Você está na página 1de 16

LUMEN ET VIRTUS

REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

OS CAMINHOS DO CINEMA REVOLUCIONÁRIO

Profª Drª Ana Lígia Leite e Aguiari

RESUMO – O trabalho tem como ABSTRACT - This piece aims to analyse


objetivo analisar a trajetória do cineasta brazilian filmmaker Glauber Rocha’s
brasileiro Glauber Rocha, priorizando a trajectory, with an emphasis on the
leitura dos episódios polêmicos nos quais se controversial events he involved himself in
envolveu na década de 1970. Ao optar por during the 1970’s. On choosing this
um exercício constante de autocrítica que se constant exercise in the “autocriticism” that
dá na arena pública, o cineasta redireciona takes place at the public arena, the
sua produção cinematográfica, assumindo filmmaker redirects his production while
posições estéticas/políticas que o assuming aesthetical/political positions that
distanciarão da valorização de sua obra pela will eventually distance him from the
crítica. validation of his work by the critics.

PALAVRAS-CHAVE - Glauber Rocha; KEYWORDS - Glauber Rocha; Biography;


Biografia; Crítica. Criticism.

Em Vento do leste (1970), película de representação do encontro com Glauber,


Godard, o diretor francês propõe ao seu a cena é honesta ao mostrar seus limites.
Isabel Pons [que interpreta a mulher que
colega Glauber Rocha um conchavo de fará uma pergunta a Glauber: ‘Me
ideias para se destruir o cinema e, assim, desculpe, camarada, atrapalhá-lo em sua
construir um cinema revolucionário. Por luta de classes muito importante, mas
seu turno, Glauber desejava exatamente o [qual é] a direção do cinema político?’] e
Glauber não chegam a se olhar nos olhos,
contrário: construir o cinema na estética, na não chegam a trocar olhares nem a
técnica, na linguagem, já que se entendia que estabelecer um verdadeiro diálogo. O
nas nações subdesenvolvidas tudo ainda deles é um diálogo de surdos, cada um
estava por se fazer. Mas, em Vento do falando sua língua (ela o francês, ele o
português) e tendendo a ignorar o outro.
leste, o cineasta baiano encena parte desta Isabel só retém da fala de Glauber a
querela, e o seu gesto extrapola os limites da indicação dos dois caminhos, mas não se
ficção. Vejamos, no detalhe, como acontece interessa pela sua visão geopolítica, pelo
a presença glauberiana no filme de Godard: que ele diz acerca do cinema do Terceiro
Mundo. E Glauber por seu turno
92

praticamente a ignora, não se dispõe a


Não seria exagero, portanto, ver no acompanhá-la em nenhum dos dois
Página

trabalho dos dois criadores uma tática e caminhos, e nem sequer em parte deles.
uma poética do encontro. [...] Enquanto
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

Desencontro dos olhares e das falas, uma instrumentalização de nossas


desatenção recíproca. [...] Mas o filme misérias por um francês burguês que tá
não é só representação do encontro dos na dele [...]. Para Godard o cinema
cineastas, ele é também, e ao mesmo acabou e, para a gente, o cinema está
tempo, uma parte integrante, uma peça- começando, [...] depois me pede para
chave desse encontro. E, enquanto tal, ajudá-lo a destruir o cinema, aí eu digo
poderia ter desenvolvido aquele diálogo para ele que estou em outra, que meu
na sua própria fatura, explicitando as negócio é construir o cinema no Brasil e
divergências, formulando as críticas de no Terceiro Mundo, então ele me pede
Godard [...] à posição de Glauber e para fazer um papel no filme e depois me
integrando as de Glauber à posição de pergunta se eu quero filmar um plano do
Godard [...]. Seus autores preferem não Vento do Leste e eu que sou malandro
fazê-lo, optando por uma encenação low e tenho desconfiômetro digo para ele
profile (ARAÚJO, 2009, s/p). maneirar pois estou ali apenas na paquera
e não sou gaiato para me meter no
O cineasta brasileiro, portanto, apontava folclore coletivo dos gigolôs do
inesquecível Maio francês. [...] Godard é
para outra direção, para o cinema a própria crise ambulante, Godard é o
revolucionário, para a criação de um nosso Fernando Ezequiel Solanas, em
mercado consumidor do produto latino- Buenos Aires. A verdade, porém,
americano, elevando a um grau absurdo, em queiram ou não queiram muitos dos
ilustres intelectuais patrícios, é que o
seu último filme, A idade da terra, a cinema europeu e americano entrou por
proposta de a revolução ser mesmo uma um beco sem saída e só dá pé fazer
estética, e, como ele diria, “o filme é um cinema nos países do Terceiro Mundo. É
sonho revolucionário [...]. É um filme de justamente aí que a crise, Godard (e etc.)
tem muito a ver com a gente. Em Vento
imagens e de som. Não é um filme de fala, do Leste me pergunta quais são os
porque isso é teatro, não é cinema” caminhos do cinema e ele mesmo me
(ANABAZYS, 2007, aos 18’28’’). Glauber indica a resposta:
oferece, assim, seu “biscoito fino às Por ali é o cinema desconhecido da
aventura estética e da especulação
multidões” — para retomar a máxima de filosófica (e etc.); por aqui é o cinema do
Oswald de Andrade —, depois de lhes ter Terceiro Mundo, um cinema perigoso,
oferecido seu cinema épico de uma forma divino, maravilhoso e aqui as questões
um pouco mais linear (vide produções são práticas, questão de produção, de
mercado e, no caso brasileiro, formar
como Barravento, Deus e o Diabo na trezentos cineastas para fazer seiscentos
Terra do Sol e Terra em transe). Acerca filmes por ano, para alimentar um dos
da película godardiana, em que teve uma maiores mercados do mundo (ROCHA,
participação como ator, o criador baiano 2006, p. 316-319).
teria dito:
Supostamente, é a partir desse encontro
com Godard que se tem uma espécie de rito
Eu estou ficando contra o filme porque
somos a parte mais fraca; esse filme é de passagem na carreira artística de Glauber
Rocha.
93
Página
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

