capital transnacional
entrando e saindo do país, desde que poucas coproduções mante­
nham o cinema chinês no mapa global a cada ano e nenhuma pro-
dução maior desafie a legitimidade do regime comunista. Em graus
diferentes, os diretores de filme estão contentes, desde que investido­
res menores se disponham a apoiar seus projetos independente­
mente de retorno financeiro. Já os investidores menores - de em­
presas privadas a unidades governamentais - estão satisfeitos, desde
que seus sonhos de fazer filmes sejam realizados. Com grupos tão
diversos de investidores, muitos dos quais se juntam para fazer
um filme, a indústria cinematográfica chinesa não promete regula­
ridade nem estabilidade. Enfim, o poder do cinema chinês reside
menos em sua habilidade para gerar lucros além fronteiras, e mais
em sua produção e circulação de imagens que atraem um espec­
tro grande de públicos no país e no exterior.

Ano 2000* 2001* 2002* 2003* 2004* 2005* 2006*

Filmes nacionais 83 80 100 140 212 260 330

Taxa de crescimento - (3,61% ) 25% 40% 51,43% 22,64% 26,92%

Total de bilheteria em
960 840 900 1.000 1.570 2.000 2.620
milhões de renminbis

Taxa de crescimento - (12,5% ) 7,14% 11,11% 57% 27,39% 31%

Bilheteria de filmes
nacionais em milhões 280 294 - - 863,5 1.200 -

de renminbis

Total de bilheteria de
29,17% 35% - - 55% 60% -

filmes nacionais

Quadro 1 - Produções e exibição anual de filmes (2000-2004)


* As fontes das informações estatísticas do quadro constam nas notas de rodapé
deste artigo.
Ano / Titulo Diretor Produtora Custos de Bilheteria 3ilbeteria
classificação <PQ * Pequim, produção em nacional em estrangeira
HK * Hong Kong) milhões de milhões de EU A ) em
renminbis* renminbis* milhões de
dólares*
2000
1 Decisão Faiai Yu Benzheng Shanghai Studio - 130
2 Sorry’ Baby Feng Xiaogang Bcijmg Forbidden City* 13 43
Huayi Brothers, PQ Ifuayi
Film
3 Suspiro Feng Xiaogang Beijing Studio, - 30
Huayi Brothers
4 Banhos Zhang Yang X i’an Studio, 3 10 [1,16 milhões de
Imar dólares)

2001
1 O Funeral do Feng Xiaogang China Film Group. Huayi 29 42
Chefao Brothers, Columbia Asia
(US)
3 Roots and Yu Zhong Estúdio Tianshan, PQ 2 16 -
Branches Sihai Zongheng
2002
1 Herói Zhang Yimou PQ New Picture, Elite 240 250 132,53
Group (HK), Sil- [53,71 milhões de
Metropole (HK) dólares]
2 Together Chen Kaige China Film Group, 140
Century Hero, CCTV-
Movies, 2 I a' Century
Kaisheng
3 A Arma Perdida Lu Chuan China Film Corp, Huayi - 9 -
Brothers
6 I Love You Zhang Yuan X i’an Studio, B J Huayi 4 9 -

Film
2003
1 Cell Phone Feng Xiaogang China Film Group, Huayi 10 53
Brothers, Columbia Asia
(US)
2 Guerreiros do He Ping X i’an Studio, Huayi 38 12,05
Céu e da Terra Brothers, Taihe, Columbia
Asia (US)
18 Chá Verde Zhang Yuan PQ Huayi Film 10 8 -

2004
1 O Clã das Zhang Yimou PQ New Picture, Elite 290 150 60,24
Adagas Group (HK) [11,05 milhões de
Voadoras dólares]
2 Kung-fusão Stephen Chiau China Film Group, Huayi * 150 [17,11 milhões de
Brothers, Columbia Asia dólares]
(US)
3 Um Mundo sem Feng Xiaogang Huayi Brothers, Taihe, 120
Ladrões Media Asia (HK), PQ
Forbidden City
10 Baober in Love Li Shaohong PQ Rosat Film 42 14 -
19 Kekexili Lu Chuan Huayi Brothers, Columbia 10 5 0,8
Asia (US), National
Geographie World Film
(US)
2005
1 The Promise Chen Kaige China Film Group, 21 %
t 310 170 35
Century Kaisheng, [0,51 milhões
Moonstone (US) dólares pnmeiros
10 dias j
2006
The Banquet Feng Xiaogang Huayi Brothers, Media - 140 -
Asia (HK)

Q u a d r o 2 - Bilheteria anual de filmes n ac io n a is


* As fontes das informações estatísticas nos quadros estão indicadas nas notas anteriores.
Canibais viajantes*

Anelise Reich Corseuil


Renata R. Mautner Wasserman

Parte I: Canibalismo e histórias


sobre canibalismo

Antes de abordarmos os filmes que formam o núcleo deste


texto e que contam histórias sobre o consumo humano de carne
humana, poderíamos lembrar que, em tais histórias, tanto a ima­
gem quanto as implicações do canibalismo podem variar substan­
cialmente. As histórias sobre canibais são mais antigas que a pró­
pria palavra (que foi cunhada na época do contato de Colombo
com os ilhéus caribenhos), em mitos como o de Thyestes ou em
relatos de viagem sobre terras e povos longínquos, estranhos e as­
sustadores. As imagens de canibais, entretanto, são sempre uma
mistura do que é observado e do que é imaginado, em tempos dife­
rentes, para constituir o Outro - um imaginário coletivo da
alteridade. E, em particular, o canibal frequentemente representa

* Tradução de Raquel Maysa Keller. [ N.T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
aquela alteridade mais completamente alienígena, expressa em ter­
mos do que é considerado comestível.
Em Tristes Tropiques> seu relato semiautobiográfico de es­
tada no Brasil, Lévi-Strauss conta com o convenceu um índio
Caduveu a mostrar-lhe onde havia conseguido algumas larvas, tidas
como parte da dieta do seu povo. O índio não quis sequer admitir
que as comia, porque sabia que os brancos não as consideravam
comida aceitável, mas Lévi-Strauss finalmente o convenceu a mos­
trar-lhe o local e a planta de onde as larvas teriam sido retiradas.
Provou uma delas - e gostou. A história deixaria um inglês satis­
feito, porque poderia assim acusar o francês de com er coisas es­
tranhas e nojentas, mostrando como a diferença cultural é grifada
pela referência aos hábitos alimentares; de forma mais im portan­
te, entretanto, mostrando também que pessoas de todos os níveis
da cultura material estão conscientes de que a dieta, a distinção
entre o que é próprio e o que impróprio para comer, desempenha
um papel importante na definição da individualidade cultural e
da diferença em relação aos outros.10 Outro, em suma, é frequen­

1. O relato é encantador e sugestivo - o índio velho, últim o de sua tribo; os brancos


voluntariosos; a com ida nojenta que acaba sendo saborosa, um testem unho para o
conhecimento do índio e para a abertura do antropólogo em relação ao O utro:
“Ridicularizados pelos brancos por com er essas criaturas [koro, um tipo de larva], os
índios negam a acusação e não adm item gostar da com ida... Sendo assim, não é fácil
participar de uma busca por koró? Os antropólogos encontram “um índio febril, a
única pessoa na tribo abandonada”, o convencem de que eles querem com er as larvas
e íazem com que ele encontre algumas, e então eles o seguem : “enquanto o índio
olhava indiferentemente, eu degolei minha presa; do corpo jorrou um a substância
branca e gordurosa que consegui provar após exitar um p ou co; ela tinha a consistên­
cia e delicadeza da manteiga e o gosto de leite de coco”. Lévi-Strauss, Claude. Tristes
Trapiques. Traduçao john W eightm an. London: Penguin, 1974. p. 159-1 6 0 .
temente caracterizado como aquele que come o intragável, aquilo
que é nojento ou um tabu.
O mais extremo desses tabus, para um grande número de
sociedades, é o ato de comer carne humana: o canibalismo. Nos
primeiros, e às vezes imaginários, relatos de viagem - como os de
John Mandeville ou de Marco Polo - aparecem narrativas de po­
vos canibais, mas que tendem a se tornar boatos, e de suas locali­
dades nos confins do mundo. Em Marco Polo, a primeira menção
a pessoas comendo pessoas pertence a ideia posterior: “Mas antes
de o seguirmos [o Grande Khan], deixe-me contar-lhe uma coisa
estranha que eu havia esquecido:”2 ele ouviu que algumas pessoas
têm o “hábito estranho” de, “quando um homem é condenado à
morte pelas autoridades, levar seu corpo, cozinhá-lo e comê-lo.
Mas, se alguém morre de morte natural, eles... nunca pensam em
comê-lo” (p. 110). Marco Polo não parece ficar chocado com isso.
Em seu relato, o canibalismo é um marcador de diferença, mas
não necessariamente de uma selvageria particularmente extrema.
De fato, ele frequentemente entende a prática em um contexto de
cerimônia ou como um costume bem definido, como na passa­
gem anterior, na qual ele informa quando ocorre e quando não
ocorre: “se alguém morre de morte natural, eles nunca pensam em
comê-lo”. Nos confins do mundo, por outro lado, entre os povos
de Ferlec, que moram nas montanhas, “como bestas...”, ele desco­
bre que “comem carne humana e todo tipo de carne, limpa ou
suja” e, mais ainda, “veneram muitas coisas diferentes; o que quer
que avistem primeiro quando acordam pela manhã, eles veneram”

2. Polo, Marco. The Traveis. Tradução e introdução Ronald Latham. London: Penguin
Books, 1958. p. 109.
(p. 253). A selvageria se deve mais à falta de discriminação do que
ao próprio canibalismo; além disso, ele alcança o extremo, o su­
posto domínio das ilhas Andaman, onde o povo “não tem rei”,
“todos os homens têm cabeças parecidas com cachorros”, formam
“uma raça muito cruel” e, “quando capturam um homem que não
é da sua raça, eles o devoram”. Aquela ilha não pode ser alcançada
e visitada, pois “fica em um mar tão turbulento e tão profundo
em que as embarcações não conseguem ancorar nem se afastar da
ilha, porque o mar as varre para dentro de um golfo do qual não
conseguem mais sair”. Na verdade, a desorganização começa na
cultura e se infiltra na natureza, pois o mar continua arrancando
algo da ilha, carregando árvores enormes para dentro do golfo
que a circunda, e essa confusão de terra e mar faz com que as
embarcações que entram no golfo fiquem presas na massa de ár­
vores e “[elas] ficam lá para sempre” (p. 258). Isso não significa
que Marco Polo ache o canibalismo aceitável; mas que é algo que
simplesmente existe entre pessoas estranhas, e é parte da estra­
nheza delas. Ao mesmo tempo, a relação de poder entre o narrador
da história e o povo visitado pelo menos é equilibrada, se não
pendendo para as características do conto.
Na época das grandes viagens que colocaram as Américas
nos mapas europeus, entretanto, as descrições elaboradas de cani­
balismo, com ilustrações que diziam ser reproduções fiéis do que
o narrador tinha visto, começaram a circular. As ilustrações co­
meçam com o relato de Colombo sobre encontros com os nati­
vos do Caribe - os caribenhos, como ficaram conhecidos, de quem
o termo “canibal” deriva. Talvez as ilustrações e o relato mais dra­
máticos foram aqueles publicados por Hans Staden, uma descri­
ção de seus meses como prisioneiro de uma tribo brasileira, sendo
preparado para o sacrifício, contado para e escrito por um ami­
go quando retornou à sua Alemanha e ilustrado por outro co­
nhecido sob orientação de Staden.3As acusações de canibalismo se
espalharam, então, sem muito cuidado, sempre com o efeito de mar­
car inimigos com esse rótulo de completa selvageria ou - e isso
também é parte de uma história da recepção do canibalismo - com
o efeito de chamar atenção para o que o falante considera ser sel­
vageria de seu próprio povo. Cabeza de Vaca, por exemplo, relata
o horror demonstrado pelos índios na Flórida quando souberam
que, tomados por grande fome, invasores espanhóis tinham comido
seus próprios companheiros4; de forma semelhante os conquistado­
res do México - no relato de Bernal Díaz - ressaltam a selvageria dos
astecas, chamando a atenção para o fato de eles sacrificarem jovens
em nome dos deuses e depois os comerem5; também, nas guerras
religiosas que aconteceram na Europa durante o século XVI - o
século de colonização e conquista das Am éricas - , os protes­
tantes que se opuseram às doutrinas católicas da eucaristia acu­
saram seus oponentes de propor ou praticar um canibalism o
do divino.6 De fato, como mostrou Frank Lestrignant, ao longo

3. Staden, Hans. Wahrhaftige Historie und Beschreibund eyner Landtschafft d er


Wilden, Nacketen, Grimmigen Menschefresser, Leuthen in derNewenweltAmerica
gelegen. Marburg: A. Kolbe, 1557.
4. Ver: Cabeza de Vaca de Alvar Núñez. The Narrative o f Cabeza de Vaca. Edição,
tradução e introdução Rolena A dorno e Patrick Charles Pautz. Lincoln, Neb.:
University of Nebraska Press, 1999.
5. Ver: Del Castillo de Bernal Díaz. The Conquest ot new Spain. Tradução e introdu­
ção J. M. Cohen. Baltim ore, MD: Penguin Books, 1963.
6. Frank Lestrignant discute e docum enta o discurso do canibalism o durante as
guerras religiosas na França —“cristalizado na crítica [protestante] do dogm a
[católico] da real e corpórea presença de Cristo na eucaristia.” Ver: Une sainte
do século XVII, o canibalismo se tornou parte de um discurso
violento de propaganda e de resistência protestante contra o ini­
migo católico; esteve incorporado em um discurso mais inclusi­
vo de poder que lançou oponentes religiosos uns contra os ou­
tros, e os conquistadores europeus contra os habitantes originais
das Américas. Um dos alicerces daqueles discursos, argumenta
Lestrignant, foi a Histoire d ’um Voyage fait en la terre du Brésil,
do calvinista Jean de Léry, membro da expedição de Villegagnon à
“França Antártida”, que pretendia estabelecer uma colonia france­
sa na Baía de Guanabara.
Nesse, assim como em outros relatos, o canibalismo dos
ameríndios brasileiros foi configurado como uma das formas mais
dramáticas por meio das quais aquelas populações revelavam sua
selvageria. Mas, mesmo no começo, não pôde ser configurada so­
mente como uma selvageria irredimível, já que um dos propósi­
tos da colonização (frequentemente em conflito com outros pro­
pósitos) era o de “civilizar” essas populações, e um dos principais
instrumentos desse processo foi a cristianização, a conversão. En­
tão tinha de ser possível transformar canibais selvagens em cristãos.
A mistura de rejeição e tolerância que esse projeto criou fica clara
na Histoire de Jean de Léry - de acordo com Claude Lévi-Strauss,
uma bíblia de antropologia - , que começa com um ataque contra
as Singularités de la terre du Brésil do católico André de Thevet.
Léry usa o canibalismo dos índios brasileiros para construir um

horreuroulê Voyage em Eucharistie, XVIe-XVIIIe siècle, prefácio Pierre Chaunu.


Paris: Presses Uriiversitaires de France, 1996, p. 64; ver todo o capítulo III,
“Catholiques et cannibales, ou la crise de la transsubstantiation”, p. 61-82.
argumento teológico, desenvolvido em várias edições publicadas
ao longo do século, para explicar aos seus leitores os irredimíveis
canibais americanos aprisionados no pecado original em seu pa­
raíso tropical e expostos aos horrores da conquista espanhola e
aos católicos franceses que perseguiam calvinistas. Em uma edi­
ção posterior, Léry acrescenta um relato de um cerco a protestan­
tes em Sancerre, região das guerras religiosas na França. Inclui uma
história de um possível canibalismo entre os sitiados como acusa­
ção contra a selvageria dos sitiadores que os teria levado a cometer
este extremo e, indiretamente, com um argumento contra aqueles
que usariam a acusação de canibalismo para provar a selvageria dos
povos do Novo Mundo: em termos de selvageria, a Europa “civili­
zada” poderia conter a sua própria. Entretanto, mesmo acontecen­
do sob a pressão mais severa, o canibalismo desesperado dos pro­
testantes sitiados em Sancerre recoloca os sinais de uma alteridade
americana radical no centro da Europa cristã.7 O relato de Léry é
eventualmente absorvido em um discurso mais generalizado de
exotismo canibal associado com a contrarreforma e publicado
em volumes, como aqueles de De Bry. Entretanto, a Histoire d ’um
Voyage, ainda de acordo com Lestrignant, difere das outras, por­
que desloca as fronteiras que separam a alteridade selvagem de

7. Lestrignant mostra que, durante as guerras religiosas na França, acusações de


canibalismo eram frequentes, um lado acusando o outro, em descrições sangren­
tas e pavorosas de feitos individuais e coletivos. É a “transgressão de um tabu tão
primitivo quanto o incesto, ao qual se conecta por uma relação de homologia...
[e] percebido com o o sinal da destruição de uma ordem universal...” ( Unesainte
horreur, p. 62-63).
uma identidade civilizada e cristã, de modo que elas diferenciam
as almas salvas das condenadas dentro da mesma identidade
europeia. Ao mesmo tempo, entretanto, o relato de Léry também
confessa uma nostalgia inesperada e desesperada por essa alteridade
da terra e dos índios do Brasil,8 uma nostalgia que se manifesta na
Histoire, quando ele elogia os costumes dos selvagens e lembra o
gosto de suas comidas, a ponto de ter de assegurar aos seus leito­
res que só assistiu às festas canibais, que não participou delas.9
Então, no tempo das descobertas (ou do Encontro), e du­
rante mais de um século de guerras religiosas na Europa, o discur­
so sobre o canibalismo tomou a form a de argum ento com plexo
sobre identidade, precisamente quando a identidade europeia e
a própria identidade ou definição de cristandade estavam pas­
sando por uma crise profunda. É, portanto, com preensível que
Montaigne tenha concluído seu ensaio sobre canibais de m anei­
ra chocante ao observar que seu costum e era talvez mais aceitá-

8. Apresentei aqui um resum o de alguns dos argum entos de Lestrignant em seu Jean
de Léry ou r invention du sauvage: Essai sur V “Histoire d ’un Voyage fait en la terre
du Brésil”. Paris: Honoré Champion Éditeur, 1999. Ver tam bém : Jean de Léry, Histoire
d ’um Voyage fait en la terre du Brésil. Edição, introdução e notas Jean-Claude
Morrisot; índice de conceitos etnológicos Louis Necker. [ 1580]. Geneva: Droz, 1975;
André Thevet, Les singularités de la France Antarctique. Edição fac-símile apresen­
tada por Jean Baudry, introdução Pierre Gasnault. Paris: Le Temps, 1982; Theodore
de Bry, Lê Théatre du Nouveau M onde: Les Grands Voyages de Theodore de Bry.
Apresentação M arc Bouyer e Jean-Paul Duviols. Paris: Gallimard, 1992; Claude
Lévi-Strauss. Tristes Tropiques. Paris: Plon, 1955.
9. Ver: Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil. Tradução e notas Sérgio Milliet. Bibli­
ografia Paul Gaffarel. Coloquio na língua brasileira e notas sobre o Tupi de Plínio
Ayrosa. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São
Paulo, 1980 ( Histoire d ’um Voyage fait en la terre du Brésil [Geneva: A ntoine
Chuppin, 1580]).
vel e humano que o tratamento europeu de seus pobres ou de seus
criminosos.10 Mas esse não foi o único choque: o outro é que a
noção de canibalismo está agora normalizada; no final do ensaio,
sabe-se, Montaigne mistura o costume com outros costumes e
como tal não deve ser levado a sério.
Quando, na década de 1980, surgiu uma controvérsia sobre
a possibilidade de ter de fato existido algum tipo de canibalismo
nas Américas, mais uma vez o discurso sobre o canibalismo foi
usado para formular argumentos sobre assuntos de intenso inte­
resse político e cultural. Negar a existência histórica do canibalis­
mo torna-se uma form a de afirm ar a virtude de populações
subjugadas no curso de várias incursões europeias em um violen­
to processo que, foi dito, usava acusações de canibalismo como
justificativa para conquista e chacina; a repugnância contra o que
os europeus fizeram nas Américas fez com que relatos de caniba­
lismo parecessem álibis em vez de observações antropológicas:
um recurso para mentiras que serviram para desumanizar suas
vítimas.11 As objeções contra relatos de canibalismo têm um du-

10. Montaigne, Michel de. Sobre Canibais, Ensaios. Tradução e introdução J. M.


Cohen. London: Penguin, 1993. p. 105-118.
11. Ver: William Arens. The Man-Eating Myth. Anthropology and Anthropophagy.
New York: Oxford University Press, 1979. Frank Lestrignant escreve uma refuta­
ção torte da polêmica de Arens em Cannibals. The Discovery and Representation
ot the Cannibal from Colum bus to lules Verne. Tradução Rosem ary Morris.
[ 1994]. Cambridge: Polity Press, 1997; e Gananath Obeyesekere se empenha em
resgatar Arens sem rejeitar Lestrignant em Cannibal Talk. The M an-Eating Myth
and Human Sacrifice in the South Seas. Berkeley: llniversity ot California Press,
2005. Sem se envolver na controvérsia, deve-se observar a im portância, a predo­
minância e a continuidade da “fala canibal” desde tempos anteriores até os nossos
pio efeito: elas se inserem em argumentos de descolonização e
afirmação das culturas e dos valores dos antigos objetos do impe­
rialismo e, ao mesmo tempo, confirmam, enquanto negam, o jul­
gamento do costume como objetivamente horroroso - mais como
Staden e Léry do que como Montaigne.
Em suma, o canibalismo está carregado de significados que
vão além do fato básico de ser parte de uma dieta, por mais estra­
nho ou ofensivo que seja. É também configurado diferentemente
em culturas diferentes, assumindo papéis diferentes em ambientes
culturais diferentes. Sua representação também é distinta em dife­
rentes contextos. Nos exemplos discutidos a seguir, a ênfase cairá
sobre os aspectos culturais e políticos expressos no cinema. Na
literatura, entretanto, também um discurso de canibalismo pode
ser usado para expressar relações que uma cultura reluta em abor­
dar de forma mais direta: em O canibalismo amoroso, Affonso
Romano de Sant’Anna localiza a transformação do sistema meta­
fórico da poesia brasileira no processo que vem da representação,
no período neoclássico, da mulher amada como flor a ser admirada
por sua figura; no romantismo brasileiro, como fruta a ser comida
ou presa a ser caçada e depois comida - um canibalismo que reve-

dias, e também a transform ação da imagem do discurso sobre o canibalismo em


épocas diferentes e contextos culturais diferentes. Em Our Cannibals, Ourselves,
Urbana and Chicago: University of Illinois Press, 2004, Priscilla L. Walton averigua
a origem dessa fala até a cultura popular estadunidense da atualidade e os meios
de com unicação em massa, na form a de alienígenas com edores de pessoas e na
forma degradada de “selvagens” da série de TV “Gilligan’s Island”, onde ela encon­
trou pela primeira vez a figura do canibal — com o ela percebe mais tarde, urna
figura fortemente m arcada por suposições ideológicas.
la não somente um desequilíbrio de poder entre a voz masculina
do poema e a mulher a quem o poeta se dirige, mas também, de
forma mais perturbadora, entre um homem branco e uma mu­
lher negra. Nesses trabalhos de Sant’Anna, o canibalismo aparece
de uma forma puramente metafórica e fica, portanto, mais fácil de
engolir. De forma literal no cinema12, ele recobra seu poder para
chocar sem, entretanto, perder sua qualidade discursiva.
Queremos dar uma ideia de que há mais de uma reação
possível a esse fenômeno, também para facilitar seu entendimento,
em uma cultura onde é difícil imaginar, de como a ideia de cani­
balismo foi eventualmente integrada a um autorretrato brasileiro
nacional de forma mais ou menos positiva, apresentado metafo­
ricamente e sem esquecer a realidade por detrás dele. A saber, na
época da revolução modernista, o canibalismo, ou a antropofagia,
como foi chamado naquele contexto, tornou-se uma representa­
ção daquilo que é especificamente nacional e, de maneira mais
divertida para os seus proponentes, começou a ser usado como
uma provocação às sensibilidades das sociedades mais fortes cul­
tural e economicamente em que o nacional ficou confinado. Ao
mesmo tempo, isso criava uma forma discursiva envolvente, que
expressava a relação eternamente contestada entre o Brasil e as for­
ças exteriores, cujo poder cultural e econômico aparecia na forma
de colonialismo. Esse espírito contestatório, que buscava chocar e
impressionar por meio de um humor corrosivo, tomou sua mais
agressiva - ou talvez simplesmente mais espirituosa - forma no

12. Ver: Sant’Anna, Attonso Romano de. O canibalismo amoroso. Rio de Janeiro:
Rocco, 1993.
Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, que não só abra­
çou aqueles que definiu como os ancestrais canibais de todos os
brasileiros, mas também postulou sua relação subversiva com to­
das as importações estrangeiras na cultura brasileira: o estrangei­
ro foi canibalizado, ou seja, devorado e assimilado, assim como
os índios canibais tinham devorado e assimilado os europeus
que capturaram.13 De acordo com Costa Lima, o canibalismo,
como proposto por Oswald de Andrade, foi obviamente meta­
fórico, mas apresentou uma análise importante da relação entre
o colonizado e os colonizadores no Brasil: foi uma “força pri­
mitiva de resistência contra a doutrinação do colonizador”, mas
também implicou que “o inim igo” não foi “identificado com
algo impuro ou com um corpo poluído, contato com o qual
seria proibido”, uma visão que ele considera característica do pu­
ritanismo. Para Andrade, o canibalismo não negava o inimigo ou o
condenava ao esquecimento; ao contrário. Ele nem, “em seu senti­
do literal ou metafórico, recusa a existência de conflito... tampouco,
implica a necessidade de”, enquanto recusa “seu engajamento com
o inimigo em um ato puro de vingança”14.

13. Ver: Andrade, Oswald de. Obras Completas, VI: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às
Utopias. Introdução Benedito Nunes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. Os
membros do m ovim ento propu seram um feriado nacional para celebrar a
devoração do Bispo Sardinha, naufragado na costa do atual Espírito Santo.
14. Lima, Luiz Costa. Antropofagia e o controle do Imaginário. In: Jackson, K. David
(Ed.). A Vanguarda Literária no Brasil. Bibliografia e Antologia Crítica. Frankfurt
am Main/Madrid: Vervuert/Iberoamericana, 1998. p. 125-130; p. 125-126. (Extraído
de Pensándonos Trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 2 6 -3 3 .)
Então, não é tão surpreendente que, em um tempo em que a
dominação cultural externa não somente estava incomodada, mas
também parecia digerível, aparecesse no Brasil um filme que le­
vantasse o problema do canibalismo do passado brasileiro, tra­
tando-o sem a sobreposição de choque e admiração, ou sem a
condenação normal que receberia em qualquer outro contexto
“europeu” ou “civilizado”. É sob esta luz que sugeriríamos uma
comparação entre o brasileiro Como era gostoso o meu francês e
o estadunidense O Silêncio dos Inocentes, dois filmes que parecem
não ter nada em comum, exceto o fato de o canibalismo estar pre­
sente em ambos, mas que, ao mesmo tempo, oferecem não somen­
te um contraste muito claro entre os tratamentos culturalmente
sancionados (se não determinados) deste assunto extremamente
sobrecarregado de sentidos, mas também mais um exemplo do
uso do canibalismo como uma forma de discurso sobre fatos de
grande importância.
Este ensaio também aponta para uma leitura mais contem­
porânea de canibalismo nos filmes brasileiros recentes, especialmente
Central do Brasil (1998), dirigido por Walter Salles, e Cronica­
mente Inviável (2000), dirigido por Sergio Bianchi.15Aqui saímos
do canibalismo e vamos para o tráfico de órgãos, como outra me­
táfora por extensão do consumo de carne humana, como con-

15. Para uma análise de Cronicamente Inviávelxex “O Concerto do ressentimento


N acion al”, de Ismail X avier, em : O lho C rítico . D isponível em : < h ttp ://
antiga.bibvirt.futuro.usp.br/textos/hem eroteca/sin/sin08/sin08_08.pdf>. Para
uma análise de Como era gostoso o m eu francês, ver lohnson e Stam (1995),
Brazilian Cinema: expanded edition (Columbia University Press).
taminação social - uma que agora está desprovida de implicações
políticas coletivas, mas ainda denuncia um estado político de
subserviência que vai para além do conforto ao longo das frontei­
ras nacionais ou culturais (brasileiras e europeias), para incluir
o confronto entre indivíduos dentro de uma ordem transnacional
capitalista que dá ênfase à posição do indivíduo ante o poder do
Estado.
Dentro desse contexto, queremos mapear várias formas de ca­
nibalismo em filmes, que vão do canibalismo até a autofagia e o trá­
fico de órgãos - todos exemplos de como o consumo de carne hu­
mana representa formas de prática intercultural que não podem ser
isoladas em cinemas nacionais, mas como uma prática que tem
ultrapassado fronteiras nacionais.16 A definição europeia de cani­
balismo é transformada ou canibalizada em Como era gostoso o
m eu francês como uma forma de defesa política; em Silêncio dos
Inocentes, canibalismo é transformado em um ato autofágico de
solidão e exclusão social. Em Central do Brasil e Cronicam ente
Inviável^ o cinema denuncia uma sociedade na qual “a sobrevi­
vência do mais adaptado” é amparada pela form a mais feia de
uma ordem capitalista ruim e transnacional. Nesse filmes, as fron-

16. Hamid Naficy define duas tendências principais dentro da produção contem po­
rânea de filmes: um a produção de filmes de exílio e de diáspora com o um a “prá­
tica alternativa” a qual ele define com o a produção cinem atográfica dominante
dentro dos conglomerados de um novo sistema pós-industrial (p. 126-129). Ver:
“Entre as rochas e lugares íngremes: o m odo intersticial de produção no cinema
de exílio”. In: Home, Exile, Homeland Film, Media, and the Politics of Place. AFI
Film Reader Collection. New York; London: Routledge, 1999.
teiras genéricas cinematográficas tornam-se fluidas à medida que
incluem os códigos de gêneros diferentes, tais como, terror, dra­
ma, western, suspense, documentário e ficção historiográfica, na
mesma malha de narrativas ficcionais que desenvolvem.17 Entre­
tanto, este ensaio argumenta que esses filmes precisam ser vistos
dentro de suas estruturas locais e internacionais para um entendi­
mento a respeito de sua especificidade, apesar de todos os seus
elementos comuns; especificamente seu tratamento de canibalis­
mo precisa ser examinado em termos temáticos e estéticos. Em­
bora eles apareçam em um mapa transcultural e globalizado, po­
dem somente fazer sentido quando novamente territorializados
dentro de seu próprio lugar de produção.

Parte II: O consumo de carne humana no cinema:


do canibalismo à autofagia e ao tráfico de órgãos

Apesar de todas as diferenças entre os filmes Como era gos­


toso o meu francês e O Silêncio dos Inocentes, ambos apresentam
uma perspectiva política sobre o canibalismo. Como era gostoso o
meu francês, uma produção brasileira de 1971, de Nelson Pereira

17. Em “Beyond Third Cinema: The Aesthetics of Hybridity” Robert Stam discute as
diferentes tormas de hibridismo na produção do Tropicalismo e a “estética do
lixo”.Guneratme, Anthony R. (Ed.). Rethinking Third Cinema. London: Routledge,
2003. Para uma discussão de cinema e de diaspora ver: “Rumo ao Norte: Da
Diáspora ao Nomadismo” de Denilson Lopes, paper apresentado no X Encontro
Socine, 2006 (Ouro Preto).
dos Santos, apresenta um ato coletivo de canibalização no qual
um marinheiro francês, no Brasil do século XVI, expulso de uma
comunidade de huguenotes (mais do que somente suposições de
Léry), é capturado pelos Tupinambás, uma tribo de canibais, e é
finalmente devorado depois de um ritual da tribo. O Silêncio dos
Inocentes, uma produção estadunidense, dirigida por Jonathan
Demme, lançada em 1991, foi classificada como um filme de ter­
ror; seu enredo gira em torno de uma jovem detetive do FBI, à
qual cabe investigar um caso de matador em série, chamado Buffalo
Bill. Clarice Starling, a jovem detetive, de forma astuta, confia no
conhecimento de um psiquiatra, que está preso por uma série de
mortes envolvendo canibalismo, para resolver o mistério.
Enquanto Como era gostoso o meu francês escapa a qual­
quer tipo de gênero cinematográfico - é parte documentário, par­
te ficção historiográfica e parte drama psicológico O Silêncio dos
Inocentes se situa claramente nos gêneros de terror e suspense. Seu
enredo envolve a resolução de uma série de crimes brutais contra
mulheres, incluindo a retirada de suas peles, enquanto Clarice
Starling, a agente do FBI, se envolve com o psiquiatra canibal
Hannibal Lecter, a fim de resolver o mistério. Enquanto O Silêncio
dos Inocentes tem um enredo bem resolvido, com uma heroína
protagonista no meio dos dois assassinos psicópatas, Buffalo Bill e
Hannibal Lecter, Como era gostoso o meu francês desafia qualquer
tipo de perspectiva individualista. Ele inclui somente umas poucas
cenas subjetivas e apresenta uma protagonista heroína questionável,
cujo maior interesse é a coletividade: o filme se centra na prepara­
ção do prisioneiro europeu que será comido pela tribo.
Além de sua distância em termos de gênero cinematográfico
e de suas estruturas narrativas diferentes, o filme brasileiro faz parte
de um movimento político dentro da produção cinematográfica bra­
sileira, ao passo que O Silêncio dos Inocentes é uma produção
hollywoodiana, projetada para grandes públicos e bastante efetivo
em seus efeitos bombásticos, edição e uso de som. Recebeu cinco
Oscars e apresenta um canibal inesquecível representado pela estre­
la internacional e sucesso de bilheteria Anthony Hopkins. Essa pro­
dução de alta qualidade parece ser o oposto do estilo documentário,
bruto, realista e quase antropológico de Como era gostoso o meu
francês. Por meio de sua estética, o filme brasileiro resiste ao poder da
indústria de Hollywood, rejeita os valores de uma classe dominante
da alta burguesia e os vários modos discursivos dominantes usados
para representar o Outro, o índio, o canibal, o antepassado brasileiro.
Os diferentes tratamentos ao canibalismo nos filmes indi­
cam a diferente inserção do tema dentro dos dois meios culturais,
brasileiro e estadunidense, marcando suas posições antitéticas
em relação ao canibalismo, relacionadas ao valor que colocam
sobre o coletivo versus o individual. Dessa forma, os filmes colo­
cam em primeiro plano suas críticas específicas à cultura na qual
estão inseridos. Em O Silêncio dos Inocentes, o ato de canibalis­
mo é quase uma autofagia: é individual, alienado a qualquer co­
munidade, predatório à sua própria coletividade, embora seja jus­
tificado pelo Dr. Hannibal como forma de limpar a sociedade de
seus patifes. No caso do filme de Pereira dos Santos, a estratégia é
minar suposições históricas sobre o canibalismo e transformá-lo
em alegoria da relação colonial entre o Brasil e a Europa, seja em
termos econômicos, seja em termos culturais.
Diferentemente, no filme de Pereira dos Santos a nacionali­
dade do outro canibalizado é francesa: a vítima (ou a refeição) é
um homem francês que foi erroneamente identificado pelos
Tupinambás como um português. Então, embora a verdadeira iden­
tidade do francês pudesse salvá-lo dos Tupinambás, já que os fran­
ceses eram seus amigos e aliados, a persistência da identidade trocada
parece indicar que não existe diferença significativa entre os portu­
gueses e os franceses: se a colonização portuguesa significa escra­
vidão econômica para os brasileiros durante os tempos coloniais,
seu correlativo em termos culturais, através de muitas décadas, é a
cultura francesa, que representa um papel hegemônico na alta
cultura brasileira. Portanto, ao usar um “pobre francês” como exem­
plar do tipo europeu para ser eliminado, o filme expande a alegoria
da colonização para sugerir que é inclusiva de colonização cultural
no presente. Nesse sentido, a alegoria que está sendo construída pelo
filme implica uma forma indireta de falar sobre o “outro”.
Tradicionalmente, a alegoria tem sido associada à escrita polí­
tica como uma forma invertida e subvertida de falar de outras reali­
dades, realidades que não podem ser clara ou abertamente aborda­
das. Nesse caso, o filme brasileiro constrói uma alegoria coletiva de
colonização ao longo da história até o tempo presente, e, embora o
filme pareça tratar de tempos coloniais, sua alegoria nos remete à
década de 1970 e a outras formas de colonização. A antropofagia
então se torna um signo da resistência política e cultural a todas as
formas de colonização, da forma como está articulada no “Manifes­
to Antropofágico” de Oswald de Andrade e, mais tarde, no Movi­
mento Tropicalista, que inclui o movimento do Cinema Novo, do
qual, por sua vez, Como era gostoso o meu francês é um novo
ramo. Dentro desse contexto cultural, o canibalismo significa a
destruição de um oponente pela incorporação. Enquanto o fran­
cês é finalmente devorado pela tribo, ele também é destruido.
A transformação também acontece em um nível discursivo,
já que Como era gostoso o meu francés transforma os ideais ro­
mânticos de índias virgens do século XIX em uma protagonista
indígena, cuja fidelidade volta-se para sua tribo e para seus valores
comunitários, ou seja, para sua própria realidade. Diferentemente
da romântica Iracema (a bela e virgem índia que tem um filho
com o conquistador português - protótipo e antepassado do povo
brasileiro - e então convenientemente morre), Seboipepe, a pro­
tagonista do filme, vive como a esposa carinhosa do francês até
seu sacrifício final. Ela não demonstra desejo de fugir com ele a
fim de salvá-lo nem, na cena final, de esconder seu prazer enquan­
to devora a carne do francês. A aparência de Seboipepe, enquanto
morde o corpo do francês, parece confirmar para o público que ela
não sente remorso ou saudade de seu francês. A assimilação final
dele pela tribo significa, finalmente, seu desaparecimento e des­
truição. Ironicamente, a cena que mostra o ponto de vista de
Seboipepe, uma das poucas cenas subjetivas do filme, não mostra
qualquer romantismo.
Além dessa canibalização da imagem da inocente índia român­
tica virtuosa, o filme de Pereira dos Santos faz paródia de gêneros e
estilos cinematográficos diferentes para se dirigir de novo ao seu pró­
prio meio como forma de questionamento, que é potencialidade
alegada para revelar o “real”. O filme desestabiliza as expectativas do
público quando mistura documentário, ficção historiográfica e o dra­
ma supostamente subjetivo do prisioneiro. Em uma sequência hila-
ríante, enquanto os huguenotes estão afogando seu companheiro fran­
cês por cobiçar e flertar com índias, um narrador com uma voz de
huguenote lê uma carta a ser enviada para os oficiais europeus que
declara que o francês cometeu suicídio. O discurso histórico está pa­
rodiado e questionado em sua suposta verdade. Nesse uso de alego­
ria e paródia, o filme funciona em um nível metalinguístico, questio­
nando suas próprias formas de representação.
Se o manifesto modernista de Oswald de Andrade celebrava
a antropofagia como forma de reação política contra a hegemonia
europeia cultural e propunha a destruição da cultura europeia pela
canibalização, Como era gostoso o meu francês apresenta uma crí­
tica de qualquer forma de celebração. Em uma de suas sequências
finais, que mostra a maldição do francês contra os Tupinambás,
“Meus amigos virão e se vingarão por mim”, a história parece mi­
nar o tom celebrante da canibalização dos índios, já que a maldição,
no fim das contas, foi revelada no filme como uma realidade his­
tórica. Como uma das legendas finais do filme indica, lá pelo final
do século XVI, milhares de índios brasileiros já tinham sido massa­
crados pelos europeus, e o resto foi sendo dizimado dentro de um
curto período de tempo. Um tipo de profecia deixa o público
desconfortado. Como o filme não tenta resolver a dicotomia entre
os desejos utópicos pelas possibilidades políticas do canibalismo
cultural e o fato histórico da dizimação dos índios, ele também dá
poder ao canibalismo como forma de reagir com relação às condi­
ções de subjugação econômica, política, social e cultural.
Em O Silêncio dos Inocentes, Hannibal Lecter é uma figura
isolada. Ele não pertence a nenhuma tribo, e até mesmo sua inser­
ção dentro da cultura estadunidense é marcada por uma relação de
diferença. Ele aprecia música clássica, mesmo durante sua festa
canibalística dos corpos dos policiais de Memphis - uma das
sequências mais violentas no filme. Em sua cela, seu desenho de
Clarice retrata-a como um tipo de princesa renascentista. Ele está
cercado de imagens de castelos e referências a Florença. Gosta de
livros, e tudo isso simboliza um gosto apurado, como na sua de­
claração insinuante de que ele gostou do casaco da senadora. Além
disso, suas primeiras acusações contra Clarice estão relacionadas
ao fato de ela usar calçados baratos, ter nascido em uma família de
operários e tentar disfarçar seu sotaque da Virgínia Ocidental. O
discurso dele, como forma de identidade, está moldado por dife­
renças binárias, como cosmopolita x rural; alta arte x baixa arte;
europeu x americano; intelectualismo x consumo; e classe alta x
classe trabalhadora. As justificativas que ele oferece para seus vári­
os crimes estão relacionadas com um desejo de eliminar da socie­
dade indivíduos que não têm compostura, como no caso de Miggs;
que são inaptos para sobreviver, como Raspail; ou que são
impiedosos, como Chilton. Como salvador da sociedade, Hannibal
justifica seu próprio barbarismo tornando-se uma monstruosi­
dade que precisa ser excluída do convívio social. Seu canibalismo,
justificado no filme como uma forma de limpeza social, purifica­
ção e vingança, torna-se uma atividade autofágica, enquanto ele acaba
destruindo qualquer um que se aproxime dele, como uma ameaça
que precisa ser isolada do resto. Não há coletividade em seu ato de
canibalização. Ele está sozinho, alienado do restante da sociedade.
Dentro desse contexto, o filme oferece uma crítica ao purismo
social do discurso do Dr. Hannibal como representativo de uma
posição de classe e como matador de seus semelhantes. O signi­
ficado implícito do filme é que, por uma política de exclusão social,
Hannibal acabará ficando tão completamente isolado que seu cani­
balismo causará seu próprio fim. Ele então se torna o representante
de uma classe social extinta através de seu próprio isolamento do
resto da sociedade. Isso implica que a estratificação social da qual
ele é um exemplo extremo o levará, ao limite, a uma alienação por
exclusão que causa sua própria destruição - uma sociedade na qual
cada indivíduo é excluído do resto, na qual cada um é um canibal
do outro e de si mesmo: uma sociedade autofágica que come suas
próprias pessoas.
Se o filme de Jonathan Demme foi abertamente criticado
por seu tratamento aos gays, por seu retrato de Buffalo Bill como
um assassino em série, ele também abre espaço para a inserção do
discurso do politicamente correto. Enquanto Buffalo Bill, como
sugere o Dr. Hannibal, foi uma vítima de eternos maus tratos des­
de a sua infância, o próprio Dr. Hannibal é a vítima de seu pró­
prio niilismo e senso de superioridade intelectual, por sua vez,
apresentado como forma de modernidade atrasada. O filme pare­
ce declarar que Hannibal, com todo o seu poder intelectual, sua
habilidade para compreender, para ler o que está implícito em um
texto e para planejar com antecedência, é uma monstruosidade
dentro de um contexto estadunidense pós-moderno. Além disso,
Hannibal só pode existir através do meio cinematográfico, através
deste meio pós-moderno, que apresenta uma mistura de códigos
de vários gêneros, tais como, terror, suspense, western, como um
representante genuíno da cultura bem baixa que Hannibal despre­
za. Esse filme lembra uma das violências necessárias do gênero
western, uma violência necessária para restaurar a ordem, uma
ordem social que, por sua vez, se impõe aos índios que realizam escalpo.
Escalpar, tirar a pele e canibalizar são formas diferentes de barbaris­
mo que precisam ser corrigidas. No caso do filme de terror, a vio­
lência do monstro canibal não parece funcionar como repositório
de ordem social, mas Clarice funciona assim. É ela quem, no fim
das contas, reivindica ordem como uma substituta do pai perdido
que, como policial, foi injustamente morto por ladrões. No final,
Clarice consegue sua medalha, coloca as coisas de volta em seus lu­
gares, mas descobre que Hannibal, o coproduto de sua própria so­
ciedade, ainda é ameaça, em algum lugar.
De fato, é o irracional Hannibal canibal que ainda anda por
aí, como uma ameaça, mas também como atração que não pode
ser contida. E o monstro, depois de tudo, é libertado em um tipo
de ilha caribenha, vestido em linho, com um chapéu cubano -
muito bem vestido até mesmo para um turista. Charmoso e sedu­
tor, esse monstro caminha para longe de nossa visão, à medida
que a câmera vai se afastando, ele ainda aparece ao fundo. Afinal
de contas, “ele receberá um amigo para o jantar” e está pronto para
restaurar ordem de uma forma diferente. A iconografia dessa últi­
ma cena é bastante poderosa, embora o método pareça um tanto
antiquado: afinal de contas, já aprendemos que essas ilhas distan­
tes, recheadas de canibais, podem ser um modo de deslocar o ou­
tro que é intrínseco a nós. Hannibal, o canibal, volta ao local que
uma vez lhe pertenceu - uma ilha tropical. Um paraíso tropical
que, diferentemente do filme de Pereira dos Santos, é desprovido
de conotações políticas aparentes.
Dois filmes brasileiros recentes substituem a alegoria política
de Como era gostoso o meu francês, denunciando a agressividade
social e a degeneração do tráfico de órgãos. Central do Brasil e
Cronicamente Inviável representam a selvageria do tráfico de ór­
gãos dentro do cenário brasileiro do fim da década de 1990. O
narrador não confiável de Cronicamente Inviável é um professor,
cujo envolvimento com o tráfico de órgãos é revelado ao público.
No caso de Central do Brasil\ uma professora aposentada é repen­
tinamente surpreendida na rede de uma gangue envolvida com o
tráfico de órgãos. Neste, o enredo permite uma restauração da or­
dem social através de um investimento pessoal de Dora, que se
esforça para desfazer seus crimes. Em Cronicamente Inviável, en­
tretanto, não há gesto de redenção, e o público fica com o caos, a
corrupção e a degeneração do tecido social. Apesar das diferenças
entre os filmes em termos de narrativas e escolhas estéticas - o
filme de Bianchi rejeita qualquer tipo de acomodação ou passivi­
dade, já que não há possibilidade de redenção em sua narrativa
fragmentária e agressiva, ao passo que o de Salles usa um final
catártico no qual Dora é, no fim das contas, capaz de se redimir - , o
tráfico de órgãos como consumo de carne humana pode ser visto
como uma metáfora para aquilo que não pode ser nomeado, para
o espantoso, o horror de uma praga que subjaz toda a ordem soci­
al e que subscreve o tráfico: a saber, o capital. Aparentemente com
um papel apolítico, essa forma de canibalismo existe dentro de
uma forma absurda de distribuição de capital que perdeu sua de­
pendência do coletivo.
Nessa visão, o canibalismo funciona como uma metáfora para
o nosso entendimento do local (Brasil ou Estados Unidos) dentro do
global (o cenário transnacional no qual os filmes são exibidos, pro­
duzidos e consumidos: ou, quanto a isso, cenário no qual órgãos são
comercializados e consumidos) - como formas culturais que viajam
e contaminam umas às outras, como práticas culturais que podem
ser analisadas e que podem nos ajudar a compreender nossa pró­
pria localização dentro de nossos mapas culturais e de suas frontei­
ras fluidas ou transgredíveis. Longe dos Tupinambás, cujo caniba­
lismo pode ser lido como uma alegoria de desobediência política
contra o colonialismo cultural, e longe do sem-tribo Hannibal ca­
nibal, que é “o outro”, os canibais de Central do Brasil e Cronica­
mente Inviável são uma praga, não detectada, disseminada por todo
lugar na malha social do próprio capital.
Imagens de itinerância
no cinema brasileiro

