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SENTIDOS DO TROPICALISMO: AS LEITURAS DE JOSÉ RAMOS

TINHORÃO E ROBERTO SCHWARZ

Aluno: Vitor Morais Graziani

Orientador: Francisco Cabral Alambert Júnior

SÃO PAULO

2022

1
Resumo

O Tropicalismo foi um movimento de implosão na cultura do “nacional-popular”


que, à luz da derrota simbolizada pelo golpe civil-militar de 1964, procurou reconectar os
artistas com as massas tendo em vista a nova realidade de modernização que a ditadura
impôs: um capitalismo plutocrático e autoritário. Nesta vertigem pelo moderno, os
Tropicalistas buscaram ocupar todos os espaços possíveis – da Jovem Guarda ao
programa do Chacrinha – o que causou incontáveis críticas sobre a fidedignidade do
movimento com relação aos interesses (revolucionários) caros à esquerda da época, ainda
muito presa à cultura pré-golpe, como as experiências do Centro Popular de Cultura da
União Nacional dos Estudantes.

Dentre os incontáveis críticos ao movimento, este estudo pretende investigar


como dois deles, díspares em suas formações, conseguiram chegar a conclusões próximas
sobre o movimento: José Ramos Tinhorão, crítico musical e conhecido por suas relações
com o Partido Comunista Brasileiro, e Roberto Schwarz, crítico literário de matriz
adorniana. Partindo de diferentes pontos de vista, ambos apontaram para o caráter
autoritário do Tropicalismo, que viria de encontro, ainda que com suas infindáveis
sutilizas, ao regime instaurado em 1964.

Palavras-chave: Tropicalismo; José Ramos Tinhorão; Roberto Schwarz; MPB;


modernização.

2
Abstract

Tropicalism was a movement of implosion in the national-popular culture that, in


the light of the defeat symbolized by the civil-military coup d'état in 1964, looked for
reconnecting the artists to the masses because of the new modernization reality that the
dictatorship imposed: a plutocratic and authoritary capitalism. In this vertigo for the
modern, the Tropicalists sought to occupy all possible spaces - from the Jovem Guarda
to the Chacrinha TV show - which caused countless criticis about the trustworthiness of
the movement in relation to the (revolutionary) interests to the Left of the time, still stuck
to the pre-coup culture, such as the experiences of the Centro Popular de Cultura of the
União Nacional dos Estudantes (National Students' Union).

Among the countless critics of the movement, this study intends to investigate
how two of them, disparate in their backgrounds, managed to reach close conclusions
about the movement: José Ramos Tinhorão, music critic and known for his relations with
the Brazilian Communist Party, and Roberto Schwarz, a literary critic of Adornian origin.
From different points of view, both pointed to the authoritarian character of Tropicalism,
which would meet, albeit with its endless subtleties, the regime established in 1964.

Key-words: Tropicalism; José Ramos Tinhorão; Roberto Schwarz; MPB; modernization.

3
Introdução

Em 1964, o sonho nacional-desenvolvimentista/nacional-popular foi derrotado


por um golpe de caráter civil-militar que instituiu uma ditadura no país, a qual perdurou
por vinte e um anos. A intelectualidade progressista da época atuava, no pré-golpe, em
íntimo contato com as massas, por exemplo nas experiências do Centro Popular de
Cultura da União Nacional dos Estudantes, de modo a embutir nessas uma consciência
popular (e de classe) que forjaria a revolução brasileira (a qual, não custa lembrar, na
leitura da época do Partido Comunista Brasileiro, passava primeiro por uma aliança com
a burguesia nacional para desenvolver o país e integrá-lo ao capitalismo para daí instaurar
o socialismo). O fim da história é sabido e o sonho fora frustrado por 1964: um projeto
de país ficava pelo caminho. O grande dilema dos intelectuais à esquerda, engajados na
luta pela emancipação de seu povo, passaria a ser: como retomar o contato com as massas
que o golpe cortou? E ainda, o que esperar, em termos desenvolvimentistas, do novo
regime? O sonho fora interrompido ou enterrado? O Tropicalismo visou responder a todas
essas questões, sempre com niilismo e alegorias singulares.

