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e interculturalidade
Cinema, globalização
e interculturalidade
Andréa França
Denilson Lopes
(Orgs.)
A^GoJ-
E d i t o r a da U n o c h a p e c ó
Chapecó, 2010
UNOCHAPECÓ
UNIVERSIDADE COMUNITARIA DA REGlAO DE CHAPECÓ
CDD 791.4309
A^Goj-
Editora da U n o c h a p e c ó
Conselho Editorial:
Carla Rosane Paz Arruda Teo, César da Silva Camargo,
Érico Gonçalves de Assis, Maria Assunta Busato,
Maria dos Anjos Lopes Viella, Maria Luiza de Souza Lajús,
Murilo Cesar Costelli, Ricardo Rezer,
Rosana Maria Badalotti, Tania Mara Zancanaro Pieczkowski
Coordenadora:
Maria Assunta Busato
Sumário
Apresentação 9
MÓDULO I
Cinema mundial, cinema intercultural
MÓDULO III
Enunciados de nacionalidade e
imaginários transnacionais
MÓDULO V
Nas fronteiras da memoria,
do desejo e do afeto
M artin Roberts
Encolhendo o planeta
* Tradução de Raquel Maysa Keller, f N.T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação).
1. Este texto é uma versão traduzida e reduzida do artigo “ Baraka: World Cinema and
the Global Culture Industry”. Cinem a Journal, v. 37, n. 3, p. 62-82, primavera 1998.
2. McLuhan, M arshall. U nderstanding M edia. New York: McGraw Hill, 1964.
formando o mundo num lugar menor”. Trinta anos depois do li
vro Meios de comunicação como extensões do homem , a aldeia
global se tornou um lugar-comum, e McLuhan foi canonizado,
pela revista Wired\ como um profeta visionário de um mundo no
qual a distância já não importa mais. Os comerciais de TV mos
tram famílias conversando ao celular com parentes do outro lado
do planeta, ou membros de uma tribo africana, felizes, usando
notebooks.
Este texto considera os impactos dessas evoluções no âmbi
to cinematográfico. Por um lado, a história do cinema se confun
de, desde o início, com processos globais do colonialismo até suas
consequências pós-coloniais. Atualmente, o cinema se tornou uma
forma de cultura global, porém diferente em suas manifestações
locais. Ao mesmo tempo, o discurso de McLuhan da aldeia global
tanto reflete quanto empresta um ímpeto adicional ao apareci
mento de uma ideia imaginária do “mundo”, e este imaginário
global, como veremos adiante, tem assumido grande importância
no cinema contemporâneo. O cinema atual tem um papel signifi
cativo na articulação e na perpetuação do que poderia ser chama
do de mitologias globais: discursos ideológicos sobre o mundo e
a sua relação com a humanidade.
Ultimamente a crescente atenção em relação ao que ora é
chamado de “cinema mundial” ora de “cinema global” parece curi
osa, já que a produção cinematográfica, a distribuição e o consu
mo têm sido um assunto global. Há inúmeros estudos sobre a
indústria do cinema não ocidental, e o “Cinema Mundial” é abor
dado atualmente como a “Literatura Mundial” foi estudada, na
língua inglesa, em departamentos, antes do advento dos estudos
pós-coloniais/ Ainda que as indústrias cinematográficas, em mui
tas partes do mundo, permaneçam com intenso caráter nacional, a
atividade comercial de produção e de consumo cinematográficos é,
também, de natureza transnacional, como bem sabe todo o afri
cano que cresceu vendo filmes de faroeste, musicais indianos,
filmes de arte marcial. Os estudos feitos até agora, como artigos
sobre a colonização mundial das telas de cinema por Sylvester
Stallone e Arnold Schwarzenegger, deixam claro que o comércio
transnacional de norte a sul, do oriente ao ocidente é uma questão
extremamente unilateral, mas tal ponto de vista (se é que algum
dia foi verdadeiro) está se tornando ultrapassado, já que se mostra
cada vez mais evidente que o comércio cultural é agora bilateral.
Em muitos casos, na verdade, decidir realmente de “onde” um fil
me é e para “quem” ele é direcionado está ficando cada vez mais
com plicado: um film e de um diretor do Senegal p ode ser
coproduzido com dinheiro alemão e suíço, editado em Zurique
e, mais provavelmente, ser exibido para grandes públicos em Nova
Iorque e não em Dakar.4O cinema transnacional, os filmes de co
munidades diaspóricas que vivem em cidades cosmopolitas do
Primeiro Mundo, se tornou um gênero em proliferação, que com
pete com cinemas nacionais mais antigos.5
3. Ver, por exemplo: Armes, Roy. Third World Film Ahiking und the West. Berkeley:
University of California Press, 1987.
4. Aqui estou pensando no filme Hyènes(1992) de Djibril-Diop Mambety.
5. Ver, por exemplo: Naficy, Hamid. Phobic Spaces and Liminal Panics: Independent
Transnational Film Genre. In: Wilson, Rob; Dissanayake, Wimal (Eds.). Global/
Local: cultural production and the transnational imaginary. Durham, NC: Duke
University Press, 1996. p. 119-144.
IQ
Enquanto m uita atenção foi dedicada ultim am ente ao
surgimento de cinemas transnacionais e de diaspora, deu-se me
nos atenção ao impacto da globalização sobre o filme europeu e
estadunidense. Tenho em mente aqui o número crescente de filmes
desde 1960 que são, de formas diferentes, sobre algo chamado o
“próprio mundo”. Entre eles se destacamM ondo Cane, de Gualtiero
Jacopetti e Franco Prosperi (1963); Sans Soleii\ de Chris Marker
(1982); Powaqaatsiy de Godfrey Reggio (1988); A té o Fim do
M undo , de Wim Wenders (1991); Uma N oite sobre a Terra, de
Jim Jarmusch (1991); Planeta Azul, da IMAX (1991). Ao mesmo
tempo em que os filmes em questão pertencem a cinemas nacio
nais diferentes, a gêneros de filmes diferentes e dirigem-se a pú
blicos diferentes, eles compartilham um a preocupação temática
com a globalização, com as novas formações culturais da ordem
mundial pós-colonial, e se esforçam para enquadrá-las em um a
visão totalizante do “mundo”. Concentro-me aqui em filmes des
se tipo.
O filme específico que discutirei detalhadamente é Baraka
(EUA, 1992), filme de longa duração, documentário sem palavras
dirigido e film ad o p o r R on Fricke e p ro d u z id o p o r M ark
M agidson.6 Explicitamente inspirado pelos trabalhos do mitólogo
Joseph Campbell e filmado em 24 países, o filme apresenta um
retrato global do mundo e seus povos. Baraka é o último filme de
7. O único artigo acadêmico que encontrei sobre Baraka até hoje foi a resenha de:
Staples, Amy. Mondo Meditations. American Anthropologist, n. 96, p. 662-668,1994.
etnográfico.8O primeiro é exemplificado pelo documentário po
lítico (incluindo filmes de propaganda), desde o trabalho de Dziga
Vertov até o Terceiro Cinem a, e concebe o filme com o um
catalisador para a m udança social/política. O docum entário
etnográfico tem historicamente se preocupado com a docum en
tação das cham adas sociedades ern risco de desaparecim ento
ameaçadas pela modernidade global. Enquanto Baraka apresen
ta semelhanças com essas categorias, sugiro aqui que não per
tence a nenhuma e é, de muitas maneiras, oposto a cada uma
delas. A fascinação de Baraka com as características geográficas
espetaculares da paisagem natural (quedas d ’água, vulcões, des
filadeiros profundos, arcos naturais etc.) se alinha a um gênero
de documentário que Nichols não considera, o docum entário
sobre a natureza, que tem sido básico na televisão estadunidense
desde os filmes do Maravilhoso M undo de Disney, da década de
1950, até o D iscovery Channel. Além das telas de televisão, os
docum entários sobre a natureza têm sido m uito distribuídos
através dos cinemas IMAX e Omnimax. Ainda, em bora o tema
faça com que Baraka tenha algo em com um com tais filmes - ele
foi distribuído em cópias de 70 mm. - , não foi distribuído para
os cinemas IMAX. Pode-se até sugerir que Baraka ultrapasse as
fronteiras do próprio cinema, tendo, de algum a form a, mais em
comum com outras mídias, como música, pintura de paisagens
ou fotografia.
8. Ver: Nichols, Bill. At the Limits of Reality (TV). In: Blurred Boundaries’, questions of
Meaning in Contemporary Culture. Indiana: Indiana University Press, 1994. p. 43-63.
Sugiro aqui que, para compreender a significância cultural
de um filme como Baraka>precisamos ir além dos gêneros cine
matográficos, e, até mesmo, além do próprio cinema. Isso en
volve tratá-lo menos como um documentário, e mais como uma
modalidade - cinematográfica, neste caso - de um discurso que
se estende além de um espectro mais amplo de mídia e reflete
processos históricos e globais culturais maiores. Embora Baraka
seja um caso especial, ele é sintomático de processos que aconte
cem na produção cultural hoje e, por essa razão, pode servir como
um modelo útil para repensar velhos paradigmas e para elaborar
direções futuras para os estudos de mídia.
9. Mesmo nas sequências de dança em que a música que acompanha a dança pode
ria ter sido gravada ao mesmo tempo, a trilha sonora não ¿ “natural”; foi dublada
depois. Agradeço a David Tamés por ter me mostrado isso.
f
N ew Age Michael Stearns.10Logo após o lançamento de Baraka>
seu produtor, Mark Magidson, lançou o documentário de um
concerto da dupla Dead Can Dance chamado Toward The W ithin
(1993) - Em direção ao interior - , que inclui um videoclipe com
trechos deBaraka. Poderíamos, então, perguntar se Baraka é mais
bem visto como um filme com uma trilha sonora de World M usic
ou uma extensão de um vídeo de World Music. Se certas sequências
de Baraka poderiam tranquilamente passar como vídeos de músi
ca na MTV, o contrário seria igualmente verdadeiro: um videoclipe
de Deep Forest>um projeto de dois produtores franceses que com
bina amostras de canções de “pigm eus” da África Central com
batidas de dança urbana, parece admiravelmente uma versão de
cinco minutos de Baraka.
Essa intersecção entre World M usic t cinema não é exclusiva
de Baraka. Nos últimos anos, um número crescente de filmes com
trilhas sonoras de World M usic começaram a aparecer.11A meta
morfose da World M usic nos filmes mundiais de certa forma sur
preende. Um aspecto da integração horizontal das indústrias
10. Sobre World M usic, ver meu artigo ‘“World Music’ and the Global Cultural
Economy”. In: D iaspora:A Journal o f Transnational Studies, 2.2> p. 229-242,1992.
Tratando a WorldM usic não como uma categoria etnomusicológica, mas comer
cial, como a música vendida na seção “ WorldM usic7das principais lojas de discos
do Primeiro Mundo. O artigo busca identificar algumas das condições subjacentes
à emergência da World M usic como um novo tipo de mercadoria no mercado
global.
1 1 .0 filme sobre música cigana de Tony Gatlif, Latcho Drom (1993), poderia ser
descrito como um filme de World Music, que tem afinidades com Baraka. Até o
Fim do Mundo (1993), de Wim Wenders, exibe uma trilha sonora mundial gené
rica, incluindo canções de “pigmeus” do tipo Deep Forest.
midiáticas da década de 1990 tem sido a relação cada vez mais
simbiótica entre o cinema e a música popular, e o lugar central da
World M usic em Baraka pode ser visto como típico nesse sentido.
A inter-relação entre a World M usic e o cinema no caso de Baraka >
entretanto, levanta algumas questões interessantes. Se a emergência
da World M usic como uma categoria de m arketing maior dentro
da música popular pode ser atribuída aos processos globais, tais
como, a descolonização, a imigração ou a globalização do capitalis
mo, como esses processos têm afetado o cinema? O “cinema m un
dial” hoje emerge como uma nova categoria de cinema comercial
comparável à emergência da World M usic7.
Na ordem mundial imperial, os encontros ocidentais com seus
outros colonizados foram mediados por, e grandemente confinados
a, administradores (sobretudo homens) coloniais, missionários,
comerciantes, cientistas naturais, antropólogos e exploradores di
versos. O que Mary Louise Pratt chama de “zona de contato” - o
espaço transcultural da troca simbólica criada pelo encontro entre
os poderes coloniais do Ocidente e as pessoas originárias de suas
colônias - permaneceu muito restrito aos postos do próprio
colonialismo.12Tudo isso - não deveria ser enfatizado - agora m u
dou. No mundo pós-independência de corporações transnacionais,
mercados globais de trabalho, viagens aéreas de longa distância e
televisão global, nas sociedades antes separadas pelas vastas dis
tâncias espaciais, encontram-se e convivem, de forma rotineira,
13. Ver: Marcus, George E.; Fischer, Michael (Eds.). Anthropology'as Cultural Critique:
an Experimental Moment in the Human Sciences. Chicago: University of Chicago
Press, 1986.
14. Sobre os ex-primitivos, ver: MacCannell, Dean. Cannibalism Today. In: Empty
Meeting Grounds: The Tourist Papers. New York: Routledge, 1992. p. 17-73. Para
urn relato prazeroso do etnoturismo, ver: O’Rourke, P. J. Up the Amazon. Rolling
Stone, p. 60-72,25 nov. 1993.
de classificação iluministas, com a possibilidade dos sistemas de im
por um modelo unificador e padrão de significado sobre o mun
do, levou à emergência do que ela chama de uma “consciência
planetária” europeia15. No mundo da zona de contato global do
final do século XX, essa mitologia eurocêntrica do mundo, fiel
mente passada adiante pela National Geographie, pela The Family
o f Man e pelos documentários de David Attenborough, tornou-se
onipresente na cultura de massa contemporânea, desde os slogans
de “We Are The World” até as United Colors o f Benetton. Como o
mundo tornou-se a aldeia global, parece que a cultura de massa
euro-americana procurou não somente capturar, mas também
comercializar a aldeia global. Os publicitários foram rápidos em reco
nhecer que não somente os mercados globais, mas o próprio con
ceito do global pode ser uma ferramenta de marketing poderosa.
No campo do cinema, os processos que descrevi talvez se
jam mais evidentes na dissolução da dominação dos filmes do
Primeiro Mundo por Hollywood e pelos cinemas europeus. Mais
do que em qualquer outro período na história do cinema, os fil
mes disponíveis nas cidades cosmopolitas como Nova Iorque, To
ronto, Londres, Paris ou Sidney possuem uma variedade global,
em vez de somente euro-americana. Os festivais de cinema da Amé
rica do Sul, da África e da Ásia complementam o número crescente
de filmes transnacionais e da diáspora. O documentário etnográfico,
antes um subcampo especializado de antropologia acadêmica,
atualmente atrai grande público para eventos como o Festival Anual
Margaret Mead em Nova Iorque. Para consumidores em cidades
cinema e comida
como essas, ir ao cinema e comer fora se tornaram mais ou menos
ações intercambiáveis, escolhe-se um filme como se escolhe um
restaurante. É uma questão de escolha a partir de um cardápio de
opções étnicas.16Embora o público desses cinemas seja, sem dú
vida, branco e de classe média em sua maioria, seria errôneo
presumir que ele se abasteça (por assim dizer) exclusivamente de
exotismo euro-americano. De fato, em cidades como aquelas que
mencionei, seus públicos podem ser transnacionais como os pró
prios filmes, e assisti-los pode ser uma maneira tanto de se
reconectar com a própria cultura, quanto de satisfazer uma curio
sidade turística sobre alguém.
Outra consequência dos processos globais que descrevo tem
sido a emergência do que pode ser chamado de imaginário global
dentro do filme euro-americano. Baraka é, de fato, somente um
filme de uma série de filmes que coletivamente atestam a emergên
cia desse imaginário global no cinema euro-americano desde a dé
cada de 1950. Três principais categorias podem ser distinguidas: o
filme de exploração global, mais bem exemplificado pelo notório
M ondo Ckr?e( 1963); a vanguarda internacional (Wenders, Herzog,
16. Vale a pena observar nessa conexão quão frequentemente a comida é o foco central
dos filmes não ocidentais ou, até mesmo, dos filmes anglo-americanos (A Festa de
Babette, Tampop o, Dim Sum , Como Água para Chocolate; entre inúmeros outros):
é possível assistir a O Banquete de Casamento, de Ang Lee, ou a Comer Beber
Viver e comer fora em um restaurante chinês depois. Em tais casos, a diferença
entre comer e assistir, consumir comida exótica e consumir filme exótico se torna
virtualmente imperceptível; o consumo do exótico está presente no próprio filme.
Ottinger, Jarmusch, os irmãos Kaurismaki); e o globalism o de
mesa de café de Powaqaatsion Baraka. Cada uma dessas categorias
pode ser vista como definida por um modo particular de com
prometimento com o mundo que retratam: o carnavalesco (fil
mes M ondo ), o cosmopolita (a vanguarda internacional) e o libe-
ral-humanista (Baraka e filmes semelhantes).
Embora suas origens possam ser rastreadas até os filmes de
aventura colonial da década de 1930, M ondo Caneo, a série cada
vez mais abominável de filmes que inspirou estão entre os primei
ros exemplos do surgimento de um imaginário global no cinema
comercial euro-americano.17 O mundo que retratam é reconheci
damente o voyeurismo de P. T. Barnum, anomalias, espetáculos de
carnaval, um mundo exótico e grotesco de rituais “bizarros” e prá
ticas culturais, sejam práticas de sociedades “civilizadas”, sejam de
sociedades “primitivas.” De form a significativa, entretanto, dado
que os filmes M ondo originais datam da década imediatamente
após a independência das antigas colônias europeias, a m undo
que retratam é tam bém um m undo em caos, no qual a frágil
infraestrutura da “civilização” erguida pelos poderes europeus é
varrida pela selvageria primitiva (Africa Addio); sua visão do m un
do, portanto, permanece reconhecidamente neocolonial.
O cinema cosmopolita da vanguarda internacional consti
tui um segundo modo do imaginário global cinematográfico. Nos
filmes de Marker, Wenders, Herzog ou Jarmusch, toma a forma de
17. Sobre os filmes Mondo, ver: Staples, Amy. An interview with Dr. Mondo. American
Anthropologist, 97.1, 1995.
um a observação m undana, um tanto cansada, um a ordem m un
dial cada vez m ais transnacional e da m udança cultural associada
com essa ordem. Paris, Berlim, Nova Iorque, Rom a, Helsinki, São
Paulo, Ulan Bator: autoconscientem ente nôm ades, essas cidades e
seus protagonistas despreocupados são os descendentes pós-m o-
dernos de fíâneur de Baudelaire, cosm opolitas sem raiz procuran
do seus cam inhos ao redor do globo em busca do sem pre novo e
diferente.18 O turism o, os p on tos turísticos e os p róprios turis
tas são tipicam ente m otivos de desdém e sátira, em bora diretores
e protagonistas não sejam m enos turistas que outras pessoas. O
que talvez seja in teressan te so b re os film es desse tip o é seu
cosm opolitism o evidente, com seu inerente desdém em relação
ao paroquialism o do nacional. O apelo a tal ideologia torna-se
m ais com preensível quando lem bram os que um a das form as mais
prestigiadas de consum o burguês evidente, neste século, tem sido
18. Sobre flâneur, ver: Baudelaire, Charles. O Pintor da Vida M oderna. In: C uriosida
des E stéticas: a arte rom ântica e outras obras críticas. Paris: Classiques Garnier,
1962; e Benjamin, Walter. Charles Baudelaire: Um Lírico no Auge do Capitalismo,
trad. Harry Zohn. Londres: Verso, 1983. A literatura sobre o fíânerieé extensa; para
um a introdução, ver: Tester, Keith (Ed.). The Flâneur. Nova Iorque: Routledge,
1994. O flâneur nunca foi (e não é) exclusivamente masculino, é claro; e ñánerie
como um a atividade especificamente feminina no século XIX também foi bem do
cumentada, ver: Wolff, Janet. The Invisible Flâneuse: Women and the Literature of
Modernity. Theory, C ulture an d Society, edição especial sobre “ The Fate of
Modernity’’, 2.3,1985; Bowlby, Rachel. Ju st Looking: Consumer Culture in Dreiser,
Gissing, and Zola. London: Methuen, 1985; Wilson, Elizabeth. The Sphinx in the
City. Urban Life, the Control o f Disorder, and Women. Berkeley: University of
California Press, 1991. A última encarnação do flâneur é o flâneur eletrônico, vague
ando pela rede global de computadores da World Wide Web como sua contraparte
baudeleriana vagueou na cidade do século XIX; ver: Mitchell, William J. City o f Bits:
Space, Place, and the Infobahn. Cambridge, Mass.: MIT Press, 1995. p. 7.
a viagem . No cinem a de Wenders ou Jarm usch, Herzog ou
Kaurismaki, o publico euro-americano de classe média pode ex
perimentar o glam our do cosmopolitismo sem sair de casa, mes
mo que o orçamento o impeça de viajar pelo mundo tão facil
mente quanto os diretores e protagonistas parecem fazer.
O que chamei de globalismo de mesa de café de Baraka tem
uma história mais longa tanto em relação aos filmes M ondo quan
to ao cinema cosmopolita da vanguarda, estendendo-se desde a fun
dação da National Geographie Society em 1888, passando pela m os
tra fotográfica e pelo livro da década de 1950, The Family o f Man,
de Edward Steichen, e chegando nas mitologias globais contem
porâneas do Discovery Channel}9Ideologicamente, o globalismo
assume a forma de um humanism o liberal, cuja metáfora quase
obsessiva é aquela da família. Apesar de diferenças culturais, ele
afirma, a raça hum ana é, no fim das contas, parte da m esm a fam í
lia global, compartilhando um conjunto com um de experiências
de vida: nascimento, morte, sexualidade, filhos, comida, amor, cren
ça no sobrenatural, guerra. Essa ideologia, cultuada por muito tem
po, neste século, nas mesas de café (e, desde a década de 1950, nas
telas de TV) das famílias estadunidenses de classe média, de m o
derada intelectualidade, permanece onipresente hoje, desde livros
de fotos recentes à mitologia N ew Age de Joseph Campbell.
19. Para uma visão histórica geral do N ational Geographic, ver: Bryan, C. D. B. The
National Geographic Society. 100 Years of Adventure and Discovery. New York: H.
N. Abrams, 1987. Para uma história crítica, ver: Lutz, Catherine; Collins, Jane.
Reading N ational Geographie. Chicago: Chicago University Press, 1993. Ver tam
bém: Steichen, Edward. The Family o f Man. New York: Simon and Schuster, 1955.
A visão panorâmica de Baraka sobre o natural global e a diver
sidade cultural, sua mensagem de Mundo-Ünico, sua esteticização de
paisagens e sociedades exóticas o situam exatamente dentro da tradi
ção liberal-humanista da National Geographie e da The Family o f
Man. Enquanto documenta a diversidade cultural global, o filme está,
ao mesmo tempo, preocupado com o molde da diversidade dentro
de um humanismo demasiadamente amplo, afirmando um senti
mento de comunidade que transcende a diferença cultural. Como a
National Geographic, o filme de Fricke não tem medo de encarar as
realidades cruéis da ordem mundial do século XX, como mostra sua
passagem por Dachau, pelos campos de matança do Camboja, pelos
poços com queima de petróleo no Kuwait, pela Praça Tiananmen,
pelas operárias nas fábricas de cigarro na Indonésia ou pelas prostitu
tas de Patpong e, ao mesmo tempo, evita assumir posições políticas e
críticas que poderiam causar impacto sobre seu sucesso comercial,
adotando o ponto de vista da “testemunha” universal. Como a National
Geographic, o filme parece mais preocupado com o impacto estético
ou emocional de seus sujeitos do que com as histórias geopolíticas
ou desigualdades econômicas relacionadas a eles. O sentimento
dominante em suas sequências de desabrigo, pobreza, prostituição
ou trabalho alienado é de lamento: “Se pelo menos pudéssemos
perceber que somos todos parte da mesma família!”, parece dizer
o filme.
Em seus artigos sobre Baraka e filmes Mondo, Amy Staples
descreveu ambos como sendo “a antítese do filme etnográfico”, le
vantando a questão da relação entre Baraka e filmes como Mondo
Cane. Quanto ao tema e à estrutura formal, os filmes aparentemen
te têm muito em comum: como Mondo Cane, Baraka constrói seu
retrato do m undo através de uma estrutura não linear de colagem
com cortes desconcertantes, que passam abruptamente de uma
cultura a outra e com uma descontextualização radical de seus
sujeitos. M esm o assim , essas estratégias são em pregadas nos dois
filmes com propósitos ideologicamente opostos (se igualmente
unlversalizantes): se o ponto de vista de M ondo Cane era essencial
mente niilista, preocupado com a desconstrução da oposição civili
zado/selvagem de hoje e em afirmar a barbaridade fundamental da
humanidade, a visão humanista de Baraka da espiritualidade global o
torna, de muitas formas, a antítese de M ondo Cane. Se Baraka é um
descendente tardio da exibição colonial e da National Geographic, o
filme M ondo (“o filho feio e bastardo do documentário e do cinemi-
nha” ) é seu gêmeo demoníaco.20
As três categorias de cinema global que identifiquei deveriam
ser vistas não como desenvolvimentos sequenciais, mas como ten
dências paralelas dentro'da cultura de mídia euro-americana con
temporânea. Longe de ser um regresso ao neocolonialism o da
década de 1960, por exemplo, os filmes M ondo têm passado por
uma renovação nos últimos anos como parte da loucura atual pelo
kitsch exótico, de “ Filmes Incrivelmente Estranhos” até com pila
ções da música lounge “ Exótica” das trilhas sonoras de filmes am
bientados na década de 1950. Com o o exotismo autoconsciente
do recente livro de cabeceira “alternativo” Strange Ritual, de David
20. Charles Kilgore (também conhecido como D r. Mondo), citado em: Staples, Amy.
An Interview with Dr. Mondo. American Anthropologist, p. 111.