Andréa França

O estrangeiro nos habita, ele é o espaço que arruina


nossa morada, o tempo onde desaparecem a
espera e a simpatia. Reconhecendo-o em nós,
nos poupamos de detestá-lo em si mesmo.
Julia Kristeva

Introdução

Este texto é um desdobramento de certas questões presentes


no livro Terras e fronteiras no cinem a político contemporâneo
(França, 2003), no qual discuto, a partir de filmes específicos e de
diferentes nacionalidades, o interesse comum em refletir sobre o
sentido afetivo, ideológico, estético e político da noção de fron­
teira geográfica, física, cultural; filmes que fazem parte do que al­
guns estudiosos descrevem como “cinema transnacional” - ou ainda
“multicultural”, “pós-colonial”, “híbrido”, “menor”, “imperfeito”, “ter­
ceiro cinema” etc. - para pontuar certas produções culturais re­
centes e seus contextos sociopolíticos. Há todo um debate, so-
bretudo no campo dos Estudos Culturais, a respeito da pertinência
e de quais seriam os termos mais apropriados para descrever pro­
duções cinematográficas que exploram contextos em que há um
movimento contínuo entre uma cultura e outra, produções que
colocam em xeque a ideia de que uma cultura possa se apresentar
como inteira, pura e independente.1
Dentro da proposta deste texto, não há interesse nem mes­
mo fôlego para retomar e desdobrar tal debate, profícuo e rele­
vante na sua dimensão cultural e política. Há, sem dúvida, um
campo de preocupações comum - pensar a que ponto a cultura
em si mesma, e qualquer uma delas, já é uma mistura entre elemen­
tos diferentes, uma negociação entre fronteiras mas, no âmbito
deste texto, quero investigar as possibilidades estético-políticas das
representações da fronteira no campo do cinem a brasileiro recen­
te, mais especificamente na sua dimensão sensível. Com o pensar,
no cinema, a fronteira, quando ela não se lim ita à linha pela qual
um território se transforma em outro e tampouco se reduz à sua
simples dissolução?

1. Há vários estudos e publicações dedicados ao tem a, co m o o trabalho de Robert


Stam (com texto nesta coletânea) e Ella Shohat, Crítica da imagem eurocêntrica
(2 0 0 6 ), o livro An accented Cinema, que discute as noções de “filme de gênero
transnacional independente”, de Ham id Naficy (com texto nesta coletânea), o livro
O local da cultura (1998), de H om i Bhabha, com a noção de “hibridismo”, o concei­
to de “cinema imperfeito”, em García Espinosa etc. Laura Marks (com texto neste
livro), na introdução de The skin o f the film (2000), apresenta e discute com clareza
histórica e teórica o debate em torn o do uso desses term os; quase todos têm
origem em m ovim entos intelectuais e/ou políticos, em manifestos e iniciativas
diversas.
Em meio às imagens de migrações, deslocamentos huma­
nos, enfraquecimento das fronteiras nacionais, culturais, da cir­
culação e troca frenética de informações e produtos, gostaria de
explorar conceitualmente a noção de fronteira na sua dimensão
singular e sensível, a partir de filmes específicos, e livre das limita­
ções de um estado de coisas; ao fazê-lo, pretendo situar e pensar
a histórica tarefa, que se quer crítica, do cinema brasileiro como
sendo prioritariamente a de representar o país, o povo, suas di­
versidades, contradições e motivações profundas.
Fronteira é, portanto, a noção central deste texto, analisada a
partir de filmes como Os matadores (Beto Brant, 1997), Terra es­
trangeira (Walter Salles e Daniela Thomas, 1995), Estorvo (Ruy
Guerra, 2000), Passaporte húngaro (Sandra Kogut, 2002), Do ou­
tro lado do rio (Lucas Bambozzi, 2004) e outros. Tais produções
interessam, porque exploram de diferentes modos o imaginário
da fronteira, em relação ao qual a superfície dos corpos - gestos
humanos, falas, desejos, afetos - se mantém permeável e porosa,
arrancando os personagens do espectro das identidades nacionais,
comunitárias, étnicas e/ou religiosas que os investem e, ainda, dos
espetáculos da mídia que os instrumentalizam frequentemente
com vistas à produção de realidade. A porosidade dessas imagens,
por onde escoam “modos de ser” fora das representações corren­
tes, sem pertencimento a grupos ou classes, constitui um domí­
nio estético propício a esse estudo. Trata-se, pois, de retomar e
assumir a precariedade dos processos de representação da identi­
dade, seja ela individual, de grupo, ideológica, cultural, nacional.
A partir da década de 1990, sobretudo, é frequente, no nosso
cinema, a presença do elemento estrangeiro como uma das for-
mas de enunciação de identidade e alteridade: além de Os mata­
dores e Terra estrangeira, temos Como nascem os anjos (Murilo
Salles, 1997), em que existe a presença do estadunidense e da filha
presos em casa pelos garotos da favela; O que é isso companheiro?
(Bruno Barreto, 1997), no qual existe a presença do embaixador
estadunidense, sequestrado pelos jovens revolucionários; A grande
arte (Walter Salles, 1992), em que um fotógrafo estadunidense, de­
cidido a se vingar de bandidos, inicia uma trajetória que começa no
Rio de Janeiro e segue até os altiplanos bolivianos; Baile perfumado
(Paulo Caldas e Lírio Ferreira, 1997), em que o libanês acaba se jun­
tando ao bando de Lampião e documentando um pouco do seu
cotidiano; Um céu de estrelas (Tata Amaral, 1997), no qual a cabelei­
reira paulista, moradora do bairro da Mooca, economiza dinheiro
durante anos para ir morar em Miami, sonhando em estudar e
mudar de vida.
Nos filmes citados, a dimensão do estrangeiro está frequen­
temente encarnada, seja em um personagem, em um lugar distante,
em uma cultura ou língua estranhas, tornando-se altamente dese­
jada e idealizada ou, ao contrário, vilipendiada e repudiada. A fron­
teira aqui é o traço que separa imagem de si e imagem do outro,
permitindo o autorreconhecimento e a construção do sentimen­
to daquilo que é comum e daquilo que não é; a fronteira nesses
filmes é a linha que demarca o que é idêntico, limitando um con­
junto de valores e crenças. É também o lugar de transição para o
diferente, sugerindo tramas narrativas e afetivas em que o movi­
mento entre a imagem de si e do outro (cultural, nacional) é bem
demarcada, estando elas confinadas a uma referência estável, ho­
mogênea. Com algumas aproximações e deslocamentos (a se-
rem discutidos), o que proponho são outras leituras para a dimensão
do estrangeiro, filmes em que a fronteira não é somente a linha pela
qual um território se transforma em outro, pois entre um e outro
cria-se uma zona de indiscernibilidade para onde são arrastados os
dois territórios. Nesse caso, a fronteira passa entre os territórios, cres­
cendo pelo meio e criando suas próprias coordenadas e dimensões
específicas. É nesse momento que o elemento estrangeiro, até então
definido simplesmente pelo contraste, passa a turvar tal transparência
como um traço insondável a nos fazer face e a nos interpelar.
Certos filmes brasileiros exploram de diferentes modos essa
perspectiva de ambiguidade, quando revelam e deixam em
suspenso o porvir de comunidades imaginadas (Anderson, 1989),
de nações não iniciadas (Heynemann, 1999), de comunidades de
sentimento transnacionais (Appadurai, 1998), de terras e fronteiras
imaginadas (França, 2003), fixando-se em um indeterminável - o
no mans land da não pertinência - que mobiliza o imaginário e
que nos interpela com sua estranheza.

Histórias e fronteiras inacabadas

Alguns estudiosos assinalam que o cinema brasileiro, desde


o seu início, foi convocado a representar o país e seu povo: da sua
natureza tropical exuberante até os costumes civilizados e os acon­
tecimentos característicos, o Brasil tem sido reconhecido no cine­
ma, sucessivamente a sua “elite civilizada”, a sua “boa gente”, as “ca­
madas sociais exploradas e oprimidas”, a “classe média dos grandes
centros urbanos”, as “minorias e seus movimentos reivindicativos”
(Luz, 2002, p. 123). Não é à toa que a ideia de missão cultural
atravessa os diversos ciclos desse cinema, significando retratar e
fomentar ao mesmo tempo as múltiplas diferenças - dimensões
continentais, miscigenação étnica e cultural, desequilíbrios soci­
ais - e, ainda, sua integração em uma “hipotética, mas desejada
identidade nacional, de modo a garantir um lugar na cena inter­
nacional” (Luz, 2002, p. 124). Trata-se de uma missão que, como
observaram Jean-Claude Bernardet e Maria Rita Gal vão, aparece
não só nos vários ciclos da história do cinema brasileiro, como
também na crítica e nas ideias cinem atográficas de Brasil
(Bernardet; Galvão, 1983, p. 12).
Não resta dúvida de que o Cinema Novo significou uma
ruptura em relação aos ciclos anteriores de nossa produção cine­
matográfica, ao mostrar uma representação em crise por meio da
exposição das contradições de nossa sociedade, da renovação de
linguagem e do desejo de romper com o imaginário sucateado
pelo filme estadunidense hegemônico. O livro Revisão crítica do
cinema brasileiro (Glauber Rocha, 1963) e o manifesto Estética da
fome (1965) marcam dois momentos importantes de reflexão so­
bre o Cinema Novo. Tentam esboçar um modelo de pensamento
para o cinema brasileiro, a própria questão nacional como um
problema a ser discutido, inventado, em ampla consonância com
a tradição do modernismo, que buscou articular em termos novos
a tão “hipotética, mas desejada identidade nacional” no campo da
literatura, da música, das artes plásticas. Em meio às reflexões pro­
piciadas pelo Cinema Novo da década de 1960, vemos, frequente­
mente, filmes fragmentados, histórias descontínuas, com o caráter
de discurso urgente e, por isso mesmo, precárias, mal-feitas, suge­
rindo uma espécie de colagem de ideias e sensações.
Algumas análises identificam relações e correspondências
entre essas experiências e a literatura da década de 1930, apontan­
do, geralmente, o problema das adaptações para o cinema de obras
modernistas (como o filme Macunaíma, de Joaquim Pedro de
Andrade, adaptação do romance de Mário de Andrade).2 Glauber
Rocha formula essas relações em Estética da fom e, quando diz
que aquilo que o cinema da década de 1960 “fotografa agora” é a
literatura realizada na década de 1930, fundada em “sua própria
miséria”. Embora o cineasta não identifique em seu manifesto os
autores envolvidos nessa relação, sabemos que faz referência a ro­
mancistas “como Graciliano Ramos ou José Lins do Rego, que
iniciaram nesse período um gênero de romance social/regionalista,
de inspiração realista” e que influenciará grande parte da produção
cinemanovista (Heynemann, 1999, p. 80). Em dois manifestos -
A estética da fome, de 1965, e A estética do sonho, de 1971 - Glauber
formula uma política da imagem para a América Latina de modo
a superar a ideia de nacionalismo, ao seu ver, superada pela pro­
posta política e estética de um cinema latino, revolucionário, sem
fronteiras de língua.
É todo um projeto de produção de imagens e discursos de
uma nação não totalizável, de desleitura do passado na invenção
do novo, de invenção de enunciados de nacionalidade, de forma a
propor a necessidade de um pensamento social e político como

2. Ismail Xavier indica cm seu livro a possibilidade de estabelecer analogias entre a


estética da tome e a literatura da década de 1930, referindo-se ao “romance social”
da década. Ver: Alegorías Jo subdesen volvimento (Xavier, 1993).
estética cinematográfica, distante, nesse aspecto, das teses clássicas
de Paulo Emílio Salles Gomes, em Cinema: trajetória no subde­
senvolvimento (1973), e de Jean-Claude Bernardet, em Brasil em
tempo de Cinema (1967), que insistiriam na continuidade como
processo histórico e econômico do país. Produzidos entre 1963 e
1973, esses três ensaios basilares sobre o cinema brasileiro - Revi­
são crítica do cinema brasileiro, Brasil em tempo de cinema e Ci­
nema: trajetória no subdesenvolvimento - apontam, nas suas
descontinuidades e sutis diferenças, para um campo comum, isto
é, um campo fundamentado por um pensamento social, no qual
as utopias de uma nação deveriam realizar-se no cinema ou por
meio do cinema. Tais ensaios, fundamentados em uma interpre­
tação política da sociedade brasileira, fomentaram ainda mais o
debate em torno do que esse público era (alienado, reprimido) e
o que deveria ser (responsável, livre etc.).
Ainda que expor as contradições da nossa sociedade e ques­
tionar forma e tema tenham inegável relevância, quando confron­
tadas às formas hegemônicas de representação produzidas sobretu­
do pelo cinema estadunidense hegemônico, o cinema brasileiro,
mesmo quando incorporou e incorpora propostas renovadoras,
dialogando com outras cinematografias, persegue seu “destino
representativo” (Luz, 2002, p. 126). Essa tese nos interessa porque
aponta para um contexto - cultural, político, ideológico, artístico -
que traz consigo um horizonte avaliativo limitador para a com­
preensão e a crítica do cinema brasileiro, um contexto onde os
filmes são, e mesmo pretendem ser, julgados. É como se cineastas,
críticos, pesquisadores e espectadores não parassem de se pergun­
tar: o que ficou de fora do filme e por quê?, ou ainda, o que de
fora está dentro do filme, por quê?
Há, porém, uma outra questão importante em meio a essa
discussão, uma questão que opera um deslocamento nessa rede de
problemas: seria preciso apontar qual é o lugar que esse cinema
reserva ao seu espectador, situado diante de uma mise-en-scène que
projeta e faz passar em uma tela muitas outras mises-en-scènes- os
vários sistemas de representação - que alimentam a vida social e
solicitam o trabalho ativo do sujeito, não apenas diante do filme,
mas inscrito nele, capturado pelo fluxo das imagens (Comolli, 2004).
Sem deixar de produzir uma mediação entre espectador e mundo,
o cinema, muito mais do que um produtor de representações so­
ciais e culturais, é também um analista minucioso dos sistemas de
representação que sustentam nossas crenças, valores e dinâmicas
relacionais. Trazer a experiência do sujeito para o centro do debate
significa dizer que o espectador habita esse lugar de passagem entre
a obra e a realidade que ela traz à tona, mostrando a importância de
um exame atento da dinâmica interna da obra, de sua força
singularizante; dito de outro modo, as imagens do cinema não são
apenas enunciados ou discursos, mas também práticas comparti­
lhadas que, para se disseminar e atuar nas relações sociais, preci­
sam oferecer ao sujeito um campo concreto de experiência.

Topografias da experiência sensível

Pensar um sujeito que se engendra e se constitui na relação


com a obra/filme, é partir do princípio de que não há um sujeito
prévio, de que a subjetividade deve ser produzida como processo,
como experiência estética, obra e sujeito em aberto. Em Kant, o
que torna a experiência estética possível é sempre a questão críti­
ca, assegurando a vocação moral do homem na “promessa de conci­
liação entre a Natureza e a humanidade”, no despertar da consciên­
cia de que a Natureza deva se ajustar ao sujeito (Eagleton, 1993,
p. 55). Na fenomenología da experiência estética, esse mundo que
nos fala é o principio de um mundo na evidência sensível, uma
reserva invisível do qual a superfície do visível está grávida e que
permite ao homem que a Natureza o produza, tornando visíveis
algumas das forças que impulsionam o próprio existir (Dufrenne,
1972, p. 24). A experiência sensível do espectador/leitor, em Deleuze,
passa pelo combate aos dados figurativos que compõem o mun­
do, a doxa, o visível, o significante. Trata-se de fender a cabeça
dessas imagens. Assim é que o autor, no livro A imagem - tempo,
faz de Irene, a burguesa de Europa 51, de Rosselini, uma “efígie
alegórica”, e toda a potência da efígie se prende às palavras que
Irene pronuncia, voltando das fábricas: “Creio ter visto conde­
nados”.

Com isso ela se torna a alegoria do artista: aquele que foi ao


deserto, que viu a visão excessivamente forte, insustentável e que,
a partir de então, nunca mais se conciliará com o mundo da
representação. Deleuze designa um rosto que alegoriza a ima-
gem-tempo e o que ela significa: o não-ajustamento, o desacordo
dos dados sensíveis, aquilo que precisamente o homem não pode
descrever, a paisagem antes do homem. (Rancière, 2000, p. 511).

Este imperceptível ou impensado da experiência do especta­


dor permite que as imagens do cinema sejam mais do que discur­
sos ou enunciados histórico-sociais, referidos a um espaço-tempo
real ou imaginado; permite a elas um outro papel, de vetores que
atravessam a própria experiência do espectador, transformando-a
em um campo em aberto, onde o filme chacoalha “evidências”,
saberes, pressupostos e realidades, de modo a deslocar os poderes
midiáticos que frequentemente operam por meio de muitas cer­
tezas a respeito do mundo.
E falar da imagem cinematográfica não é falar de qualquer
imagem, mas de uma “imagem do mundo” que concerne ao mes­
mo tempo ao “mundo da imagem”. De um lado, trata-se de uma
imagem de reprodução técnica que tem força e apelo justamente
porque se aproxima do objeto, porque é testemunha material e
transfere a presença daquele objeto para o espectador; é a exigência
da “montagem proibida”, em André Bazin, da “filmagem proibida”
em Serge Daney, de “uma linguagem universal de comportamento
mimético”, em Kracauer (Hansen, 2001, p. 515), do “fóssil radioati­
vo” de certas imagens, para Deleuze (1990, p. 138), ou, ainda, a
necessidade de uma teoria aurática da representação para dar conta
da memória de objetos e coisas deslocados do seu lugar de origem
(Marks, 2000). Por outro lado, a imagem do cinema, além de ser
meio de revelação, marcou, transformou e subverteu completa­
mente o real, moldando um mundo à sua imagem, ao inventar
modos de amar, de sonhar, de desejar, de ser. Essa realidade plástica,
cinética, experimentada funda a potência do cinema, sua fascina­
ção, revelando um mundo (o nosso) tecido por redes, relações,
artifícios, sempre modificáveis e por isso mesmo frágeis.
Concebida dessa maneira, há na experiência estética a in­
venção do espectador como sujeito do cinema, sujeito da experiên­
cia vivida, que é a projeção de um filme. É toda uma filosofia da
relação, na qual o hiato entre o que se vê (imagens) e o que se diz
(sons, diálogos, música) condiciona as tramas perceptivas, cognitivas
e afetivas que tecem tal relação. É também nesse lugar de passa­
gem que reside o sentido do filme, isto é, o corte entre “a cena e a
sala, entre um ator para um espectador, personagens para sujeitos,
um corpo para um outro, uma imagem para uma coisa” (Comolli,
2004, p. 212). Esse corte mostra uma face para o mundo e outra para
as imagens que o designam, e sustentá-lo implica incorporar silên­
cios, ruídos, borrões, tempos vazios e “estranhas lacunas” (Shaviro,
1993) que impedem os enclausuramentos do significado. Sustentar
esse plano significa afirmar a impossibilidade de estabelecer uma
relação de causalidade ou continuidade entre o mundo e as ima­
gens, liberando-nos dos modelos de reconhecimento com os quais
nos acostumamos a classificar o que nos circunda.
Explorar essa relação (sensível, sensorial) significa, enfim,
questionar a tarefa - que se quer crítica - do cinema brasileiro
como sendo única e exclusivamente a de representar o país, o povo,
suas diversidades e contradições, sua cultura. Dentro da perspec­
tiva da experiência estética, passa a ser também a chance de exibir
o aparecer paradoxal de corpos errantes e desterritorializados, a
impropriedade de seus trajetos e de suas expectativas, a insensatez
de ações, desejos e situações sem futuro, irredutíveis a uma defi­
nição ou enunciado determinado.
As representações da fronteira no cinema, ao projetar os
corpos “para fora” do território identitário que os envolve, rela­
cionando-os com lugares distantes, mas mentalmente próximos,
permitem que cada espectador possa estabelecer conexões e co­
munidades de pertencimento imprevisíveis. A esse respeito diz
Comolli que o cinema, como arte popular, “nunca foi £arte das
massas’ nem sequer um ‘meio de comunicação de massas’, na
medida em que sempre se dirige não a um público, mas a cada
espectador de modo singular”, portanto personalizado, único
(Comolli, 2002, p. 164). E certos filmes ativam mais do que outros
esse lugar do espectador, lugar que implica crença, dúvida, ilusão,
logro, demandando um exercício de subjetividade em meio a esse
cinema de fronteiras, itinerante, transnacional.

Fronteiras e imaginário nacionais

Sem rejeitar, portanto, o valor político do cinema brasileiro


como abrigo e produtor de representações socioculturais, gosta­
ria de enfatizá-lo também como lugar de experiência do sujeito
espectador, onde imagens de hibridismo, de desenraizamento, de
enfrentamentos com o desconhecido e imprevisibilidade ope­
ram um ponto de fuga nos discursos, um traço insondável, suge­
rindo-nos outras formas de pensar os filmes. Formas que solici­
tam o trabalho ativo do espectador, à medida que o inscrevem e o
capturam, no sentido da invenção de enunciados de nacionalida­
de como promessa e interrogação sempre por vir.
O que apontam, enfim, esses filmes onde o lugar da frontei­
ra evoca uma zona de indiscernibilidade? Creio que apontam para
a possibilidade de pensar o cinema brasileiro não na perspectiva
de uma história da cultura - embora ela tenha uma inegável rele­
vância, quando lembramos que, no Brasil, o cinema sempre foi
mais cultura do que lazer, induzindo-nos a estudar os enunciados
históricos, sociais e econômicos que o constituem e que foram plas-
mando-se ao longo de sua história - , mas na perspectiva do filme
como subjetividade estética. Sob esse ponto de vista, ganham im­
portância não simplesmente os modos narrativos que estilhaçam a
imagem de identidades nacionais, culturais, de grupo, sugerindo
uma comunidade perdida, mas o modo como os filmes trabalham,
na linguagem, o suspense de terras e comunidades imaginadas, a
exigência e a impossibilidade do sonho comunitário e fusionai.
Se, de fato, o cinema mundial, e especificamente o brasilei­
ro, tem dialogado com outros domínios do audiovisual contem­
porâneo (a videoarte, os teleshows da realidade, os diferentes ti­
pos de documentários, o videoclipe etc.), esses deslizamentos
entre-imagens não necessariamente conduzem a imagens de um
Brasil fragmentado, singular, heterogêneo; ao contrário, o que se
vê com frequência são imagens desejosas de instaurar uma falsa
totalidade, de retratar “o Brasil que o Brasil não conhece”, de retirar
realidades banais do domínio indiferenciado em que se encon­
tram para fixá-las em uma categoria determinada; mas a perspec­
tiva de um traço insondável nas formas cotidianas e dominantes
de nos reconhecermos (brasileiros, chilenos, venezuelanos etc.) é
o que atenta contra o sentido de uma totalidade homogênea. Não
se trata, portanto, do corpo estranho relacionado, por contraste, a
um outro - europeu, asiático? - , que estaria inserido em diferen­
tes sistemas culturais e diante do qual viemos construindo a ima­
gem de nós mesmos; trata-se de um corpo estranho que, longe de
construir comunidade e copertinência, é a face oculta de todo e
qualquer desejo de unidade.
Certos filmes têm uma contribuição a dar a essa discussão,
porque criam imagens dissonantes, imagens que partem de ou­
tros referenciais para pensar o tema da fronteira geográfica e cultu­
ral. Seus personagens não suscitam piedade ou compaixão (identi­
dade) e nem o sentimento do extravagante ou do “fantástico”
(alteridade); pelo contrário, são construídos a partir de enfrentamentos,
imprevisibilidade, negociação, porque no centro dessas representa­
ções existem seres singulares e seus encontros, relações intersubjetivas
que implicam lacunas, vazios e fraturas múltiplas.
De fato, o cinema brasileiro, sobretudo a partir da década de
1990, tem no problema da migração um dos seus aspectos mais
reveladores e que expressa um deslocamento com relação ao cine­
ma da década de 1960, quando ele “se apressava em interligar ser
social, economia e caráter, colocando no centro a questão da ideo­
logia” (Xavier, 2000, p. 104), e o cineasta se via como portador de
um mandato que se concebia oriundo do próprio “tecido da
nação, suposto muito mais coeso e já constituído do que, em
seguida, a realidade veio mostrar” (Xavier, 2000, p. 99). Muitos
dos filmes recentes sobre migração e desenraizamento ressaltam
os encontros inesperados, singulares, as conexões casuais entre
desconhecidos ( Terra estrangeira, Estorvo, Do outro lado do rio )
que apontam, sem dúvida, para esse deslocamento.
Se é certo que há uma atualidade nesse tema - falar de um
país inserido em uma rede global de relações econômicas, sociais,
políticas e culturais, junto com o questionamento dos centros
hegemônicos e a entrada em cena da “periferia” do mundo - , a
representação dessas conexões aleatórias e casuais nos estimula a
liberar da significação a realidade produzida pelo filme; e nos es­
timula, porque se trata de imagens operadoras de disjunções, que
se filiam ao cinema da imagem-tempo, ao enfatizar o desconforto
e a crise como condição para um outro pensamento, seja dos po­
vos, das comunidades, das culturas, das nações, do tempo por
vir (Deleuze, 1990). Mas, por que essas imagens insistem em
representar laços de solidariedade que se fazem no presente das
circunstâncias, independentemente do passado, futuro, da lín­
gua - laços, portanto, frágeis e que não geram ação? Qual seria a
proposta de tais imagens, cujos desdobramentos não produzem
consensualidade, conforto e reconhecimento?
Algumas reflexões ressaltam a importância desses encontros
casuais no cinema atual, destacando o estigma da morte como
uma forma de expressar “as determinações vindas de processos
mais amplos” e uma “afinidade que está fora de lugar” (Xavier,
2000, p. 120). É verdade que há uma reiteração da morte, ou de sua
ameaça, em muitos dos filmes brasileiros sobre migração, mas
creio que a morte é uma possibilidade, uma promessa entre ou­
tras, porque, independentemente dos personagens morrerem ou
não, o que interessa em Terra estrangeira, Os matadores, Passaporte
húngaro, Estorvo é o encontro, não o individuado por determi­
nações psicológicas, mas o encontro sob o modo de um aconteci­
mento que não passa por uma forma. O encontro em seu caráter
de impessoalidade, furtando-se às causalidades, irredutível e sin­
gular no que demanda enquanto experiência sensível.
Há um momento no filme Os matadores em que Toninho
(vivido pelo ator Murilo Benício) decide perambular pelo comér­
cio da região que faz fronteira entre Brasil e Paraguai. Trata-se de
uma longa sequência na qual podemos ouvir a música sanfonada,
a língua hispânica, ver os costumes do povoado etc. A câmera é, na
maior parte do tempo, a subjetiva de Toninho, provocando uma
indistinção entre personagem/ator, entre representação/realidade,
entre artefato/verdade. O personagem é também espectador da cena
em que atua, deslocado, estrangeiro, estranho, de modo que não é
só o olhar dele que é tema, mas também as coisas que se dão a ver
(para ele e para o espectador), produzindo uma tensão fecunda en­
tre ver e mostrar, entre o dentro e o fora, entre ficção e documentário,
entre as línguas portuguesa e espanhola. O ponto de vista de
Toninho se torna sensível como um campo de forças entre perso­
nagem, filme e espectador, criando urna zona de indiscernibilidade
que desloca todos os limites para explorar devires insólitos,
imprevisíveis, pois a graça da sequência - a gagueira do persona­
gem, o diálogo absurdo com a vendedora, a moça que nada en­
tende - nasce dessas indistinções.
Em Terra estrangeira, há o encontro amoroso do casal de
brasileiros em Portugal, o que sugere uma terra por vir. Se a even­
tual morte do rapaz elimina essa possibilidade afetiva, importa o
encontro dos dois - em meio ao vazio, à rarefação dos limites, ao
esgarçamento esmagador do espaço e do tempo - , que sinaliza
para todas as experiências de ruptura com os antigos territórios
(afetivos, simbólicos, nacionais), experiências que desarranjam
formas, hábitos, convicções, individualidades. A “casa”, a caminho
da qual o jovem Alex (vivido pelo ator Fernando Alves Pinto) se
põe, não evoca o sentimento do “sentir-se em casa”, pois, longe de
sinalizar para o conhecido e estável, sinaliza para o estrangeiro na
sua dimensão instável, caótica e flutuante.
Em Passaporte húngaro, a câmera de Sandra Kogut quer fa­
zer o espectador experimentar um descompasso próprio a um
sujeito que vê e nos mostra o seu campo de visão, a sua história.
Trata-se de um dispositivo que afirma o olhar da diretora sob o
modo da alteridade (e não da identidade), uma visão com corpo,
em contato, que provoca situações e reage a elas, que ao falar de si
também fala de um mundo intercultural, de afiliações translocais,
de novos mapas de pertencimento e despertencimento muito além
ou aquém das fronteiras nacionais e geográficas (Appadurai, 1998).
Ao explorar resíduos de situações, fragmentos de conversas com a
avó, a realizadora nos intima a pensar o que é um sujeito hoje
senão aquele que se forma nos entrelugares, nas misturas cultu­
rais, no processo de ir e vir.
Para flagrar essa hibridação, a cineasta reitera sua presença
na câmera e na voz, explorando o ato de dialogar através do seu
olhar-corpo. No limite, Kogut documenta a sua presença na relação
com o outro (da língua, da paisagem, da nação, do território), pois
o sentido está sempre aberto à interpretação e à interpelação de al­
guém. As imagens soltas e reiterativas de estações ferroviárias,
bondes, barcos, trens, gente passando, se inscrevem no filme
como se fossem o lugar das misturas linguísticas, culturais, dos en­
contros fortuitos, um lugar entre parênteses que, assim como a bus­
ca pelo passaporte (origem, raízes, identidade), requer hibridismo,
desterritorialização, deslocamento, reinvenção dos limites.
Se o sentimento de trágico habita cada encontro em Terra
estrangeira, no filme Estorvo é o sentimento de aberração. Neste
filme, o protagonista (o ator cubano Jorge Perrugoria) passa o
tempo todo fugindo, correndo, tentando escapar. E do que ele foge?
Foge da possibilidade aterradora das misturas, das indistinções,
das desconexões do tempo, das diluições das fronteiras geográfi­
cas, da desintegração do sujeito, do terrível ardil que subsiste em
cada encontro. Foge de um mundo aberrante onde os territórios
nacionais foram diluídos, aniquilados - as cidades de Havana, Rio
de Janeiro e Lisboa se misturam indistintamente - , e só a morte,
sob a forma de um acontecimento (Deleuze; Guattari, 1997a), pode
restituir um novo estado de coisas.
No documentário Do outro lado do rio, ao contrário, há
um desejo intenso de estar e ultrapassar a fronteira. A fronteira
entre o Brasil e a Guiana Francesa é imaginada (e, portanto, vivida)
como linha divisoria entre dois mundos absolutamente distintos.
Para os brasileiros, atravessar o rio significa passar para urna vida
melhor. O estrangeiro é desejado, sonhado, idealizado, profunda­
mente querido. Em um certo momento do filme, há um encontro
entre a secretária Elaine, que deseja um novo visto para Guiana,
apesar de não falar uma única palavra em francês, e o chefe da
aduana, que não fala absolutamente nada de português; trata-se
de um encontro fundamental no que possui de impessoalidade, de
singularidade, de inventividade. O diálogo entre eles é tortuoso,
gaguejante, cheio de impurezas, mal-entendidos, desejos, risos,
olhares oblíquos. Pergunto-me, ao rever essas imagens, que língua
é falada ali? Para além do que tem de graça e humor, o diálogo
(francês, português, gestual?) parece denunciar a língua como pá­
tria e exílio, sentimento de pertencimento e despertencimento,
numa circulação de afetos impessoais que tumultua o que seria
a língua identitária em prol de uma corrente alternativa (Deleuze;
Guattari, 1997b, p. 12). O encontro-acontecimento dos dois re­
vela a comunicação em sua condição paradoxal pelo seu caráter
inconclusivo.
Gostaria, por fim, de comentar brevemente o projeto Fron­
teiras, realizado pelo Itaú Cultural, em 1998. Nesse evento, fotógra­
fos, escultores e artistas plásticos foram convidados a participar de
uma ação coletiva, com o objetivo de propiciar um espaço de criação
em escala pública, ou seja, fora dos espaços tradicionais de expo­
sição de arte (museus, galerias etc.). No âmbito do audiovisual,
foram convidados os artistas Carlos Nader, Lucas Bambozzi,
Marcello Dantas, Roberto Moreira e Sandra Kogut. A proposta era
percorrer diversas regiões fronteiriças do Brasil, de Norte a Sul,
registrando conversas, encontros e desencontros, construindo his­
tórias, interpretando experiências que resultaram na série Viagens
na fronteira.
Nesses cinco trabalhos, todos curtos, alguns com duração
inferior a 10 minutos, a ideia de fronteira sugere um excesso de
horizontes, de possibilidades, de caminhos insuspeitos; sugere a
percepção de um país imenso, de dimensões continentais, distan­
te da experiência histórica de limites conquistados no conflito
com outras nações e culturas (caso dos cinemas do leste europeu,
do cinema estadunidense, onde a fronteira é um limite imposto
pela força, e a reação a esse limite é de repúdio e confronto). Nes­
ses trabalhos, o limite se traduz em experiência visual, sonora e
sensível, na distância imensa e indeterminada entre as divisas a
produzir uma experiência forte de Brasil.
Em São Gabriel da Cachoeira - San Felipe>Carlos Nader re­
gistra uma viagem com o poeta Waly Salomão até a Cabeça do
Cachorro, região onde o Brasil faz fronteira com a Colômbia.3
Os limites físicos são invisíveis aqui, mas não o teatro, a palavra

3. Parte do material desse curta foi usada no documentário “Pan-Cinema Perma­


nente”, registro de vários momentos e épocas da longa relação de amizade entre
Nader e Waly. Foi vencedor do 13o Festival É Tudo Verdade (2008).
poética, a relação exposta entre diretor e personagem a convocar
o corpo de Waly e a presença ativa da câmera/Nader; banhar-se
nas águas do rio Negro é dissolver limites, contornos, conclamar
uma outra memória do corpo e do próprio cinema documentário,
historicamente erigido a partir de encontros entre diretor e per­
sonagem - sejam eles exibidos, sejam ocultados. Em Chui, Lecy e
Humberto nos Campos Neutrais, de Sandra Kogut (vídeo e Super 8),
a fronteira torna-se o horizonte da ficção, e a ficção é horizonte de
todo e qualquer mundo; aqui, é o limite do Brasil com o Uruguai
que está em foco, divisa que inventa múltiplas tramas narrativas
(das melodias às histórias de encontros e desencontros, preconcei­
tos, saudades), e onde a palavra do outro é a palavra do mundo,
itinerante, sem lugar e sem identidade; as imagens em Super 8 satu­
ram ainda mais a sensação do tempo longo, indistinto, de modo a
aumentar o sentimento de desventura que a fronteira produz.
Essas experiências, realizadas pelo Itaú Cultural, interessam
pelo poder de sugestão que possuem: sinalizam para a possibili­
dade de poder falar do Brasil e do cinema como domínios a serem
inventados, dando espaço para outros percursos visuais e sonoros
no interior da imagem. Pouquíssimo visto, sem exibição nos cir­
cuitos comerciais ou mesmo alternativos, falar desse conjunto de
curtas é também celebrar sua breve existência (França, 2007).

