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(In: ANJOS, Moacir dos. Contraditório: arte, globalização e pertencimento. 1 ed.

Rio de Janeiro: Cobogó, 2017. 176 p. – 115-168)

POR UMA CURADORIA MENOR


Entre o local e o global, o menor como resistência possível

Muito já foi e continua sendo dito sobre as relações entre o que se convencionou
chamar de local e global, inclusive sobre suas implicações na arte e na cultura
contemporâneas, emaranhadas em movimentos contrários, mas articulados, de
homogeneização e de afirmação das diferenças. Persistência que indica ser este
um tema que congrega questões incontornáveis para o entendimento dos modos
de vida criados em um mundo partilhado por mais e mais gente. Questões que,
a despeito de serem tão conhecidas e expostas, não parecem estar resolvidas.,
ou sobre as quais não parece sequer haver acordo pleno em relação ao que
significami. O apaziguamento dos conflitos que rondam o assunto só seria
possível se cessassem as próprias razoes destas divergências, algo que não
está posto no horizonte histórico de um mundo atravessado por desigualdades
tão grandes.
É nesse contexto conflitivo que emerge uma produção artística que
enuncia seu caráter simultaneamente subordinado e resistente à vontade de
dominação de quem deseja anular ou apaziguar diferenças, impondo-se como
força ativa de um embate em marchas pela afirmação de narrativas simbólicas
distintas. Características que se pode expressar no termo “arte menor”, aqui
definido como conjunto de movimentos contrahegemônicos que constantemente
reiteram a ideia de que o local não é somente o sítio da subjugação por um global
triunfante, sendo também o lugar de onde frequentemente se confronta aquela
subordinação e se reforçam ou sem recriam modos de vida diferentes. Arte
menor, portanto, como espaço de confronto com um poder que, embora queira
se fazer natural, é fruto de processos violentos de sujeição passados e
presentes.
A ideia de uma arte menor que confronta uma arte supostamente maior
se apropria daquilo que Gilles Deleuze e Félix Guattari identificam como central
na obra de Franz Kafka, escritor judeu que, tendo no tcheco a sua primeira
língua, precisou redigir em alemão para de integrar ao campo literário de seu
tempo e lugar. É dessa posição de subalternidade, e justamente por estar
situado nela, dizem os filósofos franceses, que Franz Kafka renovou a língua
dominante, expondo ao mesmo tempo – no conteúdo e na forma de sua escrita
–, os processos de dominação simbólica e material a que estava sujeitado.
Escavando uma língua nova (menor) de outra já consolidada (maior), a “literatura
menor” possuiria, assim, um inescapável componente político, apontando e
desarmando consensos há muito estabelecidos. A literatura menor não ignora,
portanto, a literatura maior, valendo-se justamente do reconhecimento de sua
condição subordinada diante daquela para criar, em meio e a partir dessa
circunstância, a potência transformadora de sua formulação.
No campo da criação em artes visuais, uma arte menor seria aquela,
portanto, que se vale do vasto repertório de conhecimentos artísticos produzidos
em toda parte (inclusive os autóctones), gradualmente acessíveis a mais e mais
gente, para a partir de um ponto de vista singular, acolher parte deles, descartar
outro tanto e articular tudo aquilo que se apropriou de um modo que lhe é único.
A arte menor adiciona, desta maneira, inflexões e sotaques específicos para a
chamada língua internacional da arte, aquela que, forjada e difundida desde as
instituições de arte e instancias de mercado detentoras de maior e mais extenso
poder simbólico e material, reproduz seus valores particulares e contingentes
como se fossem consensuais e permanentes. A arte menor é, portanto, lugar de
disputa constante em torno da historicidade do mundo; de locução crítica frente
a manifestações atualizadas de violências cometidas também em outros
temposii.