Byrne, deixa claro, os rótulos “bizarro”, “sobrenatural” e “estranho”
de M ondo hoje estão bem vivos, ainda que de forma deslocada e
irónica.210 voyeurismo exótico das décadas de 1950 e 1960 reapare
ce na década pós-moderna de 1990 como camp global.
Nostalgia imperialista
21. Byrne, David. Strange Ritual'. Pictures and Words. San Francisco: Chronicle Books,
1995.
22. “A nostalgia imperialista gira em torno de um paradoxo: uma pessoa mata alguém e
então fica de luto pela vitima. De uma maneira mais atenuada, alguém deliberadamente
altera uma forma de vida e então se arrepende porque as coisas não permaneceram
como eram antes da intervenção. Em mais uma eliminação, as pessoas destroem
seu meio ambiente e então adoram a natureza. Em qualquer de suas versões, a
nostalgia imperialista usa uma pose de ‘anseio inocente’ não só para captar a imagi
nação das pessoas como também para esconder sua cumplicidade com a dom ina
ção brutal.” Rosaldo, Renato. Nostalgia Imperialista. In: Culture and Truth: The
Remaking of Social Analysis. Boston: Beacon Press, 1989. p. 69-70.
comprometimento do sujeito colonial - até mesmo por responsa
bilidade - com o estado das coisas pelas quais ele está lamentando.
De Tristes Trópicos de Lévi-Strauss até o contemporâneo turismo
étnico, a cultura euro-americana é permeada por essa nostalgia, e,
como os recentes documentários sobre a criação de Fitzcarraldo de
Herzog ou Apocalypse N ow de Coppola (e os próprios filmes)
mostram, é igualmente difundida no cinema contemporâneo.23
A melancolia de Baraka em sua viagem mundial por lojas
que exploram empregados, favelas, desabrigados, pobreza, casas
de prostituição e cenários de guerra civil e internacional oferece
um exemplo impressionante do que Rosaldo chama de nostalgia
imperialista. Um filme como Baraka, Rosaldo poderia argumen
tar, brota precisamente da culpa do Primeiro Mundo capitalista
em relação à desordem social, econômica e cultural que ele gerou
no mundo como um todo, acompanhada de uma nostalgia por
um mundo puro e imaginário anterior à modernidade capitalista.
Esse mundo imaginário, o objeto da nostalgia, é aparente na reve
rência do filme ao meio ambiente, às sociedades aborígines e aos
sistem as religiosos pré-m odernos do budism o, hinduísm o,
islamismo e cristianismo. Assistir a filmes como Baraka, poderia
se dizer, capacita o público do Primeiro Mundo a se comover com
24. Cowie, Peter (Ed.). World Cinem a: D iary o f a Day. Woodstock, NY: Overlook Press,
1994. Ver também: Nowell-Smith, Geoffrey (Ed.). The O xford D ictionary o f World
Cinema. Oxford: Oxford University Press, 1996; e Stone, Judy. Eye on the World:
Conversations With International Filmmakers. Los Angeles: Silman-James Press,
1997. No próprio cinema, o filme francês Lum ière et Com pagnie{ 1995), uma com
pilação de quarenta curtas feitos com a câmera original dos irm ãos Lumière por
diretores de filme de todo o mundo, tem, de torma semelhante, pretensões globais.
25. Nos últimos anos, estes livros “ um dia na vida” apareceram com o um a variante
interessante do que eu chamei anteriormente d e “globalismo de cabeceira.” Tendo
começado suas vidas como uma série de relatos de culturas nacionais {Um D ia na
Vida da América, Um Dia na Vida do Japão etc.), eles recentemente foram além do
nacional, com o o recente Um Dia na Vida do CyberEspaço, de Rick Smolan,
atesta. As am bições panorâm icas e globais de tais livros fazem com que eles te
nham uma forte afinidade com filmes com o Baraka-, ficamos imaginando quanto
tem po vai levar para a publicação de Um D ia na Vida do M undo.
26. Sobre a econom ia cultural global, ver: Appadurai, Arjun. Disjuntura e Diferença
na Economia Cultural Global. In: D im ensões C ulturais da Globalização. Lisboa:
Teorema, 2004.
típico da produção de filmes e a frustração normalmente associa
da a essa atividade. Ao mesmo tempo, o livro tem vários proble
mas. Um dos mais obvios é que, enquanto nos diz muito sobre o
fazerum filme, não nos diz nada sobre o não menos importante ato
de assistirm filme. E dessa forma, concentrando-se na produção em
vez da recepção, o livro, de forma questionável, nos apresenta so-
mente metade do quadro do cinema mundial contemporáneo, ig
norando completamente sua outra metade: o público de cinema.27
Um segundo problema reside nas suposições totalizantes
subjacentes à categoria do próprio “cinema mundial”. Quaisquer
que sejam as condições geopolíticas e econômicas para sua emer
gência histórica, e quão variadas sejam suas inúmeras manifesta
ções locais, presume-se que a criação de um filme é hoje uma for
ma cultural global. Poderíamos dizer que essa suposição parece
incontestável, uma simples observação de fato; mas não pretendo
contestá-la aqui. Ao mesmo tempo, é interessante que a categoria
de “cinema mundial”, como exemplificada por livros como este
em questão aqui, foi usada exclusivamente pelos estudiosos e crí
ticos de cinema do Primeiro Mundo, e não por aqueles das maio
res nações pós-coloniais produtoras de filmes. Além disso, a ob
servação ostensivamente neutra de “cinema mundial” como um
fato do mundo contemporâneo precisa ser situada dentro do con
texto histórico mais amplo do imperialismo europeu e de tentati-
27. Em algum outro lugar, nos estudos contemporâneos sobre cinema, uma atenção
considerável foi dedicada ao estudo dos públicos globais, por exemplo: Ang, Ien.
Desperately Seeking the Audience. New York; London: Routledge, 1991; e Living
Room Wars-. Rethinking Media Audiences for a Postmodern World. New York;
London: Routledge, 1996.
vas semelhantes dos poderes coloniais para supostamente impor
categorias “universais” ao mundo como um todo. Por fim, vale a
pena lembrar que, precisamente devido à dificuldade histórica do
cinema com o colonialismo, muitos diretores pós-coloniais - refi
ro-me a diretores do Terceiro Cinema em particular - se preocupa
ram exclusivamente com a definição de suas práticas cinematográ
ficas em oposição aos cinemas estadunidense e europeu. Embora
tais diretores hoje tenham de operar dentro da economia cultural
global como qualquer outro, provavelmente estarão mais apreen
sivos com a assimilação dos seus trabalhos dentro da categoria
“cinema mundial” do que, digamos, um diretor francês ou inglês.
Resumindo, a categoria de “cinema mundial” prova, em uma aná
lise mais detalhada, ser menos “natural” e menos problemática
como pareceria em princípio e pode, até mesmo, ser vista como
um construto totalizante que, de alguma forma, torna a categoria
de “cinema mundial” a contrapartida dos estudos cinematográfi
cos para Baraka.
Outro problema do Cinema Mundial\ e mais relevante para
a presente discussão, como sugeri, é o fato de que, enquanto o
livro revela muito sobre os processos globais que afetam a forma
como a produção cinematográfica acontece hoje, pouco nos diz
sobre a emergência de um discurso a respeito da globalização den
tro do próprio cinema global contemporâneo. Está claro, pelo
menos, que a globalização teve, e continua tendo, um impacto
significativo sobre o conteúdo fílmico no mundo todo, seja a obra
feita por um diretor etnográfico estadunidense, um diretor euro
peu de vanguarda, um diretor africano morando em Paris ou um
iraniano em Los Angeles.
A comparação entre o Cinema M undial e Baraka leva, en
tão, à conclusão de que a categoria de “cinema mundial” precisa
ser repensada. Enquanto o “cinema mundial” e o “cinema global”
têm sido, nos últimos anos, matéria de atenção crítica crescente,
um corpo substancial de filmes que se engajam em um discurso
sobre a globalização - do qual Baraka é somente um exemplo -
foi, até o momento, deixado de fora da discussão. Se for correto,
vale a pena refletir por que isso acontece. Talvez se deva a uma
confusão conceituai sobre os usos do próprio termo “cinema mun
dial” que, embora cada vez mais presente na atualidade, é usado
em um sentido muito diferente de “música mundial”. Como vi
mos há pouco, o termo é mais frequentemente utilizado para sig
nificar “a indústria de cinema global”, em vez do sentido mais res
trito, que uso neste texto, de filmes que explicitamente se inserem
em um discurso sobre algo chamado “mundo”. À parte das impli
cações ideológicas de um termo tão globalizante, poderíamos que
rer nos informar sobre a utilidade analítica de um a categoria
conceituai que - na esfera da produção cinematográfica, pelo me
nos - inclui potencialmente tudo.
Outra razão pela qual as discussões sobre o “cinema mundial”
e o “cinema global” envolveram os tipos de filmes que venho dis
cutindo aqui pode ser simplesmente uma suspeita sobre o global
em si. Acostumamo-nos a valorizar a particularidade do local e a
rejeitar discursos globalizantes, com suas pretensões de falar por to
dos, como monolíticos e hegemônicos. Isso pode ser algo bom;
mas, enquanto tivermos uma boa razão para suspeitar do global,
não significa que, se o ignorarmos, ele simplesmente desaparece
rá. De fato, o oposto parece mais verdadeiro: quanto mais o igno-
ramos mais difundido ele se torna. Estudos do cinema “global” ou
“mundial”, entretanto, têm a tendência de se concentrar primeira
mente nas práticas cinematográficas transnacionais ou locais, de
finidas por resistência ao global (frequentemente tratado hoje em
dia como sinônimo de capitalismo), em vez de se concentrar no
global como tal.28 Sem negar a importância de práticas de resis
tência, precisamos também perguntar o que está em jogo no con
tínuo desejo euro-americano de enquadrar a diversidade cultural
global dentro de seu olhar que inclui tudo, e se filmes como Baraka
não são, de muitas formas, uma resposta contra-hegemônica aos
cinemas atuais transnacionais de resistência. Em uma ordem m un
dial pós-colonial na qual as sociedades do Primeiro Mundo se
encontram cada vez mais fragmentadas pela imigração do Tercei
ro Mundo, com sua homogeneidade cultural desestabilizada e con
testada pelas culturas de suas antigas colônias, a visão global de
Baraka pode ser vista como uma reação à ameaça que tal mundo
apresenta à autoridade cultural euro-americana, que, ao reinscrever
o mundo dentro do campo reafirmativo de um olhar euro-america
no, procura uma estrutura discursiva neocolonial sobre um m un
do escorregadio cada vez mais além de seu controle.
Repensar o “cinema mundial” hoje, em primeira instância,
envolve diferenciá-lo das indústrias de filmes globais, uma catego
28. Ver: Jameson, Fredric. The Geaf>oliticãiAesthetic". Cinema and Space in the World System.
Bloomington, Indiana: Indiana University Press; London: British Film Institute, 1992;
Ver: MacDonald, Scott. Premonitions of a Global Cinema. In: Avant-Garde Film:
Motion Studies. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 123-125.
ria que potencialmente inclui tudo, e dos cinemas transnacionais,
definidos por sua política de diferença multicultural. Envolve tam
bém realocar o próprio cinema como um meio dentro do contex
to maior das indústrias culturais globais. Isso significa tratar o
cinema, como historicamente tem sido o caso, não isolado de
outras mídias, mas como parte de um continuum maior, desde
diário de viagem, de moda até música popular, que articulam respostas
euro-americanas para as novas realidades multiculturais da ordem
mundial pós-colonial. O cinema euro-americano tem tido, e conti
nuará a ter, um papel significativo na articulação dessas respostas,
mas esse papel, até o momento, praticamente não foi analisado.
Concentrar-se nele mais diretamente pode levar a um entendi
mento certamente menos globalizante, mas, no final das contas, mais
claro, do lugar do “cinema mundial” dentro da economia cultural
global contemporânea.
O cinema intercultural
na era da globalização
Hudson Moura
Nos filmes A
esquiva ( VEsquive, 2004), de Abdellatif Kechiche,
Em direção ao sul( 2005), de Laurent Cantet, e Portas do paraíso
(2006), de Swel e Imael Noury, as diferenças e as tensões sociais
geram um mosaico multicultural e excludente. Essas tensões entre
classes, subalternos e colonizadores, e os vários conjuntos de uma
mesma sociedade vivendo lado a lado, se fazem sentir na própria
materialidade cinematográfica. Kechiche, em A esquiva J, oferece à
linguagem , tanto cinem atográfica quanto falada, um a nova
performance, distante dos clichês, e acentua as particularidades de
duas línguas (o erudito e o popular) entre dois m undos. Esta pon
te entre essas duas realidades distintas (o imigrante e a terra de
inserção) constrói um novo imaginário na tela. Mas até que pon
to esses cineastas querem documentar, mistificar ou vangloriar a
realidade-situação dos imigrantes? Até onde podem os afirmar que
esta nova “periferia” cinematográfica deslancha um novo concei
to de “adaptação” no discurso midiático?
O cinema intercultural não pode ser entendido simplesmente
como multicultural ou como pluralista (cultura, religião, políti
ca), pois ele atribui uma tensão que se deixa perceber pela im po
sição do prefixo “inter”. Isso significa que o intercultural determi
na sempre uma fronteira e uma tensão do “entre” duas ou mais
1. Eu faço uma análise sobre a questão da comunicação num artigo precedente: “Le
cinéma émergent et ses pratiques interculturelles”, publicado pela revista Les Enjeux
de Tinformation et de ¡a communication (Mou ra, 2007).
culturas (ou, em termos cinematográficos, “entre” planos). Essas
culturas não são amalgamadas ou juntadas num discurso unifor
me e homogêneo, como poderíamos caracterizar o hibridismo e
o multiculturalismo. Num discurso heterogêneo e único no seu
gênero, interculturalidade é colocar em relação duas ou várias
culturas e identidades. Ela pode ser também aquela que não com
partilha. Isto é, um processo que marca uma tensão dos diferen
tes, o que pode ser mesmo da ordem do intransponível e gerar a
incompreensão.
A interculturalidade no cinema pressupõe uma emergência de
formas e de discursos, o que o torna difícil de ser classificado. Sua
prática desvenda sua característica única, tanto do ponto de vista
técnico quanto do tema tratado. O intercultural não é um dado fixo
que pede uma análise, mas um processo, uma comunicação, uma
correlação: a análise ela mesma. “Assim, se o multicultural pára no
nível da constatação, o intercultural opera uma démarche, ele não
corresponde a uma realidade objetiva.” (Abdallah-Pretceille, 2002).
Aproximando o caráter marginal e o alternativo do cinema
intercultural à concepção deleuziana de literatura menor, sua carac
terística de agente coletivo da enunciação é inegável. O privado se
torna de uma certa maneira um assunto público e sociopolítico
que vai buscar uma reação do espectador. O intercultural pertence à
questão cultural, entre indivíduos, identidades e grupos, entre o
singular e o universal. Apesar de estes dois termos - cultural e
intercultural - não se fundirem em si mesmos, eles podem ser
primordiais para compreendermos as diferenças, como tão bem
caracterizou Abdallah-Pretceille, pois um indivíduo vindo de um a
cultura não pode ser considerado seu representante. Entretanto,
o cinema intercultural é com certeza um agente coletivo, pois o
intercultural é sempre e fundamentalmente concebido a partir
do relacional, colocando a cultura do Outro à prova e como pas
sível de troca.
É como se o cinema intercultural contribuísse através de sua
representação/correlação “ à invenção do povo”2 (Deleuze, 1985,
p. 283). O povo assim como a história não são dados pelo filme ou
eles ainda não estão lá, eles serão esboçados ou nascerão no filme
pelo intermédio de uma análise/leitura do espectador. Dessa ma
neira, o cinema intercultural se caracteriza como uma possibili
dade de utornar-se filme”, na qual o espectador é convidado a fazer
a síntese.
Filmes como Calendário, de Atom Egoyan, ou Viagem na
Armênia , de Robert Guédiguian, não ensinam e não informam nada
além sobre a história do genocídio ou da diáspora armênia, mas
servem como pontos de reflexão e de questionamento. Enfim, é
dentro desse formato “alternativo” e não “classificatório” que o ci
nema intercultural quer ser inserido pela simples razão de não
querer cair nas armadilhas do clichê e do convencional. A experi
mentação na forma e no conteúdo e o inesperado de sua proposta
fazem parte de sua característica emergente de pensar fora dos
padrões dominantes e estabelecidos - outside the box.
2. “No cinema Americano [... ] o povo já está lá, real antes de ser atual, ideal sem ser
abstrato.” (Deleuze, 1985, p. 282).
A intermidialidade e a crise do sujeito
[...] o fluxo de sons e imagens adquiriu uma rapidez tal que esta não
se deixa mais ser submetida/entendida pela linguagem e reduzida a
uma série de agenciamentos lógicos. Qual conhecimento então? E
qual sujeito do conhecimento? E o cinema, qual papel ele atua no
aparecimento deste novo conhecimento? (Mariniello, 2000, p. 10).
Uma vida sem dignidade não vale nada. Sobretudo, quando ela
nos lembra, dia após dia, nossa humilhação e nossa fraqueza. E o
mundo observa tudo isto, covardemente, indiferente. Se a gente
se encontra sozinho em face dessa opressão, a gente deve encon
trar um meio de pôr fim a essa injustiça. Eles devem entender que
se não há segurança para nós, não haverá tampouco para eles.
Eles convenceram o mundo todo, e a eles mesmos, de que eles são
vítimas. Como pode o ocupante ser vítima? Se eles endossam o
papel de opressor e de vítima, eu não tenho outra escolha que a
de ser, ao mesmo tempo, vítima e assassino.
A ameaça iminente de sua integridade física e da cultura de
seu povo é incorporada literalmente pelo personagem através de
um ato incompreensível de resistência e alteridade. Ele se afirma
integralmente, corpo e mente. A cultura do Outro, ou seja, a israe
lense, está presente-ausente na tela de uma maneira sutil, subjacente
e onisciente. Essa tensão e opressão entre culturas legitima o dis
curso pessoal do personagem e o torna imediatamente político e
identitário, como um rompimento de barreiras e auto afirmação.
O ato extremo de se imolar junto com o Outro revela também, no
filme, a impossibilidade de continuar a sustentar uma imagem ou
história que não o corresponde.
Os filmes emergentes tentam quebrar as amarras do cinema
de gênero, que por décadas vem aprisionando e impedindo temas
como a migração e a colonização, e estabelecer uma real e complexa
noção do tema da interculturalidade nas telas. A estereotipagem do
migrante pelo cinema clássico influencia na maneira, por exemplo,
de como pensamos os conceitos de interculturalidade ou de exílio.
Se fizermos uma analogia entre gênero cinematográfico, com
suas estruturas, tipos e normas, e uma caixa, essa imagem nos dá
uma ótima possibilidade de pensarmos as estratégias dos cinemas
emergentes e interculturais nas suas tentativas de romper com es
tas embalagens e se conceberem “fora da caixa” ( outside the box).
Os filmes In this world (2002), de Michael W interbottom,
e Zulu 9 ( 2001), de Alan Gilsenan, mesclam os gêneros cinemato
gráficos, documentário e drama, e colocam a “caixa” não como
uma simples metáfora, mas como uma prática concreta do contra
bando de imigrantes. Os filmes mostram alternativas desesperadas
dos migrantes para cruzar as fronteiras, submetendo-se à exploração
dos atravessadores que os contrabandeiam de forma ilegal através
de contéineres pela Europa.
No filme de Winterbottom, dois jovens escapam da miséria
e da guerra do Afeganistão pagando atravessadores, a fim de po
derem cruzar as fronteiras de vários países ocupados e em guerra
e conseguirem chegar a Londres. Eles tomam os caminhos mais
difíceis e inusitados, como cruzar desertos, atravessar montanhas
durante a noite ou viajar dentro de um contêiner sem luz e com
pouco ar. Zulu 9 (2001), de Alan Gilsenan, mostra o contrabando
de imigrantes africanos para a Irlanda em caminhões-baús de car
ga tóxica.
O neoliberalismo econômico abriu as portas para a globalização
de produtos e serviços, inclusive a importação e a exportação ilegal
de mão de obra barata. Os migrantes tornam-se commodities eco
nômicas, objetos transnacionais (Marks, 2000; Herr, 2007). Esse
movimento do mundo conhecido (lugar de origem) ao mundo
ainda não conhecido (exílio) representa movimentos através de
um apparatus do estado em que uma pessoa é transportada e radi
calmente deslocada de seu espaço. A caixa é a transição, o transpor
te, uma jornada impossível de ser representada. Enquanto o cinema
de gênero age como fornecedor de fantasia e desencadeador da
diferença, a representação de pessoas imigrantes repousa numa
tensão entre fantasia e experiência da realidade (Herr, 2007). Com
essa realidade difícil de apreender é que os filmes emergentes ten
tam estabelecer uma ponte. Assim, a busca é por uma estrutura
narrativa aberta, como uma ferramenta para opor ou deslocar um
olhar profundamente alienado.
A globalização da imagem
Referências
HERR, Cheryl. Images of migration in Irish film, thinking inside the box.
In: McILROY, Brian (Ed.). Genre and cinem a: Ireland and
transnationalism. New York; London: Routledge, 2007. p. 111-122.
* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N.T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Alguns dos filmes foram apresentados em cinemas antes das apresentações na internet.
Hoje é possível adquirir o DVD da série inteira (temporadas I e II). Na estreia da
segunda temporada no Teatro Apollo, em Nova Iorque, os filmes foram apresenta
dos digitalmente, utilizando-se o programa Microsoft Windows Media Player.
do, por favor, selecione seu país”.2 Embora o mapa-múndi, à es
querda na tela, tenha nuances de branco que separam os diferen
tes territórios geopolíticos em nosso atlas mundial atual, os países
estão agrupados em grupos regionais, com poucas exceções (os
Estados Unidos e o Canadá estão sozinhos). Quando os usuários
dão dois cliques em seu país de origem (se for possível, já que as
dimensões do mapa são mínimas e alguns países são parcialmen
te invisíveis), eles são agrupados com outros usuários de países
que a BMW considera pertencerem ao mesmo público-alvo (ou
seja, toda a África é um só território em termos de acesso com o
clique; o México fica agrupado com a América Central e o Caribe).
Obviamente a opção que o usuário tem ao escolher seu país - e,
portanto, seu status geral, cultural e econômico - faz lembrar o
jogo de tabuleiro War>já que a estrutura do mapa não somente
estabiliza hierarquias de tamanho (o Brasil é m aior que os Esta
dos Unidos em termos de extensão, mas está agrupado dentro do
5. O estúdio Good Machine foi comprado pela Universal. Schamus e Lee, entretanto,
continuaram sua parceria criativa na Universal produzindo filmes como Hulk
(2003) e O Segredo de Brokeback Mountain (2005) através do estúdio Focus
Features, sua subsidiária mais “artística”.
6. 2046, por exemplo, foi coproduzido por Fortissimo Film, France 3 Cinema,
Shanghai Film Studies, ZDF e Arte France Cinema, entre outros. Wong depois fez
seu primeiro filme em língua inglesa, Um Beijo Roubadoycujos direitos foram
comprados pela companhia de produção e distribuição de filmes The Weinstein
Company.
7. No making o f do DVD “The Hire. Primeira Temporada”.
se tornaram grandes franquias e as filiais independentes dos es
túdios de Hollywood se multiplicaram, o título de filme inde
pendente não mais se refere ao mundo experimental do centro de
Nova Iorque de Jonas Mekas ou aos filmes baratos de John
Cassavetes da metade da década de 1950. Como vários estudiosos
observaram, a distinção entre filmes independentes e filmes
hollywoodianos se tornou cada vez mais obscura, a ponto de se
tornar um rótulo de marketing funcionando da mesma forma que
as marcas Versace ou Channel.8A ênfase da BM W ao mostrar os
melhores talentos de Hollywood como estratégia de marketing e a
definição, por Fincher, dos filmes como independentes apontam,
de fato, para a eterna luta entre as empresas de produção - almejan
do produzir receita - e o talento criativo - tentando a todo custo
manter intacta a liberdade criativa. Ao mesmo tempo, entretanto,
marcam a confusão existente no cenário cinematográfico atual quan
do se discute se um filme é uma produção independente ou de
estúdio.9A permutabilidade desses dois termos no contexto de toda
a série The Hire, portanto, não somente indica a insignificância
parcial (quase total, ousa-se dizer) em se distinguir os dois termos
hoje, mas, de forma mais importante, os caminhos convergentes que
esses dois modos de produção tomaram nos últimos quinze anos.
8. Biskind, Peter. Down and dirty pictures. Miramax, Sundance, and the Rise of
Independent Film. New York: Simon & Schuster, 2004; e Holmlund, Chris; Wyatt,
Justin. Contemporary American Independent Film : from the margins to the
mainstream. London; New York: Routledge, 2005.