Fotografia 1
Glauber e Godard durante as filmagens de Vento do Leste, autoria desconhecida, 1970

A biografia do cineasta aponta, contudo, padrão tradicional-linear –, que exige do


que ele havia recebido propostas, antes de espectador maior atenção à temática do
seu encontro com o cineasta francês, para enredo, ao mesmo tempo em que lhe impõe
rodar um filme com total liberdade criativa dificuldades na compreensão do que cada
(Cabeças cortadas,1 rodado na Espanha e personagem representa realmente,
lançado em 1970) e havia sido convidado, exercitando o princípio da descolonização
ainda, por seu produtor francês Claude- do olhar do espectador. A proposta dos
Antoine para rodar um filme na África (O filmes teria sido feita em 1969, pouco antes
leão de sete cabeças,2 também de 1970). de sua participação em Vento do leste, mas
As duas películas consistiam na estes ainda não haviam sido realizados, e
radicalização do cinema glauberiano, que nos parece difícil, diante de tantos espaços
elevaria exponencialmente sua predileção em branco, precisar em que medida esse
por uma narrativa quebrada – fora do caminho, de tão brusca ruptura pela qual

1 "É um filme contra as ditaduras, é o funeral 2 "É uma história geral do colonialismo euro-
das ditaduras. Trato de um personagem que americano na África, uma epopeia africana,
seria o encontro apocalíptico de Perón com preocupada em pensar do ponto de vista do
Franco, nas ruínas da civilização latino- homem do Terceiro Mundo, por oposição aos
americana. Filmei nas pedras de Cadaqués, onde filmes comerciais que tratam de safáris, ao tipo
Buñuel filmou L'Age d'Or. A Espanha é a de concepção dos brancos em relação àquele
Bahia da Europa. Cabezas Cortadas desmonta continente. É uma teoria sobre a possibilidade
94

todos os esquemas dramáticos do teatro e do de um cinema político. Escolhi a África porque


cinema. O cinema do futuro será som, luz, me parece um continente com problemas
Página

delírio, aquela linha interrompida desde L'Age semelhantes aos do Brasil" (ROCHA, s/d).
d'Or" (ROCHA, 1980).
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

passará sua linguagem, já se apontava em responsável por fazer com que qualquer
Terra em transe, ou mesmo afirmar que a pessoa com uma câmera se tornasse, a partir
proposta fílmica de Glauber é redirecionada de então, um continuador desse
a partir do encontro com o diretor de autodidatismo e do descobrimento das
Acossado. Assim, o cineasta brasileiro opta alternativas propostas pelo precário:
por eviscerar a complexificação de uma
linguagem na qual acreditava, extrapolando Foi na década de 1980 que aconteceu a
a câmera na mão e a ideia na cabeça, opção popularização da tecnologia do
videoteipe doméstico. Foi, também, uma
que abrirá o campo para a instalação de uma revolução no modo de se veicular bens
linguagem na qual o contemporâneo nadará culturais e não somente a produção
de braçada, quando o audiovisual e o acesso cinematográfica. O começo, que se deu
a aparelhos que filmam se torna uma na década de 1970, é marcado pelas
pesquisas que levaram à criação do VHS
presença fácil em mãos que tudo desejam (Video Home System) com o objetivo de
capturar. O autodidatismo em Glauber levar, para dentro do núcleo familiar e da
expande-se no presente, não por conta das sociedade, um tipo de aparelho que
facetas que ele atribuía ao cinema do pudesse gravar e exibir filmes, programas
de TV ou produções já realizadas
terceiro mundo – pobreza e falta de exclusivamente para esse veículo. Com
oportunidade –, simplesmente, mas por isso aconteceu uma verdadeira
contingência, pois o precário (em toda a sua democratização nas informações
amplitude) como potência e capital, atrelado audiovisuais [...]. No início dos anos
1990, já não é surpresa reconhecer uma
ao comportamento autodidata reverbera a geração para a qual o computador deixou
produção ilimitada de novos saberes. 3 Na de ser uma ferramenta estranha, e se
década em que Glauber mostrava o tornou parte de seu cotidiano (LEONE,
acúmulo de seu sonho revolucionário em A 2005, p. 98-99).
idade da terra, acontecia a democratização
Assim, indo nesta trilha instaurada
do acesso aos aparatos tecnológicos,
principalmente por Di (1977),4 ao lado das

3 Acerca dos espaços criados pelos “novos” rede, conectado com outros artistas ou outras
formatos de arte, Ivana Bentes diz: “A Pop Art máquinas, o autor assiste como espectador,
significou uma mudança de atitude diante da observador, ao nascimento da sua própria obra.
cultura técnica: dissolveu a ideia de ‘estilo’ e No campo da arte, a globalização eletrônica
fomentou não um desencorajamento da estética pode significar novos territórios, novos
pela descoberta dos ready-mades, mas a sua nômades, novos agenciamentos na produção
celebração numa arte transitória, popular, serial, estética. Daí não ser difícil entender por que na
de baixo custo, rendosa, espirituosa. A Pop Art, Internet o que mais compartilhamos é a sua
a contracultura, conhecem um verdadeiro própria celebração, celebração de um povo, de
renascimento com as redes eletrônicas. A muitos povos que inventam a cada dia novos
cybercultura disseminada na Internet vem territórios e estão mobilizados num work in
desterritorializando a arte de forma radical. A progress coletivo e pleno de virtualidades”
95

arte em rede, a possibilidade de se produzirem (BENTES, 2019, s/p).


