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45º Encontro Anual da Anpocs

GT17 – Estudos Culturais: representações, mídias e artes

O conceito de indústria da consciência na obra de Oskar Negt e Alexander Kluge:

a teoria crítica da esfera pública para além da indústria cultural

Jonas Medeiros (CEBRAP)


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Introdução

A contribuição original e específica da Teoria Crítica para as teorias da comunicação


que entrou para as histórias oficiais de ambos os campos é aquela centrada no conceito da
indústria cultural, em especial na sua versão adorniana. Isto pode ser verificado por uma breve
consulta a como conhecidos manuais de teoria da comunicação apresentam a Teoria Crítica.

Segundo Wolf (1985), a indústria cultural é um sistema constituído por filmes de


cinema, programas de rádio e revistas semanais, um poderoso “mecanismo econômico que
domina o tempo do trabalho e o tempo do lazer” marcado por mecanização, estereótipos,
repetitividade, censura prévia, orientação ao lucro, negação do pensamento, da autonomia e
da individualidade, controle psicológico, obediência irreflexiva, destruição da resistência,
manipulação, disciplinamento, subjugação e sedução do consumidor enquanto um mero objeto
por meio do divertimento. O filme sonoro (o produto que seria o mais típico da indústria
cultural), paralisaria a imaginação e impediria a atividade mental do espectador. Nesta
perspectiva, se a indústria cultural anula a individualidade, a pesquisa administrativa estaria
equivocada ao “confiar nos espectadores como fontes credíveis de conhecimentos reais acerca
dos processos comunicativos” e a teoria crítica deveria desconfiar de qualquer “informação de
primeira mão recebida dos ouvintes”, devendo “tentar compreendê-los melhor do que eles se
compreendem a si próprios” (WOLF, 1985). Mesmo com todas as profundas divergências
teórico-metodológicas entre a pesquisa administrativa e a teoria crítica, Wolf (1985) afirma,
de modo provocativo, que devido ao caráter irrelevante ou acessório do “plano da análise dos
processos comunicativos” para a teoria crítica, “todas as [suas] alusões à comunicação a
descrevem em termos muito semelhantes aos da tradicional teoria hipodérmica, isto é, da
‘teoria administrativa’ menos elaborada e menos organizada”.

Já para Mattelart e Mattelart (1997), o conceito de indústria cultural precisa ser


compreendido na relação de incompatibilidade entre pesquisa administrativa (Lazarsfeld) e
pesquisa crítica (Adorno e Horkheimer) na investigação empírica acerca do rádio, como sobre
os programas musicais no rádio, como no caso do jazz. O conceito foi criado para dar conta
da produção industrializada de bens culturais sobre a forma de mercadorias e seu efeito de
integração ao status quo. Esta expansão da racionalidade técnica leva aos fenômenos da
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alienação e da reificação, além da padronização e da massificação tendo em vista a


rentabilidade econômica e o controle social via manipulação da opinião. Uma teoria crítica da
comunicação alternativa, a de Benjamin, aparece de forma rápida e superficial como
contraponto no interior da própria teoria crítica, com uma sensibilidade ao diagnóstico do
presente de que a reprodutibilidade técnica tornou obsoleta certas formas artísticas.

Para França e Simões (2016), os teóricos frankfurtianos criticam a subjugação dos


sujeitos à racionalidade instrumental e da cultura que foi deteriorada de projeto de
emancipação e autonomia a mero instrumento de domesticação e dominação. A arte e a cultura
deixam de ter caráter utópico para se tornar, no capitalismo avançado, apenas mais um setor
de produção de mercadorias: de um projeto de resgate de singularidade, individualidade,
autonomia e reflexão à promoção de comercialização, massificação, padronização,
homogeneização, domesticação e regressão. Mais do que o lucro, a indústria cultural buscaria
criar uma audiência cativa, em situação de dependência, servidão e consentimento cego, uma
consciência unidimensional, que já não escapa das relações de dominação. Não existiriam nem
autonomia nem recepção, pois uma adesão incondicional estaria “dada de antemão”
(FRANÇA; SIMÕES, 2016, p. 129). Esta teoria crítica desenvolveria, contudo, uma análise
elitista, monolítica e maniqueísta, sem brechas ou ambiguidades, recaindo em “uma concepção
linear, transmissiva e simplificadora do processo de comunicação” (FRANÇA; SIMÕES,
2016, p. 130-131), com as autoras concordando com Wolf que a teorização frankfurtiana acaba
lembrando a teoria da agulha hipodérmica.

Benjamin, por sua vez, acabaria se afastando de Adorno e Horkheimer ao desenvolver


um “pensamento marcado pela ambivalência” (FRANÇA; SIMÕES, 2016, p. 195; meu grifo),
refletindo sobre o tema da reprodutibilidade técnica: “o papel da técnica na conformação [...]
dos processos de recepção/apreensão de uma obra” (FRANÇA; SIMÕES, 2016, p. 196),
diferenciando a obra de arte clássica ou tradicional (como na escultura e na pintura, marcada
pelo seu caráter único e autêntico (a aura enquanto relação de distância e respeito entre sujeito
e objeto), e relações novas, de consumo, e mais próximas e imediatas entre sujeito e objeto
possibilitadas pela reprodutibilidade técnica (como na fotografia e no cinema): a substituição
do valor de culto pelo valor de exibição, ou seja, do ritual pela política. A recepção de uma
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obra “na era da reprodução deixa de ser restrito e seletivo” e passa a ser coletiva, o que
“possibilita controle mútuo” (FRANÇA; SIMÕES, 2016, p. 199).

Em capítulo de manual coletivo, Rüdiger (2001) diferencia autores centrais da 1ª


geração (Adorno e Horkheimer) e autores periféricos da 1ª geração (Benjamin e Kracauer
seriam protofrankfurtianos). No primeiro caso, o conceito de indústria cultural aparece como
expressão da dialética do esclarecimento: o progresso técnico se reverte em regressão à
barbárie. Já o segundo grupo de autores interpretam alternativamente o progresso técnico
como revolucionamento da arte, repudiando a cultura burguesa e simpatizando com a arte
tecnológica, enfatizando as experiências com cinema, rádio e artes gráficas na União
Soviética. O capitalismo teria proporcionado a democratização da cultura, a desmistificação
de modos de legitimação da dominação burguesa e a socialização dos meios de consumo,
faltando ainda que as massas tomassem de modo revolucionário os meios de produção dos
bens culturais. Adorno discordou deste otimismo, pois o sistema da indústria cultural
funcionalizou tal democratização da cultura para os fins puramente capitalistas pois a
consciência humana é preenchida de forma reificada no seu tempo de lazer, além de
diagnosticar que a família, a escola e a religião estão sendo substituídas enquanto agências
socializadoras pelos meios de comunicação de massa; até mais do que manipulação, tratar-se-
ia de pré-condicionamento a sermos receptáculos dos produtos culturais. Rüdiger (2001)
termina sua apresentação abordando o jovem Habermas como o principal herdeiro da Teoria
Crítica, com sua análise da transformação da esfera pública burguesa em direção à sua
colonização pela publicidade manipulada da indústria cultural.

Dentre todos os manuais de teoria da comunicação consultados, o volume autoral de


Rüdiger (2011) é o único que cita, em seu capítulo sobre o paradigma materialista (marxista),
a contribuição de Hans Magnus Enzensberger, o qual centra sua análise na contradição entre
as relações capitalistas de produção e o desenvolvimento tecnológico das forças
comunicativas, ou seja, entre “o controle privado dos meios de produção” e a “formação da
consciência e a capacidade de conscientização pública oriunda desses meios” (RÜDIGER,
2011, p. 90). A contradição consiste mais precisamente no bloqueio ao potencial comunicativo
e de reflexão pública (frutos de socialização e cooperação), os quais são monopolizados,
controlados e cerceados de forma privada pela classe dominante (como no caso da indústria
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da consciência – que cria não bens materiais, mas produtos imateriais – e dos “carteis de
comunicação”, segundo tanto Enzensberger quanto, como será visto, Oskar Negt e Alexander
Kluge). As tecnologias da comunicação foram “trabalhadas como meios de industrialização
da consciência, obstaculizando o seu emprego realmente comunicativo” (RÜDIGER, 2011, p.
91), o que poderia levar ao questionamento das formas de dominação e das relações de
produção; a tarefa da esquerda seria, portanto, liberar o potencial comunicativo das novas
mídias que está, até o momento, bloqueado. É interessante notar que no capítulo dedicado no
manual à Escola de Frankfurt, o protagonismo é do Habermas maduro (e sua teoria da ação
comunicativa) e não da 1ª geração da Teoria Crítica (que, para o autor, considerava a
comunicação uma categoria ideológica e mistificadora).

