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ARTE e

POLítica
Material de Estudos

Professora:

Amanda Bastos
Arte e Política, Arte Política ou Política da Arte?
A expressão “arte e política” diz respeito a todo tipo de possibilidades de interconexões
da produção artística com os movimentos políticos. “Arte política” é aquela em que o artista se
assume como protagonista de uma ação política, buscando produzir efeitos nas estruturas de
poder vigentes, sejam para sua transformação ou para sua manutenção. A expressão “política da
arte” se refere às correntes políticas que se estabelecem dentro do campo da arte definindo
posições e poderes. Apesar de se falar tanto de política em nosso meio, contraditoriamente, no
entanto, muito pouco se fala de suas relações com a arte.
No entanto, como afirma Jacques Ranciere, “arte e política têm em comum o fato de
produzirem ficções. Uma ficção não consiste em contar histórias imaginárias. É a construção de
uma nova relação entre a aparência e a realidade, o visível e o seu significado, o singular e o
comum.”

Observe a imagem a seguir:

MINUJÍN, Marta. Partenon de livros. 2017. Aço, livros e folhas de plástico, 19,5 m × 29,5 m × 65,5 m. A artista
argentina remontou sua obra de 1983 no festival de arte Documenta 14, de 2017, em Kassel, na Alemanha. A
estrutura é composta de mais de 100 mil livros, obtidos por meio de doações, que correspondem a mais de 170
títulos proibidos em vários países em todo o mundo. Esses livros foram amarrados à estrutura de aço e
revestidos com folhas plásticas, que os protegem e permitem a entrada da luz solar no edifício.

1. Na sua opinião, a arte é capaz de transformar a forma como vivemos?


2. Qual é a importância da liberdade de expressão?
3. De que forma você imagina que a arte modifica a política?

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A artista argentina Marta Minujín (1943-) criou, em 2017, uma réplica de uma das
construções arquitetônicas mais famosas do mundo: o Partenon, localizado na Acrópole de
Atenas, na Grécia. Esse templo foi construído no século V a.C. em homenagem à deusa Atena.
Marta, no entanto, fez a réplica do Partenon utilizando livros censurados, isto é, uma arte
como símbolo da resistência à repressão política. A primeira montagem da obra foi feita em
Buenos Aires em 1983 com livros censurados no período da ditadura militar argentina (1976-
1983).
Os livros foram doados por editoras e a obra celebrou a restauração da democracia,
naquele ano. Foram necessários, na época, mais de 20 mil livros, além de uma estrutura tubular
com 15 metros de extensão e 12 metros de altura.
Alguns dos autores proibidos naquele momento eram Sigmund Freud, Karl Marx, Jean-
Paul Sartre, Adam Smith, Antonio Gramsci, G. W. F. Hegel, Ernest Hemingway, Jorge Luis Borges,
Marguerite Yourcenar e Michel Foucault. No dia 24 de dezembro de 1983, a estrutura foi desfeita
e os livros, distribuídos: cerca de 12 mil foram doados a pessoas presentes e 8 mil, levados para
bibliotecas públicas.
Em sua remontagem, em 2017, Marta Minujín selecionou mais de 170 títulos que são
atualmente proibidos em diversos países, trazendo à tona a questão da censura como uma das
mais potentes ferramentas dos regimes militares ou autoritários.
Por mais que pareça estranho imaginar que isso ocorra na atualidade, existem diversos
grupos políticos no mundo que entendem, ainda hoje, que determinadas manifestações
culturais, como exposições de arte, apresentações de dança, obras de literatura, músicas ou
peças de teatro, ferem princípios morais ou prejudicam os interesses dos que estão no poder.
Ao longo deste tema, veremos como a arte responde às imposições do poder, seja
driblando a censura, seja colocando em destaque temas ignorados por grupos que estão
governando o país.
Saberemos, ainda, como a arte e a cultura encontraram estratégias de resistência em
diferentes momentos históricos, mantendo-se vivas mesmo quando não são valorizadas por
políticas públicas.

1. Você já pensou como a arte se manifesta no seu cotidiano?


2. Imagine agora como seria seu cotidiano se toda forma de arte fosse proibida.

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Observe essa outra imagem:

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Observe as imagens a seguir:

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ARTE COMO PROTESTO

GERCHMAN, Rubens. Lute. 1967. Tinta


industrial sobre madeira,
173 cm × 554,5 cm × 38,5 cm. Museu de
Arte Moderna do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro (RJ).

1. Essa imagem, que data de 1967, está inserida no contexto da ditadura militar
brasileira. De que forma você relaciona o momento histórico com tal obra?
2. Caso você tivesse de criar uma obra com uma palavra de ordem sobre o contexto
brasileiro atual, qual seria ela?

O início da década de 1960 no Brasil foi marcado por muito otimismo, com a
construção de Brasília, o concretismo e a ideia de desenvolvimento que prevalecia
no país. Em 1964, a história, no entanto, tomou outro curso com a instauração da
ditadura militar, que limitou liberdades individuais e de expressão.
O Ato Institucional no 5, conhecido com AI-5, que entrou em vigor em 13 de
dezembro de 1968, definiu o período de maior repressão da ditadura militar. Ele
vigorou até dezembro de 1978. Durante sua vigência, foi permitido aos governantes
punir arbitrariamente os que fossem considerados “inimigos” do governo e censurar
as artes e os meios de comunicação.
Em 1967, o artista visual Rubens Gerchman (1942-2008) colocou enormes letras
feitas de madeira e fórmica no meio da avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, com
o intuito de atrapalhar o trânsito e levar o público à ação contra a repressão. As
letras formavam a palavra lute. Tal obra foi uma das mais representativas do
neoconcretismo brasileiro.
Gerchman não foi o único artista a expressar sua
indignação diante da censura e do regime ditatorial.
Grande parte da produção artística da época reflete a
repulsa à censura, à perseguição e ao assassinato de
opositores ao governo.
Esse período de intensa falta de liberdade de
expressão obrigou os artistas a pensar em formas de
circulação de suas obras fora dos circuitos tradicionais,
nos quais elas não seriam aceitas por criticar o regime.
Entre 1960 e 1970, o jovem Carlos Zilio (1944-) foi um
artista que contestou ativamente o governo, por meio de
sua arte.
Sua obra Identidade ignorada, criada em 1974 como
uma referência aos desaparecimentos políticos da época,
hoje ganha novos significados, porém permanece crítica e
socialmente engajada. ZILIO, Carlos. Identidade Ignorada, 1974.
Fotografia, 18 cm × 24 cm. Acervo do artista.

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Claudio Tozzi (1944-), artista que à época era estudante de
arquitetura e iniciava sua produção, criou obras de
contestação que tinham como influência a Pop Art, utilizando
a serigrafia e imagens de comunicação de massa.
Em vez de criticar o consumismo, como faziam os ícones
estadunidenses desse movimento, o artista apropriava-se de
elementos da Pop Art para contestar a opressão em que se
vivia no Brasil. Utilizando linguagem simples, com recursos e
elementos das histórias em quadrinhos e da comunicação de
massa, os trabalhos buscavam comunicar-se com um público
mais amplo que aquele habitualmente apreciador das artes
visuais.
Em um contexto marcado pela violência e pela cassação do
direito de se expressar, os artistas encontravam formas de
driblar a censura, questionar a falta de liberdade de expressão
e criticar o regime de poder imposto.

TOZZI, Claudio. Ocorrência 3114. 1967. Tinta em massa


sobre aglomerado, 175 cm × 100 cm.

Como havia um órgão de censura bastante


atuante, era necessário encontrar outras
maneiras de apresentar suas obras, em outros
circuitos que não os oficiais. Um exemplo dessa
nova imaginação artística foi a intervenção
Quem matou Herzog? de Cildo Meireles.
O artista carimbou essa frase em notas de
dinheiro em circulação, fazendo referência ao
assassinato do jornalista Vladimir Herzog
durante a ditadura e, ao mesmo tempo,
colocando seu trabalho de arte no cotidiano da
população. Inserções em circuitos ideológicos é
uma outra obra dessa série, na qual o artista
serigrafava garrafas de vidro retornáveis de
refrigerante com mensagens de resistência à
ditadura.
Seus trabalhos, compostos de técnicas
aparentemente simples, como carimbo ou
serigrafia, tinham um alcance muito maior do
que se fossem expostos em um museu ou
galeria.

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Arte a partir do Golpe
Militar no Brasil:

• De 1964 até 1968

A arte age como


resistência política e
abertamente engajada.