A partir da ideia central das representações da fronteira no ci­


nema brasileiro recente, procurei selecionar filmes que tensionassem
e denunciassem, nas formas e nos procedimentos, os mais diversos,
a vontade histórica do cinema e do pensamento de cinema no
Brasil de reconstruir, representar, tematizar a totalidade do país,
de inventar uma interpretação social do Brasil. Tais narrativas e
imagens, aqui selecionadas, exploram dramaturgicamente a expe­
riência da fronteira - seja do Brasil com o Paraguai, com a Guiana
Francesa, com Portugal, com Cuba - e permitem, nesse movimento,
que esse limite desloque as representações que trabalham a fron­
teira cultural, étnica, seja como limite duro, intransponível, seja
como uma forma vazada, maleável, na qual se pode “entrar” e “sair”
sem resistências.
Embora as imagens da fronteira erijam identidades e alteridades
imaginadas, nesses filmes, o limite se coloca também como inda­
gação, como pergunta essencial e interminável. Privilegiar essa
indagação é buscar também outros caminhos no interior da ima­
gem, procurando a forma inacabada como um modo de criar o
Brasil no cinema e inventar um cinema no Brasil.

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9, jun. 2000.
MÓDULO IV
Recepção e audiência
D ia le to e m o d e r n id a d e n o
c in e m a s in ó f o n o d o s é c u lo X X I* '

Sheldon Lu

Assim como a China é o país que possui a maior população


no mundo, seus habitantes falam uma enorme variedade de diale­
tos ( fangyan) e línguas (yuyan). Atualmente, novas tecnologias de
informação, tais como, o rádio e o cinema, potencialmente pro­
metem falar a todos os cidadãos do Estado-nação. Mas que língua
deve ser considerada padrão para todos os cidadãos? O cinema,
como uma mídia moderna e modernizante, poderia padronizar e
unificar a língua da nação. Nesse sentido, obviamente, língua e
dialeto têm sido um aspecto particularmente importante no cine­
ma chinês desde o início do século XX até o presente momento.
Na verdade, o uso de um dialeto específico em um filme diz res­
peito a nada menos que a construção simbólica do moderno esta­
do-nação chinês. Como bem sabem os historiadores do cinema
chinês, o Partido Nacionalista (Kuomintangou Guomindang) em

* Tradução de Lúcia Lovato Leiria. [N. T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Este artigo é uma versão traduzida e reduzida de“Dialect and modernity in 21st century
Sinophone Cinema”, Jump Cut, n. 49, spring 2007.
Nanjing estabeleceu um conselho de censura de cinema logo após
a unificação da China em 1927. A República Popular da China
determinou que o mandarim se tornasse a lingua franca do cine­
ma chinês e proibiu o uso de dialetos locais, como o cantonês.
Uma China unificada deve ter uma língua chinesa unificada. As­
sim, o cinema falado em cantonês poderia somente ser realizado
fora da soberania da nação chinesa, na ilha de Hong Kong.
Quando a República da China mudou-se para Taiwan, após
o final da dominação japonesa, os habitantes que detinham poder
em Taiwan estabeleceram o mandarim como o dialeto oficial da
ilha. Existem dois cinemas paralelos em Taiwan: o cinema falado
em taiwanês (hokkienese) e o cinema falado em mandarim. Após
a queda do Partido Nacionalista e com o surgimento de senti­
mentos separatistas e pró-independência em Taiwan desde o final
do século XX, o dialeto local adquiriu importância em todas as
esferas da vida, inclusive na política presidencial. Além de utilizar
uma variedade de línguas e dialetos, a nova geração de cineastas
de Taiwan, como Hou Hsiao-hsien, tem também explorado cons­
cientemente as complexidades políticas e históricas que envol­
vem a China e Taiwan. Essa pluralidade linguística é mostrada em
alguns de seus filmes, principalmente em A Cidade das Tristezas
(Beiqing chengshi), onde se escuta uma profusão de dialetos e lín­
guas: mandarim, hokkienês, hakka, shanganês e japonês. Além dis­
so, o protagonista do filme é um fotógrafo surdo, incapaz de falar
qualquer dos dialetos chineses/taiwaneses. Essa situação, portanto,
intensifica a questão de qual deveria ser a língua materna de Taiwan.
Quanto a Hong Kong pós 1949, também podemos falar em
dois cinemas paralelos: o cinema falado em cantonês e o falado
em mandarim. Embora inicialmente predominante, o cinema fala­
do em mandarim foi gradualmente perdendo sua ascendência em
relação ao cinema falado em cantonês, devido a grandes mudanças
sociais e demográficas, denominadas movimentos de catequização,
ou “Hong Kongization\ a partir da década de 1970.
Na República Popular da China, a política oficial do cinema
determinou que o mandarim fosse a língua padrão do cinema,
apesar da grande variedade de dialetos chineses existentes dentro
da nação. A esmagadora maioria dos filmes produzidos na China
tem de fato utilizado o mandarim. No entanto, no período de
“Reformas e Abertura” pós-Mao, surgiu uma variedade de produ­
ção cinematográfica, e a política linguística tornou-se mais
diversificada. A determinação de usar somente o mandarim foi
definitivamente ignorada. Mesmo os filmes da mainstream (Xuan
Zhu lii) que retratam a vida de ex-líderes do país geralmente usam
os dialetos locais dos personagens em questão. Por exemplo, o
ator de Mao fala um dialeto hunanês, como falou o próprio Mao
durante a sua vida. O ator Yue Gu, consequentemente, ficou fa­
moso e conhecido por seu personagem que se parecia e falava
como Mao. Nesses casos, o uso de dialetos locais (“estranhos”,
“curiosos”) cria uma atmosfera de realismo, ou, no caso da co­
média, provoca risos no público. Enquanto isso, cineastas cons­
cientes do cinema de arte também empregam dialetos locais es­
pecíficos para alcançar determinados efeitos estéticos. Fora da
soberania do Estado chinês (República da China ou República
Popular da China), a questão do dialeto chinês ainda é um tanto
delicada. A cidadania chinesa em si pode não ser mais relevante,
mas as questões de etnia, identidade chinesa e multiculturalismo

A
assumem grandes proporções. Por exemplo, Cingapura é um país
independente da China e é dirigido por uma elite de etnia chine­
sa. A sua política linguística e seu cinema trazem à tona um novo
conjunto de aspectos para o estudo do cinema de língua chinesa.2
Além disso, na virada do século XXI, a produção e a circulação
generalizadas de filmes em língua chinesa fora do Estado-nação
chinês, na diáspora e no mundo, complicaram ainda mais a polí­
tica linguística no discurso cinematográfico.
Este ensaio tem como objetivo explorar o uso de dialetos
em vários filmes falados em língua chinesa no início do século XXI.
Analiso rapidamente como exemplo alguns desses vários filmes:
- um filme de arte sobre a China continental, O M undo
(2004), de Jia Zhangke, cujos trabalhos desenvolveram uma esté­
tica cinematográfica dialetal baseada nos dialetos Fenyang e
Datong, de Shanxi;
- os filmes pan-chineses de Zhang Yimou, H erói (2002) e O
Clã das Adagas Voadoras (2004), que envolvem um elenco de es­
trelas da Grande China, todas falantes do mandarim.
Analiso como esses filmes articulam olhares distintos da Chi­
na como Estado-nação ou de identidade chinesa como etnia. Os fil­
mes dirigem-se a diferentes públicos e incorporam várias concep­
ções sobre a China. A forma como um filme explora determinados

2. Esta questão é retomada em um excelente estudo de: M archetti, Gina. Global


Modernity, Postmodern Singapore, and the Cinema of Eric Khoo. In: Lu, Sheldon
H.; Yueh-yu Yeh, Emilie (E d s.). Chinese-LanguageFilm: Historiography, Poetics,
Politics. Honolulu: University of Hawaii Press, 2005. p. 329-361.
dialetos locais e provincianos, ou não, é um aspecto importante
do imaginário cultural de um filme, seja sobre a economia moral
da nação continental chinesa, seja sobre o aspecto histórico-cul-
tural da China. Em termos gerais, apresento as diferentes vertentes
dialetais na produção cinematográfica contemporânea falada em
chinês. Elas relacionam-se à formação da identidade em vários
níveis: local, nacional, subnacional, supranacional e global.

Uma dançarina migrante em O Mundo

Para efeitos de análise da série de filmes falados em dialetos


chineses, chamo a atenção para O Mundo (Shijie, 2004), dirigido
por Jia Zhangke, o garoto prodígio da chamada sexta geração do
cinema de arte chinês. Coerente com o uso do dialeto em seus
filmes anteriores, Jia Zhangke fez de O Mundo mais um filme
falado no dialeto de Shanxi. No entanto, ao se passar na Pequim
do século XXI, o filme utiliza a linguagem de uma forma que
conota mais que um dialeto provinciano; intervém na condição
mista pré-moderna, moderna e pós-moderna da China como um
todo.
A protagonista do filme Zhao Xiaotao é uma dançarina do
Parque Mundial de Pequim (Shijie gongyuan). O Parque Mundial é
composto de réplicas em miniatura de lugares famosos do mundo:
a Torre Eiffel, a Notre Dame, as Pirâmides, o Vaticano, a Ponte da
Torre (Londres), a Ilha de Manhattan, entre outros. Trata-se de uma
simulação do mundo onde os turistas podem vivenciar de forma
vicária os monumentos estrangeiros. Zhao Tao, a atriz principal, já
foi dançarina em Shanxi, até ser conhecida e escolhida por Jia para
estrelar em seus filmes. Ela também desempenhou papéis femini­
nos importantes nos filmes Plataforma (Zhantai, 2000) e Prazeres
Desconhecidos (Ren Xiaoyao, 2002).3
Como outros trabalhadores imigrantes, Zhao Xiaotao, ori­
ginária de Fenyang, província de Shanxi, foi para Pequim em
busca de novas oportunidades. Ela dança para entreter os visitan­
tes do Parque Mundial à noite. Durante cada show, veste trajes
indianos exóticos e fascinantes e dança em um enorme palco jun­
to com outros dançarinos que representam várias nacionalidades.
Após trocar de roupa, retorna a sua função rotineira de trabalha­
dor imigrante que tenta ganhar a vida na capital da China.
Bailarinos russos também trabalham no Parque Mundial. Os chi­
neses e os russos não falam muitas línguas estrangeiras. Mas Zhao
Xiaotao identifica-se com uma jovem russa, Anna, e elas conse­
guem comunicar-se, apesar das dificuldades linguísticas. No meio
do filme, Anna, além de sua rotina de dançarina, recorre a algo de
que não gosta para sobreviver, passa a ser funcionária/prostituta
em uma boate.
Fora do mundo artificial do parque, os espaços da vida real
são lugares tristes para as pessoas que trabalham lá. Esses trabalha­
dores imigrantes são profissionais deslocados na capital da China.

3. Xiaoping Lin apresenta um estudo criterioso dos filmes de Jia em seu ensaio “Jia
Zhangke’s Cinematic Trilogy: A Journey across the Ruins of Post-Mao China”. In:
Lu, Sheldon H.;Yueh-yuYeh, Emilie (Eds.). Chinese Language Film\ Historiography,
Poetics, Politics. Honolulu: University of Hawaii Press, 2005. p. 186-209.
O belo cartão postal, o simulacro pós-moderno dos monumentos
do mundo, contrasta fortemente com as condições miseráveis da
vida moderna dos trabalhadores e animadores do local. O primi­
tivo está condenado a viver num pequeno canto do amplo mun­
do. O Parque Mundial funciona como monumento à integração
do imaginário da China ao mundo em geral, mas os habitantes
(personagens) da província de Shanxi não participam desse ad­
mirável mundo novo. Eles são itinerantes à margem da moderni­
zação da China. Na verdade, essas pessoas são apelidadas de “jituan
Beipiaó” (grupo itinerante do norte). Essa população itinerante
vai para Pequim para perseguir sonhos e procurar emprego, so­
mente para serem abandonados. Eles vivem em um universo falso
e só podem sonhar em conseguir uma carona na onda do enri­
quecimento. No final do filme, ocorre uma tragédia: Zhao Xiaotao
e seu amante Taisheng, um oficial de segurança do Parque, são
inadvertidamente envenenados com gás em seu apartamento. Eles
quase morrem.
O filme utiliza um dialeto da província de Shanxi, falado
por Zhao Xiaotao, Taisheng, e personagens de sua cidade natal,
Fenyang. O dialeto local falado por esses personagens vai de en­
contro ao anônimo e universal putonghua (mandarim) procla­
mado nos alto-falantes do parque. O dialeto provinciano aqui
denota atraso, falta de modernidade e incompatibilidade de uma
China pobre com um mundo pós-moderno virtual. Esses
migrantes representam inúmeros cidadãos chineses que foram
esquecidos pelo crescimento econômico da China e que não con­
seguiram nenhum dos frutos da modernização. O Parque Mundi­
al apresenta o mundo aos visitantes chineses, mas, por trás de sua
aparência brilhante, reside a mera luta dos cidadãos pela sobrevi­
vência. Na verdade, o mundo virtual em miniatura aprisiona seus
trabalhadores e é uma paródia da globalização. O provincianismo
do dialeto e dos personagens revela que as províncias não acom­
panham Pequim, a capital, e que as pessoas não dançam na mesma
batida moderna em todo o imenso país.
Nos dias chuvosos e escuros, os personagens sonham com
situações reais e mais felizes na vida - amor, amizade, festa. Os
lampejos de esperança, neste filme, são mostrados em curtas e ilu­
minadas sequências de animação - fantasias surreais, infantis e de
histórias em quadrinhos, que não podem se tornar realidade. Se
um amante ou amigo deixa uma mensagem no celular, ela parece
ser a única fonte de felicidade dos personagens. O toque do tele­
fone, portanto, rapidamente traz esperança e mobilidade aos per­
sonagens que se encontram cheios de dificuldades. Toda a vez que
Zhao Xiaotao recebe uma mensagem, o filme transforma-se em
animação e assume um colorido brilhante e esperançoso. Ela en­
tão corre para o local para encontrar o amante ou os amigos. O
mundo dos sonhos e a dura realidade justapõem-se e entrelaçam-se
no simulacro pós-moderno do Parque Mundial. A vida privada da
dançarina Zhao Xiaotao periodicamente entra e sai da sincronia do
ritmo da globalização.
O Mundo revela a estética cinematográfica habitual de Jia:
câmera imóvel e estática, deslocamento lento e horizontal,
sequências longas, planos médios e inexistência de close-ups. Ao
privar o público de close-ups, o filme mantém uma distância
crítica entre espectadores e ator. Para o espectador comum, a uti­
lização do dialeto de Shanxi no filme também gera um efeito de
estranheza, distanciamento e alienação. O espectador é posicionado
como um observador frio, independente dos acontecimentos que
se desenrolam ao longo do filme. Ela/ele é convidado pelo olhar
da câmera para ser testemunha de uma descrição realista e objeti­
va do mundo chinês caracterizada pela grande disparidade e falta
de sincronia entre seus cidadãos, envolvidos nos jogos intensos
da modernização e da globalização.
Além de Jia Zhangke, recentemente, outros diretores emi­
nentes têm utilizado dialetos na elaboração de sua linguagem ci­
nematográfica. Os dois filmes do jovem e popular diretor Lu
Chuan são filmes que exploram os dialetos. Por exemplo, A Arma
Perdida (Xun Qiang>2002) utiliza um dialeto da província de
Yunnan. O sotaque “engraçado” da província, juntamente com o
desempenho estelar de Jiang Wen, incrementa o senso cômico do
filme. Kekexili (Patrulha da Montanha, 2004) mistura a língua
tibetana e o dialeto chinês falado em Qinghai, no Tibete. O jeito
de falar dos personagens impregna o filme com um sentimento
autêntico, documental, cru, corajoso. Peacock, o vencedor do Urso
de Prata (Grande Prêmio do Júri) no Festival de Cinema de Berlim,
em 2005, foi dirigido por Gu Changwei, diretor de fotografia que
se tornou diretor. Durante todo o filme, ouve-se o dialeto de
Anyang, da província de Henan. Aqui, a fala local dessa região
ajuda a transmitir o estilo de vida em confinamento de uma famí­
lia comum chinesa em uma pequena cidade do interior no final
da década de 1970, período de transição da história chinesa entre
a economia socialista de Mao e a economia de mercado de Deng,
um tempo que despertou esperança e desespero. Quando os ofi­
ciais paraquedistas do Exército de Libertação do Povo chegaram à
cidade, Sister encantou-se com o elegante sotaque de Pequim de
um oficial jovem e bonito. Aqui, a conotação é a de que o dialeto
de Pequim, como “fala padrão nacional”, representa os sonhos e as
esperanças dos falantes do dialeto local.

O mundo dos dançarinos


heróis das artes marciais

Passo agora a examinar como a língua funciona em outro


tipo de filme chinês, ou seja, nos blockbusters comerciais de Zhang
Yimou: Herói (Yingxiong, 2002) e O Clã das Adagas Voadoras
(Shimian maifu, 2004). Nesses filmes, somente o mandarim pa­
drão é utilizado. “Sob o céu” (tianxia), esses heróis falam o
putonghua universal. Seus combates e embates parecem-se mais
com sequências de dança coreografada do que com uma luta. São
utilizados efeitos especiais para melhorar a qualidade de impro­
váveis combates de artes marciais. Na verdade, no início de O Clã
das Adagas Voadoras, o personagem de Zhang Ziyi, Xiaomei, um
membro de uma sociedade secreta, finge ser um bailarino cego,
representando uma dança extraordinária ao estilo da dinastia Tang
durante prazerosos quinze minutos.
Os personagens dos filmes são originários do norte da Chi­
na - especialmente da terra natal de Zhang, a província de Shanxi.
Herói está ambientado em Qin (atual província de Shanxi), O Clã
das Adagas Voadoras se passa durante a Dinastia Tang e está ambi­
entado no Condado de Feng Tian, perto da capital Chang’an, ou
atual Xi'an, na Província de Shanxi. Mas o mandarim falado por
alguns dos antigos heróis de Zhang e especialistas em artes marci­
ais é um mandarim com um leve sotaque. Embora levemente
marcadas, as falas de Tony Leung, Maggie Cheung e Andy Lau não
soam como o elegante mandarim dos atores e atrizes do conti­
nente chinés em filmes tradicionais e dramas históricos. O cine­
ma dramático chinés e as academias de cinema têm treinado seus
atores para falar e agir de urna forma apropriadamente “dramática”.
Talvez a situação assemelhe-se à diferença existente entre atores bri­
tánicos formados na Companhia Real de Shakespeare e universitá­
rios estadunidenses ao encenar uma obra de Shakespeare. Trata-se
do mesmo jogo, mas muito diferente quanto à expressão, à apre­
sentação e à convenção da fala.4 Parece que o mandarim falado por
estes megastars mais bem pagos de Hong Kong não tem o lirismo
e a eloquência que esperam os espectadores do interior da China
e de Taiwan. Mas o diretor Zhang Yimou tem toda a Ásia e o mer­
cado mundial em mente, e ele usa o estrelato para apelar a um
público global. Ele está espelhando-se no exemplo do sucesso de
bilheteria mundial de O Tigre e o Dragão, famoso pelo sotaque
cantonês dos atores principais (Chow Yun-fat e Michelle Yeoh). A
falta de plausibilidade dialetal não afeta a calorosa recepção inter­
nacional do cinema de Ang Lee. Os espectadores não entendem
nenhum dialeto chinês e dependem da tradução legendada em
inglês, que em si é plena de um clássico lirismo. Portanto, não
importa se o elenco de superstars de Zhang Yimou se expressa em

4. Observação feita por Chuck Kleinhans em com unicaçao pessoal.


um mandarim marcado pelo sotaque de origem em seus filmes
de artes marciais. O que importa é que a presença dessas estrelas
da Grande China garante o sucesso de bilheteria.
Maggie Cheung e Tony Leung, em Herói\ e Andy Lau (Captam
Liu), em O Clã das Adagas Voadoras, falam um cantonês com so­
taque de mandarim; e Jin Chengwu (Takeshi Kaneshiro, Captam
Jin), em O Clã das Adagas Voadoras, fala com sotaque do
mandarim de Taiwan (guoyu Taiwan). Não é verdade afirmar-se
que só havia falantes de um mandarim puro na China antiga. A
questão é que as expectativas linguísticas do público têm sido con­
dicionadas por aquilo que é visto na tela e na TV. As séries de
televisão e os dramas históricos produzidos na China continental
e em Taiwan são vistos por pessoas de Hong Kong, Taiwan e da
diáspora chinesa. Elas estabelecem o padrão do que seriam os even­
tos e os personagens históricos plausíveis. Os atores do interior
da China, como Chen Daoming, em Herói\ e Zhang Ziyi, em O
Clã das Adagas Voadoras, portanto, parecem ser personagens mais
reais e roubam a cena. O ator Chen Daoming, que estudou em
Pequim, empresta voz ao Primeiro Imperador e expõe as virtudes
da criação de um grande império chinês, um mundo chinês
globalizado - tianxia.
Herói é também uma história sobre o idioma, a escrita e a
caligrafia da China. Quando o assassino Wuming (literalmente “Sem
Nome”, Jet Li) diz ao Imperador que há dezenove maneiras de es­
crever a palavra jian (espada), o imperador retruca dizendo que, em
seu futuro mundo unificado, não haverá essa confusão causada por
tantas formas de escrever-se uma palavra, que haverá apenas uma
forma para escrevê-la. Na verdade, o histórico Primeiro Imperador
foi quem unificou o idioma chinês. Ele ordenou que todos os
antigos estados feudais adotassem o sistema Qin Zhuan {zhuanti)
como escrita chinesa padrão. A ideologia nacionalista do filme
pode passar despercebida para o público mundial, para pessoas
que não sejam especialistas e não estejam familiarizadas com as
políticas interna e externa da China, à medida que se deixam en­
volver pela bela cinematografia, pela fantástica coreografia de ação
e pelos espetáculos neo-orientais. O filme de Zhang faz uma leve
referência à história real da tentativa de assassinato do Primeiro
Imperador por Jing Ke, conforme está nos registros históricos,
mas os detalhes são bastante ficcionais. Jing Ke realmente tenta
matar o Primeiro Imperador no Tribunal de Qin, mas Wuming
desiste de seu plano original, torna-se um seguidor da ideologia
do Imperador da Grande China e voluntariamente sacrifica sua
vida em prol da unidade nacional.5
Objetivando angariar a bilheteria mundial, Zhang Yimou não
se preocupa se o mandarim soa impuro ou pouco autêntico aos
ouvidos de falantes do idioma chinês. Aquilo que tem importân­
cia para Feng Xiaogang, não o tem para Zhang. A autenticidade
dialetal é importante para o efeito do realismo ficcional nos fil­
mes de Feng. Como sabemos, os filmes de Feng são extremamen­
te populares na China, mas não circulam nas salas de cinema do

5. Yingjin Zhang salienta que“aos olhos de muitos críticos chineses, a arte é coniven­
te com a política na submissão simbólica de Zhang ao poder tirânico em uma
nova alegoria da China unificada como tianxia (literalmente ‘debaixo do céu’).” In:
Zhang, Yingjin. CA/tfíw National Cinema. New York; London: Routledge, 2004.
p. 293.
exterior. Mas Zhang Yimou visa à criação de um mundo pan-chi-
nês, pan-mandarim na área da Grande China para seus filmes cir­
cularem livremente. A autenticidade linguística não é um proble­
ma no mercado-alvo internacional.
Além disso, o efeito desejado é a criação de uma linhagem de
filmes chineses supranacionais para serem vistos e apreciados pelo
público mundial. O Zhang Yimou das artes marciais pan-chinesas já
se distanciou um tanto de um Zhang iniciante que cuidadosamente
explora os problemas sociais contemporâneos da China continen­
tal. Por exemplo, em A História de Qiu Ju (1993), a autenticidade
dialetal é crucial para a estética do filme. Gong Li e outros atores
tiveram de aprender a falar o dialeto de Shanxi corretamente, para
retratar seus personagens com fidelidade. Mais especificamente o
dialeto Shanxi utilizado no filme não é um dialeto Shanxi comum,
mas o dialeto de Baoji, “o resultado do encontro de imigrantes de
Sichuan, Gansu e Ningxia.” Como nos lembra Edward Gunn,
“como Zhongjiang e Wanxian na comédia sobre Chengdu e
Chongqing, ou Subei, na comédia sobre Xangai, os moradores de
Baoji foram ridicularizados em X ifnaycomo o estereotipo de bár­
baros, excéntricos de raciocinio lento.”6
O dialeto Baoji soa de forma ainda mais caipira e local que
alguns outros dialetos de Shanxi. Mas esse tipo de realismo
linguístico e atmosférico não é mais levado em consideração nos
novos filmes de Zhang, cujo sucesso deve-se à fabricação de cenas e

6. Gunn, Edward M. Rendering the Regional: Local Language in Contem porary


Chinese Media. Honolulu: University of Hawaii Press, 2006. p. 197.
ações irreais, porém esteticamente agradáveis. A História de Qiu Ju,
Heróie O Clã das Adagas Voadoras são ambientados na atual pro­
víncia de Shanxi, a terra natal e orgulho de Zhang, e seu local favo­
rito de ação. Mas sua estratégia de representação filmica mudou.

Cinema sinófono?

Evidentemente, estamos tratando de exemplos de filmes fa­


lados em chinês em que os dialetos desempenham diferentes fun­
ções. Eles podem cruzar as fronteiras nacionais e visar ao público
e ao mercado global (filmes de Zhang Yimou). Os dialetos locais e
provincianos em O Mundo e em Cell Phone não tratam das pro­
víncias em si, mas são emblemáticos de impasses nacionais mais
complexos dos esforços de modernização da China. O mandarim
(putonghua) ubíquo e onipresente nos filmes de artes marciais de
Zhang Yimou não favorece a representação de características regio­
nais confiáveis e um ambiente de verossimilhança cinematográfica.
Esses filmes são vendidos para outros públicos, além do público
pan-chinês na Grande China, bem como para espectadores que
não são chineses no mundo todo, onde a questão do idioma chinês
é irrelevante.7 Em uma nação poliglota, os dialetos, nesses diversos

7. Na história do cinema chinês falado, tato de nem todos os atores falantes de


chinês serem capazes de falar o mandarim padrão tem sido um problema. No
caso de o sotaque dos atores locais ser muito torte a ponto de violar um grau
aceitável de realismo de um filme em mandarim, suas falas seriam dubladas. Este
é o caso de muitos clássicos em mandarim entre os anos de 1950e 1970 em Hong
filmes, constituem subjetividades não somente em nível nacional,
mas também do ponto de vista sub e supranacional. Na análise das
estéticas dialetais, o modelo do cinema nacional consegue abranger
apenas parte do problema. O “transnacional” é mais adequado para
controlar os fluxos e as circulações da cultura cinematográfica para
além dos limites do Estado-nação.
Podemos explorar esse fenômeno multi-dialetal sob uma
outra perspectiva, analisando a problemática do que se pode cha­
mar de “cinema sinófono ”. 8 Naturalmente, o cinema de língua
chinesa aponta para um estudo comparativo das tradições parale­
las cinematográficas em que o idiom a transcende os limites

Kong. Atualmente, a seleção internacional de filmes em língua chinesa tem com­


plicado a questão do sotaque do filme e a recepção do público. O filme O Tigre e
o Dragão, de Ang Lee, foi um excelente sucesso de bilheteria em todo o mundo,
bem como o filme Herói.\ de Zhang Yimou, apesar de sua liberação internacional
tardia, alguns anos após seu lançamento nacional. No entanto, embora ambos os
filmes tenham “sotaque” envolvendo falantes cantoneses de um mandarim não
tão elegante, O Tigre e o Dragão fracassou em sua primeira exibição na República
Popular da China, enquanto que Herói foi um sucesso. Algo além do sotaque parece
estar funcionando aqui. O Herói foi considerado uma grande produção nacional
de um autêntico diretor da china, que visa reaquecer o mercado de cinema chinês
em declínio. Houve esforços para evitar a pirataria do filme, bem como uma
intensa campanha publicitária na China. Apesar de O Tigre e o Dragão ser real­
mente uma coprodução internacional, ainda é considerado com o um filme
estrangeiro - de Hollywood ou de Taiwan, um filme dirigido por um diretor
chinês que vive na diáspora. Não houve esforços internos para anunciá-lo como
um grande sucesso que regeneraria cinema nacional da China.
8. Sheldon Lu e Emilie Yeh expuseram suas ideias de “cinem a de língua chinesa” e
“Cinema sinófono” em sua introdução a Chinese-Language Film, especialmente
nas páginas 4-9. Shu-mei Shih realiza o estudo de um a ampla gama de cultura
visual que denomina “ Sinophone? Conferir seu livro m anuscrito: Visualityand
identity. Sinophone Articulations. Berkeley: University of California Press, 2007.
territoriais dos estados-nação, como o cinema alemão, os cine­
mas francófono e anglófono. Assim como nessas tradições, os fil­
mes sinófonos expressam as reivindicações e as convicções de di­
versas comunidades com diferentes contextos culturais, políticos
e dialetais, embora sempre sob a vaga classificação de “falantes do
• 1 • 1 • A ) ) Q
idioma chines .
“Huayu Dianying\ “Cinema de língua chinesa” e “Cinema
sinófono” parecem ser termos equivalentes denotando uma mes­
ma área de produção cultural e um mesmo modelo de análise.
Mas as conotações desses termos podem divergir, bem como so­
breporem-se. Utilizar o cinema sinófono para descrever o nosso
campo de conhecimento significa levantar uma nova gama de ques­
tões. Podemos falar sobre cinema sinófono da mesma maneira
que falamos de cinema anglófono e francófono? Colonialismo,
mimetismo, processo de descolonização, independência nacional,
política de identidade e pós-colonialismo normalmente definem
os contornos e os temas dessas tradições cinematográficas. Obvia­
mente, a China esteve sujeita historicamente à colonização e também

9. Em estudos de cinem a de língua alem ã, podem os ler: “A história do cinem a que


reconheça essas diferenças tem de ser levada em con ta, por exem plo, a influência
fértil de culturas de língua alem ã da Eu ropa O riental, ou de áreas que sem pre
tiveram um a identidade nacional distinta ou separada (co m o a Áustria e a Suíça),
sem talar nas vastas conexões transnacionais e transculturais. É necessário co n ­
trap or o nacionalism o fanático dos anos 30 e 40 com o legado cosm opolita da
diáspora e do exílio dos judeus e definir as divisões e as fronteiras ideológicas da
G uerra Fria, bem co m o a reem ergência de um a concepção mais m ulticultural de
identidades alemãs no anos mais recentes.” In: Bergfelder, Tim ; Carter, Erica;
Gõktürk, Deniz ( Eds.). The German Cinema Book. London: British Film Institute,
2002. p. 1.
agiu como uma potência colonial-imperial com os territorios peri­
féricos. Hong Kong, Macau, Taiwan e partes da China continental
tornaram-se colonias ou obtiveram o status de extraterritorialidade.
As consequências do legado colonial são sentidas até hoje. Na pro­
dução cinematográfica, o uso de dialetos indica tais divisões his­
tóricas e presentes no corpo político e na mentalidade chinesa.
Podemos divulgar a ideia de “cinema sinófono”, a firn de
delinear algumas comparações e contrastes preliminares com si­
tuações correlatas no mundo do cinema. Na antologia World Cine­
ma: Critical Approaches, os cinemas da Grã-Bretanha, da Irlanda,
da Austrália e do Canadá são elencados e estudados sob a catego­
ria de “cinema anglófono nacional.”10 O cinema de Hollywood,
um cinema anglófono, porém global, é muito ampio e internacio­
nal para ser incluído na categoria de “cinema nacional.” O cinema
francófono refere-se aos filmes da francofonia, ou seja, incluindo
as ex-colônias francesas fora do territorio francês. Embora a Fran­
ça espere fazer valer sua influência sobre esses países, promoven­
do a noção de francofonia, a África francófona pós-independente
está constantemente distanciando-se da hegemonia cultural e
linguística da França, afirmando suas próprias tradições e expres­
sões locais. No entanto, os cineastas africanos, por vezes, estrategi­
camente se identificam com o mundo francófono visando a urna
ampla distribuição de seus filmes.

10. Ver a seção “Anglophone National Cinemas”. In: Hili, John; Gibson, Pamela Church
(Eds.). World Cinema: Critical Approaches. Oxford: Oxford University Press, 2000.
p. 117-142. O cinema anglófono inclui o cinem a da Grã Bretanha e de suas
colônias históricas - Estados Unidos, Canadá, Austrália, entre outras.
Apesar da crescente utilização da língua árabe e das línguas lo­
cais em todo o continente Africano, a referência ao cinema
francófono africano continua sendo válida. Ela entende o cine­
ma Africano em seu contexto histórico e é uma forma mais forte
de promover os filmes desses países individualmente. Também
representa um contrapeso a uma crescente incursão do cinema
anglófono.11

Quanto ao cinema francófono, existem os movimentos si­


multâneos de extensão da influência cultural neocolonialista por
parte da França e do ressurgimento das culturas originais dos paí­
ses africanos pós-coloniais. A resistência e a autoafirmação do cine­
ma africano pós-colonial, no entanto, operam dentro e beneficia­
ram-se da ampla rede francófona de produção, de financiamento e
de distribuição. No entanto, entre o francófono e o pós-colonialismo,
há outras distinções importantes.

Ao contrário da francofonia, as dimensões políticas do que é


mascarado por um termo cuja superficialidade parece denotar
um campo de referência puramente cultural, o pós-colonialismo
destaca uma condição política, caracterizando determinadas for­
mas de produção cultural, ou seja, o legado da dominação colo­
nial fora de ou contra aquilo de onde as práticas culturais pare­
cem emergir.12

11. Live Spaas, The Francophone Film: A Struggle for Identity. M anchester; New
York: M anchester University Press, 2 0 0 0 . p. 131.
12. H a rg re a v e s, A lec G .; M cK in n ey , M ark . I n tro d u c tio n : T h e p o s t-c o lo n ia l
problem atic in co n tem p o rary Fran ce. In: H argreaves, Alec G .; M cKinney, M ark
(E d s.). Post-Colonial Cultures in France. L on d on ; New York: R outledge, 1997.
p. 4.
A Grande China não é necessariamente uma entidade
monolítica, colonial e geopoliticamente opressora ou um concei­
to intrinsecamente conservador. Tampouco a produção cultural
sinófona origina-se dos limites de um discurso contra-hegemônico
inerentemente pós-colonial. O impacto político e cultural de um
filme depende de determinadas conjunturas de forças e circuns­
tâncias. Pode ser útil para revisitar a velha problemática do colo-
nial/pós-colonial no contexto de nosso estado atual de existência,
a saber, uma nova onda de globalização que se intensificou na era
pós guerra fria. Transnacional, que ultrapassa as fronteiras, o cine­
ma sinófono anda de mãos dadas com a globalização e é seu
epifenómeno. Os filmes de língua chinesa dirigem-se a públicos
além do Estado-nação chinês, envolvem os cidadãos de Taiwan,
Hong Kong, Macau e os espalhados pela diáspora chinesa, bem
como atingem espectadores interessados no mundo todo. O ci­
nema sinófono assume uma posição mais flexível em relação à
identidade nacional e à afiliação cultural.
Não há nenhuma voz dominante. As múltiplas línguas e di­
aletos usados nos vários tipos de cinema sinófono atestam a
fragmentação da China e da identidade chinesa. Cada falante de
um dialeto é a voz de uma classe especial, representa um estágio
particular do desenvolvimento socioeconómico e representa um
nível específico de modernidade dentro de um confuso conjunto
de formações heterogêneas na China e na diáspora chinesa. Essa
profusão de sotaques, de fato, abrange um mundo pan-chinês -
um coletivo de diversas identidades e posicionamentos que
uma única entidade geopolítica e nacional é incapaz de conter.
Shzjie ou tianxia não é um mundo monológico falante de uma
linguagem universal. O mundo do cinema sinófono é um campo
de articulações multilíngues e multidialetais que desafiam e
redefinem constantemente os limites de grupos, etnias e afiliações
nacionais.
O cin em a na Á frica: dos co n to s
an cestrais às m istificaçõ es
cin e m a to g rá fic a s

M ahomed Bamba

A antropologia nos ensinou que são os grandes relatos que


instituem as comunidades humanas e, em alguns casos, as nações.
Inclusive para as culturas e civilizações mais avançadas, está mais
do que comprovado que a cada tipo de comunidade correspondem
um tipo de lenda e um tipo de narrador. É dessa premissa que se
originam todas as inquietações que suscitam o binômio cinema
e nação. O cinem a, com o os m itos fundadores, representa um
povo e, num a fase mais avançada de organização social, define
uma modalidade particular de figuração e advento da nação. Ao
se debruçar sobre esse fenômeno nas sociedades onde a cinemato­
grafia está mais estruturada, Jean-M ichel Frodon (1998) consta­
ta que à nação capitalista “m oderna” nenhum tipo de narrador
se m ostrou m elhor do que a lenda filmada, pois o cinema, por
estar em consonância com o desenvolvimento das grandes na­
ções, contribui para refletir (no duplo sentido da palavra) esse
movimento, ao mesmo tempo que se aproveita dele.
O cinema não se contenta em refletir uma imagem positiva
de uma nação aos povos que a compõem. De acordo com o autor,
podemos falar de projeção nacional como se fala de projeção fílmica,
pois cada nação é obrigada, em um determinado momento da sua
história, a se projetar no espaço e no tempo. Nesse movimento em
direção ao outro, o cinema sempre foi convocado a desempenhar
um papel decisivo. É nessas circunstâncias que o cinema revela toda
a singularidade de seus mecanismos de figuração.

O século X X foi o século do cinem a, que se afirm ou, ao mesmo


tempo, com o divertimento de massa, com o novo m odo de cria­
ção artística e com o produtor das mitologias do seu tempo. Exis­
te, portanto, uma solidariedade entre a história das nações e a do
cinema. Mas esta solidariedade não é som ente histórica, ela é
ontológica. Existe um a comunidade de natureza entre a nação e
o cinema: nação e cinema existem, e só podem existir pelo m eca­
nismo da projeção. (Frodon, 1998, p. 12).

