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discursivo: arte brasileira na ditadura

VIOLÊNCIA COMO
DRIBLE
DISCURSIVO: ARTE
BRASILEIRA NA
DITADURA
Pollyana Quintella
maio, 2015

Os anos 60 e 70 no Brasil foram marcados


por uma produção artística efervescente.
Situados num contexto político delicado,
protagonizado pela ditadura militar,
foram o momento no qual era preciso
repensar o fazer artístico e seu alcance e
ressonância social. Ainda que as artes
visuais fossem a categoria menos
perseguida pela censura, muitos artistas do
período produziram obras de caráter
político e contestatório como forma de
reagir ao regime vigente. Havia,
certamente, muitas maneiras de fazer isso.
Este texto procura expor três exemplos
que escaparam da censura através de uma
solução aparentemente perigosa – o uso
da violência.

No ano seguinte ao golpe militar, foi


inaugurada a exposição Opinião 65 no
intuito de expor a produção dos artistas
jovens. Inspirada no Show Opinião, a
exposição era a primeira manifestação
artística coletiva a tecer críticas à ditadura
através de uma estética pop. Organizada
por Ceres Franco e Jean Boghici, teve
duração de um mês no MAM e expôs
nomes como Rubens Gerchman, Antonio
Dias, Carlos Vergara, entre outros. Um
ano depois, dando continuidade ao
modelo, inaugurou-se a Opinião 66,
menos importante que a primeira em
termos de inovação formal, mas
igualmente crítica. Inspirado nessas duas
exposições, Waldemar Cordeiro organizou
em São Paulo os seminários Proposta 65 e
66 no intuito de promover uma discussão
sobre as questões da arte do momento,
principalmente sobre a arte inspirada na
Pop Arte americana e no Novo Realismo
francês, a !m de entender a especi!cidade
conquistada na produção brasileira. O
debate gerou uma re"exão sobre a nova
vanguarda brasileira e no ano seguinte, em
1967 acontece novamente no MAM a
exposição Nova Objetividade, encabeçada
por Hélio Oiticica, como mais um
exemplo de repensar o posicionamento
político da arte brasileira, seja através de
uma maior participação do espectador seja
expandindo as categorias do objeto de
arte, seja pela tentativa de aproximação da
arte com a dimensão pública da cidade.

É neste contexto de reinvenção e intensa


produção que a censura começa a atuar.
Em 1967 a polícia quis retirar o trabalho
de Claudio Tozzi da IV Salão de Arte
Moderna do Distrito Federal, considerado
subversivo. Em 1968, a II Bienal da Bahia
é fechada também por ter seu conteúdo
considerado subversivo. Em 1969, a pré-
bienal de Paris, realizada no MAM,
também é censurada. Também foram
retirados trabalhos do Salão de Ouro
Preto (1969) e do Salão do Museu de Arte
da prefeitura de Belo Horizonte (1968). O
Salão da Bússula, realizado no mesmo ano,
no Rio de Janeiro, teve interdição da
polícia. Com o AI-5 em vigor e intensa
manifestação popular, o circuito de arte
brasileiro mobiliza a comissão de diversos
países a boicotar a Bienal de São Paulo de
1969, liderado pelo crítico Pierry Restany.

Nada disso impede que os eventos


artísticos e suas articulações continuem
acontecendo. Em Belo Horizonte, no ano
de 1966, é organizada a Vanguarda
Brasileira, e em 1970, acontece “Do
Corpo à Terra”, por Frederico Morais. No
Rio, o ano de 1968 tem os eventos “arte
no aterro”, “domingo das bandeiras” e
“apocalipopótese”, organizado nos
arredores no MAM por Hélio Oiticica,
contava com a participação de artistas,
cineastas e músicos. As obras participantes
tem forte apelo à participação dos
espectadores, como Os ovos de Lygia Pape
e os Parangolés de Oiticica. Em 1970, os
jardins do MAM voltam à atividade com
os “domingos da criação”.

