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A CIDADE PERDIDA DE Z de James Gray_ 5 de Outubro de 2017

sinopse A história verídica do explorador inglês Percy Fawcett, que viaja ate à Amazónia no início
do século XX e descobre provas de uma avançada civilização até então desconhecida. Apesar de
ridicularizado pela comunidade científica que encara a população indígena como “selvagem”, o
explorador – apoiado pela sua mulher, pelo filho e pelo colega, ajudante de campo – regressa à
selva numa tentativa de provar a sua teoria, mas desaparece misteriosamente em 1925...
Adaptação ao grande ecrã da obra de não-ficção escrita pelo jornalista norte-americano
David Grann, um filme que relata as aventuras do explorador inglês Percy Fawcett. A
realização e o argumento ficam a cargo de James Gray ("Viver e Morrer em Little Odessa",
"A Emigrante"). O elenco conta com Charlie Hunnam, Robert Pattinson, Sienna Miller, Tom
Holland e Matthew Sunderland, entre outros.

Título original: The Lost City of Z (EUA, 2016, 140 min.)


Realização e Argumento: James Gray
Interpretação: Charlie Hunnam, Tom Holland, Robert Pattinson, Sienna Miller
Produção: Brad Pitt, Dede Gardner, Dale Armin Johnson, Antony Katagas,
Jeremy Kleiner
Fotografia: Darius Khondji
Montagem:John Axelrod
Distribuição: NOS Audiovisuais
Estreia: 4 de Maio de 2017
Classificação: M/12

A floresta encantada
Luís Miguel Oliveira, Publico de 4 de Maio de 2017
O filme é obcecado com ruinas, e no limite trata a selva, ela própria, como uma ruína, numa deriva
romântica que tem o seu quê de germânico.
A Cidade Perdida de Z é o filme que mais desarruma o rasto, até aqui consideravelmente
homogéneo, que a obra de James Gray tem deixado. É verdade que já o tinha feito um pouco no
filme anterior, A Imigrante, onde trocava a época contemporânea pelas primeiras décadas do
século XX, mas mantinham-se o meio ambiente e a “temática” de todos os filmes do realizador
desde a estreia com Little Odessa, o retrato da vida das comunidades imigrantes (sobretudo de
origem russa, como a família de Gray) em Nova Iorque e arredores. Aqui, tudo isso é varrido, e se,
por relação com A Imigrante se mantém a reconstituição de uma época remota (são ainda as
primeiras décadas do século XX, entre 1906 e os anos 1920), nem sombra de russos ou de Nova
Iorque. Antes a história de um aristocrata inglês, obcecado com uma cidade mítica nos confins da
Amazónia, que pode ou não ser a lendária Eldorado que enlouqueceu os conquistadores
espanhóis, e que troca a confortável vida na sua cottage por repetidas viagens à América do Sul
em busca da cidade perdida de Z.
Podíamos notar que o movimento da personagem (que se chama Fawcett é interpretada por
Charlie Hunnam) tem algo de paralelo com a própria posição de Gray, cineasta a trocar o seu “lar”
pelo desconforto de um universo estranho, por puro voluntarismo, quando nada o obrigava a fazê-
lo. Notar isso, contudo, obriga-nos a notar o quanto A Cidade Perdida de Z, pese toda essa
estranheza não apenas geográfica, carrega ainda do universo temático tradicional de Gray.
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Vemos as cenas familiares, antes da primeira expedição, e depois nos intervalos entre viagens, e
forçoso se torna reparar, até pelo peso específico que essas cenas têm na economia narrativa do
filme, que A Cidade Perdida de Z, sem ser mais uma variação explícita em torno da bíblica
parábola do filho pródigo, continua a ser uma história onde a família se vive num movimento de
repulsa e atracção, um sítio onde se parte e a que se está condenado a regressar. Aliás, em
termos dramáticos, isso é reforçado pela estrutura narrativa, sempre “em frustração”, com os
sucessivos regressos das expedições sul-americanas sempre que a mítica cidade parece estar ao
alcance das mãos.
Mas, ainda a propósito da questão familiar, quem tenha bem presente a obra anterior de Gray não
poderá deixar de detectar uma repetição explícita, como se, mudando todas as circunstâncias, o
realizador estivesse à vontade para rimar sem disfarces — aquele diálogo entre o pai e o filho
Fawcett, na derradeira expedição (algo como “amo-te muito, pai”, “eu também te amo muito”),
retoma quase tintim por tintim o último diálogo entre o par de irmãos de Nós Controlamos a
Noite. As circunstâncias são bem diferentes, mas também aqui o momento da aceitação e da
expressão do amor familiar parece ser o ponto Z.
“Z” que, claro, é a última letra do alfabeto, o ponto de chegada derradeiro, para além do qual nada
mais há. A letra não é usada em vão, porque o filme está eivado de uma poética “terminal”, é um
filme sobre o fim, um filme sobre a extinção. Não se revela logo, aliás este é filme de Gray que
mais tempo demora a “revelar-se” (e é também o mais longo, com as suas quase duas horas e
meia), mas o movimento do filme, em eco da obsessão do protagonista, é um movimento para a
dissolução, para o desaparecimento, para a extinção. Extinção dele, e extinção dum mundo. O
filme é obcecado com ruinas (por exemplo, o encontro e reencontro com a ópera no meio da
selva, completamente “fitzcarraldiana”), e no limite trata a selva, ela própria, como uma ruína,
numa espécie de deriva romântica que tem o seu quê de germânico.
Pensamos, e não parece um pensamento especialmente delirante, que Gray filma a Amazónia
como Caspar David Friedrich a podia ter pintado — plasticamente o filme é belíssimo, exteriores e
interiores tratados com um cuidado que releva sempre algo quase desaparecido desse reino do
banho de luz que é o cinema contemporâneo: as sombras, o brilho das cores no escuro, coisas
que dá vontade de dizer que só Gray e Pedro Costa fazem actualmente. Mas extinção dum
mundo, também, um mundo “conradiano” (óbvia influência, por ele e pelo que Coppola fez com
ele no Apocalypse Now, que o final de Z tanto lembra) que consegue restituir o apelo romântico
da última vaga colonial mantendo sempre a perspectiva (as cenas com os índios: o olhar deles
sobre os aventureiros é “documental”, é o século XXI a olhar para o homem do princípio do século
passado), e consciente da mudança de tempo (para isso é fulcral a mediação das cenas durante a
I Guerra). E este olhar sobre o romantismo, um romantismo alheio de que o filme se apropria para
o tornar seu, é duma beleza extraordinária.