O objetivo deste ensaio não é, contudo, insistir nas características de uma
arte menor. Mas sugerir como, a partir do campo da prática curatorial, pode-se
atuar criticamente nesse mesmo espaço de manifestação das diferenças,
fazendo-se de uma “curadoria menor” outra estratégia de resistência possível
em um mundo globalizado. Para tanto, parte-se do reconhecimento de que as
grandes exposições e, em particular, as muitas bienais de arte que existem em
toda parte têm tido papel crescentemente relevante no ambiente de disputa aqui
enunciado. É muito conhecida a importância, assim como as limitações, de
projetos curatoriais como o da mostra Magiciens de la Terre, ocorrida em Paris,
em 1989, bem como a centralidade das bienais de Havana, de São Paulo e de
algumas poucas outras, além de edições específicas da documenta, em Kassel,
para que se avance conceitual e politicamente nessa discussãoiii. E é sintomático
da crescente importância crítica da curadoria que o fim das chamadas
representações nacionais nas bienais (com a exceção importante da Bienal de
Veneza, a mais antiga de todas) tenha ocorrido ao mesmo tempo – a partir do
final da década de 1990 – em que se testemunha a presença cada vez maior e
mais potente, nessas mostras, de artistas vindo de países que jamais haviam
participado de uma exposição internacional, permutando-se uma geopolítica
oficial – imposta desde outras regiões e países hegemônicos – por outra que se
reflete os conflitos em curso no mundo.
Sem querer abarcara, de modo minimamente abrangente, um tema que
já possui reflexão acumulada extensa, é possível aqui destacar que também a
prática curatorial pode assumir um caráter minoritário perante os embates
simbólicos que marcam o espaço globalizado contemporâneo. Possibilidade a
ser apresentada por meio de um fragmento expositivo da 29ª Bienal de São
Paulo (2010), que tinha como intenção explícita e geral discutir a relação entre
arte e políticaiv. Relação considerada não somente em seu sentido estrito, mas
igualmente na acepção mais ampla em que a arte é tomada como algo (uma
imagem, um objeto, um gesto) capaz de desafiar os consensos em torno dos
quais a vida se organiza e se reproduz, esteja ou não a tratar explicitamente de
temas relacionados a embates e conflitosv.
A ambição da curadoria dessa edição da bienal paulista ia além, contudo,
da afirmação do potencial transformador da arte, buscando fazer com que
também a exposição, como aparato que dá a ver alguma coisa, fosse organizada
politicamente. Que fosse entendida e apresentada como um dispositivo que
retrata criticamente, por meio da produção artística, o mundo corrente, pondo
em dúvida as formas hegemônicas de seu funcionamento. No limite, pondo a si
mesma em questão. Uma exposição que deixasse claro, ademais, o lugar e o
tempo a partir dos quais foi concebida: desde o Brasil e em um momento de
rápida reorganização geopolítica do mundo.vi
Uma das principais estratégias curatoriais adotadas para atingir esses
objetivos baseou-se na aproximação entre trabalhos consagrados de artistas
inseridos na tradição europeia e norte-americana (tradição global ou maior) e
trabalhos de artistas que não pertencem diretamente a essa tradição. Por meio
desse avizinhamento no espaço expositivo, buscou-se produzir significados
novos sobre conjuntos distintos de trabalhos, entendendo-se uns através dos
outros. Entre vários exemplos possíveis que, ancorados nessa estratégia, faziam
parte dessa edição da Bienal de São Paulovii, destaque deve ser dado ao
ambiente de exposição que constituía um exercício mais evidente daquilo a que
se propõe aqui chamar de curadoria menor.

Entre Cara de Cavalo e o Baader-Meinhof, uma curadoria menor

O motivador para sua organização como parte da 29ª Bienal de São Paulo foi a
lembrança de um celebrado projeto do alemão Gerhard Richter. Intitulado
October 18, 1977 [18 de outubro de 1977], o trabalho é formado por uma série
de 15 pinturas realizadas em 1988 que têm, como modelos, fotografias
publicadas na imprensa referentes a captura, aprisionamento, morte e
sepultamento de membros da Facção do Exército Vermelho, também conhecida
como o bando Baader-Meinhof, grupo de oposição armada ao governo alemão-
ocidental surgido no final da década de 1960. Desenrolar de fatos cujo ponto
culminante foi o momento em que alguns dos integrantes dessa organização
apareceram mortos, como foram os casos de Andreas Baader e Gudrun Ensslin,
ou agonizantes, tal como sucedeu a Jan-Carl Raspe, em suas celas da prisão
de Stammheim, enquanto se encontrava sob a guarda do Estado alemão. O
título dado ao conjunto de telas é uma referência ao dia em que os dois primeiros
são encontrando sem vida e o terceiro já prestes a morrer. Mesmo destino de
uma das líderes do grupo, Ulrike Meinhof, que um ano antes foi achada
enforcada em sua cela, também em Stammheim.