9. Holmlund, Chris; Wyatt, Justin, idem.
Além disso, a acessibilidade de The Hire, utilizando a quase
total disponibilidade por meio da internet como ferramenta-chave
de marketing.; indica que essa série foi concebida como uma expe
riência de observação on-line potencialmente onipresente em cada
canto do mundo. Enquanto esse grupo de diretores multiculturais
e multinacionais, com abordagens altamente diferenciadas às
potencialidades expressivas e narrativas do meio cinematográfi
co, produziu, de fato, filmes bastante distintos, a presença recor
rente dos carros da BMW os liga como iniciativa fundamental
mente comercial que distribui produtos finais semelhantes: o
engajamento dinâmico dos espectadores na apreciação de uma
variedade de viagens audiovisuais fluidas nas quais o logotipo e a
estrutura da BMW prevalecem. Em outras palavras, The Hire uti
liza a prática ubíqua no cinema contemporâneo da colocação do
produto à frente de sua estrutura textual: o que mais importa, no
final das contas, são os diferentes modelos de carro exibidos. Ao
mesmo tempo, o estilo cinematográfico distintivo desses direto
res e a “assinatura” conferida a cada um dos filmes resumem o
trabalho que vai envolver o encontro do espectador com cada mo
delo de carro e os estilos de vida que eles devem catalisar.
Para a segunda temporada de The Hire\a BMW contratou
três novos diretores para produzir filmes. Tony Scott, um queridinho
da indústria com uma reputação íntegra; John Carnahan, jovem
diretor, e a sensação do momento, que tinha acabado de fazer
NarCj aclamado pela crítica; e John Woo, o derradeiro diretor
autoral de filme de ação de Hong Kong, com excelente reputa
ção no mercado asiático na década de 1980 e na primeira meta
de da década de 1990, e que se tornou um diretor de primeira
linha de Hollywood depois do sucesso global de A Outra Face e
de Missão Impossível II. Cada um se saiu como o esperado. O
filme de Woo, The Hostage\por exemplo, parece ser uma compi
lação de todos os seus excessos pirotécnicos emocionantes de ve
locidade múltipla.
Após os oito episódios da série The H ire estarem comple
tos, os carros da BMW foram reimaginados áudio, visual e narra
tivamente por oito diretores com conhecimentos artísticos e cul
turais extremamente diversos. O comprador potencial da BMW
tinha oito mundos diferentes para fazer sua escolha, oito tipos
diferentes de carros para comprar. De forma ideal para a empresa
alemã, todos os tipos de usuários podiam passar os olhos por suas
coleções e encontrar seu nicho ideal - cada carro embrulhado nos
valores de alta produção e nos códigos cinematográficos e cultu
rais do filme que o exibia.
Conseguimos identificar cada filme destes da BMW como
estadunidense, alemão, taiwanês ou mexicano? Talvez taiwanês-ameri-
cano ou chinês-argentino? Todos eles são de fato filmes multiculturais
e transnacionais em termos de produção, estética, talento e temas. O
conhecimento sociocultural distinto de cada diretor mobiliza um
dominante cultural específico - quer dizer, o uso de música argen
tina na peça de Wong sinalizando seu gosto por música latina - ,
mas seu projeto total está, sem dúvida, imbuído de uma série de
processos transculturais que não podem ser identificados com
precisão ao associar qualquer de seus filmes às tradições cinema
tográficas particulares e aos discursos culturais gerados dentro
dos limites de uma única fronteira geopolítica. O que nos diz essa
circulação migratória de talento no cenário cinematográfico con-
temporáneo, que a série da BMW tão salientemente resume, sobre
as formas pelas quais a estética cinematográfica e os diretores cir
culam hoje em torno das diversas indústrias de filme no mundo?
Como podemos entender suas práticas respectivas de direção
como tendo um apelo global além de sua especificidade cultural e
nacional?
As discussões contemporâneas sobre o conceito de cinema
nacional estão invariavelmente ligadas ao conflito entre a promo
ção e a proteção de práticas locais que personificam a especificidade
cultural de uma nação e a realidade ostensiva de um mercado con
sumidor que favorece a gigantesca Hollywood no mundo todo. A
defesa feroz dos países europeus ocidentais (liderados pela Fran
ça) para excluir setores audiovisuais do tratado de GATT ( General
Agreement on Tariffs and Trade, Acordo Geral sobre Tarifas e Co
mércio), em 1993, e a briga dos Estados Unidos por sua inclusão
revelam não somente o entendimento diferenciado de cinema como
cultura ou comércio respectivamente, mas também o papel central
dos Estados-nações na era atual e sua mudança de posicionamento
estratégico como estruturas operantes que são, ao mesmo tempo,
inclusivas e exclusivas.10Se admitirmos a queda do bloco soviéti
co, a liberalização do mercado na China, a compreensão madura
da União Europeia como um estado supranacional efetivamente
operante, a posse multinacional cada vez maior das empresas cine
matográficas e a expansão das redes eletrônicas com a consequente
10. Miller, Toby et al. Global Hollywood. London: BFI, 2001. p. 36.
multiplicação dos canais através dos quais produtos de mídia são
distribuídos, exibidos e consumidos, devemos reconhecer uma
expansão desterritorializada do mercado cinematográfico em di
reções múltiplas que favorecem aqueles com mais recursos eco
nômicos e tecnológicos para divulgar seus produtos. Além disso,
se aceitarmos que as “zonas de contato” entre culturas diferentes têm
aumentado dramaticamente nas últimas duas décadas e que, como
consequência, culturas diferentes foram expostas a uma gama maior
de práticas estéticas e ideológicas, fixar uma teorização do cine
ma através de paradigmas territoriais - tais como, o conceito de ci
nema nacional - parece ultrapassado, senão, enganoso. Como, então,
o cinema engaja essas práticas neste contexto multitecnológico,
multicultural, ímpar e polimático da atualidade que foi rotulada de
era global? Como pode o microcosmo distinto que um conjunto
diverso de filmes oferece ao espectador permitir ao pensador social
e cultural distanciar-se das especificidades dos diferentes ambientes
que elas abordam diretamente e da macropolítica do global? Pri
meiramente, parece que, em um mundo de entrelaçamentos inten
sificados entre discursos de mídia que atravessam fronteiras nacio
nais, a compreensão do modo cinemático como operante de modo
transnacional nos daria, de fato, um modus operandi frutífero para
atacar esse empreendimento. Entretanto, o que significa exatamen
te adotar uma abordagem transnacional para o cinema contempo
râneo? O cinema nao é, desde seu início, uma prática transnacional
na qual artistas, artesaos, modelos econômicos, redes de distribuição
e exibição e agentes culturais têm costumeiramente cruzado frontei
ras e interagido uns com os outros e, dessa forma, moldado então a
história do cinema como um processo contínuo de transfertilização
transterritorial? Mesmo se admitirmos que agora o grau dessas tro
cas tem feito sucesso repentino a partir de ambos os pontos de vista
econômico e estético nas últimas duas décadas, não deveríamos tam
bém realçar que o funcionamento dessas novas “comunidades
imaginadas” é, ao mesmo tempo, codependente das configurações
específicas de formas locais de produção cultural entre os parti
cipantes de cada uma dessas comunidades? Não há tendências es
pecíficas que configuram a interação entre o cinemático e o social
em um estilo transnacional que mantém um status privilegiado? O
primeiro passo para propriamente teorizar sobre a utilidade de uma
abordagem “transnacional” para o cinema é identificar a lógica
dominante que hoje estrutura a produção, a circulação, a exibição
e a recepção do filme. Para realizar esse objetivo, necessitamos iden
tificar as diferentes faces dessa estrutura transnacional.
12. Balio, Tino. ‘A Major Presence in AU the W orld’s Im portant M arkets’: The
Globalization ot Hollywood in the 1990’s. In: Turner, Graeme (E d .). The Film
Cultures Render. London: Routledge, 2002; Miller, Toby et al. Global Hollywood.
London: BFI, 2001; Rosen, Staley. Hollywood, Globalization and Film Markets in
Asia: Lessons For China? Não publicado.
13. Acland, Charles R. Screen Traffic. Movies, Multiplexes, and Global Culture.
Durham: Duke University Press, 2003. p. 24-25.
Além disso, chamar Hollywood de estadunidense é enganoso,
já que a década de 1990 marcou a era de fusões corporativas e o
estabelecimento de conglomerados multinacionais. Como Janet
Staiger declara: “Quem tentasse imaginar a que ‘nação’ ‘pertence’
um grande conglomerado de cinema, estaria tentando o impossí
vel - e o desnecessário?14Hollywood, então, está constantemente
negociando a dinâmica do mercado e readaptando seus produtos
às demandas dos consumidores. Por exemplo, após o estúdio
Vertigo Entertainement ter entrado em acordo para refazer o fil
me de terror japonês Ringu ( O Chamado) com a empresa de pro
dução original e o estúdio DreamWorks, com base nos Estados
Unidos, com incrível sucesso em 2003, Hollywood se interessou na
refilmagem tanto dos bem-aclamados filmes de terror asiáticos (Água
Negra, O Grito, Pulse, O Hospedeiro) quanto dos clássicos de ter
ror estadunidenses ( Despertar dos Mortos, O Massacre da Serra
Elétrica, The Hitchhiker - O Caroneiro, O Sacrifício) e a produção
de prequels (histórias anteriores) há muito esquecidas (OExorcista:
O Início O Massacre da Serra Elétrica: O Início). 15 Embora esse
,
14. Staiger, Janet. A Neo-Marxist Approach: World Film Trade and Global Culture
Flows. In: Williams, Alan (Ed.). Film and Nationalism. New Brunswick; New
Jersey: Rutgers University Press, 2002. p. 234.
15. Roy Lee, cofundador do estúdio Vertigo Entertainment, é talvez a figura-chave na
refilmagem de filmes asiáticos em Hollywood. É notável que seu trabalho não está
limitado a filmes de terror, já que, recentemente, foi produtor executivo do ganha
dor do Oscar Os Infiltrados, uma refilmagem de Confiitos Internos, de Andrew Lau.
as maneiras pelas quais a transfertilização estética e econômica
entre filmes, oriundos de diferentes nações, funciona de um modo
transnacional. Hollywood não somente atrai talentos de todo o
mundo como estratégia para enfraquecer outros “cinemas nacio
nais”, mas tam bém incorpora a estética de outras tradições
cinemáticas - incluindo aquelas do cinema de arte, de filmes expe
rimentais e de outras indústrias comerciais nacionais - na conti
nuidade orientada para seu objetivo e em narrativas baseadas em
ação/espetáculo/romance em uma tentativa de capturar a maior
fatia de mercado possível. Em outras palavras, Hollywood funcio
na com um processo de “diferenciação planejada”, atingindo com
cada filme não somente o mercado doméstico, mas também o
global, e determinados grupos étnicos, etários ou nacionais. Con
forme Richard Maltby reconhece, na era contemporânea
17. Allen, Michael. Contemporary US Cinema. London: Pearson Education, 2003. p. 71.
18. Jameson, Fredric. Notes on Globalization as a Philosophical Issue. In: Jameson,
Fredric; Miyoshi, Masao (Eds.). The Cultures o f Globalization. Durham; London:
Duke University Press, 1998.
19. Hayward, Susan. French National Cinema. London: Routledge, 1993. p. 91.
suficientemente para serem fisgados em direção ao ámbito
transnacional de fluxos globais podem, de fato, ter acesso a uma
quantidade de quase infinita de produtos audiovisuais que mol
dam suas práticas sociais e imaginações em um modo multicultural
e modelam suas intervenções cinemáticas para contrarrepresentar
os modelos dominantes em funcionamento nos mercados globais
de filmes. Além disso, os diretores não são mais necessariamente
o produto da instrumentalização, nem de talentos dos estúdios, nem
do circuito de filmes artísticos; eles são os viciados em loja de vídeo,
em televisão a cabo, ou os diretores de comerciais de televisão e de
vídeo musical, ou um grupo de adolescentes que tem uma câmera e
fazem sucesso com uma brilhante ideia que, repentinamente, se torna
um evento midiático badalado na web. Em outras palavras, a troca
estética e a influência não são mais moldadas notadamente nos cantos
escuros de um cinema, mas no cenário transmidiático da expansão
comunicativa e do desenvolvimento tecnológico. Além disso, esses
processos de troca não ocorrem somente como uma prática de
cooptação, fortificando o monstro Hollywood e enfraquecendo as
indústrias de cinema nacionais menos poderosas. O padrão reverso
tem definido de forma significativa as formas pelas quais os direto
res trabalham fora das fronteiras econômicas, de distribuição e de
exibição hollywoodianas têm planejado competir com Hollywood
recentemente. Ou seja, esses produtores frequentemente tentam se
apropriar das configurações gerais e narrativas dos sucessos de
Hollywood pelo mundo afora, a fim de conquistar uma fatia de seu
mercado doméstico e, ocasionalmente, um pedaço do bolo inter
nacional. Enquanto refletem sobre as especificidades nacionais das
formações sociopolíticas e culturais de seus próprios países - , por
exemplo, Shirina. Coreia do Sul; Tesis na Espanha; Am elien a Fran
ça - eles também “hollywoodizam” seus filmes de várias maneiras,
apelando para o status privilegiado do gênero de filme estadunidense
nas telas do cinema e da televisão de suas respectivas nações.
Consequentemente, embora Ezra e Rowden possam estar um pouco
certos ao afirmar que
20. Ezra, Elizabeth; Rowden, Terry. General Introduction: what is transnational cinema.
In:______ . Transnational Cinema: the film reader. London; New York: Routledge,
2 0 0 6 . p. 11.
Médio, da Ásia Oriental e às comunidades da diáspora do Sul da Ásia
espalhadas pelo mundo. Uma abordagem transnacional ao cinema
deve, então, deixar claros os vários modos ideológicos através dos
quais Hollywood e outras tradições cinemáticas e modos de pro
dução interagem uns com os outros e reconhecem suas implicações
na recepção, relacionadas a um conjunto maior ou menor de esco
lhas que os espectadores têm em espaços geopolíticos diferentes.
Por essa razão, esse projeto rejeita estruturas antagonistas infrutífe
ras - tais como, “Hollywood versus outros cinemas nacionais” - e
objetiva analisar os múltiplos caminhos em que ocorrem as trocas
cinemáticas, mediadas ou sob o radar de Hollywood.
Uma abordagem transnacional para o cinema não necessaria
mente segue um modelo crítico que tenta simplesmente identificar
o transnacional dentro de um campo nacional específico delimitado
por fronteiras territoriais. Mesmo que estudiosos tenham realmente
produzido esforços notáveis acompanhando essa abordagem, ao se
guir a dimensão transnacional intrínseca do conceito de cinema na
cional em termos tanto econômicos quanto estéticos, a estrutura que
proponho enfatiza, em vez disso, o caráter relacional do cinemático
e sua capacidade de criar pontes representacionais, ideológicas e
sociais entre diferentes formações socioculturais, entre nações. Este
modus operandi crítico toma como seu ponto de partida o reconhe
cimento de que o cinemático nacional é uma categoria flutuante que
continuamente circula em uma variedade de campos transterritoriais
culturais, sujeitos a redefinições à medida que forças sociais, ideoló
gicas e econômicas concorrentes tentam reconfigurá-lo, seguindo
pautas distintas. Esse caminho, no meu ponto de vista, dita a ma
neira mais abrangente de abordar o entrelaçamento intensificado
do cinemático no cenário geopolítico contemporâneo.
Paisagens transculturais
Denilson Lopes
3. Nesse sentido, diferente do projeto de Laura Marks, que privilegia uma tradição
experimental, ou mesmo de Hamid Naficy, que privilegia uma espécie de cinema
transnacional independente através de sua rubrica de um accented cinema.
nas como agentes de expressão e desafio (Naficy, 2001, p. 26). Di
ferentemente do cinema do Terceiro Mundo, em que o mais im
portante era a defesa da luta armada ou da luta de classe em uma
perspectiva marxista, trata-se de um cinema feito por pessoas
deslocadas ou comunidades diaspóricas, menos engajado com o
povo ou com as massas do que marcado por experiências de
desterritorialização (Naficy, 2001, p. 30-31).
Por fim, ainda que partindo de referenciais e objetos distin
tos, nossa proposta se encontra com a de Andréa França quanto
ao desejo de pensar para além das cinematografias nacionais (Fran
ça, 2003, p. 24). O que desenvolvi a partir do entrelugar até as paisa
gens transculturais dialoga e ganha uma espessura cinematográfica
na noção de fronteira que não só separa e demarca, mas gera outros
espaços:
Referências
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In: WOJCIK, Pamela Robertson; KNIGHT, Arthur (Orgs.). Soundtrack
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EdUFMG, 2001.
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YEH, Yueh-yu. A life of its own: musical discourses in Wong Kar-Wai’s films.
Post-Script - Essays in Film and the Humanities, 19:1, p. 120-136,
fall 1999.
Robert Stam
* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N.T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Este artigo é uma versão traduzida e reduzida de “Beyond Third Cinema: The
Aesthetics of Hybridity”, publicado em: Guneratne, Anthony; Dissanayake, Winmal
(Eds.). Rethinking Third Cinema. New York; Londres: Routledge, 2003.
e Getino exigiam docum entários m ilitantes de guerrilha; e
Espinosa, um cinema “imperfeito”, fortalecido pelas formas “bai
xas” de cultura popular, em que o processo de comunicação era
mais importante que o produto, em que os valores políticos eram
mais importantes que os “valores de produção”.
O trabalho de Frantz Fanón exerceu forte influência nessas
teorias e nos filmes influenciados por elas. O filme La Hora de Los
Homos, de Solanas e Getino (H our o f the Furnaces, 1968), não
somente cita o adágio de Fanón de que “Cada espectador é um
covarde ou um traidor”, mas também orquestra uma constelação
de temas fanonianos - os estigmas psíquicos do colonialismo, o
valor terapêutico da violência anticolonial e a necessidade urgen
te de urna nova cultura e de um novo ser humano. Os manifestos
de filmes terceiro-mundistas também enfatizam militância e vio
lência anticolonial, literária/política, no caso de Solanas-Getino, e
metafórica/estética, no caso de Rocha. “Somente através da dialética
da violência”, escreveu Rocha, “alcançaremos lirismo.”
O “Terceiro Cinema” ofereceu uma versão modulada fanoniana
da estética de Brecht, tensionada pela “cultura nacional”. Ao mesmo
tempo, ofereceu uma estratégia prática de produção que trans
formou a escassez, como disse Ismail Xavier, em “um significante”2.
Apesar de o “Terceiro Cinema” representar uma alternativa váli
da para o modelo hollywoodiano dominante em um primeiro
momento, é importante lembrar que ele representa somente um
Hibridismo
Multiplicidade cronotópica
6. Ver Bakhtin, The DialogicImagination, editado por Michael Holquist e Caryl Em er
son. Austin: University o f Texas Press, 1981. p. 84. Os term os na discussão que segue
podem ser encontrados nas páginas 8 4 -8 5 do “Essay C h ro n o to p e ” (p. 8 4 -2 5 8 ).
artisticamente visível” e “o espaço torna-se responsável e recep
tivo aos movimentos de tempo, enredo e história” parece, de al
guma forma, até mais adequada ao filme que à literatura. Ao passo
que a literatura acontece dentro de um espaço virtual e léxico, o
“cronotopo” cinemático é bastante literal, disposto concretamente
em uma tela com dimensões específicas e desenvolvido em tempo
literal (geralmente 24 quadros por segundo), um tanto diferente
do que determinados filmes de tempo-espaço fictícios poderiam
construir. Portanto, o cinem a personifica a relação inerente de
tempo (khrónos) e espaço (tópos); trata-se espaço temporalizado
e tempo espacializado, o local onde o tempo acontece e o lugar
tem seu tempo.
A natureza multipistas da mídia audiovisual a capacita a o r
questrar histórias múltiplas, até contraditórias, temporalidades e
perspectivas. Ela não oferece um “canal de história”, mas múltiplos
canais para representações históricas m ultifocais e de múltiplas
perspectivas. Aqui me interessa especialmente um tipo de com bi
nação entre representações do estado palimpséstico, multinacional,
e o cinema como um meio palimpséstico e polivalente que pode
entrar em cena e rep resen tar um h ib rid ism o tran sg ressor.
Constitutivamente múltiplo, o cinema é idealmente apropriado
para encenar o que Nestor García Canclini, em um contexto m ui
to diferente, chama de “heterogeneidade m ultitemporal”7. 0 fato
de que o cinema dominante, em grande parte, optou por urna
7. Ver: Canclini, Néstor García. Culturas Híbridas: Estrategias para entrar y salir de la
modernidad. M exico City: Grijalbo, 1989; ou: Canclini, N éstor García. Culturas
híbridas: estratégias para entrar e sair da m odernidade. São Paulo: Edusp, 1990.
estética linear e homogeneizante na qual caminhos reforçam cami
nhos dentro de uma totalidade wagneriana, de forma alguma, oblitera
a verdade igualmente saliente de que o cinema (e as novas mídias)
é infinitamente rico em potencialidades polifónicas. O cinema
possibilita que sejam postas em cena contradições culturais
temporalizadas não somente dentro da tomada, por meio do
mise-en-scène, do cenário, do figurino etc., mas também via
interação e contradições entre os diversos caminhos, que podem
mutuamente seguir, empurrar, rebater, assombrar e relativizar um
ao outro. Cada caminho pode desenvolver sua própria velocidade;
a imagem pode ser acelerada enquanto a música é desacelerada, ou
a trilha sonora pode ser temporariamente multiplicada por referên
cias a variados períodos históricos. Um cinema culturalmente
polirrítmico, multitemporal, contrapontístico e de múltiplas ve
locidades se torna uma possibilidade real.
Por meio do lixo, a cultura brasileira é apresentada como
um local misto. O lixo, nesse sentido, fica no ponto de convergên
cia de nossos três temas: hibridismo, multiplicidade “cronotópica”
e redenção do detrito. O lixo é híbrido, em primeiro lugar, como
espaço diasporizado, heterotópico da mistura promíscua do rico
e do pobre, do centro e da periferia, do industrial e do artesanal,
do doméstico e do público, do durável e do transitório, do orgâ
nico e do inorgânico, do nacional e do internacional, do local e do
global. Metáfora pós-moderna e pós-colonial ideal, o lixo é mis
turado, sincrético, um texto social radicalmente descentrado. Ele
pode também ser interpretado, segundo Charles Jencks, como
“heterópolis”; e conforme Edward Soja, seguindo Foucault, como
“heterotopia,” ou seja, a justaposição em um lugar real de “vários
locais que são eles mesmos incompatíveis”8. Como um lugar de
memórias e vestígios enterrados, o lixo é um exemplo do que David
Harvey chama de “compressão do tempo-espaço” típica da acelera
ção produzida pelas tecnologias contemporâneas de transporte, co
municação e inform ação. Em term os foucaultianosy o lixo é
“heterocrônico”, ele concentra o tempo em um espaço circunscri
to. (Já foi sugerido que a arqueologia é simplesmente uma forma
sofisticada de estudo do lixo.) O monte de lixo pode ser visto como
um tesouro arqueológico achado precisamente por causa de seu
caráter concentrado, sinedóquico e comprimido. Como história
congelada, o lixo revela um passado analisado. Como tempo mate
rializado no espaço, ele se torna coagulado socialmente, uma desti
lação pegajosa das contradições da sociedade.
Como a quintessência do negativo - evidenciada em expres
sões como “lixo ambulante”, “im undície!” e “fonte de contam ina
ção” o lixo pode tam bém ser um objeto de jiu -jítsu artístico e
de resgate irônico. Um sistema de reciclagem ecologicamente cons
ciente na Austrália se nomeia “lixo reverso”. (Isto não é para dizer
que a apreciação do lixo é sempre marginal: o potencial subversi
vo do lixo com o m etáfora é sugerido no rom ance O Leilão do
Lote 49\de Thom as Pynchon, no qual a heroína coleta indícios e
vestígios que revelam a rede alternativa de L.I.X.O. com o um tipo
de contracultura fora dos canais de com unicação dom inantes.)
8. Ver: Jencks, Charles. Heteropolis. Los Angeles, the Riots and the Strange Beauty of
HeteroArehiteeture. London: Academy Editions, 1993; Soja, Edward W. Thirdspaee.
Journeys to Los Angeles and O ther Real-and- Imagined Places. O xford: Blackwells,
1996.
Em termos estéticos, o lixo pode ser visto como uma colagem
aleatoria ou uma enumeração surrealista, um caso de definição ao
acaso, uma pilha randómica de objets trouvése papiers col/és, um
lugar de justaposições violentas e surpreendentes.
O lixo, como a morte e o excremento, é um grande nivelador
social, o local de encontro do mal-cheiroso e do bacana. É o final da
linha para o que Mary Douglas chama de “assunto fora de lugar”. Em
termos sociais, é um contador de verdades. Como um estrato mais
baixo do soa us, o “fundo” simbólico ou cloaca maxima do corpo
político, o lixo sinaliza o retorno do reprimido; é o lugar onde
camisinhas usadas, absorventes ensanguentados, agulhas infectadas
e bebês rejeitados são deixados; o lugar de descanso final de tudo
o que a sociedade produz e reprime, que esconde e faz segredo.
Podemos lembrar da tomada final de Os Esquecidos, de Buñuel,
que mostra o cadáver do protagonista despedaçado no filme sen
do naturalmente largado em uma pilha de lixo na cidade do Mé
xico; a cena reaparece em O Beijo da Mulher Aranhayde Babenco,
no qual o cadáver de Molina é jogado em um monte de lixo, en
quanto a voz do narrador comunica oficialmente sua morte. Ma
terial excessivo, o lixo é o id da sociedade; fumega e tem cheiro
abaixo da soleira da racionalização e da sublimação ideológicas.
Ao mesmo tempo, o lixo é reflexo de prestígio social; riqueza e
status estão correlacionados com a capacidade de uma pessoa (ou
uma sociedade) em descartar mercadorias, ou seja, gerar lixo. Como
híbrido, o lixo também está carregado de poder. A elite pode trans
formar uma favela em um bairro nobre, aterrar um terreno para
construir prédios luxuosos ou despejar lixo tóxico em uma vizi
nhança pobre.
