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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPÍRITO SANTO

CENTRO DE ARTES
DEPARTAMENTO DE TEORIA DA ARTE E MÚSICA

JULIA SANTOS LOURENÇO

SEGUNDA AVALIAÇÃO ESCRITA

VITÓRIA, 2023
HÉLIO OITICICA

Hélio Oiticica foi um artista performático,


pintor, escultor e um dos principais nomes na
arte brasileira. Filho de José Oiticica Filho
(1906-1964), um dos mais importantes
fotógrafos nacionais de seu tempo, e de
Ângela Santos Oiticica (1903-1972), nasceu
em 26 de Julho de 1937 no Rio de Janeiro.
Na infância é educado em casa e só recebe
uma educação formal quando sua família
passa um período de dois anos em
Washington DC em 1947, retornando para o
Rio de Janeiro em 1950. Em 1954 começa a
estudar pintura no Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro (MAM) com Ivan Serpa (1923-1973) como aluno no Curso Livre de
Pintura juntamente com seu irmão César. Inicialmente suas obras tinham relação com as
experiências concretistas da época. Nos dois anos seguintes participou do Grupo Frente e da
segunda exposição do Grupo no Museu de Arte Moderna em 14 de Julho. Durante este
período provavelmente foi quando teve seu primeiro encontro com a artista Lygia Clark
(1920-1988) e com os críticos de arte Ferreira Gullar (1930) e Mário Pedrosa (1900-1981) e,
foi quando iniciou suas pinturas geométricas abstratas em guache sobre cartão e sua série
intitulada Secos. Em 1957 e 1958 dá início as séries Metaesquemas e Pinturas Brancas e, em
1959, entra para o Grupo Neoconcreto do Rio de Janeiro dá início a suas primeiras obras
tridimensionais os Bilaterais e os Relevos Espaciais saindo das telas e entrando no espaço
ambiental. A partir de 1960 cria os primeiros Núcleos, ou Penetráveis, reforçando a
importância do espectador na obra, conceito que é reforçado em 1963 pela obra os Bólides.
Neste mesmo ano passa a ter contato com amigos no morro da Mangueira e na quadra da
Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, marco importante na obra e na vida do
artista e que se consolida no ano seguinte com a obra Parangolé, se tornando um divisor de
águas para o artista e aprofundando ainda mais suas reflexões sobre o corpo. Em 1965
participa da exposição Opinião 65 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, um marco
na história da arte brasileira, porém é proibido de desfilar com as passistas da Mangueira e
realiza seus Parangolés no jardim. Já em 1967 Oiticica volta ao MAM Rio na exposição
“Nova Objetividade Brasileira” e apresenta a obra Tropicália, que tem importantes
desdobramentos na cultura e na música posteriormente conhecidos como tropicalismo. Neste
mesmo ano concebe a obra Éden, que é exposta em só em 1969, e no ano seguinte a bandeira
Seja marginal seja herói de autoria do artista é exibida no show de Caetano Veloso (1942), no
Rio de Janeiro, é apreendida provocando a interdição do espetáculo pela Polícia Federal no
período mais duro da ditadura militar no Brasil. Em 1969 realiza uma exposição individual
internacional, a Whitechapel experience na Galeria Whitechapel em Londres, com curadoria
do crítico Guy Brett, expondo posteriormente no Museu de Arte Moderna de Nova York entre
outros lugares. Na década de 1970 instala-se em Nova York e realiza experiências com filmes
em super-8 e concebe as Cosmococas, criações estas que faziam parte do que o artista
denominou de quasi-cinema. Oiticica retornou ao Brasil em 1978 e em 1980 propõe a
manifestação coletiva Acontecimento Poético Urbano 2 / Esquenta para o Carnaval, no
Morro da Mangueira. Hélio Oiticica morre neste mesmo ano no dia 22 de março, após sofrer
um acidente vascular cerebral, na Clínica São Vicente, no Rio de Janeiro.