Para muitos, o Baader-Meinhof era um grupo revolucionário; para outros,
um grupo terrorista. Para muitos, eles foram assassinados na prisão pelo
governo alemão; para outros, cometeram suicídio diante do fracasso de seu
projeto. Somente essa ambiguidade de sentidos já era razão suficiente para
querer incluir essa série de pinturas na 29ª Bienal de São Paulo, ainda mais
sendo o autor um artista que transita com igual desenvoltura entre o
ultrarrealismo e o abstracionismo, dissolvendo qualquer apego e normas estritas
de estilo. Além disso, parecia muito interessante à curadoria a possibilidade de
ampliar, ou de torcer, os significados possíveis dessas pinturas, colocando-as,
para isso, em proximidade de trabalhos como o bólide Homenagem a Cara de
Cavalo, de Hélio Oiticica, feito para louvar um bandido morto, em 1966, com mais
de uma centena de balas disparadas pela polícia do Rio de Janeiro. É importante
recordar que Cara de Cavalo era amigo de Hélio Oiticica e, para muitos da favela
onde morava, um herói popular; alguém que desafiava as leis repressoras e
excludentes do Estado brasileiro. Homenagem tão mais significativa quando se
considera que, naquele momento, vivia-se o início da ditadura militar no Brasil.
De maneira análoga, pensou-se em colocar as pinturas de Gerhard Richter em
diálogo com o trabalho Inserções em circuitos ideológicos – Projeto Cédula, de
Cildo Meireles, inaugurado no princípio da década de 1970 e desdobrando nas
seguintes. Em particular, relacioná-las com o exemplar específico dessa série
extensa de intervenções críticas sobre cédulas de dinheiro em que o artista
carimbou, em 1975, a inscrição “Quem matou Herzog?”. Referência, como era
evidente a todos na época, ao fato de o jornalista Vladimir Herzog ter sido
encontrado morto na sede da polícia política de São Paulo, um dia após ter sido
preso, naquele mesmo ano, sob a acusação de ser membro do Partido
Comunista Brasileiro. Embora o governo militar então no poder tenha insistido
na versão de que o jornalista teria cometido suicídio na cela onde se encontrava
detido, ficou devidamente provado, anos depois, que Vladimir Herzog morreu em
razão das torturas que sofrera na prisão.
Como as pinturas de Gerhard Richter pertenciam, desde 1995, ao Museu
de Arte Moderna de Nova York (MoMA), faz-se um pedido formal de empréstimo
à instituição americana para que as mesmas integrassem a 29ª Bienal de São
Paulo. Pedido que detalhava as relações que pretendiam ser feitas entre as telas
do artista alemão e trabalhos de outros criadores, alargando ou modificando
seus significados possíveis. Fazendo-as, como diriam Gilles Deleuze e Félix
Guattari, gaguejar, hesitar, abrir-se para outras possibilidades de entendimento.
Após pouco mais de um mês da solicitação feita, e em seguida a um renovado
pedido ao MoMA para que se posicionasse perante a demanda, a curadoria da
Bienal de São Paulo recebeu uma mensagem do museu comunicando que as
obras de Gerhard Richter não estariam disponíveis para a exposição.viii
A mensagem da curadoria do MoMA que assinalava a impossibilidade do
empréstimo concluía expressando o desejo de que a Bienal de São Paulo
pudesse encontrar trabalhos substitutos aos de Gerhard Richter junto a outras
instituições. De fato, diante da impossibilidade de contar com a colaboração do
museu norte-americano, a curadoria resolveu recorrer a outra instituição
artística. Não para substituir os trabalhos negados, compensando, desse modo,
sua ausência, mas paea encontrar, a despeito da recusa do MoMA, uma solução
para o empréstimo e a inclusão da série de pinturas que o artista alemão fez a
partir da morte de membros do Baader-Meinhof, considerada de capital
importância para a exposição. a instituição a que se decidiu recorrer para tanto
se chamava Museu de Arte Contemporânea de Lima (LiMAC), e havia sido
criada em 2002 pela artista peruana Sandra Gamarra.