obras criadas e compartilhadas por diferentes 4 Glauber teria dito que seu filme Di era um
Página

artistas, dissolve velhas oposições exercício da montagem nuclear, em que não


individual/coletivo, local/global. Criando em havia a relação imagem com o som em
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

películas O leão de sete cabeças (1970), “desenquadramento”, desacostumar o olho


Cabeças cortadas (1970), Câncer (1972), e revisar as possibilidades abertas por um
Claro (1975), Jorjamado no cinema cinema “sem filtros”. Jacques Aumont
(1979), o último filme de Glauber, A idade assim designaria o termo pensado por
da terra, fecharia o ciclo e marcaria, em Bonitzer:
1980, o nascimento prematuro de um filho
único, mas multifacetado e desdobrável: o “Desenquadramento” não é exatamente
cinema (também brasileiro) descentralização [...]; assim se caracteriza
por três traços: primeiro, o
contemporâneo. 5
desenquadramento suscita um vazio no
Nessas produções, começou-se a centro da imagem; segundo, ele re-marca
elaborar a descontinuidade como matriz [sic] o quadro como borda da imagem;
para aquilo que Glauber viria a chamar de terceiro, enfim, ele só pode se resolver na
sequencialidade, e, no cinema, tende
montagem nuclear, uma montagem em que, afetivamente a ela. [...] O
trabalhando com signos cognoscíveis (o desenquadramento, em suma, seria “o
trabalhador, o explorador, o colonizador, o contrário” da centralização: ele definiria
colonizado), o diretor não firmará a o estilo não-clássico [sic] por excelência,
e, por que não, um cinema menos
dualidade polarizada para ser apanhado da ilusão diegética
compreendida, mas recorrerá à figura do (AUMONT, 2004, p. 129-130).
espectador para desengessar falas e
conteúdos em um cinema cada vez mais As supostas falhas e excessos estarão
alegórico e fracionado. Nenhuma pose disponibilizados aos olhos dos críticos-
encenada valerá mais que a emoção a ser espectadores por integrarem a edição que
vivida pelo espectador, ele também um inclui todas as partes do processo. 6 Esses
criador diante de um filme nesses moldes, efeitos, somatizados, excitariam o corpo de
ao se deixar violentar pelo exercício quem vê “com olhos livres”, e aí estaria a
(aparentemente simples) de sentar-se diante ideia inicial de Glauber e que será refletida
de outras plataformas de saber, aceitar o ainda por Peter Greenaway, de um dia

sincronia. Cf. Anabazys, de Paloma Rocha e só foram melhoradas ao longo dos anos por
Joel Pizzini. E ainda: “O Di Cavalcanti foi um uma série de cineastas que escaparam aos clichês
filme que me fez sofrer muito, inclusive porque e estereótipos” (LEONE, 2005, p. 162). Para
foi um sucesso sobre a morte de um amigo e Leone, a diferença não está no plano da
isso é uma dialética violenta” (ROCHA apud estrutura, mas da semântica que toda montagem
REZENDE, 1986, p. 214). carrega.
5 Essa peculiaridade de montagem, a 6 Regina Mota escrevera que os remanescentes

“montagem nuclear”, não é, de acordo com as dessa linguagem, em seu estudo sobre o
reflexões de Leone, sobre as diferentes formas Abertura, culminaram em programas
de montagem, o: “‘reinventar’ a montagem. Ela posteriores na televisão, como foi o caso de
já foi inventada por Griffith e Eisenstein. O Mocidade Independente, na TV
96

resto é decorrência, isto é, variações associativas Bandeirantes, de Tadeu Jungle, “que acabou
que permitem novas formas de contar e narrar. ensinando à equipe técnica da emissora como se
Página

Estruturalmente as regras que regem a criava a partir do precário, transformando


montagem, a continuidade visual e a narrativa defeito em efeito” (MOTA, 2001, p. 161).
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

vivenciarmos as potencialidades do cinema o cinema acabou e, para a gente, o cinema


liberto da narrativa clássica ou mesmo está começando; no Brasil, um câmera
moderna, de fazer um cinema de 360 graus, como Dib Lutfi faz um plano longo na mão
de excitarmos ainda mais os sentidos e todo mundo vibra; se o Godard visse isso
humanos para que o “efeito cinema” não ia cair chorando no chão...” (ROCHA,
abandone os espectadores com o simples 2006, p. 317). O “fim” do movimento do
acender das luzes: Cinema Novo, logo no início da década de
1970, estimula ainda mais em Glauber, que
A gente nunca sabe como é o filho antes mantém um olho na missa e o outro no
de nascer, só isso. O cinema é uma padre, a fé na velha convicção de buscar por
materialização audiovisual de ideias e o
cineasta é um pintor de sons. Eu, como conta própria um produto nacional, mesmo
artista, não me interesso pela realidade com tudo de estrangeiro que ele fizesse
imediata. A arte é a materialização de ecoar. Em Carta enviada a Michel Ciment,
impulsos do inconsciente (ROCHA apud em 1970, ele escreveria:
REZENDE, 1986, p. 215).