SEJA MARGINAL SEJA HERÓI (1968), DE HÉLIO OITICICA

Seja marginal seja herói (1968), bandeira-poema de Hélio Oiticica, pintura sobre tecido, 85 x 114,5 x 3 cm, da
Coleção Eugênio Pacelli. Foto Jaime Acioli.
A bandeira-poema Seja marginal seja herói, de 1968 é, juntamente com Bólide caixa no. 18
– B33 “Homenagem a Cara de Cavalo” de 1965, certamente uma das obras mais conhecidas
e polêmicas do artista Hélio Oiticica. A obra foi exposta pela primeira vez em fevereiro de
1968, ano em que posteriormente seria decretado o Ato Institucional número 5 (AI-5) dando
início ao período de maior violência e repressão da ditadura militar brasileira, a céu aberto na
Praça General Osório, em Ipanema, em meio a outras bandeiras criadas por diversos artistas.
A história por trás da obra surge após o período em que o artista passa a ter amigos e a
frequentar o Morro da Mangueira em 1963 e, levado pelo escultor Jackson Ribeiro, a quadra
da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira no ano seguinte, onde se torna passista.
Este foi um momento de suma importância para a vida pessoal e para a carreira do artista.
Analisando o texto “Os anos 1960: descobrir o corpo” de Paula Braga, a autora relata que o
artista encontrou no morro e no samba uma experiência de êxtase, uma ampliação da
percepção e vivência do corpo para além do intelectual. De acordo com a autora:
Longe de ter sido um contato missionário, a experiência de Hélio Oiticica na
Mangueira, parte marginalizada da sociedade brasileira, foi um viver que incluiu
amizades duradouras, mergulho no aprendizado do samba, da moral do marginal, da
arquitetura flexível dos barracos e as consequências desse ambiente no cotidiano, no
aprendizado da ginga do caminhar nas quebradas e do “pisar a terra de novo”,
expressão que o artista usa para descrever o descondicionamento social da
experiência no morro. (BRAGA, 2014, p. 310)

Foi neste contexto que o artista conhece Manoel Moreira (1941-1964), conhecido como
Cara de Cavalo, um jovem da atualmente extinta Favela do Esqueleto de quem o artista se
torna amigo e que posteriormente é homenageado por este com as obras citadas no início.
Cara de Cavalo teria iniciado no crime ainda criança e aos 23 anos foi denunciado por um
dos bicheiros que extorquia e sofreu uma emboscada policial no dia 27 de Agosto de 1964,
resultando em um tiroteio que matou o detetive Le Cocq atingido por cinco disparos.
Manoel Moreira foi culpado pelo assassinato do detetive que tinha um bordão: “Bandido
que atira num policial não deve viver”, o precursor de outro slogan que é muito utilizado na
política e na polícia brasileira atualmente: “Bandido bom é bandido morto”.
Cara de Cavalo foi jurado de morte e caçado por 2 mil policiais em quatros Estados do país.
A proporção foi tanta que pessoas semelhantes a ele chegaram a ser mortas por engano.
Após cinco semanas ele foi encontrado na região dos Lagos na casa de uma família e mais
de 100 tiros foram disparados contra ele por policiais, sendo que 62 o atingiram,
majoritariamente em seu abdômen. Soube-se posteriormente que ele havia sido executado
pelo Scuderie Detetive Le Cocq, grupo de extermínio que chegou a ter 7 mil associados e
foi oficialmente extinto em 2005, e, na visão de diversos pesquisadores, foi deste grupo que
surgiu o Esquadrão da Morte. Este evento teve diversos desdobramentos ao decorrer do
tempo, como o controle de muitos territórios no Rio de Janeiro por milicianos atualmente e
o asassinato da vereadora e socióloga Marielle Franco (1979-2018), entre inúmeros outros.

