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Introdução
obra “na era da reprodução deixa de ser restrito e seletivo” e passa a ser coletiva, o que
“possibilita controle mútuo” (FRANÇA; SIMÕES, 2016, p. 199).
da consciência – que cria não bens materiais, mas produtos imateriais – e dos “carteis de
comunicação”, segundo tanto Enzensberger quanto, como será visto, Oskar Negt e Alexander
Kluge). As tecnologias da comunicação foram “trabalhadas como meios de industrialização
da consciência, obstaculizando o seu emprego realmente comunicativo” (RÜDIGER, 2011, p.
91), o que poderia levar ao questionamento das formas de dominação e das relações de
produção; a tarefa da esquerda seria, portanto, liberar o potencial comunicativo das novas
mídias que está, até o momento, bloqueado. É interessante notar que no capítulo dedicado no
manual à Escola de Frankfurt, o protagonismo é do Habermas maduro (e sua teoria da ação
comunicativa) e não da 1ª geração da Teoria Crítica (que, para o autor, considerava a
comunicação uma categoria ideológica e mistificadora).
Este paper vai buscar apresentar o conceito de indústria da consciência, tal como
desenvolvido pelos teóricos críticos alemães Oskar Negt (sociólogo e filósofo) e Alexander
Kluge (escritor, cineasta e ensaísta). Buscarei uma estratégia dupla. Inicialmente, apresento as
teorias da comunicação contra as quais Negt e Kluge estão se posicionando: o conceito de
indústria cultural em Adorno, Horkheimer e Habermas e a formulação original de
Enzensberger acerca da indústria da consciência (em diálogo direto com Brecht e Benjamin).
Na última metade do texto, apresento o sistema conceitual de Negt e Kluge desenvolvido no
livro Esfera pública e experiência (de 1972), no interior do qual sua teorização da
comunicação e da indústria da consciência se torna compreensível. Nas considerações finais,
busco contrapor os pressupostos dos conceitos de indústria cultural (o que eu chamarei de
paradigma da manipulação) e indústria da consciência (o que eu chamarei de paradigma da
fantasia) e defender a atualidade e a produtividade desta segunda abordagem.
A indústria cultural toma das mãos do sujeito o esquematismo kantiano (os dados
múltiplos da sensibilidade já se referem de antemão aos conceitos do entendimento). O
esquematismo da produção do sistema da indústria cultural antecipa todas as classificações (o
emprego arbitrário de estereótipos e clichês prontos), nada deixando para o próprio
consumidor classificar. As técnicas de reprodução mecânica do filme sonoro – como visto, o
produto mais característico da indústria cultural – buscam duplicar os objetos empíricos da
vida e do mundo exterior: “o filme adestra o espectador entregue a ele para se identificar
imediatamente com a realidade” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 119) pois o filme não
permite a divagação da fantasia e do pensamento de seus espectadores, paralisando, atrofiando
e recalcando a imaginação e a espontaneidade do consumidor cultural, além de proibir sua
atividade intelectual. O segredo da negação do estilo, característica da indústria cultural, é “a
obediência à hierarquia social” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 123).
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Huyssen (1975) apresenta e analisa o artigo “Indústria cultural reconsiderada” de Adorno, afirmando que o
conceito adorniano precisa ser contextualizado com relação às teorias da cultura de massas e da estética de
Kracauer, Brecht e Benjamin. As experiências concretas das quais o conceito nasceu são: o americanismo da
República de Weimar, a ascensão do nazismo e o choque cultural durante o exílio nos EUA. Vivendo em Berlim,
Kracauer, Brecht e Benjamin tinham uma visão positiva e esperançosa da racionalização, enquanto Adorno,
vivendo em Viena, via este processo como desencantamento, padronização e totalitarismo latente. Entre a
reflexão dos anos 1940 e a dos anos 1960 haveria somente uma mudança de ênfase: Adorno mitiga sua
condenação do esclarecimento como instrumento de dominação, abrindo espaço para a possibilidade de
indivíduos autônomos e um esclarecimento genuíno, em especial por meio de uma educação humanista. Segundo
o autor, Adorno seria mais atual do que as teorias de Brecht e Benjamin que se baseavam na arte revolucionada
pela tecnologia e, portanto, na cultura de massas “como um veículo para a mudança revolucionária” (com a
emergência de “modos coletivos revolucionários de produção e recepção de arte”), as quais teriam se revelado
ingênuas e demasiadamente otimistas, o que, aliás, se choca diretamente com o projeto de “revolução cultural
proletária” defendido por Negt e Kluge no início dos anos 1970. Benjamin teria se equivocado ao considerar que
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a reprodutibilidade mecânica permitiria uma recepção coletiva ou a ativação de “um público de massas orientado
à mudança revolucionária”; já para Adorno, a cultura de massas é uma “integração intencional de seus
consumidores de cima para baixo”. Se no capitalismo liberal havia a esfera pública burguesa enquanto esfera de
circulação cultural, a indústria cultural marca o encolhimento desta esfera e uma mudança na produção e
distribuição.