James Gray em busca do cinema perdido _ Entrevista


Jorge Mourinha, Publico de 3 de Maio de 2017
Com A Cidade Perdida de Z, assina uma aventura inspirada pelos grandes clássicos como
Lawrence da Arábia, baseada na história verídica de um explorador inglês que se buscava tanto
a si como a uma civilização perdida nos ermos da Amazónia.
Ninguém diria que as linhas que se seguem foram literalmente “arrancada a ferros” aos
responsáveis pelas relações públicas do distribuidor americano — foram dois meses de
insistência até finalmente conseguirmos a “bênção” de 15 minutos ao telefone com James Gray. A
ironia é simples: se há um cineasta americano contemporâneo que julgaríamos “imune” a estes
apertados controlos de promoção, seria James Gray, cujo classicismo “à moda antiga” e estatuto
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de “autor” confirmado pela devoção da crítica francesa (e pelo apadrinhamento de Cannes, que
colocou na competição oficial quatro dos seus seis filmes) não pertence, de todo, aos cronómetros
apertados das mesas-redondas e das micro-entrevistas para soundbites na televisão. O
realizador, aliás, admite-o a dada altura da conversa: não trabalha em função das exigências de
mercado nem das formatações comerciais, prefere antes fazer cinema que coloque questões ao
público, que o envolva de uma maneira menos didáctica, menos formatada. Como dirá na
conversa: “não acredito que o cinema tenha culpas de Trump ter sido eleito”, mas o facto da maior
parte dos filmes que Hollywood produz hoje em dia serem filmes de efeitos especiais cheios de
som e fúria que nada significa terá certamente contribuído para a dessensibilização de um público
que, hoje mais do que nunca, precisa de mais do que apenas isso.
Brad Pitt e a sua produtora Plan B, que têm apoiado produções “fora do baralho” como Moonlight
de Barry Jenkins ou 12 Anos Escravo de Steve McQueen, perceberam isso quando enviaram a
Gray o livro do jornalista da New Yorker David Grann, A Cidade Perdida de Z (2009), com a
intuição de que seria o realizador ideal para esta história: a epopeia verídica de Percy Fawcett
(1867-1925), oficial britânico que, entre 1906 e 1914 e depois entre 1920 e 1925 percorreu os
confins da Amazónia como explorador buscando uma civilização primordial, um El Dorado
amazónico que muitos consideravam não passar de uma febril fantasia. Gray apropria-se do livro
de Grann de uma maneira que funciona no interior de uma tradição do cinema de aventuras sem
se limitar a fazer “mais do mesmo”, encontrando inspiração nos épicos de David Lean. Ao mesmo
tempo, A Cidade Perdida de Z faz todo o sentido quando visto no contexto da sua curta obra
(apenas seis longas em vinte anos de carreira), tornando a busca quixótica e obsessiva de
Fawcett pela civilização perdida num espelho da necessidade de um filho triunfar apesar da
memória do pai, da vontade de um homem provar contra tudo e todos aquilo que vale realmente
— uma espécie de autobiografia deslocada do próprio realizador.
Antes de A Cidade Perdida de Z, Gray assinou três variações intensas e quase trágicas sobre o
filme policial — Viver e Morrer em Little Odessa (1994), Nas Teias da Corrupção (2000) e Nós
Controlamos a Noite (2007) -, um peculiar romance nova-iorquino (Duplo Amor, 2008) e uma
primeira abordagem ao filme de época (A Emigrante, 2013). Todos títulos produzidos no circuito
independente e que se instalavam numa forma de pensar e fazer o cinema que parecia vir inteira
de outro tempo, que ressoaram com a imprensa e com os observadores mais do que com o
grande público (não tendo sido ajudado pela distribuição confidencial, independente, que os filmes
iam tendo).
Pelas entrevistas que iam acompanhando cada novo filme, traçava-se um retrato de Gray (n.
1969) como alguém consciente do seu lugar no mundo do cinema contemporâneo, e de uma