O poema-bandeira reproduz uma foto de jornal de Alcir Figueira da Silva e foi cercada de
polêmicas através do tempo. Uma que persegue a obra desde do início é a de que Oiticica
estaria fazendo apologia ao crime, contudo, ao contrário da acusação, o artista nunca isentou
seu amigo de erros e escreveu isto em seu texto “O herói anti-herói e o anti-herói anônimo”,
de 1968. Cara de Cavalo tornou-se, de acordo com o artista, “símbolo de opressão social
sobre aquele que é ‘marginal’ – marginal a tudo nessa sociedade; o marginal”. O artista
considera a marginalidade como uma forma de transgressão dos valores conservadores e
burgueses, e explica em seu texto o motivo da homenagem:
é a maneira pela qual essa sociedade castrou toda a possibilidade da sua
sobrevivência, como se fora ele uma lepra, um mal incurável – imprensa, polícia,
políticos, a mentalidade mórbida e canalha de uma sociedade baseada nos mais
degradantes princípios, como é a nossa, colaboraram para torná-lo o símbolo
daquele que deve morrer, e digo mais, morrer com violência, com todo requinte
canibalesco (o motivo chave para isso foi o assassinato, numa luta, do detetive Le
Cocq, do Esquadrão da Morte, organização policial que envergonharia qualquer
sociedade de caráter, composta de policiais assassinos e degradados, que até hoje
milita por aí com outras pessoas e outros nomes). [...] mesmo entre os que se dizem
chocados ou sentem ‘pena’. Neste caso, a homenagem, longe do romantismo que a
muitos faz parecer, seria um modo de objetivar o problema, mais do que lamentar
um crime sociedade x marginal. Qual a oportunidade que têm os que são, pela sua
neurose auto-destrutiva, levados a matar, ou roubar etc. [...] Pouca, ou seja, a sua
vitalidade, a sua defesa interior, a sobrevivência que lhes resta, porque a sociedade
mesmo, baseada em preconceitos, numa legislação caduca, minada em todos os
sentidos pela máquina capitalista consumitiva, cria os seus ídolos anti-heróis como
o animal a ser sacrificado.

O artista conclui o texto afirmando que só nos tornaremos gente quando pararmos de
sacrificar cruelmente pessoas como Cara de Cavalo, denunciando a necessidade de uma
reforma social completa. Esta obra foi um marco para o movimento que ficou conhecido
como marginália ou cultura marginal, que começou a fazer parte do debate cultural
brasileiro em 1968 e durou até a década de setenta. Outra polêmica envolvendo a obra foi no
show de Caetano Veloso em 1968, explicada da biografia do artista, uma vez que seu
manifesto repercutiu rapidamente em cenários de shows, como o de Gilberto Gil, Caetano
Veloso e Os Mutantes. A polêmica mais recente envolvendo a obra foi a demissão de uma
professora de história da arte do Colégio Expressão, da rede privada da região metropolitana
em Goiânia, motivada pelo uso da professora de uma camiseta estampando a obra. A
professora foi criticada em redes sociais por um deputado estadual do PL, que comumente
faz ataques a artistas e à cultura visando a defesa de uma pauta fascista e anti democrática, o
que teria resultado em sua demissão. O Projeto Hélio Oiticica divulgou uma carta aberta
repudiando o acontecimento e em defesa da obra. A obra é exposta até hoje nos principais
museus do mundo, como MoMA, em Nova York, entre outros, e é sem dúvidas uma das
mais importantes obras da arte brasileiras, levantando debates e promovendo reflexões
mesmo após mais de 50 anos de sua criação.
REFERÊNCIAS:

BRAGA, Paula. “Os anos 1960: descobrir o corpo”. In, BARCINSKY, Fabiana Werneck
(org.). Sobre a Arte Brasileira. São Paulo: Ed.
Sesc; Ed. Martins Fontes, 2014. pp. 293-321.

Biografia Hélio Oiticica. Disponível em: <https://projetoho.com.br/pt/bio_ho/>. Acesso em:


24 jul. 2023.

FILHO, C. O. Carta aberta em defesa da obra “Seja Marginal Seja Herói” (1968), de Hélio
Oiticica. Disponível em:
<https://projetoho.com.br/wp-content/uploads/2023/05/projetoho.com.br-carta-de-repudio-a-
demissao-da-professora-em-goiania-projeto-helio-oiticica.pdf>. Acesso em: 24 jul. 2023.

​ HÉLIO Oiticica. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira. São Paulo:
Itaú Cultural, 2023. Disponível em:
http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa48/helio-oiticica. Acesso em: 24 de julho de
2023. Verbete da Enciclopédia.
ISBN: 978-85-7979-060-7

Hélio Oiticica. Disponível em: <https://mam.rio/artistas/helio-oiticica-2/>. Acesso em: 24 jul.


2023.

STRECKER, M. Por que homenagear bandidos. Disponível em:


<https://mam.rio/obras-de-arte/por-que-homenagear-bandidos/>. Acesso em: 24 jul. 2023.

SEJA MARGINAL SEJA HERÓI (1968), DE HÉLIO OITICICA. Disponível em:


<https://memoriasdaditadura.org.br/obras/seja-marginal-seja-heroi-1968-de-helio-oiticica/>.
Acesso em: 24 jul. 2023.

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