No ínterim de tempo que vai do 31 de março de 1964, data do golpe, ao 13 de


dezembro de 1968, data de edição do Ato Institucional nº 05, que instituiu a censura e
cassou liberdades civis (por exemplo, com a proibição do habeas corpus para crimes
políticos), enterrando de vez qualquer possibilidade (sonhada) de reversão à 1964,
floresceu uma cultura à esquerda, com relativa hegemonia, apesar da ditadura de direita
(SCHWARZ, 2008, p. 71). A última pétala desta floração tardia seria justamente o
Tropicalismo, o qual existiu sob o signo da contradição e existiu antes mesmo de existir.
Dizemos isso pois o Tropicalismo congregou, ao mesmo tempo, a atualização das artes
brasileiras à nova realidade instituída em 1964, entendendo aquele momento como o fim
de um sonho – e não uma interrupção –, ao mesmo tempo que procurou manter uma certa
linha evolutiva de nossa produção cultural1. Ao passo que o Tropicalismo visava uma
resposta à 64, de maneira muito singular, aliás, posto que compreendendo que era preciso
situar-se na nova cena, diz-se que existiu antes de existir, de modo que não foi mero fruto
do acaso, se não produto de uma série de reflexões próprias, como atestam as declarações

1
A noção de “linha evolutiva” da Música Popular Brasileira seria trabalhada por Caetano Veloso ao longo
de sua obra. Ela começaria com Dorival Caymmi, passaria por João Gilberto e recairia sob o próprio
Caetano.

4
de época, quer de Caetano Veloso, quer de Gilberto Gil. Segundo Heloísa Buarque de
Hollanda2, o Tropicalismo seria, desta maneira, produto de uma crise “tanto dos projetos
de poder (à esquerda, obviamente), quanto da própria crise das vanguardas históricas”
(NAPOLITANO/VILLAÇA, 1998, s/p).

Neste sistema cultural que o Tropicalismo implode, muitas vezes operado em


circuito fechado, a grande questão parecia ser como reconectar o contato perdido com as
massas – para daí criar uma cultura evidentemente revolucionária (não a toa, Marcelo
Ridenti fala em “brasilidade revolucionária” como uma estrutura de sentimento daquele
período) (RIDENTI, 2010)3. Neste processo de reinvenção, diversos foram os caminhos
tomados. Talvez a melhor demonstração deste grande dilema intelectual resida no debate
realizado pela revista Civilização Brasileira com o tema “Que caminho seguir na música
popular brasileira?” (NOBRE/ZAN, 2010, p. 02), organizado por Airton Lima Barbosa e
do qual participaram, dentre outros, Caetano Veloso, Ferreira Gullar, Nara Leão e José
Carlos Capinan. Ali, enquanto parte da intelectualidade debatia qual a melhor forma de
retomar o contato com as massas, Caetano apontou uma saída: a retomada da linha
evolutiva da música popular brasileira, incorporando a ela as mudanças de paradigmas
que a bossa nova havia gerado, em especial a “batida” do violão de João Gilberto.

Em 1967, no Festival da TV Record, Caetano e Gilberto Gil formatariam o


Tropicalismo, introduzindo, por exemplo, as guitarras elétricas dos Beat Boys e de Os
Mutantes, respectivamente nas canções Alegria, alegria e Domingo no parque. Invadindo
o espaço até então caro às esquerdas e à classe média engajada do período, o Tropicalismo
apontava para o caminho do novo dentro da música popular – muitas das vezes com a
alcunha de “som universal”. Em 1968, o movimento seria batizado por Nelson Motta no
texto “Cruzada Tropicalista”, dado que em 1967, Caetano nomeara uma de suas canções
(já na forma tropicalista) de Tropicália, após sugestão de Luiz Carlos Barreto, a partir da
obra homônima de Hélio Oiticica.

2
Para a referida leitura de Heloísa Buarque de Hollanda, conferir HOLLANDA, Heloísa Buarque de.
Impressões de viagem. CPC, Vanguarda e Desbunde. São Paulo: Brasiliense, 1979.
3
Em trabalho anterior, Ridenti desenvolveu a tese de que as manifestações culturais deste período
comungariam de certo “romantismo revolucionário”. Em sua visão, o Tropicalismo, ainda que visando a
implodir esta cultura, seria um ramo deste tipo singular de romantismo. Neste sentido, vide RIDENTI,
Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. São Paulo: Editora
da Unesp, 2014.

