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Movimento Tropicália: concretismo, antropofagia e política.

A década de 60 representou para a música um período revolucionário,


despertando o potencial de grandes artistas e movimentos de fortes ideologias. No contexto
internacional, em 1965, viu-se a explosão de grandes nomes, como Beatles, Rolling Stones,
Bob Dylan, Bob Marley e Janis Joplin. Em consonância, a década se encerrou com “chave
de ouro” para os hippies a partir do Festival de Woodstock em 1969 – o grande marco
da contracultura.
No Brasil, a década também surpreendeu. Em meio a um contexto político incerto,
explodiram expressões politizadas e de protesto, além do pop da Jovem Guarda e o
excêntrico da Bossa Nova. E no meio de tudo isso, outro movimento passou a transgredir: o
tropicália, que contaremos melhor a seguir!
O que foi o movimento Tropicália?
O movimento tropicália ou tropicalismo foi um movimento cultural que atingiu,
sobretudo, a música brasileira a partir da década de 60, mas também influenciou na terceira
fase do Cinema Novo (1968 – 1972), um movimento cinematográfico brasileiro marcado
pela sua crítica à desigualdade social. Grandes nomes conhecidos hoje, como Caetano
Veloso e Gilberto Gil, atuaram ativamente fazendo com que características estéticas e
ideológicas reverberassem por essa esfera cultural sonora.
Além desses artistas, o movimento envolveu muitos outros músicos que, partindo das
ideias transgressoras do tropicalismo, construíam canções misturando elementos de
diferentes tipos.
Apesar de hoje ser conhecido por esse nome, o movimento nem sempre foi
considerado de tal forma. E para entendermos melhor essa questão, vale pensar, então, em
como ele surgiu.

Como o tropicalismo surgiu?


Tudo começa com o Festival de Música Popular Brasileira. Inaugurado em 1965, foi
um concurso anual de canções originais e inéditas que revelou muitos talentos considerados
hoje clássicos da música brasileira, tais como Elza Soares, Chico Buarque, Elis Regina,
Nara Leão, Roberto Carlos, Os Mutantes (com Rita Lee), entre outros.
Foi por meio desse evento que, em 1967, na terceira edição, Caetano Veloso, Gilberto
Gil e Os Mutantes abalaram a tradição da música brasileira. Trazendo novos elementos
às canções, os artistas apresentaram no Festival, respectivamente, “Alegria, alegria” e
“Domingo no Parque” – interpretada mutuamente por Gil e Os Mutantes.
Veremos com o pesquisador Celso Favaretto que essas músicas denotavam certa
ambiguidade e, assim, revelavam algo diferente: “pela primeira vez, apresentar uma canção

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tornava-se insuficiente para avaliá-la, exigindo-se explicações para compreender sua
complexidade”.
Tudo indicava, portanto, uma ruptura com o que era feito até o momento na música e
um novo processo para a construção das canções, repleto de singularidades e
complexidade. Era um movimento de inovações estéticas que propunha reinventar a
música brasileira.

A origem do nome Tropicália


“Tropicália” nomeia, inicialmente, a obra do artista plástico Hélio Oiticica, exposta na
mostra Nova Objetividade Brasileira, de 1967, realizada no Museu de Arte Moderna do Rio
de Janeiro. A respeito da obra, o portal Memórias da Ditadura nos revela suas
características que curiosamente têm semelhanças com o tropicalismo:
“A obra era constituída por um labirinto de madeira forrado com areia e pedras, que,
ao ser percorrido pelo espectador, colocava-o em contato corporal com diversos
elementos naturais e culturais do Brasil, como plantas tropicais e araras nativas, num
percurso que terminava em frente a um aparelho de televisão ligado.”
Conhecendo a exposição de Oiticica, o fotógrafo jornalístico Luiz Carlos Barreto, ao
ouvir a produção de Caetano Veloso e sabendo que ela não tinha nome ainda, sugere
“Tropicália”, reconhecendo as semelhanças de ambos trabalhos. Caetano, entretanto, não
gosta tanto da ideia, já que sequer conhecia a obra do artista plástico.
Ainda assim, mais tarde, como afirma o cantor, sem um nome para sua produção,
como se “não achasse nunca um outro melhor e o disco já estivesse pronto, Tropicália ficou
e oficializou-se”. Dessa forma, o nome foi para o álbum e, posteriormente, para o próprio
movimento. Nesse último caso, Caetano esclarece:
“A ideia de que se tratava de um movimento ganhou corpo, e a imprensa,
naturalmente, necessitava de um rótulo. O poder de pregnância da palavra tropicália
colocou-a nas manchetes e nas conversas. O inevitável ismo se lhe ajuntou quase
imediatamente.”