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Hansen (1981/1982) introduz e interpreta este artigo “Notas sobre o filme” [Transparencies on Film] de
Adorno. Na Dialética do esclarecimento, o cinema exemplificava como o sistema da indústria cultural subordina
a estética ao objetivo ideológico de “reproduzir o espectador/ouvinte como um consumidor”. Sob o capitalismo
monopolista eram inconcebíveis práticas alternativas de cinema; contudo, o artigo de 1966 parte do Novo Cinema
Alemão, reabrindo questões que estavam fechadas no seu modelo anterior (como a estética específica ao cinema
e a questão da recepção). Nos anos 1960, Adorno sugere uma relação mais complicada entre técnicas do cinema
e as conquistas artísticas de um filme, “concedendo à técnica cinemática o status de material estético”, pelo
menos no caso do cinema não-comercial. A tese da manipulação total foi acusada de elitismo, conservadorismo
cultural e condescendência, traços que desaparecem em “Notas sobre o filme”, sem contar uma ênfase na
recepção que revisa seus antigos pressupostos monolíticos: a diferenciação entre modos oficiais e não-oficiais de
seu comportamento, a discrepância entre a programação e a resposta do espectador e a ênfase em um potencial
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Segundo Huyssen (1975), logo antes de morrer, Adorno relativizou sua tese de
comercialização total da cultura, aludindo a uma consciência dupla (tal como Reich analisou
“a dualidade dos momentos conformista e emancipatório na psique da audiência de massas”).
No capítulo “Tempo livre” Adorno apresenta resultados de um estudo empírico realizado no
Instituto de Pesquisa Social sobre o casamento de uma princesa holandesa. Nesta investigação,
foram esboçados “sintomas de uma consciência duplicada”; na recepção do acontecimento
midiático, as pessoas “avaliavam com sentido crítico” a sua importância (ADORNO, 1995, p.
81). Adorno então conclui que o consumo dos produtos da indústria cultural não ocorre de
modo ingênuo, mas com uma certa reserva: “não se acredita inteiramente neles”. A
“integração da consciência e do tempo livre” não é, ainda, total, o que permite uma certa
resistência. Um potencial emancipatório é, assim, vislumbrado: em algum momento futuro o
tempo livre poderia se transformar em liberdade.