5
Haveria, contudo, diferenças cruciais entre as obras homônimas de Oiticica e
Caetano. Seguindo a interpretação de Napolitano e Villaça,

“Enquanto Oiticica esboça um roteiro para sua obra-ambiência, Caetano


hiperdimensiona a amplitude deste roteiro, transformando a própria ideia de Brasil-nação
num imenso monumento, ambiência fantasmagórica e fragmentada, onde o espectador-
ouvinte tem diante de si um desfile das relíquias arcaicas e modernas do Brasil. [...] Ao
contrário da proposta da esquerda nacionalista, que atuava no sentido da superação
histórica dos nossos males de origem e dos elementos arcaicos da nação (como o
subdesenvolvimento sócio-econômico), o Tropicalismo nascia expondo estes elementos
de forma ritualizada.” (NAPOLITANO/VILLAÇA, 1998, s./p.)

A implosão tropicalista geraria, assim, uma incontável série de críticas, sobretudo


da parte da esquerda engajada do período, que refutava a derrota simbolizada por 1964 e
mantinha esperanças de reversão – vale lembrar o debate na Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo entre a “tendência Chico”, maioria, e a
“tendência Caetano”, minoria. Todavia, não foram apenas estas correntes que se
colocaram como críticas ao Tropicalismo. Esta pesquisa visa, assim, compreender as
aproximações e distanciamentos entre dois singulares críticos do movimento, que
acabavam por escapar e projetarem-se nestas tendências mais hegemônicas. Falamos de
José Ramos Tinhorão e Roberto Schwarz.

José Ramos Tinhorão foi um crítico musical que sempre foi reconhecido pelo seu
nacionalismo exagerado, ortodoxo, além de seus vínculos com a ideologia do Partido
Comunista Brasileiro (PCB), ainda que nunca tenha se filiado a esse. O PCB, vale
lembrar, era caro às ideologias do realismo socialista zdanovista, emulado durante os anos
de Stálin. Alain Corbin, analisando a questão dos sinos durante a Revolução Francesa,
apontou que, em momentos de crise nas sensibilidades, surgem os românticos, nostálgicos
em relação a um passado que muitas vezes é idealizado, fruto de uma lembrança da perda
ou da privação, da qual emergem um desejo de reconstituição (CORBIN, 1994, cap. 1).
Como já dito, analisando a cultura política do período sob o qual nos debruçamos aqui,
Ridenti apontou para a noção de “romantismo revolucionário” (RIDENTI, 2014, pp. 07
– 44). O “romantismo revolucionário” não seria contra a modernização, mas encontraria
em elementos do passado pré-capitalista, como a autenticidade da cultura popular, do
homem brasileiro, etc. uma saída de contrapeso aos horrores do moderno capitalismo
industrial.

6
Analisando em perspectiva comparada as leituras de Corbin e Ridenti, é possível
conjecturar que a metodologia crítica de José Ramos Tinhorão penda mais ao primeiro e
escape ao segundo. Como veremos adiante, Tinhorão se colocava contra a modernização,
entendendo essa como processo de espoliação das “autênticas” culturas populares. Seria,
assim, um romântico que oscila entre o restitucionista e o resignado, mas não
revolucionário4, o que o torna figura singular posto ser alguém que comungava de ideais
revolucionários, vide sua análise cara às teorias de Marx e Engels5.

Segundo Luísa Lamarão, as análises de Tinhorão enxergariam a cultura como


reflexo da sociedade de classes e o campo seria dividido entre aquela tida como autêntica
(geralmente a cultura regional, intocada) e os valores externos que ameaçavam sua
continuidade (LAMARÃO, 2008, pp. 09 – 10). Em sua visão, este processo se
intensificaria com a chegada dos valores culturais norte-americanos, à luz da chamada
Política da Boa Vizinhança, que invadiram o país e consagraram símbolos que vão do Zé
Carioca à Carmem Miranda – daí que Tinhorão pense em uma “era do colonialismo
musical”, processo esse que se concretizaria com o Tropicalismo.