Três documentários brasileiros recentes tratam diretamente
o tema do lixo. O Fio da Memória, de Eduardo Coutinho ( The
Thread ofMemory> 1991), um filme realizado como parte da co
memoração do centenário da abolição, reflete sobre as consequências
da escravidão no presente. Em vez de se estruturar em uma narrati
va coerente e linear, o filme oferece uma história baseada em peda
ços e fragmentos disjuntivos. Aqui os fios entrelaçados, ou pedaços
agrupados, tornam-se emblemáticos do tecido fragmentário da
vida negra no Brasil. O fio condutor consiste do diário de Gabriel
Joaquim dos Santos, um homem velho e negro que criou a casa
de seus sonhos como um trabalho de arte, feito completamente
de lixo e detritos: azulejos rachados, pratos quebrados, latas vazi
as. Para Gabriel, a cidade do Rio representa o “poder da riqueza”,
enquanto sua casa, construída dos “restos da cidade”, representa
o “poder da pobreza”. O lixo então se torna um meio ideal para
aqueles que foram marginalizados, que se sentem “deprimidos”,
que, como no verso da canção de bluesyse sentem “com o uma lata
sobre aquele depósito de lixo velho”9. Um impulso transform a
dor toma um objeto considerado sem valor e o transform a em
algo de valor. Aqui a restauração do valor de um objeto jogado
fora explica, por analogia, o processo de revelar o valor escondido
do artista desprezado, desvalorizado. Ao mesmo tempo, testemu
nhamos um exemplo de estratégia e de engenhosidade em situação
9. Minha form ulação obviam ente reflete e africaniza a linguagem do con h ecid o e n
saio de Frederic Jameson “A Literatura do Terceiro M undo na Era do C apitalism o
M ultinacional”, Texto Social, n. 15, ou ton o 1986.
de escassez. O lixo dos que têm se transforma no tesouro dos que
nada têm; o frio úmido e insalubre é metamorfoseado no sublime
e no belo; o que fora uma monstruosidade é transformado em ali
vio para olhos machucados. A lâmpada queimada, ícone gasto da
inventividade moderna, torna-se um emblema de beleza. Com gran
de facilidade de improvisação, Gabriel, pobre, precariamente alfa
betizado, apropria-se de produtos descartados da sociedade indus
trial para seus próprios propósitos recreativos, em procedimentos
que inadvertidamente evocam aqueles do modernismo e da van
guarda: o “estranhamento” dos formalistas, os “objetos encontra
dos” dos cubistas, a “refuncionalização” de Brecht, o “détournement”
dos situacionistas. Essa recuperação de fragmentos também tem
uma dimensão espiritual na cultura africana. Em toda a África cen
tral e ocidental, ao monte de lixo é uma metáfora para o nefasto,
um ponto de contato com o mundo dos m ortos”. As vasilhas que
bradas exibidas nos túmulos do Congo, Robert Farris Thompson
nos informa, servem como lembretes de que objetos quebrados
se tornam novamente um todo no outro m undo.10
O título de outro vídeo sobre lixo, o documentário Boca de
Lixo, de Coutinho, diretamente o conecta à “estética do lixo”, já
que seu título se refere ao bairro da luz vermelha de São Paulo,
onde eram produzidos, no início, os filmes de “lixo”. O filme gira
em torno dos brasileiros empobrecidos que sobrevivem graças a
um depósito de lixo fora do Rio, onde trabalham arduamente e
10. Ver: Thom pson, Robert F.; C om et, Joseph. The Four Moments o f the S u it. Congo
Art in Two Worlds. W ashington: Galeria Nacional, 1981. p. 179.
têm como pano de fundo os braços estendidos do sempre miseri
cordioso Cristo no Corcovado. Nesse ponto, a câmera é testemu
nha da miséria social. Esmiuçando o lixo, os participantes execu
tam uma triagem do que é “vomitado” pela loteria diária de
excremento, separando o plástico do metal e da matéria comestí
vel. Já que muitas das faces são femininas e negras, o filme tam
bém revela a feminilização e a racialização da miséria social. Aqui
vemos o ponto final de toda uma lógica mercantil permeável, o
télos lógico da sociedade de consumo e seu éthos de obsolescência
planejada. O lixo se torna a manhã seguinte do romance do novo (o
romance Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, trata de uma cidade
tão enamorada do novo que descarta todos os seus objetos diaria
mente). Na fantasmagoria miserável do depósito, as mesmas mer
cadorias que foram transformadas em fetiche pela propaganda,
valorizadas pela montagem e evidenciadas com luz de fundo estão
agora despidas de sua aura de poder carismático. Somos confronta
dos com a parte inferior fissurada da globalização e com seu discur
so simples de um mundo sob a rotina consumista. O mundo do
capitalismo transnacional é mais do que um eterno mundo de cons
tante e diário movimento para a miséria. Finalmente, testemunha
mos a face escondida do sistema global, todas as agonias sublima
das mascaradas pela panaceia eufórica do “neoliberalismo”.
Se Fio de memória vê o lixo como recurso artístico, Boca de
Lixo revela sua dimensão existencial humana. Aqui, os habitantes
do lixo têm nomes (Jurema, Enoch), apelidos (“Costeleta”), fam í
lia, memórias e esperanças. Em vez de assumir uma abordagem
miserabilista, Coutinho nos mostra pessoas que são criativas, irô
nicas e críticas, que dizem ao diretor o que olhar e como interpre-
tar o que ele vê. Enquanto para Coutinho o roubo das imagens
dos outros com propósitos sensacionalistas é o “pecado original”
da reportagem televisiva,11 os habitantes do lixo repetidamente in
sistem que “Aqui ninguém rouba”, como se respondendo às acusa
ções imaginárias dos interlocutores de classe média. Em vez dos
prazeres suspeitos de uma “simpatia” condescendente, o especta
dor da classe média é obrigado a se confrontar com pessoas vi
brantes que ousam sonhar, responder e até mesmo criticar os di
retores de cinema. Os “nativos”, nessa etnografía do lixo, não são o
objeto, mas os agentes do conhecim ento. Ao fínal do filme, os
participantes se assistem em um videocassete, num gesto reflexi
vo que remete aos filmes africanos de Jean Rouch que é agora
familiar com a “mídia nacional”. Em vez de banidos patéticos, os
sujeitos do filme existem em um continuum com os trabalhado
res brasileiros em geral; eles incorporam o país com o um todo; já
tiveram outros empregos, já trabalharam em outras cidades, já la
butaram nas casas da elite. E criticamente absorveram e processa
ram as mesmas representações de mídia que todos os outros e, por
tanto, têm “respostas prontas” para o centro; eles desaprovam o que
Janice Perlman chama de “mito da marginalidade”. No filme, um
pensador popular diz aos diretores que o lixo é o começo e o fim
de um princípio cíclico de nascimento e renascimento o que
vai, vem. O lixo é mostrado como energia armazenada, contendo
nela mesma as sementes de sua própria transformação. O lixo se
Hamid Naficy
* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N .T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já teita e utilizada na p u b licação].
1. Este artigo é um a versão traduzida e reduzida de “Situating A ccented C in em a”,
publicado em : Naficy, Hamid. An Accented Cinema. Princeton: Princeton University
Press, 2001.
sejam mais propensos às tensões da marginalidade e da diferença.
Pelo fato de compartilharem dessas características, a própria exis
tência de tensões e diferenças ajuda a impedir que os diretores
com sotaque se tornem um grupo homogêneo ou um movimento
cinematográfico. As tensões e diferenças que os filmes codifi
cam não são facilmente resolvidas por narrativas conhecidas e
esquemas genéricos, daí seu agrupamento em um estilo com
sotaque. As variações entre os filmes são geradas por muitos fa
tores, enquanto suas similaridades se originam principalmente
do que os diretores têm em comum: a subjetividade liminar e a
posição intersticial na sociedade e na indústria cinematográfica.
O que constitui o estilo com sotaque é a combinação e o cruza
mento dessas variações e similaridades.
Os diretores com sotaque vieram morar e fazer filmes no Oci
dente em dois agrupamentos gerais. O primeiro foi deslocado ou
atraído para o Ocidente, desde o fim da década de 1950 até a metade
da de 1970, devido à descolonização do Terceiro Mundo, às guerras
para a libertação nacional, à invasão da Polônia e da Tchecoslováquia
pela União Soviética, à ocidentalização e a um tipo de “descolonização
interna” no próprio Ocidente, envolvendo os diversos movimentos
pelos direitos civis, de contracultura e antiguerra. Na verdade, como
Frederic Jameson observa, o início do período chamado “anos 60”
deve ser situado na descolonização do Terceiro Mundo, que influen
ciou de forma significativa os movimentos sociopolíticos do Pri
meiro Mundo (1984, p. 180 apud Hollanda, 1992).
O segundo grupo surgiu nas décadas de 1980 e 1990 como
um resultado da decadência do nacionalismo, do socialismo e do
comunismo; das rupturas causadas pelo surgimento de economias
mundiais pós-industriais; da ascensão de formas militantes do
Islã; do retorno de guerras religiosas e étnicas; da fragmentação de
Estados-nações; das mudanças na política de imigração europeia,
australiana e americana, incentivando a imigração não Ocidental;
e do desenvolvimento tecnológico e consolidação dos computa
dores e da mídia.
Os diretores com sotaque são o resultado desse desloca
mento binário pós-colonial e dessa difusão pós-m oderna ou
modernidade tardia. Devido ao deslocamento das margens para o
centro, eles se tomaram sujeitos na história mundial. Conquistaram
o direito de expressão e ousaram conquistar os meios de representa
ção. Embora marginalizados, estão no centro, e suas habilidades em
acessar os meios de reprodução podem se mostrar tão poderosas
aos que também vivem à margem na era pós-industrial quanto
teria sido a tomada dos meios de produção pelos operários da era
industrial.
Ao se mapear o cinema estrangeiro, é importante diferenci
ar três tipos de filme que o constituem: étnico, do exílio e da
diáspora. Essas distinções não são fixas. Alguns filmes pertencem
naturalmente a uma dessas classificações, enquanto a maioria apre
senta as características dos três tipos em níveis diferentes. Há tam
bém subdivisões dentro de cada tipo. Além disso, no decorrer de
suas carreiras, muitos diretores se mudam não apenas de um país
para outro, mas também de um tipo de filme para outro, de acor
do com a trajetória de suas viagens identitárias e de suas com uni
dades de origem.
Tradicionalmente, o exílio é entendido com o a expulsão
devido a alguma quebra de norma ou crime, com proibição de
retorno. O exílio pode ser interno ou externo, dependendo do
local para onde alguém é enviado. As extraordinárias limitações
que os cineastas exilados internamente sofreram, as restrições, as
privações e a censura em países totalitários são bem conhecidas.
O que tem sido menos analisado é a forma como tais restrições,
ao desafiarem os diretores, os forçam a desenvolver um estilo au
toral. Muitos diretores que conseguiram escapar do exílio interno
se recusam a seguir esse estilo, a fim de entrar numa batalha justa
em casa - uma luta que frequentemente define não apenas o estilo
de seus film es, mas tam bém sua id en tid ad e co m o figuras
opositoras de valor. Por trabalharem sob um regime de exílio in
terno, eles escolhem seu “local de luta” e seu potencial de transfor
mação social (Harlow, 1991, p. 150). Quando se manifestam desse
lugar - em casa - , eles têm um impacto, mesmo quando punidos,
o que acontece frequentemente. Na verdade, o interrogatório, a
censura e a prisão são provas de que suas vozes são ouvidas. Mas
se saírem para o exílio externo do Ocidente, onde têm liberdade
política para falar, pode ser que ninguém os ouça entre a cacofonia
de tantas vozes competindo por atenção no mercado. Nesse caso,
a famosa pergunta de Gayatri Spivak “Os subalternos podem fa
lar?” terá de ser substituída por “Os subalternos podem ser ouvi
dos?”. Devido à globalização, os exílios internos e externos entre os
países não são isolados. Na verdade, há muito movimento e troca
entre eles.
Neste estudo, o termo “exílio” refere-se, especialmente,
a exílios externos: indivíduos ou grupos que voluntária ou
involuntariamente partiram de seus países e que mantêm uma
relação ambivalente com seus países e suas culturas de origem.
Embora não retornem a seu país, nutrem um desejo intenso de
voltar - um desejo que é representado nas narrativas de seus fil
mes. Nesse ínterim, eles rememoram a terra natal, tornando-a fe
tiche na forma de sons emotivos, imagens e cronotopos que cir
culam intertextualmente na cultura popular do exílio, inclusive
em filmes e vídeos musicais. Em síntese, a primeira relação dos
exilados é com seus países e suas culturas de origem; com a visão,
o som, o gosto e a sensação de uma experiência original de um
outro lugar em outros tempos. Os exilados, especialmente os ci
neastas que foram forçados a partir, tendem a querer definir, ao
menos durante o período liminar de deslocamento, todas suas vi
das não somente em relação com o país de origem, mas também
em termos políticos. Como resultado disso, seus primeiros filmes
tendem a representar seus países de origem e seu povo mais do
que a si mesmos.
A autoridade dos exilados como diretores autores deriva de
sua posição de sujeitos que habitam em espaços intersticiais e locais
de luta. Na verdade, toda autoria artística implica o distanciamento -
banimento e algum tipo de exílio - da sociedade maior. As ten
sões e ambivalências resultantes produzem a complexidade e a
intensidade que são tão características às grandes obras artísticas e
literárias. Da mesma forma que o tabu sexual permite a procria
ção, o exílio por banimento incentiva a criatividade. É claro que
nem todo sujeito exilado produz uma arte significativa ou dura
doura, mas muitas das grandes ou mais duradouras obras literári
as e cinematográficas foram criadas por escritores e diretores exi
lados. Mas o exílio pode resultar em uma forma conflituosa de
liminaridade caracterizada pela oscilação entre os extremos. É uma
zona de ansiedade e imperfeição em que a vida oscila entre o êxta
se da confiança e o desalento da dúvida.
Para os exilados externos, as relações de origem com a terra
natal e as relações de aceitação com a sociedade que os acolhe es
tão continuamente sendo testadas. Libertados do velho e do novo,
eles estão “desterritorializados”, em bora perm aneçam entre o ve
lho e o novo, o antes e o depois. Por estarem localizados numa
zona tão escorregadia, podem ficar impregnados de um excesso
híbrido, ou podem se sentir profundam ente destituídos e divi
didos, até mesmo, fragmentados. O diretor e poeta lituano Jonas
Mekas, que passou quatro anos na Europa em ambientes de pes
soas deslocadas, antes de desembarcar nos Estados Unidos, expli
cou seu sentimento de fragmentação da seguinte maneira:
A abordagem estilística
Referências
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Yingjin Zhang
* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N.T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Este artigo é uma versão traduzida d e“Chinese cinema in the New Century: Prospects
and Problems”, publicado em World Literature Today,; v. 81, n. 4, jul./ago. 2 0 0 7 .
2. Qianlong.com lançam ento em: 20 de janeiro de 2007. Disponível em : < h ttp ://
new s.qianlong.com /28874/2007/01/20/2502@ 3626854.htm >. Outras estatísticas ci
tadas neste artigo são tiradas de várias fontes, tais com o Zhongguo dianyingnianjian
(o livro do ano dos filmes chineses), 2000-2004 - Beijing: Zhongguo dianying nianjian
filmes domésticos subiu de 280 milhões de renminbis, em 2000,
para 1.200 milhões, em 2005. Além disso, os novos registros de
bilheteria para os filmes domésticos foram estabelecidos um após
o outro. No fim de janeiro de 2002, O Funeral do Chefão (2001),
de Feng Xiaogang, obteve lucros de 11 milhões de renminbis em
apenas 40 dias,3 e continuou fazendo sucesso até atingir o recorde
de 42 milhões. Um ano mais tarde, H erói (2002), de Zhang Yimou,
tomaria conta do país e reivindicaria o maior recorde de todos os
tempos - 250 milhões de renminbis em exibição doméstica. O
Clã das Adagas Voadoras (2004), de Zhang Yimou, The Promise
(2005), de Chen Kaige, e The Banquet (2006), de Feng Xiaogang,
reconfirmaram a expansão aparentemente infinita do cinema chi
nês, cada filme obtendo entre 140 e 170 milhões de renminbis
somente na China.
Apesar da euforia sobre as perspectivas de bilheteria, proble
mas fundamentais continuam a constranger o cinema chinês, que
cresceu dentro de uma indústria assimétrica, forte em produção,
porém fraca em exibição. Se investigarmos os sucessos da bilhete
ria doméstica anual, torna-se óbvio que muitos filmes de sucesso
são coproduções financiadas em sua maioria por capital estran
geiro, e alguns dos dez de maior sucesso poderiam até mesmo
ser um fracasso quando os custos de produção e promoção são
contabilizados. Além disso, a definição de “filme nacional” se tor
na questionável quando a coprodução estrangeira está envolvida. De
4. Hong, Yin; Qingsheng, Zhan. “2005 Zhongguo dianying chanye beiwang” (Memo
rando sobre a indústria de tilines chineses em 2005), Dianyingyishu, n. 2, p. 11,2006.
Produção e exibição transnacional
8. Rosen, Stanley. Chinese Cinema in the Era of Globalization: Prospects for Chinese
Films on the International Market, with Special Reference to the United States. In:
Retrospective and Outlook. International Forum for the Centennial Anniversary of
Chinese Cinema,ed. China Film Archive, uma conferência, Pequim, Dec. 2005. p. 570.
figurino e cenário coloridos, habilidades sobre-humanas de ar
tes marciais, música e danças sensuais, assim como rostos e cor
pos femininos bonitos. Um triângulo romântico banal é inseri
do na narrativa, com pouca ou nenhuma lógica e com diálogos
desinteressantes, até mesmo embaraçosos. Sexo e violência domi
nam a tela, mas mitos antigos não conseguem disfarçar a cumplici
dade ideológica dos sucessos recentes com o poder dominante, sua
ambição imperial e decadência.
Ironicamente, igualmente espetacular como os recordes de
bilheteria dos sucessos chineses é sua condenação difundida entre
o público chinês. Espectadores desapontados desabafam sua raiva
na internet, e os críticos expressam sua insatisfação na mídia. Cer
tamente, os filmes de sucesso se tornaram eventos midiáticos na
cionais no novo século: oferecem não somente entretenimento, mas
também um convite para o público participar dos debates públi
cos. De qualquer forma, os filmes bem-sucedidos recebem muita
atenção, enquanto seus produtores e exibidores alegremente con
seguem a publicidade de que precisam.
Total de bilheteria em
960 840 900 1.000 1.570 2.000 2.620
milhões de renminbis
Bilheteria de filmes
nacionais em milhões 280 294 - - 863,5 1.200 -
de renminbis
Total de bilheteria de
29,17% 35% - - 55% 60% -
filmes nacionais
2001
1 O Funeral do Feng Xiaogang China Film Group. Huayi 29 42
Chefao Brothers, Columbia Asia
(US)
3 Roots and Yu Zhong Estúdio Tianshan, PQ 2 16 -
Branches Sihai Zongheng
2002
1 Herói Zhang Yimou PQ New Picture, Elite 240 250 132,53
Group (HK), Sil- [53,71 milhões de
Metropole (HK) dólares]
2 Together Chen Kaige China Film Group, 140
Century Hero, CCTV-
Movies, 2 I a' Century
Kaisheng
3 A Arma Perdida Lu Chuan China Film Corp, Huayi - 9 -
Brothers
6 I Love You Zhang Yuan X i’an Studio, B J Huayi 4 9 -
Film
2003
1 Cell Phone Feng Xiaogang China Film Group, Huayi 10 53
Brothers, Columbia Asia
(US)
2 Guerreiros do He Ping X i’an Studio, Huayi 38 12,05
Céu e da Terra Brothers, Taihe, Columbia
Asia (US)
18 Chá Verde Zhang Yuan PQ Huayi Film 10 8 -
2004
1 O Clã das Zhang Yimou PQ New Picture, Elite 290 150 60,24
Adagas Group (HK) [11,05 milhões de
Voadoras dólares]
2 Kung-fusão Stephen Chiau China Film Group, Huayi * 150 [17,11 milhões de
Brothers, Columbia Asia dólares]
(US)
3 Um Mundo sem Feng Xiaogang Huayi Brothers, Taihe, 120
Ladrões Media Asia (HK), PQ
Forbidden City
10 Baober in Love Li Shaohong PQ Rosat Film 42 14 -
19 Kekexili Lu Chuan Huayi Brothers, Columbia 10 5 0,8
Asia (US), National
Geographie World Film
(US)
2005
1 The Promise Chen Kaige China Film Group, 21 %
t 310 170 35
Century Kaisheng, [0,51 milhões
Moonstone (US) dólares pnmeiros
10 dias j
2006
The Banquet Feng Xiaogang Huayi Brothers, Media - 140 -
Asia (HK)
* Tradução de Raquel Maysa Keller. [ N.T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
aquela alteridade mais completamente alienígena, expressa em ter
mos do que é considerado comestível.
Em Tristes Tropiques> seu relato semiautobiográfico de es
tada no Brasil, Lévi-Strauss conta com o convenceu um índio
Caduveu a mostrar-lhe onde havia conseguido algumas larvas, tidas
como parte da dieta do seu povo. O índio não quis sequer admitir
que as comia, porque sabia que os brancos não as consideravam
comida aceitável, mas Lévi-Strauss finalmente o convenceu a mos
trar-lhe o local e a planta de onde as larvas teriam sido retiradas.
Provou uma delas - e gostou. A história deixaria um inglês satis
feito, porque poderia assim acusar o francês de com er coisas es
tranhas e nojentas, mostrando como a diferença cultural é grifada
pela referência aos hábitos alimentares; de forma mais im portan
te, entretanto, mostrando também que pessoas de todos os níveis
da cultura material estão conscientes de que a dieta, a distinção
entre o que é próprio e o que impróprio para comer, desempenha
um papel importante na definição da individualidade cultural e
da diferença em relação aos outros.10 Outro, em suma, é frequen
2. Polo, Marco. The Traveis. Tradução e introdução Ronald Latham. London: Penguin
Books, 1958. p. 109.
(p. 253). A selvageria se deve mais à falta de discriminação do que
ao próprio canibalismo; além disso, ele alcança o extremo, o su
posto domínio das ilhas Andaman, onde o povo “não tem rei”,
“todos os homens têm cabeças parecidas com cachorros”, formam
“uma raça muito cruel” e, “quando capturam um homem que não
é da sua raça, eles o devoram”. Aquela ilha não pode ser alcançada
e visitada, pois “fica em um mar tão turbulento e tão profundo
em que as embarcações não conseguem ancorar nem se afastar da
ilha, porque o mar as varre para dentro de um golfo do qual não
conseguem mais sair”. Na verdade, a desorganização começa na
cultura e se infiltra na natureza, pois o mar continua arrancando
algo da ilha, carregando árvores enormes para dentro do golfo
que a circunda, e essa confusão de terra e mar faz com que as
embarcações que entram no golfo fiquem presas na massa de ár
vores e “[elas] ficam lá para sempre” (p. 258). Isso não significa
que Marco Polo ache o canibalismo aceitável; mas que é algo que
simplesmente existe entre pessoas estranhas, e é parte da estra
nheza delas. Ao mesmo tempo, a relação de poder entre o narrador
da história e o povo visitado pelo menos é equilibrada, se não
pendendo para as características do conto.
Na época das grandes viagens que colocaram as Américas
nos mapas europeus, entretanto, as descrições elaboradas de cani
balismo, com ilustrações que diziam ser reproduções fiéis do que
o narrador tinha visto, começaram a circular. As ilustrações co
meçam com o relato de Colombo sobre encontros com os nati
vos do Caribe - os caribenhos, como ficaram conhecidos, de quem
o termo “canibal” deriva. Talvez as ilustrações e o relato mais dra
máticos foram aqueles publicados por Hans Staden, uma descri
ção de seus meses como prisioneiro de uma tribo brasileira, sendo
preparado para o sacrifício, contado para e escrito por um ami
go quando retornou à sua Alemanha e ilustrado por outro co
nhecido sob orientação de Staden.3As acusações de canibalismo se
espalharam, então, sem muito cuidado, sempre com o efeito de mar
car inimigos com esse rótulo de completa selvageria ou - e isso
também é parte de uma história da recepção do canibalismo - com
o efeito de chamar atenção para o que o falante considera ser sel
vageria de seu próprio povo. Cabeza de Vaca, por exemplo, relata
o horror demonstrado pelos índios na Flórida quando souberam
que, tomados por grande fome, invasores espanhóis tinham comido
seus próprios companheiros4; de forma semelhante os conquistado
res do México - no relato de Bernal Díaz - ressaltam a selvageria dos
astecas, chamando a atenção para o fato de eles sacrificarem jovens
em nome dos deuses e depois os comerem5; também, nas guerras
religiosas que aconteceram na Europa durante o século XVI - o
século de colonização e conquista das Am éricas - , os protes
tantes que se opuseram às doutrinas católicas da eucaristia acu
saram seus oponentes de propor ou praticar um canibalism o
do divino.6 De fato, como mostrou Frank Lestrignant, ao longo
8. Apresentei aqui um resum o de alguns dos argum entos de Lestrignant em seu Jean
de Léry ou r invention du sauvage: Essai sur V “Histoire d ’un Voyage fait en la terre
du Brésil”. Paris: Honoré Champion Éditeur, 1999. Ver tam bém : Jean de Léry, Histoire
d ’um Voyage fait en la terre du Brésil. Edição, introdução e notas Jean-Claude
Morrisot; índice de conceitos etnológicos Louis Necker. [ 1580]. Geneva: Droz, 1975;
André Thevet, Les singularités de la France Antarctique. Edição fac-símile apresen
tada por Jean Baudry, introdução Pierre Gasnault. Paris: Le Temps, 1982; Theodore
de Bry, Lê Théatre du Nouveau M onde: Les Grands Voyages de Theodore de Bry.