Principais características
● Movimento de Contracultura: a Tropicália rompe com a estrutura cultural burguesa e
predominantemente sob influência estrangeira que podemos identificar na Bossa Nova e na
Jovem Guarda. Trata-se de uma resposta aquilo que era considerado conservador e
retrógrado, através de uma nova forma de se produzir música, considerando novos valores,
comportamentos e pensamentos.

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● Inovação: O movimento sofreu grande influência do movimento hippie que propôs um
novo parâmetro de liberdade comportamental, sexual e espiritual. Dessa forma, além de
uma música inovadora, os artistas do movimento transmitiam um novo modo de
comportamento.
● Rebeldia: uma resposta à inconformidade da sociedade perante as condições impostas
pela Ditadura Militar e pela propagação de uma moral conservadora.
● Miscigenação: Com o sucesso de grupos internacionais e festivais, os tropicalistas
incrementam ao samba e à bossa nova outras sonoridades – como a guitarra elétrica
advinda da cultura europeia e o berimbau da capoeira – que representam uma parte da
cultura brasileira. A miscigenação se dá pela apropriação da própria cultura do país
acrescentada por tendências de outras culturas que foram popularizadas pelo mundo.
Essas características estabelecem uma sonoridade inovadora ao cenário musical do
país que, posteriormente, influenciaram o desenvolvimento da Música Popular Brasileira.
Para entender as características do movimento Tropicália, é importante lembrar que
ele surgiu em um contexto bem específico. Naquele momento, muitas canções eram
politizadas funcionando como forma de protesto em meio à ditadura militar. Ao mesmo
tempo, outras músicas percorriam o pop com influência do rock internacional.
Além desse contexto, para compreender o projeto do movimento Tropicália, também é
preciso entender sua relação com a poesia concreta e conhecer o movimento Antropofágico
que surge nos anos 20 com o modernismo brasileiro, mais especificamente, com Oswald de
Andrade.
Em primeiro lugar, os tropicalistas, ao focarem no aspecto estético das canções,
criavam jogos linguísticos com grandes semelhanças à poesia concreta. O próprio
Augusto de Campos, um dos primeiros poetas concretos do Brasil, em 1966, saúda Caetano
Veloso e sua música em uma matéria jornalística.
Para mais, a partir das canções mencionadas apresentadas no Festival de Música
Popular Brasileira em 1967, o movimento Tropicália se inicia a fim de misturar expressões
e gerar uma nova música brasileira. E são essas características que revelam a sua forte
semelhança e influência do movimento Antropofágico de Oswald de Andrade.

Principais objetivos
● Inovação da estética musical: o principal objetivo dos Tropicalistas era desenvolver uma
nova estética musical considerada por si só revolucionária, já que rompia com os ideais
retrógrados e conservadores propostos até então.

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● Libertação e revolução: as músicas somaram, em sua essência, a mensagem de
libertação do conformismo, àquilo que parecia estagnado propondo um pensamento que
buscasse a libertação dos contextos sociais e uma revolução nos conceitos políticos.
● Crítica política e social: apesar de não ser um objetivo assumidamente declarado pelos
artistas que fizeram parte do movimento, as composições destacam críticas à Ditadura
Militar e à moral conservadora burguesa, fazendo uso do humor e ironia de maneira
elaborada esteticamente e crítica.
O Tropicalismo, em sua essência, se demonstrou um movimento de inovação por
meio da estética e da resistência ao contexto em que se desenvolveu.