Este paper vai buscar apresentar o conceito de indústria da consciência, tal como
desenvolvido pelos teóricos críticos alemães Oskar Negt (sociólogo e filósofo) e Alexander
Kluge (escritor, cineasta e ensaísta). Buscarei uma estratégia dupla. Inicialmente, apresento as
teorias da comunicação contra as quais Negt e Kluge estão se posicionando: o conceito de
indústria cultural em Adorno, Horkheimer e Habermas e a formulação original de
Enzensberger acerca da indústria da consciência (em diálogo direto com Brecht e Benjamin).
Na última metade do texto, apresento o sistema conceitual de Negt e Kluge desenvolvido no
livro Esfera pública e experiência (de 1972), no interior do qual sua teorização da
comunicação e da indústria da consciência se torna compreensível. Nas considerações finais,
busco contrapor os pressupostos dos conceitos de indústria cultural (o que eu chamarei de
paradigma da manipulação) e indústria da consciência (o que eu chamarei de paradigma da
fantasia) e defender a atualidade e a produtividade desta segunda abordagem.

1 O conceito de indústria cultural em Adorno, Horkheimer e Habermas

1.1 A formulação clássica

O livro Dialética do esclarecimento marca a criação do conceito de indústria cultural.


A seguir, buscarei esboçar suas principais características, enfatizando duas dimensões: o
diagnóstico de uma manipulação total e o horizonte normativo de um certo elitismo cultural.
Existe, no capitalismo, uma ilusão de que o indivíduo é independente, mas ele é submetido ao
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poder absoluto do capital. No capitalismo concorrencial, o meio de comunicação do telefone


era liberal pois os participantes podiam desempenhar o papel de sujeito; já no capitalismo
monopolista, o meio do rádio é democrático, mas apenas no sentido de que todos são
igualmente ouvintes, porém entregues de modo autoritário aos programas.

A indústria cultural toma das mãos do sujeito o esquematismo kantiano (os dados
múltiplos da sensibilidade já se referem de antemão aos conceitos do entendimento). O
esquematismo da produção do sistema da indústria cultural antecipa todas as classificações (o
emprego arbitrário de estereótipos e clichês prontos), nada deixando para o próprio
consumidor classificar. As técnicas de reprodução mecânica do filme sonoro – como visto, o
produto mais característico da indústria cultural – buscam duplicar os objetos empíricos da
vida e do mundo exterior: “o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar
imediatamente com a realidade” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 119) pois o filme não
permite a divagação da fantasia e do pensamento de seus espectadores, paralisando, atrofiando
e recalcando a imaginação e a espontaneidade do consumidor cultural, além de proibir sua
atividade intelectual. O segredo da negação do estilo, característica da indústria cultural, é “a
obediência à hierarquia social” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 123).

A indústria cultural é a indústria da diversão, o qual prolonga o trabalho no capitalismo


tardio: o seu poder “provém de sua identificação com a necessidade produzida” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 128). A mecanização passou em tal grau do tempo de trabalho para
o tempo de lazer, que as pessoas só conseguiriam perceber “as cópias que reproduzem o
próprio processo de trabalho”, ou seja, “a sequência automatizada de operações padronizadas”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 128). Assim, as mercadorias culturais evitam o esforço
intelectual, despedaçando e massacrando o pensamento. A indústria cultural prorroga
indefinidamente a promessa de prazer, sendo a um só tempo “pornográfica e puritana”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 131). Deste modo, “a diversão favorece a resignação”:
o sistema da indústria cultural não dá ao consumidor “em nenhum momento o pressentimento
da possibilidade da resistência”, como se todas as necessidades apresentadas pudessem ser
satisfeitas por esta própria indústria, que o mantém como seu objeto (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 132-133).
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A indústria cultural produz, dirige e disciplina as necessidades dos consumidores, os


quais, em vez de serem sujeitos pensantes, já se encontram derrotados, pois estão sendo
continuamente desacostumados de sua própria subjetividade. Assim, a indústria cultural se
torna um “profeta irrefutável da ordem existente”, demonstrando a “divindade do real” por
meio da sua repetição cínica (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 138), além de justificar a
permanência cega e imutável do sistema social.

Os produtos culturais sempre confirmam a ordem: “A moral na cultura de massas é a


moral degradada dos livros infantis de ontem” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 142),
alimentando a identificação integral e masoquista de pessoas trituradas com o poder do
capitalismo monopolista. A eliminação do indivíduo – por meio da “falsa identidade da
sociedade e do sujeito” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 144) – é confirmada pela
corrupção, dissolução e liquidação do trágico.

O indivíduo tem um caráter ilusório, por isso os autores falam de pseudo-


individualidade: a possibilidade da reintegração total do indivíduo na universalidade. A
tendência imanente do rádio enquanto meio seria “colocar a palavra humana como algo de
absoluto, como um falso imperativo” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 149). Em tese
que depois será adaptada por Habermas, enquanto foi cara, “a arte manteve o burguês dentro
de certos limites”; já quando “nada mais é caro”, a cultura se tornou um brinde e entrou em
decadência (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 150).

Os autores concluem que a mercadoria cultural tem um caráter paradoxal: quando


totalmente submetida à troca, ela deixa de ser valor de troca, além de se confundir tanto com
o uso que deixa de ter valor de uso; assim, “ela se funde com a publicidade” (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 151). Há uma confusão, tanto em termos técnicos quanto
econômicos, entre a indústria cultural e a publicidade, convertendo a técnica em psicotécnica,
ou seja, “procedimento de manipulação das pessoas” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p.
153). A linguagem se tornou, ela própria manipulatória: “fórmulas de encantamento mágico”
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 154).
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1.2 Entre a auto-heterodoxia e a ortodoxia do discípulo: revisões do Adorno tardio


e a recepção do jovem Habermas

Em texto de 1967 intitulado “A indústria cultural [reconsiderada]”, baseado em


conferências de rádio de 1962, Adorno apresenta um texto de síntese. O sistema da indústria
cultural, ao produzir mercadorias culturais para o consumo das massas determina em grande
medida este próprio consumo e, assim, integram de cima para baixo estes consumidores –
nunca sujeitos, mas meros objetos e acessórios de toda esta maquinaria. Estes fatores
impossibilitam completamente a sua nomeação por “cultura de massas”, como algo que fosse,
de algum modo, uma arte popular contemporânea, daí a preferência dos frankfurtianos pelo
conceito de “indústria cultural”, caracterizada por: orientação ao lucro, esquematização,
estandardização do produto e racionalização das técnicas de distribuição e reprodução
mecânica. Referindo-se criticamente a Benjamin, Adorno (1986a, p. 95) afirma que indústria
cultural “se serve [da] aura [da obra de arte tradicional] em estado de decomposição como um
círculo de névoa”, transmitindo padrões e esquemas de comportamento regressivos, os quais
substituem a maioridade e a consciência e por infantilização e conformismo, ou seja, a
aceitação acrítica da ordem social existente, explorando a fraqueza do ego diante da
concentração do poder própria ao capitalismo tardio. O objetivo da indústria cultural é o anti-
esclarecimento: criar a dependência e a tutela dos seres humanos, negando sua independência
e autonomia, pré-condições para qualquer sociedade democrática. Ao invés dos seres humanos
estarem “tão maduros quanto as forças produtivas da época” permitiriam, a indústria cultural
impede as massas de atingir sua maioridade (ADORNO, 1986a, p. 99).1