Apresentação M arc Bouyer e Jean-Paul Duviols. Paris: Gallimard, 1992; Claude
Lévi-Strauss. Tristes Tropiques. Paris: Plon, 1955.
9. Ver: Jean de Léry, Viagem à terra do Brasil. Tradução e notas Sérgio Milliet. Bibli
ografia Paul Gaffarel. Coloquio na língua brasileira e notas sobre o Tupi de Plínio
Ayrosa. Belo Horizonte: Editora Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São
Paulo, 1980 ( Histoire d ’um Voyage fait en la terre du Brésil [Geneva: A ntoine
Chuppin, 1580]).
vel e humano que o tratamento europeu de seus pobres ou de seus
criminosos.10 Mas esse não foi o único choque: o outro é que a
noção de canibalismo está agora normalizada; no final do ensaio,
sabe-se, Montaigne mistura o costume com outros costumes e
como tal não deve ser levado a sério.
Quando, na década de 1980, surgiu uma controvérsia sobre
a possibilidade de ter de fato existido algum tipo de canibalismo
nas Américas, mais uma vez o discurso sobre o canibalismo foi
usado para formular argumentos sobre assuntos de intenso inte
resse político e cultural. Negar a existência histórica do canibalis
mo torna-se uma form a de afirm ar a virtude de populações
subjugadas no curso de várias incursões europeias em um violen
to processo que, foi dito, usava acusações de canibalismo como
justificativa para conquista e chacina; a repugnância contra o que
os europeus fizeram nas Américas fez com que relatos de caniba
lismo parecessem álibis em vez de observações antropológicas:
um recurso para mentiras que serviram para desumanizar suas
vítimas.11 As objeções contra relatos de canibalismo têm um du-
12. Ver: Sant’Anna, Attonso Romano de. O canibalismo amoroso. Rio de Janeiro:
Rocco, 1993.
Manifesto Antropofágico, de Oswald de Andrade, que não só abra
çou aqueles que definiu como os ancestrais canibais de todos os
brasileiros, mas também postulou sua relação subversiva com to
das as importações estrangeiras na cultura brasileira: o estrangei
ro foi canibalizado, ou seja, devorado e assimilado, assim como
os índios canibais tinham devorado e assimilado os europeus
que capturaram.13 De acordo com Costa Lima, o canibalismo,
como proposto por Oswald de Andrade, foi obviamente meta
fórico, mas apresentou uma análise importante da relação entre
o colonizado e os colonizadores no Brasil: foi uma “força pri
mitiva de resistência contra a doutrinação do colonizador”, mas
também implicou que “o inim igo” não foi “identificado com
algo impuro ou com um corpo poluído, contato com o qual
seria proibido”, uma visão que ele considera característica do pu
ritanismo. Para Andrade, o canibalismo não negava o inimigo ou o
condenava ao esquecimento; ao contrário. Ele nem, “em seu senti
do literal ou metafórico, recusa a existência de conflito... tampouco,
implica a necessidade de”, enquanto recusa “seu engajamento com
o inimigo em um ato puro de vingança”14.
13. Ver: Andrade, Oswald de. Obras Completas, VI: Do Pau-Brasil à Antropofagia e às
Utopias. Introdução Benedito Nunes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. Os
membros do m ovim ento propu seram um feriado nacional para celebrar a
devoração do Bispo Sardinha, naufragado na costa do atual Espírito Santo.
14. Lima, Luiz Costa. Antropofagia e o controle do Imaginário. In: Jackson, K. David
(Ed.). A Vanguarda Literária no Brasil. Bibliografia e Antologia Crítica. Frankfurt
am Main/Madrid: Vervuert/Iberoamericana, 1998. p. 125-130; p. 125-126. (Extraído
de Pensándonos Trópicos. Rio de Janeiro: Rocco, 1991. p. 2 6 -3 3 .)
Então, não é tão surpreendente que, em um tempo em que a
dominação cultural externa não somente estava incomodada, mas
também parecia digerível, aparecesse no Brasil um filme que le
vantasse o problema do canibalismo do passado brasileiro, tra
tando-o sem a sobreposição de choque e admiração, ou sem a
condenação normal que receberia em qualquer outro contexto
“europeu” ou “civilizado”. É sob esta luz que sugeriríamos uma
comparação entre o brasileiro Como era gostoso o meu francês e
o estadunidense O Silêncio dos Inocentes, dois filmes que parecem
não ter nada em comum, exceto o fato de o canibalismo estar pre
sente em ambos, mas que, ao mesmo tempo, oferecem não somen
te um contraste muito claro entre os tratamentos culturalmente
sancionados (se não determinados) deste assunto extremamente
sobrecarregado de sentidos, mas também mais um exemplo do
uso do canibalismo como uma forma de discurso sobre fatos de
grande importância.
Este ensaio também aponta para uma leitura mais contem
porânea de canibalismo nos filmes brasileiros recentes, especialmente
Central do Brasil (1998), dirigido por Walter Salles, e Cronica
mente Inviável (2000), dirigido por Sergio Bianchi.15Aqui saímos
do canibalismo e vamos para o tráfico de órgãos, como outra me
táfora por extensão do consumo de carne humana, como con-
16. Hamid Naficy define duas tendências principais dentro da produção contem po
rânea de filmes: um a produção de filmes de exílio e de diáspora com o um a “prá
tica alternativa” a qual ele define com o a produção cinem atográfica dominante
dentro dos conglomerados de um novo sistema pós-industrial (p. 126-129). Ver:
“Entre as rochas e lugares íngremes: o m odo intersticial de produção no cinema
de exílio”. In: Home, Exile, Homeland Film, Media, and the Politics of Place. AFI
Film Reader Collection. New York; London: Routledge, 1999.
teiras genéricas cinematográficas tornam-se fluidas à medida que
incluem os códigos de gêneros diferentes, tais como, terror, dra
ma, western, suspense, documentário e ficção historiográfica, na
mesma malha de narrativas ficcionais que desenvolvem.17 Entre
tanto, este ensaio argumenta que esses filmes precisam ser vistos
dentro de suas estruturas locais e internacionais para um entendi
mento a respeito de sua especificidade, apesar de todos os seus
elementos comuns; especificamente seu tratamento de canibalis
mo precisa ser examinado em termos temáticos e estéticos. Em
bora eles apareçam em um mapa transcultural e globalizado, po
dem somente fazer sentido quando novamente territorializados
dentro de seu próprio lugar de produção.
17. Em “Beyond Third Cinema: The Aesthetics of Hybridity” Robert Stam discute as
diferentes tormas de hibridismo na produção do Tropicalismo e a “estética do
lixo”.Guneratme, Anthony R. (Ed.). Rethinking Third Cinema. London: Routledge,
2003. Para uma discussão de cinema e de diaspora ver: “Rumo ao Norte: Da
Diáspora ao Nomadismo” de Denilson Lopes, paper apresentado no X Encontro
Socine, 2006 (Ouro Preto).
dos Santos, apresenta um ato coletivo de canibalização no qual
um marinheiro francês, no Brasil do século XVI, expulso de uma
comunidade de huguenotes (mais do que somente suposições de
Léry), é capturado pelos Tupinambás, uma tribo de canibais, e é
finalmente devorado depois de um ritual da tribo. O Silêncio dos
Inocentes, uma produção estadunidense, dirigida por Jonathan
Demme, lançada em 1991, foi classificada como um filme de ter
ror; seu enredo gira em torno de uma jovem detetive do FBI, à
qual cabe investigar um caso de matador em série, chamado Buffalo
Bill. Clarice Starling, a jovem detetive, de forma astuta, confia no
conhecimento de um psiquiatra, que está preso por uma série de
mortes envolvendo canibalismo, para resolver o mistério.
Enquanto Como era gostoso o meu francês escapa a qual
quer tipo de gênero cinematográfico - é parte documentário, par
te ficção historiográfica e parte drama psicológico O Silêncio dos
Inocentes se situa claramente nos gêneros de terror e suspense. Seu
enredo envolve a resolução de uma série de crimes brutais contra
mulheres, incluindo a retirada de suas peles, enquanto Clarice
Starling, a agente do FBI, se envolve com o psiquiatra canibal
Hannibal Lecter, a fim de resolver o mistério. Enquanto O Silêncio
dos Inocentes tem um enredo bem resolvido, com uma heroína
protagonista no meio dos dois assassinos psicópatas, Buffalo Bill e
Hannibal Lecter, Como era gostoso o meu francês desafia qualquer
tipo de perspectiva individualista. Ele inclui somente umas poucas
cenas subjetivas e apresenta uma protagonista heroína questionável,
cujo maior interesse é a coletividade: o filme se centra na prepara
ção do prisioneiro europeu que será comido pela tribo.
Além de sua distância em termos de gênero cinematográfico
e de suas estruturas narrativas diferentes, o filme brasileiro faz parte
de um movimento político dentro da produção cinematográfica bra
sileira, ao passo que O Silêncio dos Inocentes é uma produção
hollywoodiana, projetada para grandes públicos e bastante efetivo
em seus efeitos bombásticos, edição e uso de som. Recebeu cinco
Oscars e apresenta um canibal inesquecível representado pela estre
la internacional e sucesso de bilheteria Anthony Hopkins. Essa pro
dução de alta qualidade parece ser o oposto do estilo documentário,
bruto, realista e quase antropológico de Como era gostoso o meu
francês. Por meio de sua estética, o filme brasileiro resiste ao poder da
indústria de Hollywood, rejeita os valores de uma classe dominante
da alta burguesia e os vários modos discursivos dominantes usados
para representar o Outro, o índio, o canibal, o antepassado brasileiro.
Os diferentes tratamentos ao canibalismo nos filmes indi
cam a diferente inserção do tema dentro dos dois meios culturais,
brasileiro e estadunidense, marcando suas posições antitéticas
em relação ao canibalismo, relacionadas ao valor que colocam
sobre o coletivo versus o individual. Dessa forma, os filmes colo
cam em primeiro plano suas críticas específicas à cultura na qual
estão inseridos. Em O Silêncio dos Inocentes, o ato de canibalis
mo é quase uma autofagia: é individual, alienado a qualquer co
munidade, predatório à sua própria coletividade, embora seja jus
tificado pelo Dr. Hannibal como forma de limpar a sociedade de
seus patifes. No caso do filme de Pereira dos Santos, a estratégia é
minar suposições históricas sobre o canibalismo e transformá-lo
em alegoria da relação colonial entre o Brasil e a Europa, seja em
termos econômicos, seja em termos culturais.
Diferentemente, no filme de Pereira dos Santos a nacionali
dade do outro canibalizado é francesa: a vítima (ou a refeição) é
um homem francês que foi erroneamente identificado pelos
Tupinambás como um português. Então, embora a verdadeira iden
tidade do francês pudesse salvá-lo dos Tupinambás, já que os fran
ceses eram seus amigos e aliados, a persistência da identidade trocada
parece indicar que não existe diferença significativa entre os portu
gueses e os franceses: se a colonização portuguesa significa escra
vidão econômica para os brasileiros durante os tempos coloniais,
seu correlativo em termos culturais, através de muitas décadas, é a
cultura francesa, que representa um papel hegemônico na alta
cultura brasileira. Portanto, ao usar um “pobre francês” como exem
plar do tipo europeu para ser eliminado, o filme expande a alegoria
da colonização para sugerir que é inclusiva de colonização cultural
no presente. Nesse sentido, a alegoria que está sendo construída pelo
filme implica uma forma indireta de falar sobre o “outro”.
Tradicionalmente, a alegoria tem sido associada à escrita polí
tica como uma forma invertida e subvertida de falar de outras reali
dades, realidades que não podem ser clara ou abertamente aborda
das. Nesse caso, o filme brasileiro constrói uma alegoria coletiva de
colonização ao longo da história até o tempo presente, e, embora o
filme pareça tratar de tempos coloniais, sua alegoria nos remete à
década de 1970 e a outras formas de colonização. A antropofagia
então se torna um signo da resistência política e cultural a todas as
formas de colonização, da forma como está articulada no “Manifes
to Antropofágico” de Oswald de Andrade e, mais tarde, no Movi
mento Tropicalista, que inclui o movimento do Cinema Novo, do
qual, por sua vez, Como era gostoso o meu francês é um novo
ramo. Dentro desse contexto cultural, o canibalismo significa a
destruição de um oponente pela incorporação. Enquanto o fran
cês é finalmente devorado pela tribo, ele também é destruido.
A transformação também acontece em um nível discursivo,
já que Como era gostoso o meu francés transforma os ideais ro
mânticos de índias virgens do século XIX em uma protagonista
indígena, cuja fidelidade volta-se para sua tribo e para seus valores
comunitários, ou seja, para sua própria realidade. Diferentemente
da romântica Iracema (a bela e virgem índia que tem um filho
com o conquistador português - protótipo e antepassado do povo
brasileiro - e então convenientemente morre), Seboipepe, a pro
tagonista do filme, vive como a esposa carinhosa do francês até
seu sacrifício final. Ela não demonstra desejo de fugir com ele a
fim de salvá-lo nem, na cena final, de esconder seu prazer enquan
to devora a carne do francês. A aparência de Seboipepe, enquanto
morde o corpo do francês, parece confirmar para o público que ela
não sente remorso ou saudade de seu francês. A assimilação final
dele pela tribo significa, finalmente, seu desaparecimento e des
truição. Ironicamente, a cena que mostra o ponto de vista de
Seboipepe, uma das poucas cenas subjetivas do filme, não mostra
qualquer romantismo.
Além dessa canibalização da imagem da inocente índia român
tica virtuosa, o filme de Pereira dos Santos faz paródia de gêneros e
estilos cinematográficos diferentes para se dirigir de novo ao seu pró
prio meio como forma de questionamento, que é potencialidade
alegada para revelar o “real”. O filme desestabiliza as expectativas do
público quando mistura documentário, ficção historiográfica e o dra
ma supostamente subjetivo do prisioneiro. Em uma sequência hila-
ríante, enquanto os huguenotes estão afogando seu companheiro fran
cês por cobiçar e flertar com índias, um narrador com uma voz de
huguenote lê uma carta a ser enviada para os oficiais europeus que
declara que o francês cometeu suicídio. O discurso histórico está pa
rodiado e questionado em sua suposta verdade. Nesse uso de alego
ria e paródia, o filme funciona em um nível metalinguístico, questio
nando suas próprias formas de representação.
Se o manifesto modernista de Oswald de Andrade celebrava
a antropofagia como forma de reação política contra a hegemonia
europeia cultural e propunha a destruição da cultura europeia pela
canibalização, Como era gostoso o meu francês apresenta uma crí
tica de qualquer forma de celebração. Em uma de suas sequências
finais, que mostra a maldição do francês contra os Tupinambás,
“Meus amigos virão e se vingarão por mim”, a história parece mi
nar o tom celebrante da canibalização dos índios, já que a maldição,
no fim das contas, foi revelada no filme como uma realidade his
tórica. Como uma das legendas finais do filme indica, lá pelo final
do século XVI, milhares de índios brasileiros já tinham sido massa
crados pelos europeus, e o resto foi sendo dizimado dentro de um
curto período de tempo. Um tipo de profecia deixa o público
desconfortado. Como o filme não tenta resolver a dicotomia entre
os desejos utópicos pelas possibilidades políticas do canibalismo
cultural e o fato histórico da dizimação dos índios, ele também dá
poder ao canibalismo como forma de reagir com relação às condi
ções de subjugação econômica, política, social e cultural.
Em O Silêncio dos Inocentes, Hannibal Lecter é uma figura
isolada. Ele não pertence a nenhuma tribo, e até mesmo sua inser
ção dentro da cultura estadunidense é marcada por uma relação de
diferença. Ele aprecia música clássica, mesmo durante sua festa
canibalística dos corpos dos policiais de Memphis - uma das
sequências mais violentas no filme. Em sua cela, seu desenho de
Clarice retrata-a como um tipo de princesa renascentista. Ele está
cercado de imagens de castelos e referências a Florença. Gosta de
livros, e tudo isso simboliza um gosto apurado, como na sua de
claração insinuante de que ele gostou do casaco da senadora. Além
disso, suas primeiras acusações contra Clarice estão relacionadas
ao fato de ela usar calçados baratos, ter nascido em uma família de
operários e tentar disfarçar seu sotaque da Virgínia Ocidental. O
discurso dele, como forma de identidade, está moldado por dife
renças binárias, como cosmopolita x rural; alta arte x baixa arte;
europeu x americano; intelectualismo x consumo; e classe alta x
classe trabalhadora. As justificativas que ele oferece para seus vári
os crimes estão relacionadas com um desejo de eliminar da socie
dade indivíduos que não têm compostura, como no caso de Miggs;
que são inaptos para sobreviver, como Raspail; ou que são
impiedosos, como Chilton. Como salvador da sociedade, Hannibal
justifica seu próprio barbarismo tornando-se uma monstruosi
dade que precisa ser excluída do convívio social. Seu canibalismo,
justificado no filme como uma forma de limpeza social, purifica
ção e vingança, torna-se uma atividade autofágica, enquanto ele acaba
destruindo qualquer um que se aproxime dele, como uma ameaça
que precisa ser isolada do resto. Não há coletividade em seu ato de
canibalização. Ele está sozinho, alienado do restante da sociedade.
Dentro desse contexto, o filme oferece uma crítica ao purismo
social do discurso do Dr. Hannibal como representativo de uma
posição de classe e como matador de seus semelhantes. O signi
ficado implícito do filme é que, por uma política de exclusão social,
Hannibal acabará ficando tão completamente isolado que seu cani
balismo causará seu próprio fim. Ele então se torna o representante
de uma classe social extinta através de seu próprio isolamento do
resto da sociedade. Isso implica que a estratificação social da qual
ele é um exemplo extremo o levará, ao limite, a uma alienação por
exclusão que causa sua própria destruição - uma sociedade na qual
cada indivíduo é excluído do resto, na qual cada um é um canibal
do outro e de si mesmo: uma sociedade autofágica que come suas
próprias pessoas.
Se o filme de Jonathan Demme foi abertamente criticado
por seu tratamento aos gays, por seu retrato de Buffalo Bill como
um assassino em série, ele também abre espaço para a inserção do
discurso do politicamente correto. Enquanto Buffalo Bill, como
sugere o Dr. Hannibal, foi uma vítima de eternos maus tratos des
de a sua infância, o próprio Dr. Hannibal é a vítima de seu pró
prio niilismo e senso de superioridade intelectual, por sua vez,
apresentado como forma de modernidade atrasada. O filme pare
ce declarar que Hannibal, com todo o seu poder intelectual, sua
habilidade para compreender, para ler o que está implícito em um
texto e para planejar com antecedência, é uma monstruosidade
dentro de um contexto estadunidense pós-moderno. Além disso,
Hannibal só pode existir através do meio cinematográfico, através
deste meio pós-moderno, que apresenta uma mistura de códigos
de vários gêneros, tais como, terror, suspense, western, como um
representante genuíno da cultura bem baixa que Hannibal despre
za. Esse filme lembra uma das violências necessárias do gênero
western, uma violência necessária para restaurar a ordem, uma
ordem social que, por sua vez, se impõe aos índios que realizam escalpo.
Escalpar, tirar a pele e canibalizar são formas diferentes de barbaris
mo que precisam ser corrigidas. No caso do filme de terror, a vio
lência do monstro canibal não parece funcionar como repositório
de ordem social, mas Clarice funciona assim. É ela quem, no fim
das contas, reivindica ordem como uma substituta do pai perdido
que, como policial, foi injustamente morto por ladrões. No final,
Clarice consegue sua medalha, coloca as coisas de volta em seus lu
gares, mas descobre que Hannibal, o coproduto de sua própria so
ciedade, ainda é ameaça, em algum lugar.
De fato, é o irracional Hannibal canibal que ainda anda por
aí, como uma ameaça, mas também como atração que não pode
ser contida. E o monstro, depois de tudo, é libertado em um tipo
de ilha caribenha, vestido em linho, com um chapéu cubano -
muito bem vestido até mesmo para um turista. Charmoso e sedu
tor, esse monstro caminha para longe de nossa visão, à medida
que a câmera vai se afastando, ele ainda aparece ao fundo. Afinal
de contas, “ele receberá um amigo para o jantar” e está pronto para
restaurar ordem de uma forma diferente. A iconografia dessa últi
ma cena é bastante poderosa, embora o método pareça um tanto
antiquado: afinal de contas, já aprendemos que essas ilhas distan
tes, recheadas de canibais, podem ser um modo de deslocar o ou
tro que é intrínseco a nós. Hannibal, o canibal, volta ao local que
uma vez lhe pertenceu - uma ilha tropical. Um paraíso tropical
que, diferentemente do filme de Pereira dos Santos, é desprovido
de conotações políticas aparentes.
Dois filmes brasileiros recentes substituem a alegoria política
de Como era gostoso o meu francês, denunciando a agressividade
social e a degeneração do tráfico de órgãos. Central do Brasil e
Cronicamente Inviável representam a selvageria do tráfico de ór
gãos dentro do cenário brasileiro do fim da década de 1990. O
narrador não confiável de Cronicamente Inviável é um professor,
cujo envolvimento com o tráfico de órgãos é revelado ao público.
No caso de Central do Brasil\ uma professora aposentada é repen
tinamente surpreendida na rede de uma gangue envolvida com o
tráfico de órgãos. Neste, o enredo permite uma restauração da or
dem social através de um investimento pessoal de Dora, que se
esforça para desfazer seus crimes. Em Cronicamente Inviável, en
tretanto, não há gesto de redenção, e o público fica com o caos, a
corrupção e a degeneração do tecido social. Apesar das diferenças
entre os filmes em termos de narrativas e escolhas estéticas - o
filme de Bianchi rejeita qualquer tipo de acomodação ou passivi
dade, já que não há possibilidade de redenção em sua narrativa
fragmentária e agressiva, ao passo que o de Salles usa um final
catártico no qual Dora é, no fim das contas, capaz de se redimir - , o
tráfico de órgãos como consumo de carne humana pode ser visto
como uma metáfora para aquilo que não pode ser nomeado, para
o espantoso, o horror de uma praga que subjaz toda a ordem soci
al e que subscreve o tráfico: a saber, o capital. Aparentemente com
um papel apolítico, essa forma de canibalismo existe dentro de
uma forma absurda de distribuição de capital que perdeu sua de
pendência do coletivo.
Nessa visão, o canibalismo funciona como uma metáfora para
o nosso entendimento do local (Brasil ou Estados Unidos) dentro do
global (o cenário transnacional no qual os filmes são exibidos, pro
duzidos e consumidos: ou, quanto a isso, cenário no qual órgãos são
comercializados e consumidos) - como formas culturais que viajam
e contaminam umas às outras, como práticas culturais que podem
ser analisadas e que podem nos ajudar a compreender nossa pró
pria localização dentro de nossos mapas culturais e de suas frontei
ras fluidas ou transgredíveis. Longe dos Tupinambás, cujo caniba
lismo pode ser lido como uma alegoria de desobediência política
contra o colonialismo cultural, e longe do sem-tribo Hannibal ca
nibal, que é “o outro”, os canibais de Central do Brasil e Cronica
mente Inviável são uma praga, não detectada, disseminada por todo
lugar na malha social do próprio capital.
Imagens de itinerância
no cinema brasileiro
Andréa França
Introdução
R eferên cias
______ ; GUATTARI, Felix. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997b.
Sheldon Lu
* Tradução de Lúcia Lovato Leiria. [N. T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Este artigo é uma versão traduzida e reduzida de“Dialect and modernity in 21st century
Sinophone Cinema”, Jump Cut, n. 49, spring 2007.
Nanjing estabeleceu um conselho de censura de cinema logo após
a unificação da China em 1927. A República Popular da China
determinou que o mandarim se tornasse a lingua franca do cine
ma chinês e proibiu o uso de dialetos locais, como o cantonês.
Uma China unificada deve ter uma língua chinesa unificada. As
sim, o cinema falado em cantonês poderia somente ser realizado
fora da soberania da nação chinesa, na ilha de Hong Kong.
Quando a República da China mudou-se para Taiwan, após
o final da dominação japonesa, os habitantes que detinham poder
em Taiwan estabeleceram o mandarim como o dialeto oficial da
ilha. Existem dois cinemas paralelos em Taiwan: o cinema falado
em taiwanês (hokkienese) e o cinema falado em mandarim. Após
a queda do Partido Nacionalista e com o surgimento de senti
mentos separatistas e pró-independência em Taiwan desde o final
do século XX, o dialeto local adquiriu importância em todas as
esferas da vida, inclusive na política presidencial. Além de utilizar
uma variedade de línguas e dialetos, a nova geração de cineastas
de Taiwan, como Hou Hsiao-hsien, tem também explorado cons
cientemente as complexidades políticas e históricas que envol
vem a China e Taiwan. Essa pluralidade linguística é mostrada em
alguns de seus filmes, principalmente em A Cidade das Tristezas
(Beiqing chengshi), onde se escuta uma profusão de dialetos e lín
guas: mandarim, hokkienês, hakka, shanganês e japonês. Além dis
so, o protagonista do filme é um fotógrafo surdo, incapaz de falar
qualquer dos dialetos chineses/taiwaneses. Essa situação, portanto,
intensifica a questão de qual deveria ser a língua materna de Taiwan.
