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05/03/2024, 12:01 ‘Catecismos’ de Carlos Zéfiro driblaram repressão sexual dos anos 50 aos 70 | Acervo

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Publicado: 03/07/17 - 7h 32min Atualizado: 24/06/22 - 18h 08min

‘Catecismos’ de Carlos Zéfiro driblaram


repressão sexual dos anos 50 aos 70
Carioca Alcides Caminha, autor dos livretos porno-eróticos que marcaram gerações, foi um
funcionário público que só teve a identidade revelada pouco antes de morrer, há 30 anos

Fabio Ponso*

Seu Alcides, como era conhecido pelos vizinhos, era um funcionário público de pequeno
escalão, pai de família e morador de uma casa simples de dois quartos no subúrbio do Rio.
Por mais de quatro décadas, quase ninguém pôde suspeitar que na história não revelada
deste cidadão comum, de vida pacata, habitava, em silêncio, o mito Carlos Zéfiro, tido por
muitos como o “pai da pornografia brasileira”. Desenhista dos quadrinhos eróticos
conhecidos como “catecismos”, uma febre entre os adolescentes das décadas de 50 a 70,
Alcides Aguiar Caminha se valeu do pseudônimo para esconder a obra do grande público
—, revelada somente a alguns poucos familiares e amigos, que guardavam o segredo.
Curiosamente, não fosse o fato de outro quadrinista ter declarado ser Carlos Zéfiro,
estimulando o artista a finalmente sair do anonimato, um ano antes de sua morte, em 1992,
sua identidade teria continuado envolvida para sempre numa aura de mistério.

Nascido em 26 de setembro de 1921, em São Cristóvão, no Rio, aos 25 anos Alcides casou-
se com Serat, com quem teve cinco filhos. Funcionário público da Divisão de Imigração do
Ministério do Trabalho, concluiu o ensino médio somente quando tinha 58 anos. Mas no
desenho se iniciou muito antes: após se formar em um curso técnico, começou a reproduzir
fotos de nus femininos, a pedido de amigos, logo percebendo que poderia ganhar dinheiro
criando histórias eróticas, como noticiado pelo GLOBO em 15 de novembro de 1991. A
primeira delas, intitulada “Sara”, foi criada em 1949.

No entanto, ele sempre escondeu sua atividade paralela para não prejudicar sua carreira, já
que a Lei 1.711, de 1952, previa a demissão de servidores por “incontinência pública
escandalosa”. Sua precaução era tanta que tratava de destruir os originais de suas obras
após a venda. Mesmo depois de se aposentar, continuou se resguardando, com receio de
perder a renda com que sustentava a família, que morava numa casa simples em Anchieta.

Seus desenhos, em preto e branco, compunham histórias reunidas em pequenos livretos em


formato de bolso, com no máximo 32 páginas. De acordo com a Enciclopédia Itaú Cultural,
o artista teria produzido 862 histórias. Por seu conteúdo pornoerótico, que, de forma
pioneira, “educou” sexualmente gerações acostumadas com a repressão sexual e a censura,
os livretos receberam do público o bem-humorado apelido de “catecismos”. Com tiragem
média de cinco mil exemplares — chegando, em alguns casos, a cerca de 30 mil —, eram
impressos em gráficas de diversos estados, distribuídos e vendidos clandestinamente em
bancas de jornais, por iniciativa de Hélio Brandão, amigo do artista e dono de um sebo na
Praça Tiradentes.

Segundo pesquisadores, a obra do artista teria sido influenciada por quadrinhos românticos
mexicanos e fotonovelas suecas de teor pornográfico. O nome Carlos Zéfiro, por sua vez,
teria sido inspirado num autor mexicano de fotonovelas. As histórias, de cunho
eminentemente machista, eram um retrato da cultura sexual da época, e não se furtavam a
abordar tabus e temas polêmicos, como o homossexualismo e o incesto, sob verniz nu e
cru, levando alguns especialistas a considerarem Zéfiro como “o Nelson Rodrigues dos
quadrinhos”.