Que tipo de esclarecimento e problematização o cinema feito


na África traz ao debate sobre as implicações diretas e indiretas no
processo de construção da nação? À primeira vista, a resposta pare­
ce difícil por várias razões. Embora tenha completado 50 anos, a
atividade cinematográfica é ainda incipiente e quase inexistente em
muitos países africanos. Por outro lado, se a África não é uma nação,
os países que a compõem estão longe de se constituírem em entida­
des nacionais plenas. Conceber os filmes africanos1em termos de

1. A categoria “cinemas da África” se refere ao conjunto da produção cinematográfica


dos 54 países africanos, ao trabalho de mais de 850 diretores (entre os quais mais de
430 realizadores egípcios) e a um total de mais de 8.800 filmes. Esse recém-censo é da
mediateca de Ciné3M ondes (um a das m aiores fontes de docum entação sobre o
cinema africano on-line), homepage: < http://www.cine3m ondes.fr/>.
cinematografias nacionais pode parecer algo abusivo tendo em vista
que esse conceito pressupõe a existência de um projeto consensual
de construção de valores comuns e em torno dos quais o mosaico
de comunidades étnicas se reconheçam. Como sabemos, após a
descolonização da África, à emergência de novos estados não suce­
deu automaticamente uma consciência nacional ou nacionalista a
ponto de fragilizar as clivagens étnicas. Ao contrário, a conquista da
soberania e do direito à autodeterminação, na África, deu lugar a
movimentos de reivindicações identitárias de cunho étnico-tribal
no interior de cada estado. Entretanto, se partimos da premissa de
que o cinema, como as outras formas artísticas, e independente­
mente da quantidade de filmes produzidos por ano, tem um
compromisso particular com o processo de construção da consciên­
cia nacional, há de se procurar nos filmes africanos indícios daquilo
que Frodon chama de “projeção nacional”. A apropriação do
cinema2pelos povos africanos nos faz vislumbrar uma outra forma
de problematização da figuração da nação pelo cinema?
Nos Estados-não-nações da África, começamos por assistir a
uma espécie de imbricação do modo de representação cinemato­
gráfica com os modos de produção de imagens e ideais próprios
que cada governo tenta forjar no plano local. O cinema africano
surpreende o projeto de construção nacional na sua gênese e na
sua fase mais política e ideológica do que cultural. Esse encontro co­
meçou na hora das independências, quando muitos novos estados

2. O filme Atrique-sur-Seine, correalizado em 1955 por Paulin Vieyra e Mamadou


Sarr, é considerado o primeiro filme na história do cinema africano.
africanos veem no cinema uma forma de expressão artística e po­
lítica de sua soberania no plano simbólico. Os primeiros filmes
produzidos por cineastas africanos, às vezes, com a ajuda de seus
governos ou da França, têm como vocação destilar imagens posi­
tivas da África e acabar com a dominação colonial pela imagem.
Com Soleil Ô (1970), o diretor Med Hondo, da Mauritânia, reali­
za não somente um filme poético em forma de ode às belezas da
África, também se livra a uma crítica da colonização, o que dá a
esse filme um caráter altamente político.
Todos os jovens governos africanos vão inscrever a promo­
ção do cinema no primeiro plano de suas preocupações principais.
Esse interesse político pelo cinema vai inclusive se traduzir em atos
concretos. Assim, na Alta-Volta, hoje chamado Burkina Faso, o go­
verno cria a partir de 1961, um ano após a independência, um setor
dedicado exclusivamente ao cinema dentro do ministério da co­
municação. Em agosto do ano de 1960, realizou-se um primeiro
filme-reportagem do país, Na meia-noite da independência. Como
o nome indica, esse filme registrava de forma documental as ceri­
mônias que precediam a proclamação da independência do país.
Mais tarde, esse primeiro setor cinematográfico estatal no Burkina
Faso seria responsável por toda a gestão do cinema no país,
notadamente com a produção de filmes essencialmente educativos
e de divulgação agrícola e sanitária junto à população rural3.

3. Conforme o artigo “Le cinéma et les cinéastes du Burkina”, de Sita Tarbagdo


(2007), publicado no site do Rádio France Internacional no dia 23 de fevereiro de
2005; ver também Tarbagdo (2009).
A imbricação dos cinemas africanos com a construção de
uma identidade política coincide com aquilo que podemos cha­
mar de era dos filmes de sensibilização socioeducativa. Não se tra­
tava de filmes propriamente políticos ou ideológicos que procura­
vam exaltar um nacionalismo ainda ignorado da classe política; ao
contrário, eram filmes mais didáticos e feitos com uma grande cons­
ciência da utilidade social do cinema. Mas o advento das TVs nacio­
nais frearia esse ciclo. Depois das independências, as televisões
públicas africanas reverteram o déficit da autorrepresentação no
plano do audiovisual, mas, por outro lado, elas fizeram declinar
os esforços dos governos africanos para sustentar de forma siste­
mática uma produção cinematográfica incipiente. Isso, de certa
forma, permitiu que o cinema permanecesse na esfera do privado,
evitando assim que sofresse o mesmo tipo de estatização e
instrumentalização excessiva que predominam nas TVs públicas.
No entanto, ao concentrar-se na produção audiovisual, nos seus
formatos televisivo e radiofônico, muitos países abandonaram suas
telas às produções estrangeiras.

Os cinemas africanos e o pan-africanismo

O compromisso do cinema africano com a construção de


uma identidade cultural deve ser procurado para além dos limi­
tes das fronteiras artificiais e fictícias herdadas da colonização e
que definem os contornos dos estados modernos africanos. Di­
ante de uma realidade presente desoladora e desesperadora, a África
vive ou sobrevive graças aos seus mitos fundadores. Esse passado
mirabolante e glorioso narrado pelos gríotsAfunciona como uma
estratégia de superação e de revanche ao colonialismo. As grandes
epopeias, transmitidas pela tradição oral e pela literatura, servem
de refúgio e de matéria-prima para a construção de uma identi­
dade cultural local mas também continental. As raízes do sonho
do pan-africanismo (sempre renovado e fracassado) devem ser bus­
cadas nesse elan coletivo e quase natural dos artistas de todos os
países africanos de se apropriar dos mitos coletivos na sua criação
artística. Os grandes impérios e personagens da era pré-colonial
não têm mais fronteira. Na sua dimensão cultural, os cineastas rea­
lizam, no pan-africanismo, aquilo que os governantes não con­
seguem concretizar politicamente: a integração da África a partir
de velhos mitos e novos valores em que se reconhecem todos os
africanos, independentemente de sua nacionalidade. O que leva
muitos autores a dizer que o lugar da cultura africana, nas suas
diferentes manifestações e expressões (música, literatura oral ou
escrita, artesanato e artes, estética de obras criativas), foi sempre o
de contribuir com os ideais coletivos, porém sem negar uma fun­
ção de humor, de jogo e de divertimento.
Enquanto, no ocidente e nas sociedades modernas pós-capi-
talistas, as grandes narrativas ficcionais mecânicas continuam re­
legando as lendas e a própria literatura a um segundo plano, nas
sociedades tradicionais africanas são os substratos da tradição

4. Espécie de trovador e narrador de epopeias; m em ória viva nas culturas orais da


região do Sahel.
oral que alimentam os imaginários e a narrativa cinematográfi­
ca incipiente. O engajamento político e pan-africanista do cineas­
ta africano não se traduz apenas por uma volta incessante e
esquizofrênica para o passado, mas o situa também no presente.
Nos filmes africanos, os temas fortes de atualidade são aborda­
dos sem complacência; o espaço fílmico funciona de maneira
genérica e simbólica. A representação de um fato e de uma reali­
dade sociopolítica em um determinado país não vale apenas para
este país, ela concerne simbolicamente a todos os países africa­
nos. Os filmes Adanggaman (2000) e Guimba - um tirano, uma
época (1995) são ilustrativos dessa situação. Em Guimba, Cheick
Oumar Sissoko se serve da lenda de um chefe tradicional tirano
(Guimba) para problematizar uma das pragas da maioria dos
estados africanos: a tirania hereditária instaurada de forma im­
placável pelos dirigentes africanos depois das independências. A
história de dominação cega que Guimba e seu filho impõem
aos seus próprios congêneres acontece numa cidade do Sahel,
mas poderia ser transposta para qualquer país da África. Em
Adanggaman (2000), Roger Gnoan M ’Bala vai mais longe. Ao
revisitar o tema da escravidão, o cineasta da Costa do Marfim
não se contenta com uma representação lamuriante desse mo­
mento doloroso da história da África, ao contrário, ele põe em
cena a controvertida participação dos chefes tribais no tráfico
negreiro. Nessa reconstituição histórica, em forma de acusação,
é toda a responsabilidade dos chefes de Estados africanos que
está em questão.
O engajamento pan-africanista dos cineastas5se reflete, por­
tanto, na diversidade dos temas abordados e dos espaços geográ­
ficos que servem de paño de fundo às ações. Essa tendência é
mais nítida, inclusive, nos trabalhos da nova geração de cineas­
tas africanos que não hesitam em situar a ação de seus filmes em
vários países. Os dois docum entários realizados com câmera
digital pelo senegalês Moussa Touré situam-se nessa veia. No fil­
me 5x5 (2005), é a poligamia o assunto principal. Toda a intriga
ocorre num cortiço modesto onde a câmera explora, sem cair
no denuncismo, as facetas dessa prática ainda vigente e comum
a vários países africanos. No seu primeiro documentário, tam ­
bém rodado com câmera digital, Somos num erosas (2003), Touré
abordava a realidade das mulheres congolesas estupradas duran­
te a guerra. Para ele, como para a maioria dos cineastas africanos
da jovem geração, a câmera digital proporciona uma maior faci­
lidade para filmar, mas, sobretudo, uma maior facilidade de se
deslocar e capturar a realidade africana em todas as suas nuanças e
nos diversos lugares do continente.
O caráter transnacional dos filmes africanos teve sua m ani­
festação mais simbólica na criação do Fespaco. Ao criar o Festival
Pan-africano de Cinema e da Televisão de Ouagadougou, em 1970,
o governo de Burkina Faso não visava apenas dar uma vitrine
internacional à produção de seu país, pretendia transformar esse

5. É bom lembrar que esse compromisso dos cineastas africanos com o pan-africanismo
se afirmou bem cedo, em 1969, de forma programática, pela criação da Federação
Pan-africana dos Cineastas (Fepaci).
evento cinematográfico no maior espaço de encontros e de in­
tercâmbio entre os cineastas de todos os países africanos. O festival
de Ouagadougou é também uma ocasião de diálogo direto dos cine­
astas africanos com o seu público local. As ambições pan-africanistas
do Fespaco estão no fato de criar uma rara oportunidade de exibi­
ção dos filmes africanos para um público africano.6Com o gover­
no revolucionário instaurado pelo presidente militar Thomas
Sankara, o Fespaco passou a ter maior ressonância, pois correspondia
aos anseios políticos, isto é, propor um modelo de integração cul­
tural dos povos africanos e de resistência àquilo que se considera­
va ainda como resquícios do colonialismo e do imperialismo oci­
dental francês na África.
É no próprio prêmio do Fespaco que muitos reconhecem cla­
ramente as ambições pan-africanistas do maior festival dedicado ao
cinema negro-africano sobre solo africano. Em 1972, os organizadores
do Festival Pan-africano do Cinema de Ouagadougou instituíam
o prêmio L’Étalon de Yennenga7. Esse prêmio recompensa o lon­
ga-metragem que, além das suas qualidades técnicas, melhor se
esmerou na descrição das realidades da África. A cada edição do
Fespaco, e por meio desse prêmio, espera-se dos cineastas africanos
que tragam filmes que apresentem uma imagem justa do continen­
te negro, isto é, uma imagem que não deva ser necessariamente

6. A maioria dos filmes selecionados e premiados, com o se sabe, nem sequer conse­
guem ser distribuídos nas salas de cinema africanas.
7. Conforme a tese de doutorado que Stanislas Bemile Meda consagrou ao sentido e valor
do prêmio do Fespaco: Le film Airicain face ala competition: analyse des PrixÉtalon de
Yennenga de 1972 à 2005. IUT Michel de Montaigne-Université de Bordeaux 3.
angelical, mas tampouco estereotipada. Os objetivos do Fespaco per­
manecem como a expressão mais concreta do pan-afiricanismo que
domina todas as produções artísticas africanas. Com o passar do tem­
po, em virtude desses objetivos federativos, o festival abriu suas por­
tas para produções cinematográficas provenientes da diáspora negra.
Paradoxalmente, é o ocidental, através de sua crítica cinefílica,
seus mecanismos de apoio aos cineastas africanos e seus festivais8,
que vai reafirmar a natureza pan-africanista das produções cine­
matográficas provenientes do continente negro. No contexto de
uma globalização que se parece cada vez mais com uma tendência
à americanização das culturas, os esforços dos governos europeus
em sustentar a produção e difusão de seus cinemas se estenderam
às tentativas de sobrevivência das expressões artísticas dos países
menos desenvolvidos. É por meio dessa disposição de muitos paí­
ses europeus, para tornar viável o conceito da diversidade cultural,
que muitas cinematografias africanas vivem um novo momento
da sua longa e sofrida trajetória. Ao arquitetar políticas culturais
para sustentar e proteger as suas produções cinematográficas, a
França busca também fomentar produções de filmes do sul.9

8. Há cada vez mais festivais internacionais em que as produções africanas são selecionadas
e apresentadas como um todo. Se esses festivais não são dedicados aos filmes de um
determinado país africano, isso se deve, de um lado, à fraca quantidade de filmes
produzidos por país, de outro, às características tem áticas e formais com uns
aos filmes africanos. O exemplo do Festival des Cinémas d’Afrique du pays d’Apt
í Vaucluse - França) é interessante, pois inclui, além da programação de alguns filmes
do Fespaco, vários debates entre cineastas africanos e o público jovem das escolas.
9. Conforme o livro Au sud du cinéma: films d ’A frique, dAsie et dAm érique Latine,
organizado por Jean-Michel Frodon e editado por Cahiers du Cinema e Arte Editions.
Nesse modelo de produção descentralizado, os cinemas afri­
canos vivem um outro paradoxo, comparável à emergência de uma
literatura africana em língua do colonizador. No plano da produ­
ção e da distribuição, esses mecanismos de ajuda mantêm todos
os cinemas africanos numa forma de dependência com o exterior.
Salvo algumas exceções, podemos dizer também que o papel fun­
damental da cooperação na produção e circulação dos filmes afri­
canos afastou de vez qualquer esforço dos governos locais para
esse setor. Isso faz com que as cinematografias africanas sejam uma
das raras do mundo em que todos os filmes são produzidos na
total inexistência de uma política cultural e cinematográfica dig­
na desse nome.
No que diz respeito aos países de língua francesa, a cooperação
histórica com a França está na base de quase todas as produções. A
famosa exceção cultural francesa, que é uma estratégia para a própria
França preservar o seu cinema contra a invasão hollywoodiana, foi
transformando-se aos poucos num princípio de salvaguarda e de
promoção de todas as cinematografias da África francófona. A atua­
ção e a intervenção do organismo francês10 de apoio em todos os
diferentes níveis da produção cinematográfica dos países africanos
resumem bem o ideal da exceção cultural francesa.

10. Fonds Sud: esse mecanismo, que faz parte da política de cooperação internacional
da França com o resto do mundo, acabou de com pletar vinte anos de existência.
Enquanto esse fundo gerencia iniciativas e projetos de coprodução com a maioria
dos países latino-americanos e asiáticos, suas ações consistem num financiamen­
to integral dos projetos de filmes africanos.
Se esse modelo de produção descentralizado se apresenta como
uma oportunidade imperdível para diretores africanos, por outro
lado levanta a questão de saber até que ponto os filmes que são pro­
duzidos com o financiamento da cooperação se encaixam no con­
ceito mesmo de cinematografia nacional. Para a maioria do público
africano que não tem muito acesso a esses filmes, não há dúvida: o
cinema africano existe antes de tudo para o público de fora.
Esse paradoxo do modelo de produção vigente é acompanha­
do de uma outra contradição vivenciada no polo da recepção; ao
mesmo tempo que os filmes africanos são fartamente realizados com
fundos vindos de fora, esses filmes permanecem longe das salas afri­
canas e de seus públicos locais. Às vezes, esses filmes permanecem em
estado de pura realidade textual. Depois dos festivais e mostras em
que são exibidos, são os escritos e as avaliações da crítica europeia
que lhes asseguram uma longa vida e que perenizam seus traços.11

Conclusão

Após mais de quarenta anos de soberania e de independência,


muitos países africanos ainda estão tentando reunir o mosaico de

11. Essa situação se reverteu recentemente graças aos esforços de algumas entidades
públicas e privadas para assegurar uma m aior circulação dos filmes africanos:
disponibilização em suporte DVD; Médiathèque de Trois Mondes; TV5; criação
de um site (www.diplomatie.gouv.fr) que apresenta mais de cem catálogos de
filmes de Fond Sud Cinéma, e cujos trechos e sequências podem ser baixados e
vistos pela internet.
grupos étnicos que compõem suas populações em torno de valores
republicanos e culturais comuns. É, portanto, com relação a essa
realidade de déficit do sentido da nação que os cinemas africanos,
apesar de todas as dificuldades de produção e distribuição que en­
contram, ganham toda a sua legitimidade e seu direito de existir.
Como a escola herdada da colonização, como a arte e a litera­
tura africana (oral e escrita), os cinemas africanos participam do
processo de construção e consolidação da nação. Os filmes mobili­
zam imagens em torno das quais se forjam identidades comuns
nesses países e, assim sendo, contribuem para uma homogeneização
interna das consciências que é mais preferível à uniformização cul­
tural imposta de fora pela globalização e pela americanização da
cultura.
As diferentes respostas dos cinemas da África demonstram
que pode existir um outro tipo de nacionalismo, um outro tipo
de projeção nacional. Na falta de nações no sentido pleno da pala­
vra, o movimento cultural que os cineastas africanos ajudam a
construir transcende os limites territoriais herdados da colonização.
Os valores culturais defendidos ou recusados em cada filme estão
ligados à ideia de que todas as sociedades africanas formam um todo,
independentemente das clivagens políticas e étnicas. A noção de
nação defendida pelos cinemas da África ecoa no pan-africanismo
que permanece um sonho frustrado no plano político, mas uma
realidade no plano simbólico e no imaginário. Esse valor assumido
pelo cinema na África faz desmentir a ideia de que a luta contra a
pobreza e o subdesenvolvimento não deveria incluir a adoção de
políticas voltadas para o setor da produção cinematográfica.
R eferên cias

BLANCHARD, Pascal. La Republique coloniale. Paris: Albin Michel,


2003.

BOUGHEDIR, Ferid. Cinema africano de A a Z. Bruxelas: OCIC, 1992.

FRODON, Jean-Michel. La projection nationale: cinéma et nation.


Paris: Odile Jacob, 1998.

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latine. Paris: Cahiers du Cinéma, 2004.

GARDIES, André. Cinema d’Afrique noire francophone: Fespace


miroir. Paris: Editions l’Harmattan, 1989.

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TARBAGDO, Sita. Burkina: flash back sur un cinéma multiforme. Les


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www.rfi.fr/actufr/articles/062/article_ 34311.asp>. Acesso em: 16 nov. 2009.
História, tragédia e farsa:
The President's last bang nos circuitos
dos festivais de cinema*

Leo Goldsmith

Um réquiem para aqueles que morreram no massacre que envol­


veu o assassinato do Presidente Park Chunghee, a sátira política
The President s last bang, de Im Sang-soo, é o filme sul-coreano
mais controverso de 2005 - um olhar violento, profundo e irônico
sobre um fato real na historia recente da nação.

Mostrado com força pelo olhar refinado e lancinante do diretor


Im - e pintado com sangue impiedoso e coagulado - , o assassina­
to de Park na tela está destinado a tirar a consciência nacional de
seu esquecimento e a engajar o público neste memorial total­
mente moderno em uma sociedade que virou seu poder militar
contra simesma...

Sem tentar ser uma reconstrução fiel do trágico incidente, The


President s last bang oscila entre urna historia de detetive emoci­
onante e um humor mórbido picante. O entendimento do dire­
tor Im e a reprodução impecável de uma humanidade crua gi­
rando no centro da saga do poder cobiçado brilha com uma luz

* Tradução de Raquel Maysa Keller. [ N. T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
fosca. Essa luz lança longas sombras de violência que escurecem a
tela na nova estética desse drama social intrigante.1

Explodindo com a alegria subversiva de Dr. Fantástico ou Sob o


domínio do mal\ o humor mórbido escabroso de Im Sang-soo
lança um olhar áspero pela recente história da Coreia do Sul... Im
é um encrenqueiro natural que não se intimida por ser irreverente
em relação a esse evento circunscrito à criação de uma Coreia do
Sul democrática... Porém, ao tratar o assassinato como uma farsa
grandiosa, Im captura uma verdade profunda frequentemente
deixada de lado pelo livro-texto: a história não é limpa.2

Um pouco controverso e com os louros de muitos festivais


de cinemas internacionais, The Presidents last bang ( Geuddae
Geusaramdeul) chegou ao 43° Festival de Cinema de Nova Iorque,
em outubro de 2005, como um dos três filmes representativos do
cinema da Coreia do Sul. Esse número não teve precedentes no
festival: nos quarenta e dois anos anteriores ao festival, um total
de seis filmes sul-coreanos tinha sido exibido, começando com O
Homem com três caixões (Nageuneneun kileseodo swiji
anhneundà) de Lee Changho, em 1988. Junto com o estiloso filme
de ação Mr. Vingança ( Chin-Jeol-Han Geum-Ja-Ssi), de Park
Chanwook, e o inexpressivo filme de arte Conto de Cinema ( Geuk
jangjeon), de Hong Sangsoo, The Presidents last bangé represen-

1. Fulvi, Giovanna. 30° Festival de Filme Internacional de Toronto. Grupo do Festival


de Filme Internacional de Toronto. Disponível em: < http://www.e.bell.ca/filmfest/
2005/films_description.asp?id=214>. Acesso em: 12 dez. 2005.
2. Programa do 43° Festival de Filmes de Nova Iorque. A Sociedade do Filme do
Lincoln Center. Disponível em: <http://vvvvav.iilmlinc.com/nyfiyiilms/presidents.htm>.
Acesso em: 12 dez. 2005.
tativo do que é geralmente considerado como novo cinema nacio­
nal “quente”, uma forma de produção cultural vibrante que está so­
mente começando a emergir no contexto internacional, amplamen­
te veiculada pelos canais do próprio circuito do festival internacio­
nal de cinema.
O que distinguiu The President's last bang de seus primos
cinéticos coreanos, entretanto, foi o fato de - graças, sem dúvida,
aos muitos festivais que o exibiram desde o seu lançamento na
Coreia do Sul em março - o filme ter chegado no festival de Nova
Iorque com uma distribuidora estadunidense, Kino International,
uma distribuidora internacional renomada e com tradição, basica­
mente de cinema autoral na América do Norte. Algumas semanas
após a primeira exibição do filme em Nova Iorque, The Presidents
last bang teve um lançamento limitado em várias cidades dos Esta­
dos Unidos, anunciado por uma série de resenhas entusiastas, onde
arrecadou um montante total nacional de 6,3 milhões de dólares
antes de fechar sete semanas.3
Nas páginas (e nas conversas) da revista Variety antes de seu
lançamento, Derek Elley arriscou que

[...] embora um pouco de reconhecimento dos atores envolvi­


dos e um pouco de conhecimento da história recente da Coreia
enriquecessem a experiência de assistir ao filme, poderia se en­
contrar um mercado especializado no Ocidente entre públicos
simpatizantes elitizadosl

3. BoxOfficeM ojo.com. Disponível em: < http://www.boxofficemojo.com/movies/


?id=presidentslastbang.htm>. Acesso em: 11 dez. 2005.
4. Elley,Derek. The Presidents last bang (Geuddae Geu Saramdeul). Variety n. 23-29,
maio 2005, p. 38.
Poderíamos perguntar por que um filme como The Presidents
last bang, conduzido de Seul a Nova Iorque por meio de vários
festivais de cinema de prestígio - incluindo os de Cannes, Telluride e
Toronto - , normalmente aclamados pelos críticos e cinéfilos que
frequentam o circuito dos festivais internacionais de cinema, de­
veria ser recebido com tanta indiferença pelos públicos de filmes
urbanos de cinema de arte para os quais ele foi (presumivelmente)
importado e exibido? Onde, de fato, estavam esses “públicos sim­
patizantes elitizados”, quando foi exibido esse tipo de cinema na­
cional emergente tão aclamado?
Uma explicação sobre as exatas razões do fracasso de bilhe­
teria de The Presidents last bang provavelmente resida na interse­
ção confusa de fatores relacionados às práticas de marketings distri­
buição, aos lugares específicos e às condições de recepção do fil­
me e talvez, até mesmo, a uma tentativa de etnografia daquele pú­
blico elitizado para quem o lançamento do filme foi direcionado
nos Estados Unidos. Todas essas razões estão além do escopo e do
interesse deste ensaio, e algumas são facilmente explicados pela
resenha de Elley (e de muitos outros), que recomenda “algum co­
nhecimento da história recente da Coreia”. Em vez de tratar dessas
questões imediatas, eu gostaria de usar o caso de The Presidents
last bang nestas páginas para promover uma discussão mais geral
sobre a função e a cultura de festivais internacionais de cinema,
seu lugar em relação a uma concepção generalizada de “cinema
mundial” e seu papel na formação de “cinemas nacionais”. O circui­
to do festival internacional de cinema (e a cultura que o cerca) se
tornou um local crucial de interseção cultural no ambiente do cine­
ma, funcionando como uma porta e como um mercado através dos
quais os filmes de todo o mundo podem entrar na economia global
de imagens. Alguns teóricos de festivais de cinema, tais como, Bill
Nichols, conceituam essa arena como um espaço ideal de interação
transcultural, em que o encontro do participante do festival com o
filme estrangeiro pode criar novos significados e uma nova vida
para o filme e seu realizador fora de seu contexto local-nacional.
Por outro lado, outros, como Julian Stringer (em seu ensaio
sobre Boat People, um filme cuja recepção corresponde, de forma
importante, àquela de The President’s last bang), observam que o
contexto dos festivais de cinema pode ter pouquíssima competên­
cia para sustentar certos textos “difíceis”, filmes que poderiam real­
mente problematizar os modos de “olhar cultural híbrido”5 pratica­
dos pelo frequentador do festival ou pelo receptor do “cinema
mundial”. Neste ensaio, esboçarei primeiro essas teorizações distin­
tas da cultura do festival internacional de cinema e, depois, discuti­
rei o lugar que The Presidents last bang - como “cinema mundial”,
como “Cinema Novo Coreano” e como trabalho historiografía) -
ocupa (ou se recusa a ocupar) nesse sistema.

O circuito do festival internacional


de cinema: textos e contextos

Os festivais internacionais de cinema formam uma rede de


canais para o trânsito de filmes no mundo todo. Tipicamente, a
linguagem dos catálogos e dos programas e a estrutura de suas

5. Stringer, Julian. Boat People-. Second Thoughts on Text and Context. In: Berry, Chris
(Ed.). Chinese Films in Focus:2.S New Takes. London: BFI Publishing, 2003. p. 19.
festividades organizam uma retórica de autoria que coloca em
primeiro plano o papel individual do artista-diretor e sua partici­
pação no “cinema mundial”. Em sua “passagem” pelo cinema
coreano, Paul Willemen observa que essa retórica de “cinema mun­
dial” está frequentemente relacionada (contudo, de forma para­
doxal) àquela de “cinemas nacionais”:

Desde [a década de 50], a noção de cinema mundial’ tornou-se


geralmente aceita, infelizmente. Os locais de exibição de filme vin­
culados a arquivos audiovisuais agora noticiam de forma regu­
lar temporadas de cinemas nacionais recorrendo à linguagem
de descoberta ‘familiar’ a partir de expedições coloniais tanto
quanto de panfletos de turismo. Juntamente com essa noção de
cinema mundial, como seu componente inevitável, recebemos
histórias de cinemas nacionais elaboradas de acordo com as mes­
mas hipóteses nacionalistas que regem a formulação de histórias
nacionalistas literárias românticas como forma de apelar a al­
gum misterioso ‘espírito’ unificador da nação, localizado princi­
palmente no ‘espírito’ de qualquer língua imposta como língua
nacional por algum grupo dominante.6

Os “espíritos nacionais”, como aparentemente exemplificados


pelos cinemas nacionais, falam aos frequentadores de festival de
cinema na “língua universal” de um cinema mundial, por meio
do preenchimento de lacunas entre culturas em um discurso fa­
miliar de global e local. Nesse modelo, o festival internacional de

6. W illem en, Paul. D etouring through Korean cinem a. Inter-Asia Cultural Studies,
3.2, p. 1 6 7 -1 8 6 ,2 0 0 2 . É interessante observar, entretanto, que apesar do desagrado
de W illemen pelo universalism o de “cinem a m undial,” seu ensaio procura, de
m aneira parcial, reificar o universal no contexto de um a história internacional de
capitalismo com o manifestada no cinem a - de form a que não podem ser inteira­
mente contraprodutivas.
cinema (como uma “janela para o mundo”) figura como o meio
transparente através do qual o local é trazido à arena global de
recepção de filme.
Em alguns ensaios publicados em 1994, após uma retros­
pectiva de dezoito filmes iranianos pós-revolução no Festival In­
ternacional de Cinema de Toronto de 19927, Bill Nichols procu­
rou dissecar algumas das formas em que os festivais internacio­
nais de cinema funcionam (e se definem) como lugares de troca
transcultural. Assim como os próprios festivais, Nichols sugere
que os “festivais internacionais de cinema podem representar um
globalismo nascente não mais tão centrado na estética ocidental
dos poderes de curadoria dos grandes colecionadores do mundo
ocidental”8. Na percepção de Nichols, os festivais de cinema são
espaços de (sabe-se) contato idealizado, descoberta e discurso:

[...] o gênio da lâmpada trazendo o novo e o extraordinário


constantemente diante de n ó s ... sem necessariamente avançar
na hegemonia estadunidense, japonesa ou europeia, nos padrões
de Hollywood, ou num a cultura globalizada mais predominan­
temente norte-am ericana e pop9.

Mas, antes de recapitular toda a linguagem essencialista/


universalista dos programas dos festivais de cinema, Nichols se
preocupa em

7. Nichols, Bill. Global Image Consumption in the Age ot Late Capitalism. East-West
Journal, 8.1, p. 68-85, 1994; e Nichols, Bill. Discovering Form, Interring Meaning: New
Cinemas and the Film Festival Circuit. Film Quarterly, 47.3, p. 1 6 -31,1994.
8. Nichols,“Global Image Consum ption”, p. 72.
9. Ibidem, p. 81.
[...] como [o festival de cinema] a experiência modula e constrói
os significados que atribuímos aos mais novos em uma sucessão
contínua de ‘novos cinemas’, enquanto, ao mesmo tempo, cons­
tituímos o público necessário para reconhecer e apreciar tais ci­
nemas como entidades únicas e de valor10.

Nichols salienta a experiência de recepção do frequentador


do festival não como um encontro direto através do meio trans­
parente do festival, mas como um encontro mais alinhado com a
experiência descrita nas teorias do encontro etnográfico. Nichols
tira suas pistas de um quadro diverso de escritores sobre a inter­
seção transcultural, começando com E. Ann Kaplan, cuja discus­
são de teorias ocidentais de melodrama aplicadas ao cinema chi­
nês contemporâneo atrai teorias de etnografia. Kaplan sugere duas
opções interpretativas para o espectador ocidental nesse contex­
to: “submersão”, que envolve um processo imaginado de imersão
cultural (ou seja, uma receptividade e submissão aos aspectos “lo­
cais” do trabalho); e “leitura”, que retém a posição de sujeito dis­
tante do próprio espectador (quer dizer, uma interpretação “glo­
bal” da estética ou dos aspectos políticos do trabalho). Nichols
observa que “Kaplan opta por ‘ler’ a respeito de ‘submersão’, argu­
mentando que, já que os textos escondem seus significados, críti­
cos de culturas diferentes podem revelar significados não encon­
trados por críticos da mesma cultura”11. Nichols, por outro lado,
vê um modo de recepção mais inclusivo praticado entre os

10. Nichols, “Discovering Form, Inferring Meaning”, p. 16.


11. Nichols, “Global Image Consumption”, p. 70-71.
frequentadores de festivais internacionais de cinema, um mode­
lo interpretativo que recebe filmes não somente a partir da pró­
pria posição de sujeito do frequentador de festivais (como arte­
fatos de um gênero de filme de arte internacional, por exemplo),
mas também funciona como um tipo de imersão cultural tem­
porária.
“Leitura” e “submersão” não são, portanto, modos mutuamen­
te excludentes de recepção cultural para Nichols, mas lentes de
interpretação que o espectador pode escolher conforme desejar.
De fato, é a própria posição intersticial do frequentador de festi­
val - nem totalmente dependente de uma imersão experimentada
nem de uma observação distante - que faz dela “a própria audiência
necessária para reconhecer e apreciar” o valor dessas produções
culturais.

Mesmo se o frequentador de festivais é encorajado a fazer do


estranho familiar, a recuperar diferença como semelhança (mais
classicamente através da descoberta de uma humanidade comum,
uma família de homens [sie] estendendo tempo e espaço, cultura
e história), uma outra forma de prazer reside na experiência do
próprio estranhamento. Enquanto esse aspecto da experiência do
festival não reafirma ou cede prontamente aos códigos predomi­
nantes do cinema hollywoodiano hegemônico, ele coloca o festi­
val internacional de cinema em uma posição transnacional e qua­
se pós-moderna.12

12. Nichols,“ Discovering Form , Interring Meaning”, p. 1 8 .0 “sic” pertence a Nichols.


Então, a posição do frequentador de festivais abarca tanto
um modo de assimilação de “leitura” quanto uma satisfatória “ex­
periência de estranhamento”, um reconhecimento daqueles elemen­
tos de um filme que resiste à familiarização e à tradução.
Comparando a experiência do festival com o trabalho de
campo etnográfico, entretanto, Nichols também observa a dife­
rença essencial entre os objetos de estudo dessas duas práticas.
Citando o estudo etnográfico referencial de Clifford Geertz,
Nichols aponta que

[...] a briga de galos de Bali não foi projetada para viajar. O novo
cinema iraniano sim. O que o crítico de outra cultura acrescenta,
como suplemento, poderia também, sob essa luz, ser considera­
do como toque final que complementa uma fusão complexa e
distinta do local e do global13.

Nichols coloca em primeiro plano, por um lado, a vontade e a


participação ativa dos filmes e seus criadores na arena do festival de
cinema como imagens a serem consumidas e trocadas e, por outro
lado, o papel específico e importante do próprio frequentador do
festival. Partindo da noção de Kaplan de que o crítico não nativo pode
perceber aspectos de um trabalho que o crítico nativo não vê, Nichols
argumenta antes que as “camadas adicionais de significado resultam
da circulação de artefatos e trabalhos de arte em uma economia glo­
bal”14. Na concepção de Nichols sobre o festival de cinema, portan -

13. Ibidem, 28, n. 11.


14. Ibidem. A ênfase é de Nichols.
to, o frequentador do festival internacional tem uma relação comple­
mentar com o filme que ele vê. O festival é, por essa razão, “uma for­
ma e um contexto que simultaneamente alteram significados locais
[de um filme] e conferem significados novos, globais. O contexto do
festival acrescenta uma cobertura maior a significados locais”15.
O que Nichols descreve aqui como “cobertura global” acresci­
da ao texto no ambiente do festival associa-se ao que Walter Benja­
min descreve como a alteração sofrida por um texto pelo ato da tra­
dução.16 Para Benjamin, o ato da tradução não é uma transmissão
direta de informação de uma língua para outra - a “equação estéril de
duas línguas mortas”17 - , é antes o legado do texto original de uma
“vida após a morte... uma transformação e uma renovação de algo
vivo [por meio da qual] o original passa por uma mudança”18. Como
o modelo de Nichols do festival de cinema, a tradução acrescenta
novo significado ao seu sujeito nesse processo de “transformação
linguística e renovação”. A tradução em si se torna um local privilegi­
ado (se temporário) de interseção cultural, oferecendo tanto transpa­
rência cultural quanto o reconhecimento de sua impossibilidade.

A tradução continua pondo à prova o crescimento sagrado de lín­


guas: quão deslocados da revelação estão seus significados escondi­
dos, quão próximos eles podem ser trazidos pelo conhecimento
desse deslocamento? Isso, com certeza, é admitir que toda tradu­
ção é de alguma forma apenas uma maneira provisória de chegar
a um acordo com o estrangeirismo de línguas.19

15. Nichols,“Global Image Consumption”, p. 68.


16. Benjamin, Walter. A Tarefa do Tradutor. Illuminations. New York: Schocken Books,
1969. p. 73.
17. Ibidem.
18. Ibidem.
Apesar de seu reconhecimento da impossibilidade de um
olhar transcultural transparente, o festival de cinema, como local
de tradução, todavia, gesticula em direção “ao domínio predesti­
nado, até agora inacessível da reconciliação e desempenho das lín­
guas”20.
Portanto, no caso ideal de Nichols, o “global nascente” do
circuito do festival de cinema é uma dialética complexa de interação
transcultural, gerando novos significados e uma nova vida para os
filmes e seus produtores. No centro desses cruzamentos de in­
tercâmbio cultural, o frequentador de festival ocupa o status privi­
legiado, não somente como curador, etnógrafo, turista ou porteiro,
mas também como tradutor, cuja tarefa é negociar o dilema inso­
lúvel de distanciamento e reconciliação.

Como o etnógrafo, sabemos muito bem que a busca de conheci­


mento profundo e autenticidade é ilusória. Sabemos bem que
podemos somente produzir conhecimento que nos situará e clas­
sificará, que nos fornece discernimento sobre as “regiões obscu­
ras” de nossa própria construção do eu, concepção do estado, da
cultura ou do valor estético. Sabemos bem e ainda assim... Essa
dialética de saber e esquecer, experimentando estranhamento e
recuperando o familiar, sabendo que eles sabem que nós sabe­
mos que eles regulam suas informações para nossas pressuposi­
ções, enquanto assistimos a esse processo de revelação mútua or­
questrada acontecer, é uma recompensa em si mesma.21

20. Ibidem, p. 75.


21. Nichols,“ Discovering Form , Inferring Meaning”, p. 20.
Exportando problemas políticos:
Boat People e The President’s last bang

Após esboçar o que poderia ser caracterizado como um


modelo ideal para o consumo de filmes no contexto do festival
internacional de cinema, gostaria agora de voltar minha atenção
para o contraexemplo - ou contranarrativa - de The Presidents
last bang>um filme que passou por muitos desses canais interna­
cionais e foi recebido com indiferença somente no lançamento
geral nos Estados Unidos. Eu deveria, talvez, deixar claro que meu
interesse aqui não é equacionar receitas de bilheteria com psicolo­
gia de massa, nem exercitar reclamações sobre o abismo existente
entre a comunidade cinem ática internacional de elite e sua
contrapartida popular, ou sobre a população nacional ignorante ou
indiferente à cultura e à história de uma nação estrangeira (mesmo
havendo credibilidade por parte dessas alegações). Em vez disso,
minha intenção é esclarecer a forma como o circuito do festival
de cinema, ainda que de forma persuasiva posicionado como um
canal ideal para o trânsito cinematográfico transcultural, pode fa­
lhar ao classificar certos textos que ocupam posições problemáti­
cas em relação ao discurso dos cinemas globais e nacionais.
Meu modelo para esse projeto é o ensaio de Julian Stringer
sobre Boat People, um ato de recuperação de um filme que Stringer
acha que foi, injustamente, omitido e mal-interpretado durante
seu circuito de festivais internacionais de cinema em 1983. Stringer
está interessado em examinar
[...] o papel crucial desempenhado pelos festivais internacionais
de cinema na circulação e recepção transnacional de BoatPeople.
Ao adotar uma perspectiva que considera a significáncia das prá­
ticas de distribuição intercontinental, é possível levantar ques­
tões muito negligenciadas nos relatos antecedentes sobre a im­
portância do filme... para considerar Boat People tm termos de
arte mundial do circuito do festival internacional.22

A ênfase de Nichols, por outro lado, está no ato do frequentador


de festival de analisar textualmente o cinema iraniano. O que falta
em sua teorização são as práticas de distribuição específicas pelas
quais esses filmes iranianos chegam até ele. No cinema iraniano,
Nichols tem o benefício de um exemplo privilegiado, um grupo
de filmes que chegou a Toronto en masse, compartilhando uma
estética neorrealista aparentemente uniforme e surgindo de uma
indústria de filmes que tinha, até então, permanecido em grande
parte isolada do cinema ocidental e do público. Filmes como Boat
People e The Presidents last bang são muito mais problemáticos
em todos esses aspectos: são filmes individuais, procuram mais
diretamente (e talvez mais sabiamente) se engajar a espectadores
internacionais e toleram marcas menos estáveis, consistentemen­
te genéricas e estéticas.
Em seu ensaio, Stringer argumenta que, enquanto “festivais
ativam molduras históricas intertextuais variadas e históricos no
momento em que projetam assuntos locais para consumo interna­
cional”,
[...] neste caso particular, Cannes, Nova Iorque e outros eventos
semelhantes não quiseram, em 1983, manter em circulação um fil­
me problemático altamente autoconsciente de sua própria existên­
cia como um espetáculo político e público. (Nichols, 1994, p. 20).23

Stringer lista as dificuldades que os críticos e o público tive­


ram em 4classificar” o filme, citando tanto aas limitações percebi­
das de Boat People como um texto” quanto sua construção pro­
blemática de identificação com o público.24Na linguagem de
Nichols e Kaplan, este era um filme que apresentava problemas
tanto de “leitura” quanto de “submersão”, um filme que desafiava
qualquer oportunidade de imersão cultural imaginada e apresenta­
va significantes difíceis ou enganosos para uma interpretação ade­
quada. Isso é tudo parte da mais geral e problemática “crítica inter­
na do filme a partir do olhar transcultural”25. Parte da dificuldade
em situar Boat People no contexto do festival de cinema deve-se a
sua preocupação integral, narrativizada com a mídia - uma das
próprias formas de interpretação cultural que poderia procurar
entendê-lo.
O caso de The Presidents last bang apresenta muitos dos mes­
mos problemas para críticos e frequentadores de festivais de cinema.
Um rápido olhar aos excertos do programa no início deste ensaio dará
uma indicação da resistência do filme a uma categorização genérica:
“réquiem”, “sátira política”, “uma história de detetive emocionante”, “hu-

23. Ibidem, p. 21.


24. Ibidem, p. 18-19.
25. Ibidem.
mor mórbido picante”, “saga”, “drama social perturbador”, “humor mór­
bido escabroso” e “farsa grandiosa”, são todos termos usados para clas­
sificar o filme de um modo genérico particular. Essa linguagem é parci­
almente representativa do jargão dos programas de festival, os quais
frequentemente tentam situar filmes individuais como coisas para to­
das as pessoas. Mas também é em grande parte uma indicação da qua­
lidade do filme quanto ao tom e ao gênero enquanto retrata um evento
histórico maior, alternando seriedade, violência sangrenta e comédia
de pancadaria. Realmente, seria difícil classificar esse filme em qualquer
gênero dominante ou amplamente reconhecido do cinema internaci­
onal (muito menos da Ásia Oriental ou Coreia). O filme, certamente,
contém violência e sangue, mas somente em umas poucas cenas, e está
longe de uma caracterização do que veio a se chamar “Ásia Extrema”
nos mercados europeus. Por outro lado, embora o filme tenha sido
consistentemente exibido no contexto do cinema de arte nos festivais
internacionais (com toda a ênfase sobre as origens autorais e a relevân­
cia social e política que isso implica26), Im Sang-soo, o diretor, não é
muito conhecido, e seu filme carrega os valores de produção e os
marcadores estilísticos {mise-en-scènelxxsXxoszi, trabalho de câmera ágil)
de um filme mais comercial. Essa mistura de tons e gêneros é mostrada
na cena inicial do filme em que o Agente Chefe dá uma volta por uma
série de salas de interrogatório da KCLA (Agência Central de Inteligên­
cia da Coreia), passa por várias cenas de tortura, com o quase cômico
desinteresse de um homem fazendo o seu negócio.