Quanto a Hong Kong pós 1949, também podemos falar em
dois cinemas paralelos: o cinema falado em cantonês e o falado
em mandarim. Embora inicialmente predominante, o cinema fala
do em mandarim foi gradualmente perdendo sua ascendência em
relação ao cinema falado em cantonês, devido a grandes mudanças
sociais e demográficas, denominadas movimentos de catequização,
ou “Hong Kongization\ a partir da década de 1970.
Na República Popular da China, a política oficial do cinema
determinou que o mandarim fosse a língua padrão do cinema,
apesar da grande variedade de dialetos chineses existentes dentro
da nação. A esmagadora maioria dos filmes produzidos na China
tem de fato utilizado o mandarim. No entanto, no período de
“Reformas e Abertura” pós-Mao, surgiu uma variedade de produ
ção cinematográfica, e a política linguística tornou-se mais
diversificada. A determinação de usar somente o mandarim foi
definitivamente ignorada. Mesmo os filmes da mainstream (Xuan
Zhu lii) que retratam a vida de ex-líderes do país geralmente usam
os dialetos locais dos personagens em questão. Por exemplo, o
ator de Mao fala um dialeto hunanês, como falou o próprio Mao
durante a sua vida. O ator Yue Gu, consequentemente, ficou fa
moso e conhecido por seu personagem que se parecia e falava
como Mao. Nesses casos, o uso de dialetos locais (“estranhos”,
“curiosos”) cria uma atmosfera de realismo, ou, no caso da co
média, provoca risos no público. Enquanto isso, cineastas cons
cientes do cinema de arte também empregam dialetos locais es
pecíficos para alcançar determinados efeitos estéticos. Fora da
soberania do Estado chinês (República da China ou República
Popular da China), a questão do dialeto chinês ainda é um tanto
delicada. A cidadania chinesa em si pode não ser mais relevante,
mas as questões de etnia, identidade chinesa e multiculturalismo
A
assumem grandes proporções. Por exemplo, Cingapura é um país
independente da China e é dirigido por uma elite de etnia chine
sa. A sua política linguística e seu cinema trazem à tona um novo
conjunto de aspectos para o estudo do cinema de língua chinesa.2
Além disso, na virada do século XXI, a produção e a circulação
generalizadas de filmes em língua chinesa fora do Estado-nação
chinês, na diáspora e no mundo, complicaram ainda mais a polí
tica linguística no discurso cinematográfico.
Este ensaio tem como objetivo explorar o uso de dialetos
em vários filmes falados em língua chinesa no início do século XXI.
Analiso rapidamente como exemplo alguns desses vários filmes:
- um filme de arte sobre a China continental, O M undo
(2004), de Jia Zhangke, cujos trabalhos desenvolveram uma esté
tica cinematográfica dialetal baseada nos dialetos Fenyang e
Datong, de Shanxi;
- os filmes pan-chineses de Zhang Yimou, H erói (2002) e O
Clã das Adagas Voadoras (2004), que envolvem um elenco de es
trelas da Grande China, todas falantes do mandarim.
Analiso como esses filmes articulam olhares distintos da Chi
na como Estado-nação ou de identidade chinesa como etnia. Os fil
mes dirigem-se a diferentes públicos e incorporam várias concep
ções sobre a China. A forma como um filme explora determinados
3. Xiaoping Lin apresenta um estudo criterioso dos filmes de Jia em seu ensaio “Jia
Zhangke’s Cinematic Trilogy: A Journey across the Ruins of Post-Mao China”. In:
Lu, Sheldon H.;Yueh-yuYeh, Emilie (Eds.). Chinese Language Film\ Historiography,
Poetics, Politics. Honolulu: University of Hawaii Press, 2005. p. 186-209.
O belo cartão postal, o simulacro pós-moderno dos monumentos
do mundo, contrasta fortemente com as condições miseráveis da
vida moderna dos trabalhadores e animadores do local. O primi
tivo está condenado a viver num pequeno canto do amplo mun
do. O Parque Mundial funciona como monumento à integração
do imaginário da China ao mundo em geral, mas os habitantes
(personagens) da província de Shanxi não participam desse ad
mirável mundo novo. Eles são itinerantes à margem da moderni
zação da China. Na verdade, essas pessoas são apelidadas de “jituan
Beipiaó” (grupo itinerante do norte). Essa população itinerante
vai para Pequim para perseguir sonhos e procurar emprego, so
mente para serem abandonados. Eles vivem em um universo falso
e só podem sonhar em conseguir uma carona na onda do enri
quecimento. No final do filme, ocorre uma tragédia: Zhao Xiaotao
e seu amante Taisheng, um oficial de segurança do Parque, são
inadvertidamente envenenados com gás em seu apartamento. Eles
quase morrem.
O filme utiliza um dialeto da província de Shanxi, falado
por Zhao Xiaotao, Taisheng, e personagens de sua cidade natal,
Fenyang. O dialeto local falado por esses personagens vai de en
contro ao anônimo e universal putonghua (mandarim) procla
mado nos alto-falantes do parque. O dialeto provinciano aqui
denota atraso, falta de modernidade e incompatibilidade de uma
China pobre com um mundo pós-moderno virtual. Esses
migrantes representam inúmeros cidadãos chineses que foram
esquecidos pelo crescimento econômico da China e que não con
seguiram nenhum dos frutos da modernização. O Parque Mundi
al apresenta o mundo aos visitantes chineses, mas, por trás de sua
aparência brilhante, reside a mera luta dos cidadãos pela sobrevi
vência. Na verdade, o mundo virtual em miniatura aprisiona seus
trabalhadores e é uma paródia da globalização. O provincianismo
do dialeto e dos personagens revela que as províncias não acom
panham Pequim, a capital, e que as pessoas não dançam na mesma
batida moderna em todo o imenso país.
Nos dias chuvosos e escuros, os personagens sonham com
situações reais e mais felizes na vida - amor, amizade, festa. Os
lampejos de esperança, neste filme, são mostrados em curtas e ilu
minadas sequências de animação - fantasias surreais, infantis e de
histórias em quadrinhos, que não podem se tornar realidade. Se
um amante ou amigo deixa uma mensagem no celular, ela parece
ser a única fonte de felicidade dos personagens. O toque do tele
fone, portanto, rapidamente traz esperança e mobilidade aos per
sonagens que se encontram cheios de dificuldades. Toda a vez que
Zhao Xiaotao recebe uma mensagem, o filme transforma-se em
animação e assume um colorido brilhante e esperançoso. Ela en
tão corre para o local para encontrar o amante ou os amigos. O
mundo dos sonhos e a dura realidade justapõem-se e entrelaçam-se
no simulacro pós-moderno do Parque Mundial. A vida privada da
dançarina Zhao Xiaotao periodicamente entra e sai da sincronia do
ritmo da globalização.
O Mundo revela a estética cinematográfica habitual de Jia:
câmera imóvel e estática, deslocamento lento e horizontal,
sequências longas, planos médios e inexistência de close-ups. Ao
privar o público de close-ups, o filme mantém uma distância
crítica entre espectadores e ator. Para o espectador comum, a uti
lização do dialeto de Shanxi no filme também gera um efeito de
estranheza, distanciamento e alienação. O espectador é posicionado
como um observador frio, independente dos acontecimentos que
se desenrolam ao longo do filme. Ela/ele é convidado pelo olhar
da câmera para ser testemunha de uma descrição realista e objeti
va do mundo chinês caracterizada pela grande disparidade e falta
de sincronia entre seus cidadãos, envolvidos nos jogos intensos
da modernização e da globalização.
Além de Jia Zhangke, recentemente, outros diretores emi
nentes têm utilizado dialetos na elaboração de sua linguagem ci
nematográfica. Os dois filmes do jovem e popular diretor Lu
Chuan são filmes que exploram os dialetos. Por exemplo, A Arma
Perdida (Xun Qiang>2002) utiliza um dialeto da província de
Yunnan. O sotaque “engraçado” da província, juntamente com o
desempenho estelar de Jiang Wen, incrementa o senso cômico do
filme. Kekexili (Patrulha da Montanha, 2004) mistura a língua
tibetana e o dialeto chinês falado em Qinghai, no Tibete. O jeito
de falar dos personagens impregna o filme com um sentimento
autêntico, documental, cru, corajoso. Peacock, o vencedor do Urso
de Prata (Grande Prêmio do Júri) no Festival de Cinema de Berlim,
em 2005, foi dirigido por Gu Changwei, diretor de fotografia que
se tornou diretor. Durante todo o filme, ouve-se o dialeto de
Anyang, da província de Henan. Aqui, a fala local dessa região
ajuda a transmitir o estilo de vida em confinamento de uma famí
lia comum chinesa em uma pequena cidade do interior no final
da década de 1970, período de transição da história chinesa entre
a economia socialista de Mao e a economia de mercado de Deng,
um tempo que despertou esperança e desespero. Quando os ofi
ciais paraquedistas do Exército de Libertação do Povo chegaram à
cidade, Sister encantou-se com o elegante sotaque de Pequim de
um oficial jovem e bonito. Aqui, a conotação é a de que o dialeto
de Pequim, como “fala padrão nacional”, representa os sonhos e as
esperanças dos falantes do dialeto local.
5. Yingjin Zhang salienta que“aos olhos de muitos críticos chineses, a arte é coniven
te com a política na submissão simbólica de Zhang ao poder tirânico em uma
nova alegoria da China unificada como tianxia (literalmente ‘debaixo do céu’).” In:
Zhang, Yingjin. CA/tfíw National Cinema. New York; London: Routledge, 2004.
p. 293.
exterior. Mas Zhang Yimou visa à criação de um mundo pan-chi-
nês, pan-mandarim na área da Grande China para seus filmes cir
cularem livremente. A autenticidade linguística não é um proble
ma no mercado-alvo internacional.
Além disso, o efeito desejado é a criação de uma linhagem de
filmes chineses supranacionais para serem vistos e apreciados pelo
público mundial. O Zhang Yimou das artes marciais pan-chinesas já
se distanciou um tanto de um Zhang iniciante que cuidadosamente
explora os problemas sociais contemporâneos da China continen
tal. Por exemplo, em A História de Qiu Ju (1993), a autenticidade
dialetal é crucial para a estética do filme. Gong Li e outros atores
tiveram de aprender a falar o dialeto de Shanxi corretamente, para
retratar seus personagens com fidelidade. Mais especificamente o
dialeto Shanxi utilizado no filme não é um dialeto Shanxi comum,
mas o dialeto de Baoji, “o resultado do encontro de imigrantes de
Sichuan, Gansu e Ningxia.” Como nos lembra Edward Gunn,
“como Zhongjiang e Wanxian na comédia sobre Chengdu e
Chongqing, ou Subei, na comédia sobre Xangai, os moradores de
Baoji foram ridicularizados em X ifnaycomo o estereotipo de bár
baros, excéntricos de raciocinio lento.”6
O dialeto Baoji soa de forma ainda mais caipira e local que
alguns outros dialetos de Shanxi. Mas esse tipo de realismo
linguístico e atmosférico não é mais levado em consideração nos
novos filmes de Zhang, cujo sucesso deve-se à fabricação de cenas e
Cinema sinófono?
10. Ver a seção “Anglophone National Cinemas”. In: Hili, John; Gibson, Pamela Church
(Eds.). World Cinema: Critical Approaches. Oxford: Oxford University Press, 2000.
p. 117-142. O cinema anglófono inclui o cinem a da Grã Bretanha e de suas
colônias históricas - Estados Unidos, Canadá, Austrália, entre outras.
Apesar da crescente utilização da língua árabe e das línguas lo
cais em todo o continente Africano, a referência ao cinema
francófono africano continua sendo válida. Ela entende o cine
ma Africano em seu contexto histórico e é uma forma mais forte
de promover os filmes desses países individualmente. Também
representa um contrapeso a uma crescente incursão do cinema
anglófono.11
11. Live Spaas, The Francophone Film: A Struggle for Identity. M anchester; New
York: M anchester University Press, 2 0 0 0 . p. 131.
12. H a rg re a v e s, A lec G .; M cK in n ey , M ark . I n tro d u c tio n : T h e p o s t-c o lo n ia l
problem atic in co n tem p o rary Fran ce. In: H argreaves, Alec G .; M cKinney, M ark
(E d s.). Post-Colonial Cultures in France. L on d on ; New York: R outledge, 1997.
p. 4.
A Grande China não é necessariamente uma entidade
monolítica, colonial e geopoliticamente opressora ou um concei
to intrinsecamente conservador. Tampouco a produção cultural
sinófona origina-se dos limites de um discurso contra-hegemônico
inerentemente pós-colonial. O impacto político e cultural de um
filme depende de determinadas conjunturas de forças e circuns
tâncias. Pode ser útil para revisitar a velha problemática do colo-
nial/pós-colonial no contexto de nosso estado atual de existência,
a saber, uma nova onda de globalização que se intensificou na era
pós guerra fria. Transnacional, que ultrapassa as fronteiras, o cine
ma sinófono anda de mãos dadas com a globalização e é seu
epifenómeno. Os filmes de língua chinesa dirigem-se a públicos
além do Estado-nação chinês, envolvem os cidadãos de Taiwan,
Hong Kong, Macau e os espalhados pela diáspora chinesa, bem
como atingem espectadores interessados no mundo todo. O ci
nema sinófono assume uma posição mais flexível em relação à
identidade nacional e à afiliação cultural.
Não há nenhuma voz dominante. As múltiplas línguas e di
aletos usados nos vários tipos de cinema sinófono atestam a
fragmentação da China e da identidade chinesa. Cada falante de
um dialeto é a voz de uma classe especial, representa um estágio
particular do desenvolvimento socioeconómico e representa um
nível específico de modernidade dentro de um confuso conjunto
de formações heterogêneas na China e na diáspora chinesa. Essa
profusão de sotaques, de fato, abrange um mundo pan-chinês -
um coletivo de diversas identidades e posicionamentos que
uma única entidade geopolítica e nacional é incapaz de conter.
Shzjie ou tianxia não é um mundo monológico falante de uma
linguagem universal. O mundo do cinema sinófono é um campo
de articulações multilíngues e multidialetais que desafiam e
redefinem constantemente os limites de grupos, etnias e afiliações
nacionais.
O cin em a na Á frica: dos co n to s
an cestrais às m istificaçõ es
cin e m a to g rá fic a s
M ahomed Bamba
5. É bom lembrar que esse compromisso dos cineastas africanos com o pan-africanismo
se afirmou bem cedo, em 1969, de forma programática, pela criação da Federação
Pan-africana dos Cineastas (Fepaci).
evento cinematográfico no maior espaço de encontros e de in
tercâmbio entre os cineastas de todos os países africanos. O festival
de Ouagadougou é também uma ocasião de diálogo direto dos cine
astas africanos com o seu público local. As ambições pan-africanistas
do Fespaco estão no fato de criar uma rara oportunidade de exibi
ção dos filmes africanos para um público africano.6Com o gover
no revolucionário instaurado pelo presidente militar Thomas
Sankara, o Fespaco passou a ter maior ressonância, pois correspondia
aos anseios políticos, isto é, propor um modelo de integração cul
tural dos povos africanos e de resistência àquilo que se considera
va ainda como resquícios do colonialismo e do imperialismo oci
dental francês na África.
É no próprio prêmio do Fespaco que muitos reconhecem cla
ramente as ambições pan-africanistas do maior festival dedicado ao
cinema negro-africano sobre solo africano. Em 1972, os organizadores
do Festival Pan-africano do Cinema de Ouagadougou instituíam
o prêmio L’Étalon de Yennenga7. Esse prêmio recompensa o lon
ga-metragem que, além das suas qualidades técnicas, melhor se
esmerou na descrição das realidades da África. A cada edição do
Fespaco, e por meio desse prêmio, espera-se dos cineastas africanos
que tragam filmes que apresentem uma imagem justa do continen
te negro, isto é, uma imagem que não deva ser necessariamente
6. A maioria dos filmes selecionados e premiados, com o se sabe, nem sequer conse
guem ser distribuídos nas salas de cinema africanas.
7. Conforme a tese de doutorado que Stanislas Bemile Meda consagrou ao sentido e valor
do prêmio do Fespaco: Le film Airicain face ala competition: analyse des PrixÉtalon de
Yennenga de 1972 à 2005. IUT Michel de Montaigne-Université de Bordeaux 3.
angelical, mas tampouco estereotipada. Os objetivos do Fespaco per
manecem como a expressão mais concreta do pan-afiricanismo que
domina todas as produções artísticas africanas. Com o passar do tem
po, em virtude desses objetivos federativos, o festival abriu suas por
tas para produções cinematográficas provenientes da diáspora negra.
Paradoxalmente, é o ocidental, através de sua crítica cinefílica,
seus mecanismos de apoio aos cineastas africanos e seus festivais8,
que vai reafirmar a natureza pan-africanista das produções cine
matográficas provenientes do continente negro. No contexto de
uma globalização que se parece cada vez mais com uma tendência
à americanização das culturas, os esforços dos governos europeus
em sustentar a produção e difusão de seus cinemas se estenderam
às tentativas de sobrevivência das expressões artísticas dos países
menos desenvolvidos. É por meio dessa disposição de muitos paí
ses europeus, para tornar viável o conceito da diversidade cultural,
que muitas cinematografias africanas vivem um novo momento
da sua longa e sofrida trajetória. Ao arquitetar políticas culturais
para sustentar e proteger as suas produções cinematográficas, a
França busca também fomentar produções de filmes do sul.9
8. Há cada vez mais festivais internacionais em que as produções africanas são selecionadas
e apresentadas como um todo. Se esses festivais não são dedicados aos filmes de um
determinado país africano, isso se deve, de um lado, à fraca quantidade de filmes
produzidos por país, de outro, às características tem áticas e formais com uns
aos filmes africanos. O exemplo do Festival des Cinémas d’Afrique du pays d’Apt
í Vaucluse - França) é interessante, pois inclui, além da programação de alguns filmes
do Fespaco, vários debates entre cineastas africanos e o público jovem das escolas.
9. Conforme o livro Au sud du cinéma: films d ’A frique, dAsie et dAm érique Latine,
organizado por Jean-Michel Frodon e editado por Cahiers du Cinema e Arte Editions.
Nesse modelo de produção descentralizado, os cinemas afri
canos vivem um outro paradoxo, comparável à emergência de uma
literatura africana em língua do colonizador. No plano da produ
ção e da distribuição, esses mecanismos de ajuda mantêm todos
os cinemas africanos numa forma de dependência com o exterior.
Salvo algumas exceções, podemos dizer também que o papel fun
damental da cooperação na produção e circulação dos filmes afri
canos afastou de vez qualquer esforço dos governos locais para
esse setor. Isso faz com que as cinematografias africanas sejam uma
das raras do mundo em que todos os filmes são produzidos na
total inexistência de uma política cultural e cinematográfica dig
na desse nome.
No que diz respeito aos países de língua francesa, a cooperação
histórica com a França está na base de quase todas as produções. A
famosa exceção cultural francesa, que é uma estratégia para a própria
França preservar o seu cinema contra a invasão hollywoodiana, foi
transformando-se aos poucos num princípio de salvaguarda e de
promoção de todas as cinematografias da África francófona. A atua
ção e a intervenção do organismo francês10 de apoio em todos os
diferentes níveis da produção cinematográfica dos países africanos
resumem bem o ideal da exceção cultural francesa.
10. Fonds Sud: esse mecanismo, que faz parte da política de cooperação internacional
da França com o resto do mundo, acabou de com pletar vinte anos de existência.
Enquanto esse fundo gerencia iniciativas e projetos de coprodução com a maioria
dos países latino-americanos e asiáticos, suas ações consistem num financiamen
to integral dos projetos de filmes africanos.
Se esse modelo de produção descentralizado se apresenta como
uma oportunidade imperdível para diretores africanos, por outro
lado levanta a questão de saber até que ponto os filmes que são pro
duzidos com o financiamento da cooperação se encaixam no con
ceito mesmo de cinematografia nacional. Para a maioria do público
africano que não tem muito acesso a esses filmes, não há dúvida: o
cinema africano existe antes de tudo para o público de fora.
Esse paradoxo do modelo de produção vigente é acompanha
do de uma outra contradição vivenciada no polo da recepção; ao
mesmo tempo que os filmes africanos são fartamente realizados com
fundos vindos de fora, esses filmes permanecem longe das salas afri
canas e de seus públicos locais. Às vezes, esses filmes permanecem em
estado de pura realidade textual. Depois dos festivais e mostras em
que são exibidos, são os escritos e as avaliações da crítica europeia
que lhes asseguram uma longa vida e que perenizam seus traços.11
Conclusão
11. Essa situação se reverteu recentemente graças aos esforços de algumas entidades
públicas e privadas para assegurar uma m aior circulação dos filmes africanos:
disponibilização em suporte DVD; Médiathèque de Trois Mondes; TV5; criação
de um site (www.diplomatie.gouv.fr) que apresenta mais de cem catálogos de
filmes de Fond Sud Cinéma, e cujos trechos e sequências podem ser baixados e
vistos pela internet.
grupos étnicos que compõem suas populações em torno de valores
republicanos e culturais comuns. É, portanto, com relação a essa
realidade de déficit do sentido da nação que os cinemas africanos,
apesar de todas as dificuldades de produção e distribuição que en
contram, ganham toda a sua legitimidade e seu direito de existir.
Como a escola herdada da colonização, como a arte e a litera
tura africana (oral e escrita), os cinemas africanos participam do
processo de construção e consolidação da nação. Os filmes mobili
zam imagens em torno das quais se forjam identidades comuns
nesses países e, assim sendo, contribuem para uma homogeneização
interna das consciências que é mais preferível à uniformização cul
tural imposta de fora pela globalização e pela americanização da
cultura.
As diferentes respostas dos cinemas da África demonstram
que pode existir um outro tipo de nacionalismo, um outro tipo
de projeção nacional. Na falta de nações no sentido pleno da pala
vra, o movimento cultural que os cineastas africanos ajudam a
construir transcende os limites territoriais herdados da colonização.
Os valores culturais defendidos ou recusados em cada filme estão
ligados à ideia de que todas as sociedades africanas formam um todo,
independentemente das clivagens políticas e étnicas. A noção de
nação defendida pelos cinemas da África ecoa no pan-africanismo
que permanece um sonho frustrado no plano político, mas uma
realidade no plano simbólico e no imaginário. Esse valor assumido
pelo cinema na África faz desmentir a ideia de que a luta contra a
pobreza e o subdesenvolvimento não deveria incluir a adoção de
políticas voltadas para o setor da produção cinematográfica.
R eferên cias
Leo Goldsmith
* Tradução de Raquel Maysa Keller. [ N. T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
fosca. Essa luz lança longas sombras de violência que escurecem a
tela na nova estética desse drama social intrigante.1
5. Stringer, Julian. Boat People-. Second Thoughts on Text and Context. In: Berry, Chris
(Ed.). Chinese Films in Focus:2.S New Takes. London: BFI Publishing, 2003. p. 19.
festividades organizam uma retórica de autoria que coloca em
primeiro plano o papel individual do artista-diretor e sua partici
pação no “cinema mundial”. Em sua “passagem” pelo cinema
coreano, Paul Willemen observa que essa retórica de “cinema mun
dial” está frequentemente relacionada (contudo, de forma para
doxal) àquela de “cinemas nacionais”:
6. W illem en, Paul. D etouring through Korean cinem a. Inter-Asia Cultural Studies,
3.2, p. 1 6 7 -1 8 6 ,2 0 0 2 . É interessante observar, entretanto, que apesar do desagrado
de W illemen pelo universalism o de “cinem a m undial,” seu ensaio procura, de
m aneira parcial, reificar o universal no contexto de um a história internacional de
capitalismo com o manifestada no cinem a - de form a que não podem ser inteira
mente contraprodutivas.
cinema (como uma “janela para o mundo”) figura como o meio
transparente através do qual o local é trazido à arena global de
recepção de filme.
Em alguns ensaios publicados em 1994, após uma retros
pectiva de dezoito filmes iranianos pós-revolução no Festival In
ternacional de Cinema de Toronto de 19927, Bill Nichols procu
rou dissecar algumas das formas em que os festivais internacio
nais de cinema funcionam (e se definem) como lugares de troca
transcultural. Assim como os próprios festivais, Nichols sugere
que os “festivais internacionais de cinema podem representar um
globalismo nascente não mais tão centrado na estética ocidental
dos poderes de curadoria dos grandes colecionadores do mundo
ocidental”8. Na percepção de Nichols, os festivais de cinema são
espaços de (sabe-se) contato idealizado, descoberta e discurso:
7. Nichols, Bill. Global Image Consumption in the Age ot Late Capitalism. East-West
Journal, 8.1, p. 68-85, 1994; e Nichols, Bill. Discovering Form, Interring Meaning: New
Cinemas and the Film Festival Circuit. Film Quarterly, 47.3, p. 1 6 -31,1994.
8. Nichols,“Global Image Consum ption”, p. 72.
9. Ibidem, p. 81.
[...] como [o festival de cinema] a experiência modula e constrói
os significados que atribuímos aos mais novos em uma sucessão
contínua de ‘novos cinemas’, enquanto, ao mesmo tempo, cons
tituímos o público necessário para reconhecer e apreciar tais ci
nemas como entidades únicas e de valor10.
[...] a briga de galos de Bali não foi projetada para viajar. O novo
cinema iraniano sim. O que o crítico de outra cultura acrescenta,
como suplemento, poderia também, sob essa luz, ser considera
do como toque final que complementa uma fusão complexa e
distinta do local e do global13.