Em texto-manifesto publicado no Correio


da Manhã, em 1969, em repúdio ao
fechamento da Pré-Bienal de Paris no
MAM, a associação de críticos de arte,
através da voz de Mário Pedrosa,
convidava os críticos de todo país a
boicotarem as atividades artísticas o!ciais
e não participarem de juris de salões e
exposições. O texto trazia uma questão
central: “é pro!ssional e tecnicamente
impossível distinguir, e muito menos
afastar de uma obra os “aspectos
ideológicos e políticos quaisquer”.

É a partir dessa brecha potente que


garante uma impossibilidade de
fechamento pleno dos sentidos, própria da
arte, que alguns artistas utilizarão dribles
discursivos para lidar com o regime de
repressão. Havia – e há – várias maneiras
de inserir uma questão política na
linguagem da arte. Muitas vezes, a opção
se fez temática (alcançando um maior
público, talvez) e falhou por ser facilmente
identi!cada como contestatória (como
nos vários exemplos que citei em cima).
Apresentarei três trabalhos que, agindo
pela via da violência literal, embora sem
tratar diretamente sobre a ditadura,
driblaram a censura enquanto trouxeram
perspectivas potentes sobre o período.

São eles, Tiradentes – Totem-monumento


ao Preso Político (1970), de Cildo
Meireles, Trouxas Ensanguentadas (1969)
de Artur Barrio, e “Urnas Quentes”
(1968) de Antonio Manuel.

Em Tiradentes – Totem-monumento ao
Preso Político, Cildo encharcou dez
galinhas com gasolina e as incendiou vivas
diante da plateia, na exposição “Do corpo
à terra” organizada por Frederico Morais e
que fazia parte das comemorações o!ciais
da semana da Incon!dência Mineira.
Segundo Cildo:

Na época havia muito cinismo


e tentativa de cooptação do
personagem [Tiradentes].
Era, de fato, uma espécie de
regra de três simples. Pegar
galinhas e matá-las equivalia,
na verdade, a pegar um
símbolo nacional e torná-lo
símbolo do golpe militar. Ao
mesmo tempo em que eles
estavam se aproveitando do
símbolo de Tiradentes, herói
da independência brasileira,
com todas as contradições que o
personagem possa ter, eles
estavam usando de
procedimentos análogos aos do
artista contra as próprias
galinhas, e justamente para
defender o contrário do que o
próprio Tiradentes defendia.

Tiradentes – Totem-monumento ao Preso Político


(1970), Cildo Meireles

No caso das trouxas ensanguentadas,


foram apresentadas três vezes: a primeira
no salão da bússola em 1969, a segunda
nas ruas do Rio de Janeiro em 1970 e a
terceira também em 1970 em Do Corpo
A terra, em Belo Horizonte. Na primeira,
o fardo com pedaço de carne e sangue
!cou mais de um mês na área interna do
museu, sendo alvo de várias intervenções
dos visitantes. Depois, a trouxa foi
abandonada nos jardins do museu tendo
atraído a atenção dos policiais do local que
não sabiam se objeto pertencia ao museu,
sendo posteriormente recolhido ao
depósito de lixo. Na segunda vez, os
materiais haviam se expandido. “Havia
sangue, pedaços de unhas, saliva, cabelo,
urina, merda, meleca, ossos, papel
higiênico. Modess, pedações de algodão
usados, papel úmido, serragem, restos de
comida, tinta, pedaços de !lme
(negativos)”. Na terceira, em Do Corpo A
terra, as trouxas atraíram um grande
público, e segundo Frederico Morais,
criaram uma “tensão insuportável, o que
acabou provocando a intervenção do
Corpo de Bombeiros e, a seguir, da
Polícia”.

Trouxas Ensanguentadas (1969), Artur


Barrio

As urnas quentes, de Antonio Manuel,


expostas em Apocalipopótese em 1968,
eram 20 pequenas caixas de madeira
vedadas que deviam ser abertas pelo
público com a ajuda de martelos e pedras.
Abrir as caixas exigia força e ação violenta.
Dentro das caixas:

que lembravam caixões, havia


textos manuscritos (por
exemplo, “Fome, fome, fome”)
e imagens desenhadas (como os
corpos magros famintos) que
aludiam às condições
correntes. O uso de emblemas
alegóricos para disfarçar o
sentido é comparável ao
simbolismo usado antes nos
desenhos sobre jornal e
nos "ans.