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Huyssen (1975) apresenta e analisa o artigo “Indústria cultural reconsiderada” de Adorno, afirmando que o
conceito adorniano precisa ser contextualizado com relação às teorias da cultura de massas e da estética de
Kracauer, Brecht e Benjamin. As experiências concretas das quais o conceito nasceu são: o americanismo da
República de Weimar, a ascensão do nazismo e o choque cultural durante o exílio nos EUA. Vivendo em Berlim,
Kracauer, Brecht e Benjamin tinham uma visão positiva e esperançosa da racionalização, enquanto Adorno,
vivendo em Viena, via este processo como desencantamento, padronização e totalitarismo latente. Entre a
reflexão dos anos 1940 e a dos anos 1960 haveria somente uma mudança de ênfase: Adorno mitiga sua
condenação do esclarecimento como instrumento de dominação, abrindo espaço para a possibilidade de
indivíduos autônomos e um esclarecimento genuíno, em especial por meio de uma educação humanista. Segundo
o autor, Adorno seria mais atual do que as teorias de Brecht e Benjamin que se baseavam na arte revolucionada
pela tecnologia e, portanto, na cultura de massas “como um veículo para a mudança revolucionária” (com a
emergência de “modos coletivos revolucionários de produção e recepção de arte”), as quais teriam se revelado
ingênuas e demasiadamente otimistas, o que, aliás, se choca diretamente com o projeto de “revolução cultural
proletária” defendido por Negt e Kluge no início dos anos 1970. Benjamin teria se equivocado ao considerar que
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Já em “Notas sobre o filme”, também de 1967, Adorno opõe a infantilidade e


“regressão industrialmente promovida” do cinema comercial alemão aos filmes do Novo
Cinema Alemão, considerados tecnicamente desajeitados. Contudo, ele reinterpreta estes
elementos incontrolados, imperfeitos e ocasionais como o entrincheiramento de um potencial
libertador: “a esperança de que os assim chamados meios de comunicação de massa poderiam
tornar-se algo qualitativamente distinto” (ADORNO, 1986b, p. 100-101). Haveria, então, uma
semelhança entre um certo cinema e a escrita; existiria no filme de cinema a justaposição de
“diferentes camadas de modelos de comportamento”: os modelos oficiais são recobertos por
modelos não-oficiais, com a ideologia que a indústria cultural fornece não penetrando
automaticamente no espectador; além disso, esta ideologia pode ser tão antagônica quanto a
sociedade capitalista, contendo, assim, o “antídoto de suas próprias mentiras” (ADORNO,
1986b, p. 104). Como o realismo estético (como certos meios e convenções do realismo
cinematográfico, inseparáveis da fotografia) tem a tendência de reforçar afirmativamente a
sociedade contemporânea, a alternativa está na montagem, a qual permite recolocar as coisas
“em constelações escriturais” (ADORNO, 1986b, p. 105). Os filmes fornecem “esquemas de
modos de comportamento coletivo”, animando os espectadores “a se movimentarem juntos”.
Contra o realismo, o cinema poderia se basear em uma montagem que incentivasse divagações
e “associações que surgem fora do transcurso do filme” (ADORNO, 1986b, p. 106). Para
Adorno (1986b, p. 105) “O filme emancipado teria de retirar o seu caráter a priori coletivo do
contexto de atuação inconsciente e irracional, colocando-o a serviço da intenção iluminista”.2

a reprodutibilidade mecânica permitiria uma recepção coletiva ou a ativação de “um público de massas orientado
à mudança revolucionária”; já para Adorno, a cultura de massas é uma “integração intencional de seus
consumidores de cima para baixo”. Se no capitalismo liberal havia a esfera pública burguesa enquanto esfera de
circulação cultural, a indústria cultural marca o encolhimento desta esfera e uma mudança na produção e
distribuição.
2
Hansen (1981/1982) introduz e interpreta este artigo “Notas sobre o filme” [Transparencies on Film] de
Adorno. Na Dialética do esclarecimento, o cinema exemplificava como o sistema da indústria cultural subordina
a estética ao objetivo ideológico de “reproduzir o espectador/ouvinte como um consumidor”. Sob o capitalismo
monopolista eram inconcebíveis práticas alternativas de cinema; contudo, o artigo de 1966 parte do Novo Cinema
Alemão, reabrindo questões que estavam fechadas no seu modelo anterior (como a estética específica ao cinema
e a questão da recepção). Nos anos 1960, Adorno sugere uma relação mais complicada entre técnicas do cinema
e as conquistas artísticas de um filme, “concedendo à técnica cinemática o status de material estético”, pelo
menos no caso do cinema não-comercial. A tese da manipulação total foi acusada de elitismo, conservadorismo
cultural e condescendência, traços que desaparecem em “Notas sobre o filme”, sem contar uma ênfase na
recepção que revisa seus antigos pressupostos monolíticos: a diferenciação entre modos oficiais e não-oficiais de
seu comportamento, a discrepância entre a programação e a resposta do espectador e a ênfase em um potencial
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Segundo Huyssen (1975), logo antes de morrer, Adorno relativizou sua tese de
comercialização total da cultura, aludindo a uma consciência dupla (tal como Reich analisou
“a dualidade dos momentos conformista e emancipatório na psique da audiência de massas”).
No capítulo “Tempo livre” Adorno apresenta resultados de um estudo empírico realizado no
Instituto de Pesquisa Social sobre o casamento de uma princesa holandesa. Nesta investigação,
foram esboçados “sintomas de uma consciência duplicada”; na recepção do acontecimento
midiático, as pessoas “avaliavam com sentido crítico” a sua importância (ADORNO, 1995, p.
81). Adorno então conclui que o consumo dos produtos da indústria cultural não ocorre de
modo ingênuo, mas com uma certa reserva: “não se acredita inteiramente neles”. A
“integração da consciência e do tempo livre” não é, ainda, total, o que permite uma certa
resistência. Um potencial emancipatório é, assim, vislumbrado: em algum momento futuro o
tempo livre poderia se transformar em liberdade.

Se o próprio Adorno foi capaz de se distanciar de suas próprias formulações originais,


esboçando uma heterodoxia de si próprio, um de seus principais discípulos, o jovem Habermas
(2014) segue uma versão bastante ortodoxa da teoria adorniana da indústria cultural, em sua
própria investigação histórica acerca da mudança estrutural da esfera pública. No capitalismo
clássico, o mercado de bens culturais podia ser conceitualizado como uma esfera pública
literária, na qual os bens têm sua apropriação pública: a cultura foi mercantilizada apenas na

subversivo na resposta às obras. Hansen defende que, embora não cite o nome de Kluge, a influência do cineasta
alemão para Adorno é fundamental, não apenas por conta de sua amizade, mas também porque Kluge se apropria
tanto da Teoria Crítica quanto da literatura modernista para realizar seu cinema alternativo. Kluge concorda com
Adorno e Horkheimer sobre a imediaticidade visual do filme ser um poderoso mecanismo ideológico; já a sua
prática alternativa de cinema se baseia em uma concepção radical de montagem, que enfatiza a função dos cortes:
espaços vazios entre as cenas, rupturas que podem ser ativamente ocupadas pela imaginação do espectador, além
de justaposição de elementos heterogêneos e relações antitéticas de som e imagem. Esta forma de montagem
aponta para a contribuição do cinema para uma esfera contrapública e transforma finalmente esta arte em um
meio de cognição ao “negar o apelo afirmativo da imagem e interromper as cadeias de automatismo associativo”;
para Kluge, “a afinidade estrutural entre o filme e o fluxo de associações estabelece uma tradição utópica do
cinema nas mentes das pessoas para a qual as invenções tecnológicas como a câmera, o projetor e a tela apenas
responderam em uma escala industrial” (HANSEN, 1981/1982, p. 195). Se nos escritos dos anos 1940, o cinema
era condenado inequivocamente como passivo, reificante e totalitário, nos anos 1960, Adorno diagnostica a
possibilidade de uma prática alternativa baseada no deciframento crítico do espectador e que, assim, pode aspirar
a auto-consciência da arte moderna enquanto teoria dialética; segundo Hansen, nesta conclusão, o velho Adorno
acaba por se aproximar de Benjamin. Mas a autora também defende que mesmo em seus escritos anteriores,
Adorno já tinha revelado uma surpreendente aproximação a Brecht, como no livro Compondo para os filmes,
além de, junto com Horkheimer, ter reconhecido um potencial subversivo no primeiro cinema, da era muda (que
era anárquico, ilegítimo, grotesco e próximo do circo) e uma negatividade que, ao contrário do filme sonoro de
Hollywood, poderia apontar para um outro tipo de cinema.
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sua forma; neste contexto, facilitar economicamente o acesso aos bens culturais teria um
sentido emancipatório, pois permite a comunicação pública entre pessoas privadas e a sua
formação cultural. Contudo, no capitalismo tardio, o mercado de bens culturais se tornou uma
indústria cultural, na qual estes bens passam a ter a sua apropriação privada: o consumo de
produtos culturais que se tornaram mercadorias não se dá apenas na forma, mas agora também
no conteúdo; facilitar psicologicamente o acesso a estes bens deixa de ter caráter
emancipatório e passa a ser regressivo.