subversivo na resposta às obras. Hansen defende que, embora não cite o nome de Kluge, a influência do cineasta
alemão para Adorno é fundamental, não apenas por conta de sua amizade, mas também porque Kluge se apropria
tanto da Teoria Crítica quanto da literatura modernista para realizar seu cinema alternativo. Kluge concorda com
Adorno e Horkheimer sobre a imediaticidade visual do filme ser um poderoso mecanismo ideológico; já a sua
prática alternativa de cinema se baseia em uma concepção radical de montagem, que enfatiza a função dos cortes:
espaços vazios entre as cenas, rupturas que podem ser ativamente ocupadas pela imaginação do espectador, além
de justaposição de elementos heterogêneos e relações antitéticas de som e imagem. Esta forma de montagem
aponta para a contribuição do cinema para uma esfera contrapública e transforma finalmente esta arte em um
meio de cognição ao “negar o apelo afirmativo da imagem e interromper as cadeias de automatismo associativo”;
para Kluge, “a afinidade estrutural entre o filme e o fluxo de associações estabelece uma tradição utópica do
cinema nas mentes das pessoas para a qual as invenções tecnológicas como a câmera, o projetor e a tela apenas
responderam em uma escala industrial” (HANSEN, 1981/1982, p. 195). Se nos escritos dos anos 1940, o cinema
era condenado inequivocamente como passivo, reificante e totalitário, nos anos 1960, Adorno diagnostica a
possibilidade de uma prática alternativa baseada no deciframento crítico do espectador e que, assim, pode aspirar
a auto-consciência da arte moderna enquanto teoria dialética; segundo Hansen, nesta conclusão, o velho Adorno
acaba por se aproximar de Benjamin. Mas a autora também defende que mesmo em seus escritos anteriores,
Adorno já tinha revelado uma surpreendente aproximação a Brecht, como no livro Compondo para os filmes,
além de, junto com Horkheimer, ter reconhecido um potencial subversivo no primeiro cinema, da era muda (que
era anárquico, ilegítimo, grotesco e próximo do circo) e uma negatividade que, ao contrário do filme sonoro de
Hollywood, poderia apontar para um outro tipo de cinema.
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sua forma; neste contexto, facilitar economicamente o acesso aos bens culturais teria um
sentido emancipatório, pois permite a comunicação pública entre pessoas privadas e a sua
formação cultural. Contudo, no capitalismo tardio, o mercado de bens culturais se tornou uma
indústria cultural, na qual estes bens passam a ter a sua apropriação privada: o consumo de
produtos culturais que se tornaram mercadorias não se dá apenas na forma, mas agora também
no conteúdo; facilitar psicologicamente o acesso a estes bens deixa de ter caráter
emancipatório e passa a ser regressivo.
A mudança de função política da esfera pública não atinge apenas a imprensa, mas
também os partidos políticos. Depois do primado dos partidos de notáveis e do partido de
classe, a história política dos partidos modernos atinge uma terceira fase: os partidos de massa
de integração superficial, que se baseiam em relações públicas e uma publicidade que
manipula de cima para baixo o comportamento eleitoral da população, a fim de fabricar
prestígio, demonstrar a posição do partido e induzir sua aclamação. Emerge, então, uma esfera
pública despolitizada e produzida – fabricada temporariamente por administradores de
campanhas eleitorais publicitárias com fins de manipulação – e uma opinião não-pública –
muito mais uma gestão de impulsos subconscientes ou inconscientes do que uma
transformação das opiniões pessoais em opinião pública por meio de uma argumentação
crítico-racional, como ocorria no modelo liberal da esfera pública burguesa (HABERMAS,
2014).
Para Enzensberger (1975 [1962]), o termo indústria cultural seria inadequado, vago e
insuficiente, pois a indústria da mente não produz, de fato, nada; a consciência só “pode ser
induzida e reproduzida por meios industriais, mas não pode ser produzida industrialmente” (p.
69). Esta indústria depende, na realidade, da substância que ela própria teme, suprimindo o
que ela própria se alimenta: “a produtividade criativa das pessoas” (ENZENSBERGER, 1975,
p. 69). O termo indústria cultural é ambíguo pois toma como valor de face as reivindicações
tanto da cultura (no seu sentido antigo) quanto do processo industrial. Enzensberger acredita
que McLuhan também não foi capaz de produzir uma verdadeira teoria da comunicação. A
industrialização da mente [mind] humana tem como efeito a abolição da “distinção entre as
consciências privada e pública” (ENZENSBERGER, 1975, p. 69). A indústria criadora da
mente [mind-making] é formada por vários setores: imprensa, mercado editorial, rádio,
cinema, telefone, telex, televisão, vídeo, propaganda, relações públicas, moda, design