Urna Quente aberta (1968), Antonio Manuel

São trabalhos que se apoiam na estética da


violência como até então não havia sido
feito na arte brasileira. É nesse contexto de
expansão da natureza da arte, em que
ações efêmeras, happenings e participação
garantem o espaço para certa radicalização
política. É a própria exposição Do corpo à
Terra que !cou caracterizada como o
primeiro evento em que não se
apresentaram obras, mas ações.

Portanto, trata-se de um alcance político


que vai além de sua abordagem temática.
Estes trabalhos atacavam as normas do
próprio sistema e política da arte,
questionando sua recepção, circulação e
institucionalização. O contexto político
não só impulsionava uma nova
radicalidade artística, mas também exigia
novas formas de fazer arte.

No caso de Cildo, Barrio e Antonio


Manuel, a contemplação dá lugar a um
espaço de desconforto e ativação. O
espectador, antes passivo (embora nunca
passivo) diante da ação do artista, é
provocado por um incômodo, estranheza,
a"ição. Além disso, trata-se de três
trabalhos efêmeros que deixam como
documentação apenas seus registros.
Diferente dos trabalhos apreendidos pela
censura, como no caso dos exemplos
dados na Pré-Bienal de Paris, essas obras
parecem atuar nas frestas da o!cialidade:
ainda que apresentadas em eventos de arte
especí!cos, provocam dúvidas sobre sua
natureza artística e se desmaterializam. Sua
provocação política é pontual. Os três
estão lidando diretamente com a questão
do corpo: o corpo que queima, o corpo
que deixa rastros, o corpo que agride.
Aspectos que, naquele momento – e hoje
– eram facilmente vinculadas aos abusos
de poder que envolvem o agenciamento
dos corpos na cidade. Corpos
desaparecidos, corpos procurados, corpos
ensanguentados, o registro midiático
excessivo do estado dos corpos marginais.

O exemplo das trouxas ensanguentadas é


pertinente para entender o drible em ação:
quando deixadas no jardim do MAM,
depois da exposição, chamaram a atenção
dos policiais que seguidamente jogaram o
trabalho no lixo. Não havia acusação para
uma trouxa com componentes
asquerosos, mas o trabalho, por outro
lado, causava mal-estar, remetia-se
indiretamente aos corpos a cada dia
desaparecidos. No caso de Cildo Meireles,
embora a violência fosse literal, a
provocação política era metafórica, as
galinhas queimadas também remetiam aos
assassinatos e torturas. Nas urnas quentes,
a força física do participador reativava
corpos que antes contemplavam. O
trabalho convocava à ação.

No entanto, os três exemplos não


ofereciam nada que pudesse ser
considerado concretamente como
contestação ao regime. Seus métodos
driblavam a censura ao mesmo tempo que
lançavam mão de uma radicalidade
necessária para o debate. A violência que
fabricavam gerava uma nova postura nos
corpos participantes: seja no mal-estar da
interação, no caso de Barrio, na força
empregada, no caso de Antonio Manuel,
ou da inquietação ética colocada pela
literalidade da violência de Cildo Meireles.

Referências:

1. CANEJO, Cynthia Marie. Gestos


efêmeros e obras tangíveis: a trajetória
de Antonio Manuel. Novos estud. –
CEBRAP,  São Paulo ,  n. 76, Nov. 
2006.
2. MEIRELES, C. Cildo Meireles,
geogra!a do Brasil. Rio de Janeiro:
Artviva Produção Cultural, 2001.
3. RIBEIRO, M. A. ; CUNHA, V. S. .
Entrevista com Frederico Morais. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2013
4. Texto-manifesto da associação
brasileira de críticos de arte publicado
no Correio da Manhã em 1969.
5. PEDROSA, Mario. Política das
Artes, Textos Escolhidos I. São Paulo:
Edusp, 1995

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