Para Hayes (que percebe que o filme é “algo entre uma farsa
e um suspense”), a questão da veracidade histórica dos detalhes
do filme é crucial no julgamento sobre o valor e a importância do
filme:
28. Hayes, John. 3 Rivers, 3 Sneaks; Film Fest Offers First Look at Som e Great New
Movies. Pittsburgh Post-Gazetted, Nov. 2005. p. 20.
29. Ibidem.
Interpretando o filme pelo viés dos thrillers políticos
estadunidenses, Hayes tenta discernir se The Presidents last bang
é uma reconstrução ou uma mera teoria da conspiração. Aqui, só
uma verificação do status do filme como “fato” ou especulação
legitimará uma leitura “correta”.
Entretanto, um olhar para as controvérsias em torno da pro
dução do filme e do lançamento na Coreia do Sul revela que o
modo historiográfico do filme é um tanto mais complexo. Espe
cificamente, o filme atraiu a ira da família do presidente Park, que
prontamente acionou os tribunais para banir o filme sob a alega
ção de que as descrições referentes às atenções amorosas do presi
dente a mulheres jovens eram humilhantes e difamatórias. Os tri
bunais então sancionaram o lançamento do filme com a condição
de que fossem feitas algumas revisões, a fim de não ser “enganoso
e [não] fazer as pessoas pensarem que o filme era fato, em vez de
ficção”30. No lugar da narração zombadora do epílogo do filme,
Im originalmente pretendia usar na íntegra o documentário do
funeral estatal de Park. Os tribunais exigiram que a extensão do
documentário fosse reduzida e também que o filme tivesse uma
retratação introdutória, declarando-o uma obra de ficção.
Nas entrevistas, entretanto, Im foi inflexível sobre a veraci
dade de seu relato e de sua base em pesquisa detalhada:
30. Russell, Mark. The Presidents last bang. Hollywood Reporter, 1 fev. 2005.
dizem sobre aquela noite é verdade, mas o que é a verdade? Ver
dade é quando você tem muitos detalhes e várias explicações so
bre fatos e sobre quem estava lá contados por várias pessoas dife
rentes. Aqui, em vez disso, temos somente três pessoas. Eu então
diria que esta é a versão de Im Sang-soo do que aconteceu naque
la noite. Não diria que isto é uma sátira, ou uma obra de ficção,
ou uma versão grotesca de realidade. Só digo que, até onde sei,
esta é a verdade e que esta é a minha versão dela.31
31. Bertolin, Paolo. An Inteniew with Im Sang-soo. maio 2005. Disponível em: < http://
koreanfilm.org/imss.html>. Acesso em: 11 dez. 2005.
32. Ibidem.
tórica e desconstrução.33Tal forma de redução e transformação
metonímica é semelhante à noção de tradução de Benjamin e ao
conceito de Nichols de “cobertura global” do festival de cinema:
um processo altamente autoconsciente de ressurreição que atri
bui a seu objeto um novo significado em sua vida após a morte.
The President s last bang não somente desafia deliberadamente
uma leitura linear e inquestionável como fato histórico, mas tam
bém revisita um momento na história que é particularmente pou
co comentado no Ocidente. Quero dizer com isso que o assassinato
de Park Chunghee não se encaixa claramente nas caracterizações mais
amplas da história da Coreia e do “espírito nacional” no sentido em
que é conceituado internacionalmente. O filme não aborda explici
tamente a divisão da Coreia em norte e sul, tampouco retrata a
história recente da Coreia do Sul como uma narrativa otimista e
descomprometida de democracia. De fato, como Han Ju Kwak ob
servou, a ditadura longa e opressiva de Park Chunghee, do início da
década de 1960 até o assassinato em 1979, está indissociavelmente
ligada ao surgimento da modernização na Coreia do Sul.34Ao reativar
esse momento na memória popular, ao ressuscitar o presidente para
revisitar sua última “transa”, o filme ameaça uma ruptura na história
33. Para uma discussão de melodrama com o forma análoga de consciência histórica,
ver: Wang, Yuejin. M elodrama as historical understanding: the making and
unmaking of communist history. In: Dissanayake, W imal (Ed.). Melodrama and
Asian Cinema. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 73-100.
34. Kwak, Han Ju. Discourse on Modernization in 1990s Korean Cinema. In: Lau,
Jenny Kwok (E d .). Multiple Modernities:. Cinem as and Popular Media in
Transcultural East Asia. Philadelphia: Temple University Press, 2003. p. 91.
da democracia da Coreia do Sul. De fato, para Im, reativar memóri
as ruins está na raiz da controvérsia que o filme causou em seu país:
C o n clu são
35. Crawford, James. Shoot to Kill: Im Sang-soo Gets Down and D irty W ith Politics
in The President’s last bang. 12 out. 2005. Disponível em: < http://www.indiewire.com/
people/2005/ 10/shoot _to._kill_,i.html>.
36. H o b erm an , J. K -H isto ry : Slapstick Political T h riller Skim ps on C o n te x t,
Village Voice, 7 out. 2005. Disponível em : < http://w rww.villagevoice.com /film/
0541 ,hoberm an2,6 8 7 0 7 ,20.htm l>.
No contexto de um festival internacional de cinema em que
a retórica de um cinema mundial global coexiste com aqueles
poucos cinemas locais, nacionais, os filmes que procuram desafi
ar as narrativas dominantes de suas próprias localidades podem
ter poucos atrativos. Isso é particularmente verdade para um ci
nema nacional “novo” como o da Coreia, que ainda está em pro
cesso de formação de sua imagem no panorama da mídia de festi
vais internacionais de cinema. As lições de um filme como The
President's last bang, com sua crítica interna sobre a moderniza
ção de seu país, serão recebidas com entusiasmo tanto pelos festi
vais de cinema globais (e, de forma crescente, corporativos37) quan
to pelos conglomerados no país natal.
Porém se, na concepção de Bill Nichols, o festival internaci
onal de cinema é, de fato, a primeira arena da “dialética de saber e
esquecer”, então os filmes “difíceis” como Boat People e The
Presidents last bang - filmes que, acima de tudo, procuram nos
lembrar da instabilidade de nossas posições subjetivas e de nossas
próprias pré-histórias complexas - deveriam ser precisamente os
tipos de textos que nos beneficiassem. E, se devemos “constituir o
público exato necessário para reconhecer e apreciar tais cinemas
como entidades únicas e de valor”, devemos ser receptivos à “es
tranheza da experiência” em todas as suas formas.
37. O Festival de Cinem a de Nova Iorque, por exem plo, tem sido patrocinado nos
últimos dois anos pela HSBC (C orporação de Hong Kong e Shanghai de Banco),
a qual se descreve com o “o banco local mundial”.
R eferên cias
HAYES, John. 3 Rivers, 3 Sneaks; Film Fest Offers First Look at Some Great
New Movies. Pittsburgh Post-Gazette, 3 Nov. 2005, W20.
LAU, Jenny Kwok Wah (Ed.). Multiple Modernities: Cinemas and Popular
Media in Transcultural East Asia. Philadelphia: Temple University Press, 2003.
LI YA MEI (Ed.). 20th Anniversary of Taiwan New Cinema. Taipei:
Taipei Golden Horse Film Festival Executive Committee, 2003.
SHIN, Chi-Yun; BERRY, Chris (Eds.). New Korean Cinema. New York:
New York University Press, 2005.
* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N. T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Este artigo é uma versão reduzida do segundo capítulo, “The M em ory of Things”,
do livro The skin o f the film. Intercultural cinem a, em bodim ent, and the senses.
D urham ; Londres: Duke University Press, 2000. [N .O rgs.].
difica memória coletiva. Elas podem, além disso, ser variavelmen
te consideradas fetiches, fósseis e objetos transnacionais. O im
portante sobre todos esses objetos-imagens é o fato de condensarem
o tempo e, ao desvendá-los, os expandimos externamente no tem
po. Continuando com a terminologia deleuziana, quando uma ima
gem emerge de outro lugar, de outra cultura, ela tumultua a coerên
cia do plano da presente cultura. Quando Deleuze escreve “O pre
sente existe como um passado infinitamente condensado que é cons
tituído no ponto extremo do já-lá” (1987, p. 98), as palavras “pas
sado infinitamente condensado” parecem descrever o objeto lem
brança, aquele sobrevivente teimoso de outro lugar-tempo que
traz seus conteúdos voláteis para o presente. Um objeto em um
filme ou vídeo é um tipo particular de imagem-lembrança que
traz de volta diferentes passados para pessoas diferentes. Onde o
Cidadão Kane tinha Rosebud; Rea Taj ir i tem um pássaro de ma
deira; Shuana Beharry, um sári de seda; Victor Masayesva, uma
máscara roubada com o espírito dos ancestrais2: objetos cujos pas
sados incomensuráveis são o produto não somente de uma história
pessoal mas também de desterritorialização cultural. O objeto que
fica na família como herança, lembrança, o objeto manufaturado
contém histórias diferentes e incomensuráveis de autoria, fantasia,
trabalho etc., dependendo de quem olha para esses objetos. O cine
ma intercultural frequentemente toma as coisas por suas imagens,
apresenta-as em toda a sua estranheza tipo-fóssil e, algumas vezes,
ao reconectá-las com seu passado, neutraliza seu poder perturbador.
Os objetos-recordação
3. É claro que, por estar voltado para o céu, o pedaço de revestimento de alcatrao
deve ter perdido um bocado de coisas também...
Os objetos-recordação não precisam ter uma relação prima
riamente visual com o evento original que representam. Conside
re Proust com as madeleines molhadas no chá: um fetiche-olfati
vo cujo perfume destrancou volumes de memórias. Ao examinar
as histórias contidas nessas imagens, descubro que os significa
dos que se perdem e são encontrados no curso da viagem (espaci
al ou temporal) são frequentemente expressos em termos de co
nhecimentos de sentido não audiovisual.
Fósseis
Fetiches
5. Eric Michaels descreve uma forma semelhante de produção cultural que é pré-traduzida
para exportação, a saber, versões acrílicas de pinturas com areia tradicionais dos
aborígines australianos, em Arte Aborígine Ruim (1993).
sar na pessoa, objeto ou cultura fetichizados como simplesmente a
vítima de apropriação cultural. Em vez disso, faz reconhecer que o
fetichismo é um ato mútuo que revela informação sobre ambos
os participantes na troca.
O processo arqueológico de descobrir o significado de tais
objetos fetiches históricos reconhece que eles não podem ser de
cifrados com finalidade, mas devem ser tratados como chaves para
um momento histórico particular. Os fetiches são microcosmos
materiais. Como Adorno escreveu, são “constelações objetivas nas
quais o social se representa” (apud Mitchell, 1986, p. 204). Pietz, de
forma semelhante, descreve o fetiche em termos neomarxistas
como o nexo de um encontro intercultural específico.
O fetiche não deve ser visto como algo próprio de nenhum cam
po histórico, a não ser aquele da história da própria palavra, e de
nenhuma sociedade ou cultura distinta, mas de uma situação
transcultural formada pelo encontro dos códigos de valor de
ordens sociais radicalmente diferentes. Em termos marxistas, po
deria ser dito que o fetiche está situado no espaço da revolução
cultural. (1987, p. 10).
7. A esse respeito, estou sugerindo uma vida do objeto diferente daquela que Susan
Stewart postula (1 9 8 4 ). Stewart argumenta que o fetiche, ou lembrança (pelo
menos o “objeto hom om aterial”, um term o que Stewart adota de Umberto Eco
para um objeto que existiu no local do evento para ser lembrado, tal com o a fita
de um corpete), não mantém nenhuma relação material com um evento, mas é
importante precisamente porque substitui um evento: ele desencadeia um curso de
narrativa pessoal que delineia a trajetória do desejo. No relato de Stewart, qualquer
relação material com uma cena original da memória é necessariamente apagada na
insistem na materialidade da presença original à qual eles fazem
referência. Daí o banimento do fetichismo católico pelos protes
tantes e do fetichismo mercadoria por Marx. Seu valor não é nego
ciável. Eles (os fetiches) não podem ser negociados por dinheiro.
Eles não representam poder simbolicamente; eles o incorporam
fisicamente. Pensar na imagem que se move como fetiche ou fós
sil implica entendê-la não como representação, que é volátil so
mente por causa das projeções trazidas a ela, mas como emissária,
que é volátil a ponto de fazer com que o espectador/receptor te
nha acesso à materialidade de sua cena original.
A implicação da noção do contato que sustenta tanto o fós
sil quanto o fetiche reside no fato de que a representação e o co
nhecimento não são explicados exclusivamente no nível da lin
guagem, mas também participam do contato com o objeto repre
sentado. Os objetos que discuto aqui codificam as condições ma
teriais de desterritorialização assim como as rupturas discursivas.
A representação e o conhecimento participam em contato com o
objeto representado. Seu substrato não é somente um “referente”,
mas também uma pedra de toque material. Claramente, então, em
meu uso os tropos de fóssil e fetiche operam em um nível bastante
concreto. Ambos podem ser usados simplesmente como dispositi
vos heurísticos baseados em uma noção de contato com algum ob-
narrativa de uma suposta ligação com a cena lembrada: uma narrativa interna, para
ela mesma. De tòrma contrastante, argumento que a lembrança mantém um fio de
conexão material com a cena que ela lembra, e é precisamente nessa materialidade, não
em seu esquecimento intencional, que a significancia da lembrança esta.
jeto original e poderoso. Quero usá-los como algo mais, entretanto.
^A noção do fetiche, em particular, considero epistemológicamente
poderosa porque é constituida de um contato físico, mais do que
mental, entre objetos; não é urna metáfora.
André Bazin (1967), conhecidamente, descreveu a fotogra
fía como uma impressão do mundo, um vestígio da presença ma
terial como uma máscara da morte. Essa é a qualidade tipo fetiche,
tipo fóssil, que funciona no cinema: é o vestígio que um outro
objeto material deixa na superfície do filme (ou codifica na teste
munha eletrônica em vídeo). Esse fato é o que dá ao filme seu
poder representacional, assim como um fetiche (no sentido reli
gioso) obtém seu poder ao carregar o vestígio de outro objeto
material. O uso feito da indexação varia, certamente, de prova de
evidência a mero vestígio fantasmagórico do real pró-fílmico. Como
Maren Stange (1994) observa, as qualidades essenciais da indexação
fotográfica devem ser entendidas no contexto do seu uso histórico,
o valor colocado sobre a indexação em diferentes períodos. Atual
mente, há muita suspeita concernente à evidência indexicadora,
pelo menos entre os acadêmicos ocidentais.8Eu gostaria ainda
por sua capacidade de alteração eletrônica. Portanto, acredito que é mais apropri
ado falar sobre práticas classificatórias e não classificatórias do que sobre mídia
classificatória e não classificatória.
cinema. Béla Balász devotou um capítulo de sua Teoria do Filme
(1972 [ 1923]) para o close-up. Ele considerou que close-upstrans
mitiam uma qualidade fisionômica para objetos estáticos. Seu tom
macio, quase piegas, grifa a habilidade de fetiche do close-up em
ser testemunha do invisível.
A dissolução do fetiche
Referências
BALÁSZ, Béla. Theory of the Film. New York: Arno, 1972. [Primeira
publicação em 1923; tradução inglesa, 1948].
______. The other question: the stereotype and colonial discourse. In:
______. The Location of Culture. New York: Routledge, 1994. p. 70-75.
______ . Cinema 2: The Time Image. Trans. Hugh Tomlinson and Robert
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FABIAN, Johannes. Time and the Other: How Anthropology Makes Its
Object. New York: Columbia, 1993.
PELS, Peter. The Spirit of Matter, part 1: Fetishes, rarities, and other
things. Conference paper, “Border Fetishisms,” Research Centre Religion
and Society. University of Amsterdam, December 9-11, 1995.
PIETZ, William. 1985. The problem of the fetish, I. Res 9, Spring, 1995.
______ . The problem of the fetish, II. Res 13, Spring, 1987.
______ . The problem of the fetish, Ilia. Res 16, Autumn, 1988.
Rosanna Maule
* Tradução de Raquel Maysa Keller. [N. T.: quando havia edição brasileira das obras
citadas, optou-se pela tradução já feita e utilizada na publicação].
1. Este artigo é uma versão traduzida e reduzida de “The Dialetics o f Transnational
Identity and Female Desire in Four Films of Claire Denis”, publicado em: Dennison,
S.; Lim, S. H. (O rgs.). Remapping World Cinema. Londres: Wallflowers, 2006.
2. Darke, 2000, p. 17.
filme que marca o retorno de Denis ao cenário africano, enfatiza
questões de relação de poder e masculinidade na Legião Estran
geira Francesa localizada em Djibuti, através de uma narrativa que
lembra o conto Billy B u d d y Marinheiro de Herman Melville.3
Minha discussão sobre esses quatro filmes aceita como pre
missa uma estrutura pós-colonial e feminista, particularmente ade
quada a seus focos sobre as alienações das personagens ocidentais
e não ocidentais na África e na França coloniais e pós-coloniais.
Quando era criança, Denis viveu em vários países da África, inclu
indo Somália, Djibuti e Burkina Faso, onde seu pai trabalhou para a
administração colonial francesa. Sua representação de identidade
cultural está fundada na crítica do conceito ocidental de alteridade,
uma posição consolidada por sua experiência pessoal como uma
“criança da África” que recebeu uma educação antirracista, assim
como pela leitura do psiquiatra e teórico francês Frantz Fanón.4
Denis sentiu íalta de sua vida na África e, aos dezessete anos, foi para o Senegal
cursar o ensino médio e morou por algum tempo com amigos de seus pais
(Reid, 1996, p. 68). Denis leu Fanón pela primeira vez em 1961, em seu retorno
relutante à França e difícil integração na sociedade francesa.
5. Como Susan Hayward apropriadamente observou, os filmes de Denis propõem um
modelo múltiplo de subjetividade pós-colonial que desafia a objetificação do corpo
colonizado como “unidade e subjetividade singulares cujas multiplicidades foram
deliberadamente dissimuladas sob domínio ocidental” (Hayward, 2001, p. 160). Tal
multiplicidade, Hayward também afirma, encontra muitos problemas em se ex
pressar como muitas personagens pós-coloniais demonstram nos filmes de Denis
(Hayward, 2001, p. 160).
mo somos ambos: os que aceitam e os que negam qualquer par
ticipação na mentalidade burguesa do Ocidente. Foi devido a
essa mentalidade que o “Terceiro Mundo”se distinguiu como um
novo achado semântico para designar o que ficou conhecido como
“os selvagens”antes das Independências. (Minh-ha, 1989, p. 97-98).
6. Entre os diretores que ao longo das décadas de 1980 e 1990 quebraram o longo
silêncio sobre o período colonial francês (o qual previamente tinha visto somente
intercalados trabalhos que denunciavam o sistema colonial e sua ideologia), aqueles
que reexaminaram o colonialismo africano, incluem-se Bertrand Tavernier (A Lei
de Quem Tem o Poder,; 1981) e Alain Corneau (Forte Saganne, 1984). Sobre esse
assunto, ver Sherzner (1996, p. 6-7).
hegemônicas de nacionalidade, sexualidade e família.” (Sherzner, 1996,
p. 81 )7. De acordo com Portuges, os filmes oferecem
9. O artigo de Kaplan aqui citado tem o título de “A política da posição com o prática
feminista transnacional” e aparece em Scattered Hegemonies:Vost\r\oàexmXy and
Transnational Feminism, de Grewal e Kaplan (1 9 9 4 ). Em seu livro, Butler faz
uma análise comparativa entre Chocolat, de Denis, e O Piano, de Jane Campion
A partir dessa perspectiva, Protée lembra a figura do corpo
negro colonizado de Fanón como uma identidade humilhada e
objetificada pelo olhar ocidental, e France se torna um símbolo da
reconciliação impossível das pessoas ocidentais com o seu passa
do colonial. A impossibilidade de tal reconciliação é reafirmada
num Camarões contemporâneo, onde a France adulta sente-se uma
estrangeira, e William J. Park, o homem afro-americano que mi
grou para a África para encontrar suas origens, passa a ser tratado
como um estrangeiro, o cidadão de um poder dominante.
O compromisso de Denis com um discurso transnacional e
multicultural enfatiza um paradoxo importante na representação
de culturas não ocidentais a partir de bases teóricas baseadas no oci
dente que permanecem essencialmente eurocêntricas em suas tenta
tivas de se desfranquearem de posições totalizadoras de sujeitos. Esse
dilema é o objeto da crítica do eurocentrismo de Ella Shohat e de
Robert Stam, descrito por eles como
12. Grewal e Kaplan propõem o pós-m odernism o com o uma posição analítica que
“nos dá um a oportunidade para analisar a form a co m o um a cu ltu ra de
modernidade é produzida em diversos locais e com o estas produções culturais
circulam, são distribuídas e recebidas e, até mesmo, comercializadas” (1994, p. 5).
gonistas são Dah, um im igrante de Beni que vive em Paris
comercializando galos de rinha para o jogo ilegal, e seu sócio
Jocelyn, um treinador de galos vindo do Caribe.13 Contratados para
organizar um salão ilegal de jogos, os dois homens são forçados a
viver em um porão sujo sob uma das propriedades do seu empre
gador. O chefe deles é Ardenne, dono de um restaurante e de um
clube, que viveu por muito tempo nas Antilhas e foi amante da
mãe de Jocelyn.
Ambos são vítimas do racismo pós-colonial e da explora
ção capitalista, porém as reações de Dah e Jocelyn são bastante
diferentes. Jocelyn, um hom em quieto, introvertido, afeiçoado a
suas tradições e princípios, é perturbado pelo ambiente em que se
encontra14. Sofrendo por causa da atitude paternal cada vez mais
intensa de Ardenne em relação a ele (que, às vezes, insinua a possi
bilidade de ser seu pai) e de sua paixão secreta pela amante de
Ardenne, Toni, Jocelyn começa a beber muito e, como consequência,
é esfaqueado até a m orte pelo filho de Ardenne. Essa cena dramá-
13. Os títulos dos dois filmes apresentam um duplo significado. Chocolat faz referên
cia ao jargão colonial para pessoas negras e tam bém significa “ser enganado”. S en
fout la m orté o nom e do galo cam peão de Jocelyn cuja m orte antecipa a do seu
treinador e cuja trajetória suicida em blem áticam ente term ina na rinha. C o m o
Kathleen M urphy observa, am bos os filmes lidam com a noção de traição. Em
Chocolat, Aimée pede a seu m arido para que Protée trabalhe fora de casa depois
que ele recusou seu convite sexual, e Protée, por sua vez, dá um fim em sua relação
com France ao deixá-la queim ar sua m ão propositalm ente. S en fout la m orté
uma referência a um galo cam peão que íocelyn treina. A expressão “s’en fout la
m ort” tam bém se refere a uma frase que na África ou nas Antilhas é “am uleto
contra a separação, m orte” (Murphy, 1992, p. 63).
14. Jocelyn é interpretado por Alex Deseas, que também atua em dois outros filmes de
Denis, Noites sem dorm iré o recente Trouble every day, 2001.
tica ocorre durante uma rinha de galo, em que Jocelyn chega com
pletamente bêbado e começa a ofender os donos dos galos em
crioulo. O processo de loucura gradual de Jocelyn é concomitante
com a reinterpretação da relação de colonizador-colonizado que
Fanón descreveu em páginas esclarecedoras como uma reação ao
autorrebaixamento.
Dah (personagem representado por Isaach de Bankolé, o ator
que interpreta Protée em Chocolat), ao contrário, é orgulhoso e
determinado, reage às tentativas de Ardenne de lhe tirar vantagem
econômica e se mantém intocável por seu tratamento áspero. Du
rante todo o filme, Denis dá a Dah urna perspectiva narrativa, in
serindo a superposição de sua voz como justificativa de narrativa
e comentário - e como ponto de vista resistente. Na cena de aber
tura, Dah é filmado por trás, sentado em um furgão, à noite. Suas
primeiras palavras repetem o título de abertura do filme, uma ci
tação de Chester Himes: “Todo ser humano, independentemente
de sua raça, nacionalidade, religião ou política, é capaz de
tudo.”15Na cena final, após ter ido ao funeral de seu amigo, em
que ele conta ao amigo, morto, sobre uma futura reconciliação
com sua mãe nas Antilhas, Dah deixa Paris para trás, levando com
ele o dinheiro ganho com a última luta organizada.
Quando apresentou S ’en foutla mortem Nova Iorque, Denis
lembra de ter sido criticada por um grupo de jovens afro-ameri
canos por ter passado uma imagem negativa e trágica de Jocelyn.
15. A citação aparece no artigo de Audé sobre o filme (1990, p. 71) e em Cinema and
the Second Sex:W om ens Filmmaking in France in the 1980s and 1990s deTarre
Rollet (2001, p. 221).
Comentando a sua tentativa fracassada de explicar para esses jo
vens, com base em Fanon, o significado político de fazer um ne
gro m orrer no fim de seu filme, Denis diz:
16. Sobre as dificuldades que encontrou ao selecionar atores negros para os papéis
principais, ela diz: “Os produtores de filme reagem negativamente a minha forma
de dramatizar um tema em meus filmes. Eles não entendem como quero selecio
nar negros; os produtores regularmente dizem que se eu selecionar atores negros,
eles deveriam ser‘objetos’ eróticos. Em meus filmes, as pessoas negras nunca são
objetos. Elas são sujeitos que conscientemente escolhem o que querem. Geralmente
os produtores tem [sie] uma ideia muito exótica sobre o que os atores negros
deveriam fazer c de onde deveriam ser vistos. Os roteiros dos produtores relaciona
riam personagens negros a leões e elefantes. lá eu penso que os Negros retratados
em meus filmes sao‘noir’ (negros)” (Reid, 1996, p. 69). Incidentalmente, as revistas
de cinema também demonstram atitudes problemáticas em relação a atores ne
gros, especialmente quando é o caso de identificá-los. Nos artigos sobre o filme Sen
tout Li mort citado aqui, as legendas das lotos relativas aos dois atores principais,
Alex Deseas e Isaach de Bankolé, trocam as identidades dos dois homens. Assim, em
Positit, De Bankolé se torna Deseas (Audé 71) e, em Film Comment, Deseas é
apresentado como “Isaach de Bankholé [ibid]” (Murphy, 1992, p. 62).