• 1968 – Com o Ato


Institucional 5 (AI – 5)

A arte passa a atuar de


maneira metafórica e
marginal.

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Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
Pai, afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue
Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor, engolir a labuta
Mesmo calada a boca, resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta
Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada pra a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa
De muito gorda a porca já não anda
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, pai, abrir a porta
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade
Mesmo calado o peito, resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Talvez o mundo não seja pequeno


Nem seja a vida um fato consumado
Quero inventar o meu próprio pecado
Quero morrer do meu próprio veneno
Quero perder de vez tua cabeça
Minha cabeça perder teu juízo
Quero cheirar fumaça de óleo diesel
Me embriagar até que alguém me
esqueça.

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A canção de protesto: música e manifestação política

A utilização da música com caráter político é algo muito antigo. Hinos


nacionais, por exemplo, cumprem há séculos a função de incitar sentimentos
patrióticos nos povos. Há um enorme número de músicas que remetem a um ideal
de sociedade por meio de crenças religiosas, enaltecimento de características
consideradas inerentes a determinados indivíduos ou louvor ao passado. As
canções de protesto, nesse sentido, pretendem comunicar, por meio da poesia,
visões, desejos e sentimentos contrários ao poder estabelecido. A junção de
poesia e música tem potência para atingir diretamente a razão e a sensibilidade
das pessoas.

A canção de protesto, que se estabeleceu no século XX, coloca-se contra as


opressões do Estado e as ditaduras. A efervescência política do início do século
culminou com o estabelecimento do fascismo na Itália – sob a liderança de Benito
Mussolini (1883-1945), a partir de 1919 – e, posteriormente, do nazismo na
Alemanha – sob a liderança de Adolf Hitler (1889-1945), a partir de 1934.

Os artistas e intelectuais contrários a esses sistemas foram perseguidos e, em muitos


casos, torturados e mortos. Essa política de extermínio, cujo objetivo era fazer
desaparecer qualquer oposição aos regimes, era também imposta sob o pretexto
estético, julgando o que era “belo” e “bom” e o que não era.

Por exemplo, durante o nazismo, a arte abstrata era considerada “degenerada”,


bem como a feita por judeus. Na música, o atonalismo foi perseguido, especialmente
por ter ligação com o compositor austríaco Arnold Schoenberg (1874-1951), de origem
Partigiano: judaica. A canção foi uma importante forma de engajar os opositores desses regimes.
membro
de grupos Na Itália, uma antiga canção de protesto às precárias condições de trabalho de
organizados mulheres responsáveis pela colheita de arroz teve sua letra alterada para protestar
da resistência contra o fascismo de Mussolini. Trata-se de uma canção popular italiana, cuja tradução
contra os pode ser conferida abaixo. Nela, o eu lírico despede-se de sua amada porque lutará
fascistas na Itália. contra o fascismo e acredita que morrerá. Essa música tornou-se um hino na luta
contra o fascismo, popularizando-se no mundo todo.

Bela, tchau (Bella, ciao)

Uma manhã, eu acordei, Me enterrar lá em cima na montanha,


oh bela, tchau! Bela, tchau! Bela, tchau, sob a sombra de uma bela flor.
tchau, tchau! E as pessoas que passarão,
Uma manhã, eu acordei oh bela, tchau! Bela, tchau! Bela, tchau,
e encontrei o invasor. tchau, tchau!
Oh partigiano, me leve embora, E as pessoas que passarão
oh bela, tchau! Bela, tchau! Bela, tchau, te dirão: “Que bela flor”.
tchau, tchau! Esta é a flor do partigiano,
Oh partigiano, me leve embora, oh bela, tchau! Bela, tchau! Bela, tchau,
pois sinto que vou morrer. tchau, tchau!
E se eu morrer como partigiano, Está é a flor do partigiano
oh bela, tchau! Bela, tchau! Bela, tchau, morto em nome da liberdade.
tchau, tchau!
E se eu morrer como partigiano BELLA Ciao (tradução). In: ANSA (Agência Italiana de
você deve me enterrar. Notícias). 'Bella ciao': a música símbolo da
Me enterrar lá em cima na montanha, resistência antifascista na Itália. Opera Mundi, 25
oh bela, tchau! Bela, tchau! Bela, tchau, abr. 2018.
tchau, tchau!

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Depois da Segunda Guerra Mundial, com a grande polarização da política global na Guerra Fria
(1947-1991), países da América Latina passaram a viver sob ditadura. Da mesma forma como
ocorreu no fascismo e no nazismo, os artistas foram perseguidos e utilizaram a música para
transmitir suas mensagens de resistência e denúncia.

No Chile, uma música que havia sido composta para celebrar a eleição do democrata Salvador
Allende, em 1970, tornou-se um hino de resistência quando o general Augusto Pinochet deu um
golpe de Estado e implementou uma ditadura militar que durou de 1973 a 1990. Procure na
internet a música “El pueblo unido jamás será vencido” (O povo unido jamais será vencido, em
tradução livre) e ouça-a. Ela foi composta por Sergio Ortega (1938-2003) e sua letra foi escrita pelo
grupo Quilapayún, representante do movimento Nueva Canción Chilena, que teve diversos
membros perseguidos pela ditadura. Abaixo, uma tradução livre.

O povo unido jamais será vencido

O povo unido jamais será vencido Irão


O povo unido jamais será vencido A pátria cobrirá
De pé, cantar Seu passo já
Nós vamos triunfar Anuncia o futuro
Avante já De pé, cantar
Bandeiras de unidade O povo vai triunfar
Você virá Milhões já
Marchando junto a mim Impõem a verdade
Você vai ver De aço eles são
Teu canto, tua bandeira florescer Ardente batalhão
A luz As suas mãos vão
De um vermelho amanhecer Levando a justiça e a razão
Anuncia já Mulher
A vida que virá Com fogo e com valor
De pé, lutar Você já está aqui
O povo vai triunfar Junto ao trabalhador
Será melhor
A vida que virá QUILAPAYÚN; ORTEGA, Sergio. Disponível em:
A conquistar <https://www.vagalume.com.br/quilapayun/elpuebl
Nossa felicidade o-unido-jamas-sera-vencido-traducao.html>. Acesso
E num clamor em: 6 jul. 2020. Texto adaptado.
Mil vozes de combate se levantarão
Dirão
Canção de liberdade
Com decisão
A pátria vencerá
E agora o povo
Se levanta na luta
Com voz de gigante
Gritando: adiante...!
O povo unido jamais será vencido
O povo unido jamais será vencido
A pátria está
Forjando a unidade
De norte ao sul
Se mobilizará
Desde o deserto de sal
Ardente e mineral

Ao bosque austral
Unidos na luta e no trabalho

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Na década de 1950 o Brasil vivia transformações sociais e culturais relacionadas à crescente
industrialização e urbanização, e à pauta política desenvolvimentista. É a década do governo de Juscelino
Kubitschek (1902-1976) e de sua proposta de crescimento com o slogan “50 anos em 5”. Um marco desse
período é a construção de Brasília, inaugurada em 1960. Cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo
concentravam o poder político do país e começavam a se transformar nas metrópo les que são hoje. As
intensas desigualdades sociais atraíam para esses centros urbanos muitos trabalhadores do Norte e
Nordeste do país em busca de uma vida melhor.
A década de 60 representou para a música um período
revolucionário, despertando o potencial de grandes artistas e
Contracultura é um
movimentos de fortes ideologias. No contexto internacional, em
movimento de
1965, viu-se a explosão de grandes nomes, como Beatles, Rolling
Stones, Bob Dylan, Bob Marley e Janis Joplin. Em consonância, a questionamento e
década se encerrou com “chave de ouro” para os hippies a partir negação da cultura
do Festival de Woodstock em 1969 – o grande marco vigente que visa quebrar
da contracultura. tabus e contrariar
No Brasil, a década também surpreendeu. Em meio a um normas e padrões
contexto político incerto, explodiram expressões politizadas e de culturais que dominam
protesto, além do pop da Jovem Guarda e o excêntrico da Bossa uma determinada
Nova. E no meio de tudo isso, outro movimento passou a sociedade. Em geral, as
transgredir: a tropicália. O movimento retomou alguns dos
ações de contracultura
princípios da Antropofagia adaptados ao contexto da época para
surgiram de jovens
agitar o cenário político e cultural brasileiro, com uma postura
contestatória e irreverente, questionando o que era considerado descontentes com a vida
bom gosto da época e assimilando, numa atitude antropofágica, e os padrões
influências culturais das mais diversas. estabelecidos por seus
pais.