Movimento tropicália e a Antropofagia


A Antropofagia oswaldiana, da década de 1922, foi uma das principais correntes
artísticas e intelectuais que defenderam a assimilação de elementos da cultura estrangeira e
sua integração aos nossos aspectos, produzindo assim algo novo.
A Antropofagia começa em 1928 com a publicação do Manifesto Antropófago de
Oswald de Andrade. A partir disso, um movimento começa a despertar, principalmente na
literatura, em que os autores buscam adotar a antropofagia para a composição de suas
obras.
Oswald recupera esse nome do ritual de grupos tribais em que se comia uma ou
várias partes de um ser humano inimigo. No mesmo sentido, o projeto literário propõe o ato
de devoração ou deglutição daquilo que for bom nas outras culturas. Com isso, devorando
somente o benéfico do colonizador e recuperando a tradição e o primitivo do Brasil, os
modernistas acreditavam que finalmente alcançariam uma literatura nacional.
Caetano Veloso assume a influência desse movimento e, em sua própria biografia, Verdade
Tropical, dedica um capítulo, intitulado “Antropofagia”, para comentar sobre o assunto:
“O segundo manifesto, o Antropófago, desenvolve e explicita a metáfora da
devoração. Nós, brasileiros, não deveríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse
de onde viesse, ou, nas palavras de Haroldo de Campos, „assimilar sob espécie brasileira a
experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos, com qualidade locais ineludíveis
em que dariam ao produto resultante um caráter autônomo‟ (…).”
Ainda em Verdade Tropical, fica explícito o processo de devoração que o próprio
músico realiza ao compor suas canções, resgatando e misturando elementos de diferentes
linhas estéticas, como ilustra o trecho:
“Pensando num velho samba de Noel Rosa chamado „Coisas nossas‟, que
enumerava cenas, (…), imaginei uma canção que tivesse temática e estrutura semelhantes,

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só que, como no caso de „Alegria, alegria‟, em relação a „ Clever boy samba‟, não ficasse no
tom simplesmente satírico (…).”
O projeto nacional – como objetivava o movimento antropofágico –, por sua vez,
revela-se na fala, por exemplo, da Rita Lee em entrevista: “Caetano e Gil é que me deram
todas as dicas de como fazer música brasileira, que até então era só coisa gringa, só coisa
de outras pessoas”. Sobre seu próprio processo artístico, a cantora ainda completa: “é
uma mistura de tudo, eu sou uma mistura de tudo. (…) Eu não me misturava com nada e
eu era tudo”.

Qual a relação do Tropicália com a política?


O movimento Tropicália, como mencionado nasceu durante a Ditadura Militar no
Brasil. Esse regime, instaurado em 1964, despertou nos artistas determinada consciência
política sobre suas produções. Assim, usaram da música para realizarem seus protestos
contra a realidade política em que viviam. Um exemplo deles é o Geraldo Vandré cuja
canção ficou famosa pelo protesto implícito nos versos:
“Caminhando e cantando e seguindo a canção Somos todos iguais braços dados ou
nao Nas escolas nas ruas campos construções Caminhando e cantando e seguindo a
canção Vem vamos embora que esperar não e saber Quem sabe faz a hora não espera
acontecer”
Muitas outras canções tinham objetivos políticos e sociais, mas, para os tropicalistas,
na verdade, a experiência transgressora da composição das canções era o foco da
revolução. Nesse sentido, o sociólogo Cláudio Coelho aponta que o movimento Tropicália
“compartilha alguns elementos da visão sobre a cultura e a política predominante nos anos
60, mas lhes atribui um significado diferente. O tropicalismo construiu uma versão alternativa
das relações entre cultura e política”.
Desse modo, os tropicalistas reconheciam – bem como outros movimentos musicais
da época – a associação da produção artística às transformações revolucionárias. Contudo,
suas manifestações eram feitas, na verdade, por meio das inovações estéticas na
composição das canções. E foi assim que inauguraram um novo jeito de fazer música
brasileira.

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