Novamente seguindo seu mestre Adorno, a categoria de manipulação é central para o


modelo teórico-crítico da juventude de Habermas. A mudança na estrutura social da esfera
pública é acompanhada de uma mudança na sua função política. Quando a imprensa passa de
empreendimento artesanal e depois a imprensa de convicções, ela atinge uma terceira fase, da
imprensa comercial. A orientação ao lucro se torna primária, levando à concentração
oligopólica e a uniformização tecnológica e organizacional. Tal comercialização implica na
expansão da propaganda e, portanto, da racionalidade instrumental: a “manipulação
publicitária e psicológica” (HABERMAS, 2014, p. 409).

A mudança de função política da esfera pública não atinge apenas a imprensa, mas
também os partidos políticos. Depois do primado dos partidos de notáveis e do partido de
classe, a história política dos partidos modernos atinge uma terceira fase: os partidos de massa
de integração superficial, que se baseiam em relações públicas e uma publicidade que
manipula de cima para baixo o comportamento eleitoral da população, a fim de fabricar
prestígio, demonstrar a posição do partido e induzir sua aclamação. Emerge, então, uma esfera
pública despolitizada e produzida – fabricada temporariamente por administradores de
campanhas eleitorais publicitárias com fins de manipulação – e uma opinião não-pública –
muito mais uma gestão de impulsos subconscientes ou inconscientes do que uma
transformação das opiniões pessoais em opinião pública por meio de uma argumentação
crítico-racional, como ocorria no modelo liberal da esfera pública burguesa (HABERMAS,
2014).

2 Um conceito alternativo: a indústria da consciência


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2.1 A formulação original de Enzensberger

Para Enzensberger (1975 [1962]), o termo indústria cultural seria inadequado, vago e
insuficiente, pois a indústria da mente não produz, de fato, nada; a consciência só “pode ser
induzida e reproduzida por meios industriais, mas não pode ser produzida industrialmente” (p.
69). Esta indústria depende, na realidade, da substância que ela própria teme, suprimindo o
que ela própria se alimenta: “a produtividade criativa das pessoas” (ENZENSBERGER, 1975,
p. 69). O termo indústria cultural é ambíguo pois toma como valor de face as reivindicações
tanto da cultura (no seu sentido antigo) quanto do processo industrial. Enzensberger acredita
que McLuhan também não foi capaz de produzir uma verdadeira teoria da comunicação. A
industrialização da mente [mind] humana tem como efeito a abolição da “distinção entre as
consciências privada e pública” (ENZENSBERGER, 1975, p. 69). A indústria criadora da
mente [mind-making] é formada por vários setores: imprensa, mercado editorial, rádio,
cinema, telefone, telex, televisão, vídeo, propaganda, relações públicas, moda, design
industrial, propagação de religiões e cultos, turismo e educação. A industrialização da mente
tem quatro condições: (1) filosófica: a superação iluminista do pensamento teocrático; (2)
política: a proclamação dos direitos humanos (como igualdade e liberdade); (3) econômica: a
acumulação de capital para superar a mera subsistência e liberar energias humanas; (4)
tecnológica: o uso industrial da energia elétrica para a comunicação (rádio, filme, vídeo,
televisão e técnicas computacionais). Estes pré-requisitos estariam se espalhando por todo o
planeta, mas em diferentes temporalidades. Se o processo de expansão da indústria da mente
é irreversível, qualquer crítica abolicionista seria inepta, suicida e reacionária. O principal
negócio da indústria da mente não é vender seu produto, mas “vender” a ordem existente,
perpetuando padrões de dominação por meio da expansão, treinamento e exploração de nossa
consciência. Para além da exploração material já analisada pelo marxismo clássico, trata-se
agora de uma exploração imaterial; na modernidade, todas as estruturas de poder e suas elites
devem obter o consentimento dos sujeitos, controlando e manipulando suas mentes: “para
expropriar força de trabalho, elas [as elites] devem expropriar o cérebro”, substituindo a
pauperização material do século XIX por uma pauperização imaterial (ENZENSBERGER,
1975, p. 73). O dilema ou a contradição da industrialização da mente é: para obter consenso,
é preciso possibilitar escolhas e alternativas (mesmo que marginais); para se aproveitar das
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faculdades (intelectuais, morais e políticas) da mente humana, estas precisam, antes, serem
desenvolvidas. Deste modo, Enzesnberger diagnostica que a indústria da mente nunca se torna
“completamente controlável como um todo”, sempre havendo necessariamente fugas e
fissuras (ENZENSBERGER, 1975, p. 74). Se passamos dos consumidores da indústria da
mente para seus produtores, percebemos que ela e os seus proprietários dependem do trabalho
criativo, inovador e imprevisível de intelectuais, os quais são potencialmente desordeiros e
subversivos (ou seja: são cúmplices de um enorme complexo industrial e, ao mesmo tempo,
seus potenciais inimigos). Para poder explorar e manipular seus consumidores, a indústria da
mente precisa antes explorar e manipular produtores com objetivos incompatíveis (a
proliferação da consciência humana prolifera as contradições da mídia).

Já em artigo posterior, publicado oito anos depois, Enzensberger busca desenvolver


uma teoria marxista da mídia, que ainda não existe; para tal, ele atualiza a noção marxista
central de uma contradição entre forças produtivas e relações de produção, ou seja, como o
potencial emancipatório inerente às novas forças produtivas das mídias eletrônicas é sabotado
pelas relações capitalistas de produção. Segundo o autor, o capitalismo monopolista alimenta
uma indústria que molda nossas consciências, em especial com o advento de novas e diversas
mídias eletrônicas, tais como: TV colorida, TV a cabo, satélites, fitas de vídeo e seus
gravadores, câmera eletrônica, máquinas fotocopiadoras, impressoras eletrônicas, sistemas
computacionais de compartilhamento de tempo, bancos de dados, formatadores de texto,
bibliotecas eletrônicas, enciclopédias sob a forma de fitas K7’s, etc.

O fator político decisivo destas mídias eletrônicas é o seu poder de mobilização, pois
elas possibilitam a participação das massas no processo socializado de produção.
Tecnicamente, as mídias eletrônicas colocam as condições que permitem uma ação recíproca
entre transmissores/receptores, falantes/ouvintes, ou seja, para transformar, por exemplo, o
rádio de um meio de distribuição para um meio de comunicação (como defendia a teoria do
rádio de Brecht); o que impede isto, hoje, é a divisão social do trabalho entre uma classe
dominante (o capital monopolista) e uma classe dominada (as massas dependentes).

A fantasia orwelliana de uma indústria da consciência monolítica (um sistema de


controle centralizado e total) deriva, na realidade, de uma visão não-dialética e obsoleta da
14

mídia: “Sociedades da era industrial tardia se baseiam na livre troca de informação”


(ENZENSBERGER, 1970, p. 16). Hoje, a questão da censura mudou de patamar; até então, a
luta pela liberdade de imprensa e de expressar ideias e opiniões se dava no interior da
burguesia; agora, a censura é desafiada pelas forças produtivas da indústria da consciência,
aguçando a contradição entre o possível e o existente.