O LiMAC tem origem no reconhecimento de que o Peru, assim como a
maior parte dos países latino-americanos, não dispõe de recursos suficientes
para adquirir coleções significativas da produção artística internacional, pelo
menos no âmbito público. E foi em função dessa incontornável restrição que
Sandra Gamarra decidiu criar o próprio museu. A coleção do LiMAC seria
composta por pinturas, feitas pela artista, de trabalhos – não importando a
origem, o suporte ou o preço – que gostaria de ver em museus de sua cidade,
mas que dificilmente poderiam ser por eles adquiridos. Pinturas realizadas a
partir de reproduções fotográficas desses trabalhos contidas em catálogos de
exposições ou de acervos, e que têm como marca distintiva barras brancas
situadas acima, abaixo e aos lado delas, evocando a inserção gráfica dessas
fotografias nas páginas das publicações onde foram localizadasix.
O LiMAC é, portanto, um museu imaginário; ou parafraseando o poeta
João Cabral de Melo Neto, um “museu de tudo”x. E foi ao LiMAC de Sandra
Gamarra que, nas circunstâncias narradas, a Bienal de São Paulo, solicitou
formalmente o empréstimo dos trabalhos de Gerhard Richter que tanto eram
desejados para sua 29ª edição. Como o LiMAC ainda não “possuía” a série
October 18, 1977 em seu acervo, Sandra Gamarra imediatamente adquiriu o
detalhado catálogo com as reproduções fotográficas das pinturas, publicado pelo
MoMAxi, e refez, sobre telas, cada um dos 15 trabalhos originais, respeitando
suas dimensões. Foi parte desse conjunto que foi exposto na 29ª Bienal de São
Paulo, adicionando mais outra questão à série de trabalhos finalmente expostos,
pois assim como as pinturas de Sandra Gamarra, as de Gerhard Richter foram
feitas a parir de fotografias, sendo, embora em um sentido superficial, também
cópias. Esse foi o contexto em que a sala aqui destacada pôde finalmente ser
organizadaxii.
Além das pinturas de Gerhard Richter reproduzidas por Sandra Gamarra,
o ambiente abrigava, como havia sido planejado, exemplos das Inserções em
circuitos ideológicos – Projeto Cédula, de Cildo Meireles, com destaque para a
nota carimbada com a frase “Quem matou Herzog?”. Igualmente se encontrava
nele o bólide Homenagem a Cara de Cavalo, de Hélio Oiticica, compondo o
núcleo originalmente pensado como capaz de desacomodar os significados
assentados dos trabalhos do artista alemão. No processo de pesquisa para a
exposição, outros trabalhos foram identificados como pertinentes a essa ideia e
acrescentados à sala. Um deles, de autoria de Artur Barrio, era composto de
texto, desenho e fotografia que tratava, especificamente, da morte dos membros
do Baader-Meinhof e da relação que supostamente existiria entre a Alemanha
democrática e as ditaduras latino-americanas. Trabalho que se chamava Uma
semana de outubro: 1977 e produzido naquele mesmo ano.
Havia também uma vitrine no centro do espaço expositivo. Nela se
encontrava, com destaque, o catálogo publicado pelo MoMA sobre as pinturas
de Gerhard Richter, bem como um texto que explicava, em linhas gerais, o
porquê de aquelas obras não estarem presentes na exposição, sendo
representadas, por assim dizer, pelas pinturas de Sandra Gamarra. A vitrine
continha ainda a conhecida fotografia de Vladimir Herzog morto na cela de
prisão, divulgada pela ditadura como suposta prova de que ele havia se
enforcado. Fotografia que, como depois foi elucidado, tinha sido forjada como
parte de uma tosca farsa. Ao lado da imagem do jornalista, estava a fotografia
de Gudrun Ensslin, integrante do Baader-Meinhof, igualmente enforcada na cela,
tal como alegadamente fora achada pelas autoridades alemãs. Havia a fotografia
de Cara de Cavalo morto, publicada por um jornal do Rio de Janeiro, a mesma
apropriada por Hélio Oiticica para fazer o trabalho em homenagem ao amigo.