O que foi o movimento Tropicália?


O movimento tropicália ou tropicalismo foi um movimento cultural que atingiu, sobretudo, a música
brasileira a partir da década de 60, mas também influenciou na terceira fase do Cinema Novo (1968 –
1972), um movimento cinematográfico brasileiro marcado pela sua crítica à desigualdade social. Grandes
nomes conhecidos hoje, como Caetano Veloso e Gilberto Gil, atuaram ativamente fazendo com
que características estéticas e ideológicas reverberassem por essa esfera cultural sonora.

Além desses artistas, o movimento envolveu muitos outros músicos


que, partindo das ideias transgressoras do tropicalismo, construíam
canções misturando elementos de diferentes tipos.
Tudo começa com o Festival de Música Popular Brasileira. Inaugurado
em 1965, foi um concurso anual de canções originais e inéditas que
revelou muitos talentos considerados hoje clássicos da música brasileira,
tais como Elza Soares, Chico Buarque, Elis Regina, Nara Leão, Roberto
Carlos, Os Mutantes (com Rita Lee), entre outros.
Foi por meio desse evento que, em 1967, na terceira edição, Caetano
Veloso, Gilberto Gil e Os Mutantes abalaram a tradição da música
brasileira. Trazendo novos elementos às canções, os artistas
apresentaram no Festival, respectivamente, “Alegria, alegria” e
“Domingo no Parque” – interpretada mutuamente por Gil e Os Mutantes.
Tudo indicava, portanto, uma ruptura com o que era feito até o
momento na música e um novo processo para a construção das canções,
repleto de singularidades e complexidade. Era um movimento de
inovações estéticas que propunha reinventar a música brasileira.

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Na realidade, o movimento tropicalista não nasceu de forma organizada e nem com
o nome que conhecemos hoje. Muitos artistas da época manifestavam em suas obras
interesses de ruptura e renovação: cineastas, escritores e intelectuais, que muitas vezes
nem se conheciam pessoalmente. O nome tropicália foi sugerido pelo cineasta Luiz
Carlos Barreto para uma música do disco de 1967 de Caetano, ao ver nela relações com
uma obra de mesmo nome de Hélio Oiticica.

Helio Oiticica, Tropicália,


Penetráveis, 1967.
Instalação na Tate Gallery

Helio Oiticica,
Tropicália,
Penetráveis, 1967.
Instalação na
Universidade Estadual
do Rio de Janeiro.

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Essas são algumas imagens da obra Tropicália, de Hélio Oiticica. Ela é composta
por vários “penetráveis”, que segundo o artista são “labirintos com ou sem placas
movediças nos quias o expectador penetra, cumprindo um percurso. Obviamente
é impossível, só com as fotos, ter a experiência de percorrer a Tropicália. Mas é
possível ter uma ideia dos elementos que a compõe. Você os identifica? Leia a letra
e se possível, escute a música “Tropicália”, de Caetano Veloso.

Tropicália Mas seu coração


Caetano Veloso, Gilberto Gil balança a um
samba de tamborim
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés os caminhões Emite acordes
Aponta contra os chapadões dissonantes
Meu nariz Pelos cinco mil alto-falantes
Senhora e senhores ele põe os olhos grandes
Eu organizo o movimento Sobre mim
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento no planalto central Viva Iracema-ma-ma
Do país Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
Iracema-ma-ma
Viva a bossa-sa-sa Viva Ipanema-ma-ma-ma-ma
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça
Viva a bossa-sa-sa Eu vejo na TV e aposto também que você vê
Viva a palhoça-ça-ça-ça-ça Explicações, milhões de deduções absurdas
Uma história que se torna cada vez ma-ma-ma-mais
O monumento é de papel crepom e prata imunda
Os olhos verdes da mulata Como não, deves pedir perdão
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão Não tem explicação não há uma solução
Errar é humano, errar humano é
O monumento não tem porta Predestino é real
A entrada de uma rua antiga, estreita e torta Burrice eu não desejo a ninguém
E no joelho uma criança sorridente, feia e morta
Estende a mão Tem gente do teu lado que te faz ir mais além
Gente do teu lado que te faz ir mais além
Viva a mata-ta-ta Se for voar bem alto se lembra de não ser refém
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta Mas com o pé no chão lembre de enxergar além
Viva a mata-ta-ta
Viva a mulata-ta-ta-ta-ta Domingo é o Fino da Bossa
Segunda-feira está na fossa
No pátio interno há uma piscina Terça-feira vai à roça, porém
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina e faróis O monumento é bem moderno
Na mão direita tem uma roseira Não disse nada do modelo do meu terno
Autenticando eterna primavera Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
E nos jardins os urubus passeiam a tarde inteira Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Entre os girassóis
Viva a banda-da-da
Viva Maria-ia-ia Carmem Miranda-da-da-da-da
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia Viva a banda-da-da
Viva Maria-ia-ia Carmem Miranda-da-da-da-da
Viva a Bahia-ia-ia-ia-ia

No pulso esquerdo bang-bang


Em suas veias corre muito pouco sangue

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Vocês conseguem perceber as relações entre a música de Caetano e a
instalação de Hélio Oiticica?

Hélio Oiticica (1937-1980) criou, a partir da década de 1960, diversas obras que
propõem a participação do público. Os penetráveis são algumas delas. Preocupado
com a relação mais intuitiva e espontânea do público com as propostas artísticas, sem
as barreiras da intelectualidade da arte feita pela e para a elite burguesa, ele acabou
se interessando pro manifestações populares com o Carnaval, o samba e a favela,
tornando-se inclusive passista da escola de samba Mangueira. Veja o que disse o
artista, numa entrevista ao Jornal do Commercio, em 1967, sobre a obra Tropicália:

(...) para entrar em cada penetrável era o participador obrigado a caminhar sobre areia,
pedras de brita, procurar poemas entre as folhagens, brincar com araras etc. – o ambiente
criado era obviamente tropical, como que num fundo de chácara, e, o mais importante, havia
a sensação de que se estaria pisando na terra. Essa sensação, senti-a eu anteriormente ao
caminhar pelo morros, pela favela, e mesmo o percurso de entrar, sair, dobrar pelas
quebradas da Tropicália, lembram muito as caminhadas pelo morro (...)

No penetrável maior, o participador entra em contato com uma multiplicidade de


experiências referentes à imagem: a tátil, fornecida por elementos dados para a manipulação,
a lúdica, a puramente visual (...) até chegar ao fim do labirinto, no escuro, onde um aparelho
de televisão (receptor) encontra-se ligado permanentemente: é a imagem que absorve o
participador na sucessão informativa, global.

(OITICICA, Hélio. Encontros. Org. César Oiticica Filho e Ingrid


Vieira. Rio de Janeiro :Beco do Azougue, 2009. Pg. 50-51.)

As mostras de arte e a censura


No ano seguinte ao golpe militar, foi inaugurada a exposição
Opinião 65 no intuito de expor a produção dos artistas jovens.
Inspirada no Show Opinião, a exposição era a primeira manifestação
artística coletiva a tecer críticas à ditadura através de uma estética
pop. Organizada por Ceres Franco e Jean Boghici, teve duração de um
mês no MAM e expôs nomes como Rubens Gerchman, Antonio Dias,
Carlos Vergara, entre outros. Um ano depois, dando continuidade ao
modelo, inaugurou-se a Opinião 66, menos importante que a primeira
em termos de inovação formal, mas igualmente crítica.
Inspirado nessas duas exposições, Waldemar Cordeiro
organizou em São Paulo os seminários Proposta 65 e 66 no intuito de
promover uma discussão sobre as questões da arte do momento,
principalmente sobre a arte inspirada na Pop Arte americana e no
Novo Realismo francês, a fim de entender a especificidade
conquistada na produção brasileira. O debate gerou uma reflexão
sobre a nova vanguarda brasileira e no ano seguinte, em 1967 Hélio Oiticica e integrantes da escola de
acontece novamente no MAM a exposição Nova Objetividade, samba Estação Primeira de Mangueira
encabeçada por Hélio Oiticica, como mais um exemplo de repensar o com Parangolés, na área externa do
posicionamento político da arte brasileira, seja através de uma maior MAM Rio durante a abertura da
participação do espectador seja expandindo as categorias do objeto exposição Opinião 65. Foto Desdémone
de arte, seja pela tentativa de aproximação da arte com a dimensão Bardin
pública da cidade.