26. Observe o primeiro plano do programa de Toronto do “olhar refinado e incisivo”


do diretor e a caracterização do programa de Nova Iorque do diretor com o “um
encrenqueiro natural.”
As linhas de identificação com o público, igualmente, são
repletas de ambiguidade. O filme ostenta um elenco razoavelmente
grande mostrando todas as principais figuras que envolvem o
evento, mas não privilegia nenhuma delas. O presidente Park
Chunghee é obviamente o principal foco do filme, porém é mor­
to no meio da historia e, de qualquer modo, correspondería mais
propriamente à posição de vilão. O assassino do presidente, o di­
retor da KCIA Kim Jaegyu, também não é mostrado como herói.
Sua motivação para o assassinato é um compromisso com a de­
mocracia, embora ele pareça mais um mercenário. De qualquer
forma, suas exatas razões para matar Park permanecem obscuras
no filme (como na vida real). O agente Ju talvez seja quem mais se
aproxima da figura de protagonista na história, mas é retratado
como alguém profundamente comprometido com questões mo­
rais (ele é forçado a matar um conhecido em um momento crucial)
e tolamente leal ao seu superior. Obviamente, todas essas identifi­
cações potenciais são derrubadas ao final do filme, um relato dos
julgamentos e execuções daqueles envolvidos no assassinato, lido
em um tom condescendente pela narradora, que não aparece na
tela. Esse epílogo e, especificamente, seu narrador feminino, em
princípio, revelariam o verdadeiro tema do filme: a hipocrisia e
o fervor masculino macho que sustentam as intenções pretensio­
samente nacionalistas dos políticos da época. “Glória à República
da Coreia, uma ova”, bufa o narrador. “Que ingenuidade!” - uma
exclamação que efetivamente ridiculariza qualquer sugestão de que
o filme pretendia criar heróis a partir dos personagens do filme,
ou mesmo servir como um “réquiem” para eles.
De fato, é o trabalho do filme como relato histórico e seu
modo particular de historiografia que, como “crítica interna das
relações de olhar transcultural de Boat Peoplê\ parece gerar a mai­
oria dos problemas à sua recepção em um contexto de festival
internacional de cinema.

História e esquecimento: “repensando”


The P resident’s last bang

Stringer começa a ressuscitar Boat People com um catálogo


das principais interpretações feitas por vários críticos do filme. O
filme foi basicamente enquadrado como uma alegoria da iminente
entrega de Hong Kong à China Continental, mas também figurou
em termos de sua relação com toda a obra da diretora Ann Hui e
com seu status de “diretora mulher”. Todavia, como Stringer ad­
verte, “tais trabalhos somente realçam a necessidade de se estar
consciente sobre a variedade de elementos que definem a situação
do filme em um complexo meio discursivo e social”27. Como es­
sas principais interpretações do status de The Presidents last bang,
como trabalho histórico, indicam, aqui está uma necessidade de
cautela.
Muito da confusão que envolve a recepção do filme nos Es­
tados Unidos - e muito da controvérsia em torno de seu lança­
mento na Coreia do Sul - se origina na questão relacionada à pre-
cisão histórica do filme. Para os críticos estadunidenses, a mudança
radical de tom no filme e o foco confundem qualquer afirmação
que ele possa fazer com autoridade factual. John Hayes, assistindo à
pré-estreia do filme, no Festival de Cinema Three Rivers, para o
Post-Gazette de Pittsburgh, sugere que

[...] não está claro o quanto Im Sang-Soo sabe sobre a história de


sua nação, quais partes de The President’s last bangsão verdadei­
ras, quais são razoavelmente ñccionalizadas, quais são feitas para
se encaixar em uma pauta e quais são elaboradas para compor
um bom filme28.

Para Hayes (que percebe que o filme é “algo entre uma farsa
e um suspense”), a questão da veracidade histórica dos detalhes
do filme é crucial no julgamento sobre o valor e a importância do
filme:

Se ThePresident’slastbang é de fato um filme baseado no coreano


Todos os Homens do Presidente, torna-se fascinante conhecer os
mínimos detalhes pessoais que contribuíram para a história: um
mau hálito de um oficial, uma amizade inconveniente com um
guarda presidencial, policiais sem balas, uma relação conjugal
com o presidente, entre outros. Porém, se todos esses pormeno­
res são simplesmente uma série de recursos literários inventados
e usados para costurar alguns fatos pesados em um filme longa
metragem, então The President’s last bangé pouco mais do que
um JFK coreano de entretenimento.29

28. Hayes, John. 3 Rivers, 3 Sneaks; Film Fest Offers First Look at Som e Great New
Movies. Pittsburgh Post-Gazetted, Nov. 2005. p. 20.
29. Ibidem.
Interpretando o filme pelo viés dos thrillers políticos
estadunidenses, Hayes tenta discernir se The Presidents last bang
é uma reconstrução ou uma mera teoria da conspiração. Aqui, só
uma verificação do status do filme como “fato” ou especulação
legitimará uma leitura “correta”.
Entretanto, um olhar para as controvérsias em torno da pro­
dução do filme e do lançamento na Coreia do Sul revela que o
modo historiográfico do filme é um tanto mais complexo. Espe­
cificamente, o filme atraiu a ira da família do presidente Park, que
prontamente acionou os tribunais para banir o filme sob a alega­
ção de que as descrições referentes às atenções amorosas do presi­
dente a mulheres jovens eram humilhantes e difamatórias. Os tri­
bunais então sancionaram o lançamento do filme com a condição
de que fossem feitas algumas revisões, a fim de não ser “enganoso
e [não] fazer as pessoas pensarem que o filme era fato, em vez de
ficção”30. No lugar da narração zombadora do epílogo do filme,
Im originalmente pretendia usar na íntegra o documentário do
funeral estatal de Park. Os tribunais exigiram que a extensão do
documentário fosse reduzida e também que o filme tivesse uma
retratação introdutória, declarando-o uma obra de ficção.
Nas entrevistas, entretanto, Im foi inflexível sobre a veraci­
dade de seu relato e de sua base em pesquisa detalhada:

Até onde sei, esta é a verdade. Mesmo que ninguém conheça a


verdade, exceto os deuses! Há somente três pessoas que sobrevi­
veram ao evento... e não podemos realmente comprovar se o que

30. Russell, Mark. The Presidents last bang. Hollywood Reporter, 1 fev. 2005.
dizem sobre aquela noite é verdade, mas o que é a verdade? Ver­
dade é quando você tem muitos detalhes e várias explicações so­
bre fatos e sobre quem estava lá contados por várias pessoas dife­
rentes. Aqui, em vez disso, temos somente três pessoas. Eu então
diria que esta é a versão de Im Sang-soo do que aconteceu naque­
la noite. Não diria que isto é uma sátira, ou uma obra de ficção,
ou uma versão grotesca de realidade. Só digo que, até onde sei,
esta é a verdade e que esta é a minha versão dela.31

Os comentários de Im sobre The Presidents last bang e a mu­


dança persistente de tom e gênero do filme revelam sua ênfase na
plasticidade, no absurdo inerente, na verdade em geral e nesta his­
tória em particular. O filme de Im retrata uma história ridícula al­
ternativa que desafia o registro oficial e resiste a qualquer descrição
unilateral de seus personagens como “importantes” ou como figu­
ras históricas intocáveis. Não obstante suas invocações da “verda­
de” em sua versão, Im é cândido sobre seu método historiográfico
de condensação, simbolismo e metonimia. Conforme explica, ele
quis criar “uma apresentação cinemática muito efetiva, [...] eu que­
ria colocar em um filme de cem minutos não somente as poucas
horas daquela noite, mas todos os dezoito anos do regime de Park
Chunghee”32. De fato, o filme de Im interpreta literalmente a asserção
famosa de Marx, repetindo história como tragédia e depois como
farsa, ou simultaneamente. Dessa forma, The Presidents last bang se
engaja em um modo historiográfico particularmente complexo,
onde a própria farsa se torna uma metodologia de consciência his-

31. Bertolin, Paolo. An Inteniew with Im Sang-soo. maio 2005. Disponível em: < http://
koreanfilm.org/imss.html>. Acesso em: 11 dez. 2005.
32. Ibidem.
tórica e desconstrução.33Tal forma de redução e transformação
metonímica é semelhante à noção de tradução de Benjamin e ao
conceito de Nichols de “cobertura global” do festival de cinema:
um processo altamente autoconsciente de ressurreição que atri­
bui a seu objeto um novo significado em sua vida após a morte.
The President s last bang não somente desafia deliberadamente
uma leitura linear e inquestionável como fato histórico, mas tam­
bém revisita um momento na história que é particularmente pou­
co comentado no Ocidente. Quero dizer com isso que o assassinato
de Park Chunghee não se encaixa claramente nas caracterizações mais
amplas da história da Coreia e do “espírito nacional” no sentido em
que é conceituado internacionalmente. O filme não aborda explici­
tamente a divisão da Coreia em norte e sul, tampouco retrata a
história recente da Coreia do Sul como uma narrativa otimista e
descomprometida de democracia. De fato, como Han Ju Kwak ob­
servou, a ditadura longa e opressiva de Park Chunghee, do início da
década de 1960 até o assassinato em 1979, está indissociavelmente
ligada ao surgimento da modernização na Coreia do Sul.34Ao reativar
esse momento na memória popular, ao ressuscitar o presidente para
revisitar sua última “transa”, o filme ameaça uma ruptura na história

33. Para uma discussão de melodrama com o forma análoga de consciência histórica,
ver: Wang, Yuejin. M elodrama as historical understanding: the making and
unmaking of communist history. In: Dissanayake, W imal (Ed.). Melodrama and
Asian Cinema. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 73-100.
34. Kwak, Han Ju. Discourse on Modernization in 1990s Korean Cinema. In: Lau,
Jenny Kwok (E d .). Multiple Modernities:. Cinem as and Popular Media in
Transcultural East Asia. Philadelphia: Temple University Press, 2003. p. 91.
da democracia da Coreia do Sul. De fato, para Im, reativar memóri­
as ruins está na raiz da controvérsia que o filme causou em seu país:

Meu produtor lançou Last Bangdurante quatro meses na Coreia.


E os jornalistas e jornais mais poderosos de extrema direita es­
creveram críticas violentas e ruins sobre o filme. Fiquei chocado.
Park morreu há 25 anos, mas há algo que ele deixou para trás,
talvez uma mentalidade. Mas, mais concretamente, a Samsung,
a Hyundai, que nasceram no regime do Sr. Park. Essas marcas
agora controlam a Coreia, então elas não querem ver seus pró­
prios fatos, sua própria face no filme.35

C o n clu são

Semelhantemente a Boat People, The Presidents last bang


prevé os modos interpretativos do espectador e deliberadamente
problematiza seu entendimento da verdade relativa da represen­
tação histórica em exibição pública. Apesar da caracterização de J.
Hoberman (provavelmente brincando) do filme como um trabalho
de “K-História (K de Kim, o assassino, de Korea e de KCIA)”36, o
longa metragem emprega um método de historiografia particular­
mente desconfortável, anticomercial e impopular que questiona as
próprias condições e origens da modernização da Coreia do Sul.

35. Crawford, James. Shoot to Kill: Im Sang-soo Gets Down and D irty W ith Politics
in The President’s last bang. 12 out. 2005. Disponível em: < http://www.indiewire.com/
people/2005/ 10/shoot _to._kill_,i.html>.
36. H o b erm an , J. K -H isto ry : Slapstick Political T h riller Skim ps on C o n te x t,
Village Voice, 7 out. 2005. Disponível em : < http://w rww.villagevoice.com /film/
0541 ,hoberm an2,6 8 7 0 7 ,20.htm l>.
No contexto de um festival internacional de cinema em que
a retórica de um cinema mundial global coexiste com aqueles
poucos cinemas locais, nacionais, os filmes que procuram desafi­
ar as narrativas dominantes de suas próprias localidades podem
ter poucos atrativos. Isso é particularmente verdade para um ci­
nema nacional “novo” como o da Coreia, que ainda está em pro­
cesso de formação de sua imagem no panorama da mídia de festi­
vais internacionais de cinema. As lições de um filme como The
President's last bang, com sua crítica interna sobre a moderniza­
ção de seu país, serão recebidas com entusiasmo tanto pelos festi­
vais de cinema globais (e, de forma crescente, corporativos37) quan­
to pelos conglomerados no país natal.
Porém se, na concepção de Bill Nichols, o festival internaci­
onal de cinema é, de fato, a primeira arena da “dialética de saber e
esquecer”, então os filmes “difíceis” como Boat People e The
Presidents last bang - filmes que, acima de tudo, procuram nos
lembrar da instabilidade de nossas posições subjetivas e de nossas
próprias pré-histórias complexas - deveriam ser precisamente os
tipos de textos que nos beneficiassem. E, se devemos “constituir o
público exato necessário para reconhecer e apreciar tais cinemas
como entidades únicas e de valor”, devemos ser receptivos à “es­
tranheza da experiência” em todas as suas formas.

37. O Festival de Cinem a de Nova Iorque, por exem plo, tem sido patrocinado nos
últimos dois anos pela HSBC (C orporação de Hong Kong e Shanghai de Banco),
a qual se descreve com o “o banco local mundial”.
R eferên cias

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MÓDULO V
Nas fronteiras da memória,
do desejo e do afeto
A memória das coisas* 1
Laura U. Marks

O passado está “em algum lugar além do alcance


do intelecto e inconfundivelmente presente em
algum objeto material (ou na sensação que um
objeto desperta em nós), embora não tenhamos ideia
de qual seja. Já o objeto depende
totalmente da chance de o encontrarmos antes
de morrer ou de nunca o encontrarmos”.
Marcel Proust (apud Benjamin, 1968a, p. 158).

Este texto analisa filmes e vídeos que desvendam memórias


de objetos. Movimentos através do espaço e do tempo podem ser
lidos na imagem; movimento entre culturas, como a passagem
do tempo, cria imagens disjuntivas, ilegíveis. Essas imagens são
todas de um tipo particular de imagem-recordação, que nomeio
objeto-recordação', um objeto irredutivelmente material que co-

* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N. T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Este artigo é uma versão reduzida do segundo capítulo, “The M em ory of Things”,
do livro The skin o f the film. Intercultural cinem a, em bodim ent, and the senses.
D urham ; Londres: Duke University Press, 2000. [N .O rgs.].
difica memória coletiva. Elas podem, além disso, ser variavelmen­
te consideradas fetiches, fósseis e objetos transnacionais. O im­
portante sobre todos esses objetos-imagens é o fato de condensarem
o tempo e, ao desvendá-los, os expandimos externamente no tem­
po. Continuando com a terminologia deleuziana, quando uma ima­
gem emerge de outro lugar, de outra cultura, ela tumultua a coerên­
cia do plano da presente cultura. Quando Deleuze escreve “O pre­
sente existe como um passado infinitamente condensado que é cons­
tituído no ponto extremo do já-lá” (1987, p. 98), as palavras “pas­
sado infinitamente condensado” parecem descrever o objeto lem­
brança, aquele sobrevivente teimoso de outro lugar-tempo que
traz seus conteúdos voláteis para o presente. Um objeto em um
filme ou vídeo é um tipo particular de imagem-lembrança que
traz de volta diferentes passados para pessoas diferentes. Onde o
Cidadão Kane tinha Rosebud; Rea Taj ir i tem um pássaro de ma­
deira; Shuana Beharry, um sári de seda; Victor Masayesva, uma
máscara roubada com o espírito dos ancestrais2: objetos cujos pas­
sados incomensuráveis são o produto não somente de uma história
pessoal mas também de desterritorialização cultural. O objeto que
fica na família como herança, lembrança, o objeto manufaturado
contém histórias diferentes e incomensuráveis de autoria, fantasia,
trabalho etc., dependendo de quem olha para esses objetos. O cine­
ma intercultural frequentemente toma as coisas por suas imagens,
apresenta-as em toda a sua estranheza tipo-fóssil e, algumas vezes,
ao reconectá-las com seu passado, neutraliza seu poder perturbador.

2. Os personagens citados referem-se a filmes e vídeos que a autora vem analisando


ao longo do livro, a partir da categoria de “cinema intercultural” e de suas impli­
cações sensoriais. [N.Orgs.].
Os objetos que viajam ao longo dos caminhos da diáspora
humana e do comércio internacional codificam uma desterrito-
rialização cultural. Mesmo as mercadorias, embora estejam sujeitas
ao fluxo desenraizado da economia transnacional e ao processo de
censura da história oficial, retêm o poder de contar as histórias dos
lugares onde estiveram. O cinema intercultural se move através do
espaço, juntando histórias e memórias que estão perdidas ou co­
bertas no movimento de desterritorialização e produzindo no­
vos conhecimentos fora da condição de estar entre culturas. Para
criar um outro termo, adaptando a teoria de D. W. Winnicott do
objeto transicional, eles podem ser considerados objetos
transnaáonais. Objeto transicional é qualquer objeto externo que
uma pessoa incorpora parcialmente no processo de reorganização
da subjetividade (Winnicott, 1986). Então, parece útil sugerir que
“objeto transnacional” possa descrever os objetos que são criados
na tradução cultural e no movimento transcultural. Muitos filmes
importantes focalizam o tráfico de pessoas. Algumas dessas pes­
soas podem ser classificadas como “objetos transnacionais”, uma
vez que são comercializadas entre nações, como refugiados, tra­
balhadores estrangeiros, “acompanhantes de luxo” ou outros pro­
fissionais do sexo, ou a vasta força de trabalho sem documentação
que corrobora o comércio internacional. Não é preciso dizer que
filmes e vídeos sobre trabalhadores itinerantes são somente uma
fração dos vastos números de trabalhos que reconstituem o mo­
vimento de imigrantes e exilados, resultando em transformações
no mínimo tão fundamentais à nação para onde essas pessoas se
deslocam, quanto às próprias pessoas. Ressalto neste capítulo um
subgénero do que tem sido chamado de cinema transnacional
independente (Naficy, 1994; Zimmermann; Hess, 1996). Se esse
gênero enfatiza primeiramente os movimentos de diáspora de
imigrantes e exilados, esses trabalhos desvendam os vestígios dei­
xados por coisas que “emigram” devido a semelhantes fluxos glo­
bais de capital, poder e desejo. Se a torrente veloz de informação e
capital é uma maré incessante, então a maioria dos movimentos
aos quais este texto se dedica são correntes submarinas, carrega­
das pela maré, mas se movendo contra ela, ou redemoinhos cria­
dos em pontos idiossincráticos na onda.
A maior parte dos exemplos neste texto é constituída de
documentários e vídeos. Os documentários têm posição privilegia­
da de representação da realidade. Portanto, é especialmente premen­
te para eles explicar as transformações e desarticulações da realidade
sob as pressões dos movimentos interculturais. Mas ainda mais im­
portante para os meus propósitos neste texto é a relação privilegiada
do documentário com o real que se estende até a conexão material e
até o próprio evento pró-fílmico - uma relação basicamente feti­
chista no sentido antropológico. O cinema pós-colonial responde
ao fetichismo colonial, ou valendo-se dos aspectos da cultura colo­
nizada, a fim de manter uma distância para que possa controlá-lo,
não somente no nível do conteúdo da narrativa. Esses trabalhos tam­
bém redimem objetos fetichizados, ao encontrar neles valores que
não são reconhecidos no contexto colonial. Eles podem mostrar
como o significado de um objeto se altera à medida que circula em
novos contextos. Eles podem recuperar a “radioatividade” de um
objeto que foi esterilizado ou ficou inerte através do comércio inter­
nacional. Podem retratar o objeto de tal forma que fique protegido
do olhar fetichista ou mercadológico. Ou podem propor uma for­
ma não fetichista de olhar, que convide o “espectador” a experimen­
tar o objeto não tanto visualmente, mas através de contato corporal.
Além do objeto transnacional, uso modelos do fetiche e do
fóssil para descrever como os objetos codificam as mudanças
discursivas e as condições materiais de desterritorialização. O signifi­
cado, argumento, está codificado em objetos não metaforicamente,
mas por meio do contato físico. Seguindo os historiadores e os
teóricos de presentes e mercadorias, sugiro que os objetos não são
inertes e mudos, mas que contam histórias e descrevem trajetóri­
as. O cinema é capaz não somente de seguir esse processo crono­
logicamente, mas também de descobrir o valor que é inerente aos
objetos: as camadas discursivas que tomam forma material neles,
os traumas mal-resolvidos que estão incrustados neles e a história
de interações materiais que eles codificam. Sigo argumentando que
o cinema pode ser considerado não um simulacro, mas um artefato
material de migração transnacional. Esse argumento envolve uma
reconsideração da noção de aura como forma de conversar a res­
peito de como os objetos codificam processos sociais.
Das muitas teorias do fetiche que operam na antropologia,
na análise marxista e na psicanálise, enfatizo aquelas que de forma
explícita o abordam em termos de uma série de deslocamentos
históricos e interculturais. Todos os fetiches são traduções para
um objeto material de algum tipo de afeto; o fetiche descrito pela
psicanálise é somente um deles. Alguns objetos corporificam a
memória e também o trabalho: as teorias de fetichismo descre­
vem como um valor se agrega a objetos sem ser reduzido a
comoditização. Defenderei o ponto de vista de que as relações
interculturais são necessariamente fetichistas, embora os fetiches
não sejam necessariamente interculturais.
Ao usar ambos os termos “fetiche” e “fóssil”, desejo criar um
local de encontro entre os objetos-recordação de Deleuze e Benja-
min, os quais atribuem parte de seu significado a Bergson. Neste
texto, frequentemente usarei somente o termo fetiche. Mas, na rea­
lidade, desejo argumentar que os dois termos são funcionalmente
semelhantes: ou, pelo menos, que o fetiche opera da mesma forma
que o “fóssil radioativo”, no termo informal de Deleuze para um
certo tipo de imagem cinematográfica (1989, p. 113). Para explicar
isso, deixe-me definir aquele termo benjaminiano crucial, aura.
Benjamin escreveu que aura é a qualidade em um objeto que
faz com que nossa relação com ele se pareça com a relação que temos
com outra pessoa. Ele parece nos olhar (1968a, p. 188). Marx e Benja­
min - este seguindo aquele relutantemente - tentaram desmitificar o
caráter fetichista de objetos auráticos, ao mostrar que ganhavam
poder a partir de presenças humanas e de práticas materiais que
os construíam. Digo “relutantemente” porque Benjamin não que­
ria abandonar o poder do objeto aurático como um objeto. Ele
não pode ser reduzido a uma narrativa, como vou insistir ao lon­
go deste texto. Aura é a sensação que um objeto nos dá de que
pode falar conosco do passado, sem nos deixar decifrá-lo comple­
tamente. É uma escova com memória involuntária, memória que
só pode ser acessada através de um choque. Voltamos novamente
ao objeto aurático, ainda sedento (Benjamin, 1968a, p. 187), fa­
zendo referência a Paul Valéry, porque ele não pode nunca satisfazer
completamente nosso desejo de recobrar aquela memória. Daí o sen­
tido de um objeto aurático manter sua distância, não importando
quão próximo o trouxermos: está distante de nós no tempo mesmo
estando presente no espaço. Benjamin permaneceu marxista em sua
insistência de que o caráter aurático das coisas não era simplesmen­
te sua habilidade em fazer despertar memórias em um indivíduo;
não uma “reconciliação prematura, meramente individual com um
mundo que já acabou” (Hansen, 1987, p. 190), mas a ressonância do
mundo social reificado em um fragmento. Os objetos auráticos,
então, são fragmentos do mundo social que não podem ser lidos
em um estado de euforia, mas somente na presença do objeto.
O fetiche de Benjamin e o fóssil de Deleuze têm em comum
uma luz perturbadora, um aceno de luminosidade inquietante.
No fetiche é chamada de aura, no fóssil é chamada de radioativi­
dade. Aura é o que faz o fetiche volátil porque nos incita à memó­
ria sem trazer a memória de volta completamente. De forma se­
melhante, quando um fóssil é “radioativo”, assim o é porque sina­
liza que o passado que representa não acabou, sugere que o espec­
tador desvende o passado, mesmo correndo perigo.

Os objetos-recordação

Os objetos que considero neste texto constituem um exem­


plo especial de imagens-recordação discutidas em outro momen­
to. Para cunhar outro termo, eles seriam considerados objetos-re­
cordação. O cinema confronta tais objetos inicialmente inescrutáveis
e faz tentativas de lê-los, ao ligá-los à memória. Os trabalhos que
discuto neste texto documentam o processo de tradução, ao deci­
frar as desterritorializações e as relações sociais que os objetos carre­
gam com eles. Muitos filmes com narrativas mais ou menos
interculturais usam objetos-recordação como parte do mise-en-scène\
onde aparecem como testemunhas mudas da história de um perso­
nagem. Em Dreaming Rivers, de Martine Attile (1988), por exem­
plo, os filhos britânicos de uma mulher caribenha ficam junto a
seu leito de morte refletindo sobre suas memórias a respeito dela.
Uma fofoca sussurrada pela voz do narrador sugere que ela emi­
grou por amor para ser abandonada para a “Inglaterra - é tão fria”.
Eles comentam sobre os objetos do quarto dela, porta-retratos,
flores secas, colares, de concha e fita. O filho diz: “Eu tinha vergo­
nha das coisas nesta casa, esse lixo”. A filha moderna, de pele clara,
diz depreciativamente: “Tornou-se moda: novo Negro” Sua irmã
de pele escura, que obviamente era mais próxima da mãe, a defen­
de: “Ela valorizava estas coisas, ela tinha orgulho disso”. Em
fíashbacks, vemos essa mãe vagarosamente penteando e ajeitando
o cabelo, banhando os pés com óleo e pétalas de rosa e, de forma
emocionada, olhando as fotos. Mas a voz sussurrada do narrador
em crioulo e em inglês não permite que ela fique em paz; em um
vestido claro e floreado relembra o país quente de seu nascimen­
to, arrastanto desesperadamente uma mala. Assombrada pelas vo­
zes sussurradas, ela se contorce de dor, gritando, “Inglateeerra!”
Aí, finalmente descansa, fazendo reverência para o chão, com as
palmas da mão viradas para cima em um gesto de renúncia. O
filme sugere que a forte presença de objetos ritualizados poderia
suavizar o duplo sofrimento daquela mulher - de exílio e de aban­
dono - , mas eles também poderiam se tornar lembranças insu­
portáveis neste país frio.
Outras vezes, um objeto-recordação é cortado da narrativa,
a fim de enfatizar sua qualidade de testemunha. Isso ocorre em
History andMemory. ForAkiko and Takashige (1991), de Rea Tajiri.
Feliz por encantar o alojamento em Poston onde sua família estava
durante o internamento - na verdade, tendo sido guiado para lá por
instinto - , Tajiri traz de volta um pedaço do alcatrão que revestia o
teto do alojamento. O objeto gasto e cinzento é mostrado contra
um fundo preto, como uma joia, embora não haja muito o que
olhar nele. Lê-se um título “Revestimento de alcatrão, campo de
internamento de Poston”. O valor do papel de alcatrão é que ele
aparece nas cenas do internamento que a mãe de Tajiri não conse­
gue lembrar.3Poderia ser dito que o pedaço de revestimento de al­
catrão, tendo sido exposto àqueles eventos, os “fotografou” e só pre­
cisa ser revelado: retangular e cinza, até se parece um pouco com
uma foto antiga. A tarefa de Tajiri, com este e com outros objetos
mudos no filme, é revelar imagens a partir deles.
Um filme pode falhar ao conectar um objeto-recordação à
memória, de modo que o objeto permaneça ilegível, um vestígio
de fóssil de histórias esquecidas ou inexplicáveis. Essas falhas são
tão informativas e bem-sucedidas quanto as ligações o são, pois,
ao manter a “incompossibilidade” de diferentes discursos cultu­
rais, elas demonstram a luta infinita a respeito do significado que
caracteriza a vida intercultural. Esse filme é Finagnon, de Gary
Kibbins (1996), que começa sua busca histórica com um estranho
artefato das relações pós-coloniais, um leitor de língua francesa
para crianças na República de Benin. Kibbins aborda o livro-texto a
partir de vários ângulos para tentar clarear sua história, mas o livro
se mantém mudo. Ele indica as relações coloniais que o produzi­
ram, mas é incapaz de invocar a experiência das crianças africanas
que o leram.

3. É claro que, por estar voltado para o céu, o pedaço de revestimento de alcatrao
deve ter perdido um bocado de coisas também...
Os objetos-recordação não precisam ter uma relação prima­
riamente visual com o evento original que representam. Conside­
re Proust com as madeleines molhadas no chá: um fetiche-olfati­
vo cujo perfume destrancou volumes de memórias. Ao examinar
as histórias contidas nessas imagens, descubro que os significa­
dos que se perdem e são encontrados no curso da viagem (espaci­
al ou temporal) são frequentemente expressos em termos de co­
nhecimentos de sentido não audiovisual.

Fósseis

Os fósseis adquirem seu significado em razão de um contato


original. Um fóssil é o vestígio indicador de um objeto que uma
vez existiu, seu tecido animal ou vegetal que se tornou pedra. Con­
sidere a semelhança entre isso e o processo fotográfico. Os fósseis
são criados quando um objeto faz contato com o material testemu­
nhal da terra. As fotografias são criadas quando a luz refletida por
um objeto faz contato com o material observador do filme. Em
ambos os casos, esse contato transforma a superfície do material de
modo que ela se torna uma testemunha da vida do objeto, mesmo
depois de o objeto ter se decomposto. Criada em uma camada da
história, a testemunha do fóssil está gradualmente coberta com mais
camadas sedimentares. Mas, em vez de se desintegrar, ela se solidifi­
ca e se transforma. Então, quando acontece um terremoto, anos mais
tarde ou bem distante, esses objetos emergem, tornando-se teste­
munhas para histórias esquecidas, o que C. Nadia Seremetakis (1994)
chama de “a testemunha estratigráfica do artefato”. Esses objetos
são aquele tipo especial de imagens-recordação, imagens fósseis,
discutidas anteriormente. Para resumir brevemente, a metáfora
do “fóssil radioativo” descreve a qualidade instável de certas
inexplicáveis, mas poderosas, imagens cinéticas. É assim que Deleuze
descreve uma imagem cinética que parece personificar um passa­
do que é incomensurável com o presente retratado pela imagem.
Em razão de seu caráter indicador, o cinema permite que passa­
dos não resolvidos surjam no presente da imagem. Para Deleuze,
os fósseis não são objetos de pedra fria, mas coisas perigosas, vi­
vas. As imagens são leitos fósseis, onde os fósseis são aquelas ima­
gens estranhas e teimosas que parecem surgir de uma realidade
que está em conflito com seus arredores - “os fragmentos de me­
mória que emergem repetidamente na consciência, mas são miste­
riosos em seus significados” (Stemburg, 1994, p. 178). Essas imagens
se referem ao poder das imagens-recordação para personificar pas­
sados diferentes. Quando uma imagem é tudo que resta de uma
memória, quando não se pode lhe “atribuir um presente” por um
ato de lembrança, mas simplesmente olha alguém onde foi desen­
terrada, então aquela imagem é um fóssil do que já foi esquecido. É
possível, embora, como Deleuze tenha assinalado, perigoso, exami­
nar essas imagens e conhecer as histórias que elas testemunharam.
Deleuze usa o termo fóssil muito casualmente nos livros de
cinema, mas eu me valho dele porque indica a qualidade do mate­
rial da imagem relembrada. Para Benjamin, fóssil é muito mais
complexo. Passagen-Werk, seu projeto inacabado, traz a história
inteira da Europa pós-industrial nos objetos fragmentados e
esquecidos dos arcos das lojas de Paris do século XIX, os quais
são comparados a “cavernas contendo fósseis de um animal
presumivelmente extinto”, a saber, consumidores na era inicial do
capitalismo (apud Buck-Morss, 1989, p. 64). Objetos pequenos, es­
quecidos ou aparentemente frívolos capturam a fascinação de
Benjamin através de seus escritos, como quando ele vagueia por
Moscou, ignorando seus monumentos comunistas heroicos em
favor de lojas de brinquedos e de doces, no Diáno de Moscou.
Ainda, além da idiossincrasia, a força da atenção de Benjamin para
objetos deve-se ao fato de que ele vê neles um poder de testemu­
nhar a história que as narrativas não têm.4 Nos escombros da cultu­
ra industrial, ele lê a fragilidade da própria cultura (Buck-Morss,
1989, p. 170). Portanto, fósseis, no uso benjaminiano, amparam a
ideia da história do capitalismo como história natural.

Fetiches

Gostaria de construir uma noção restauradora de fetichismo


para uma discussão do cinema intercultural. Certamente um tipo
opressivo de fetichismo está funcionando nas relações pós-colo-
niais. O fetichismo habilmente descreve o impulso colonialista
violento de congelar culturas vivas e suspendê-las fora de época.
Críticos como Edward Said (1979), Johannes Fabian (1983), Trinh
T. Minh-ha (1989, 1993) e Homi Bhabha (1990b) têm pinçado

4. De fato, a distinção de Benjamin entre a historia material do objeto e a historia da


narrativa é algo comparável à distinção de Foucault entre visível e explicável,
embora aproximar-se desses termos faça com que a discussão fique interminável.
essa qualidade fetichista do colonialismo decisivamente. Sem es-
• quecer essas críticas, quero alegar outros significados de fetichismo,
a fim de descrever as transformações que ocorrem nos movimen­
tos pós-coloniais e transnacionais.
No fetichismo, o poder não é inerente aos seres, mas flui
entre eles. Os objetos de fetiche podem codificar conhecimentos
que são enterrados no processo de deslocamento temporal ou geo­
gráfico, mas são voláteis quando reativados pela memória. Os fe­
tiches conseguem seu poder não pela representação de que uma
coisa é poderosa, mas através do contato com essa coisa, um con­
tato cuja materialidade foi reprimida. Dessa forma, os fetiches, as­
sim como os fósseis, têm uma relação indexadora com uma cena
original como com uma fotografia. As fotografias, obviamente,
são fetiches no sentido de que consideram como substância dis­
tinta um aspecto visual instantâneo de uma cena ante a câmera,
esquecendo todos os seus outros aspectos.
A genealogia de Benjamin do termo fetiche é compartilhada
com outros usos neomarxistas do termo. Funciona de forma se­
melhante ao seu uso de fóssil\ mas traz outras conotações. No en­
saio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, ele continua o argumen­
to, desenvolvido em de Passagen-Werk, de que a vida pode ser
manifesta em objetos. Além disso, seguindo Freud, ele enfatiza
que os fragmentos de memoria mais poderosos são aqueles que
codificam um incidente que se mantém inacessível à memoria
consciente (1968a, p. 160); em outras palavras, fetiches. Aqui Ben­
jamin demonstra o encontro entre os entendimentos marxistas e
psicanalíticos do fetiche: o objeto do fetiche codifica verdades de
vida coletiva, e essas verdades podem ser descobertas somente atra-
vés de um choque que alcança o inconsciente. Embora esse en-
contro seja importante, os entendimentos psicanalíticos do feti­
che são menos úteis para os meus propósitos comparados às abor­
dagens neomarxistas e antropológicas.
O fetiche é um produto específico de encontros interculturais,
da forma que William Pietz (1987) argumenta em sua impressio­
nante arqueologia do termo. A etimologia da palavra fetiche des­
creve uma história longa e complexa de colonização, apropriação
e tradução. Pietz demonstra a transformação da palavra de língua
portuguesa “feitiço” a partir do seu uso na bruxaria cristã até a
palavra Fetisso (também portuguesa, resultado da pidginização
de feitiço), usada por exploradores na parte oeste da África que
eles chamavam de Guinea. Mais do que transliterar um termo afri­
cano, os negociantes portugueses aplicaram uma palavra portu­
guesa a práticas culturais africanas. Nessa última construção, o
“fetichismo” era um tipo de prática que investia poderes vitais
nos próprios objetos, poderes alcançados via contato físico. Co­
meçou a ser distinguido de idolatria, porque os objetos envolvi­
dos não “representavam” divindades, mas em sua materialidade
abraçavam poderes divinos. Por exemplo, a pena de uma galinha
sacrifical é um fetiche sagrado, porque a galinha é sagrada; as relí­
quias de santos, dedos preservados ou pedaços de roupa ganha­
vam seu valor como fetiche através do contato com o santo. A
relação fetichista se dá entre dois objetos sagrados, não uma di­
vindade e um objeto. Portanto, fetiches, para a maneira de pensar
dos intelectuais europeus, eram teimosamente não transcendentais.
A noção do fetiche foi mobilizada durante um período de
expansão imperial. Pietz argumenta que esta noção teve um papel
significante no estabelecimento de conceitos europeus sobre a cons­
ciência humana e o mundo material, conceitos sobre os quais as
ciências disciplinares humanas que surgiram no século XIX fo­
ram fundadas. Por exemplo, da forma como ele descreve, as con­
ferências de viagem dos negociantes holandeses, como Willem
Bosman, retratavam a adoração africana do fetiche como perver­
são do tipo de autointeresse racional que eles viam como “o prin­
cípio de organização natural de boa ordem social” (Pietz, 1988,
p. 107). As narrativas particulares desses escritores eram acessadas
pelos intelectuais iluministas, incluindo Marx (Pietz, 1993). A es­
colha de Marx, de comparar o processo de abstração do capitalis­
mo com o que era visto como a prática irracional do fetichismo,
constituiu-se em um caminho brilhantemente perverso de alinhar
materialismo com racionalidade. Entretanto, esta tática eliminou
as raízes interculturais da prática “primitiva” da qual ele se apro­
priou para fortalecer sua crítica ao capitalismo.
O termo fetichismo foi primeiramente usado por uma cama­
da particular de europeus para descrever superstições camponesas,
assim como rituais católicos (Pietz, 1987). Somente mais tarde a
palavra veio a descrever as práticas dos africanos. Fetichismo, então,
foi originado como um termo usado para separar os grupos pro­
testantes dominantes e protocapitalistas de outros, fora e dentro da
cultura. O uso inicial de “fetichismo”, para descrever as práticas dos
europeus camponeses e dos africanos do oeste, reafirmou a crença
dos poderes europeus emergentes que, diferentemente deles, os
grupos africanos eram irracionais, incapazes de abstração e presos ao
corpo. Peter Stallybrass e Allon White (1986) discutem de uma for­
ma semelhante que o surgimento da burguesia europeia necessitou
de um processo de distanciamento inter e intraculturalmente. A
fim de consolidar uma identidade que era capaz de “se sobrepor”
ao meramente corporal, a burguesia projetou seus próprios ex­
cessos inaceitáveis em algum lugar, separando-se das práticas car­
navalescas dos camponeses. A expansão colonial exacerbou esse
processo no momento em que surgiu um outro mais primitivo
disponível para as projeções de rejeição/desejo da classe média
europeia. Então, de muitas maneiras, o objeto proibido de desejo
já é intercultural, pois o desejo que a burguesia tinha proibido a si
mesma tomou a forma de fantasias primitivas.
É importante observar que o fetichismo intercultural é ini­
ciado tanto pelos fetichistas quanto pelos fetichizados: nesse caso,
entre os negociantes portugueses e os intermediários africanos que
“explicaram” as práticas espirituais para eles. Pietz sugere que os
próprios informantes do oeste da África usaram o termo Fetisso
para descrever suas práticas para os portugueses, dessa forma tra­
duzindo (em vão) um aspecto de sua prática cultural aos euro­
peus. Esse fetichismo pré-esvaziado tinha o efeito de proteger as
verdadeiras práticas cerimoniais de exame minucioso.5 Nesse sen­
tido, o discurso do fetiche “sempre foi um discurso crítico sobre os
falsos valores objetivos de uma cultura a partir da qual o falante está
pessoalmente distanciado” (Pietz, 1985, p. 14), sempre um discurso
intercultural. Tal entendimento do processo de fetichismo evita pen­

5. Eric Michaels descreve uma forma semelhante de produção cultural que é pré-traduzida
para exportação, a saber, versões acrílicas de pinturas com areia tradicionais dos
aborígines australianos, em Arte Aborígine Ruim (1993).
sar na pessoa, objeto ou cultura fetichizados como simplesmente a
vítima de apropriação cultural. Em vez disso, faz reconhecer que o
fetichismo é um ato mútuo que revela informação sobre ambos
os participantes na troca.
O processo arqueológico de descobrir o significado de tais
objetos fetiches históricos reconhece que eles não podem ser de­
cifrados com finalidade, mas devem ser tratados como chaves para
um momento histórico particular. Os fetiches são microcosmos
materiais. Como Adorno escreveu, são “constelações objetivas nas
quais o social se representa” (apud Mitchell, 1986, p. 204). Pietz, de
forma semelhante, descreve o fetiche em termos neomarxistas
como o nexo de um encontro intercultural específico.