Por fim, a vitrine trazia o registro fotográfico – publicado na imprensa como a
anterior – do corpo de Alcir Figueira da Sila, outro bandido que, perseguido pela
polícia do Rio de Janeiro, resolvera cometer suicídio para não se deixar prender.
Imagem que foi aproveitada por Hélio Oiticica para conceber um de seus mais
conhecidos trabalhos, a bandeira que traz a inscrição Seja marginal, seja herói,
também em exibição na sala.
Do ponto de vista curatorial, o ponto de maior interesse nessa articulação
e avizinhamento de trabalhos é o fato de eles, assim relacionados, permitirem
que se refaça, em bases novas, a relação entre categorias que aparentam ser
separadas, como terrorista e revolucionário, marginal e herói, ditadura e
democracia, exercício legítimo de poder e abuso autoritário da força, e mesmo
cópia e original. Reflexão tornada possível em função da posição minoritária
assumida na seleção de um conjunto de trabalhos fincados em contextos
diversos, convocados para sugerir, em uma relação de fricção com as pinturas
de Gerhard Richter (por intermédio das pinturas de Sandra Gamarra), modos
distintos de entender o que é tido como conhecimento dado.
É importante, contudo, tornar claro que, a despeito disso tudo a sala
colocava em dúvida a crença na potência política da arte, suspendendo e
contrariando a proposição central da curadoria da 29ª Bienal de São Paulo e, por
extensão, o que ela mesma propunha como aplicação específica daquele
argumento mais amplo. Paradoxo exposto com o auxílio da escritora Clarice
Lispector, ali presente em trecho da única entrevista que concedeu a uma
emissora de televisão (TV Cultura, de São Paulo), curiosamente também em
1977, meses antes de morrer. Segmento da entrevista que era exibido em
monitor próximo à bandeira de Hélio Oiticica que ostenta, nela escrita, o lema
Seja marginal, seja herói. Perguntada sobre por quais textos seus sentia maior
afeição, Clarice Lispector cita, além do conto “O ovo e a galinha’, a crônica que
fez por ocasião da morte de “Mineirinho”, bandido eliminado pela polícia do Rio
de Janeiro em condições semelhantes àquelas da execução de Cara de Cavalo,
tendo sido alvejado por 13 disparos de revolverxiii. Homem com opções de
escolha de vida tão limitadas quanto as de Alcir Figueira da Silva, aquele que
abdicou da própria existência para evitar ser preso. Para a escritora, a morte de
Mineirinho trazia embutida uma violência de tal tamanho e natureza que
terminava por alcançar a todos, a ponto de dizer que a décima terceira bala a
havia atingido. Ela havia se transformado em Mineirinho. Diante disso, o
entrevistador questiona em que medida seus textos, e em particular aquele sobre
tão bárbaro fato, teriam a capacidade de mudar o estado das coisas. Ao que ela
prontamente responde: “Não muda nada”. xiv
Ainda que se possa relativizar o tom desiludido e definitivo dessa
negativa, a declaração de Clarisse Lispector importa por lembrar que, mesmo
quando se possui confiança no poder emancipador da arte e das exposições, é
preciso nutrir dúvida sobre esse poder, pô-lo sempre à prova, testá-lo de muitas
maneiras. Um questionamento que, contraditoriamente, pode se tornar um meio
eficaz de atuar em um campo de embate sem bordas e inconcluso; de atuar pela
afirmação de pontos de vista ou de sotaques diferentes em um mundo
globalizado e desigual como o que aí existe. Uma forma ambígua de exercer o
direito de narrar a vida que talvez seja própria de quem é, mas não o deseja ser,
subalterno de mais alguém. Um modo distinto e crítico – menor, portanto – de
posicionar-se em relação ao outro no espaço e no tempo que tocam a cada um
viver; um modo no qual não cabem exatidões ou plenas certezas.

i
ii
iii
iv
v
vi
vii
viii
ix
x
xi
xii
xiii
xiv

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