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É neste contexto de reinvenção e intensa produção que a censura começa a atuar. Em 1967
a polícia quis retirar o trabalho de Claudio Tozzi da IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal,
considerado subversivo. Em 1968, a II Bienal da Bahia é fechada também por ter seu conteúdo
considerado subversivo. Em 1969, a pré-bienal de Paris, realizada no MAM, também é
censurada. Também foram retirados trabalhos do Salão de Ouro Preto (1969) e do Salão do
Museu de Arte da prefeitura de Belo Horizonte (1968). O Salão da Bússula, realizado no mesmo
ano, no Rio de Janeiro, teve interdição da polícia. Com o AI-5 em vigor e intensa manifestação
popular, o circuito de arte brasileiro mobiliza a comissão de diversos países a boicotar a Bienal
de São Paulo de 1969, liderado pelo crítico Pierry Restany.

Nada disso impede que os Ovo (1967), Lygia Pape. Cubos de madeira envolvidos em papel ou
eventos artísticos e suas articulações plástico colorido, muito fino, que deve ser rompido pelas pessoas para
continuem acontecendo. Em Belo que tenham a sensação de nascimento.
Horizonte, no ano de 1966, é
organizada a Vanguarda Brasileira, e
em 1970, acontece “Do Corpo à
Terra”, por Frederico Morais. No Rio,
o ano de 1968 tem os eventos “arte
no aterro”, “domingo das bandeiras”
e “apocalipopótese”, organizado nos
arredores no MAM por Hélio Oiticica,
contava com a participação de
artistas, cineastas e músicos. As
obras participantes tem forte apelo à
participação dos espectadores, como
Os ovos de Lygia Pape e os
Parangolés de Oiticica. Em 1970, os
jardins do MAM voltam à atividade
com os “domingos da criação”.

Dois eventos simultâneos e integrados, em Belo Horizonte (MG),


formaram o movimento conhecido como “Do Corpo à Terra”: a
mostra “Objeto e Participação”, no Palácio das Artes, e a
manifestação “Do Corpo à Terra”, no Parque Municipal, ambos em
1970. Este último durou três dias e ambos aplicaram o conceito de
áreas externas como extensão de museus e galerias. Pela primeira
vez, artistas eram convidados não para expor obras já concluídas, mas
para criar seus trabalhos diretamente no local. Além disso, os
trabalhos no parque se desenvolveram em locais e horários
diferentes, o que significa que ninguém, nem mesmo os artistas e o
curador, presenciou a totalidade das manifestações individuais. Para
completar, os trabalhos feitos no parque permaneceram lá até sua
destruição, acentuando o caráter efêmero das propostas.
O acontecimento foi definido pelo curador Frederico Morais como
uma forma de arte-guerrilha: “O artista hoje é uma espécie de
guerrilheiro. A arte é uma forma de emboscada. Atuando
imprevisivelmente, onde e quando é menos esperado, o artista cria
um estado permanente de tensão constante”. Trouxas Ensanguentadas (1970),
de Artur Barrio.

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Trouxas Ensanguentadas (1970),
de Artur Barrio.

A obra “Trouxas Ensanguentadas” do artista plástico luso-brasileiro se tornou um


símbolo da mostra Do Corpo à Terra. Eram trouxas de pano, preenchidas com material
orgânico e dejetos, cortadas a golpes de faca. O artista inseriu ainda um pedaço de carne
de onde saía sangue, dando a impressão de que se tratavam de corpos ensanguentados.
A intervenção, que chocou o público, aconteceu em terrenos baldios do Rio de Janeiro
e no principal rio que corta Belo Horizonte, o Ribeirão das Arrudas. A polícia era
constantemente chamada. O objetivo de Barrio era denunciar o “desovamento” de
corpos de pessoas assassinadas pelo esquadrão da morte, em muitos casos a serviço do
regime. O artista observava de longe a reação do público.

Em texto-manifesto publicado no Correio da Manhã, em 1969, em repúdio


ao fechamento da Pré-Bienal de Paris no MAM, a associação de críticos de arte,
através da voz de Mário Pedrosa, convidava os críticos de todo país a boicotarem as
atividades artísticas oficiais e não participarem de juris de salões e exposições. O
texto trazia uma questão central: “é profissional e tecnicamente impossível
distinguir, e muito menos afastar de uma obra os “aspectos ideológicos e políticos
quaisquer”.

É a partir dessa brecha potente que garante uma


impossibilidade de fechamento pleno dos sentidos, própria da
arte, que alguns artistas utilizarão dribles discursivos para lidar
com o regime de repressão. Havia – e há – várias maneiras de
inserir uma questão política na linguagem da arte. Muitas
vezes, a opção se fez temática (alcançando um maior público,
talvez) e falhou por ser facilmente identificada como
contestatória.

Tiradentes – Totem-monumento ao Preso Político (1970),


Cildo Meireles

25
Em Tiradentes – Totem-monumento ao Preso Político, Cildo Meireles executou uma
ação realmente inesperada. Diante de uma platéia atônita (da mostra Do Corpo à Terra), o
artista amarrou dez galinhas a uma estaca de madeira e, depois de encharcá-las com
gasolina, incendiou-as vivas, num ritual público de grande crueldade. A execução da obra
foi um momento crucial da história da arte brasileira. Foi considerada uma crítica brutal ao
regime militar e ao desaparecimento de seus opositores promovido pelo Estado. Esta obra
radical rompeu os limites entre realidade e representação. De acordo com Cildo:

Na época havia muito cinismo e tentativa de cooptação do personagem [Tiradentes].


Era, de fato, uma espécie de regra de três simples. Pegar galinhas e matá-las
equivalia, na verdade, a pegar um símbolo nacional e torná-lo símbolo do golpe
militar. Ao mesmo tempo em que eles estavam se aproveitando do símbolo de
Tiradentes, herói da independência brasileira, com todas as contradições que o
personagem possa ter, eles estavam usando de procedimentos análogos aos do
artista contra as próprias galinhas, e justamente para defender o contrário do que o
próprio Tiradentes defendia.

Outro trabalho que vai na mesma linha das “Trouxas ensanguentadas” de Arthur Barrio
e “Tiradentes – Totem Monumento ao preso político”, de Cildo Meireles é “Urna Quente”,
de Antônio Manuel. Expostas em Apocalipopótese em 1968, eram 20 pequenas caixas de
madeira vedadas que deviam ser abertas pelo público com a ajuda de martelos e pedras.
Abrir as caixas exigia força e ação violenta.

Dentro das caixas, que lembravam caixões, havia


textos manuscritos (por exemplo, “Fome, fome,
fome”) e imagens desenhadas (como os corpos
magros famintos) que aludiam às condições
correntes. O uso de emblemas alegóricos para
disfarçar o sentido é comparável ao simbolismo
usado antes nos desenhos sobre jornal e nos flans.

Urna Quente aberta (1968)


Antonio Manuel

São trabalhos que se apoiam na estética da violência como até então não havia sido
feito na arte brasileira. É nesse contexto de expansão da natureza da arte, em que ações
efêmeras, happenings e participação garantem o espaço para certa radicalização
política. É a própria exposição Do corpo à Terra que ficou caracterizada como o primeiro
evento em que não se apresentaram obras, mas ações.

Portanto, trata-se de um alcance político que vai além de sua abordagem temática.
Estes trabalhos atacavam as normas do próprio sistema e política da arte, questionando
sua recepção, circulação e institucionalização. O contexto político não só impulsionava
uma nova radicalidade artística, mas também exigia novas formas de fazer arte.

26
No caso de Cildo, Barrio e Antonio Manuel, a contemplação dá lugar a um espaço de
desconforto e ativação. O espectador, antes passivo (embora nunca passivo) diante da
ação do artista, é provocado por um incômodo, estranheza, aflição. Além disso, trata-se
de três trabalhos efêmeros que deixam como documentação apenas seus registros.
Diferente dos trabalhos apreendidos pela censura, como no caso dos exemplos dados
na Pré-Bienal de Paris, essas obras parecem atuar nas frestas da oficialidade: ainda que
apresentadas em eventos de arte específicos, provocam dúvidas sobre sua natureza
artística e se desmaterializam. Sua provocação política é pontual. Os três estão lidando
diretamente com a questão do corpo: o corpo que queima, o corpo que deixa rastros, o
corpo que agride. Aspectos que, naquele momento – e hoje – eram facilmente
vinculadas aos abusos de poder que envolvem o agenciamento dos corpos na cidade.
Corpos desaparecidos, corpos procurados, corpos ensanguentados, o registro midiático
excessivo do estado dos corpos marginais.