Vale lembrar, ainda, que Tinhorão possui uma trajetória única: é ele quem,
provindo de um núcleo de memorialistas da cultura popular/musical, verte-se em
historiador deste objeto, com materiais e metodologia para tal. Como ele mesmo declarou,
foi ele quem foi “do jornalismo ao livro” (LORENZOTTI, 2010, p. 115). Marcos
Napolitano, analisando a obra historiográfica, por assim dizer, de Tinhorão (isto é, aquela
em livro, com investigação de caráter histórico baseada em fontes – e que esta pesquisa
pretende tomar como tais) dirá que, nesta, “a trajetória da música popular no Brasil era o
maior exemplo de ‘expropriação cultural’ das classes populares (rurais e urbanas) pelas
elites, representadas pela classe média ‘branca e americanizada’”, tendo, este processo de
expropriação se tornado irreversível com a Bossa Nova e os festivais da canção da década
de 1960 (NAPOLITANO, 2006, p. 143). À luz de tal metodologia, Tinhorão considerará

4
Esta terminologia é cara à interpretação de Michael Löwy e Robert Sayre realizada em LÖWY,
Michael/SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da modernidade.
Petrópolis: Vozes, 1995.
5
Em entrevista dada no ano 2000 ao programa Roda Viva, Tinhorão recomendou as leituras de Marx e
Engels como saída para o esclarecimento. Declarou ainda que autores como Gramsci e Lukács seriam “a
perfumaria do marxismo”, realçando, outra vez mais, sua ortodoxia. A entrevista se encontra disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=meTizBT9grY&t=1567s. Acesso em 17.01.2022.

7
o Tropicalismo como a face cultural do regime instaurado em 1964 (TINHORÃO, 1998,
p. 325), em duas de suas obras: História Social da Música Popular Brasileira e Pequena
História da Música Popular: segundo seus gêneros. Napolitano, comentando estas obras,
dirá que sua síntese reside em que “quanto mais sofisticado e capitalizado o meio
técnico/social de divulgação, mais se configura o processo de afastamento das classes
populares em relação à música popular, isolando-a de suas raízes nacionais e sociais”
(NAPOLITANO, 2006, p. 144).

Daí que Tinhorão diga que a já institucionalizada Música Popular Brasileira


(MPB), não seja nem popular, nem brasileira, posto que esta, ainda que crítica e
nacionalista, seria a consolidação deste processo de espoliação (idem, ibidem, p. 144).
Neste sentido, na visão de Tinhorão, o Tropicalismo seria o último estágio deste processo
de aculturação a-histórica, posto que: i) incorporava os elementos da cultura estrangeira,
sobretudo a pop norte-americana, retirando todos os últimos vestígios que ainda restassem
da cultura efetivamente popular nas produções da época; ii) sintonizava, a partir disso, o
espírito do tempo em que se inseria: o fim do nacional-desenvolvimentismo à esquerda
pré-1964, o afinamento de interesses entre Brasil e Estados Unidos na primeira fase
econômica da ditadura militar (sob a batuta de Roberto Campos) e o caráter autoritário
do Estado em consonância ao autoritarismo tropicalista.

Já em Roberto Schwarz, a operação será diferente. Schwarz, crítico literário com


formação em ciências sociais, discípulo de Antonio Candido e fortemente influenciado
pela dialética de Theodor W. Adorno, opera da seguinte maneira, segundo Franco
Moretti: “Schwarz reads a novel, and sees forms, and within forms, he sees classes”6
(MORETTI, 2021, p. 02). A visão de classes, contudo, não significa a mesma visão de
Tinhorão. Segundo Paulo Arantes, Roberto Schwarz terá uma visão dual, porém
combinada (referência à noção de “desenvolvimento desigual e combinado” de Trotsky).
Isto é, a partir das noções de desenvolvimento da Teoria da Dependência, com as quais
tomou contato ainda no tempo de graduação (fora, por exemplo, aluno de Fernando
Henrique Cardoso), verá a experiência brasileira a partir de uma leitura onde a razão
dualista, em que arcaico e moderno se subjazem (arcaico e moderno que serão temas
centrais no Tropicalismo, diga-se), não impeça uma leitura de desenvolvimento do país
(ainda que, como apontou Francisco de Oliveira, o moderno dependa do arcaico para se

6
“Schwarz lê um romance e vê formas, e, a partir das formas, ele vê classes”. Tradução nossa.