Perdemos todas as esperanças, a situação


Como em sua crítica, Glauber buscará, está fechada, o Cinema Novo acabou,
em suas projeções cinematográficas, um somos vítimas das repressões, de um lado
percurso que destoe de suas influências. O e das intrigas entre os exilados em Paris.
caminho do cinema político, voltando à Os exilados acham indigno que eu ainda
esteja livre, mas não sou culpado de estar
pergunta feita por Godard, era, uma vez que livre. Nesse momento sou vítima do meu
se optasse pela estrada do cinema do “prestígio”, sobretudo por causa de ti e
Terceiro Mundo, um olho lá e outro cá. de outros amigos, você entendeu? E as
pessoas não me perdoam. Outro dia um
amigo que está na cadeia me disse: neste
Para Glauber, Godard era uma espécie de
país você vai pagar pelo resto da vida o
horizonte sempre presente, mesmo que
preço de ter feito quatro filmes de
inatingível. Ele estava atento a tudo o que
sucesso antes dos 30 anos. Por isso,
Godard inventava, seus escândalos
talvez, não quero mais fazer filmes de
audiovisuais. Mas estava cônscio da
sucesso, estou completamente
distância que separava “o bárbaro do
neurotizado por essa situação, entre uma
civilizado” e da necessidade do exercício
direita fascista e uma esquerda fascista
antropofágico que garantia digerir as
(ROCHA apud BENTES, 1997, p. 372).
novidades com temperos e realidades
próprias. Mas a lição que Godard
ministrava (prenunciada no cinema de Sem populismos estéticos, o cineasta
Rossellini) colocava um ponto final nas baiano começou a embaraçar ainda mais seu
ilusões modernistas, que atribuíram às “plano cinematográfico”, talvez porque o
artes poder e força de transformação
(MOTA, 2001, p. 165). fim das “ilusões modernistas, que atribuíam
às artes poder e força de transformação”,
Nossa tarefa é saber do antes e do como disse Regina Mota, tivesse lançado
Glauber a uma decisão que se traduz em um
97

depois, mas principalmente de nós. Essa


era/é a falha do colonizador — ele sabe paradoxo: continuar construindo esse
Página

pouco sobre quem coloniza: “Para Godard cinema que o Terceiro Mundo possuía em
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

partes; se a revolução artística gerava uma camponês, depois ele torna-se o


resultante estéril, era hora de incitar as camponês. O cinema é a arte do
concreto. A matéria mesma com a qual
ações, principalmente, dos criadores. Logo, ele trabalha se concretiza. Por um longo
Glauber passou a produzir cada vez mais processo pode-se chegar à abstração, mas
para si, sem levar em consideração o desejo não procurá-la diretamente. Sinto que
do espectador, 7 já que, em se tratando de intelectualmente a África o apaixona, que
você a compreende, mas que lá, no
criação, ele dizia não ser possível se terreno, você não a sentiu. [...]
comportar como quem simplesmente Francamente, Glauber, não creio que
assiste a um espetáculo. Todas essas Othon pertença ao Terceiro Mundo.
películas dos anos 1970 realizadas por Não acho que o filme de Straub seria
compreendido e apreciado por
Glauber questionam, pois, velhos formatos camponeses do nordeste como Straub
de utilização do cinema como veículo diz nos Cahiers. Acho que esse tipo de
narrativo e preparam ou percorrem, juntas, provocação deve parar. A busca de um
rumos tão espicaçados quanto politizados. cinema político não deve ser feita na
confusão e no paradoxo. [...]
As novas formas de encadeamento da Acho que há na Europa um clima
narrativa, e mesmo dos textos críticos intelectual muito malsão, acho que,
colocados em cena, traziam uma mensagem, quando um cineasta tem, como você,
como se dissessem que nós conhecíamos inteligência, sensibilidade [...], toda
dificuldade é em seguida continuar ele
em excesso nossos colonizadores, e, talvez, mesmo se aprofundando na sua
tenha sido isso que nos tenha tornado tão personalidade, seu estilo, sem esclerosar,
potentes ao longo dos anos, quando mas sem também querer mudar a todo
resolvemos encarar a nossa própria cultura custo. É preciso ser você mesmo, porque
isso vale a pena para nós todos que o
e a nossa peculiaridade nacional: admiramos [...]
começamos a saber do que muito pouca Acho que Cabeças cortadas e O leão
gente sabia. de 7 cabeças são filmes superiores a
Partner [filme de 1968, de Bernardo
Bertolucci]. Sua personalidade aparece
O pêndulo louco engrandecida e as preocupações que você
mostra se juntam às dos seus outros
Acho a influência de Godard sobre você filmes. Penso também que estes filmes
nefasta, pois acho que sua personalidade pertencem a sua vida, a uma parte de sua
é grande e que as qualidades de Godard vida, um pouco à margem talvez de sua
se acham no nível intimista da verdadeira via? Será que me engano? Posso
observação [...], no nível da filmagem querer que não me olhe tão severamente
(improvisação, liberdade), mas não no por ter sido franco contigo? (CIMENT
nível teórico. O que é belo no seu filme apud BENTES, 1997, p. 370-371).
são os planos simples, como o último, do
homem subindo uma colina cantando, Em carta escrita em 1970, depois do
metralhadora no ombro. Acho que é
simbolismo de primeiro grau. No cinema contato com os filmes de Glauber,
é sempre perigoso. Manuel era um responsáveis por deflagrar um novo
98