Em 1970, no auge da repressão da ditadura militar, uma investigação foi aberta em Brasília
para se descobrir o autor das "obras pornográficas". O editor Hélio Brandão chegou a ser
preso, e Caminha foi procurado e revistado pela polícia, mas a investigação terminou
inconclusa. Ainda no início da década de 70, a chegada ao Brasil de revistas eróticas
estrangeiras, em cores, fez com que as “revistinhas de sacanagem” nacionais perdessem
prestígio e Zéfiro, principal autor do gênero, decidisse parar de publicar suas histórias.

No entanto, o artista continuou desenhando e seu nome se manteve vivo, até que, nos anos
80, com o enfraquecimento e o fim da censura, seus quadrinhos passaram a ser reimpressos
por editoras do mercado brasileiro, como a Record e a Cena Muda. Em 1983, foram
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publicados dois estudos sobre sua obra: “O quadrinho erótico de Carlos Zéfiro”, de Otacílio
d’Assunção, e “A arte sacana de Carlos Zéfiro”, com artigos de pesquisadores como o
antropólogo Roberto Da Matta e o jornalista Sérgio Augusto.

Além dos trabalhos como quadrinista, Alcides Caminha foi compositor, inscrito na Ordem
dos Músicos do Brasil. A paixão pela música o conduziu a uma vida boêmia, e em suas
andanças, entre shows e serestas, conheceu os sambistas Nelson Cavaquinho e Guilherme
de Brito. Com a famosa dupla — que, segundo Caminha, também sabia que ele era o
desenhista Carlos Zéfiro —, compôs alguns sambas, entre eles o clássico “A flor e o
espinho”, gravado por importantes nomes da MPB.

Caminha revelou sua identidade somente em novembro de 1991, nas páginas da revista
“Playboy”, após tomar conhecimento que o artista baiano Eduardo Barbosa — também
autor de alguns folhetos eróticos — se apresentou à imprensa como sendo Carlos Zéfiro.
Na ocasião, ganhou uma exposição de seus desenhos e participou como uma das principais
atrações da I Bienal Internacional de Quadrinhos, na Fundição Progresso, no Rio, sendo
assediado por jornalistas e fãs.

Em 3 de julho de 1992, o quadrinista foi o principal homenageado do Troféu HQ Mix, no


Rio, recebendo o seu primeiro prêmio, na categoria de artista veterano, pelo conjunto de
sua obra. Caminha, no entanto, pouco pôde desfrutar de sua glória tardia, pois apenas dois
dias depois, após voltar de uma festa, sentiu-se mal e faleceu em virtude de um derrame
cerebral, aos 70 anos de idade.

Em 1996, Zéfiro foi homenageado pela cantora Marisa Monte, que utilizou os traços do
artista na capa e no encarte do CD “Barulhinho bom”. Em 1999, a cantora também
participou de outra homenagem póstuma, inaugurando a Lona Cultural Carlos Zéfiro, em
Anchieta, com um show ao lado da Velha Guarda da Portela. Marisa e o jornalista Juca
Kfouri, autor da reportagem que revelou a verdadeira identidade de Carlos Zéfiro na
“Playboy”, são os padrinhos do espaço cultural, fundado e dirigido por artistas locais. Dois
anos depois, o cineasta Sílvio Tendler iniciou o projeto de produção de um documentário
sobre Zéfiro. Em 2011, o diretor e autor Paulo Biscaia Filho levou aos palcos a peça “Os
catecismos segundo Carlos Zéfiro”, escrita com Clara Serejo. No mesmo ano, seus
trabalhos foram expostos no Museu do Sexo, em Nova York, ao lado de obras de
quadrinistas eróticos do mundo inteiro.

* com edição de Matilde Silveira

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