O exemplo das trouxas ensanguentadas é pertinente para entender o drible


em ação: quando deixadas no jardim do MAM, depois da exposição, chamaram
a atenção dos policiais que seguidamente jogaram o trabalho no lixo. Não havia
acusação para uma trouxa com componentes asquerosos, mas o trabalho, por
outro lado, causava mal-estar, remetia-se indiretamente aos corpos a cada dia
desaparecidos. No caso de Cildo Meireles, embora a violência fosse literal, a
provocação política era metafórica, as galinhas queimadas também remetiam
aos assassinatos e torturas. Nas urnas quentes, a força física do participador
reativava corpos que antes contemplavam. O trabalho convocava à ação.

No entanto, os três exemplos não ofereciam nada que pudesse ser considerado
concretamente como contestação ao regime. Seus métodos driblavam a censura ao
mesmo tempo que lançavam mão de uma radicalidade necessária para o debate. A
violência que fabricavam gerava uma nova postura nos corpos participantes: seja no
mal-estar da interação, no caso de Barrio, na força empregada, no caso de Antonio
Manuel, ou da inquietação ética colocada pela literalidade da violência de Cildo
Meireles.

É inegável que, ao impor a proibição de discos, músicas, shows e filmes,


determinar a interdição de teatros e a prisão e o exílio de artistas, o regime militar
restringiu a liberdade criativa e impactou negativamente a produção cultural do
período. No entanto, a censura e a repressão acabaram por dar uma importância
renovada à vida cultural, um dos raros espaços em que era possível criticar a
ditadura, ainda que de maneira alegórica, cifrada. A cultura brasileira mais crítica
e esquerdista não fez a revolução, mas influenciou na formação dos jovens,
promovendo ideais de democracia, igualdade social, liberdade.

27
Arte de Guerrilha Urbana
Depois de décadas de luta dos familiares dos mortos e desaparecidos políticos,
o Estado brasileiro, através da Comissão Nacional da Verdade, reconhece suas
responsabilidades e identifica centenas de seus agentes como responsáveis por crimes
de lesa humanidade, como tortura, morte e desaparecimento de opositores políticos.
Nesse sentido, surge o coletivo Aparecidos Políticos, que mobilizam ações através da
arte de guerrilha urbana.
A ideia de arte guerrilha ou de um artista guerrilheiro urbano tem
fundamentação nas aproximações sempre presentes entre arte e política, arte ativista,
artivismo ou ativismo criativo, e vem sendo produzida e praticada desde a década de
1960. De acordo com o coletivo Aprecidos Políticos:

“Não se trata de vingança ou revanchismo, como argumentam os conservado-


res, pois, ao contrário destes, defendemos a legalidade e a democracia; não
almejamos punição aos agentes de Estado com base em torturas, desapare-
cimentos e assassinatos. Reafirmamos: isso não ensejamos. Queremos, sim, que
se faça justiça e que o Estado brasileiro cumpra tratados internacionais, a
sentença da Corte Interamenricana de Direitos Humanos, além das próprias
recomendações do Relatório da CNV.”

O artista guerrilheiro urbano é u m homem ou mulher que luta pela consolidação da


justiça de transição de uma ditadura para uma democracia. Luta pela memória de
centenas de mortos e desaparecidos políticos e pela punição daqueles que cometeram
crimes como desaparecimentos forçados, assassinatos e ocultação de cadáver de
opositores do regime militar; crimes que continuam impunes e não prescrevem, de
acordo com a legislação brasileira.

Nesse sentido, o artista guerrilheiro urbano não


teme desmantelar ou destruir as práticas autoritárias da
ditadura que ainda persistem na nossa democracia:
como a militarização da polícia e da política, a
criminalização dos movimentos sociais; os
desaparecimentos de diversos “Amarildos” nas
periferias de nossas cidades; a tortura nas delegacias;
assim como os assassinatos políticos no campo.

A Arte Guerrilha Urbana não é um serviço nem ajuda


que a arte preste à política. Não é propaganda nem
instrumento de uma determinada concepção política.
Ela transcende a “arte com preocupação social”. A Arte
Guerrilha Urbana é mais um estado de tensão entre a
própria arte e a política. Ela se caracteriza pela
convergência de ações políticas com possibilidades
criativas. É uma tentativa de superar a política
tradicional sem refutá-la totalmente. É um processo,
uma potência, uma sensibilidade e não uma definição
estática.

28
A técnica da Arte Guerrilha Urbana tem quatro componentes básicos:
1. Deve ser transgressora. É um ato criador e deve sempre ativar rebeldias,
insurgências e subversões, diante de quaisquer conservadorismos nocivos. Deve
sempre caminhar junto aos movimentos sociais.

2. É uma técnica de ataque e retirada, pelo qual preservamos nossas forças,


potências e criatividades.

3. É uma técnica que busca o desenvolvimento de Arte Guerrilha Urbana,


cuja função é desgastar, e distrair as forças autoritárias presentes no
militarismo da política e da polícia, nos fundamentalismos religiosos e de
mercado.

4. É uma técnica baseada em diversas linguagens artísticas, como


intervenção urbana, performance, pintura, gravura, stencil, grafitte,
vídeoinstalação, vídeo, radioarte, instalação, fotomontagem, arte gráfica,
siteespecific, etc.

Ações da Arte de Guerrilha Urbana:

REBATISMO POPULAR OU SOCIAL: é uma ação


simbólica de troca de nome de alguma instituição, rua,
avenida ou até cidade com intuito, na maioria das
vezes, de promover a mudança oficial de um nome
antigo por um novo nome pelo qual a sociedade civil ou
comunidade local se sinta representada.

Placas de ruas que foram rebatizadas.

LAMBE-LAMBE: É uma antiga técnica de fixação de pôster,


através de cola branca, de polvilho ou de farinha, em espaços
abertos. Atualmente, na arte urbana, vem sendo usada em larga
escala por artistas de rua, por ser uma maneira econômica de
divulgação (baixo custo para confecção) de um trabalho em
série.

29
OCUPAÇÃO: É um tipo de ato em que o artista guerrilheiro se fixa em
estabelecimentos e localizações específicas por tempo indeterminado ou não. Pode
designar tanto uma ocupação de terra como de prédios abandonados e instalações
artísticas. Algumas instalações seguem abandonadas, criando assim um espaço
propício para a ocupação, no sentido de garantir uma função social e cultural.

Ouvidor 63, a maior ocupação


cultural da América Latina.

Rua do Ouvidor 63 é o endereço de um prédio de treze andares no centro da cidade


de São Paulo que permaneceu em situação de absoluto abandono, desde 2007 até o dia
01 de maio de 2014, quando foi ocupado por um grupo de artista provenientes de Porto
Alegre. Previamente, o imóvel foi sede da Secretaria de Estado da Cultura até 1998,
ocupação de moradia entre 1998 e 2005 e, finalmente, um espaço vago concedido à
Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) em 2007. Apresentou-
se então a seguinte equação: a inexistência de uma função social em um imóvel com
pleno acesso às redes de transporte e serviços, perante à escassez de espaços
democráticos para o desenvolvimento artístico-cultural. Dessa forma, o imóvel vazio e
paradoxalmente de propriedade pública, tornou-se campo fértil para a experimentação
de modos alternativos de vida e produção artístico-cultural não institucionalizados.

Na Ouvidor 63, todos os residentes são


artistas. Há um pouco de tudo: dançarinos,
cantores, músicos, artistas plásticos e
visuais, acrobatas, palhaços, pintores e
escultores. Ao todo, cerca de 120 pessoas
vivem no local, incluindo algumas crianças e
idosos, número que aumenta um pouco
com visitantes esporádicos e estrangeiros
que vêm conhecer a ocupação.

30
ESTENCIL: Uma das técnicas da Arte Guerrilha Urbana mais difundida
atualmente, principalmente dentro dos movimentos sociais, o estêncil,
caracteriza-se pela produção de uma imagem através da aplicação de
tinta (geralmente spray) ou aerosol, em um suporte cortado no qual a
área vazada (cortada) fará a composição da imagem. Por isso, em
algumas regiões é conhecido como “vazado”. O suporte usado para
produzir um estêncil geralmente é um papel de boa gramatura, como
radiografias ou papel duplex, para garantir diversas aplicações
serializadas. Uma das vantagens dessa técnica é que não necessita muita
habilidade em desenho primário. Ou seja, alguém com poucas
habilidades no manejo da ilustração pode muito bem baixar um arquivo
na internet, imprimi-lo, pôr na superfície da radiografia, cortar e finalizar
a aplicação.

