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David Grann, autor de ‘Z: a cidade perdida’,

destrincha as origens do FBI

Eduardo Graça, especial para O GLOBO

David Grann, autor de 'Z: a cidade perdida' Foto: Divulgação / Matthew Richman

NOVA YORK — Intrigado com a história do explorador, cartógrafo e militar Percy Fawcett
(1867-1925), desaparecido na Amazônia em busca de um mítico Eldorado brasileiro, o jornalista
americano David Grann foi a campo desvendar o personagem. Mergulhou na região, conseguiu
documentos inéditos, releu clássicos sobre o assunto, como “O esqueleto na lagoa verde”, de
Antonio Callado, e escreveu “Z: a cidade perdida” (Companhia das Letras), levado recentemente ao
cinema, com o ator inglês Charlie Hunnan na pele do fascinante protagonista.

O mergulho na cultura indígena e no tempo de Fawcett foi tão intenso que Grann acaba de publicar
outro sucesso passado na década de 1920, em torno de um outro grupo de índios, e que também
vai virar filme. Os direitos já foram vendidos por US$ 5 milhões para Hollywood. Agora, negocia-se
Martin Scorsese como diretor e Leonardo DiCaprio no elenco.

“Killers of the flower moon: the Osage murders and the birth of the FBI” narra um dos momentos
mais obscuros e terríveis da História dos Estados Unidos: o destino dos Osage a partir do
momento em que se descobriu petróleo em sua reserva indígena, em Oklahoma.

Num período curtíssimo de tempo, os Osage saíram da pobreza para se tornar uma das populações
mais ricas per capita do planeta. A polícia local, corrupta e incompetente, se provou inepta, para
dizer o mínimo, quando os índios começaram a morrer, envenenados ou vítimas de balas mais ou
menos perdidas. E é aí que o FBI, com suas contradições, precisou entrar em cena para estancar o
massacre.

Elogiado pela crítica local, o novo livro-reportagem, que chegará ao Brasil pela Companhia das
Letras, acaba contando as origens da agência justamente porque sua primeira ação de peso, com J.
Edgar Hoover à frente, foi a investigação desses mais de 60 assassinatos, de 1921 a 1925.

— Assim como seguir os passos de Fawcett me fez compreender melhor o tamanho do Brasil, em
todos os sentidos, a violência e a ganância do terror aos Osage me fizeram refletir sobre a fundação
dos EUA e de sua mentalidade de fronteira — compara o escritor, num café no Upper East Side.

Coincidentemente, o livro saiu nos Estados Unidos quando o presidente Donald Trump demitiu o
diretor do FBI James Comey, em meio a investigações do chamado Russiangate, sobre a ingerência
russa nas eleições presidenciais de 2016.

— Nossas estruturas democráticas são frágeis. Há menos de um século tínhamos, no coração dos
EUA, uma população sistematicamente alvejada, sem qualquer proteção da Justiça. Fingia-se que
nada acontecia. O caminho da democracia americana, lá e agora, é o mesmo: dois passos à frente e
um atrás, às vezes o contrário — afirma.

Ao ver “Z: a cidade perdida“ no cinema, o autor conta que quase caiu da cadeira quando Charlie
Hunnan apareceu de cabelo desgrenhado, em pele e osso, no que seria o Xingu dos anos 1920:

— Ele havia se transformado no coronel Fawcett da minha imaginação. Ele foi, aliás ainda é, o
personagem mais incrível com que jamais me deparei.

O desaparecimento de Fawcett na Amazônia brasileira em 1925 virou uma das obsessões do


magnata Assis Chateaubriand, que promoveu expedições à região para tentar encontrar a tal
cidade perdida na selva e o mistério em torno do destino do coronel. Foi assim, aliás, que Antonio
Callado partiu para lá e escreveu “O esqueleto na lagoa verde”, uma das mais celebradas peças do
jornalismo literário brasileiro, explorando características e contradições do personagem e
lembrando a tentativa frustrada de se encontrar a ossada de Fawcett, com a ajuda inclusive do
sertanista Orlando Villas-Bôas.

O mito ultrapassou fronteiras com o relato minucioso de Grann, cujo trunfo maior foi o acesso aos
diários do explorador, guardados por uma de suas netas numa cidadezinha do País de Gales. O
livro chegou ao primeiro lugar da lista de mais vendidos do “New York Times”. E o filme, dirigido
por James Gray, segue em cartaz em pouquíssimas salas (como o Cine Arte UFF).

— Os dois volumes empoeirados do diário foram meu Eldorado, minha Atlântida. Lá descobri que
Fawcett levava consigo um gravador de som, informação repetida pelos índio calapalos. Estes o
haviam advertido de que não se embrenhasse por uma trilha usada comumente por um grupo mais
agressivo de índigenas pouco antes de seu desaparecimento — diz Grann, que escreveu o livro em
2008.

Aos 57 anos, Fawcett era um Indiana Jones da vida real. Olhos azuis, longa barba, ele foi, de
acordo com o próprio Harrison Ford, uma das inspirações para a invenção do personagem icônico
da Hollywood dos anos 1980. Uma celebridade em seu tempo, ajudou a Royal Geographical
Society (RGS) a mapear boa parte do planeta, inclusive os “espaços vazios” da América do Sul, em
sua expedição de 1906. Duas décadas depois, sua viagem derradeira ao Mato Grosso, em busca dos
vestígios da “última grande civilização perdida”, foi saudada pela imprensa mundial como “a mais
espetacular aventura jamais realizada em nossos tempos”.

— Fawcett era um personagem contraditório, seus escritos e ações estavam repletos dos
preconceitos e da mentalidade racista da época, mas ao mesmo tempo ele desenvolveu um real
respeito pela cultura e pelo conhecimento das tribos indígenas com que entrou em contato no
Brasil — pondera Grann.

Para o autor, a comoção mundial em torno do destino do coronel — em 1927, após dois anos sem
contato, a RGS o declarou “oficialmente desaparecido”, juntamente com seus companheiros de
expedição, o filho mais velho, Jack, e um amigo deste, Raleigh.

— E o herói inglês vira um fantasma da Amazônia. Há relatos posteriores de um índio de olhos


azuis, mas as ossadas, examinadas na USP, não eram dele. Ele cresceu no auge do Império
Britânico e cheguei a ele ao escrever um texto para a “New Yorker” sobre um de seus amigos e fãs
mais ardorosos, Arthur Conan Doyle. O criador do Sherlock se inspirou em Fawcett para criar o
protagonista de seu clássico “O mundo perdido” ( 1912 ) e vi que aquela criatura valia um artigo
próprio, e, mais tarde, tive certeza, um livro.

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