O fetiche não deve ser visto como algo próprio de nenhum cam­
po histórico, a não ser aquele da história da própria palavra, e de
nenhuma sociedade ou cultura distinta, mas de uma situação
transcultural formada pelo encontro dos códigos de valor de
ordens sociais radicalmente diferentes. Em termos marxistas, po­
deria ser dito que o fetiche está situado no espaço da revolução
cultural. (1987, p. 10).

Fetiches e fósseis de vida transnacional

Fósseis, fetiches e objetos-recordação deveriam nos lembrar


das imagens dialéticas que Benjamin encontrou nos arcos das lo­
jas do século XIX, as rachaduras na realidade material na qual era
possível ler histórias reprimidas. Susan Buck-Morss sugere que
“fetiche” e “fóssil” descrevem a mercadoria (1989, p. 211), em sua
concretização da história e concentração de afeto. Tais objetos são
escombros na ruína da história recente. Eles não são somente as ima­
gens de desejo de histórias passadas, mas também o material do qual
“uma nova ordem pode ser construída” (Buck-Morss, 1989, p. 212).
Bricoleurs - pessoas que pegam os escombros de outro tempo
ou lugar, dão nova signifícância a eles e os utilizam com novos
propósitos - criam as possibilidades de história nova. A pessoa
desterritorializada é o ^r/co/eí/rpreeminente, afirma O Último Anjo
da História (1996), filme de John Akomfrah sobre ficção científica
negra. O filme pesquisa artistas futuristas da diáspora africana des­
de o último (e taciturno) jazzista Sun Ra até a novelista Octavia
Butler, disseminando-os como uma figura negra que vagueia em
um tipo de terreno baldio industrial. Ele diz ao passar: “Os africa­
nos sempre fizeram ficção científica porque sempre fomos capazes
de enxergar os buracos no presente.” O bricoleuré capaz de encon­
trar potencial criativo nas ruínas de outra cultura porque esses ob­
jetos, cercados por um campo de força de tradução imperfeita, ad­
quirem uma qualidade transformacional em suas viagens.
Fetiches e fósseis, portanto, são dois tipos de objetos que
condensam histórias enigmáticas e que juntam seu poder peculi­
ar em razão de um contato prévio com algum objeto originário.
Os fetiches e os fósseis são protuberâncias ou embaraços nos quais
forças históricas, culturais e espirituais se juntam com particular
intensidade. Eles traduzem experiência através de espaço e tempo
em um meio material, codificando as histórias produzidas no trân­
sito intercultural. Essa visão do fetiche como objeto produzido no
encontro entre culturas grifa fortemente a caracterização de Homi
Bhabha dos estereótipos coloniais no papel de fetiches: lugares
onde a diferença cultural está estabelecida, mas a própria esta-
bilidade desmente a instabilidade do encontro ( 1994b, p. 70-75).
O espaço intercultural no qual os fetiches e os fósseis são produ­
zidos está sempre carregado com poder. Não é um terreno neu­
tro onde os significados podem ser refeitos com impunidade.
Se entendermos fetiches adequadamente como o produto não
de uma única cultura, mas do encontro entre duas, então vemos
como os fetiches são produzidos tanto no curso do tempo
construído, quanto no movimento disjuntivo ao longo do espaço.
As relações do poder colonial em particular, com sua propensão
para significados locais, transculturais e importados, constituem
locais perfeitos para a produção desses objetos. Onde dois ou mais
discursos materiais se juntam, formam-se alguns artefatos peculia­
res: considere as cerâmicas dos camponeses coreanos que foram
tomadas como objetos estéticos por seus colonizadores japoneses
quinhentistas (e as cópias estetizantes que resultaram daí). A famo­
sa mania pelas tulipas na Holanda do século XVII foi o resultado de
uma obsessão nacional por uma flor de origem persa, espécie que
os importadores holandeses cruzaram diversas vezes para obter va­
riações raras e misteriosas - tulipas de cores estranhas, tulipas ex­
postas a vírus para produzir pétalas crespas e matizadas. Os pratos
nacionais, como o ensopado hindu com caril (Bretanha) ou rijstaffel
(Holanda), traduzem a culinária das colônias para os paladares lo­
cais. Esses são alguns exemplos de objetos fetichistas que são o pro­
duto de duas (ou mais) apropriações direcionais, moduladas com
poder e retradução.
A vida pós-colonial está produzindo fetiches em velocidade
recorde, ao passo que as pessoas são desterritorializadas, especial­
mente quando emigram para as terras de seus antigos colonizado-
res. A transformação cultural na diáspora não é geralmente nem uma
assimilação madura nem um “híbrido” totalmente aleatório, embora,
obviamente, ambos os padrões possam ocorrer. Mais frequentemen­
te as práticas culturais passam por um processo de seleção que, como
as balanças de bagagem em aeroportos internacionais, determinam o
que é jogado fora e o que é mantido na passagem. Quem viaja melhor
é usualmente a classe alta e os amigos do patriarcado. São as práticas
camponesas, as práticas das mulheres e frequentemente as práticas
sensoriais que são eliminadas primeiro; as embalagens de especiarias
que saem da bagagem supercomprimida e vão para o chão da sala de
espera. Os intelectuais da diáspora já conheceram as exigências para
se encaixar nos estabelecimentos acadêmicos e culturais ocidentais,
tais como, base econômica, educação ocidental, fluência em línguas
romanas e direito de pertencer a sua elite local.6
O espaço intersticial do fetiche produz significado, muitos sig­
nificados, mas eles são construídos sobre a incompreensão e cons­
tantemente exigem explicação. Essa carga de explicação ocorre por­
que as pessoas que estão se movimentando entre culturas acham que
sua bagagem fica mais e mais pesada. Seus objetos familiares estão se
fossilizando. O que era dado como certo em uma cultura torna-se
incompreensível em outra, e é responsabilidade do imigrante cons­
truir e desvendar aquelas camadas de tradução impossível.

6. Com o Gayatri C. Spivak (1990) mostrou, quando a classe intelectual ocidental


(que inclui o mundo da arte) inclui terceiro-mundistas selecionados, está dupla­
mente silenciando os outros; a saber, aqueles que não têm acesso à educação de
elite e a instituições internacionais.
A história pós-colonial é necessariamente uma investigação
de fósseis. Nós estamos constantemente descobrindo factoides
inexplicáveis na superfície da história representada que nos con­
vida a passar pelas camadas e ligá-las à sua fonte, passando entre a
recordação particular e o discurso oficial. Mais frequentemente, o
investigador contrai sua qualidade infecciosa, descobrindo que
sua própria história é baseada em verdades parciais. O “pedaço de
rocha” que contém nossas próprias vidas, constituindo-as tanto em
termos de quanto separadas da história dominante, desintegra-se
em areias agitadas e instáveis. Não temos escolha, mas temos de
examinar minuciosamente, procurando pistas.
A lista alucinante de Deleuze das qualidades do fóssil, especi­
almente seu potencial destrutivo, ecoa deixar assim nas sugestões
de Pietz (e de Benjamin; ver Buck-Morss, 1989) de que os fetiches
são revoluções que estão somente esperando para eclodir. Tanto o
fóssil quanto o fetiche, nos sentidos que descrevi, carregam com
eles histórias que, uma vez esclarecidas, tornam o presente insus­
tentável. O aspecto “radioativo” desses objetos é o poder que têm
de despertar outras memórias, causando presenças inertes na ca­
mada mais recente da história, a fim de desencadear cadeias de
associações que tinham sido esquecidas. Eu gostaria ainda de
reconsiderar as conotações contaminadoras e carcinogênicas da
imagem da radioatividade. Certamente esses fósseis de imagem
de outros tempos ou outros lugares são voláteis e se comportarão
incontrolavelmente quando expostos a espectadores, assim como
materiais radioativos se decompõem e emitem energia quando
estão expostos. Porém, o perigo está em perceber que existem his­
tórias que são contraditórias àquelas conhecidas, conhecimentos
culturais que sacodem a segurança da própria posição cultural no
mundo, como nos exemplos que serão apresentados. Essa é uma
experiência que se decompõe, é perturbadora e é certamente
destrutiva de visões firmemente etnocêntricas, por exemplo. Mas
eu gostaria de pensá-la como uma forma benigna de “contamina­
ção”, como aquela que acontece quando um perfume demarca o
caminho de alguém (ou para ficar com a metáfora do fóssil, quan­
do um unguento funerário preservado surpreende arqueólogos com
a iminência de sua fragrância). Não se pode evitar o cheiro, ele im­
pregna o ambiente próximo a alguém e inevitavelmente redireciona
o pensamento, é ao mesmo tempo urgente e ambiente. Os fósseis
cinemáticos que examino aqui realmente têm um efeito perturbador,
mas eles são tão destrutivos quanto é rígido o material que atacam.

Testem unha indexada:


cinem a com o fetiche e fóssil

Como afirmei anteriormente, objetos transnacionais não são


somente produções discursivas: seu significado não pode ser se­
parado da materialidade.7Os fetiches resistem à abstração. Eles

7. A esse respeito, estou sugerindo uma vida do objeto diferente daquela que Susan
Stewart postula (1 9 8 4 ). Stewart argumenta que o fetiche, ou lembrança (pelo
menos o “objeto hom om aterial”, um term o que Stewart adota de Umberto Eco
para um objeto que existiu no local do evento para ser lembrado, tal com o a fita
de um corpete), não mantém nenhuma relação material com um evento, mas é
importante precisamente porque substitui um evento: ele desencadeia um curso de
narrativa pessoal que delineia a trajetória do desejo. No relato de Stewart, qualquer
relação material com uma cena original da memória é necessariamente apagada na
insistem na materialidade da presença original à qual eles fazem
referência. Daí o banimento do fetichismo católico pelos protes­
tantes e do fetichismo mercadoria por Marx. Seu valor não é nego­
ciável. Eles (os fetiches) não podem ser negociados por dinheiro.
Eles não representam poder simbolicamente; eles o incorporam
fisicamente. Pensar na imagem que se move como fetiche ou fós­
sil implica entendê-la não como representação, que é volátil so­
mente por causa das projeções trazidas a ela, mas como emissária,
que é volátil a ponto de fazer com que o espectador/receptor te­
nha acesso à materialidade de sua cena original.
A implicação da noção do contato que sustenta tanto o fós­
sil quanto o fetiche reside no fato de que a representação e o co­
nhecimento não são explicados exclusivamente no nível da lin­
guagem, mas também participam do contato com o objeto repre­
sentado. Os objetos que discuto aqui codificam as condições ma­
teriais de desterritorialização assim como as rupturas discursivas.
A representação e o conhecimento participam em contato com o
objeto representado. Seu substrato não é somente um “referente”,
mas também uma pedra de toque material. Claramente, então, em
meu uso os tropos de fóssil e fetiche operam em um nível bastante
concreto. Ambos podem ser usados simplesmente como dispositi­
vos heurísticos baseados em uma noção de contato com algum ob-

narrativa de uma suposta ligação com a cena lembrada: uma narrativa interna, para
ela mesma. De tòrma contrastante, argumento que a lembrança mantém um fio de
conexão material com a cena que ela lembra, e é precisamente nessa materialidade, não
em seu esquecimento intencional, que a significancia da lembrança esta.
jeto original e poderoso. Quero usá-los como algo mais, entretanto.
^A noção do fetiche, em particular, considero epistemológicamente
poderosa porque é constituida de um contato físico, mais do que
mental, entre objetos; não é urna metáfora.
André Bazin (1967), conhecidamente, descreveu a fotogra­
fía como uma impressão do mundo, um vestígio da presença ma­
terial como uma máscara da morte. Essa é a qualidade tipo fetiche,
tipo fóssil, que funciona no cinema: é o vestígio que um outro
objeto material deixa na superfície do filme (ou codifica na teste­
munha eletrônica em vídeo). Esse fato é o que dá ao filme seu
poder representacional, assim como um fetiche (no sentido reli­
gioso) obtém seu poder ao carregar o vestígio de outro objeto
material. O uso feito da indexação varia, certamente, de prova de
evidência a mero vestígio fantasmagórico do real pró-fílmico. Como
Maren Stange (1994) observa, as qualidades essenciais da indexação
fotográfica devem ser entendidas no contexto do seu uso histórico,
o valor colocado sobre a indexação em diferentes períodos. Atual­
mente, há muita suspeita concernente à evidência indexicadora,
pelo menos entre os acadêmicos ocidentais.8Eu gostaria ainda

8. Acadêmicos receberam as tecnologias de im agem digital co m o o rom pim ento


final entre a imagem e seu referente m aterial, da form a co m o essas imagens po­
dem aparecer para indicar a realidade, sendo parcial ou totalm ente geradas por
com putador (ver, por exemplo, Druckrey, 1989; Mitchell, 1992). Enquanto meu
argum ento aqui não se aplicaria tão fortem ente a um a filmagem de trabalho em
vídeo digital, por exem plo, eu sugeriria que a diferença entre a m ídia digital e a
analógica não é tão radical quanto muitos afirmam. A fotografia, o filme e o vídeo
analógicos têm sido usados para simular efeitos especiais desde o com eço de cada
meio; e muitos artistas usam a mídia digital tanto por sua conveniência quanto
de sugerir que as capacidades indexicatórias de uma imagem ou
objeto são muito importantes para aqueles que têm poucas fontes
de evidência, poucas testemunhas para suas histórias. Então, a de­
finição ampla de documentário, como um cinema cuja relação
indexicatória com o real é de central importância (Nichols, 1991,
cap. 5), é ainda crucial para o cinema intercultural. Qualquer tipo
de cinema tem essa relação com o evento pró-fílmico, mas so­
mente o documentário afirma que essa relação com o real é uma
de suas qualidades definitivas. Ao entender a indexação do cine­
ma como uma qualidade do tipo fetiche ou fóssil, quero enfatizar
que esse vestígio do real no cinema é conservado nas camadas do
uso e da interpretação históricos, os quais obscurecem e, por fim,
transformam qualquer sentido original que o objeto possa ter tido.
Obviamente, essas questões não são exclusivas do cinema
intercultural. Todo o cinema tem uma relação fetichista com seu ob­
jeto. Todo o cinema é transnacional no sentido de que seus públicos
não serão capazes de perfeitamente decodificar suas imagens, já que
se originam em outros lugares e tempos. O cinema intercultural, en­
tretanto, toma essas questões como seu tema explícito, e as apostas
de se, como, e por quem suas imagens-fetiches e imagens-fósseis
podem ser traduzidas são especialmente altas.
A habilidade do filme de animar objetos, na verdade, em
lhes promover antropomorfia, cativou os primeiros teóricos do

por sua capacidade de alteração eletrônica. Portanto, acredito que é mais apropri­
ado falar sobre práticas classificatórias e não classificatórias do que sobre mídia
classificatória e não classificatória.
cinema. Béla Balász devotou um capítulo de sua Teoria do Filme
(1972 [ 1923]) para o close-up. Ele considerou que close-upstrans­
mitiam uma qualidade fisionômica para objetos estáticos. Seu tom
macio, quase piegas, grifa a habilidade de fetiche do close-up em
ser testemunha do invisível.

O primeiro novo mundo descoberto pela câmera do filme nos


tempos do cinema mudo foi o mundo de coisas pequeníssimas,
visíveis somente a curtas distâncias, a vida escondida de peque­
nas coisas [...]. Por meio do close-up, a câmera nos dias do cine­
ma mudo revelou também o motivo principal de uma vida que
pensamos conhecer muito bem [...].
O close-up mostra sua sombra na parede com a qual você tem
vivido a vida toda e que você mal conhecia; mostra o rosto sem
fala e o destino dos objetos mudos que vivem com você em seu
quarto e cujo destino está ligado com o seu. (Balász, 1948, p. 55).

Mais adiante, Balász observa: “ Close-ups são frequentemen­


te dramáticas revelações do que está realmente acontecendo por
trás das aparências.” (1948, p. 56). Balász atribuiu à imagem o po­
der de materializar fenômenos invisíveis, de dar um rosto a eles.
Uma tomada em close-up de um objeto ou espaço inanimado, ele
sugere, é capaz de capturar o domínio sutil de vida não orgânica.
Isso não precisa soar místico, se considerarmos que os objetos
personificam o social em suas condições como objetos, e não
meramente como discurso rígido em coisas (cf. Pels, 1995).
Tais teorias antropomórficas caíram em desgraça com o
surgimento de análises semióticas de cinema: elas certamente pa­
recem apelar para as qualidades da imagem que “ultrapassam” o
poder do signo (ver, por exemplo, Barthes, 1972, para uma análise
crítica dessa qualidade fetichista do cinema). Mas, pela mesma ra­
zão, a teoria de Balász é útil para uma discussão renovada, não de
como o filme fetichiza seus objetos, mas de como o filme pode
ser um meio fetichista. A qualidade fisionômica que Balász atri­
bui a imagens tem ecos na discussão de Deleuze da rostidade
iyisagéitê) no cinema. Rostidade é a intensificação de afeto em
uma imagem cuja extensão do mecanismo é limitada:

É esta combinação de uma unidade refletora, móvel e de movi­


mentos expressivos intensos que constitui esse afeto... Cada vez
que descobrimos esses dois poios em algo [...] podemos dizer que
isso foi tratado como um rosto [ visage}: foi ‘imaginado’, ou me­
lhor, ‘rostificado’ [ visagéifiéeJ, e por sua vez nos olha fixamente.
(Deleuze, 1986, p. 87-88).

A imagem rostificada é adensada com afeto, que lhe foi de­


positado em algum lugar, e que resiste à análise. Como Patricia
Pisters (1998, p. 93) observa, por causa da imagem-afetiva, da qual
a imagem facial é uma parte, reduzem-se as coordenadas espaciais
da terceira dimensão, abrem-se a quarta dimensão de tempo e a
quinta dimensão do espírito. Uma imagem facial, Deleuze sugere,
retorna o olhar: isto é, obviamente, uma característica de objetos
auráticos.
Ao longo deste texto, faço referências a objetos que viajam
com aura. Com suas viagens e com sua posse e uso, os objetos se
tornam únicos. O objeto transnacional é precisamente aurático,
no sentido de que ele depõe “a essência de tudo que é transmissível
desde o início, desde sua duração substantiva até seu testemunho
da história que vivenciou” (Benjamin, 1968b, p. 221). Nas práticas
religiosas das quais a palavra “aura” foi emprestada, ela significava a
presença do sagrado. Dessa forma, um objeto aurático é um fetiche.
Ele carrega a presença do sagrado, concentrado no objeto através de
algum contato ou uso inicial. Como observei, o caráter aurático
das coisas consiste em sua habilidade não simplesmente de des­
pertar memórias em um indivíduo, mas em conter uma história
social de forma fragmentada. Os objetos que discuti são todos
auráticos, no sentido de que tiveram contato físico com histórias -
histórias excessivamente voláteis e desconcertantes para serem rela­
tadas como simples histórias. Os trabalhos que descrevi exploram
essa presença aurática, ao seguir os objetos de volta à sua fonte de
poder.
Ainda assim, a aura não é meramente uma presença hum a­
na que a narrativa desenrola do objeto com o uma bola de bar­
bante. Os objetos têm vida independente das relações humanas
codificadas, de sua significância discursiva e narrativa. Sua própria
materialidade é significante. Como Peter Pels provocativamente
sugere,

As coisas podem, realmente, ser animadas por suas formas, usos


e trajetórias sem recurso à materialidade, através da memória, da
representação escrita ou de outras formas de ação simbólica. Mas
isso é outra percepção da vida social de coisas, diferente daquela
mediada pela própria materialidade, na qual suas formas, usos e
trajetórias são apreendidas, como prática habitual, “sem recurso
ao discurso” [...] ou representação, (apud Pierre Bourdieu, 1996,
p. 9).
r
O significado reside pré-discursivamente nos objetos, as­
sim como o hábito armazena memória no corpo.
Como podemos representar a forma como o significado é
mediado materialmente? A maior parte da crítica marxista atual
se deteriorou em um positivismo árido, por um lado, e em um
deslumbramento baudrillardiano no mundo de signos que se re­
plicam, por outro. Isso, eu argumentaria, resulta da própria cam­
panha de Marx para desmistificar a mercadoria. Paradoxalmente,
ao tornar legíveis as relações sociais codificadas em um objeto,
existe a tendência de se perder a materialidade do objeto. O apelo
contínuo do trabalho de Benjamin se deve parcialmente a seu es­
forço provocativo de desmistificar e remistificar o objeto, a fim
de incorporar suas propriedades inexpressíveis e intangíveis ao
mesmo tempo que as lê politicamente. De forma muito controver­
sa, Benjamin fundiu entendimentos cabalísticos e marxistas de como
o significado é imanente às coisas do mundo - imanente, mas vela­
do, de acordo com os cabalistas; imanente, porém reificado, se­
gundo os marxistas (Buck-Morss, 1989, p. 235-240). Benjamin foi
severamente criticado por Adorno, Brecht e outros críticos como
Rolf Tiedemann e Jürgen Habermas por essas tentativas de fundir
misticismo com marxismo (p. 245-249). A maioria dessas ideias
não foram publicadas, ou foram expressas somente de forma in­
direta nos ensaios publicados (Hansen, 1987; Buck-Morss, 1989).
Entretanto, desde a época em que Benjamin foi reprimido, a
fé dos intelectuais em nossa habilidade de ler o mundo plenamente
em termos de signos diminuiu. Talvez agora seja possível contem­
plar como os objetos significam neles mesmos - contemplar sua
aura - sem sermos acusados de ofuscá-los. Se isso é misticismo, é
uma tentativa de representar um encantamento do mundo diferente
da aura narcótica da mercadoria. É uma tentativa de entender como
o significado é transmitido através da presença física e também
através da significação intelectual. Os filmes e vídeos que analisei
demonstram que muitos objetos-recordação são irredutivelmente
materiais e irredutivelmente auráticos. Compreender como os
objetos significam em sua materialidade requer que assumamos
uma epistemologia palpável.

A dissolução do fetiche

Anteriormente observei que, quando um objeto-recordação,


como outros tipos de imagem-recordação, de maneira bem-suce­
dida, se envolve com a memória, ele se engaja com a contação de
uma história comunitária, e sua qualidade “radioativa” é neutrali­
zada. A forma como um objeto fetiche realiza isso, embora não
sendo intrínsecamente sexual, tem a ver com a forma com que o
fetiche é libidinosamente (autoeroticamente?) localizado sobre o
corpo. A dissolução do fetiche é realizada por sua reincorporação.
Quando o sentido da memória é reavivado no corpo - quando o
corpo lembra - , o objeto-recordação deixa de existir como tal.
A partir do belo ensaio de Michel Leiris sobre Giacometti,
Pietz pondera a relação de fetiches - e obras de arte bem-sucedi­
das - com o corpo. O fetiche é

[...] antes de tudo, algo extremamente pessoal, cuja verdade é


experimentada como um movimento substancial de “dentro” do
self (o se/Ztotalizado através de um corpo apaixonado, um “cor­
po sem órgãos”) para uma morfologia autolimitada de um obje­
to material situado no espaço “exterior”. Obras de arte são ver­
dadeiros fetiches somente se forem objetos materiais no mínimo
tão intensamente pessoais quanto lágrimas (Pietz, 1985, p. 12).
Pietz sugere que o movimento de dentro para fora - o processo
de concretização - é o que faz de um fetiche um fetiche. As lágrimas
são um exemplo: elas são uma expressão material de um estado inter­
no. Só que as lágrimas, entretanto, não permanecem como um objeto
concreto; elas são reabsorvidas pelo corpo. Pietz, provocativamente,
se refere ligeira e circunstancialmente ao “corpo sem órgãos” como o
corpo que produz fetiches, ou arte. Somente um corpo que não é
libidinosamente fixado em termos de partes particulares pode inves­
tir com desejo em algo externo. Eu imagino o “corpo sem órgãos” de
Deleuze e Guattari (1983) como algo parecido com um balão de água.
Você pode deliberadamente torcer formas em sua superfície, brincar
com elas até perderem seu fascínio e, então, desfazê-las e fazer outras.
Esse tipo de investimento libidinoso, os analistas de esquizofrenia
diriam, é o único construído mais em torno do desejo que da neces­
sidade. O apelo desse modelo é que, embora seja voluntário, permite
maneiras estranhas e contingentes de os sujeitos formarem laços. O
corpo sem órgãos produz fetiches em abundância, mas não se fixa
sobre nenhum deles; eles se dissolvem de volta à sua superfície
indiferenciada. Da mesma forma, os fetiches produzidos no movi­
mento entre culturas são somente marcadores transitórios de uma
breve relação que provavelmente mudará.
O fetiche que é produzido no movimento entre culturas é
uma expressão concreta do estado de desejo produzido, quando o
que estava dentro se move para fora, quando o que era tido como
parte de uma cultura se torna um objeto de contemplação. Como
um fetiche produzido por um “corpo apaixonado”, esses somente
existem como fetiches se contiverem um significado cultural que
não pode existir confortavelmente no novo contexto cultural.
Deixe-me retornar à teoria de Winnicott (1957) do objeto
transicional para explorar como o fetiche é produzido no corpo
sem órgãos. O objeto transicional - o cobertor que conforta; a TV
que embala a criança até que pegue no sono; e, estendendo um
pouco mais, o cheiro de uma comida familiar - é parte do corpo
ou não? Certamente é parte do corpo sem órgãos, o corpo que se
faz renovado ao se organizar com relação a um objeto externo. A
identidade do sujeito vem a ser distribuída entre o self e o objeto.
Ainda assim, é o self não o objeto, que está em transição. O objeto
permanece o mesmo, embora assuma camadas de significado que
mais tarde, à medida que o sujeito adquire algum tipo novo de
subjetividade, se dissolverão.
Lembre como os fetiches são produzidos no espaço entre
culturas. O objeto transnacional é um objeto transicional não
somente para pessoa em transição entre uma realidade cultural e
outra, mas também para aquela cuja realidade cultural é penetra­
da e alterada. O objeto se torna um meio de suas projeções sobre
a outra cultura. Enquanto ele se move, é provável que se torne
muito mais pesado antes de ficar leve. Aqui está a diferença en­
tre fetiches e fósseis. Os fósseis retêm a forma do caos cultural,
perpetuamente convidando à decifração de conflitos passados. Sua
qualidade “radioativa” pode diminuir, à medida que ocorrem co­
nexões com o estrato histórico em que foram criados, mas os fós­
seis não desaparecem. Os fetiches, embora sejam similarmente
densos em relação ao significado, tendem a se dissolver após ser
dissipada a necessidade que havia deles.
A função de objetos transicionais é decididamente impedir a
assimilação da outra cultura. Pois eles não somente levam um as­
pecto de seu lugar de origem para um local novo, eles também
tornam estranho o lugar no qual chegam. Esses fósseis culturais
são radioativos, porque trazem de volta histórias perdidas que
envolvem o destino e a origem. Eles revelam hibridismo radical já
presente em ambos os locais.
As imagens cinéticas, como objetos de transição, conservam
algum vestígio indexador de um evento original. Elas não o refletem
de forma transparente, mas o obscurecem. Essas imagens são objetos
transicionais à medida que são densas, sedimentadas, cristalizadas.
Uma vez dissolvidas, elas se tornam desnecessárias. Os trabalhos
discutidos neste texto trazem o caráter fetichista e aurático do
objeto viajante até o seu ápice - e então dissolvem o poder do
objeto ao conectá-lo à memória, transformando imagens-fósseis
em imagens-recordações.

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A dialética da identidade transnacional
e o desejo feminino em quatro
filmes de Claire Denis* 1

Rosanna Maule

É um pouco romântico. Eu me sinto um pouco


estrangeira, mas sei que sou francesa. Quando eu
era muito jovem não gostava disto, queria ser
qualquer coisa menos francesa.
Claire Denis2

Chocolat (1988), S’en foutla mort (1990), Noites sem dor­


mir (1994) e Beau travail (1999), dirigidos pela cineasta francesa
Claire Denis, analisam a interseção conturbada de gênero, classe, etnia
e identidade cultural na sociedade colonial e pós-colonial. Chocolat;
o filme de estreia de Denis, investiga as relações inter-raciais e de
classe na República dos Camarões. S ’en fout la m orte Noites sem
dormir continuam essa investigação na França atual, lidando com
os problemas de integração multicultural em Paris. Beau travail\o

* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N. T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Este artigo é uma versão traduzida e reduzida de “The Dialetics o f Transnational
Identity and Female Desire in Four Films of Claire Denis”, publicado em: Dennison,
S.; Lim, S. H. (O rgs.). Remapping World Cinema. Londres: Wallflowers, 2006.
2. Darke, 2000, p. 17.
filme que marca o retorno de Denis ao cenário africano, enfatiza
questões de relação de poder e masculinidade na Legião Estran­
geira Francesa localizada em Djibuti, através de uma narrativa que
lembra o conto Billy B u d d y Marinheiro de Herman Melville.3
Minha discussão sobre esses quatro filmes aceita como pre­
missa uma estrutura pós-colonial e feminista, particularmente ade­
quada a seus focos sobre as alienações das personagens ocidentais
e não ocidentais na África e na França coloniais e pós-coloniais.
Quando era criança, Denis viveu em vários países da África, inclu­
indo Somália, Djibuti e Burkina Faso, onde seu pai trabalhou para a
administração colonial francesa. Sua representação de identidade
cultural está fundada na crítica do conceito ocidental de alteridade,
uma posição consolidada por sua experiência pessoal como uma
“criança da África” que recebeu uma educação antirracista, assim
como pela leitura do psiquiatra e teórico francês Frantz Fanón.4

3. BillyBudd, M arinheiro é u m trab alh o in co m p leto , red esco b erto e publicado em


1924, trinta e três anos após a m orte de Melville. O co n to faz parte de u m grupo de
histórias que Melville escreveu depois da publicação de MobyDick, sua obra-prim a.
G radualm ente, Melville abandonou a escrita, d esen corajad o pela alienação dos
leitores de sua prosa cada vez m ais difícil. N o fim , ele consegu iu u m em prego
co m o oficial de polícia da alfândega de N ova Iorque. D esde 1857, escreveu exclu­
sivamente poesia, que publicou em pequenas edições. Alguns poem as de Melville
são citados em Beau travail' “The N ight M arch ” e “G old in the M oun tain”. O
prim eiro elogia a sincronia de um grupo de soldados m arch an d o , o segundo faz
reterência àqueles hom ens gananciosos cujo desejo de en con trar “ou ro na m on ta­
nha” está ligado a um estado de insatisfação.
4. Nascida em Paris em 1948, Denis foi para C am arões co m seus pais quando tinha
apenas dois meses de idade e viveu lá p o r treze anos. R etorn ou à Fran ça quando
ela e sua irmã contraíram poliomielite e precisaram de tratam en to m édico. Q uan­
do sua irmã ficou paralítica co m o consequência da d o en ça, a m ãe se recusou a
voltar à África para junto de seu m arido e, no fim, a família voltou para a França.
Meu propósito aqui é demonstrar com o Chocolat> S en fout la
morty Noites sem dorm ir e Beau travail propõem uma crítica da
dialética senhor-empregado existente sob as relações de cultura e
gênero na sociedade ocidental contem porânea.5

A mulher ocidental, o local e a alteridade:


Chocolat, S ’en fout la mort e a identidade
(pós-)colonial

Para sobreviver, o “Terceiro Mundo” deve necessariamente ter


conotações negativas e positivas: negativas quando visualizadas
em um sistema de classificação vertical - “subdesenvolvido” com­
parado a super industrializado, “subprivilegiado” dentro do já
segundo sexo - e positivas quando entendidas sociopoliticamente
como forças subversivas, “não alinhadas”. Se “Terceiro Mundo”
soa negativo ou positivo, isso também depende de quem usa o
termo. Dita por vocês, ocidentais, a palavra dificilmente signifi­
cará o mesmo que quando dita por nós, originários do Terceiro
Mundo. De forma previsível, vocês/nós que condena(mos) o ter-

Denis sentiu íalta de sua vida na África e, aos dezessete anos, foi para o Senegal
cursar o ensino médio e morou por algum tempo com amigos de seus pais
(Reid, 1996, p. 68). Denis leu Fanón pela primeira vez em 1961, em seu retorno
relutante à França e difícil integração na sociedade francesa.
5. Como Susan Hayward apropriadamente observou, os filmes de Denis propõem um
modelo múltiplo de subjetividade pós-colonial que desafia a objetificação do corpo
colonizado como “unidade e subjetividade singulares cujas multiplicidades foram
deliberadamente dissimuladas sob domínio ocidental” (Hayward, 2001, p. 160). Tal
multiplicidade, Hayward também afirma, encontra muitos problemas em se ex­
pressar como muitas personagens pós-coloniais demonstram nos filmes de Denis
(Hayward, 2001, p. 160).
mo somos ambos: os que aceitam e os que negam qualquer par­
ticipação na mentalidade burguesa do Ocidente. Foi devido a
essa mentalidade que o “Terceiro Mundo”se distinguiu como um
novo achado semântico para designar o que ficou conhecido como
“os selvagens”antes das Independências. (Minh-ha, 1989, p. 97-98).

Denis considera Chocolat, S en tout Ia mort e Noites sem


dorm ir uma trilogia sobre questões pós-coloniais inspiradas nos
escritos de Fanón (Reid, 1996, p. 69). De fato, esses filmes parecem
quase uma ilustração do alerta de Fanón sobre a complexidade
envolvida no processo de descolonização, na violência profunda­
mente enraizada nas relações sociais contidas no sistema colonial e
na perspectiva colonizadora da moderna cultura ocidental. A rejei­
ção autoconsciente de Denis de qualquer representação conciliató­
ria dos problemas e contradições da sociedade colonial e pós-colo-
nial deu a ela um lugar único dentro de um grupo de diretores in­
fluenciados pelo que Dina Sherzner rotulou de “síndrome coloni­
al” do cinema francês recente.6Catherine Portuges coloca Denis en­
tre um grupo de diretoras francesas que, nos últimos vinte anos,
têm abordado o passado colonial francês como “um cinema de me­
mória, um tipo de colonial feminino’, no qual os cruzamentos de
fronteira se traduzem em um mise-en-scène que desestabiliza idéias

6. Entre os diretores que ao longo das décadas de 1980 e 1990 quebraram o longo
silêncio sobre o período colonial francês (o qual previamente tinha visto somente
intercalados trabalhos que denunciavam o sistema colonial e sua ideologia), aqueles
que reexaminaram o colonialismo africano, incluem-se Bertrand Tavernier (A Lei
de Quem Tem o Poder,; 1981) e Alain Corneau (Forte Saganne, 1984). Sobre esse
assunto, ver Sherzner (1996, p. 6-7).
hegemônicas de nacionalidade, sexualidade e família.” (Sherzner, 1996,
p. 81 )7. De acordo com Portuges, os filmes oferecem

[... ] mais do que meros exercícios autopromocionais de nostalgia


melancólica ou cumplicidade inocente, pois reinscrevem a histó­
ria francesa colonial dentro de um espaço visual que - implicita­
mente, se não explicitamente - critica a negação anterior da subje­
tividade feminina no horizonte de estórias coloniais.

Em Chocolat; o esforço de Denis em retratar a África, m an­


tendo-se distante de tendências nostálgicas ou centradas no O ci­
dente, é feito com sucesso p or m eio de um a m u lher francesa
emblemáticamente chamada France (Mireille Perrier) que retorna a
Camarões, o país onde tinha vivido com seus pais quando criança.8A
viagem reaviva suas m em órias em um longo flashback que ta m ­
bém constitui o centro da narrativa do film e. O flashback retrata
a infância de France em Cam arões na década de 1950 e as relações
de poder envolvidas no am biente colonial onde m orava. A narra-

7. O grupo inclui, entre o u tras, M a rie -F ra n ce Pisier, que em 19 9 0 dirigiu L eb a ld u


Governeur; e Brigitte R ouän, cu jo O utrem er tam b ém foi lançad o no m e sm o ano.
Assim co m o Denis, R ouän toi criad a na Á frica em u m a fam ília cató lica que a d o ­
tou um a visão altam en te crítica d o co lo n ialism o . Sobre esses três film es, ver
“M ém oires d ’exil. Fém inin colon ial” de Strauss.
8. Ao com en tar sobre a p rep aração do filme, Denis disse que usou Pele Negra, M ás­
caras Brancas, de Fan ón , para cria r um filtro su p lem en tar àqueles garan tid o s
pelo recurso da ficção e à colaboração do dram atu rgo Jean-Pol Fargeau (Reid, 1996,
p. 68). Esses filtros perm itiram “desvencilhar-se de um p recon ceito gigantesco que
se cham a Á trica” (Gili, 1988, p. 15). D epois dessa p rim eira exp eriên cia n o cin em a,
Fargeau assinou co n ju n tam en te tod os os filmes de Denis.
tiva está centrada na dialética do desejo estabelecido entre Aimée,
a mãe de France, e seu “menino,” Protée, paralelamente ao relaci­
onamento próximo da jovem France com Protée, também pontu­
ado pelos jogos de poder perversos, porém sem sugestões sexu­
ais. A situação, complicada pela interação com alguns hóspedes
que chegam na fazenda, é finalmente interrompida por dois inci­
dentes inter-relacionados, os quais tam bém põem um fim ao
fíashbackt às memórias de infância de France. O primeiro episó­
dio faz referência ao avanço sexual de Aimée em direção a Protée,
que orgulhosamente a recusa e é então limitado a trabalhar fora
de casa. Logo depois, Protée rompe sua lealdade com France, ao
deixar a garota queimar sua mão no cano do gerador, após ter
posto sua mão naquela superfície para convencê-la de que não
estava quente.
Para Portuges, Chocolatrepresenta o estabelecimento de um
acordo de Denis com a história através da reconstrução de um
trauma de infância e um índice da “posicionamento híbrido” da
diretora (1996, p. 83). Como Alison Butler observa, citando Caren
Kaplan, em Chocolat;

Tanto o colonizado quanto as mulheres colonizadoras se tor­


nam subjetividades intermediárias, ambos irrevogavelmente al­
terados por sua interação no novo espaço dentro do qual vivem
e trabalham por causa do imperialismo. (2002, p. 108).9

9. O artigo de Kaplan aqui citado tem o título de “A política da posição com o prática
feminista transnacional” e aparece em Scattered Hegemonies:Vost\r\oàexmXy and
Transnational Feminism, de Grewal e Kaplan (1 9 9 4 ). Em seu livro, Butler faz
uma análise comparativa entre Chocolat, de Denis, e O Piano, de Jane Campion
A partir dessa perspectiva, Protée lembra a figura do corpo
negro colonizado de Fanón como uma identidade humilhada e
objetificada pelo olhar ocidental, e France se torna um símbolo da
reconciliação impossível das pessoas ocidentais com o seu passa­
do colonial. A impossibilidade de tal reconciliação é reafirmada
num Camarões contemporâneo, onde a France adulta sente-se uma
estrangeira, e William J. Park, o homem afro-americano que mi­
grou para a África para encontrar suas origens, passa a ser tratado
como um estrangeiro, o cidadão de um poder dominante.
O compromisso de Denis com um discurso transnacional e
multicultural enfatiza um paradoxo importante na representação
de culturas não ocidentais a partir de bases teóricas baseadas no oci­
dente que permanecem essencialmente eurocêntricas em suas tenta­
tivas de se desfranquearem de posições totalizadoras de sujeitos. Esse
dilema é o objeto da crítica do eurocentrismo de Ella Shohat e de
Robert Stam, descrito por eles como

[...] a força procrustiana da heterogeneidade cultural em um


paradigma único no qual a Europa é vista como a única fonte de
significado, como o centro da gravidade do mundo, como ‘reali­
dade ontológica’ para o resto do mundo que está à sombra. (1994,
P- 3).