industrial, propagação de religiões e cultos, turismo e educação. A industrialização da mente
tem quatro condições: (1) filosófica: a superação iluminista do pensamento teocrático; (2)
política: a proclamação dos direitos humanos (como igualdade e liberdade); (3) econômica: a
acumulação de capital para superar a mera subsistência e liberar energias humanas; (4)
tecnológica: o uso industrial da energia elétrica para a comunicação (rádio, filme, vídeo,
televisão e técnicas computacionais). Estes pré-requisitos estariam se espalhando por todo o
planeta, mas em diferentes temporalidades. Se o processo de expansão da indústria da mente
é irreversível, qualquer crítica abolicionista seria inepta, suicida e reacionária. O principal
negócio da indústria da mente não é vender seu produto, mas “vender” a ordem existente,
perpetuando padrões de dominação por meio da expansão, treinamento e exploração de nossa
consciência. Para além da exploração material já analisada pelo marxismo clássico, trata-se
agora de uma exploração imaterial; na modernidade, todas as estruturas de poder e suas elites
devem obter o consentimento dos sujeitos, controlando e manipulando suas mentes: “para
expropriar força de trabalho, elas [as elites] devem expropriar o cérebro”, substituindo a
pauperização material do século XIX por uma pauperização imaterial (ENZENSBERGER,
1975, p. 73). O dilema ou a contradição da industrialização da mente é: para obter consenso,
é preciso possibilitar escolhas e alternativas (mesmo que marginais); para se aproveitar das
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faculdades (intelectuais, morais e políticas) da mente humana, estas precisam, antes, serem
desenvolvidas. Deste modo, Enzesnberger diagnostica que a indústria da mente nunca se torna
“completamente controlável como um todo”, sempre havendo necessariamente fugas e
fissuras (ENZENSBERGER, 1975, p. 74). Se passamos dos consumidores da indústria da
mente para seus produtores, percebemos que ela e os seus proprietários dependem do trabalho
criativo, inovador e imprevisível de intelectuais, os quais são potencialmente desordeiros e
subversivos (ou seja: são cúmplices de um enorme complexo industrial e, ao mesmo tempo,
seus potenciais inimigos). Para poder explorar e manipular seus consumidores, a indústria da
mente precisa antes explorar e manipular produtores com objetivos incompatíveis (a
proliferação da consciência humana prolifera as contradições da mídia).
O fator político decisivo destas mídias eletrônicas é o seu poder de mobilização, pois
elas possibilitam a participação das massas no processo socializado de produção.
Tecnicamente, as mídias eletrônicas colocam as condições que permitem uma ação recíproca
entre transmissores/receptores, falantes/ouvintes, ou seja, para transformar, por exemplo, o
rádio de um meio de distribuição para um meio de comunicação (como defendia a teoria do
rádio de Brecht); o que impede isto, hoje, é a divisão social do trabalho entre uma classe
dominante (o capital monopolista) e uma classe dominada (as massas dependentes).
A manipulação é pressuposta por qualquer uso das mídias pois todos os processos na
produção midiática são operações de manipulação da matéria bruta – filmar, cortar,
sincronizar, dublar, distribuir, etc. Como é impossível escrever, filmar ou radiodifundir de
forma não-manipulada, a questão não é combater a manipulação, mas saber quem manipula;
em vez do desaparecimento dos manipuladores, a revolução seria transformar todas as pessoas
em manipuladoras. É a sua estrutura igualitária e coletiva das mídias eletrônicas que permitem
processos massivos e auto-regulados de aprendizado.
A esquerda marxista deve pensar e agir a partir do uso estratégico das forças produtivas
mais avançadas a fim de libertar os seus fatores imanentes mas, com exceção de Benjamin e
Brecht, os marxistas não foram capazes de interpretar a indústria da consciência pois só
focaram no seu aspecto sombrio burguês e capitalista, em vez de suas possibilidades
socialistas; a teoria da reificação de Lukács e o conceito de indústria cultural de Horkheimer
e Adorno seriam exemplos desta nostalgia atrasada e reacionária. Para Enzensberger, teorias
e práticas não-marxistas de vanguardas apolíticas (dos Beatles a McLuhan) fizeram muito
mais progresso no uso estratégico do poder produtivo das novas mídias do que qualquer grupo
de esquerda nos países industrializados ocidentais. McLuhan, contudo, seria incapaz de
apresentar uma teoria, mas tão somente uma doutrina mística e idealista de salvação dos seres
humanos por meio da tecnologia da TV. Enzensberger reinterpreta a frase de McLuhan – “o
meio é a mensagem” – como uma admissão de que a burguesia tem à sua disposição os meios
de comunicar algo, mas não tem nada a dizer; embora ela tenha controle os meios de produção,
ela seria ideologicamente estéril.
