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O Anti-Estético para ser Ético

Aluno: Pedro Rocha Lima Almeida


UC: Realização 2
Número: 7707
2023
O Cinema Novo e o Cinema Marginal Brasileiro.

A trajetória cinematográfica brasileira que começa no princípio do século XX com os


ambulantes esteve até meados da década de 60 subjugada a uma estética conteudista e
formal estrangeira europeia, mas particularmente estadunidense em consequência da
busca de uma hegemonia cultural destes reforçada durante a guerra fria no continente latino
americano. A empreitada cinematográfica via-se nos anos 60 debruçada sob uma
problemática representativa, até então a realidade brasileira era exposta majoritariamente
através de narrativas de pouco cunho social e político em que suas personagens
usualmente brancas e de classe média não refletiam a maior parcela de sua população. Em
busca de uma estética que abarcasse o brasil de fato dois movimentos se protuberam na
topografia cinematográfica desse período: o cinema novo e o cinema marginal.

Em uma movimentação semelhante à ideia do antropofagismo cunhada pelo movimento


de arte moderna de 1922 (movimento com enfoque nas artes visuais e na literatura que
propôs uma revolução estética dessas formas de expressão no contexto nacional) o
cinema novo busca a partir de uma deglutição do externo regurgitar uma amálgama dessas
influências com uma concepção ideológica tropical, emergente e anti-colonial na jornada de
audiovisualmente encontrar um Brasil.
Glauber Rocha, visto como o maior expoente do Cinema Novo lê no congresso em
Gênova na Itália em 1965 “Terceiro Mundo e Comunidade Mundial” seu manifesto “estética
da fome” que afirma e impõe os fundamentos desse movimento. Glauber enxerga a fome e
a violência dela proveniente não como um primitivismo mas como uma afirmação do
esfomeado como indivíduo diante daquele que ocasiona sua fome, já que em sua
concepção apenas através dessa violência o opressor enxerga aquele que oprime. E a
partir do frenesi dessa violência sugerir espaços revolucionários. Sendo assim, têm-se a
ideia base das películas desse movimento que almeja a construção de filmes crus, “tristes e
feios” onde os fragmentos mais ásperos do mundo brasileiro são expostos, a miséria, a
fome e a violência, que ganham vida através de personagens também feias e tristes.
Uma frase cunhada por Glauber que sintetiza o movimento: “Uma câmera na mão e uma
ideia na cabeça” esse objetivismo que aparenta simples vem de uma renúncia a grandes
maquinarias cinematográficas assim como o próprio espaço do estúdio que o cinema novo
não busca ocupar. Essas escolhas estéticas e pragmáticas não são inéditas na história do
cinema e naturalmente o cinema novo foi influenciado por diversos cineastas anteriores ao
movimento. Notável é a influência do Neorrealismo italiano e da Nouvelle Vague . No caso
do neorrealismo as temáticas que dialogam mais com o povo e uma estética que não se
baseia em um apreço formal muito técnico, assim como, uma forma narrativa não muito
convencional para padrões hollywoodianos. Marcaram críticos brasileiros que através de
seus textos legitimaram e destacaram esse movimento lançando aqueles que tinham
acesso e interesse para com os mesmos em direção à sala de cinema. Deglutir essas
referências e deformá-las conforme a necessidade que o brasil terceiro mundista impunha,
encabeçando um cinema efervescentemente nacional onde figuras do imaginário popular, o
povo, os políticos e os poetas chocam em narrativas por vezes alegóricas e fragmentadas.

Na segunda metade da década de 60 alguns anos após o que são considerados os


primeiro trabalhos do cinema novo: Cinco vezes favela (1962); Vida secas (1963); Deus e o
diabo na terra do sol (1964), entre outros, ocorre o surgimento do chamado cinema marginal
insatisfeito com os rumos que o cinema novo havia tomado uma vez que parte dos
cineastas pertencentes ao movimento incapazes de atingir as massas com seus filmes
inicialmente menos usuais a níveis de conteúdo e forma passam a adotar linguagens mais
convencionais. O cinema marginal dá início já em meio a ditadura militar brasileira
(1964-1985) logo antes de seu momento mais repressivo, quando foi promulgado em 1969
o AI-5 (ato institucional de número 5) onde institucionalizou-se uma ampla censura. O
cinema marginal encabeçado principalmente pelas figuras de Rogério Sganzerla, Júlio
Bressane, Ozualdo Candeias e Neville D’Almeida possuía em seu fundamento a chamada
“estética do lixo” tanto graficamente com dedos no nariz, sangue na boca, gemidos e
esculachos, no conteúdo das falas e na estética aparentemente despretensiosa. Devido o
movimento ter despontado no auge da ditadura civil- militar e por mais que seus filmes
fossem via de regras censurados os cineastas marginais tentaram despistar as censuras
através de uma forte marca estilística dessas películas que é o uso da ironia na esperança
de que os sensores não apitassem, ironia essa que tinha como alvos arquétipos da
sociedade brasileira especialmente figuras de autoridade, detentores de poder como
políticos, policiais e grandes empresários quando aqueles considerados desvirtuadores da
estabilidade social pela percepção normativa, marginalizados geográfica e politicamente
como bandidos, traficantes e prostitutas são dadas o protagonismo das longa metragens.
O periférico torna-se o central e inaugura-se a chamada estética do lixo, o lixo é o centro
e se faz presente na imagem na montagem e na caracterização das personagens sempre
um pouco bregas, “Kitsch”. A poluição sonora e visual em uma abordagem análoga à
colagem (onde várias referências da cultura pop e cinematográfica dialogam
simultaneamente) em uma montagem ligeira fragmentam essas inversas narrativas em que
o moralmente bom não tem espaço. Sganzerla compreende que o Brasil necessitava de
transgressões e conclui que o anti-estético é uma via incontornável, o”anti-estético para ser
ético”.