(1 9 9 3 ), com o dois exem plos opostos de olhar de diretoras brancas sobre o


pós-colonialismo. Na opinião de Butler, enquanto O Piano ainda apresenta o
colonizado como um Outro radical (neste caso, a populado Maori da Nova Zelândia,
o país natal de Campion ) e reduz as relações de poder nas diferenças sexual e cultural
para metáforas, Chocolat “explora as relações coloniais em seu imediatismo
bruto e náo encontra possibilidade fácil de reconciliação.” (2002, p. 108).
Shohat e Stam argumentam que o cinema contribuiu enor­
memente para a construção do imaginário imperial eurocêntrico
devido à sua consolidação como aparato da sociedade burguesa,
predicado sobre a produção das narrativas-mestre (1994, p. 101-103).
Na opinião deles, o mandato imperialista do cinema continuou tam­
bém depois do fim do colonialismo, escondido em elementos
submersos da narrativa ou manifesto no renascimento dos épicos e
dos dramas imperialistas do cinema europeu das décadas de 1980 e
1990 (1994, p. 123). Nesse aspecto, Chocolaté para Shohat e Stam
um exemplo dos filmes

[...] pouco críticos de ‘nostalgia’ do período colonial, os quais


mudam seu foco da agressividade masculina para a domesticidade
feminina, e para as noções mínimas de consciência anticolonial
provocadas pela transgressão do tabu sobre o desejo inter-raci-
al. (1994, p. 123).10

Essa leitura parece um pouco reducionista. Como Butler


demonstrou, o retrato de Chocolat da África colonial faz mais do
que oferecer o desejo inter-racial como uma maneira fácil de re­
conciliar identidades coloniais e ocidentais (2002, p. 107). Chocolat
rejeita visões essencialistas das subjetividades “europeias” versus “não
europeias” e apresenta uma visão das relações sociais que caminha
na direção de Shohat e Stam: “relações historicamente configuradas
de poder” nas quais o “eurocentrismo é um posicionamento implí­
cito, em vez de uma postura consciente e política.” (Shohat; Stam,
1994, p. 4).

10. Além de Chocolat, Shohat e Stam mencionam Lebaldu Gouverneure Outremer.


Muitas discussões teóricas desenvolvidas no contexto do
discurso pós-colonial reconhecem o perigo de permanecerem
eurocêntricas, à medida que as teorias epistemológicas ocidentais
estão relacionadas a categorias e agendas modernistas. Tal caos cul­
tural ocorre mais frequentemente na reificação das assim chama­
das Mulheres do Terceiro Mundo como significantes privilegia­
dos de diferença. Gayatri Chakravorty Spivak, um dos exemplos
mais eminentes de estudiosa feminista, cuja identidade pós-colo­
nial lhe permite mobilidade analítica, reconhece o risco de abor­
dagens pós-coloniais assumirem pontos de vista “locais”, que pro­
vavelmente produzirão um etnocentrismo em que o estudioso
ocidental favorece o outro e transforma o Terceiro Mundo em um
“significante conveniente” (Young, 1990, p. 168)u. Inderpal Grewal
e Caren Kaplan percebem algumas contradições nas abordagens
feministas ao pós-colonialismo que “usa o discurso colonial para
equiparar o ‘colonizado’ com a ‘m ulher’, criando categorias

11. Spivak a d o ta , c o n tin u a m e n te , e stra té g ia s q u e m u d a m , re in tle x ã o d iscu rsiv a de


p o siçõ es de su jeito, in clu in d o a su a, p a rtic u la rm e n te n o q u e diz resp eito à f o r m u ­
lação d o d iscu rso fem in ista so b re as m u lh eres d o T e rce iro M u n d o . C o m o R o b e rt
Y ou ng en fatiza “ Spivak te m m u ita c o n s c iê n c ia so b re a fo rm a n a q u al a c r ític a
rad ical, tais c o m o , ce rta s fo rm a s de fe m in ism o , m e s m o aq u elas q u e se in teressam
p o r m u lh eres d o T erceiro M u n d o e p o r literatu ra d o T erceiro M u n d o , in c o n s c ie n ­
tem en te rep ro d u z su p o siço es im perialistas —tais c o m o a p r o m o ç ã o inquestion ável
d o in d iv id u alism o fem in ista c o m o o m e lh o r b e m ,‘o fe m in ism o p o r si s ó ’ fo ra d e
q u alq u er d e te rm in a ç a o h is tó ric a ” ( 1 9 9 0 , p. 1 6 2 ). M e sm o a ssim , Y o u n g ta m b é m
a r g u m e n ta , S p ivak cai e m p o s iç õ e s e s s e n c ia lis ta s q u a n d o t e n t a c o m b i n a r
d e sco n stru ça o c o m teo ria m a rx ista e m a n te r d e s c o n tin u id ad e h e te ro g ê n e a e d ife­
ren ças d e n tro de u m “q u a d ro s in c ré tic o ” ( 1 9 9 0 , p. 1 7 3 ).
essencialistas e monolíticas que eliminam questões de diversidade,
conflito e multiplicidade dentro dessas categorias.” (1994, p. 3).
Quando baseado na epistemología moderna, o discurso pós-colo-
nial sempre corre o risco de se tornar uma forma invertida de
etnografía cultural12. Denis se mantém longe desse perigo ao assu­
mir uma posição pós-colonial contra o fechamento ocidental de
subjetividade e identidade fixas, assim como coloca em primeiro
plano sua própria identidade pós-colonial como mulher branca e
ocidental criada em uma sociedade colonial. Como Butler nos faz
lembrar,

A discussão sobre o relacionamento de mulheres diretoras bran­


cas com o pós-colonialismo colide com um número de questões
difíceis que dizem respeito à extensão e à natureza da cumplici­
dade e da culpabilidade das mulheres no colonialismo, ao modo
como a feminilidade branca significa na ideologia racista e aos
significados que as mulheres brancas projetaram sobre o cenário
colonizado e os povos locais. (Butter, 2002, p. 105).

Em Sen fout la mort; um filme que melhor desenvolve o


dilema de Chocolatsobvz “o desejo impossível de reconciliação entre
o colonizador e o colonizado” (Butter, 2002, p. 95), Denis abandona
sua posição de sujeito para focalizar a condição das identidades não
ocidentais na França pós-colonial. Em S ’en fout la mort; os prota-

12. Grewal e Kaplan propõem o pós-m odernism o com o uma posição analítica que
“nos dá um a oportunidade para analisar a form a co m o um a cu ltu ra de
modernidade é produzida em diversos locais e com o estas produções culturais
circulam, são distribuídas e recebidas e, até mesmo, comercializadas” (1994, p. 5).
gonistas são Dah, um im igrante de Beni que vive em Paris
comercializando galos de rinha para o jogo ilegal, e seu sócio
Jocelyn, um treinador de galos vindo do Caribe.13 Contratados para
organizar um salão ilegal de jogos, os dois homens são forçados a
viver em um porão sujo sob uma das propriedades do seu empre­
gador. O chefe deles é Ardenne, dono de um restaurante e de um
clube, que viveu por muito tempo nas Antilhas e foi amante da
mãe de Jocelyn.
Ambos são vítimas do racismo pós-colonial e da explora­
ção capitalista, porém as reações de Dah e Jocelyn são bastante
diferentes. Jocelyn, um hom em quieto, introvertido, afeiçoado a
suas tradições e princípios, é perturbado pelo ambiente em que se
encontra14. Sofrendo por causa da atitude paternal cada vez mais
intensa de Ardenne em relação a ele (que, às vezes, insinua a possi­
bilidade de ser seu pai) e de sua paixão secreta pela amante de
Ardenne, Toni, Jocelyn começa a beber muito e, como consequência,
é esfaqueado até a m orte pelo filho de Ardenne. Essa cena dramá-

13. Os títulos dos dois filmes apresentam um duplo significado. Chocolat faz referên­
cia ao jargão colonial para pessoas negras e tam bém significa “ser enganado”. S en
fout la m orté o nom e do galo cam peão de Jocelyn cuja m orte antecipa a do seu
treinador e cuja trajetória suicida em blem áticam ente term ina na rinha. C o m o
Kathleen M urphy observa, am bos os filmes lidam com a noção de traição. Em
Chocolat, Aimée pede a seu m arido para que Protée trabalhe fora de casa depois
que ele recusou seu convite sexual, e Protée, por sua vez, dá um fim em sua relação
com France ao deixá-la queim ar sua m ão propositalm ente. S en fout la m orté
uma referência a um galo cam peão que íocelyn treina. A expressão “s’en fout la
m ort” tam bém se refere a uma frase que na África ou nas Antilhas é “am uleto
contra a separação, m orte” (Murphy, 1992, p. 63).
14. Jocelyn é interpretado por Alex Deseas, que também atua em dois outros filmes de
Denis, Noites sem dorm iré o recente Trouble every day, 2001.
tica ocorre durante uma rinha de galo, em que Jocelyn chega com­
pletamente bêbado e começa a ofender os donos dos galos em
crioulo. O processo de loucura gradual de Jocelyn é concomitante
com a reinterpretação da relação de colonizador-colonizado que
Fanón descreveu em páginas esclarecedoras como uma reação ao
autorrebaixamento.
Dah (personagem representado por Isaach de Bankolé, o ator
que interpreta Protée em Chocolat), ao contrário, é orgulhoso e
determinado, reage às tentativas de Ardenne de lhe tirar vantagem
econômica e se mantém intocável por seu tratamento áspero. Du­
rante todo o filme, Denis dá a Dah urna perspectiva narrativa, in­
serindo a superposição de sua voz como justificativa de narrativa
e comentário - e como ponto de vista resistente. Na cena de aber­
tura, Dah é filmado por trás, sentado em um furgão, à noite. Suas
primeiras palavras repetem o título de abertura do filme, uma ci­
tação de Chester Himes: “Todo ser humano, independentemente
de sua raça, nacionalidade, religião ou política, é capaz de
tudo.”15Na cena final, após ter ido ao funeral de seu amigo, em
que ele conta ao amigo, morto, sobre uma futura reconciliação
com sua mãe nas Antilhas, Dah deixa Paris para trás, levando com
ele o dinheiro ganho com a última luta organizada.
Quando apresentou S ’en foutla mortem Nova Iorque, Denis
lembra de ter sido criticada por um grupo de jovens afro-ameri­
canos por ter passado uma imagem negativa e trágica de Jocelyn.

15. A citação aparece no artigo de Audé sobre o filme (1990, p. 71) e em Cinema and
the Second Sex:W om ens Filmmaking in France in the 1980s and 1990s deTarre
Rollet (2001, p. 221).
Comentando a sua tentativa fracassada de explicar para esses jo­
vens, com base em Fanon, o significado político de fazer um ne­
gro m orrer no fim de seu filme, Denis diz:

Talvez eu tenha envelhecido e meus pensamentos estejam fora do


alcance da nova geração. Mas não acho que injustiças sociais
graves possam ser resolvidas através de meios não violentos. Re­
almente acredito nisso. (Reid, 1996, p. 73).

O discurso pós-colonial não engajado de Denis em S ’en fout


la m ort recusa tanto o revisionismo essencialista quanto as visões
politicamente corretas. Nas entrevistas, Denis frequentemente abor­
da os problemas e as controvérsias estabelecidos por sua perspec­
tiva particular sobre a representação racial, tanto do ponto de vis­
ta conservador quanto do progressista.16

16. Sobre as dificuldades que encontrou ao selecionar atores negros para os papéis
principais, ela diz: “Os produtores de filme reagem negativamente a minha forma
de dramatizar um tema em meus filmes. Eles não entendem como quero selecio­
nar negros; os produtores regularmente dizem que se eu selecionar atores negros,
eles deveriam ser‘objetos’ eróticos. Em meus filmes, as pessoas negras nunca são
objetos. Elas são sujeitos que conscientemente escolhem o que querem. Geralmente
os produtores tem [sie] uma ideia muito exótica sobre o que os atores negros
deveriam fazer c de onde deveriam ser vistos. Os roteiros dos produtores relaciona­
riam personagens negros a leões e elefantes. lá eu penso que os Negros retratados
em meus filmes sao‘noir’ (negros)” (Reid, 1996, p. 69). Incidentalmente, as revistas
de cinema também demonstram atitudes problemáticas em relação a atores ne­
gros, especialmente quando é o caso de identificá-los. Nos artigos sobre o filme Sen
tout Li mort citado aqui, as legendas das lotos relativas aos dois atores principais,
Alex Deseas e Isaach de Bankolé, trocam as identidades dos dois homens. Assim, em
Positit, De Bankolé se torna Deseas (Audé 71) e, em Film Comment, Deseas é
apresentado como “Isaach de Bankholé [ibid]” (Murphy, 1992, p. 62).
Para Denis, reinteirar-se de um passado colonial ou enfren­
tar a realidade dos preconceitos raciais de hoje envolve um cho­
que cultural e uma desilusão emocional. A esse respeito, Chocolat
e S ’en fout la niort são fortes ilustrações do que Fanón afirma
sobre descolonização:

La décolonisation est la rencontre de deux forces congénitalement


antagonists qui tirent précisement leur originalité de cette sorte de
substantification que sécrète et qu’alimente la situation coloniale.
Leur première confrontation s’est déroulée sous le signe de la
violence et leur cohabitation - plus précisément Pexploitation du
colonisé par le colon - s’est poursuivie à grand renfort de baionettes
et de canons. Le colon et le colonisé sont de vieilles connaissances.
Et, de fait, le colon a raison quand il dit: “les” connaitre. C’est le
colon qui a faitzt qui continue à faire le colonisé. Le colon tire sa
vérité, c’est-á-dire ses biens, du système colonial” (29-30).
(“A descolonização é o encontro de duas forças inerentemente
antagônicas que extraem sua originalidade exatamente desse tipo
de substantificação que encobre e alimenta a situação colonial.
Seu primeiro confronto desdobrou-se sob o signo de violência e
sua coabitação - mais precisamente, a exploração do colonizado
pelo colonizador - foi perseguida pelo reforço de baionetas e ca­
nhões. O colonizador e os colonizados são velhos conhecidos. E, de
fato, o colonizador tem razão quando diz: ele “os” conhece. Foi o
colonizador que fezt que continua a fazero colonizado. Do sistema
colonial, o colonizador extrai sua verdade, ou seja, suas posses”).17

17. Os parágrafos, selecionados das páginas de ab ertu ra de Os condenados da terra,


de Fanon , co m eçam co m o segue: La décolonisation g u is e propose de changer
Vordre du m onde, est, on le volt, un program m e de désordre absolu. Mais elle ne
peut étre le résultat d ’une operation magique, d ’une secousse naturelle ou d ’une
entente à ¡ ’amiable. La décolonisation, on lesait, est un processus historique: cést
à dire q u 'elle ne peut être comprise, q u 1elle ne trou ve son intelligibilité, n e devient
Corpos que importam: Noites sem dormiry
Beau travail e a recontextualização
do corpo pós-colonial

Na antologia Construction o f Race, Place and Nation de


1993, Peter Jackson e Jan Penrose salientam a necessidade de se ir
além das suposições essencialistas de raça e gênero através do escru­
tínio diacrônico e dinâmico de como esses termos assumem uma
posição transnacional e específica de classe, a partir da qual raça,
lugar e nação são entidades construídas e multifacetadas, variavel­
mente manifestas em contextos geoculturais diferentes (1993, p. 19).
A análise transcultural que os posiciona dentro de diásporas com­
partilha um problem a sem elhante. Presos entre críticas de
modernidade e declarações de identidade autênticas, alguns teóri­
cos não conseguem ver as metodologias pós-modernas como uma
prática feminista viável (Grewal; Kaplan, 1994, p. 21).
Em um livro que aplica uma estratégia frequente no discurso
feminista pós-colonial, aquela de situar subjetividade e ação política
na conjunção de corpo e lugar, Radhika Mohanram propõe uma
“cartografia de corpos” na qual “um entendimento pós-moderno
de identidade baseia-se em uma compreensão de nação e raça como

translúcido à elle même que dans 1’exacte mesure oii lon discerne le mouvement
historicisant qui lui donne forme et contenu. (“A descolonização que objetiva
mudar a ordem mundial é, podemos ver, um programa de desordem absoluta.
Porém, não pode ser o resultado de uma operação mágica, de uma mudança
drástica natural ou de um acordo amigável. A descolonização, sabemos, é um
processo histórico: ou seja, só pode ser entendida se puder encontrar sua
inteligibilidade; ela se torna translúcida para si mesma somente na medida em que
identificamos o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo.”).
construto arbitrário ou político” (Mohanram, 1999, p. XII). Con­
forme argumento central, “Um sentido de lugar não somente par­
ticipa da construção de uma percepção de identidade física, é tam­
bém fundamental na formação de identidade racial.” O livro de
Mohanram analisa as conexões entre noções pré-modernistas, m o­
dernistas e pós-modernistas de subjetividade em relação à raça. O
argumento cie que as teorias ocidentais de subjetividade m anti­
veram o corpo e o “conceito submerso de lugar/cenário” em uma
relação subalterna às noções de espírito, racionalidade e civiliza­
ção é também parte de sua discussão. O propósito historiográfíco
e metodológico de Mohanram é

[...] mostrar as conexões entre as várias correntes nos estudos


pós-coloniais: a política de lugar/desterritorialização, o conceito
de identidade diaspórica versus identidade local, a identidade
da mulher na nação e na construção espacial de feminilidade, a
identidade do corpo negro e sua relação nacional com o conhe­
cimento. (Mohanram, 1999, p. XV).

Como Mohanram deseja, a ontologia e a epistemología oci­


dental tradicionalmente identificam brancura com espiritualidade
e negritude com corporalidade. Ela cita Fanón a respeito dessa
oposição:

Sim, nós somos negros - retrógrados, simples, livres em nosso


comportamento. Isso é assim porque o nosso corpo não é algo
oposto ao que vocês chamam de mente. Nós estamos no mun­
do. .. Sensibilidade emotiva. A emoção é completamente negra
assim como a razão é grega. (Fanon, 1961, p. 27)18.

18. Citado de Pele Negra, Máscara Branca, p. 126-127.


Noites sem dorm iré Beau travail são filmes nos quais Denis
expõe uma crítica politicamente viável das posições subjetivas
ocidentais. Esses filmes não tentam resolver as contradições que
focalizam; ao contrário, eles as mantêm inconclusas ou, mais que
isso, as problematizam via representação de corpos físicos e soci­
ais que transgridem definições pré-determinadas de identidade
cultural. Noites sem dormir é baseado em um crime que mono­
polizou a opinião pública da França na década de 1980 - o caso de
Thierry Paulin, um homossexual negro que, com a cumplicidade
de seu amante, matou e roubou dúzias de mulheres idosas em
Paris. Quando começou a trabalhar no filme, Denis tinha bastante
consciência de que estava tocando em um assunto altamente con­
troverso. Ao longo da pré-produção e da filmagem, ela se afastou
cuidadosamente dos clichês sociais e culturais de ambas as comu­
nidades caribenha e gay a ponto de promover mudanças na re­
presentação das pessoas e de lugares reais, sobre os quais tinha
pesquisado arduamente. Não somente ela mudou o nome do ma­
tador em série (que no filme se chama Camille) e omitiu os aspec­
tos sensacionalistas do crime, incluindo a personalidade extrava­
gante de Paulin e sua vida social, como também inseriu a narrati­
va relativa a Camille dentro da estrutura das histórias das outras
personagens. Dessa forma, fornece uma imagem profunda de seu
ambiente a partir de uma perspectiva que tenta entender suas ações,
embora nunca as explicando ou as justificando. A esse respeito,
uma característica do filme é a falta de comentário social. A repre­
sentação do círculo social e familiar de Camille nunca se torna mera
reportagem sobre grupos multiculturais ou minorias étnicas.
Denis também se absteve de retratar Camille como um mons­
tro, ao inserir sua história em uma narrativa múltipla de pessoas
que, como ela afirma, vivem uma condição de alteridade social, uma
comunidade de pessoas cujos destinos acidentalmente se cruzam no
bairro parisiense multicultural do décimo oitavo distrito. Nessa co­
média humana multicultural, dois grupos de imigrantes, um da
Martinica, outro da ex-União Soviética, se cruzam em uma mon­
tagem paralela que entrelaça personagens e eventos de cada grupo
sem nunca, realmente, fazê-los se encontrar, mesmo ocasionalmen­
te. A natureza plural do filme é prenunciada por uma sequência de
abertura que mostra dois policiais sobrevoando Paris em um heli­
cóptero e que repentinamente caem na gargalhada. Essa cena apa­
rentemente solta funciona como uma estrutura para o quebra-ca­
beça da narrativa do filme e antecipa o desenvolvimento não linear
do enredo. Noites sem dormir não propõe uma narrativa fechada;
seu tom descritivo se prolonga nas ruas parisienses, interioriza, cap­
tura humores e atmosferas e apresenta cada personagem como in­
definido e ambíguo. O estilo cinético do filme também sugere um
tipo coletivo de enunciação, usando sequências de cenas e direção
de edição, a fim de desviar ou multiplicar os pontos de vista.
Muitos críticos enfatizaram a habilidade de Denis em traba­
lhar com corpos e sua obsessão com a expressão corporal como
uma metáfora para as relações de poder. A própria Denis reconhe­
ce a importância desse aspecto em seus filmes. Em 1994, quando
dois críticos de Cahiers du Cinéma observaram que, com o então
recém-lançado Noites sem dormir\ ela finalmente acertara ao fa­
zer o “mise-en-scène dos corpos”, sugerido em Sen fout la mort,
ela respondeu:
Peut-être que ça a pris corps davantage... En tout cas, il y a
davantage de corps dans ce film. Ce nest pas de l’humour, la
prise de corps c’est vraiement la seule chose qui m’intéresse. C’est
assez intimidant, surtout quand c’est le corps des hommes. (Jousse;
Strauss, 1994, p. 25).
(“Talvez isto tenha tomado corpo... De qualquer forma, há mais
corpo neste filme. Isso não é humor, filmar corpos é realmente a
única coisa que me interessa. É um tanto intimidador, especial­
mente quando são corpos de homens.”).

Essa investigação do corpo masculino como ponto de con­


vergência progressiva no trabalho de Denis alcança seu clímax
em Beau Travail. Com esse filme, Denis retorna à exploração do
corpo como lugar e metáfora de relações de poder. Em bora não
tão explicitamente como nos filmes anteriores aqui examinados,
Beau travail tem, sem dúvida, relaciona-se com temas coloniais ou
pós-coloniais. O filme, localizado em uma colónia antiga da Áfri­
ca Ocidental, está centrado na situação neocolonial estabelecida
entre a Legião Estrangeira e a população local e coloca em prim ei­
ro plano um uso autorreflexivo de referências literárias e cinéticas
à França imperial.19Pela primeira vez, em Beau travail\Denis tra­
balha com um elenco quase exclusivamente masculino (com os
papéis femininos destinadas aos papéis secundários), enquanto
ela explora relações de classe e raça dentro do contexto homossocial
do sistema militar. Sobre sua nova “fascinação ao observar homens
lutando ou trabalhando”, Denis comenta o seguinte:

19. Beau tnwail c um título irônico que se traduz com o “bom trabalho”, o elogio dado à
correta execução que o soldado faz de seu trabalho. O título do filme também é um a
referência (com o Denis reconheceu) ao clássico hollywoodiano Beau Geste; em parti­
cular sua versão de 1939, dirigido por William Wellman e com Gary Cooper.
Eu gosto de escrever histórias sobre homens não porque quero
dominá-los, mas porque gosto de observá-los e imaginá-los. Um
homem é um mundo diferente, e esta masculinidade me interes­
sa. O cinema francês é tão cheio de diálogos - não poderia me
importar menos com essas pessoas conversando sobre suas vi­
das. Godard disse que no cinema há mulheres e armas, e eu con­
cordo plenamente. Isso quer dizer que há sexo e violência. O
cinema funciona assim, mesmo que o espectador seja altamente
intelectual. (Darke, 2000, p. 17).

Scott Heller mostra que a preocupação de Denis com “os


mundos dos marginais, retratando imigrantes e m inorias étnicas”
é acompanhada por um olhar distintivamente fem inino, frequen­
temente fixado sobre “a natureza conturbada da masculinidade”
(2000, p. 42). De acordo com Heller, Beau travailé talvez o exem­
plo típico da concentração progressiva de Denis sobre o corpo
como tema, seguindo uma galeria das personagens masculinas
“conturbadas” que inclui Protée; Dah e Jocelyn; e Camille.
Em sua análise do filme, Hayward aponta para a relação en­
tre identidade e lugar com o uma relação colonizado r/colonizado
como elemento-chave de Beau travail\complicada por noções de
desarticulação, desterritorialização, contexto e especificidade. No
trabalho de Denis, Hayward declara, corpos pós-coloniais não po­
dem ser cercados ou contidos dentro do contexto do discurso
ocidental. Ela também escreve:

Em seus filmes Denis mostra, de formas diferentes, a luta, se não


a impossibilidade de reinscrever o selfem um espaço deslocado e
a impossibilidade de reinventar uma narrativa e mito (ou recla­
mar uma memória). (2001, p. 161).
Em Beau travail\ os campos de treinamento dos soldados na
beleza do cenário natural são justapostos aos seus relacionamentos
problemáticos com as mulheres vivendo na pequena cidade vizi­
nha e, em particular, com as mulheres que eles encontram na disco­
teca local, levando a questão das relações de poder de dentro do
contexto militar homossocial para aquele pós-colonial e também
heterossexual. Para um filme que contém longas sequências de sol­
dados em treinamento, Denis não contratou m ilitares experien­
tes, mas coreógrafos de dança. Com o Heller nota, os exercícios
légionnaires “começam como calistenia, transformam-se em artes
marciais e se tornam uma forma vigorosa de dança moderna” (2000,
p. 42)20. De forma semelhante, Stéphane Bouquet observou que:

Chez Claire Denis, mettre en contacte danse et armée est un moyen


d’interroger la notion de corps collectif. Danseur et soldat
cherchent à rejoinder un corps idéal même si ce n’est pas
exactement le même. Et jusqu’oü disparaitre dans un supra-corps?
Jusqu oü se fonder dans le rhythme (la loi) d’un autre et quel
plaisir y-a-t-il s’abolit comme sujet pour participer à la beauté
du groupe, de la norme? (Tu n’es plus African, entend-on, tu es
legionnaire). (2000, p. 49).
(“Para Claire Denis, aproximar a dança e o exército é urna forma
de interrogar a noção do corpo coletivo. Dançarino e soldado
tentam alcançar um corpo ideal, mesmo que não seja exatamen­
te o mesmo corpo. E até que ponto alguém desaparece em um
supercorpo? A ponto de se fundir com o ritmo (a lei) de um
outro; e que prazer existe a ponto de abolir o sujeito em si a fim
de participar da beleza do grupo, da norma?”).

20. Denis acom panhou as coreografias elaboradas dos soldados com BillyB u JJà e
Benjamin Britten.
Para Bouquet, a coreografía participa da criação de “um ideal
de beleza, ideologicamente desvalorizado (militar, exército) ou com
conotação sexual (homossexual)”. A própria Denis calculou que o
filme exprime um subtexto explicitamente homossexual, o qual ela
encontra (corretamente) também no conto de Melville.21 Em Beau
travail\os olhares trocados entre o tenente Galloup, o capitão
Forrestier e o soldado Sentain são abertam ente eróticos, assim
com o a fascinação com o corpo masculino plasticam ente repre­
sentado pelo enquadramento e pelo m ise-en-scène. Ainda assim,
ao longo do filme, Denis trabalhou com os atores para colocar
uma distância entre a câmera e os corpos masculinos, a fim de não
torná-los objetos (Lalanne; Larcher, 2000, 52-53). Bouquet observa
que “a lógica dos corpos difere” entre o nervoso Galloup e os legio­
nários “vagarosos, hieráticos, fantasmáticos” comparados a anjos em
uma citação de Elégie de Duino, de Rainer Marie Rilke: “Anjos (eles

2 1 . 0 filme difere substancialmente do conto de Melville. Além de ter m udado o tem po


da narrativa e tam bém o cenário do século X V III da G rã-B retan ha p ara a Á frica
contem porânea, os filmes de Denis tam bém alteram o desenvolvim ento do en re­
do, os nom es e o destino das personagens. E m B illy Budd, M arinheiro , o m estre
de Claggart, o m estre das arm as (o tenente G alloup no film e) é aciden talm en te
m o rto pelo belo m arinheiro Billy Budd enq uan to os três estão ju n to s na cabine
do capitão. Ao ouvir que o m aldoso e invejoso m estre das arm as está injustam en­
te acusando-o de insubordinação na frente do capitão, Billy Budd tem um acesso
de raiva e lhe dá um soco, fazendo-o bater a cabeça fatalm ente. E m b o ra ficando
ao lado do m arinheiro e entendendo sua ação, o capitão é obrigado a sentenciá-lo
à m orte para evitar qualquer possibilidade de m o tim . D epois de u m a conversa
privada com o capitão, Billy Budd m o rre h eroicam en te, ab en çoan d o o capitão
co m suas últim as palavras. O que fica in tacto em Beau travail é a atm osfera
palpavelmente hom oerótica do co n to (especialm ente m anifesta na paixão do ca­
pitão e de toda a tripulação pelo belo m arin h eiro), assim co m o algum as caracte­
rísticas da psicologia pervertida de Claggart.
dizem) frequentemente não sabem se estão entre os vivos ou entre
os mortos' (Lalanne; Larcher, 2000, p. 52-53). Para Bouquet, a fasci­
nação de Denis com o corpo masculino é basicamente uma ques­
tão de mostrar que “o corpo se reintegra, escapa do sonho de fusão,
se liberta do grupo” (Lalanne; Larcher, 2000, p. 52-53). Mais uma
vez, como em outros filmes de Denis, esse processo de assumir a
subjetividade de alguém passa pela suposição de que o corpo se
faz via dialética do desejo e da violência. Na entrevista com Darke,
apropriadamente intitulada “Desejo é violência”, Denis formula
seu trabalho em função dessa dialética:

Deve haver violência pois há desejo, eu acho - e é isso que é tão


bonito nos filmes de Oshima. Espero que, se analisada, eu fosse
considerada anormal - penso que sexualidade não é delicadeza.
Desejo é violência (2000, p. 17).

Conclusões

Com as exceções de ChocolaU Nanette et Bonie Beau travail\a


distribuição internacional dos filmes de Denis tem sido mínima. Essa
omissão se deve em parte pelo assunto particular de seus filmes, em
parte por seu estilo visualmente desafiador e narrativamente não
tradicional, em parte por seu compromisso com um discurso
transnacional e multicultural que recusa ajustes e posturas fáceis; ao
contrário, faz perguntas a partir de uma perspectiva polêmica. Em
uma entrevista de 1996, Chris Darke perguntou a Denis se sua
“marginalidade tinha a ver com o fato de ser uma mulher fazendo
filmes na França” (2000, p. 16-18). Denis respondeu de uma maneira
que envolve sua concepção de alteridade como estratégia política:
Não. Não acho que faço o tipo de filmes que têm os traços do
cinema francês, ou seja, com muito diálogo e pouco foco social.
Alguns sugerem que minha marginalidade tem a ver com o fato
de que meus filmes têm muitas personagens marginais. Mas eu
acho que não. Penso que é mais pelo fato de eu não me expressar
como os diretores franceses. Mas ser marginalizada é uma forma
de ser levemente protegida - estou fazendo a minha própria histó­
ria sem que ninguém interfira, e isso é conveniente. (2000, p. 18).

Os filmes de Denis oferecem um modelo alternativo de desejo


feminino como ponto de vista subjetivo, organizando as contradi­
ções sociais e culturais na sociedade colonial e pós-colonial. Com um
olhar atento feminino, Denis insere a dialética da violência e do dese­
jo sexual no contexto de relações culturais, étnicas e de gênero e po­
der; um jogo que questiona sua própria identidade e posição autoral.
Seus filmes representam um importante modelo alternativo de fe­
minilidade como ponto de vista subjetivo, que oferece novas possi­
bilidades de representar a alteridade por meio da articulação de gêne­
ro e especificidade cultural.

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O que vi quando te vi? Os diários
de viagem sul-americanos na França

Andrea Molfetta

Na tese “Experimental e documentário: os diários de via­


gem dos artistas sul-americanos na França: 1984-1995” (USP, 2002),
analisei uma coleção de filmes produzida no Festival Franco-La-
tino-Americano de Videoarte. Em cada edição, um videoartista
sul-americano e outro francês ganharam como prêmio uma bolsa
para produzir um diário de viagem sobre o território do outro.
Foram 21 diários que testemunham o olhar de duas culturas, e que
estão listados no final do texto. A tese se concentrou nas 13 obras
latino-americanas: parti da análise da construção espaço-temporal
e enunciativa e realizei entrevistas com artistas e animadores cul­
turais para, já no campo da estética, ensaiar sobre os sentidos mais
complexos desse sujeito latino-americano protagonista de uma
experiência intercultural.
A coleção trouxe para o documentário local uma retomada
da autobiografia mais experimental em plena década de 1980. Es­
ses diários eletrônicos representaram um espaço, um tempo e um
narrador audiovisual fragmentado, sem o menor interesse em ser
homogêneo e contínuo, construindo um desfile de imagens sob
efeitos que adensam o plano icônico e sintático, cativos do fascínio
pelas flamantes “novas tecnologias” digitais de edição que estavam
sendo introduzidas na América Latina. Os diários latino-america­
nos são verdadeiras pinturas eletrônicas, mais preocupadas com a
mancha do que com a profundidade de campo, o que significa
um enfrentamento ao regime clássico do documentário.
Quase todos os diários chilenos são sumários de registros
que sofreram intervenção digital, sem preocupação narrativa. E a
voz, que caracteriza classicamente qualquer diário pessoal, está
calada. Menezes, Said, Vargas, Poch Pereira passeiam por uma Pa­
ris/cenário de ícones da cultura de massa e mostram isso sem uma
fiação dramática, como mera coleção de retalhos produzidos pelo
narrador sem mostrar a si próprio: o “Eu” do pacto autobiográfíco
(Lejeunne, 1975) mostra a cidade a partir de si, sem mostrar a si
próprio.
Quase nenhum deles assume a própria voz, elemento carac­
terístico do narrador do diário. O sujeito desses diários é predo­
minantemente visual, o som ambiente quase não aparece; o som é
uma partitura eletrônica que complementa o jogo associativo das
imagens. En Français, de Sandra Kogut (Brasil, 1993), foi o que
mais trabalhou numa trama dramática propriamente dita - uma
história de amor entre os dois países, confissão de uma autora
que se esconde timidamente - através do jogo de espelhos de uma
enunciação multiplicada, barroca. Nesse diário, aparecem vários
“Eu”, todos ela própria, mostrando um sujeito contraditório,
esquizo, polifónico, esfacelado em diversas vozes e corpos, modo
absolutamente complexo e experimental da enunciação subjeti­
va. Por exemplo, faz complexas relações entre fala e letreiro, rela­
ção cujo diálogo silencioso intensifica a atividade do receptor.
Outro exemplo dessa multiplicação do “Eu”, da voz da autora, em
dois tons e volumes diferentes, é o diário de Claudia Aravena, que
questiona e responde a si própria em Miradas desviadas/Regards
déroutés (Chile, 1992).
Outros videoartistas se relacionam mais explicitamente com
a literatura, inscrevem sua voz em letreiros, falando de si próprios
e de outros. E os textos, com frequência, remontam ao voo (modo)
poético. Dessas formas, o conjunto de diários se distancia das
convenções autobiográficas, onde o “Eu” surge claro e distinto
como pivot de uma narrativa orientada no espaço e no tempo.
Na fronteira entre o narrativo e o não narrativo, dentro do estatu­
to documentário, esses videoartistas são pioneiros na indagação
de uma questão estética vigente na arte eletrônica até hoje: o uso
do audiovisual como técnica de si, questão que desenvolvi como
objeto da subsequente pesquisa que fiz na USP, “O documentário
performativo do Cone Sul dos anos 90”.
Retomando, vejamos com detalhe as consequências desse
tipo de construção do espaço no modo de representar o tempo
desses diários: o espaço, fragmentado e descontínuo, faz com que
a imagem perca (ou debilite) seu poder referencial e informativo,
e se transforme em superfície-vídeo (Bellour, 1990). Assim, no
conjunto dos diários latino-americanos, o tempo da história (o tem­
po dos fatos, aquele que no modo clássico aparece por transparên­
cia detrás do tempo discursivo) não é marcado nem descrito com
precisão. Não sabemos muito (quase nada, para falar a verdade)
sobre a história do autor na viagem, o que ele sentiu, nem é
aprofundada a interação com o objeto fílmico, nesse caso uma geo­
grafía, a Europa. O autor está claramente de passagem. Sabemos que
é Paris pelos icones turísticos, e a única data é a do filme no final,
tempo da fatura fílmica. Sendo um diário, não se aprofunda a
informação sobre a experiência, mas sim a impressão, a evocação
de um “destempo”, o tempo em que o filme se montou e se fez.
Assim, podemos dizer que, nos diarios sul-americanos, o
tempo histórico é suspenso e atrelado ao único tempo que pre­
senciamos com definição: o do próprio discurso que se desenrola
na nossa frente, gerando uma “mostração do tempo puro do dis­
curso”, que entra no ritmo narrativo da pausa (Genette, 1971). E o
que é essa pausa? No ritmo narrativo da pausa, não temos tempo
histórico, somente o tempo do próprio discurso. É como se o
mundo tivesse se detido para que percebamos um discurso como
tal. Ingressamos no que Nichols chama de modalidade reflexiva
da representação documentária. Assim, nesse espaço-tempo surge
um sujeito cuja focalização, ou ponto de vista através do qual ouve,
vê e sabe, é interna, criando um conjunto de enunciações subjeti­
vas e fazendo do espaço do filme um espaço mental, vidente. Um
sujeito que sabemos que organiza tudo, cujo fluxo discursivo
acompanhamos, um discurso no qual, estando no marco daquele
projeto cultural e com essa liberdade expressiva, optou por não se
pronunciar (não fala) nem se mostrar (não há autorretrato), tanto
a si próprio quanto às suas opiniões. A reflexividade poética não
aprofundou em nenhum pronunciamento político, contrastando
notoriamente com outros setores da produção da imagem eletrô­
nica (Movimentos de Vídeo Popular), que militavam intensamente
dentro dos processos de abertura democrática em quase todos os
países envolvidos neste festival - Argentina, Brasil, Chile, Colôm­
bia e Uruguai.
Essas foram as principais estratégias narrativas dessa grande
ação de recentramento do sujeito no documentário local, que con­
sidero paradoxal e muito significativa da vida do audiovisual
moderno na América Latina. Recentramento promovido pela ver­
satilidade dos equipamentos e que, pela sua exploração próxima
da não narratividade, provocou um sintoma muito peculiar na
recepção: no nosso contexto, esses diários nunca foram exibidos,
nem consumidos, como documentários. Assim, encontramos de­
poimentos, críticas, entrevistas a júris da época. Simplesmente eram
chamados de vídeos experimentais. Não se exigia deles - porque
assim também eram exibidos - os compromissos éticos do esta­
tuto documentário. Eram projetados, comentados e produzidos
no campo da videoarte, como continuou acontecendo até pouco
tempo, em que festivais, como o É Tudo Verdade, legitimaram com
prêmios artistas (raramente autodenominados de cineastas) que
exploraram essa linha experimental e eletrônica.
Penso que houve, de fato, um mecanismo do campo das ar­
tes videográficas que tentou a “importação” estética do trabalho
narrativo da primeira pessoa no campo documentário que, na
Europa e nos Estados Unidos, já possuía antecedentes fortes (Rouch
ou Mekas). Isso foi promovido por esta ação cultural da França
que, temos que dizer, não vinha precisamente ao encontro das
indagações e produções locais em matéria de documentário. No
final, tornou evidentes as fraturas dentro do campo audiovisual lo­
cal, inclusive dentro do próprio vídeo, que na época se organizava
respeitando severamente a distinção de formatos e não o proble­
ma da linguagem. Estamos falando no campo intelectual periféri­
co de uma sociedade, cuja organicidade social e cultural foi pro­
fundamente afetada por décadas de processos autoritários, e que
estava, nesses anos entre 1980 e 1990, realizando com afinco a re­
construção da sua malha.