A New Left dos anos 1960 reduziu o desenvolvimento da mídia ao conceito de


“manipulação”, correndo o risco de degenerá-lo tanto em um slogan obscurecedor quanto em
um sentido derrotista de impotência, de caráter ingênuo, idealista e moralista. A premissa da
tese da New Left da manipulação acaba sendo a superstição liberal de que haveria algo como
uma verdade pura e não-manipulada. As mídias eletrônicas sempre são “sujas” e antissectárias,
representando um desafio à cultura burguesa em geral e aos privilégios do monopólio cultural
da intelligentsia burguesa em particular. Uma prova do arcaísmo cultural da crítica de esquerda
é sua incapacidade de usar estrategicamente as mídias mais avançadas: em vez dos rebeldes
de Maio de 1968 ocuparem uma estação de rádio e aproveitar “a contradição entre a presente
constituição das mídias e o seu potencial revolucionário”, eles ocuparam um teatro burguês
tradicional; deste modo, “o movimento socialista anula as forças produtivas da indústria da
consciência e relega o trabalho sobre as mídias a uma subcultura”, o Underground como uma
contracultura despolitizada (ENZENSBERGER, 1970, p. 19).

A manipulação é pressuposta por qualquer uso das mídias pois todos os processos na
produção midiática são operações de manipulação da matéria bruta – filmar, cortar,
sincronizar, dublar, distribuir, etc. Como é impossível escrever, filmar ou radiodifundir de
forma não-manipulada, a questão não é combater a manipulação, mas saber quem manipula;
em vez do desaparecimento dos manipuladores, a revolução seria transformar todas as pessoas
em manipuladoras. É a sua estrutura igualitária e coletiva das mídias eletrônicas que permitem
processos massivos e auto-regulados de aprendizado.

As propriedades da nova mídia são sua orientação à ação (e não à contemplação) e ao


presente (e não à tradição), liquidando a propriedade intelectual e a herança do capital cultural.
Os equipamentos de mídia não são apenas meios de consumo, mas também de produção; a
contradição produtores/consumidores não é inerente às mídias eletrônicas, mas precisa ser
15

reforçada artificialmente por medidas administrativas e econômicas. A questão é: nenhum


regime de poder atualmente existente é capaz de liberar todo este potencial das novas mídias.
Potentes meios de produção (tais como: câmeras caseiras; gravadores de fita; e rádios de onda
curta) estão limitados ao uso por pessoas restritas à condição de amadores que não se tornam
produtores.

As estratégias socialistas devem buscar combater o isolamento dos indivíduos dos


processos sociais de aprendizado e de produção, o que só é possível via a auto-organização
das necessidades sociais das pessoas enquanto produtoras. A destruição de “métodos privados
de produção dos intelectuais burgueses” (ENZENSBERGER, 1970, p. 24) é permitida por
modelos de comunicação em formato de rede que se baseiam no princípio de circuitos
reversíveis, como, por exemplo, “um jornal de massas escrito e distribuído por seus leitores”
ou “uma rede de vídeo de grupos ativos politicamente” (ENZENSBERGER, 1970, p. 23). O
poder das mídias eletrônicas decorre de profundas necessidades sociais, como temas
psicossociais antigos (necessidades por prestígio e identificação) e novos (como necessidades
utópicas). Enzensberger se apropria de Lefebvre para defender que o consumo do espetáculo
é uma forma paródica que antecipa uma situação utópica; as promessas da mídia teriam caráter
ambivalente, pois exploram desejos coletivos das massas por mobilidade, participação,
interação e auto-determinação. A indústria da consciência vive destas necessidades, mas não
pode satisfazer nenhuma delas, “exceto na forma ilusória dos jogos. O ponto, contudo, não é
demolir suas promessas, mas tomá-las literalmente e mostrar que elas só podem ser alcançadas
por meio de uma revolução cultural” (ENZENSBERGER, 1970, p. 25). Uma estratégia
socialista opõe, portanto, um uso repressivo a um uso emancipatório das novas mídias, este
último baseado em descentralização, a reversibilidade receptores/transmissores, mobilização,
interação, aprendizado, produção coletiva e auto-organização.

As mídias eletrônicas (como os transistores e a televisão) têm potencialidades


mobilizadoras, subversivas e utópicas; em processos de revolução cultural, a imaginação se
torna capaz de libertar energias políticas e culturais escondidas e aprisionadas, realizando as
oportunidades oferecidas por estas novas mídias.
16

A esquerda marxista deve pensar e agir a partir do uso estratégico das forças produtivas
mais avançadas a fim de libertar os seus fatores imanentes mas, com exceção de Benjamin e
Brecht, os marxistas não foram capazes de interpretar a indústria da consciência pois só
focaram no seu aspecto sombrio burguês e capitalista, em vez de suas possibilidades
socialistas; a teoria da reificação de Lukács e o conceito de indústria cultural de Horkheimer
e Adorno seriam exemplos desta nostalgia atrasada e reacionária. Para Enzensberger, teorias
e práticas não-marxistas de vanguardas apolíticas (dos Beatles a McLuhan) fizeram muito
mais progresso no uso estratégico do poder produtivo das novas mídias do que qualquer grupo
de esquerda nos países industrializados ocidentais. McLuhan, contudo, seria incapaz de
apresentar uma teoria, mas tão somente uma doutrina mística e idealista de salvação dos seres
humanos por meio da tecnologia da TV. Enzensberger reinterpreta a frase de McLuhan – “o
meio é a mensagem” – como uma admissão de que a burguesia tem à sua disposição os meios
de comunicar algo, mas não tem nada a dizer; embora ela tenha controle os meios de produção,
ela seria ideologicamente estéril.

Ao alterar radicalmente a relação sujeito/objeto, o desenvolvimento das forças


produtivas representado pelas mídias eletrônicas tornou anacrônicas as antigas teorias estética
e do conhecimento. Com sua análise dialética e materialista em “A obra de arte na era da
reprodutibilidade técnica”, Walter Benjamin foi o único teórico marxista que foi capaz de
reconhecer “o potencial libertador das novas mídias” (ENZENSBERGER, 1970, p. 30). A
tendência que ele diagnosticou na fotografia e no cinema (o qual liquida “o valor tradicional
da herança cultural”) foi aprofundada com o desenvolvimento contemporâneo da indústria da
consciência. Assim, torna-se ainda mais necessário a substituição da análise das produções
das novas mídias a partir da perspectiva dos velhos modos de produção, pela análise dos
produtos das mídias artísticas tradicionais a partir da perspectiva das condições mais modernas
de produção.

O predomínio da cultura escrita foi historicamente muito curto, tendo sido antecedido
pela literatura oral e agora sucedido pelas mídias eletrônicas. A literatura escrita e a burguesia
que a produziu foram, em um certo momento, progressistas. Mas como a escrita é uma técnica
altamente formalizada, ela corresponde a um alto grau de racionalização e de especialização e
as regras normativas e intimidadoras que a governam são um fenômeno específico de classe,
17

aprendido e reforçado por uma socialização autoritária nas escolas. Já o livro impresso é um
meio que opera estruturalmente como um monólogo que isola produtores e leitores, limitando
sua interação e excluindo o público de modo elitista. Todas estas características da literatura
impressa valem para as mídias eletrônicas (como microfone e câmera) “abolem o caráter de
classe do modo de produção (mas não da própria produção)” (ENZENSBERGER, 1970, p.
33). Rádio, cinema e televisão ainda funcionam sob o peso do monólogo, mas isto não é uma
consequência estrutural destas mídias, pois na realidade suas estruturas demandam interação.

Os programas da indústria da consciência “devem ser pensados não como meios de


consumo, mas como meios de sua própria produção” (ENZENSBERGER, 1970, p. 35). As
vanguardas artísticas pressentem as potencialidades futuras das mídias: autores que sejam
capazes de usar os fatores libertadores da mídia e trazê-los à fruição, envolvendo-se
necessariamente em contradições táticas, mas com clareza que o seu papel estratégico é
“trabalhar como o agente das massas”, as quais devem se tornar elas próprias autoras de sua
história (ENZENSBERGER, 1970, p. 36).