Banksy, Love is in the Air (Soldier throwing flowers), 2005.

Pouco ou nada se sabe sobre o misterioso inglês


Banksy, há quem diga, inclusive, que se trata de um
grupo de pessoas. O que se sabe é que os polêmicos
trabalhos aparecem ao redor do mundo e encantam
ou revoltam aqueles que passam: ninguém passa
incólume a essa arte de rua. Os trabalhos de Banksy
podem ser encontrados na Inglaterra, na França, em
Viena, em São Francisco, em Barcelona, nos Estados
Unidos, na Austrália e até na Faixa de Gaza.

Banksy,
Guantanamo Bay Prisioner,
2007.

“Os maiores crimes do mundo não são cometidos por pessoas que violam as regras, mas por pessoas que
seguem as regras. São as pessoas que seguem ordens que soltam bombas e massacram aldeias.” - Banksy

Você concorda com a essa frase dita por Banksy?

Como fazer um estêncil:

1. Coloque a chapa de radiografia numa bacia de água sanitária para retirar a tinta;
2. Caso a tinta não saia completamente, esfregue com um pano enquanto a chapa estiver submersa;
3. Lave a chapa bem e espere secar;
4. Coloque a chapa por cima do desenho que você quer replicar na parede e desenhe por cima com uma caneta ou
imprima um molde da internet;
5. Contorne o desenho com o estilete ou tesoura cuidadosamente para deixar o formato da imagem vazado;
6. Pronto! Agora você pode usar tinta ou spray para reproduzir seu desenho em vários locais.

31
MURALISMO: Trata-se do ato de pintar em paredes. De certa forma, pode-se inferir que
é uma das artes mais antigas da humanidade, pois já se fazia nos tempos dos homens das
cavernas. Hoje, as cavernas, guardando os devidos contextos históricos, deram espaço aos
prédios, viadutos, fachadas, escolas etc.

Uma das técnicas mais antigas do muralismo é o afresco, no qual se aplicam pigmentos de cores diversas
sobre argamassa úmida. Dentro do campo da arte guerrilha urbana, os muralistas mexicanos, como Diego
Rivera, José Orozco, David Siqueiros e o brasileiro Cândido Portinari, são uma inspiração, pois realizavam
suas pinturas em consonância com as Revoluções sociais do início do século XX.

O muralismo, de acordo com seus


precursores, deve ser uma arte de
alcance social e crítica que rompa
com a pintura de telas e os meios
tradicionais de divulgação como
galerias, museus e coleções
particulares. É uma produção
artística que possui uma ampla
possibilidade de inserção e
divulgação devido a seu caráter
público. Entretanto, algumas vezes é
um tipo de intervenção que
demanda uma grande mão de obra,
caso a pintura seja em escalas
monumentais. Diferentemente de
outras ações citadas acima, o
muralismo demanda um tempo mais
longo para ser realizado, pois muitas
vezes requer um rascunho e esboço.

Visão política do povo mexicano também conhecido como A distribuição de armas, Diego Rivera (1928)

Mural Épico da
Civilização Americana
[detalhe], de José
Clemente Orozco.
1932-1934. Afresco,
975 m2. Hood
Museum of Art,
Dartmouth College,
Hanover, Estados
Unidos. Fotografia de
2015.

32
Arte e Resistência

É relevante o grau de responsabilidade e


importância que tem a arte em nosso mundo. A
arte está e esteve presente, como protagonista em
cada momento de luta e resistência, mas também
já foi usada por sistemas para impor as condições
de submissão aos povos.

Um dos significados da palavra resistência está


relacionado à preservação. A Arte é algo que resiste ao
tempo e conserva memórias e saberes culturais diversos.

Nesse sentido, podemos pensar na preservação da


memória cultural de um povo como uma forma de
resistência artística frente aos processos políticos.

A memória é um elemento importante para


compreendermos a construção e reconstrução das
identidades dos grupos sociais. Entretanto, não podemos
desconsiderar a relação do patrimônio cultural com
identidade e memória social. O Patrimônio Cultural,
como Lugar de Memória, é responsável por materializar
esse passado para a sociedade atual, desse modo há uma
intensa relação com a memória coletiva.

“Pode-se dizimar uma geração de pessoas, e queimar suas


casas e terras e ainda assim elas voltarão. Mas se forem
destruídas suas realizações e história, será como se nunca
tivessem existido.” (Caçadores de Obras-Primas, filme de
2014.)

Despojando as pessoas de seus artefatos culturais, livros e


importantes relíquias religiosas e culturais, você as expulsa de seus
conhecimentos, história e filosofia. Isso tem implicações concretas
no mundo real.

33
Exemplos de artefatos artísticos
que preservam a memória de um
povo.

Sabe-se que um grande número desses artefatos mantidos em museus e bibliotecas ocidentais foi “apropriado”
ao longo dos tempos por meio da conquista e do colonialismo. A pilhagem de objetos africanos ocorreu tanto na
guerra quanto em tempos de paz. Foi justificado como um ato de benevolência; como salvar o conhecimento que
está morrendo. Alguns museus começaram a tentar reconhecer que suas coleções têm histórias desconfortáveis
ligadas à violência colonial.

34
A defesa contra a “devolução” é a mesma justificativa que os museus dão à
sua existência: eles são guardiões e conservadores dos tesouros culturais e
naturais da humanidade. Isso pode parecer uma causa válida. Mas,
essencialmente, significa que os etíopes, ou os povos da Índia e da Grécia, não
são confiáveis para preservar sua própria herança cultural. É por isso que os
pedidos de repatriação aumentam a cada dia.

Um problema mais sério é que as coleções retêm e perpetuam as


narrativas estereotipadas que os europeus tinham — e ainda têm —
sobre os africanos.

Os milhares de artigos coletados na maioria dos museus não são


acompanhados de sua história original. Os itens exibidos são
selecionados, organizados e recebem tags ou identificações de
europeus. O poder de selecionar, nomear e decidir o significado
desses objetos faz dos europeus os autores da história africana.

Em vários museus etnológicos ocidentais, onde os itens


coloniais ainda são mantidos, os africanos continuam a ser descritos
como tribos guerreiras, com crenças supersticiosas e culturas
homogêneas e imutáveis. Mesmo quando os museus tentam
oferecer uma visão do propósito original ou significado de certos
artefatos, eles inevitavelmente vêm de uma perspectiva europeia.

A Iyoba Idia usa um penteado “bico de galinha” revestido de uma rede feita de contas de coral. É uma das mais
célebres imagens de rainha africana. Cabeça da rainha-mãe Idia, latão, 51 cm de altura, séc. XVI, Edo/reino de Benin,
Nigéria. Museu Etnológico de Berlim.

A repatriação parece ser a única


maneira de abordar a injustiça histórica que
os museus causaram. Isso é crucial para
restaurar a agência dos africanos como
produtores de sua própria história.

Par de leopardos, cada um deles esculpido


a partir de quatro presas de elefantes. As
manchas são discos de cobre e os olhos, de
espelho; traz, no corpo, um colar de coral.
Esculturas como essa ladeavam o trono do
obá que também possuía leopardos vivos,
domesticados, que o acompanhavam no
desfile real. Esse par foi saqueado em 1897
e presenteado à rainha Victória.

35
Monumentos opressivos: Destruir ou Ressignificar?

O patrimônio cultural é campo de disputas de poder pelo controle


da memória coletiva. É lugar de embates relacionados ao que se quer
lembrar e ao que se quer esquecer. Essas disputas ficam mais evidentes
em momentos de tensão ou de ruptura, quando os monumentos que
simbolizavam os valores do passado não servem mais para reproduzir
os atuais.
A Revolução Francesa, por exemplo, ao romper com os valores do
antigo regime produz num primeiro momento, como um dos seus
reflexos, um vandalismo ideológico de viés iconoclasta voltado para a
destruição dos monumentos ligados ao feudalismo e às monarquias
absolutistas. Os revolucionários russos, por sua vez, lidaram de forma
diferente com os monumentos simbolizadores do poder dos Czares,
conservando-os, em especial, nas cidades de São Petersburgo e
Moscou. A Polônia e a Alemanha preservam a memória dos campos de
concentração nazista, como o de Auschwitz que foi um dos principais
palcos do holocausto.