7Aqui refiro-me tanto ao espectador que assiste tranquilo para o cineasta, que tem uma
Página

ao seu cinema quanto ao espectador que expectativa visceral de ser compreendido pelo
Glauber é. Todavia, este dilema não será seu público e crítica.
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

momento em sua carreira, o crítico francês período de imenso hiato, o mesmo hiato
Michel Ciment reflete acerca do que habitou os comentários ao redor dos
desconforto causado pelas películas já neste posicionamentos políticos de Glauber
primeiro momento de distorção de durante toda a década de 1970 e início de
linguagem, interrogando a ruptura mal 1980. Anos mais tarde, referindo-se ao filme
resolvida que partia do alegórico de Terra A idade da terra, ele se queixaria dos
em transe para abstrações deslocadas em permanentes ataques à sua estética por
Cabeças cortadas e O leão de 7 cabeças. conta de sua visão política e diria que “os
Ciment vê essa distorção como uma falha críticos estão demonstrando incapacidade
na opção do cineasta brasileiro, falha na para analisar a revolução linguística, visual e
comunicação de seus filmes e no que os sonora do filme” (ROCHA apud
mesmos deixavam de alcançar ao se REZENDE, 1986, p. 216). A crítica se
afastarem do épico-didático tão bem- manifestava de modo não acatado por
sucedido em películas anteriores. 8 Mas, ao Glauber, e o público, inconformado,
contrário do que Ciment supõe, “ser você refutava um cinema de extremos. Michel
mesmo”, no caso de Glauber, era assumir a Ciment teria levantado essa pergunta no
opção pela permanente mudança. Glauber início de sua carta, ao escrever: “No Leão
responderá à carta de Michel Ciment de 7 cabeças você faz do cinema político
dizendo: “não queria mais ser o cineasta uma sucessão de slogans ou de graffites e eu
barroco, épico etc., meus últimos filmes são não sei mais a quem se endereçam seus
de ruptura comigo mesmo” (ROCHA apud filmes. Slogans muito simples para os
BENTES, 1997, p. 372). Ao longo de sua intelectuais, muito intelectuais para um
vida, saberemos, ele não comprou quaisquer público popular” (CIMENT apud
críticas que em geral se assemelhavam à fala BENTES, 1997, p. 370).
do crítico francês, demandando o retorno à O cinema político, vale lembrar, é
posição “tradicional”. Como disse certa estético também (a revolução é uma
vez,9 para camponeses e para a favela levaria estética!), tendo em vista que essa
filmes de curta duração, sem pretender que montagem nuclear era a proposta
tais grupos, em um primeiro momento, nacionalista glauberiana de construir uma
fossem expostos aos seus movimentos de via figurativa própria para a nação,
ruptura. Entretanto, isso não o impedia de reinventando modos de captura de cenas,
continuar seu cinema feito “na confusão e gestos e valores do tricontinente. Essa
no paradoxo” e elevava suas produções a marca de coerência entre um e outro (suas
um nível irreversível de irreverência política visões políticas, suas visões
e estética. Nesse sentido, tem-se na história cinematográficas) teria alargado ainda mais
do cineasta brasileiro com seu público um o hiato de Glauber com o resto do mundo,
99

8 O dragão da maldade contra o santo 9“[...] só acredito em filme didático, 10 minutos,


guerreiro é um filme nesses moldes, de 1969, 16 mm, para ser exibido no meio das favelas ou
Página

tendo sido verdadeiro sucesso de público e de dos camponeses” (ROCHA, 1997, p. 282).
crítica.
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

contudo, sem que esse ignorasse a agonia provocaram verdadeiras diatribes, a


que esta lacuna lhe causava, como se pode exemplo do ocorrido no episódio da Mostra
ver nas cartas, nos programas de TV e Internacional de Cinema de Veneza, em
mesmo nos seus artigos críticos. O cineasta 1980. O escândalo provocado pelo cineasta,
parecia, no entanto, acreditar no contrário a que tumultuava o evento e acusava o
cada proposta fílmica,10 a cada fala sobre a organizador e o júri de colaboradores
política, a cada trabalho seu, e essa escolha fascistas, leva à retirada de A idade da terra
por uma autocrítica permanente era, ainda, do Festival de Cinema Ibérico e Latino-
um jeito paradoxal de manter um diálogo Americano de Biarritz.11 O cineasta não quis
aberto com seus espectadores. dar a seu público a mesma chance que daria
aos camponeses: apresentou sua proposta e,
Eu aceito qualquer crítica que os caras diante da recusa, não fez concessões. Tendo
façam ao meu filme. Você pode anunciado na Eztetyka do sonho a
esculhambar e dizer que é malfeito, [...]
que eu sou um babaca, que a minha liberdade incondicional do artista, parece ter
ideologia tá furada e o caralho, mas as contado com a vontade do público de se
imagens do povo lá são imagens esbaldar em aventuras alheias de criação, e a
verdadeiras e não são idealistas” não adesão deste ao seu argumento ocorre
(ROCHA apud ANABAZYS, 2007, aos
9’58’’). ainda hoje: o público, talvez, também
continue não indo ao encontro da ruptura
Onde foi, então, que errou o Glauber, glauberiana e até mesmo do seu cinema
aparentemente, com tão boas intenções mais linear, sendo preciso um estudo mais
acerca da construção do cinema nacional? detalhado sobre essa recepção para se
Ele subestimou o peso dos costumes e compreender a distância estabelecida entre
parece ter errado em acreditar na aceitação ambos.12
imediata ao seu trabalho. E não conseguiu O que pode ter mudado, dos anos 1970
suportar o peso da crítica e do público da para cá, no que diz respeito à aceitação
sua contemporaneidade, público que sobre a obra glauberiana, foram as
começou a boicotar a sua performance, possibilidades de escuta. A função do
taxadas como inconveniências que crítico, enquanto um intelectual que