2.2 A apropriação de Negt e Kluge

Oskar Negt e Alexander Kluge partem de Enzensberger, mas distinguem sua


abordagem singular da indústria da consciência comparando-a com conceitos que apresentam
abordagens alternativas relativas ao mesmo fenômeno, tais como “indústria cultural” e
“indústria da ilusão”. Os conceitos de indústria cultural de Adorno e Horkheimer e de indústria
da ilusão de Haug (1997) apresentariam ênfases diferenciadas na investigação do fenômeno
da industrialização da consciência: enquanto o termo “ilusão” seria a ênfase no componente
proletário por parte de Haug, o termo “cultura” seria a ênfase no componente burguês por
parte de Adorno e Horkheimer (NEGT; KLUGE, 1993, p. 149, n. 1). Além disso, o conceito
da indústria cultural teria um aspecto um tanto anacrônico, no sentido de que a descrição do
rádio e do cinema de Hollywood que os autores apresentaram na Dialética do esclarecimento
corresponderia a uma “fase pré-industrial da indústria da consciência” (NEGT; KLUGE, 1993,
p. 158, n. 19). Por fim, Negt e Kluge defendem sua própria abordagem do fenômeno através
18

da categoria de indústria da consciência por tomar como ponto de partida a matéria-prima


específica a esta indústria: justamente a consciência humana.

Estabelecida esta distinção conceitual mínima (mais em termos de ênfases


diferenciadas do que em termos de incompatibilidade teórica, uma vez que todas as
abordagens dialogam à sua maneira com o projeto da Teoria Crítica), torna-se possível
identificar os mecanismos e as instituições da indústria da consciência.

Na minha leitura, os dois mecanismos centrais da indústria da consciência são: o


imperialismo e a fantasia. Uma apropriação sui generis da teoria do imperialismo de Lenin,
atualizado pela noção de “imperialismo voltado para dentro” dá conta da dimensão estrutural
ou econômica da indústria da consciência, enquanto a teorização psicanalítica acerca da
fantasia permite apreender a dimensão subjetiva ou psicológica do fenômeno, mostrando as
continuidades e descontinuidades em termos de desejos, necessidades e imaginação entre: as
brincadeiras, os sonhos e os contos infantis; os devaneios adultos; as criações literárias; e, por
fim, os produtos culturais da indústria da consciência.

Negt e Kluge (1993, p. 165) partem das cinco características fundamentais que Lenin
atribuiu ao fenômeno do imperialismo:

l. a concentração da produção e do capital levada a um grau tão elevado de


desenvolvimento que criou os monopólios, os quais desempenham um papel
decisivo na vida econômica; 2. a fusão do capital bancário com o capital industrial
e a criação, baseada nesse capital financeiro da oligarquia financeira; 3. a exportação
de capitais, diferentemente da exportação de mercadorias, adquire uma importância
particularmente grande; 4. a formação de associações internacionais monopolistas
de capitalistas, que partilham o mundo entre si; 5. o termo da partilha territorial do
mundo entre as potências capitalistas mais importantes. (LENIN, 2008, p. 88)

Se as contradições do imperialismo clássico levaram à Primeira Guerra Mundial, o


nazi-fascismo inaugura uma nova fase, que Negt e Kluge chamam de “mobilização
imperialista de massas”: de um lado a destruição da esfera pública burguesa e da esfera pública
proletária e, de outra, o que ficava fora da esfera pública na sociedade burguesa clássica (o
horizonte de experiência das massas) é dragada por um processo de mobilização da força de
trabalho, mas sem considerar os interesses autônomos desta própria força de trabalho.
19

Depois da Segunda Guerra Mundial, os autores diagnosticam a impossibilidade de


novas guerras entre as potências capitalistas, o que as leva a buscar novas alternativas: o
imperialismo passa a dirigir suas energias para dentro, tomando a consciência de seres
humanos em áreas urbanas e seus Contextos da Vida em um objeto de expansão capitalista,
com características similares ao imperialismo clássico analisado por Lenin, em termos de:
concentração monopolista, o papel do capital financeiro, a exportação de capital, a divisão do
mundo tanto por associações monopolistas internacionais quanto entre superpotências
capitalistas. Contudo, a expansão desta nova modalidade de imperialismo – a ocupação da
consciência e do tempo de lazer por mercadorias culturais – também é marcada por
contradições. Por este motivo os autores discordam da noção de unidimensionalidade cunhada
por Herbert Marcuse, a qual seria insuficiente para descrever o imperialismo voltado para
dentro. A situação do capitalismo tardio é ambivalente e contraditória pois existem duas
tendências paralelas: suas faculdades sensíveis, imaginárias e intelectuais são
simultaneamente mobilizadas e desqualificadas. Os indivíduos sempre flutuam entre, de um
lado, estados de extrema concentração, ativação completa do intelecto e desenvolvimento das
faculdades críticas e, de outro, a manutenção da maioria dos sentidos e faculdades humanas
enquanto dormentes, o silenciamento completo do intelecto e o fechamento de espaços para
críticas na indústria da consciência e a incapacidade de expressão das faculdades humanas
desenvolvidas no processo de trabalho. Seria, portanto, melhor falar em uma
multidimensionalidade – os seres humanos passam por um processo de desenvolvimento
histórico de suas multifacetadas faculdades – que aparece como unidimensionalidade – pois
aquela multidimensionalidade das faculdades é impedida de ser expressa em toda a sua
complexidade no interior do sistema capitalista (NEGT; KLUGE, 1993).

Somente se torna possível compreender esta multidimensionalidade e a simultaneidade


de mobilização e desqualificação das faculdades humanas, se consideramos as teorizações
psicanalíticas sobre a fantasia. Para Negt e Kluge, a fantasia é a capacidade que os seres
humanos têm de associar passado, presente e futuro; uma força produtiva bipartida que,
dependendo das circunstâncias sociais, pode ser matéria-prima tanto do desenvolvimento
político da consciência de classe quanto do interesse econômico da indústria da consciência.
Já segundo Anna Freud (2006), a “negação em fantasia” é um mecanismo de defesa, ou seja,
20

um mecanismo de proteção do ego da experiência de dor vinda do mundo externo. A


psicanalista apresenta um material empírico constituído por sonhos de crianças com animais,
casos que a autora chama de “fantasia-animal”, além de histórias sobre animais presentes em
contos infantis. Deste modo, ela conclui que a satisfação imaginária de desejos primeiro nega
a realidade – em geral sob a forma de inversões que permitem transformar uma situação
marcada por impulsos agressivos e insuportáveis em uma ilusão agradável de acordo com o
princípio de prazer – e somente depois auxilia o sujeito a se reconciliar com tal realidade – a
qual, para a psicanálise, sempre gira em torno do Complexo de Édipo. Contudo, Anna Freud
(2006) diagnostica que a persistência de tais gratificações via fantasia depois do fim da
infância implicariam não mais em divagações “normais”, mas em uma condição psicótica,
caracterizada por negação da realidade, delírios e alucinações.