O predomínio da cultura escrita foi historicamente muito curto, tendo sido antecedido
pela literatura oral e agora sucedido pelas mídias eletrônicas. A literatura escrita e a burguesia
que a produziu foram, em um certo momento, progressistas. Mas como a escrita é uma técnica
altamente formalizada, ela corresponde a um alto grau de racionalização e de especialização e
as regras normativas e intimidadoras que a governam são um fenômeno específico de classe,
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aprendido e reforçado por uma socialização autoritária nas escolas. Já o livro impresso é um
meio que opera estruturalmente como um monólogo que isola produtores e leitores, limitando
sua interação e excluindo o público de modo elitista. Todas estas características da literatura
impressa valem para as mídias eletrônicas (como microfone e câmera) “abolem o caráter de
classe do modo de produção (mas não da própria produção)” (ENZENSBERGER, 1970, p.
33). Rádio, cinema e televisão ainda funcionam sob o peso do monólogo, mas isto não é uma
consequência estrutural destas mídias, pois na realidade suas estruturas demandam interação.
Negt e Kluge (1993, p. 165) partem das cinco características fundamentais que Lenin
atribuiu ao fenômeno do imperialismo:
complexo de mercadorias, que vende para o consumidor o seu próprio Contexto da Vida pré-
organizado e força o produtor cultural (de livros, pesquisas, programas educacionais, filmes,
etc.) a se submeter a uma rede de distribuição cartelizada e que concentra a produção dos
equipamentos eletrônicos, caso contrário seu produto não conseguiria alcançar as massas. Por
um lado, a indústria da consciência busca satisfazer uma necessidade fundamental dos seres
humanos por síntese diante das particularizações criadas pelo capitalismo; por outro, a
indústria da consciência é consolidada para que “o capitalismo [reaja] aos impulsos orientados
ao desenvolvimento emancipatório das capacidades humanas” (NEGT; KLUGE, 1993, p.
133). Em outro momento os autores chamam esta necessidade por síntese de “conexão
imaginária de sentido”: as mercadorias culturais produzidas pelos conglomerados midiáticos
buscam interpelar as nossas necessidades de compensar, por meio da nossa própria capacidade
para fantasiar e sonhar, a alienação da vida cotidiana e do processo de trabalho.
debate público de modo bastante cético quanto às potencialidades da mídia televisiva3, passou
a colaborar de forma cada vez mais frequente com séries produzidas para a TV.4
Por fim, interpreto que o capítulo 5 é aquele que melhor apresenta uma definição
conceitual do chamado cartel de mídia (às vezes traduzido como conglomerado midiático).
Negt e Kluge buscam superar o conceito de indústria cultural de Adorno e Horkheimer não
apenas pois discordam radicalmente do diagnóstico de manipulação dos espectadores e
consumidores de mercadorias culturais, mas também porque eles enxergam a necessidade de
atualizar a teorização dos meios de comunicação de massa tendo em vista a substituição da
hegemonia das mídias clássicas (como rádio e cinema – analisados na Dialética do
esclarecimento, nos anos 1940 – além da TV) pela emergência das chamadas novas mídias
eletrônicas: as fitas magnéticas (a indústria de K7’s), a radiodifusão via cabo e via satélite,
bancos de dados com capacidade de armazenamento eletrônico e, por fim, o cartel de mídia
que surge em torno da indústria eletrônica. Diferentemente do rádio e da TV, que falam “a
quem possa interessar”, de modo indiscriminado e indeterminada, estas novas mídias são
capazes de transformar necessidades de indivíduos ou de grupos-alvo em objetos a serem
explorados de modo capitalista. Outra diferença fundamental entre as mídias clássicas e as
novas mídias da época é a atenção demandada por estas últimas; aqui, novamente, a
abordagem da ambivalência se torna presente e significativa: as novas mídias demandam uma
atenção tanto especializada quanto holista, enquanto as mídias clássicas trabalhavam com uma
sensibilidade (no sentido de faculdades ou órgãos do sentido) organizada com base na antiga
divisão taylorista do trabalho: a audição no caso do rádio, a visão via leitura no caso dos jornais
e da TV, a visão via padrões de movimento no caso do cinema. O cartel de mídia ameaça a
auto-organização da experiência humana, pois o objeto que ele processa é a mesma matéria-
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Em curioso debate televisivo que está disponível no YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=_8ReHF-
_jGY), Kluge diagnostica que a TV seria uma mídia técnica, administrativa e jurídica sem espaços para reflexão,
ao passo que o produtor do programa se rebela e interrompe bruscamente o debate, que continuou a ser gravado
mesmo assim.