genealogia que pretendia manter intacta. Talvez isso nunca se tenha sentido tanto como em A
Cidade Perdida de Z, primeiro filme de Gray a ser adaptado de material pré-existente, mas que é
tão seu como tudo o que ficou para trás. Valeu a pena esperar três meses por 15 minutos de
conversa. Que souberam a muito pouco.
A Cidade Perdida de Z é o seu segundo filme de época, depois de A Emigrante, mas é também
um filme muito mais exigente em termos de produção. Como é que fez a transição?
Na verdade, já tinha feito um filme de época antes de A Emigrante, se lhe quiser chamar isso,
que era Nós Controlamos a Noite, que decorria em 1988-1990, dez anos antes de eu o rodar. E
aprendi aí que o público repara nos mais pequenos pormenores. Por exemplo: não substituímos
alguns semáforos que estavam ao longe no enquadramento porque não tínhamos dinheiro para
tudo, mas as pessoas repararam, repararam também que as fardas da polícia eram diferentes do
que deviam ser... Daí que, quando comecei a trabalhar na Emigrante, fiquei obcecado com os
pormenores, e disse a mim próprio que tinha de acertar em tudo.
Mas é muito estranho: temos de ter muito cuidado com os pormenores, mas ao mesmo tempo não
podemos ficar tão obcecados em seguir à letra a história de um livro ao ponto de nos limitarmos a
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fazer uma adaptação literária muito bafienta. A Cidade Perdida de Z difere do livro porque tive de
introduzir alterações para o poder adaptar. O cinema, e a arte no geral, têm de abordar a história
de uma maneira muito aberta, porque não estamos à procura da “Verdade” com V maiúsculo, mas
sim de uma verdade maior.
Curiosamente, está a falar de obsessão, e Percy Fawcett pode ser visto como uma espécie de
alter ego seu, obcecado em levar a cabo a sua aventura...
[risos] Tem toda a razão!
Sente-se nele a mesma sinceridade, a mesma obsessão, que se vê no seu cinema.
Que óptima questão. Não me apercebi disso enquanto preparava o filme, mas quando comecei a
rodar, dei por mim, como um actor, à procura de um “ponto de entrada” para dirigir uma cena, de
algo que a tornasse pessoal. E dei por mim a pensar, a meio da rodagem, que esta história é um
pouco também a história de um realizador. De alguém que se vê obcecado por algo, e a obsessão
é algo que habitualmente ligamos ao risco, ao falhanço, ao sacrifício que isso exige, também às
pessoas à sua volta. Fawcett tem uma mulher inteligente mas ambiciosa, três filhos, dois rapazes
e uma rapariga. E essa é a minha configuração familiar, dois rapazes, uma rapariga, e uma
mulher inteligente mas muito independente, e de repente, “oh meu Deus, estou a filmar a minha
autobiografia”!
Tal como Fawcett, que sonhava com um destino que já não era possível no início do século XX,
você também é um cineasta fora de tempo, que não está alinhado com o que Hollywood faz hoje.
É verdade, sim. Sinto-me realmente desalinhado, mas ao mesmo tempo não sei o que é que pode
substituir esse cinema clássico. A questão é esta: esta é a forma aceite, convencionada, mesmo
que não tenhamos que aderir a todos os seus princípios. Há muitas maneiras de contar uma
narrativa, mas estamos a contá-la na mesma: Tarkovski contava histórias, 8 ½ de Fellini é uma
história... O que aconteceu no final dos anos 1960 foi óptimo, poderoso, mas acabou por ter
também um efeito bastante negativo: a ideia de que a desconstrução era o futuro, que a
indulgência narrativa tinha uma razão de ser. Eu até concordo — os pós-estruturalistas fizeram
dissecações brilhantes — mas sempre senti que a desconstrução não tem de começar no artista
mas sim no espectador, ou no crítico. São eles que têm de desconstruir, não o criador. A narrativa
pode ser uma fantasia, mas é uma fantasia necessária; a partir do momento que achamos que