8
desenvolver)7. Arantes, comentando a metodologia de Schwarz, traça paralelo com o
impacto de 1964 para sua produção, visando elucidar a relação entre dependência e
dualidade:

“A acomodação desconforme de antigo e moderno que a crise precipitara e


monumentalizara era de fato uma constante de nossa formação, como atestava, revista
num relance decisivo, o conjunto de nossa história literária. Por outro lado, o novo surto
de modernização conservadora ao mesmo tempo que inscrevia o atraso do país na
atualidade internacional, exibia um vínculo inédito entre dualidade e dependência,
entendida esta última como o desenvolvimento do descompasso estrutural expresso pela
primeira” (ARANTES, 1992, p. 59).

Nesta pesquisa, pretendemos analisar três ensaios de Schwarz, contudo, sendo que
apenas um deles reflete suas visões sobre um livro. O primeiro deles é Notas sobre
vanguarda e conformismo, em que Schwarz apontará para as relações entre o sentido de
vanguarda e a capitulação ao capital, em interpretação ainda não direcionada por inteiro
ao Tropicalismo, mais voltada para a vanguarda musical (grupo Música Nova), que se
integrará, em partes, ao Tropicalismo momentos depois8. Ainda a seguir, analisaremos o
seminal ensaio Cultura e política, 1964 – 1969. Este, verdadeiro Terra em transe
acadêmico, é, a nosso ver, a interpretação de Schwarz para a derrota que representou
1964. Diferentemente das de Tinhorão, estas são interpretações feitas no calor da hora, à
luz de emoções e sentidos que respingavam diretamente no autor, como se vê na nota de
rodapé acrescida ao texto em 1978: “a análise social no caso tinha menos a intenção de
ciência que de reter e explicar uma experiência feita, entre pessoal e de geração, do
momento histórico. Era antes a tentativa de assumir literariamente, na medida de minhas
forças, a atualidade de então” (SCHWARZ, 2008, p. 70). Embora crítico literário,
Schwarz irá historicizar a derrota, apontando para a fragilidade da aliança da intelligentsia
com a burguesia nacional. Ademais, formulará a clássica máxima, já apresentada, de que,
apesar da ditadura de direita, haveria relativa hegemonia cultural das esquerdas (idem,
ibidem, p. 71). Em leitura muito cara à Teoria da Dependência, irá comparar o método
Paulo Freire ao Tropicalismo; o teatro de Arena com o Teatro Oficina. Em síntese, fará

7
Vide OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista. In: Crítica à razão dualista/O ornitorrinco.
São Paulo: Boitempo editorial, 2003.
8
Para uma interpretação do grupo Música Nova, ver ZERON, Carlos Alberto Ribeiro de Moura.
Fundamentos histórico-políticos da Música Nova e da música engajada no Brasil, a partir de 1962: o
salto do tigre de papel. Dissertação (Mestrado em História Social). São Paulo: FFLCH/USP, 1991.

9
uma leitura ainda cara ao que Ridenti chamou de “romantismo revolucionário”, porém
via dialética – não à toa que finaliza o texto com elogio ao romance Quarup, de Antonio
Callado, fazendo leitura favorável da experiência de luta armada.

Dentro desta cultura relativamente hegemônica, destacamos as leituras das


experiências, íntimas entre si, do Tropicalismo e do Teatro Oficina. Se o segundo
realizava um pacto moral com o público, numa campanha por terra arrasada que o
impediria, inclusive, que se contasse como à esquerda, no primeiro, seu efeito básico
residiria na submissão de anacronismos entre o moderno e o arcaico, “grotescos à
primeira vista, inevitáveis à segunda, à luz branca do ultramoderno, transformando-se o
resultado em alegoria do Brasil” (idem, ibidem, p. 87). Isto é, a partir de uma visão
calculista e enviesada (daí a noção de anacronismo), reduzir o Brasil à uma alegoria do
arcaísmo (mas também da modernização autoritária) sob fundo moderno, resultando, em
síntese, sob este fundo ambíguo, numa divisa incerta entre “sensibilidade e oportunismo,
entre crítica e integração” (idem, ibidem, p. 89), à realidade de 1964.