Negt e Kluge também se baseiam na teorização psicanalítica de Sigmund Freud (2015)


acerca da fonte do material do escritor: como explicar a criação literária e o fazer poético? Os
primeiros traços da atividade criativa estariam na brincadeira: as crianças, ao brincarem, se
comportam como criadores literários, construindo um mundo imaginário, separado, portanto,
da realidade. Depois que a pessoa cresce, ela passa da brincadeira para a fantasia: cria
devaneios. São os desejos que geram as fantasias dos adultos, suas forças-motrizes são desejos
não-satisfeitos (de caráter ambicioso ou erótico). Enquanto atividade imaginativa, as fantasias
buscam corrigir uma realidade insatisfatória. Segundo Freud, “uma fantasia ‘paira’ entre três
tempos” com o desejo percorrendo-os e atravessando-os: o presente (ocasião que desperta um
desejo), o passado (lembrança feliz, em geral da infância, de vivência de um desejo realizado)
e o futuro (realização, via devaneio, do desejo em uma situação futura). O desejo usa o presente
“para esboçar, segundo o modelo do passado, uma imagem do futuro”. Seria, então, possível
comparar as criações literárias de escritores com os devaneios – os sonhos diurnos – das
pessoas? Freud formula a hipótese de que o devaneio e o material poético da obra literária
prosseguem e substituem a brincadeira infantil. O escritor consegue evitar o caráter frio e
chocante que advém da revelação de devaneios das pessoas comuns por dois recursos técnicos:
(i) alterações e ocultamentos para atenuar o caráter egoísta do devaneio; e (ii) apresentação de
suas fantasias para cativar o leitor pelo prazer formal estético, o que “nos permite desfrutar
nossas próprias fantasias sem qualquer recriminação e sem pudor” (FREUD, 2015).
21

Negt e Kluge (1993) partem, portanto, da teoria psicanalítica da fantasia para


interpretá-la como bipartida: ela pode ser expressa ou em formas atrofiadas (danificadas,
distorcidas) ou então plenamente desenvolvidas. É por este motivo que eles se afastam das
concepções totalizantes (Adorno) e unidimensionais (Marcuse) da indústria cultural, a fim de
desenvolverem uma teoria ambivalente da indústria da consciência: a faculdade da imaginação
é tanto matéria-prima da indústria da consciência, a qual cria técnicas para domesticar a
fantasia quanto matéria-prima da consciência de classe (ou seja, para o desenvolvimento de
um esfera pública proletária e da imaginação de um futuro alternativo ao capitalismo).

Passando dos mecanismos da indústria da consciência para suas instituições, é preciso


explicitar que as categorias “indústria da consciência”, “indústria da programação” e “cartel
de mídia” são utilizados pelos autores de modos frequentemente confusos, inconstantes e,
inúmeras vezes, sobrepostos. No capítulo 3, por exemplo, indústria (privada) da consciência
está em oposição a indústria (pública) da programação; no capítulo 4, indústria da consciência
é usado de forma praticamente intercambiável com cartel da mídia; e, por fim, no capítulo 5,
a indústria da consciência parece abarcar tanto a indústria da programação (produção de
“software”) quanto o cartel de mídia, mas este agora aparece restrito à indústria eletrônica
(produção de “hardware”). Proponho, então, (re)organizar interpretativamente estas categorias
de modo um pouco mais rígido para possibilitar uma leitura menos acidentada do denso livro
de Negt e Kluge.

Teoricamente, o capítulo 4 de Esfera pública e experiência é aquele dedicado


diretamente à indústria da consciência. Parece-me que Negt e Kluge estão implicitamente
dialogando com diversas teorizações não apenas da indústria cultural como da sociedade de
consumo e a centralidade atribuída às Lojas de Departamento; na virada dos anos 1960 para
70, não apenas teóricos críticos como Marcuse estavam teorizando esta nova fase do
capitalismo, como militantes do movimento estudantil e da esquerda anticapitalista na
Alemanha Ocidental também estavam se dedicando para compreender o lugar cultural e
econômico do consumo. A singularidade da proposta de Negt e Kluge neste contexto histórico
é a percepção de que a forma-mercadoria estava passando por uma alteração no capitalismo
tardio; a indústria da consciência – que concentra e interconecta setores econômicos díspares,
mas que se tornam interdependentes, como imprensa, entretenimento e educação – seria um
22

complexo de mercadorias, que vende para o consumidor o seu próprio Contexto da Vida pré-
organizado e força o produtor cultural (de livros, pesquisas, programas educacionais, filmes,
etc.) a se submeter a uma rede de distribuição cartelizada e que concentra a produção dos
equipamentos eletrônicos, caso contrário seu produto não conseguiria alcançar as massas. Por
um lado, a indústria da consciência busca satisfazer uma necessidade fundamental dos seres
humanos por síntese diante das particularizações criadas pelo capitalismo; por outro, a
indústria da consciência é consolidada para que “o capitalismo [reaja] aos impulsos orientados
ao desenvolvimento emancipatório das capacidades humanas” (NEGT; KLUGE, 1993, p.
133). Em outro momento os autores chamam esta necessidade por síntese de “conexão
imaginária de sentido”: as mercadorias culturais produzidas pelos conglomerados midiáticos
buscam interpelar as nossas necessidades de compensar, por meio da nossa própria capacidade
para fantasiar e sonhar, a alienação da vida cotidiana e do processo de trabalho.

Já no capítulo 3 do livro, os autores buscam opor a indústria privada da consciência ao


que eles chamam de indústria pública da programação, em uma espécie de estudo de caso das
redes públicas de televisão na Alemanha Ocidental. É fundamental ter em mente que no
período em que o livro foi escrito, havia apenas dois canais de TV na República Federal da
Alemanha – ARD (Canal 1) e ZDF (Canal 2) – e ambos eram serviços públicos (apenas em
1984 foram permitidos novos canais e estações privadas surgiram, um contexto midiático
bastante específico se for comparado com a realidade dos EUA ou mesmo do Brasil). A
produção televisiva também buscava relacionar as necessidades imediatas dos seus
espectadores a uma compensação libidinal do processo de trabalho alienado; na análise dos
autores, esta mediação entre as experiências dos espectadores e a satisfação de suas
necessidades se dava apenas por fantasias regressivas esvaziadas de experiência concreta e
sem nenhuma orientação ao conhecimento do mundo social. Contra esta situação, Negt e
Kluge buscam propor a libertação da faculdade imaginativa e da fantasia sociológica dos
espectadores; são esboçadas propostas de auto-organização tanto dos espectadores quanto dos
produtores culturais funcionários das redes públicas alemãs de TV que ecoam tanto a proposta
de Rudi Dutschke da “longa marcha das instituições” quanto o próprio percurso de Alexander
Kluge, que depois de ser um dos fundadores do Novo Cinema Alemão e ter se posicionado no
23

debate público de modo bastante cético quanto às potencialidades da mídia televisiva3, passou
a colaborar de forma cada vez mais frequente com séries produzidas para a TV.4

Por fim, interpreto que o capítulo 5 é aquele que melhor apresenta uma definição
conceitual do chamado cartel de mídia (às vezes traduzido como conglomerado midiático).
Negt e Kluge buscam superar o conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer não
apenas pois discordam radicalmente do diagnóstico de manipulação dos espectadores e
consumidores de mercadorias culturais, mas também porque eles enxergam a necessidade de
atualizar a teorização dos meios de comunicação de massa tendo em vista a substituição da
hegemonia das mídias clássicas (como rádio e cinema – analisados na Dialética do
esclarecimento, nos anos 1940 – além da TV) pela emergência das chamadas novas mídias
eletrônicas: as fitas magnéticas (a indústria de K7’s), a radiodifusão via cabo e via satélite,
bancos de dados com capacidade de armazenamento eletrônico e, por fim, o cartel de mídia
que surge em torno da indústria eletrônica. Diferentemente do rádio e da TV, que falam “a
quem possa interessar”, de modo indiscriminado e indeterminada, estas novas mídias são
capazes de transformar necessidades de indivíduos ou de grupos-alvo em objetos a serem
explorados de modo capitalista. Outra diferença fundamental entre as mídias clássicas e as
novas mídias da época é a atenção demandada por estas últimas; aqui, novamente, a
abordagem da ambivalência se torna presente e significativa: as novas mídias demandam uma
atenção tanto especializada quanto holista, enquanto as mídias clássicas trabalhavam com uma
sensibilidade (no sentido de faculdades ou órgãos do sentido) organizada com base na antiga
divisão taylorista do trabalho: a audição no caso do rádio, a visão via leitura no caso dos jornais
e da TV, a visão via padrões de movimento no caso do cinema. O cartel de mídia ameaça a
auto-organização da experiência humana, pois o objeto que ele processa é a mesma matéria-

3
Em curioso debate televisivo que está disponível no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=_8ReHF-
_jGY), Kluge diagnostica que a TV seria uma mídia técnica, administrativa e jurídica sem espaços para reflexão,
ao passo que o produtor do programa se rebela e interrompe bruscamente o debate, que continuou a ser gravado
mesmo assim.
4
Esta relativização de que a mídia televisiva teria, sim, potencialidades, já havia sido tematizada em um longa
(Artistas na Cúpula do Circo: Perplexos, de 1968) e um curta (A indomável Leni Peickert, de 1970) de Kluge;
alguns comentadores de sua obra especulam se ele não estava refletindo se valeria a pena combinar uma atuação
cinematográfica com uma atuação na televisão da Alemanha Ocidental (a qual, como dito, não é comparável ao
contexto midiático de outros países capitalistas, devido ao predomínio absoluto da TV enquanto serviço público
até meados dos anos 1980).
24

prima a partir da qual a esfera pública proletária poderia se constituir a si mesma. Em minha
leitura, neste capítulo e no seguinte, Negt e Kluge esboçam uma diferenciação na qual a
indústria da programação seria responsável pela produção de programas, ou seja, softwares,
enquanto o cartel de mídia aparece como os conglomerados da indústria eletrônica, que
produzem hardware; neste diagnóstico, os interesses do capital em torno do software seriam
subordinados aos interesses do capital em torno do hardware.