estamos acima da narrativa, ou que não precisamos dela, então estamos a mentir. Não estamos.
Portanto, quando olho para a paisagem à minha volta e para aquilo que mudou, mais do que estar
desalinhado, tenho de ir atrás daquilo em que acredito e esperar que o tempo me venha a dar
razão. Existem, claro, paralelismos históricos. Houve em Roma toda uma série de poetas pós-
Virgílio que escreveram imensa poesia auto-reflexiva, auto-referencial, com algo de pós-moderno
— mas já ninguém a lê hoje, à excepção dos académicos e estudantes de literatura clássica. Mas
continuamos a ler Homero e Virgílio. E se esses clássicos ainda hoje são lidos, penso que isso é
uma lição que devemos aprender.
Portanto, reconstruir em vez de
desconstruir?
É uma óptima maneira de o definir. Não
estou com isto a minimizar os grandes
movimentos narrativos dos anos 1960,
que são centrais. O Desprezo é um dos
maiores filmes jamais feitos, embora
mesmo aí Godard esteja a construir uma
narrativa, e uma narrativa muito pessoal.
A minha definição de narrativa é bastante
alargada, mas continuamos a precisar de
âncoras que nos balizem.
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A esse propósito, citou repetidamente David Lean como referência para A Cidade Perdida de Z.
Tenho uma enorme admiração por Lean, mas quando olho hoje para Lawrence da Arábia, por
exemplo, é um filme que pertence a uma outra era do cinema... Ele põe Alec Guinness a
interpretar um árabe, o que é completamente absurdo, e na altura em que fez o filme, em 1962,
não podia realmente explorar a componente homossexual da história, percebe-se que ele quer ir
lá mas não pode. Eu não tenho o talento de David Lean, nem os seus recursos financeiros. Posso
apenas tentar actualizá-lo para a política dos nossos dias. Não quis fazer um olhar “do homem
branco”; tentei que os povos indígenas da América do Sul mantivessem a sua postura
independente e que o lugar da mulher naquele mundo fosse também expresso de maneira
realista. Isso era para mim muito importante no tratamento da história. Foi uma das questões que
mais me preocupou durante a rodagem: evitar fazer um filme do ponto de vista do homem branco
como conquistador.
À imagem de Lean, A Cidade Perdida de Z procura uma combinação de intimismo e espectáculo
que precisa de tempo de projecção para funcionar.
Essa foi sempre a minha ambição. O interessante disso é que a questão do ritmo do filme tem
sempre sido o meu inimigo. O público hoje tem uma certa exigência quanto ao ritmo, diferente
daquela que prefiro. Não penso que seja possível contar a correr uma história onde estamos a
tentar expressar complexidade e nuances... A única hipótese é dar tempo às coisas. Se isso
agrada ou não às pessoas, é outra questão. Mas não acho correcto dar só ao público algo que
seja super-rápido, despachado, e não queira dizer nada. Já há demasiado cinema assim hoje.
Porque é que eu quereria repetir a mesma catástrofe que nos levou à situação em que estamos?
O mundo ocidental está em apuros — claro que não acho que os cineastas sejam os culpados
disso, mas somos provavelmente parcialmente culpados disso. Quando não existe contemplação
não existe complexidade, e quando a contemplação e a complexidade não existem, não há
sofisticação nem capacidade de resolver problemas. Num jogo de video há um envolvimento
activo do espectador, e alguns são óptimos e a criatividade envolvida na sua criação é
absolutamente extraordinária, já para não falar da tecnologia. Mas essa não é a forma de um
filme. Num filme o espectador é passivo, não pode alterar a direcção da história, e está
forçosamente a submeter-se à visão de outra pessoa. Há duas abordagens possíveis: uma é
didáctica, o realizador diz-nos exactamente o que sentir.

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