Anos depois, na década de 1990, Caetano Veloso, principal líder do Tropicalismo,


escreverá um livro de memórias sobre o movimento denominado Verdade tropical no
qual apontará para a formação do Tropicalismo e as razões para tal. Roberto fará, em
2012, uma leitura a contrapelo deste livro, apontando para as incongruências e
incoerências do projeto tropicalista: “um percurso de nosso tempo”. Com Terra em
transe, longa de Glauber Rocha, Caetano teria percebido a incapacidade desta cultura à
esquerda de lidar com o ente abstrato do povo – a clássica cena em que Paulo Martins, o
intelectual orgânico de Eldorado, tapa a boca de Jerônimo, líder sindical apontado como
povo e esbraveja: “Estão vendo o que é o povo? Um imbecil! Um analfabeto! Um
despolitizado! Já pensaram um Jerônimo no poder?”. A partir de então, seria preciso
reinventar a capacidade de entrar em contato com este ente “povo”: e a questão da disputa
pelo mercado, em um país cuja indústria cultural se encontrava em processo de
estruturação/afirmação, seria central para tal.

A análise de classes de Roberto não perdoará esta interpretação, todavia. Neste


sentido, Roberto verá o Tropicalismo, ainda que como uma vanguarda, também como
pós-moderno e conservador – se encontrando com a modernização autoritária de 1964

10
(SCHWARZ, 2012, p. 79)9. Seu caráter pós-moderno estaria no sentido de querer superar
o moderno, ou seja, a cultura pré-golpe, assim como seu caráter conservador viria com a
tentativa autoritária de impor a nova realidade (de 1964) às esquerdas por via niilista, isto
é, entendendo que a derrota fora tamanha que seria insuperável e a única maneira de
manter uma respiração (ainda que artificial) seria enveredar-se pela lógica da assimilação
da nova realidade.

O que esta pesquisa pretende é apontar para os caminhos que levam a autores de
formações e trajetórias tão díspares, caminharem para uma interpretação próxima, que
apontam para as relações do Tropicalismo com 1964, seu caráter de superação das
produções até então praticadas, bem como de irreversibilidade, seja da derrota em 1964,
seja da sobrevida da cultura popular (do qual este reivindica ser parte propositora). Neste
sentido, se o Tropicalismo foi produto de uma crise (para a qual não hesitou em oferecer
saídas) (NAPOLITANO/VILLAÇA, 1998, s./p.) e apontou para o mercado e a inserção
na indústria cultural como formas de retomar o contato com as massas – ainda que de
forma intermediada, centrista, conciliatória (SANCHEZ, 2000, p. 55) – como
compreender a resistência que certos setores da intelectualidade, também à esquerda,
apresentaram em reação ao movimento (de vanguarda, que ao menos se dizia como
representante das esquerdas)? Qual seria a saída para a crise vivenciada na visão destes
autores? Por que chegaram, ainda que partindo de posições díspares, a conclusões
similares, que apontavam para a relação do Tropicalismo com 1964? Essas são perguntas
a que esta pesquisa procurará responder, visando construir um sentido para o
Tropicalismo que permita explicar tais aproximações e distâncias entre as análises.

Objetivos

O objetivo da pesquisa passa por, compreendido o Tropicalismo em um primeiro


momento, entender as aproximações e diferenciações entre as leituras feitas sobre o
movimento por José Ramos Tinhorão e Roberto Schwarz. Mais que compreender cada
uma das interpretações, nossa intenção é buscar compreender como e por que um crítico

9
Neste ensaio, publicado em 2012, Roberto se apoia na questão do caráter pós-moderno do Tropicalismo
em Nicholas Brown. Para uma interpretação deste autor, ver BROWN, Nicholas. Tropicália, pós-
modernismo e a subsunção real do trabalho sob o capital. In: CEVASCO, Maria Elisa/OHATA, Milton
(Org.). Um crítico na periferia do capitalismo: reflexões sobre a obra de Roberto Schwarz. São Paulo:
Companhia das Letras, pp. 295 – 309, 2007.

11
musical de orientação comunista/stalinista chegou a conclusões próximas às de um crítico
literário de matriz adorniana. Neste sentido, buscaremos compreender um circuito
intelectual que tenha se formado entre as esquerdas do período no processo de crítica ao
Tropicalismo.