Para Denis, reinteirar-se de um passado colonial ou enfren
tar a realidade dos preconceitos raciais de hoje envolve um cho
que cultural e uma desilusão emocional. A esse respeito, Chocolat
e S ’en fout la niort são fortes ilustrações do que Fanón afirma
sobre descolonização:
translúcido à elle même que dans 1’exacte mesure oii lon discerne le mouvement
historicisant qui lui donne forme et contenu. (“A descolonização que objetiva
mudar a ordem mundial é, podemos ver, um programa de desordem absoluta.
Porém, não pode ser o resultado de uma operação mágica, de uma mudança
drástica natural ou de um acordo amigável. A descolonização, sabemos, é um
processo histórico: ou seja, só pode ser entendida se puder encontrar sua
inteligibilidade; ela se torna translúcida para si mesma somente na medida em que
identificamos o movimento historicizante que lhe dá forma e conteúdo.”).
construto arbitrário ou político” (Mohanram, 1999, p. XII). Con
forme argumento central, “Um sentido de lugar não somente par
ticipa da construção de uma percepção de identidade física, é tam
bém fundamental na formação de identidade racial.” O livro de
Mohanram analisa as conexões entre noções pré-modernistas, m o
dernistas e pós-modernistas de subjetividade em relação à raça. O
argumento cie que as teorias ocidentais de subjetividade m anti
veram o corpo e o “conceito submerso de lugar/cenário” em uma
relação subalterna às noções de espírito, racionalidade e civiliza
ção é também parte de sua discussão. O propósito historiográfíco
e metodológico de Mohanram é
19. Beau tnwail c um título irônico que se traduz com o “bom trabalho”, o elogio dado à
correta execução que o soldado faz de seu trabalho. O título do filme também é um a
referência (com o Denis reconheceu) ao clássico hollywoodiano Beau Geste; em parti
cular sua versão de 1939, dirigido por William Wellman e com Gary Cooper.
Eu gosto de escrever histórias sobre homens não porque quero
dominá-los, mas porque gosto de observá-los e imaginá-los. Um
homem é um mundo diferente, e esta masculinidade me interes
sa. O cinema francês é tão cheio de diálogos - não poderia me
importar menos com essas pessoas conversando sobre suas vi
das. Godard disse que no cinema há mulheres e armas, e eu con
cordo plenamente. Isso quer dizer que há sexo e violência. O
cinema funciona assim, mesmo que o espectador seja altamente
intelectual. (Darke, 2000, p. 17).
20. Denis acom panhou as coreografias elaboradas dos soldados com BillyB u JJà e
Benjamin Britten.
Para Bouquet, a coreografía participa da criação de “um ideal
de beleza, ideologicamente desvalorizado (militar, exército) ou com
conotação sexual (homossexual)”. A própria Denis calculou que o
filme exprime um subtexto explicitamente homossexual, o qual ela
encontra (corretamente) também no conto de Melville.21 Em Beau
travail\os olhares trocados entre o tenente Galloup, o capitão
Forrestier e o soldado Sentain são abertam ente eróticos, assim
com o a fascinação com o corpo masculino plasticam ente repre
sentado pelo enquadramento e pelo m ise-en-scène. Ainda assim,
ao longo do filme, Denis trabalhou com os atores para colocar
uma distância entre a câmera e os corpos masculinos, a fim de não
torná-los objetos (Lalanne; Larcher, 2000, 52-53). Bouquet observa
que “a lógica dos corpos difere” entre o nervoso Galloup e os legio
nários “vagarosos, hieráticos, fantasmáticos” comparados a anjos em
uma citação de Elégie de Duino, de Rainer Marie Rilke: “Anjos (eles
Conclusões
R eferências
AUDE, Françoise. S’en fout la vie (S’en fout la mort). Positif, n. 356, p. 70-72,
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Thierry Jousse e Frédéric Strauss. Cadernos de Cinema, n. 479/480, p. 25-
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GILI, Jean. A. Entretien avec Claire Denis sur Chocolat. Positif, n. 328,
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1.3, p. 159-165,2001.
TARR, Carrie; ROLLET, Brigitte. Cinema and the Second Sex: Womens
Filmmaking in France in the 1980s and 1990s. New York; London:
Continuum, 2001.
Andrea Molfetta
2. A tradução é da autora.
em Son oeilplongeait dans la ville... (Chile, 1993), e de Patricio
Pereyra, em Discours sur le peu de réalité (Chile, 1994). Os três
chilenos refletem sobre suas próprias possibilidades poéticas e exis
tenciais, sobre o alcance e o limite do sujeito (fílmico).
Da cidade, os diários fotografam elementos que demons
tram a duração do tempo - as luzes dos barcos sobre as fachadas,
os meios de transporte em deslocamento. Em Torre Eiffel (Chile,
1986), Juan Enrique Forch explora a longa duração de um travelling
ascendente e outro descendente, da Torre Eiffel, claro, enquanto
recita o imponente poema do surrealista Vicente Huidobro,
“Altazor”. Em Son oeilplongeait dans la ville... (Chile, 1993), Marcela
Poch viaja no interior de barcos e automóveis. Na maioria dos
diários e, especialmente, em En Français (Brasil, 1993), de Sandra
Kogut, o cinegrafista viaja de trem.
Na montagem interna ao quadro, são construídos espaços
subordinados, complexos, organizados em subcampos, por
superposição ou por divisão da tela. Nos diários de Marcela Poch
e Patricio Pereyra, o campo visual se divide em territórios geome
tricamente cortados, nos quais se combinam velocidades e senti
dos, forçando a simultaneidade (e a perda inevitável) do controle
sobre a leitura. Referente fugidio, semiose incompleta, porém in
finita. Na contramarcha, o ponto de partida do discurso, bem
encravado - ou o melhor que pode o narrador primeiro mostra
e depois narra. A duração do movimento se destaca também na
simultaneidade de janelas internas no quadro que, mais uma vez,
ajuda a suspender ou a substituir a percepção da história, para cha
mar a atenção sobre o tempo puramente discursivo do relato.
Desse modo, a partir de um espaço fragmentado, múltiplo e
simultâneo, os diários nos fornecem uma arquitetura particular
do tempo presente, rompendo com a gramática do cinema clássi
co, já que, nesses diários, cada subjetividade, cada sujeito, no jogo
intersubjetivo a que nos convida o cinema como dispositivo, faz
sua most ração, assim como oferece sua interpretarão, ingressan
do no amplo campo do poético.
Em geral, a construção temporal dos diários, vale dizer, os
ritmos narrativos, varia nos termos da taxonomía de Genette (1972),
da pausa ão sumario. As focalizaçoes, de externas a internas. Mas
não temos, de modo algum, a utilização de elipse que contribua a
sintetizar uma narrativa com começo, meio e fim sobre um pas
sado histórico. Temos, sim, cenas, no sentido em que se preserva a
duração do plano, em sinal de respeito à circunstância da tomada.
Mas geralmente são cenas desdramatizadas através da captação de
um instante qualquer, sem agon, sem conflito. Então, como ques
tionar esses diários sobre nossa identidade, se eles não abordam o
passado nem enunciam desde uma pessoa plural, nós7. Da nossa
parte, o objetivo do projeto de Gallet, idealizador do projeto cul
tural, estava fadado ao fracasso.
Como é a posição do narrador de um diário que nos mostra
um espaço fragmentado, suspende o tempo histórico e que, com
relação a si próprio, mostra unicamente seu modo de olhar,
deiticamente, sem fazer autoimagem? Com relação ao espaço há,
a meu ver, um sujeito duplamente exilado. Ele está longe da sua
cultura. A viagem confirma, em primeiro lugar, aqueles lugares
dos quais nos distanciamos, principalmente a língua. Nos diários
sul-americanos são raras as cenas de diálogos, a troca não é uma
constante. Desse modo, a palavra é elevada ao seu valor mais abs
trato, e temos uma grande presença literária em monólogos e poe
mas —letreiros em 90% dos filmes.
O movimento do espaço e no espaço é uma variável de grande
elaboração. O espaço é fugidio, quase um desfilar sem contato
interativo entre europeus e latinos. O espaço mostrado é sempre
urbano, não há natureza - como na parte francesa da coleção, onde
são maioria as imagens do campo, da montanha e do mar da Amé
rica do Sul. A cidade europeia é mostrada por meio de múltiplos
espaços quaisquer, sem hierarquias, fachadas, pessoas ou meios
de transporte.
Nos diários sul-americanos, a cidade é um grande espaço de
circulação, cenário-fluxo da subjetividade, caótica, e se apresenta
aleatoriamente, como um desenrolar de eventos. Mas esses eventos
estão concatenados por um eixo que é outro ponto qualquer: o
sujeito-sujeitado pela câmera, quase sempre sem nome, diegetizado
no campo visual e sonoro nas mais diversas formas: o olhar para a
câmera, as diversas formas de molduras (janelas, lentes etc.), a
câmera na mão, o som, os textos.
Constitui-se, assim, seu segundo exílio: o recuo subjetivo.
O sujeito está “longe das circunstâncias”, como diz Claudia Aravena
em Miradas desviadas. É um sujeito limitado fenoménicamente a
esse presente, outro momento qualquer. Não faz retrospectivas,
julgamentos, nem previsões. É restrito, em consequência, também
nas formas possíveis de construir aquilo que originalmente quer
nos mostrar: sua identidade. Mas isso já é parte da nossa marca
cultural como países periféricos: barrocamente, não fazemos a
pergunta sobre nós sem nos referirmos ao Outro. Moderno desde
sua origem, esse sujeito latino-americano, por definição, é incom
pleto, aberto e explicável somente nos termos de uma dialética
intercultural com a metrópole. Dialética à qual acedemos para, apa
rentemente, resistirmos ou frustrarmos desde o silêncio. Eis como
a enunciação desses diários torna-se, no final da análise, reveladora
de um arquétipo relacionado com uma condição oprimida, a nossa
condição cultural, nesse caso, dependente dos campos intelectual e
de poder centrais. Por meio da análise desses diários, penso o modo
como nossos artistas vivenciaram o evento histórico que é ser um
latino-americano na Europa de final de século; e todos os diários
possuem, em comum, o fato de serem relatos difusos, sumários
de fragmentos sem asserções e que, no final das contas, funcionam
como método para dissolver o evento histórico que, sabemos, es
tava por trás da proposta original: o reencontro das culturas após
500 anos da colonização.
A dissolução do evento é uma das estratégias estéticas prove
nientes da modernidade literária e traz consequências importantes
para a relação entre arte e história. Acredito que esses diários usam
essa estratégia ao dissolverem o evento numa desintegração das uni
dades de tempo: as imagens não são documento de um tempo, a
imagem não se sujeita a essa exigência da imagem documentária
comprobatoria. Significa, mais profundamente, modificar a noção
de factualidade; que é fronteira entre o discurso imaginário e o dis
curso realista. Na teoria do cinema, são abundantes os textos sobre
o plano sequência e a montagem como elementos e ferramentas
estilísticas do realismo. Mas, na nossa coleção de diários eletrôni
cos, os recursos do realismo são escamoteados e dispensados ao
máximo. O documentário é levado até suas fronteiras.
Em outros termos, rompe-se o contrato autobiográfico do
século XIX: imaginários ou reais, para esses diários todos os fatos
pertencem à mesma ordem ontológica; todos eles trazem a ideia
de uma conceitualização da história sem verdade, de que qual
quer história vira estória, resultado de uma fabuiação. Ou, pelo
menos para esses artistas, isso já não é obrigatório dentro do esta
tuto documentário, o que acontece até hoje, desde então, com a
imagem eletrônica como precedente. Para White, esse tipo de poé
tica é resultado de fatos históricos traumáticos, que geraram uma
neurose coletiva: obliterar sistematicamente o acesso aos fatos para
que eles não interfiram no presente nem na visão de futuro. Foi
difícil falar do passado e, mais ainda, daquele presente como su
jeito colonizado. Porém, a consciência histórica do espectador
exigia um sentido a ser construído, e esse é o motivo pelo qual
este artigo sente a necessidade de definir os sentidos possíveis que
foram extraídos dessa experiência intercultural.
O modernismo opõe o evento ao fato, desmantelando o
evento como objeto de conhecimento científico. Para o moder
nismo dos diários, o evento histórico não pode mais ser observa
do e não serve mais como objeto de conhecimento: dissolve a
constituição das personagens, entendidas como sujeitos dessa his
tória ou como representações das perspectivas possíveis sobre essa
história. Na maioria dos diários, o espectador não sabe direito de
que se trata a viagem, que não é apresentada, resumida, narrada ou
encerrada. São as informações paratextuais que nos falam da via
gem a Paris, do convite do festival. Nos diários, datas e durações
são apagadas, assim como o nome dos próprios viajantes, que so
mente conhecemos pelos créditos. Muito menos conhecemos sua
opinião. Em Paris c ’est troph de Said Maldonado, Ventana/fenetre,
de Gerardo Silva, ou Miradas desviadas, de Claudia Aravena, não
sabemos nada da historia sem as informações exteriores ao filme.
Por último, procede a desrealização do evento, que “aban
dona sua função narrativa como índice da história, para adquirir
a importância de um padrão atual, trans-social e de significado
trans-histórico”, segundo Jameson (1996). O sentido parece ina
cessível, indistinguível no fluxo dos eventos, instáveis, fluidos e
fantasmagóricos. Eventos que, não casualmente, são fotografados
em slow motion, reverso, zoomz repetição. As próprias persona
gens são irrealizadas, por exemplo, em Torre Eiffel, de Juan Enrique
Forch. A primeira pessoa não é a do autor e, sim, é emprestada de
Huidobro, quem, pela sua vez, fala ao seu filho que não guarda ne
nhuma relação com o relato. Outro exemplo é o diálogo imaginá
rio de Sabrina Farji com Anais Nin em Diário de outono.
Desse modo, fazer asserções também não é a constante. A
constante maior é a interferência digital sobre o registro fragmen
tário, criando colagens e simultaneidades, adensando o plano
icônico da representação. Aqui, a pintura entra em cena com toda
a sua potência.
Les règles du jeu que j’ai tout de suite instituées marquaient cette
volontédemettreànu le regard des artistes. N’était autorisée qu une
banale caméra, la plus légére possible [... ] au moment de la
postproduction retrouver les moyens sophistiqués de traitement de
I’image qui faisaient le quotidien de Yart vidéo. (Gallet, 1987, p. 9).3
3. “As regras do jogo que instituí de imediato assinalam essa vontade de expor o
olhar dos artistas. Só era autorizada um a câm era simples, a mais leve possível [...1
no m om ento de a pós-produção reencontrar os meios sofisticados de tratam ento
da imagem que eram parte do cotidiano da arte do vídeo.”
o racconto dia a dia e, consecutivamente, o começo, o meio e o
fim da experiência. Assim, essa coleção questionou e problematizou
o espectador, que ingressou na sala para conhecer um diário de
viagem e depara, surpreendentemente, com uma intervenção digi
tal importante na montagem, realizada sobre registros quase
descompromissados, só para inverter caleidoscopicamente o re
lato e falar, no final das contas, mais daquele que viu do que da
quilo que tinha sido visto.
Para esses diários, a construção do lugar do enunciatário
receptor, que faz com que se preze a função comunicativa, a fática
e a referencial, também não é uma constante na coleção sul-ameri
cana, que é profundamente reflexiva e poética. Os autores não fa
zem proposições ao espectador. Temos, nos diários, um enunciador
geograficamente isolado, que não fala a língua estrangeira,
“comunicacionalmente” crítico (quase cético) e que cultiva todas
as estratégias da reflexividade para operar essa inversão pers
pectiva: falo do mundo para falar de mim e, nesse deslocamento,
a viagem principal. Pouco se pronunciam sobre o território que
visitam. É mínimo o valor assertivo sobre a história e sobre si
próprios; contudo, o modo de ver e ouvir é sempre subjetivo.
Para Nichols, o realismo no documentário ajuda a ordenar e
a manter uma visão lógica do mundo, cuja perspectiva subordina
o emocional a objetivos concretos, com uma finalidade clara. Mas
sabemos que há aqui um realismo crítico, que dá vazão e orques
tra esses sentimentos para, pelo menos, expressar contradições “es
pinhosas para a razão, ou que seguem padrões de organização so
cial (como hierarquias, domínio, controle, repressão, rebelião, etc.)”
(Nichols, 1994). Acredito que esse projeto cultural tentou, a partir
das boas intenções da Lusofonie, e sem sucesso, abordar a relação
Latino-América/França como uma experiência que nos instigaria
a respeito da nossa identidade cultural.
Mas, depois dessa experiência, o que foi resolvido com res
peito à nossa relação com a Europa? Pelo menos dessa vez, cria
ram-se laços estéticos e de produção, mas a leitura crítica e aguda
das respectivas posições dentro da história política e cultural da
nossa relação não teve lugar. É uma relação que, do ponto de vista
pós-colonial, ainda está inconclusa, produtiva e problemática. Acre
dito que somente assim podemos explicar o grande paradoxo que
significa a recepção dessa experiência estética no nosso contexto.
Fomos visitar e filmar um continente, o qual observamos e
registramos com toda a carga de opacidade e reflexividade que
caracterizou a estética midiática do final da década de 1980. E o
que vimos? Vimos que não podemos ver. E, na dialética, vimos
que não podemos ver sequer a nós próprios, tal a margem absolu
ta da experimentação eletrônica em matéria narrativa, amplidão
certamente mais vedada nos cânones da imagem cinematográfica.
De um lado do oceano - ou melhor, do hemisfério - existem as
blurred boundaries, as fronteiras escuras, mas também permeáveis,
entre as práticas narrativas do documentário. No nosso contexto,
num campo intelectual castigado e empobrecido pelos recorrentes
processos ditatoriais, e ainda por efeito da colonização cultural (no
caso, importação de modelos estéticos induzidos pela inovação
tecnológica digital), os diversos setores do documentário local se
distanciaram e se rejeitaram mutuamente. Isso dificultou tanto a
recepção quanto a influência possível dessa modernização narrativa
noutros meios audiovisuais, modernização cuja estética não pode
ser uma resposta à situação do nosso próprio campo intelectual - na
época, mais preocupado em estabilizar-se e em definir sua autono
mia estética dentro dos processos de abertura pós-ditaduras.
Quando nos sensibilizamos a respeito das influências políti
cas e culturais da vida dos signos na sociedade, constatamos que
nem os autores nem os espectadores sul-americanos usufruíram
desses diários como documentários, o que é escandaloso, porque
eles se esforçaram em mostrar o trabalho subjetivo por trás de qual
quer relato. Ainda mais, não esqueçamos de que havia consciência
clara dos objetivos para todos os autores, que começaram aceitando
a encomenda explícita por um diário de viagem, vale dizer, um
subgénero da autobiografia. E, contudo, posso afirmar e generalizar
que o esforço autorreflexivo dessas obras, experiência estética
marcante da arte eletrônica sul-americana de finais da década de 1980,
se dirige a inserir a interpretação do sujeito num contexto no qual o
próprio trabalho de interpretar pode ser compreendido progressi
vamente como autocompreensão de quem interpreta. Desse modo,
autorreflexivo, quem filma o mundo filma, no avesso, a si próprio.
Na perspectiva hermenêutica que este breve ensaio preten
deu enxergar, “em tudo que uma linguagem desencadeia consigo
mesma, ela remete sempre para além do enunciado como tal”
(Gadamer, 1998, p. 39). Trata-se de um programa estético que, na
arte eletrônica do nosso continente, destacou a incompletude do
sujeito e seus sentidos, afirmando que ambos se constituem na tra
ma da comunicação, da inter-relação, sentidos abertos que neces
sitam da interpretação do Outro.
Isso nos ajuda a compreender uma distinção sutil. No nosso ho
rizonte de leitura, o leitor não teve em mente a dimensão documentária
dos seus trabalhos e, sim, a dimensão “documentarizante”, em cima da
qual, claro, efetuou-se todo tipo de intervenções da montagem.
Os europeus, ao contrário, com referentes estéticos do cinema,
elaboraram uma arte eletrônica que na década de 1980 dava conti
nuidade (ou ruptura dialética) às estéticas documentárias das dé
cadas de 1950 e 1960, e que foram iniciadas, também, com as pe
quenas câmeras, as novas tecnologias. Jean-Paul Fargier dialoga
com Godard, e Robert Cahen com Resnais. Vale dizer, enquanto
eles sabiam que estavam fazendo documentário, nós preferimos
afrouxar as regras, problematizando a produção e o horizonte de
leitura documentária nas nossas capitais, promovendo uma expe
rimentação radical do estatuto documentário.
Como descrevemos, no conjunto latino-americano as men
sagens limitaram-se às percepções e às emoções mais destacadas
de um percurso, sem críticas para além da reflexividade discursiva,
sem consciência histórica. Este é um traço importante dos nossos
diários, porque justamente acontece dentro de uma experiência
estética induzida por um projeto cultural europeu. Ainda mais, a
proposta não somente revitalizou o contato Europa/América La
tina como colocou em circulação o conjunto da produção experi
mental sul-americana em vídeo, reunindo-a como poucas vezes
na história local, e ainda durante mais de dez anos consecutivos,
entre 1984 e 1996. O festival circulava durante o mês de novem
bro em distintas capitais: São Paulo, Buenos Aires, Santiago, Mon
tevidéu, Caracas.
Realizar o diagnóstico de uma falta de posicionamento po
liticamente crítico em relação à Europa, num conjunto tão repre
sentativo como essa coleção de diários, evidencia que se trata de
uma constante estética da região durante a década de 1980 e co
meço da de 1990. Essa ausência de elaboração do senso histórico
merece que pensemos e cogitemos alguma explicação, ou pelo
menos que a consideremos como sintoma.
A presença dominante da reflexividade na arte eletrônica local,
no contexto de abertura democrática na América Latina, é certamente
sintomática de um mal-estar. Dividiu taxativamente os distintos se
tores da produção em vídeo. Promoveu o divórcio de vários grupos
de documentaristas, dos mais militantes e expositivos aos mais
modernos e reflexivos. Ao longo da pesquisa, constatei a presença
de um modelo estético isolado que se apresentou, quase que com
exclusividade, nessa produção eletrônica: a modernidade da ima-
gem-tempo, da superfície-vídeo. Como já disse, essa imagem foi
rejeitada pelos setores que mantinham a hegemonia estética do
documentário no Cone Sul, especialmente em contextos cinema
tográficos como os de Santiago ou Buenos Aires. Ainda hoje, so
brevivem algumas dessas fraturas; há, por exemplo, em Buenos
Aires grupos de documentaristas que eu chamaria de pré-moder-
nos, que ainda não reconhecem os filmes performativos como
documentários. A tensão que provocou a aparição inaugural dessa
imagem subjetiva e poética no campo audiovisual local é o que
me chamou a atenção desse conjunto de obras na época.
Se a proposta trazia, desde a perspectiva eurocêntrica, um
objetivo político de fundo (os 500 anos, a relação América/Euro
pa), de nossa parte o problema foi estético e produziu um contraste
de horizontes de leitura dentro do mesmo gênero documentário,
gerando uma grande diferença entre os diversos setores do mes
mo campo. Documentaristas e videoartistas não se cruzavam,
embora estivessem trabalhando dentro de distintas visões do mes
mo estatuto, distintos modos narrativos.
A forma de ver e ouvir desses diários nos traz no mínimo três
grandes opções feitas pelos autores: a presença de um grande indi
vidualismo nas condições de produção, o distanciamento pela via
da reflexividade poética e o uso performativo da voz expositiva. As
características narrativas analisadas nesse conjunto de diários nos
mostram que essa cronotopia característica é habitada por um su
jeito que está longe da sua terra, da sua própria circunstância histó
rica e das convenções da representação documentária. Podemos
dizer que se trata de um sujeito politicamente acrítico, no mínimo,
alguém que se abstém da faculdade fundante do documentário: a
capacidade assertiva. Para esses diários, o indivíduo é uma singula
ridade que desenvolve uma epistefilia (um amor pelo saber), estra
tegicamente parcial e relativista, presa de um lado pelo ambiente
intelectual pós-ditatorial e, pelo outro, por uma Europa convidati
va e ainda mandante da obra e que, com seus impulsos e incentivos,
não conseguiu desabrochar uma crítica pós-colonial.
Simples diagnosticar o porquê do fracasso: essa crítica deve
ria ser organicamente gestada pelo próprio campo intelectual. Foi
assim que a coleção pouco contribuiu para a reflexão e a criação de
um público local consciente da nossa condição histórica e cultural
como países periféricos, colonizados. Muito menos formou um
público para o documentário moderno. Como explicar isso? O pro
jeto de diários dentro do Festival Franco-Latino-Americano de
Videoarte, concebido pela Secretaria do Audiovisual do Ministério
das Relações Exteriores da França, nos trouxe oportunidades de
produção e circulação inéditas entre 1984 e 1996, também elemen
tos estéticos, tecnológicos e econômicos de produção. Porém, o in
vestimento foi realizado para responder uma pergunta sobre nós
mesmos, pergunta que não foi por nós requerida nem elaborada.
Filmografia
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Ática, 1996.
C o le ç ã o Grandes Temas
Formato 16 X 23 cm
T ira g e m 1000