Atualmente, os protestos que se


espalham por várias cidades do mundo sob o
lema “Black Lives Matter”, cujo estopim foi a
morte de George Floyd, na cidade de
Minneapolis, nos Estados Unidos, vítima de
violência policial, têm como um dos seus
desdobramentos a destruição de
monumentos associados à escravidão de
negros e índios, o que levou à derrubada da
estátua de Edward Colston (1636-1721) em
Bristol, Inglaterra, e também de estátuas de
Cristóvão Colombo (1451-1506) em algumas
cidades nos Estados Unidos, para citar
apenas esses exemplos.

A escravidão, presente em vários, quiçá todos os momentos da história humana, é uma prática odiosa. Assim, os
protestos que visam combater o racismo do qual a escravidão é uma das suas principais causas, mostra-se essencial
para impulsionar uma mudança de atitude nos governos e na própria sociedade em relação ao trato da questão
racial.

1. Na sua opinião, a melhor forma de lidar com esse passado


escravocrata, que atormenta a atual geração, é a destruição dos
monumentos?
2. O que deve ser feito com as estátuas derrubadas?

36
Não demorou para que o movimento chegasse ao Brasil, voltando
as atenções para inúmeros monumentos a figuras polêmicas do
passado do país. O debate não é de hoje, e divide as opiniões de
especialistas. O historiador Laurentino Gomes, por exemplo, chamou a
atenção ao se pronunciar publicamente contra a retirada dos
monumentos, que na sua visão devem ser preservados como objetos
de estudo e reflexão.

Bartolomeu Bueno da Silva, mais conhecido como Anhanguera


O próprio “apelido” já denuncia o caráter deste bandeirante, que viveu
entre 1672 e 1740: Anhanguera é uma transliteração de línguas
indígenas que significa diabo velho ou espírito maligno. Bueno da Silva
ficou conhecido como Anhanguera por sua crueldade com os povos
locais ao explorar regiões de São Paulo e Goiás. Mas isso não impediu
que recebesse dezenas de homenagens. Além de monumentos em
cidades de ambos os estados, há também rodovias (a Rodovia
Anhanguera, em São Paulo, tem 453 quilômetros), parques, emissoras
e até faculdades com o apelido do bandeirante.

Estátua de Bartolomeu Bueno da Silva (Anhanguera) na Avenida Paulista, São Paulo

O Monumento às Bandeiras, junto


ao Parque do Ibirapuera, é parte
também da polêmica. A obra, que
retrata o movimento bandeirante
no Estado de São Paulo, é alvo de
pesadas críticas porque exalta a
exploração, violência, com
assassinatos e escravização de
índios e negros nos séculos XVII e
XVIII, durante a expansão dos
colonizadores rumo ao interior do
continente.

Monumento às bandeiras, Victor


Brecheret, 1953.

“Fiquei impressionado quando vi pela primeira vez a estátua em homenagem ao Borba Gato [1649 – 1718],
em Santo Amaro, um homem responsável por mortes, estupros e incêndios em aldeias indígenas”, conta o
hoje professor da Escola Estadual Indígena Djekupe Amba Arandu, das aldeias Tekoá Pyau e Tekoá Ytu, ponto
de resistência guarani na região do Parque Estadual do Jaraguá. “Essa é a parte mais difícil do ensino de
história: explicar para crianças por que homens que foram responsáveis por massacres e escravidão de
indígenas ainda serem homenageados em todas as partes”

37
O que fazer com esses monumentos?

Não há receita que valha para todos os exemplos ao longo da história, e cada sociedade precisa debater uma
solução própria a ser adotada, mas normalmente duas saídas são escolhidas, explica Caroline Bauer, professora de
História na UFRGS e ex-coordenadora do Laboratório de Usos Políticos do Passado.

Uma é banir os símbolos do espaço público, como fez a


Espanha, que debateu por anos como lidar com as
estátuas de Franco, que comandou o país entre 1936 e
1975. Em 2007, o Estado espanhol aprovou a Lei da
Memória Histórica, que retirou das ruas todos os
símbolos de homenagem à ditadura franquista, fossem
monumentos ou nomenclaturas de vias.

A outra saída é ressignificar elogios caducos com uma


placa que explique o contexto ou então uma
intervenção artística. Em Bordeaux, grande porto do
tráfico de escravos na França, nomes de vias com
referência a traficantes foram mantidos, mas avisos
ensinam o que ocorria na região e prestam outra
homenagem: “A cidade de Bordeaux honra a memória
dos escravos africanos que foram desumanamente
deportados para as Américas”, diz uma placa.

No Paraguai, a estátua do ditador Alfredo Stroessner, erguida nos anos 1980 (ele
governou o país entre 1954 e 1989), foi ressignificada com o esmagamento da
representação, agora dilacerada entre dois grandes blocos de concreto. O novo
monumento, instalado na década de 1990, está na Praça dos Desaparecidos, cujo nome
faz menção aos quase 500 presos políticos que desapareceram durante seu governo,
segundo a Comissão da Verdade paraguaia

Derrubada em protesto, estátua de escravocrata será exposta em museu


Monumento de Edward Colston, jogado no Rio Avon por manifestantes do Black Lives Matter, será
acompanhado de uma pesquisa de opinião para decidir seu futuro
Publicado em 28 Maio 2021

O monumento de Edward Colston deve


ser colocado ao lado de uma seleção de
cartazes do Black Lives Matter, vindos de
protestos do ano passado em Bristol, e
de uma linha do tempo com os principais
acontecimentos. Depois de recuperada
do rio, a estátua foi limpa por uma
equipe de conservação do M Shed e teve
os grafites conservados. Um pneu de
bicicleta, que saiu da água junto com ela,
também estará exposto. A mostra, que
ficará em cartaz entre 4 de junho e 5 de
setembro, terá uma versão on-line com
a pesquisa de opinião no site do museu.

(Leia mais em: https://veja.abril.com.br/cultura/derrubada-em-protesto-


estatua-de-escravocrata-sera-exposta-em-museu/)

38
Arte e questões sociais

Apesar de ter havido intensa produção artística no período da


ditadura, é importante compreender que a relação entre arte e
resistência não ocorre apenas diante de regimes autoritários. Há
vários artistas que compreendem o trabalho de arte como uma forma
de interferir na política, não no sentido partidário, mas, sobretudo,
nas formas como determinadas questões são tratadas cultural e
politicamente, chamando a atenção das pessoas para questões
sociais. Um exemplo desse tipo de interface entre arte e engajamento
político é o trabalho da artista Rosana Paulino (1967-).

PAULINO, Rosana. Bastidores. 1997. Imagem


transferida sobre tecido, bastidor e linha de
costura, 30 cm.

1. Considerando as análises feitas anteriormente, por que essa imagem impressa –


produzida em 1997, portanto fora do contexto da ditadura militar – está costurada dessa
maneira?
2. Que relações entre arte e política você consegue tecer com base nessa imagem?

Na série Bastidores, Rosana traz à tona imagens de mulheres negras impressas


em tecido sobre as quais ela costura a boca ou os olhos. Com essa série, a artista
aborda o silenciamento das mulheres, sobretudo as negras. Leia o trecho de uma
reportagem em que ela fala sobre isso:

Sobre a série “bastidores”, Rosana Paulino argumenta: “no meu caso, tocaram-me
sempre as questões referentes à minha condição de mulher e negra. Olhar no espelho
e me localizar em um mundo que muitas vezes se mostra preconceituoso e hostil é um
desafio diário. Aceitar as regras impostas por um padrão de beleza ou de
comportamento que traz muito de preconceito, velado ou não, ou discutir esses
padrões, eis a questão. Dentro desse pensar, faz parte do meu fazer artístico apropriar-
me de objetos do cotidiano ou elementos pouco valorizados para produzir meus
trabalhos. Objetos banais, sem importância. Utilizar-me de objetos do domínio quase
exclusivo das mulheres. Utilizar-me de tecidos e linhas. Linhas que modificam o sentido,
costurando novos significados, transformando um objeto banal, ridículo, alterando-o,
tornando-o um elemento de violência, de repressão. O fio que torce, puxa, modifica o
formato do rosto, produzindo bocas que não gritam, dando nós na garganta. Olhos
costurados, fechados para o mundo e, principalmente, para sua condição no mundo”.