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Esta relativização de que a mídia televisiva teria, sim, potencialidades, já havia sido tematizada em um longa
(Artistas na Cúpula do Circo: Perplexos, de 1968) e um curta (A indomável Leni Peickert, de 1970) de Kluge;
alguns comentadores de sua obra especulam se ele não estava refletindo se valeria a pena combinar uma atuação
cinematográfica com uma atuação na televisão da Alemanha Ocidental (a qual, como dito, não é comparável ao
contexto midiático de outros países capitalistas, devido ao predomínio absoluto da TV enquanto serviço público
até meados dos anos 1980).
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prima a partir da qual a esfera pública proletária poderia se constituir a si mesma. Em minha
leitura, neste capítulo e no seguinte, Negt e Kluge esboçam uma diferenciação na qual a
indústria da programação seria responsável pela produção de programas, ou seja, softwares,
enquanto o cartel de mídia aparece como os conglomerados da indústria eletrônica, que
produzem hardware; neste diagnóstico, os interesses do capital em torno do software seriam
subordinados aos interesses do capital em torno do hardware.
Na teoria crítica de Negt e Kluge, a esfera pública não é considerada uma totalidade
homogênea, mas uma sobreposição de formas bastante heterogêneas de organização da
experiência social coletiva. Se a experiência social individual é produzida pelos processos de
socialização primária e secundária nas esferas privadas da família e da produção, a experiência
social coletiva é organizada pelas diferentes modalidades de esfera pública. A esfera pública
burguesa se baseava na diferenciação estanque entre público e privado pois excluía o processo
de produção (a fábrica) e a socialização primária (a família); outros mecanismos de
funcionamento desta esfera pública tradicional excluem trabalhadores, mulheres e crianças. Já
as esferas públicas industrialmente produzidas pela indústria da consciência superam esta
situação, passando a acessar diretamente as esferas privadas das pessoas. A indústria da
consciência opera uma espécie de inclusão excludente, se apropriando e domesticando o
Contexto da Vida proletário, organizando heteronomamente (de cima para baixo e de fora para
dentro) a experiência das pessoas: seu desejo de uma vida significativa se torna a matéria-
prima da indústria cultural (a ser reconceitualizada pelos autores enquanto indústria da
consciência), um processo de dilaceração entre um elemento apropriável da consciência e um
elemento empobrecido e subjugado, tendo em vista tão somente o filtro do interesse de
autovalorização do valor. Há, assim, amálgamas, sobreposições, conflitos, fissuras e
contradições entre as diferentes formas de esfera pública, como, por exemplo, a luta entre a
indústria privada da consciência e a indústria da programação da rede pública de TV na
Alemanha Ocidental para subsumir uma lógica de esfera pública à outra. Por conta destes
desenvolvimentos históricos, em vez de se compreender como a antítese da esfera pública
burguesa, a esfera pública proletária precisa se auto-compreender, a partir de meados do século
XX, como necessariamente em confronto com estas novas esferas públicas da produção. O
modo de produção da esfera pública burguesa clássica era quase artesanal: jornais, clubes,
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Considerações finais
Para concluir, registro meu espanto diante da fantasia sociológica dos autores: como
foi possível eles esboçarem um diagnóstico tão preciso e profundo do capitalismo tardio com
tão poucos desenvolvimentos tecnológicos e comunicacionais? Todas as análises aqui
apresentadas foram produzidas antes da consolidação da indústria dos videogames, antes da
expansão da indústria de VHS e antes do surgimento de discos ópticos (CD’s, DVD’s), dos
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