10O filme Di, rodado em 1977, foi o único a ter francês Jean Rouch (cineasta que admirava) de
algum respaldo crítico — prêmio especial do ‘colonizador’ e ‘agente de Quai d’Orsay’, o
júri no festival de Cannes — antes d’A idade da escândalo acontece na sede do festival.”
terra, de 1980, filme não bem aceito nem pelo (BENTES, 1997, p. 724-725).
público nem pela crítica, apesar de intervirem à 12 O programa Abertura, no entanto, foi um

época, em defesa do cineasta brasileiro, o crítico sucesso de público. Lembramos que não era
Marcorelles, o produtor Renzo Rossellini e o feito por Glauber apenas. Filmes como Deus e
cineasta Michelangelo Antonioni, entre muito o Diabo na terra do sol, Terra em transe e O
100

poucos outros que se manifestariam. dragão da maldade contra o santo guerreiro


11 Cf. a obra de Ivana Bentes, Cartas ao tiveram, à época, grande sucesso de público e de
mundo, e mais outro episódio: “Em setembro, crítica, apesar de Terra em Transe ter passado
Página

Glauber protesta por não ter sido convidado por todo um forte julgamento em relação aos
para o Festival de Brasília. Acusando o cineasta paradoxos que apresentava.
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

eviscera os olhares para alguma questão, se na atualidade, lidas e reinterpretadas pelo


outrora foi a de saber o que ele deve saber, público e pela crítica, de forma a permitir a
a posteriori, será desvendar o que esse saber experimentação daquele olhar
recalca. 13 Reavaliada hoje pela crítica anteriormente ignorado, pois muito daquilo
especializada, a vertigem de Glauber na que se via como imprudência e
virada para os anos 1980 mostra não apenas extravagância pode ser considerado como
suas perspectivas no tocante ao excitante modo de visão que propunha
“subdesenvolvimento” nos trópicos, não meditação plena sobre o presente e o futuro
somente sua aventura cinematográfica do país. Na descoberta de tudo aquilo que o
enquanto artifício de guerrilha, mas conhecimento recalca, o trabalho de uma
confirma algumas hipóteses seguramente parte da crítica reprocessou, através dos
afirmadas por Glauber e que foram lidas anos, sua função de “julgadora” de obras,
pelo senso-comum da época como para escutar o que elas teriam a dizer e para
esquizofrenia, traição, dependência de verificar como o diziam (Cf. FOUCAULT,
drogas, dentre outras rotulações. Algumas 1979).
das aparentes loucuras apresentadas na
amplitude da obra glauberiana podem ser,

101

Imagem 1
Página

13Ideias tributárias da reflexão de Silviano


Santiago, em Nas malhas da letra (1989).
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

Cartaz em alemão de O leão de sete cabeças. Autoria desconhecida/ Divulgação, 1970

Fotografia 2
Glauber na redação do Correio Braziliense. Autor: Arquivo CB/DA Press, 1977

O discurso visual de Glauber Rocha tem colocar em cena com um aparato


passado, desde então, por constantes enorme”, 15 e essa herança é possibilitada
reavaliações. O fragmento, a ruína, o (embora haja muito investimento
desencontro de planos, a visão retalhada no tecnológico para facilitar os caminhos do
vídeo e nas artes em geral, o aproveitamento mercado consumidor) pela iniciativa
das imagens de câmeras de celulares e de nouvellevaguista e, posteriormente,
vigilância, o processo de gravação e captura, cinemanovista, de, novamente, privilegiar
enfim, estes e tantos outros recursos são cenários naturais, utilizar uma equipe “leve”
absorvidos pelas obras há algum tempo e de pessoas, câmeras etc. Claro, apenas uma
tornam-se habituais para os espectadores.14 vertente do cinema opta por esse tipo de
O olho acostumou-se a uma mirada cinematografia.
videoteipada, sem abrir mão do olhar Os planos desencontrados do cinema de
cinematográfico, da atmosfera onírica Glauber, que Regina Mota rastreia no
garantida pelos negativos pintados à mão cinema de Rossellini para visualizar a
por nossos primeiros cineastas mundiais. A eclosão dessa influência neorrealista no
digitalização do cinema e da TV retira “um cineasta brasileiro, “traduzem desencontros
constrangimento do criador, de ter de se humanos e sociais e, quando os encontros
102

14“Rocha, de uma maneira brilhante, se adianta, no Brasil e do mundo incorporassem essas


como Jean-Christophe Averty o faz em seu inovações à sua prática” (FERLA, 2005, p. 162).
momento na França, e trabalha com questões 15 Ismail Xavier, em 20 de agosto de 2009, em
Página

inerentes aos usos da imagem eletrônica, muito palestra proferida na UFRJ, no seminário
antes que os pioneiros do vídeo independente temático Retornos do Real.
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