Metodologia

A metodologia a ser empregada no estudo é a da História Social da Arte. Segundo


Francisco Alambert, a partir de T. J. Clark, “a História Social da Arte é uma disciplina
capaz de mobilizar uma série de questionamentos de modo concentrado” (ALAMBERT,
2015, p. 11). Desta maneira, é preciso que se reúnam os fatos e se saibam fazer perguntas
a partir de um campo. Valendo-se de Bourdieu, Alambert aponta para o conceito de
“campo”: espaço orientado pelo jogo de poder, cuja dinâmica de funcionamento é a luta
pela dominação simbólica em seu interior (idem, ibidem, p. 11).

No caso da experiência brasileira, tal realidade se mostra mais dificultosa pela


nossa singularidade: o que somos e o que representamos? No mesmo ensaio, a partir de
Paulo Emílio Salles Gomes, Francisco Alambert apontará para os três pilares básicos da
análise em História Social da Arte no Brasil: primeiro, a mediocridade como sinal;
segundo, o estado de subdesenvolvimento como base; terceiro, a incompetência criativa
em copiar como ponto de partida (idem, ibidem, p. 19).

O Tropicalismo buscará apontar para todos estes elementos, porém tentando


superá-los (a mediocridade, o subdesenvolvimento, a cópia) de maneira singular. A
mediocridade buscará ser vencida por meio da alegorização do atraso fundacional
brasileiro, fruto de sua condição de periferia do capitalismo. O subdesenvolvimento será
vencido por meio da inserção do conserto de nações, a partir quer da bossa nova no qual
o Tropicalismo bebe, quer na capacidade de aliança entre a nova realidade instaurada em
1964 e a produção artística deste novo tempo. A cópia, por fim, seria vencida pelo
pastiche, que levaria à uma nova capacidade de compreensão do ente “povo” e das
relações entre engajamento e conteúdo estético.

Neste sentido, a análise em História Social da Arte do Tropicalismo deve levar em


conta o espírito de superação do movimento destes elementos estruturais da arte
brasileira. Situando o país na periferia do capitalismo, e, a partir desta condição, a análise
deverá superar o mito da construção nacional interrompida em 1964. Ela acabou, junto à
noção de uma sociedade nacional. Neste sentido, o Tropicalismo situa a arte brasileira em

12
uma nova realidade que exige respostas, posto que é preciso se adaptar à nova ordem
estabelecida, bem como demarcar território ante à derrota colossal que o golpe de 1964
representou.

Plano de trabalho

Em um primeiro momento, será feita a leitura das fontes, em acompanhamento às


bibliografias de apoio. Após a coleta dos dados nas fontes, ocorrerá o aprofundamento
das bibliografias de apoio, visando a compreender as relações apontadas entre
Tropicalismo, vanguarda, subdesenvolvimento e nação. À luz destas noções, será escrito
o relatório final, apontando para as dualidades, distâncias e aproximações entre as duas
leituras.

Cronograma

Etapas Primeiro semestre Segundo semestre


Pesquisa bibliográfica X
Leitura bibliográfica X X
Análise documental X X
Elaboração e entrega do X
Relatório parcial
Síntese das informações X
adquiridas através da
leitura bibliográfica e da
análise documental
Desenvolvimento da tese e X
de seus argumentos de
sustentação
Elaboração e entrega do X
Relatório final

Fontes

SCHWARZ, Roberto. Notas sobre vanguarda e conformismo. In: O pai de família e


outros estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 47 – 54.

13
_________________. Cultura e política: 1964 – 1969. In: O pai de família e outros
estudos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 70 – 111.

_________________. Verdade tropical: um percurso de nosso tempo. In: Martinha


versus Lucrécia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, pp. 52 – 110.

TINHORÃO, José Ramos. O Tropicalismo. In: Pequena História da Música Popular:


segundo seus gêneros. São Paulo: 34, 2013, pp. 283 – 308.

_____________________. O Movimento Tropicalista e o “Rock Brasileiro”. In:


História Social da Música Popular Brasileira. São Paulo: 34, 1998, pp. 323 – 349.

Bibliografia

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ARANTES, Paulo Eduardo. Sentimento da dialética na experiência intelectual


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