Na teoria crítica de Negt e Kluge, a esfera pública não é considerada uma totalidade
homogênea, mas uma sobreposição de formas bastante heterogêneas de organização da
experiência social coletiva. Se a experiência social individual é produzida pelos processos de
socialização primária e secundária nas esferas privadas da família e da produção, a experiência
social coletiva é organizada pelas diferentes modalidades de esfera pública. A esfera pública
burguesa se baseava na diferenciação estanque entre público e privado pois excluía o processo
de produção (a fábrica) e a socialização primária (a família); outros mecanismos de
funcionamento desta esfera pública tradicional excluem trabalhadores, mulheres e crianças. Já
as esferas públicas industrialmente produzidas pela indústria da consciência superam esta
situação, passando a acessar diretamente as esferas privadas das pessoas. A indústria da
consciência opera uma espécie de inclusão excludente, se apropriando e domesticando o
Contexto da Vida proletário, organizando heteronomamente (de cima para baixo e de fora para
dentro) a experiência das pessoas: seu desejo de uma vida significativa se torna a matéria-
prima da indústria cultural (a ser reconceitualizada pelos autores enquanto indústria da
consciência), um processo de dilaceração entre um elemento apropriável da consciência e um
elemento empobrecido e subjugado, tendo em vista tão somente o filtro do interesse de
autovalorização do valor. Há, assim, amálgamas, sobreposições, conflitos, fissuras e
contradições entre as diferentes formas de esfera pública, como, por exemplo, a luta entre a
indústria privada da consciência e a indústria da programação da rede pública de TV na
Alemanha Ocidental para subsumir uma lógica de esfera pública à outra. Por conta destes
desenvolvimentos históricos, em vez de se compreender como a antítese da esfera pública
burguesa, a esfera pública proletária precisa se auto-compreender, a partir de meados do século
XX, como necessariamente em confronto com estas novas esferas públicas da produção. O
modo de produção da esfera pública burguesa clássica era quase artesanal: jornais, clubes,
25

associações, partidos e parlamentos; enquanto o modo de produção das esferas públicas da


produção já é abertamente industrial. Um dos objetivos centrais de Esfera pública e
experiência é, portanto, polemizar e criticar os desdobramentos do movimento de protesto
estudantil dos anos 1960 e os movimentos anticapitalistas pós-1968: eles apostaram na forma
decadente da esfera pública burguesa, em vez de entender as mudanças estruturais da esfera
pública e visarem o que os autores chamam de uma revolução cultural proletária que
enfrentasse a indústria da consciência nestas novas condições econômicas, sociais, culturais e
tecnológicas (as novas mídias eletrônicas dos anos 1970).

Considerações finais

Do meu ponto de vista, a atualidade do conceito de indústria da consciência de Negt e


Kluge está nos mecanismos anteriormente identificados: [1] a dimensão estrutural: em tempos
que tanto se fala de “capitalismo de vigilância” e extrativismo de dados, as noções de
“imperialismo voltado para dentro” e “exploração secundária” podem muito facilmente serem
expandidas a partir das novas mídias eletrônicas dos anos 1970 em direção às novíssimas
mídias digitais do século XXI; e [2] a dimensão subjetiva: muito do que se costuma chamar,
hoje, de “economia da atenção” pode ser reconceitualizado de modo muito mais complexo a
partir do insight de que a fantasia se tornou matéria-prima para as indústrias capitalistas mais
avançadas (sem manipulação nem behaviorismo: o capitalismo tardio necessita de seres
humanos complexos, com uma fantasia ao mesmo tempo enriquecida e domesticada).

Como fica evidente na comparação entre os conceitos de indústria cultural e indústria


da consciência, Negt e Kluge buscam analisar a indústria da consciência e suas demais
instituições (cartel de mídia, indústria da programação e esfera pública de produção) se
afastando radicalmente de qualquer forma de teoria da manipulação. Para estes teóricos
críticos alemães, um ser humano nunca será redutível a um dos cachorros de Pavlov (NEGT;
KLUGE, 1993, p. 141, n. 2). Os seres humanos são capazes de resistir à indústria da
consciência pois “a organização geral do ser humano resiste a ser reduzida a um único interesse
que se apresenta como o todo” (NEGT; KLUGE, 1993, p. 185). A ideia (distópica) de que
seria possível uma regressão evolutiva total (por exemplo a um estágio anfíbio, a uma
26

condição de meros autômatos) seria completamente inconcebível do ponto de vista social,


estando limitada à literatura (como os livros de Aldous Huxley e George Orwell). Na
realidade, para a teoria crítica de Negt e Kluge, o capitalismo tardio não tem nenhum interesse
“por indivíduos cujo comportamento se reduza a meras reações” (NEGT; KLUGE, 1993, p.
185). Como visto ao longo do paper, é justamente neste jogo – contraditório – em torno da
capacidades humana da fantasia e da imaginação, que o capitalismo contemporâneo se
reproduz: enriquecida e domesticada, ativada e adormecida, desenvolvida e atrofiada,
tendências ambivalentes que canalizam o desejo por relações humanas não-alienadas e
significativas para a distração e a ilusão, em vez de para a ação coletiva transformadora.

Assim, a principal conclusão deste paper é: o paradigma da manipulação (subjacente


ao conceito da indústria cultural) é baseado em um diagnóstico totalizante de integração
vertical e de atrofiamento da imaginação; já o paradigma da fantasia (subjacente ao conceito
de indústria da consciência) é baseado em um diagnóstico ambivalente, no qual a imaginação
é sempre simultaneamente enriquecida e domesticada.

A maior contribuição de Negt e Kluge é, portanto, a complexificação da análise e do


diagnóstico da heteronomia no capitalismo tardio: não se trata de manipulação behaviorista ao
estilo dos cães de Pavlov ou da regressão anfíbia (noções bastante atuais, no sentido preciso
de aparecerem continuamente no debate público e no debate acadêmico, considerando a
emergência das redes sociais digitais), mas algo muito mais sofisticado: uma sutil e perversa
maquinaria – a indústria da consciência – que coloniza as faculdades mentais e sensíveis dos
seres humanos de imaginação e de fantasia – sua matéria-prima –, que as estimulam,
desenvolvem e enriquecem ao mesmo tempo em que as limitam, domesticam e distraem.
Assim, creio que Negt e Kluge permitem o afastamento definitivo da Teoria Crítica de
qualquer noção de manipulação irreflexiva.

Para concluir, registro meu espanto diante da fantasia sociológica dos autores: como
foi possível eles esboçarem um diagnóstico tão preciso e profundo do capitalismo tardio com
tão poucos desenvolvimentos tecnológicos e comunicacionais? Todas as análises aqui
apresentadas foram produzidas antes da consolidação da indústria dos videogames, antes da
expansão da indústria de VHS e antes do surgimento de discos ópticos (CD’s, DVD’s), dos
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computadores pessoais ou da rede mundial de computadores; como os próprios autores


afirmam no livro de 1972, eles identificavam a indústria de K7’s como uma das mais
tecnologicamente avançadas da época... Resta, portanto, o desafio de seguir esta rica trilha
para analisar as continuidades e descontinuidades da indústria da consciência e das novas e
novíssimas mídias, seus bloqueios à auto-organização da experiência humana bem como suas
potencialidades comunicativas e emancipatórias.

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