acontecem, eles se dão numa outra comunicar, ainda que implorasse a


sequência, diferente da esperada pela lógica interlocução. Isso explica certo desarranjo
do filme ou da vida” (MOTA, 2001, p. 24). com o qual se depara o simples
Tal desencontro, das claquetes para a vida e pronunciamento do nome Glauber Rocha.
vice-versa, ilustra o projeto de Glauber e seu Contudo, se a crítica e os espectadores mais
vaticínio. especializados resolveram retornar ao
O escritor brasileiro João Gilberto Noll cinema glauberiano é porque acreditam na
disse certa vez em uma entrevista algo que, reversão do conceito de narrativa, em que o
analogamente, nos serve neste contexto de ruído, o deslocamento, os planos em outro
discussão: formato devam ser imbricados ao conceito,
que, por sua vez, não se configura como
Eu acho que a tragédia, no sentido grego antinarrativa, mas uma narrativa dos
da palavra, com Édipo, com Antígona,
mostra muito agudamente o que é essa extraordinários (im)possíveis.
fragmentação de alguém que cometeu Glauber praticou essa reversão em todas
um ato transgressivo e que, em termos de as instâncias às quais teve acesso.
polis, em termos de comunidade, vai ter Mencionamos seus filmes, seu programa de
sua resposta, ter seu troco por ter feito
isso, que é a evasão da familiaridade da TV, o Abertura, mas em seu romance
polis. E a grandeza da tragédia grega está Riverão Sussuarana essa reversão ganha
em que o indivíduo está sabendo, também pleno corpo. Ele interrompe
presume qual será o seu fim e, no bruscamente sua narrativa para agregar a
entanto, fabrica a transgressão. A grande
tragédia, a meu ver, é a impossibilidade história da morte de sua irmã Anecy, como
dessa fusão do eu com o mundo. O se pode ver:
grande personagem trágico grego é
aquele que é vomitado para fora desse “Gritou a Vaca Morum Bi!
corpo maior. Eu tenho uma visão trágica — Nois aí ou com Karter Krtera Brachosus —
nos meus livros, eu acho, são sujeitos vamos morrer aqui nos protegem pro corte e os
muito à parte, esquizoides, personagens Boius Bonitituoustsps os Bois Los Toros eles
que quando falam é para expressar, não ficam nos fudendo até que os Sacos Empedrem e
para comunicar (NOLL, 2005, p. 27). depois morrem ocê ja viu um sujeito quebrar os
ovos de Boi com Marrão?
O trecho de Noll fala dos personagens A morte de minha irmã Anecy Rocha, no
criados pelo escritor, mas a lembrança de Marçabril carioca de 1977, arrebentou a
estrutura de Riverão Sussuarana. Ela
Glauber foi inevitável nesta leitura, pois ele estava aqui na copa numa tarde
mesmo se autoprontificou muitas vezes a domingueira e naquele dia de manhã a
ser lido como personagem trágico, encontrei na Rua Voluntários da Pátria,
incompreendido, e as mensagens sobre o Botafogo, com o filho adotivo vindo do
apartamento do marido para tomar café
preço da transgressão incutida no texto de na casa de minha mãe, Rua das Palmeiras,
Noll manifestam a trajetória do cineasta — nos cumprimentamos afetuosos sem
vindo de uma época cujas transgressões beijos e abraços, olhei as revistas e jornais
103

estavam todas em mode on — flutuando em na Banca e ela me disse para não tomar o
Elevador da Frente, que estava quebrado,
seus projetos político-visuais. Era como se
Página

e sim o dos fundos, em caso de subir para


ele falasse mais para se expressar, e não para falar com o marido que dormia [Walter
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

Lima Jr.]. Almoçamos juntos e eu disse a narra a morte de Anecy e sua busca
Necy, diante de minha mãe e do marido, alucinada por pistas que esclarecessem
depois de ouvir suas queixas: — Mude de melhor a história, retorna aos episódios
vida senão você morre — e ela sorriu interrompidos, falando de Eldorado
secretamente fascinada. Não passamos como a lendária cidade do futuro
um dia feliz, houve rusgas contornadas, democrático mundial, dentre outros
ela expulsa do meu espaço pela presença fatos, para assim fechar essa parte: “—
do marido, às cinco da tarde recebo a N...ã...o tenho projeto revolucionário...
visita de Sonia Coutinho, Sonia e Necy se MEU MODELO É VELHO;;;: - - - -
cumprimentam, saímos para uma volta rinchando cavalo veio foi resmungar o
de carro, [...] e quando Necy morria no COMANDANTE que eram velhos
fundo do poço do Elevador da frente, o tempos se acabando e a mesma inflação.
mesmo que ela me advertira para não [...] — O BRAZYL SEM BOMBA
subir, eu contava a Sonia que minha outra ATOMYKA PERDERÁ QUALQUER
irmã, Ana Marcelina, morrera de GUERRA!: não quero guerra mas
leucemia mieloide aguda em 1952 e que precisamos nos defender... — publiquei
meu analista Ivan Ribeiro descobrira no Correyo Brazylienze as contradições
minha culpa de sobrevivente [...] [sic].” revolucionárias [sic]” (ROCHA, 1977, p.
Passadas quase 22 páginas em que ele 214-237).16

Fotografia 3
Glauber procurando locações em Barcelona para seu filme Cabeças cortadas, autoria desconhecida/
Imagem do acervo do Tempo Glauber, 1970
104
Página

Foi respeitada toda a grafia de Glauber


16

Rocha nos trechos citados.


LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

Fotografia 4
Glauber e sua irmã Anecy em seu apartamento em Ipanema, autoria desconhecida/ Imagem do acervo do
Tempo Glauber, 1964

A mente de um indivíduo atormentado, com os personagens de Noll, talvez


de um sujeito que sofre de amnésia, de uma desejem, lá no íntimo, estabelecer diferentes
pessoa que (não) colecionou o risco da maneiras de diálogo com o mundo,
memória ou vive em transe graças à lisergia possibilidades muitas vezes soterradas pelas
ou a uma condição fisiológica só pode ser formas de comunicação mais tradicionais.
compreendida a partir de outras rotas
narrativas cuja predominância é a do Os filmes do Glauber são isso: um
“sonho”, muito mais que a da “realidade”.17 lamento, um grito, um berro. Essa a
herança que fica de Glauber, que fica de
Glauber era, sem dúvida, um outsider, e seus Glauber para nós, a herança de sua
últimos movimentos foram a luta alucinada indignação, ele foi o mais indignado de
de um homem para se expressar. Seu nós, indignado com o mundo tal qual é,
cinema e sua fala presentificavam os assim. Indignado porque, mais que nós,
também Glauber podia ver o mundo que
momentos desses pequenos frames que se podia ser, que vai ser, Glauber, que há de
organizavam para contar uma história vinda ser. [pausa] Glauber viveu entre a
de seu inconsciente. Isso não exclui esperança e o desespero, como um
totalmente o roteiro, nem a organização, pêndulo louco (RIBEIRO apud
GLAUBER, 2003, aos 9’17’’). 18
nem a disciplina. Muito pelo contrário, o
desejo era o de mostrar que todo outsider, A quem são endereçados os filmes de
todo movimento contracultural que Glauber? A qualquer um. E se presentificam
encontra sua via de expressão, como se dá
105

17E Foucault completaria sabiamente nosso 18A fala é de Darcy Ribeiro no filme de Silvio
parágrafo: “Não existe outra cura além daquela Tendler, Glauber, o filme — Labirinto do
Página

que estabelece relações novas com o meio” Brasil.


(FOUCAULT apud ERIBON, 1990, p. 82).
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

em nossa existência a cada passo em que a comunicação, nossas neuroses, nosso


narrativa tradicional das imagens derrapa e absurdo da guerra, da fome, da excitação
não é suficiente para compreendermos as das discrepâncias sociais, dentre outras
agruras do discurso oficial, do fantasma que situações infelizes. Pode ser um ruído para
habita os entrechoques da consciência, da nos fazer sentir diferenciadamente todos
ruína que compõe tão interessantemente o esses absurdos, pode ser um ruído para nos
mundo. Essa ruína, uma proximidade entre avisar simplesmente da incompletude:
a fala de Glauber Rocha e a fala dos como uma peça que falta em um jogo, mas
intelectuais e demais estudiosos do assunto, que não nos impede de jogá-lo; como as
é também um ponto de união às imagens relações sociais — do pretérito ao futuro —
fraturadas, que, ao representarem o mundo eternamente contundidas.
de hoje, realçam, pelo ruído na

106
Página
LUMEN ET VIRTUS
REVISTA INTERDISCIPLINAR
DE CULTURA E IMAGEM
VOL. X Nº 25 AGOSTO/2019
ISSN 2177-2789

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ANABAZYS. Direção: Paloma Rocha e Joel Pizzini. Brasil: Riofilme, 2007. 1 DVD (141 min.).
ARAÚJO, Mateus. Godard, Glauber e o vento do leste: alegoria de um (des)encontro.
Disponível em: http://guaciara.wordpress.com/2009/03/29/godard-glauber-e-o-vento-doleste-
alegoria-de-um-desencontro-por-mateus-araujo/. Acesso em: 19 abr. 2019.
AUMONT, Jacques. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac Naify, 2004.
BENTES, Ivana. (Org.). Glauber Rocha: cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
______. Globalização eletrônica e América Latina. Disponível em:
http://www.bocc.ubi.pt/pag/bentes-ivana-globalizacao-eletronica.pdf. Acesso em: 19 abr. 2019.
ERIBON, Didier. Michel Foucault: uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
FERLA, Jorge La. Glauber Rocha y la TV. Grumos. Buenos Aires – Rio de Janeiro, out. 2005,
Cinema, n. 04, out., 2005.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
GLAUBER, o filme – Labirinto do Brasil. Direção: Sílvio Tendler. Brasil: Caliban Produções
Cinematográficas, 2003. 1 DVD (98 min.).
LEONE, Eduardo. Reflexões sobre a montagem cinematográfica. Belo Horizonte: Ed. UFMG,
2005.
MOTA, Regina. A épica eletrônica de Glauber: um estudo sobre cinema e TV. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2001.
NOLL, João Gilberto. Entrevista com João Gilberto Noll (Entrevista de Paloma Vidal e Daniel
Barreto). Grumos, Buenos Aires – Rio de Janeiro, v. x, n. 04, p. x-y, 2005.
REZENDE, Sidney. (Org.). Ideário de Glauber Rocha. Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986.
ROCHA, Glauber. Filmografia Cabeças Cortadas. Tempo Glauber, 1980. Disponível em:
<http://www.tempoglauber.com.br/f_cabecas.html>. Acesso em: 15 jul. 2016.
______. Filmografia O leão de sete cabeças. Tempo Glauber, (s/d). Disponível em:
<http://www.tempoglauber.com.br/f_leao.html>. Acesso em: 15 jul. 2016.
______. Riverão sussuarana. Rio de Janeiro: Record, 1977.
______. O século do cinema. São Paulo: Cosac & Naify, 2006.
SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

i
Ana Lígia Leite e Aguiar é professora adjunta de Literatura Brasileira na Universidade Federal
da Bahia (Instituto de Letras), possui estágio pós-doutoral pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (2013) e é graduada em Letras pela Universidade Federal de Uberlândia (2004).
107
Página

Você também pode gostar