Assim, esses diários representam um mergulho na experiên­


cia do recentramento do sujeito no documentário, fundado na
década de 1950 pelo cinema verdade. Mas por que na produção
dos nossos artistas isso aparece de um modo não narrativo, refle­
xivo, sem interação e acrítico?
Retomemos o fio da história. Os filósofos da hermenêutica
moderna (Heidegger, Gadamer) nos deram uma resposta à necessi­
dade desse compromisso do “Eu”, escrevendo e publicando seus prin­
cipais livros pouco antes dessa revolução no cinema documentário,
o que não é casual. Para tais filósofos, o recentramento do sujeito
nas práticas culturais é uma resposta que demos à perda do com­
promisso essencial da pessoa com a vida (sentido), com a verdade
e com o mundo, questão que na Europa se relaciona diretamente
ao trauma da guerra mundial. Assim, esses autores deram funda­
mento filosófico às experiências, como a de Rouch, que assumi­
ram a grande crise epistemológica do relativismo cultural, década
de 1950, discutindo e comprovando a constituição do sujeito
do e no relato, no trabalho da linguagem, tanto do ¿W/quanto
do Outro, no trabalho interativo das relações intersubjetivas que
o dispositivo fílmico ajuda a criar. O cineasta assume, como mo­
mento fundante da sua ética documentária, a parcialidade do seu
ponto de vista, entabulando uma relação de respeito e comparti­
lhando os meios de produção. Vale dizer, a França teve esse mes­
mo gesto propriamente através do Festival Franco-Latino-Ame-
ricano de Videoarte, e seus videoartistas desembarcaram provo­
cando situações de diálogo com e através da presença da câmera.
Os latinos utilizaram essa mesma tecnologia e essa mesma opor­
tunidade de produção, realizando um audiovisual, cuja poesia leva
o cinema para o território da escritura e da literatura, gestando
essa coleção de documentários reflexivo-poéticos.
Essa experiência, trinta anos depois e graças ao convite francês,
desembarcou no nosso continente. Porém, o que provocou uma
resposta artística assim, na qual o recentramento do sujeito não é
dialógico e nem crítico? Sem dúvida, a resposta, complexa, levou
uma tese inteira e algo mais, que este artigo pretende resumir.
Qual pode ter sido, no nosso contexto latino-americano, a
causa dessa opção pela pausa>sintoma da perda do compromisso
fundamental do sujeito com a vida, com a verdade e com a histó­
ria? As ditaduras, obviamente. A França era consciente do peso
estratégico desse projeto cultural e enxergava o festival como um
bom motivo para reagrupar setores e criar novos espaços de
dinamização cultural, como apoio aos processos de abertura de­
mocrática que começavam a acontecer no nosso continente. As­
sim declarou Pascal-Emmanuel Gallet, autor do projeto, em en­
trevista. Na proposta estética francesa, era justamente um avanço
em prol do “politicamente correto” o fato de o festival entregar as
ferramentas de produção, respeitando a palavra - e o poder - do
Outro. Deram-nos a palavra e... silêncio, fragmentação, poesia e
montagem.
Então, se aceitamos esse trauma como parte da resposta, será
que, no caso dos diários sul-americanos, esse recentramento do su­
jeito, ainda mudo e que se abstém de depor sobre a história, não
responde também a outros dois fatores, como símbolos de nossa con­
tradição de países periféricos? Temos que examinar, não sem cuida­
do. Em primeiro lugar, o conjunto foi produzido por artistas “filhos
das ditaduras”: toda uma geração que se formou num ambiente inte­
lectual repressor (dentre os quais me incluo), sem acesso orgânico
aos mecanismos reprodutores da cultura, isto é, a nossa história
audiovisual e ainda a história do documentário internacional.
Em segundo lugar, os mecanismos de importação de mode­
los estéticos da Europa, favorecida nas dinâmicas da globalização,
e em funcionamento desde os tempos coloniais, continuam sen­
do acionados em nossos países sob o imperativo da moderniza­
ção tecnológica. Por meio desses mecanismos, acolhemos mos­
tras e palestras, todo um legado de discursos artísticos franceses
que se implantaram no coração dos debates do audiovisual sudaca,
por meio da organização de mostras e visitas. Como é tradição
em um campo intelectual periférico, absorvemos e produzimos
esses valores estéticos, condenados a essa definição sempre dialética
da identidade da nossa produção cultural.
Preocupada como estava com a questão do sujeito, aprofundei
a análise da enunciação e vi que, no nosso conjunto, embora se tra­
tando de diários, não era nada clara a presença desse sujeito recentrado
que estava longe, tanto do regime documentário clássico quanto da
própria autobiografia. Os diários não foram uma resposta às dita­
duras, nem aos processos de abertura, muito menos uma reação ou
resistência pós-colonial, pois em nenhum momento vemos uma
crítica a essas relações entre a América Latina e a Europa. Contudo,
introduziram novos modos de narrar no documentário local, nun­
ca antes vistos e, nesse sentido, foram pioneiros de um aspecto
performativo dentro do documentário sul-americano.
Analisando o discurso dos videoartistas, que entrevistei pes­
soalmente, vi que para eles o sujeito recentrado, longe de ser o
ponto de partida para uma afirmação pós-colonial crítica, foi
empossado na enunciação como a última das certezas, dentro de
uma estética que pesquisa os limites do poder assertivo do sujeito
sobre o mundo através de elementos autorreflexivos e poéticos. O
sujeito aparece nos diários como resistência tanto à perda do com ­
promisso vital com o mundo quanto à crise do sentido provocada
pelo pós-estruturalismo da década de 1980.
Do ponto de vista da recepção, como antecipei anteriormente,
nunca foram exibidos como documentários no nosso contexto.
O campo intelectual reagia com outras respostas, mais explícitas e
expositivas: o documentário militante, produzido e distribuído
nos circuitos da contrainformação humanista e que, esvaziado de
renovação estética, preservava, até a década de 1980, os modos nar­
rativos mais clássicos do documentário, desta vez em vídeo.
Acredito que essa fenda entre o videoartista e o documentarista
foi produzida, em primeiro lugar, pelo histórico isolamento da
esfera estética, isto piorado pela introdução em ritmo de moda
de valores e normas estéticas estrangeiros, feita às pressas pelos
enferrujados mecanismos culturais das novas democracias sob o
imperativo da modernização tecnológica.
A reflexividade e a performance no documentário local não
nasceram de uma ruptura crítica com produções locais preceden­
tes, contribuindo com uma genealogia dos estilos, contínua, como
o é na cultura cinéfila das metrópoles. No nosso contexto, as mu­
danças e inovações nem sempre nascem e operam por ruptura,
mas, sim, por saltos ou superposições de valores. A reflexividade
documentária no contexto latino-americano foi empossada por
artistas que não vieram das escolas de cinema (a maioria formada
em filosofia ou design) e cujos referentes estéticos se ancoram na
arte eletrônica, no design, na publicidade e nas artes plásticas. E,
ainda, a reflexividade dos diários não conduziu à formulação críti­
ca e política ou à crítica das representações e códigos de outros meios,
promovendo leituras metalinguísticas e transmidiáticas. Os diários
dessa coleção surgiram de um modo bastante recortado e isolado
em relação ao restante da produção videográfica e cinematográfica
dos campos intelectuais latino-americanos, e foi por isso que tam­
bém me chamou a atenção esse período de produção.
A conclusão da tese apontou que a noção de sujeito e de
história subjacentes à estética reflexiva e poética dessa coleção de
diários de viagem responde à ruptura epistemológica mais crítica
da década de 1980: o documentário, para esses videoartistas, re-
constrói um dos gêneros mais tradicionais do ocidente, a autobio­
grafia, que recentra o sujeito na linguagem e coloca a história como
um campo dinâmico de processos de consciência. Refletindo, as­
sim, nas relações entre crônica e fabulação, para esses videoartistas
o audiovisual traz uma linguagem a ser utilizada ao mesmo tem­
po, tanto na representação do mundo quanto como técnica de si.
As inovações estilísticas da Modernidade,
que antecipam o peculiar sentimento de perda do
‘senso da história’, servem para ensaiar novas formas
de representar o evento, além do ‘story telling’
clássico, representações do passado que são cruciais
para o desenvolvimento da identidade cultural.
Hayden White

The coming extinction of art is prefigured in


the increasing impossibility of representing
historical events.1
Theodor Adorno

Como podemos questionar a elaboração de uma identidade


audiovisual sul-americana nesses videodiários sobre a Europa, quan­
do os autores se limitaram à representação de um fluxo fenoménico,
fluxo de registros sem narração ou nas fronteiras do narrativo e do
poético? Podemos começar por pensar a articulação do ponto de
vista do enunciado, vale dizer, na enunciação que esses filmes expe­
rimentaram para esses indivíduos, a focalização e o saber resultan­
te para esse sujeito que assume o centro autobiográfico nesse modo
experimental. Como se manifesta nos diários o ponto de vista
sobre o mundo histórico? Como podemos pensar a partir das es­
truturas do texto, nos intertextos, nos paratextos e, fundamental­
mente, nas noções de sujeito e história presentes na estética do
conjunto?

1. “A extinção da arte por vir é antecipada pela crescente impossibilidade de repre­


sentar os eventos históricos.”
Em Forms ot Time and the Chronotope in the Novel (1981 )2,
Bakhtin desenvolve o conceito de cronotopo para articular a rela­
ção entre o textual e o extratextual. O cronotopo, ou “constela­
ção de características distintivas, espaciais e temporais, de gêneros
específicos, que funcionam para evocar a existência de uma vida-mun-
do independente do texto e de sua representação [...]” (Bakhtin,
1981), determina e limita as possibilidades narrativas do texto. Em
suma, as características da mise-en-phase do sujeito protagonista: o
cronotopo modela a imagem discursiva que o sujeito moderno
tem de si, da vida e do mundo.
Como resultado da análise fílmica, extraímos conclusões
sobre o cronotopo dominante dessa coleção sul-americana de diá­
rios. Analisando o espaço, ele se mostra de forma fragmentária,
aleatória, geralmente um só tipo de espaço: público, anônimo ou
íntimo, privado, quartos ou museus. Os passeios e os travellings
de Jorge Said-Maldonado em Paris, cest trop! (Chile, 1987). Os
passeios de Juan Francisco Vargas no interior dos museus em
J ’A ttendrai (Chile, 1988).
Já no caso de Miradas desviadas/Regards déroutés, de Clau­
dia Aravena (Chile, 1992), o sujeito se mostra diferente, porque
existe um monólogo interior e posterior aos fatos, monólogo que
coloca tudo na perspectiva do pretérito perfeito da circunstância.
Aravena fala com sua própria voz off, por cima de instantes de
passeios que se tornam metáforas do seu pensamento associativo.
Da mesma forma, a intervenção poética da voz de Marcela Poch,

2. A tradução é da autora.
em Son oeilplongeait dans la ville... (Chile, 1993), e de Patricio
Pereyra, em Discours sur le peu de réalité (Chile, 1994). Os três
chilenos refletem sobre suas próprias possibilidades poéticas e exis­
tenciais, sobre o alcance e o limite do sujeito (fílmico).
Da cidade, os diários fotografam elementos que demons­
tram a duração do tempo - as luzes dos barcos sobre as fachadas,
os meios de transporte em deslocamento. Em Torre Eiffel (Chile,
1986), Juan Enrique Forch explora a longa duração de um travelling
ascendente e outro descendente, da Torre Eiffel, claro, enquanto
recita o imponente poema do surrealista Vicente Huidobro,
“Altazor”. Em Son oeilplongeait dans la ville... (Chile, 1993), Marcela
Poch viaja no interior de barcos e automóveis. Na maioria dos
diários e, especialmente, em En Français (Brasil, 1993), de Sandra
Kogut, o cinegrafista viaja de trem.
Na montagem interna ao quadro, são construídos espaços
subordinados, complexos, organizados em subcampos, por
superposição ou por divisão da tela. Nos diários de Marcela Poch
e Patricio Pereyra, o campo visual se divide em territórios geome­
tricamente cortados, nos quais se combinam velocidades e senti­
dos, forçando a simultaneidade (e a perda inevitável) do controle
sobre a leitura. Referente fugidio, semiose incompleta, porém in­
finita. Na contramarcha, o ponto de partida do discurso, bem
encravado - ou o melhor que pode o narrador primeiro mostra
e depois narra. A duração do movimento se destaca também na
simultaneidade de janelas internas no quadro que, mais uma vez,
ajuda a suspender ou a substituir a percepção da história, para cha­
mar a atenção sobre o tempo puramente discursivo do relato.
Desse modo, a partir de um espaço fragmentado, múltiplo e
simultâneo, os diários nos fornecem uma arquitetura particular
do tempo presente, rompendo com a gramática do cinema clássi­
co, já que, nesses diários, cada subjetividade, cada sujeito, no jogo
intersubjetivo a que nos convida o cinema como dispositivo, faz
sua most ração, assim como oferece sua interpretarão, ingressan­
do no amplo campo do poético.
Em geral, a construção temporal dos diários, vale dizer, os
ritmos narrativos, varia nos termos da taxonomía de Genette (1972),
da pausa ão sumario. As focalizaçoes, de externas a internas. Mas
não temos, de modo algum, a utilização de elipse que contribua a
sintetizar uma narrativa com começo, meio e fim sobre um pas­
sado histórico. Temos, sim, cenas, no sentido em que se preserva a
duração do plano, em sinal de respeito à circunstância da tomada.
Mas geralmente são cenas desdramatizadas através da captação de
um instante qualquer, sem agon, sem conflito. Então, como ques­
tionar esses diários sobre nossa identidade, se eles não abordam o
passado nem enunciam desde uma pessoa plural, nós7. Da nossa
parte, o objetivo do projeto de Gallet, idealizador do projeto cul­
tural, estava fadado ao fracasso.
Como é a posição do narrador de um diário que nos mostra
um espaço fragmentado, suspende o tempo histórico e que, com
relação a si próprio, mostra unicamente seu modo de olhar,
deiticamente, sem fazer autoimagem? Com relação ao espaço há,
a meu ver, um sujeito duplamente exilado. Ele está longe da sua
cultura. A viagem confirma, em primeiro lugar, aqueles lugares
dos quais nos distanciamos, principalmente a língua. Nos diários
sul-americanos são raras as cenas de diálogos, a troca não é uma
constante. Desse modo, a palavra é elevada ao seu valor mais abs­
trato, e temos uma grande presença literária em monólogos e poe­
mas —letreiros em 90% dos filmes.
O movimento do espaço e no espaço é uma variável de grande
elaboração. O espaço é fugidio, quase um desfilar sem contato
interativo entre europeus e latinos. O espaço mostrado é sempre
urbano, não há natureza - como na parte francesa da coleção, onde
são maioria as imagens do campo, da montanha e do mar da Amé­
rica do Sul. A cidade europeia é mostrada por meio de múltiplos
espaços quaisquer, sem hierarquias, fachadas, pessoas ou meios
de transporte.
Nos diários sul-americanos, a cidade é um grande espaço de
circulação, cenário-fluxo da subjetividade, caótica, e se apresenta
aleatoriamente, como um desenrolar de eventos. Mas esses eventos
estão concatenados por um eixo que é outro ponto qualquer: o
sujeito-sujeitado pela câmera, quase sempre sem nome, diegetizado
no campo visual e sonoro nas mais diversas formas: o olhar para a
câmera, as diversas formas de molduras (janelas, lentes etc.), a
câmera na mão, o som, os textos.
Constitui-se, assim, seu segundo exílio: o recuo subjetivo.
O sujeito está “longe das circunstâncias”, como diz Claudia Aravena
em Miradas desviadas. É um sujeito limitado fenoménicamente a
esse presente, outro momento qualquer. Não faz retrospectivas,
julgamentos, nem previsões. É restrito, em consequência, também
nas formas possíveis de construir aquilo que originalmente quer
nos mostrar: sua identidade. Mas isso já é parte da nossa marca
cultural como países periféricos: barrocamente, não fazemos a
pergunta sobre nós sem nos referirmos ao Outro. Moderno desde
sua origem, esse sujeito latino-americano, por definição, é incom­
pleto, aberto e explicável somente nos termos de uma dialética
intercultural com a metrópole. Dialética à qual acedemos para, apa­
rentemente, resistirmos ou frustrarmos desde o silêncio. Eis como
a enunciação desses diários torna-se, no final da análise, reveladora
de um arquétipo relacionado com uma condição oprimida, a nossa
condição cultural, nesse caso, dependente dos campos intelectual e
de poder centrais. Por meio da análise desses diários, penso o modo
como nossos artistas vivenciaram o evento histórico que é ser um
latino-americano na Europa de final de século; e todos os diários
possuem, em comum, o fato de serem relatos difusos, sumários
de fragmentos sem asserções e que, no final das contas, funcionam
como método para dissolver o evento histórico que, sabemos, es­
tava por trás da proposta original: o reencontro das culturas após
500 anos da colonização.
A dissolução do evento é uma das estratégias estéticas prove­
nientes da modernidade literária e traz consequências importantes
para a relação entre arte e história. Acredito que esses diários usam
essa estratégia ao dissolverem o evento numa desintegração das uni­
dades de tempo: as imagens não são documento de um tempo, a
imagem não se sujeita a essa exigência da imagem documentária
comprobatoria. Significa, mais profundamente, modificar a noção
de factualidade; que é fronteira entre o discurso imaginário e o dis­
curso realista. Na teoria do cinema, são abundantes os textos sobre
o plano sequência e a montagem como elementos e ferramentas
estilísticas do realismo. Mas, na nossa coleção de diários eletrôni­
cos, os recursos do realismo são escamoteados e dispensados ao
máximo. O documentário é levado até suas fronteiras.
Em outros termos, rompe-se o contrato autobiográfico do
século XIX: imaginários ou reais, para esses diários todos os fatos
pertencem à mesma ordem ontológica; todos eles trazem a ideia
de uma conceitualização da história sem verdade, de que qual­
quer história vira estória, resultado de uma fabuiação. Ou, pelo
menos para esses artistas, isso já não é obrigatório dentro do esta­
tuto documentário, o que acontece até hoje, desde então, com a
imagem eletrônica como precedente. Para White, esse tipo de poé­
tica é resultado de fatos históricos traumáticos, que geraram uma
neurose coletiva: obliterar sistematicamente o acesso aos fatos para
que eles não interfiram no presente nem na visão de futuro. Foi
difícil falar do passado e, mais ainda, daquele presente como su­
jeito colonizado. Porém, a consciência histórica do espectador
exigia um sentido a ser construído, e esse é o motivo pelo qual
este artigo sente a necessidade de definir os sentidos possíveis que
foram extraídos dessa experiência intercultural.
O modernismo opõe o evento ao fato, desmantelando o
evento como objeto de conhecimento científico. Para o moder­
nismo dos diários, o evento histórico não pode mais ser observa­
do e não serve mais como objeto de conhecimento: dissolve a
constituição das personagens, entendidas como sujeitos dessa his­
tória ou como representações das perspectivas possíveis sobre essa
história. Na maioria dos diários, o espectador não sabe direito de
que se trata a viagem, que não é apresentada, resumida, narrada ou
encerrada. São as informações paratextuais que nos falam da via­
gem a Paris, do convite do festival. Nos diários, datas e durações
são apagadas, assim como o nome dos próprios viajantes, que so­
mente conhecemos pelos créditos. Muito menos conhecemos sua
opinião. Em Paris c ’est troph de Said Maldonado, Ventana/fenetre,
de Gerardo Silva, ou Miradas desviadas, de Claudia Aravena, não
sabemos nada da historia sem as informações exteriores ao filme.
Por último, procede a desrealização do evento, que “aban­
dona sua função narrativa como índice da história, para adquirir
a importância de um padrão atual, trans-social e de significado
trans-histórico”, segundo Jameson (1996). O sentido parece ina­
cessível, indistinguível no fluxo dos eventos, instáveis, fluidos e
fantasmagóricos. Eventos que, não casualmente, são fotografados
em slow motion, reverso, zoomz repetição. As próprias persona­
gens são irrealizadas, por exemplo, em Torre Eiffel, de Juan Enrique
Forch. A primeira pessoa não é a do autor e, sim, é emprestada de
Huidobro, quem, pela sua vez, fala ao seu filho que não guarda ne­
nhuma relação com o relato. Outro exemplo é o diálogo imaginá­
rio de Sabrina Farji com Anais Nin em Diário de outono.
Desse modo, fazer asserções também não é a constante. A
constante maior é a interferência digital sobre o registro fragmen­
tário, criando colagens e simultaneidades, adensando o plano
icônico da representação. Aqui, a pintura entra em cena com toda
a sua potência.

Les règles du jeu que j’ai tout de suite instituées marquaient cette
volontédemettreànu le regard des artistes. N’était autorisée qu une
banale caméra, la plus légére possible [... ] au moment de la
postproduction retrouver les moyens sophistiqués de traitement de
I’image qui faisaient le quotidien de Yart vidéo. (Gallet, 1987, p. 9).3

O trabalho gerativo (processo desenvolvido entre o autor e a


obra) desses diários é tão intenso e interfere tanto na montagem
dos registros, que gera um grande estranhamento em relação aos
códigos mais clássicos do gênero “diário”, como a primeira pessoa,

3. “As regras do jogo que instituí de imediato assinalam essa vontade de expor o
olhar dos artistas. Só era autorizada um a câm era simples, a mais leve possível [...1
no m om ento de a pós-produção reencontrar os meios sofisticados de tratam ento
da imagem que eram parte do cotidiano da arte do vídeo.”
o racconto dia a dia e, consecutivamente, o começo, o meio e o
fim da experiência. Assim, essa coleção questionou e problematizou
o espectador, que ingressou na sala para conhecer um diário de
viagem e depara, surpreendentemente, com uma intervenção digi­
tal importante na montagem, realizada sobre registros quase
descompromissados, só para inverter caleidoscopicamente o re­
lato e falar, no final das contas, mais daquele que viu do que da­
quilo que tinha sido visto.
Para esses diários, a construção do lugar do enunciatário
receptor, que faz com que se preze a função comunicativa, a fática
e a referencial, também não é uma constante na coleção sul-ameri­
cana, que é profundamente reflexiva e poética. Os autores não fa­
zem proposições ao espectador. Temos, nos diários, um enunciador
geograficamente isolado, que não fala a língua estrangeira,
“comunicacionalmente” crítico (quase cético) e que cultiva todas
as estratégias da reflexividade para operar essa inversão pers­
pectiva: falo do mundo para falar de mim e, nesse deslocamento,
a viagem principal. Pouco se pronunciam sobre o território que
visitam. É mínimo o valor assertivo sobre a história e sobre si
próprios; contudo, o modo de ver e ouvir é sempre subjetivo.
Para Nichols, o realismo no documentário ajuda a ordenar e
a manter uma visão lógica do mundo, cuja perspectiva subordina
o emocional a objetivos concretos, com uma finalidade clara. Mas
sabemos que há aqui um realismo crítico, que dá vazão e orques­
tra esses sentimentos para, pelo menos, expressar contradições “es­
pinhosas para a razão, ou que seguem padrões de organização so­
cial (como hierarquias, domínio, controle, repressão, rebelião, etc.)”
(Nichols, 1994). Acredito que esse projeto cultural tentou, a partir
das boas intenções da Lusofonie, e sem sucesso, abordar a relação
Latino-América/França como uma experiência que nos instigaria
a respeito da nossa identidade cultural.
Mas, depois dessa experiência, o que foi resolvido com res­
peito à nossa relação com a Europa? Pelo menos dessa vez, cria­
ram-se laços estéticos e de produção, mas a leitura crítica e aguda
das respectivas posições dentro da história política e cultural da
nossa relação não teve lugar. É uma relação que, do ponto de vista
pós-colonial, ainda está inconclusa, produtiva e problemática. Acre­
dito que somente assim podemos explicar o grande paradoxo que
significa a recepção dessa experiência estética no nosso contexto.
Fomos visitar e filmar um continente, o qual observamos e
registramos com toda a carga de opacidade e reflexividade que
caracterizou a estética midiática do final da década de 1980. E o
que vimos? Vimos que não podemos ver. E, na dialética, vimos
que não podemos ver sequer a nós próprios, tal a margem absolu­
ta da experimentação eletrônica em matéria narrativa, amplidão
certamente mais vedada nos cânones da imagem cinematográfica.
De um lado do oceano - ou melhor, do hemisfério - existem as
blurred boundaries, as fronteiras escuras, mas também permeáveis,
entre as práticas narrativas do documentário. No nosso contexto,
num campo intelectual castigado e empobrecido pelos recorrentes
processos ditatoriais, e ainda por efeito da colonização cultural (no
caso, importação de modelos estéticos induzidos pela inovação
tecnológica digital), os diversos setores do documentário local se
distanciaram e se rejeitaram mutuamente. Isso dificultou tanto a
recepção quanto a influência possível dessa modernização narrativa
noutros meios audiovisuais, modernização cuja estética não pode
ser uma resposta à situação do nosso próprio campo intelectual - na
época, mais preocupado em estabilizar-se e em definir sua autono­
mia estética dentro dos processos de abertura pós-ditaduras.
Quando nos sensibilizamos a respeito das influências políti­
cas e culturais da vida dos signos na sociedade, constatamos que
nem os autores nem os espectadores sul-americanos usufruíram
desses diários como documentários, o que é escandaloso, porque
eles se esforçaram em mostrar o trabalho subjetivo por trás de qual­
quer relato. Ainda mais, não esqueçamos de que havia consciência
clara dos objetivos para todos os autores, que começaram aceitando
a encomenda explícita por um diário de viagem, vale dizer, um
subgénero da autobiografia. E, contudo, posso afirmar e generalizar
que o esforço autorreflexivo dessas obras, experiência estética
marcante da arte eletrônica sul-americana de finais da década de 1980,
se dirige a inserir a interpretação do sujeito num contexto no qual o
próprio trabalho de interpretar pode ser compreendido progressi­
vamente como autocompreensão de quem interpreta. Desse modo,
autorreflexivo, quem filma o mundo filma, no avesso, a si próprio.
Na perspectiva hermenêutica que este breve ensaio preten­
deu enxergar, “em tudo que uma linguagem desencadeia consigo
mesma, ela remete sempre para além do enunciado como tal”
(Gadamer, 1998, p. 39). Trata-se de um programa estético que, na
arte eletrônica do nosso continente, destacou a incompletude do
sujeito e seus sentidos, afirmando que ambos se constituem na tra­
ma da comunicação, da inter-relação, sentidos abertos que neces­
sitam da interpretação do Outro.
Isso nos ajuda a compreender uma distinção sutil. No nosso ho­
rizonte de leitura, o leitor não teve em mente a dimensão documentária
dos seus trabalhos e, sim, a dimensão “documentarizante”, em cima da
qual, claro, efetuou-se todo tipo de intervenções da montagem.
Os europeus, ao contrário, com referentes estéticos do cinema,
elaboraram uma arte eletrônica que na década de 1980 dava conti­
nuidade (ou ruptura dialética) às estéticas documentárias das dé­
cadas de 1950 e 1960, e que foram iniciadas, também, com as pe­
quenas câmeras, as novas tecnologias. Jean-Paul Fargier dialoga
com Godard, e Robert Cahen com Resnais. Vale dizer, enquanto
eles sabiam que estavam fazendo documentário, nós preferimos
afrouxar as regras, problematizando a produção e o horizonte de
leitura documentária nas nossas capitais, promovendo uma expe­
rimentação radical do estatuto documentário.
Como descrevemos, no conjunto latino-americano as men­
sagens limitaram-se às percepções e às emoções mais destacadas
de um percurso, sem críticas para além da reflexividade discursiva,
sem consciência histórica. Este é um traço importante dos nossos
diários, porque justamente acontece dentro de uma experiência
estética induzida por um projeto cultural europeu. Ainda mais, a
proposta não somente revitalizou o contato Europa/América La­
tina como colocou em circulação o conjunto da produção experi­
mental sul-americana em vídeo, reunindo-a como poucas vezes
na história local, e ainda durante mais de dez anos consecutivos,
entre 1984 e 1996. O festival circulava durante o mês de novem­
bro em distintas capitais: São Paulo, Buenos Aires, Santiago, Mon­
tevidéu, Caracas.
Realizar o diagnóstico de uma falta de posicionamento po­
liticamente crítico em relação à Europa, num conjunto tão repre­
sentativo como essa coleção de diários, evidencia que se trata de
uma constante estética da região durante a década de 1980 e co­
meço da de 1990. Essa ausência de elaboração do senso histórico
merece que pensemos e cogitemos alguma explicação, ou pelo
menos que a consideremos como sintoma.
A presença dominante da reflexividade na arte eletrônica local,
no contexto de abertura democrática na América Latina, é certamente
sintomática de um mal-estar. Dividiu taxativamente os distintos se­
tores da produção em vídeo. Promoveu o divórcio de vários grupos
de documentaristas, dos mais militantes e expositivos aos mais
modernos e reflexivos. Ao longo da pesquisa, constatei a presença
de um modelo estético isolado que se apresentou, quase que com
exclusividade, nessa produção eletrônica: a modernidade da ima-
gem-tempo, da superfície-vídeo. Como já disse, essa imagem foi
rejeitada pelos setores que mantinham a hegemonia estética do
documentário no Cone Sul, especialmente em contextos cinema­
tográficos como os de Santiago ou Buenos Aires. Ainda hoje, so­
brevivem algumas dessas fraturas; há, por exemplo, em Buenos
Aires grupos de documentaristas que eu chamaria de pré-moder-
nos, que ainda não reconhecem os filmes performativos como
documentários. A tensão que provocou a aparição inaugural dessa
imagem subjetiva e poética no campo audiovisual local é o que
me chamou a atenção desse conjunto de obras na época.
Se a proposta trazia, desde a perspectiva eurocêntrica, um
objetivo político de fundo (os 500 anos, a relação América/Euro­
pa), de nossa parte o problema foi estético e produziu um contraste
de horizontes de leitura dentro do mesmo gênero documentário,
gerando uma grande diferença entre os diversos setores do mes­
mo campo. Documentaristas e videoartistas não se cruzavam,
embora estivessem trabalhando dentro de distintas visões do mes­
mo estatuto, distintos modos narrativos.
A forma de ver e ouvir desses diários nos traz no mínimo três
grandes opções feitas pelos autores: a presença de um grande indi­
vidualismo nas condições de produção, o distanciamento pela via
da reflexividade poética e o uso performativo da voz expositiva. As
características narrativas analisadas nesse conjunto de diários nos
mostram que essa cronotopia característica é habitada por um su­
jeito que está longe da sua terra, da sua própria circunstância histó­
rica e das convenções da representação documentária. Podemos
dizer que se trata de um sujeito politicamente acrítico, no mínimo,
alguém que se abstém da faculdade fundante do documentário: a
capacidade assertiva. Para esses diários, o indivíduo é uma singula­
ridade que desenvolve uma epistefilia (um amor pelo saber), estra­
tegicamente parcial e relativista, presa de um lado pelo ambiente
intelectual pós-ditatorial e, pelo outro, por uma Europa convidati­
va e ainda mandante da obra e que, com seus impulsos e incentivos,
não conseguiu desabrochar uma crítica pós-colonial.
Simples diagnosticar o porquê do fracasso: essa crítica deve­
ria ser organicamente gestada pelo próprio campo intelectual. Foi
assim que a coleção pouco contribuiu para a reflexão e a criação de
um público local consciente da nossa condição histórica e cultural
como países periféricos, colonizados. Muito menos formou um
público para o documentário moderno. Como explicar isso? O pro­
jeto de diários dentro do Festival Franco-Latino-Americano de
Videoarte, concebido pela Secretaria do Audiovisual do Ministério
das Relações Exteriores da França, nos trouxe oportunidades de
produção e circulação inéditas entre 1984 e 1996, também elemen­
tos estéticos, tecnológicos e econômicos de produção. Porém, o in­
vestimento foi realizado para responder uma pergunta sobre nós
mesmos, pergunta que não foi por nós requerida nem elaborada.
Filmografia

Diários sul-americanos produzidos entre 1984 e 1995:


Bonjour la France, Magali Meneses, 22’, 1984 (Chile); Torre
Eiffel\Juan Enrique Forch, 11’, 1986 (Chile); Paris, cest trop1, Jor­
ge Said Maldonado, 21’, 1987 (Chile); J ’Attendrai, Juan Francisco
Vargas, 27’, 1988 (Chile); Mort au roi\Francisco Arévalo, 6’, 1989
(Chile); La mémoire du ciei\ Francisco Fábrega, 10’30”, 1990 (Chi­
le); Poème N. 1. Ventana/fenetre, Gerardo Silva, 11’, 1991 (Chile);
Miradas desviadas/Regards déroutés, Claudia Aravena, 15’39”, 1992
(Chile); Son oeilplongeait dans la vi11e..., Marcela Poch, 10*19”
1993 (Chile); Discours sur le peu de réalité, Patricio Pereyra, 6’,
1994 (Chile); Vídeo DAutomne, Sabrina Farji, 11’, 1994 (Argenti­
na); En Français, Sandra Kogut, 1993 (Brasil).

Diários franceses realizados entre 1983 e 1993:


Sans T, Santiag, Santiago, Michel Jaffrennau, 4’, 1984; Chili
Moya, Chili Moyo, Jean-Paul Fargier, 12’, 1985; Espero Verte Pron­
topor Eso, Jean-Louis Le Tacón, 15’, 1987; ChiliImpression, Robert
Cahen, 13’ 15”, 1988; Le Retour à Valparaiso, Hervé Nisic, 45’, 1986;
Camino Austral, Jean-François Néplaz, 41* 1991; Valparaiso, Patrick
Prado, 18’4”, 1983; Mes Rencontres à Chiloé en 1989, Michael
Gaumnitz, 14’38”, 1989; Guirlande, Collective, 17’, 1990; Voyage
d’hiver, Robert Cahen, 19’, 1993.

R eferên cias

AU MONT, Jacques. À quoi pensent les filmes. Paris: Séguier, 1996.


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RENOV, Michel. Theorizing documentary. New York: Routledge, 1993.


Sobre os autores

Andréa França é professora do Departamento de Comunicação


Social da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq. Autora dos livros
Cinema em Azul, Branco e Vermelho-a trilogia de Kieslowski (1997),
Terras e Fronteiras no cinema político contemporâneo (2003) e inú­
meros artigos sobre cinema e audiovisual. É membro do Conse­
lho Deliberativo da Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e
Audiovisual (Socine).

Andrea Molfetta é professora do Programa de Posgrado en Cine


y Teatro Argentino y Latinamericano de la Universidad de Buenos
Aires (UBA), presidente da Asociación Argentina de Estudios de
Cine y Audiovisual (Asaeca), pesquisadora do Consejo Nacional
de Investigaciones en Ciencia y Tecnologia (Conicet), na Argenti­
na, e colaboradora do Centro de Pesquisas em Cinema Documentário
da Unicamp (Cepecidoc). Trabalha na área de estudos fílmicos
desde 1994, com ênfase nas relações entre arte eletrônica e cinema
no Cone Sul a partir da década de 1980.
Anelise Reich Corseuil é professora associada da Universidade
Federal de Santa Catarina, com pós-doutorado pela Universidade de
Glasgow, Escócia. Coautora de Estudos Culturais, Página, Palco e
Tela (2000) e organizadora de Film, Literature and History (1997) e
OEnsino de Literatura e Cultura de Língua Inglesa no Brasil (1997).
Organizadora de Film Beyond Boundaries (EFUFSC, 2006).

Angela Prysthon é professora do Programa de Pós-graduação


em Comunicação da UFPE, autora de Cosmopolitismos periféri­
cos (2002), organizadora de Imagens da cidade (2007) e coautora
de Comunicação e cultura das minorias (2005), A Comunicação
revisitada (2005), Construções do tempo e do outro. Representa­
ções e discursos midiáticos sobre a alteridade (2006) e Cultura
Digital Trash: Linguagens, Comportamentos e Desafíos (2007).

Denilson Lopes é professor da Escola de Comunicação da Uni­


versidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador do CNPq. Au­
tor de A Delicadeza: Estética, Experiência e Paisagens (2007), O
Homem que Amava Rapazes e Outros Ensaios (2002), Nós os
Mortos: Melancolia e Neo-Barroco (1999) e organizador de O
Cinema dos Anos 90 (2005).

Hamid Naficy é professor de Comunicação no Departamento


de Rádio, Televisão e Cinema da Northwestern University; Esta­
dos Unidos. Autor de Cinema, Modernity, and National Identity:
A Social History o f a Century o f Iranian Cinema (a ser publica­
do), An Accented Cinema: Exilic and Diasporic Filmmaking
(2001), Home, Exile, Homeland: Film, Media, and the Politics o f
Place (1995), The Making o f Exile Cultures: Iranian Television in
Los Angeles (1993), entre outros.

Hudson Moura é professor e pesquisador associado ao Centro de


Estudos da Oralidade da PUC-SP. É PhD em Cinema e Literatura
pela Universidade de Montreal, com pós-doutorado em Cinema
Intercultural na Escola de Artes Contemporâneas, Simon Fraser
University, Vancouver, Canadá. Coedita a revista on-lineIntermídias
[www.intermidias.com] .

Laura U. Marks é professora da Dena Wosk University e da


Escola de Artes Contemporáneas, Simon Fraser University, em Van­
couver, Canadá. É autora de The Skin o f the Film: Intercultural Ci­
nema, Embodiment, and the Senses (2 0 0 0 ), Touch: Sensuous
Theory and Multisensory Media (2002) e Enfoldment and Infinity:
An Islamic Genealogy o f New Media Art (2010).

Leo Goldsmith é produtor de filmes e crítico que vive em Nova


Iorque. Recebeu seu grau de Mestre em Estudos de Cinema na New
York University em 2006. Atualmente é editor da revista de cinema
on-line Not Coming to a Theater Near You (notcoming.com) e tem
contribuído para as revistas Reverse Shot (www.reverseshot.com),
Indiewire e Village Voice.

Mahomed Bamba é doutor em Cinema e Estética do audiovisual


pela ECA-USP. É professor adjunto na Faculdade de Comunica­
ção da Universidade Federal da Bahia e pesquisador no programa
de Pós-graduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas
(Pós Com-Facom-UFBA). Tem participação em livros coletivos
sobre os cinemas africanos e publicou artigos sobre a temática da
recepção cinematográfica e audiovisual.

Martin Roberts é professor adjunto de Estudos Midiáticos na


The New School, Nova Iorque, onde leciona no Programa de Ba­
charelado em Artes Liberais e no Eugene Lang College. Suas pu­
blicações incluem artigos sobre documentário etnográfico, mundo
do cinema e televisão multicanal. Atualmente, Roberts está traba­
lhando no projeto de um livro com enfoque nas subculturas e na
globalização.

Renata Wasserman é professora de Literatura Comparada no


Departamento de Inglês de Wayne State University. Ela é autora de
Central at the Margin: Five Brazilian Women Writers (2007), Exotic
Nations: Literature and Cultural Identity in Brazil and The United
States; 1830-1930(1994).

Robert Stam é professor da New York University. Entre seus li­


vros publicados no Brasil, estão Crítica da Imagem Eurocêntrica>
em coautoria com Ella Shohat (2006), Introdução às Teorias do
Cinema (2003), Bakhtin (1992), OEspetáculo Interrrompido (1981).
É autor ainda de François Truffaut and Friends (2006), Tropical
Multiculturalism (1997) e editou com Ella Shohat Multiculturalismy
Postcoloniality and Transnational Media (2003).

Rosanna Maule é professora associada de Estudos de Cinema


em M el Hoppenheim School o f Cinema, Concordia University,
Montreal. Ela é a autora de Beyond Auteurism: New Directions in
AuthorialFilm Practices in France, Italy, and Spain since the 1980s
(2008) e coeditora de In the Dark Room: Marguerite Duras and
Cinema (2009).

Sheldon Lu é professor de Literatura Comparada e Estudos de


Cinema na University o f California, Davis. É autor, editor e
coeditor de vários livros, como China, Transnational Visuality,
Global Postmodernity (2001), Chinese M odernity and Global
Biopolitics: Studies in Literature and Visual Culture (2007),
Transnational Chinese Cinemas: Identity, Nationhood, Gender
(1997) e Chinese-Language Cinema: Historiography, Poetics,
Politics (2005).

Vicente Rodriguez Ortega é doutorando em Estudos de Cine­


ma na New York University

Yingjin Zhang é diretor do programa de Estudos Chineses e pro­


fessor de Literatura Comparada e Estudos de Cinema na University
o f California, em San Diego. Seus livros publicados em língua in­
glesa são: The City in Modern Chinese Literature and Film (1996),
Encyclopedia o f Chinese Film (1998), China in a Polycentric World
(1998), Cinema and Urban Culture in Shanghai, 1922-1943 (1999),
Screening China (2002), Chinese National Cinema (2004) e From
Underground to Independent (2006).
T ítu lo C in em a, glob alização e in tercu ltu ralid ad e

Organizadores Andréa França


Denilson Lopes

C o le ç ã o Grandes Temas

Tradutoras Raquel Maysa Keller


Lúcia Lovato Leiria

Assistente editorial Alexsandro S tu m p f

Assistente de vendas Neli Ferrari

Secretaria Alexandra Fatima Lopes de Souza

Divulgação, distribuição e vendas Neli Ferrari


Jocimar Vazocha Wescinski
Luana Paula Biazus
Daniela Vargas

Projeto gráfico Alexsandro Stumpf

Diagramação Ronise Biezus e Caroline Kirschner

Capa Alexsandro Stumpf

Revisão Carlos Pace Dori


Araceli Pimentel Godinho
Cristiane Santana dos Santos
Lúcia Lovato Leiria
Jakeline Mendes Ruviaro

Formato 16 X 23 cm

Tipologia Minion entre 10 e 13 pontos

Papel Capa: Supremo 250g


Miolo: Pólen Soft 80 g/m2

N ú m ero de páginas 401

T ira g e m 1000

P u b lica çã o setembro de 2010

Im p ressão e a cab am en to Gráfica e Editora Pallotti - Santa Maria (RS)

A rgos Ed itora da U n o ch ap ecó


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