Glauber Rocha e Rogério Sganzerla.


“Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, “anti-estético para ser ético” duas frases
cunhadas pelos respectivos realizadores que captam um relance de suas forças e
abordagens, que em muitos aspectos se divergem, mas que tendo em conta essas duas
frases já se torna possível estabelecer paralelos. A começar pela frase de Glauber que
como citado anteriormente já sugere uma renúncia às grandes maquinarias e à uma
linguagem que necessita das mesmas, adotando com a câmera na mão uma estética mais
próxima do documental em sua simplicidade objetiva. O cinema de Sganzerla também
pactua com essa proposta, afinal Glauber foi uma de suas referências e Sganzerla,assim
como Glauber não cria e muito menos desejava o estúdio como espaço de criação
jogando-se ao ar livre, à realidade. A segunda frase cunhada por Rogério diz respeito à
necessidade nacional de algo fresco e transgressor que não poderia ser alcançado através
de imagéticas já conhecidas e deveria subverter convenções sociais de pudor e moralidade,
sendo assim, o cineasta marginal lança-se ao periférico e centraliza-o, o grotesco, nojento,
avacalhado, erótico e depravado tornam-se os adjetivos pelos quais ele baseia-se na busca
de suas imagens, o estético não é estético e é ético por que é isso que o país necessita, é
por esse frescor. Glauber paralelamente em outra dimensão social, inicialmente em sua
filmografia mais preocupado com o retrato das periferias fora dos centros urbanos a
exemplo de “Barravento” (1962) e “Deus e o Diabo na terra do Sol” (1964) (enquanto
Sganzerla bebe muito do urbano) também explora o anti-estético como já dito
denominando seus filmes e os do cinema novo como “tristes e feios” e concretiza esse
compromisso imagético justamente por crer na ética dessa ação, por crer que a exposição
dessa faceta nacional traria no mínimo reflexões críticas aos que a contemplam
desembocando quem sabe em alguma transformação interna.
Outra característica convergente da cinematografia de ambos é uma necessidade
participativa por parte do espectador, algo que encontra ecos em diversas manifestações
artísticas a partir da contemporaneidade. As narrativas que Rocha e Rogério engendram
não apresentam estruturas lineares, são fragmentadas e no caso de Glauber bastante
alegóricas resultando em conclusões pouco óbvias e trajetórias inusitadas em direção a
mesma, em consequência o espectador tem uma função de ao absorver a obra emendar as
peças visuais e juntá-las conforme suas concepções e pode também renunciar a essa
tarefa, apesar das imagens causarem inevitável provocação. No texto “a estética da fome”
Glauber Rocha compartilha sua concepção da violência como única possibilidade de força
transgressora detentora do oprimido como forma de afirmação diante da opressão, sendo
assim a violência como força base de seus filmes, Sganzerla também tem a violência como
seu fundamento, ainda que de outra ordem. Sua violência tem um propósito semelhante de
despertar aquele que a observa mesmo que pelo choque com um conservadorismo, através
de verborragia de imagens com uma montagem dinâmica e sons (chegando a sobrepor três
músicas em simultâneo) diversos, assim como personagens vulgares “estúpidos e boçais” e
confusos diante da ordem que as coisas se estabelecem. A violência em ambos
demonstra-se como uma ferramenta transgressora.
Na ação antropofágica exemplificada anteriormente através do cinema novo, encontra-se
também a expressão do cinema marginal e consequentemente do de Sganzerla, talvez até
mais. As referências a nouvelle vague e a goddard são perceptíveis principalmente no uso
da montagem e da música, em “Bandido da Luz Vermelha” (1968) o protagonista tem um
fim semelhante a Ferdinand de “Pierrot Le Fou”(1965) em “A Mulher de Todos”(1969)
têm-se diversos momentos musicais de sons estadunidenses da década de 50
evidenciando esses fragmentos de referências estrangeira que são então adaptadas à
realidade do Brasil.
A título de conclusão, apesar do cinema marginal ter surgido em parte como uma
resposta da insatisfação do mesmo com os rumos que tomava o cinema novo, a influência
cinemanovista é forte e quando observamos particularmente o impacto da obra de Glauber
em Sganzerla fílmica e teoricamente torna-se mais perceptível os diálogos que essas duas
filmografias trocam sinteticamente falando a partir do desejo da transgressão que engata
em suas ideologias e percepções sociais, políticas e cinematográficas.
Referência bibliográficas

https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo14346/cinema-marginal

https://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo14333/cinema-novo

file:///C:/Users/Pedro/Downloads/481711062-cinema-novo-cinema-marginal-pdf.pdf

file:///C:/Users/Pedro/Downloads/As_teorias_de_Rogerio_Sganzerla_sobre_o.pdf

https://vermelho.org.br/prosa-poesia-arte/leia-a-integra-do-manifesto-uma-estetica-da-fome-
de-glauber-rocha/

http://gthistoriacultural.com.br/VIsimposio/anais/Gabriell%20Zanca.pdf

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