PIMENTEL, Jonas. Rosana Paulino: a mulher negra na arte. Esquerda Diário, 22 out. 2015.
Disponível em: <https://www.esquerdadiario.com.br/Rosana-Paulinoa- mulher-negra-
na-arte>.

Rosana Paulino faz parte de um grupo de artistas que não veem distinção entre
arte e vida, trazendo para o seu trabalho questões políticas, como o racismo, o
preconceito e a violência. Artistas como ela trazem visibilidade para pessoas negras
ou, ainda, por vezes, expressam-se por meio do próprio corpo e das diversas
opressões que sofrem, fazendo de sua arte um apelo que vai do singular ao coletivo.

39
Denilson Baniwa é um artista que está muito à frente nas discussões
que se formam sobre o que seria ou se existiria uma “arte indígena” ou
um “artista indígena”, como um rótulo limitador. Essas discussões têm
permeado vários debates com mais força de uns anos para cá, tendo em
vista o interesse que tem sido demonstrado, especialmente por
acadêmicos e curadores, nas teorias decoloniais e anticoloniais. Essa
presença marcante de Denilson não tem só a ver com estar em um
“lugar de fala”, mas também expressar suas ideias e opiniões com muito
didatismo, muita intelecção e muita acessibilidade.

Relacionamento (Agro)Tóxico, 2018.

A imagem é impactante: uma cruz


que representa a Primeira Missa no
Brasil está fincada sobre uma pilha de
pacotes de açúcar da marca Guarani,
espalhando sangue pelo chão. Em cima da
mancha vermelha, a inscrição “Eu sou
Guarani Kaiowá”.

A instalação, uma metáfora sobre a violência contra os indígenas no Brasil, esteve por três meses (outubro a
dezembro de 2019) exposta no Centro Cultural São Paulo (CCSP), na capital paulista, ao lado de uma grande faixa
onde se lia “DECOLONIZE”. Assim mesmo, sem o S, indicando o posicionamento adotado por alguns antropólogos e
militantes das questões indígenas, como uma transgressão aos estudos que trazem o ponto de vista
do colonialismo e da suposta supremacia dos países colonizadores sobre os povos originários.

Nascido em São Paulo, em 1974,


Eduardo Srur se tornou referência como
um artista que realiza intervenções
urbanas com a potência de mobilizar o
espectador. Desde 2004, ano de seu
Acampamentos dos Anjos, até 2008,
com a instalação Pets, com garrafas PET
gigantes instaladas às margens do tio
Tietê, o artista tem focado suas
produções nas questões ambientais,
éticas e arquitetônicas da cidade de São
Paulo.

SRUR, Eduardo. Pets, 2008. Criada com garrafas infláveis gigantescas (10 m x
3,5 m) às margens de concreto do Rio Tietê, principal rio da cidade de São
Paulo e conhecido por sua imensa degradação ao longo dos anos.

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Por meio de seus trabalhos em arte visual, a artista e cineasta palestina Emily
Jacir (1970-) nos leva a refletir sobre como uma ação simples pode ser um gesto
político. Graças ao seu passaporte estadunidense, Emily pôde atravessar as
fronteiras da Palestina inúmeras vezes para fazer a seguinte pergunta a palestinos
que vivem em zonas de conflito territorial: “Se eu pudesse fazer alguma coisa por
você, em qualquer lugar da Palestina, o que seria?”.

Diversos desejos foram atendidos:


visitar o túmulo da mãe, jogar bola com
o primeiro garoto que encontrar na rua,
entre outros. Tais ações fizeram parte
de Where we came from (De onde
viemos), uma série de trinta fotografias
acompanhadas de textos e de um vídeo
nos quais a artista chama a atenção
para a diversidade de culturas que
coexistem em nosso mundo.

JACIR, Emily. Where we came from (De


onde viemos) [detalhe]. 2001-2003.
Museu de Arte Moderna de São
Francisco, Califórnia, Estados Unidos.

Agora, pensando no contexto da cidade ou região em que você vive, reflita com
os colegas: que questões políticas são importantes pra você? Se você fosse criar
um trabalho artístico sobre um assunto político, qual seria ele?

O que podemos concluir com tudo o que estudamos?

A arte é a ferramenta cultural que tem a capacidade de comunicar a partir da própria


experiência humana, trazendo à tona as condições sociais, econômicas e políticas do
nosso planeta, assim como também é utilizada como instrumento de massificação pelo
próprio sistema regente. Ela nos mostra uma capacidade inigualável de alienação dos
povos, gerando as condições para a implantação e aceitação de sistemas que oprimem
e colocam o ser humano na condição de explorador da própria espécie, assim como é
capaz de nos libertar das amarras e do aprisionamento intelectual.

Muitas vezes a arte foi utilizada como instrumento de segregação e divisão social,
formando uma elite intelectual e econômica europeia que se autoproclamava melhor
(culturalmente) do que povos intitulados bárbaros e selvagens, justificando e criando as
condições para as invasões e retaliações.

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Estudamos, ao longo deste tema, algumas interseções entre a arte e a política,
sobretudo durante regimes ditatoriais, com foco especial sobre o governo militar que foi
implantado na década de 1960 no Brasil. Gerchman, Tozzi e Meireles encontraram formas
de resistir à ditadura utilizando meios alternativos para a circulação de suas obras. Muitos
artistas fizeram uso da metáfora para expressar a resistência política – dos exemplos
apresentados, apenas Cildo Meireles fez uma crítica direta, ao carimbar notas de dinheiro
que estavam em circulação.

Vimos também que a música pode ser um veículo de crítica política pelas análises de
artistas e canções de países que lutaram contra regimes autoritários, em especial na
América Latina, destacando o movimento Tropicália aqui no Brasil. A canção, por sua
relação com a palavra, pode comunicar o conteúdo político de maneira mais direta.

Conhecemos ainda as motivações e ações da Arte de Guerrilha Urbana e como a arte


pode ser também instrumento de resistência e ações políticas. Discutimos sobre a arte que
foi apropriada nos processos de colonização e sobre a sua devolução aos países de origem,
assim como debatemos sobre a polêmica dos monumentos que representam e perpetuam
opressões e como a sociedade está lidando com eles.

Vimos que as questões políticas permeiam a arte até os dias de hoje. A artista Rosana
Paulino, de um período posterior à ditadura civil-militar, utilizou a arte para criticar a
posição social das mulheres negras no Brasil. Além dela, Denilson Baniwá, Eduardo Srur e
Emily Jacir também atuam em questões políticas que são ao mesmo tempo particulares e
coletivas.

A arte também é uma forte ferramenta de comunicação capaz de conscientizar a


população e resistir, através de suas manifestações, denunciando e nos mostrando os
verdadeiros sentidos e objetivos das ações das classes dominantes dentro do sistema
capitalista e neoliberal. Os (as) artistas se tornam agentes culturais de transformação social,
capazes de levar a informação por meio da linguagem simbólica à lugares inacessíveis.

REFERÊNCIAS:

https://ensinarhistoria.com.br/bronzes-de-benin-arte-africana-tecnologia/
https://asfalto.blogosfera.uol.com.br/2018/07/10/por-dentro-da-ouvidor-63-a-maior-ocupacao-cultural-da-
america-latina/
http://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2013/10/ruas-sao-rebatizadas-com-nome-de-vitimas-da-
ditadura-em-porto-alegre.html
http://memoriasdaditadura.org.br/panorama-de-arte-e-cultura/
https://revistausina.com/18-edicao/violencia-como-drible-discursivo-arte-brasileira-na-ditadura/
https://www.ibdcult.org/post/monumentos-opressivos-destruir-ou-ressignificar
https://veja.abril.com.br/cultura/derrubada-em-protesto-estatua-de-escravocrata-sera-exposta-em-museu/
Identidade em ação: linguagens e suas tecnologias : manual do professor / Thelma de Carvalho Guimarães... [et al.]
; editora responsável Olivia Maria Neto. -- 1. ed. -- São Paulo :Moderna, 2020.
Minimanual da arte guerrilha urbana /Alexandre de Albuquerque Mourão, Marcos Venicius Lima Martins, Sabrina
Késia de Araújo Soares et al. - Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2015. 56 p. ISBN: 978-85-420-0572-1
Da política às micropolíticas / Katia Canton. – São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. Coleção Temas da
Arte Contemporânea
Arte em Interação / Perla Frenda, Tatiane Cristina Gusmão, Hugo Luis Barbosa Bozzano. – 1. Ed. – São Paulo: IBEP,
2013.

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