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CAPÍTULO 1

DESIGN E SOCIEDADE

1.1 A TEORIA CRÍTICA E O DESIGN


Ao observar as profundas transformações sociais, culturais, políticas e
econômicas que marcaram o início do século XX, é possível elucubrar sobre o
período que também marca o surgimento do design e a sua relação intrínseca com
a indústria, bem como com escolas de engenharia, arte e movimentos artísticos.
Esse momento importante da humanidade é objeto da Teoria Crítica, em especial
dos postulados de Benjamin (1992) e de Adorno e Horkheimer (2006), da Escola
de Frankfurt. Faz-se necessário esclarecer que não se pretende aplicar a Teoria
Crítica aos estudos em design, mas, a partir dessa visão de mundo, trazer à luz
discussões relevantes que interessam ao design e à sociedade. Esse é um desafio
audacioso, não convencional no design: um desafio de caráter político, que re-
presenta convicções e uma visão crítica da sociedade contemporânea que, desde
o século passado, vem se constituindo como tal. Todavia, não se pode ignorar a
sua relação com a industrialização, que resultou em profundas transformações
sociais, econômicas e políticas.
A industrialização, ícone da modernidade, é resultado do desenvolvimento da
técnica e da supremacia da razão. Portanto, fazem parte desse debate paradigmas
Cenários panoramáticos: uma metodologia para projetação em design estratégico

que criticam um momento da humanidade no qual o domínio da técnica e da razão,


preconizado pelo Iluminismo,1 prevalece em busca do Esclarecimento. O programa
do Esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os
mitos e substituir a imaginação pelo saber (ADORNO; HORKHEIMER, 2006).
Com essa afirmação, os autores criticavam a perspectiva do saber como justificativa
da supremacia do homem, um saber que representava o poder de dominação do
homem sobre a natureza. Destaca-se, nesse contexto, que os interesses econômi-
cos, muitas vezes, superaram os interesses sociais. A lei do mercado moldou a
ideologia de vida e passou a ser um meio de sobrevivência em uma sociedade na
qual o consumo insere ou exclui os indivíduos.
Quando Adorno e Horkheimer (2006, p. 9) afirmam que “o ambiente em
que a técnica adquire tanto poder sobre a sociedade, encarna o próprio poder dos
economicamente mais fortes sobre a mesma sociedade”, eles defendem a ideia
de que a racionalidade técnica é a racionalidade do próprio domínio relativo à
sociedade que se autoaliena. Essa racionalidade é compreendida como aquilo capaz
de dominar o sujeito e domesticar a visão sobre a realidade. Adorno e Horkheimer
(2006) chamaram de Indústria Cultural esse processo de racionalização da própria
cultura e alienação2 do homem. Segundo Adorno (2004), a Indústria Cultural
impede a formação de indivíduos autônomos, capazes de julgar e de decidir
conscientemente. Se a Revolução  Industrial tornou mecânica a relação entre
homem e trabalho, a Indústria Cultural tornou mecânica a relação entre o homem e
sua própria subjetividade. Pois a produção em série de bens culturais tem como
finalidade satisfazer, de forma ilusória, necessidades geradas pela estrutura de
trabalho. O resultado, para Adorno e Horkheimer (2006), é que o homem passa a
ser um simples meio para a produção de riquezas; logo, para o acúmulo de capital.
Outra grande transformação, também abordada na crítica à Industria
Cultural, é a transformação da arte. Benjamin (1992) chama de “era da repro-
dutibilidade técnica” o período em que a fotografia e o cinema protagonizam
importantes transformações sociais. Esse momento marca profundamente a
arte, desde os meios de produção até o consumo, com a reprodução técnica que

1
Adorno e Horkheimer (2006), a partir de uma análise sobre a sociedade técnica, entendem
por Iluminismo o itinerário da razão, que pretende racionalizar o mundo, tornando-o manipulável
pelo homem.
2
Segundo Marx (2006), a alienação é uma condição objetiva, historicamente situada,
resultante do processo de divisão social do trabalho sob o capitalismo e da condição da
propriedade privada. É também uma condição subjetiva em relação à condição do homem sobre
ele mesmo. A condição do homem depende do trabalho e vice-versa, é alheia a ele.

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permitiu sua distribuição em massa. Lembra-se que, a partir de Benjamin (1992),


a produção artística teve início com imagens a serviço da magia, quando não
havia sua exposição e distribuição e o acesso às obras de arte era restrito aos reis
e religiosos. Porém, uma vez que a arte se emancipou do ritual da magia e sua
exposição aumentou, ela passou a fazer parte de um aprendizado social e também
do mercado. Com isso, a arte perdeu a sua aura e atingiu um status político, em
que o valor do culto deu origem ao valor da exposição. O valor da exposição e o
status político conferem à arte a possibilidade de emancipação do homem dessa
Indústria Cultural. Ao fazer parte de um aprendizado social, ela se torna um
meio de produção de conhecimento e de transformação da sociedade. No entanto,
Benjamin revela que foi a arte o instrumento de doutrinação das massas, utilizada
pelos projetos políticos totalitários que marcaram o início do século XX, como o
nazismo e o fascismo. A crítica de Benjamin repousa sobre o uso que os regimes
totalitários fizeram da arte, a finalidade, em especial do cinema. Segundo ele, “o
fascismo tende para a estetização da política” (BENJAMIN, 2017, p. 46); tal fato
decorre das possibilidades oriundas da era da reprodutibilidade técnica.
A transformação da arte não modifica apenas o mundo das imagens, mas
modifica o mundo perceptível e, portanto, a forma como a sociedade constrói a
sua realidade. E na fotografia isso acontece pelo viés da reprodução em massa das
obras de arte existentes e também pela difusão das imagens que representavam
uma realidade que antes não podia ser captada a olho nu, chamada por Benjamin
(2017) de inconsciente óptico. A partir disso, foi possível focar nos detalhes que
a imagem podia apreender e, assim, perceber fatos antes ocultos a olho nu. Um
exemplo é a transformação que o fotojornalismo provocou nos meios de comu-
nicação da época. A cena de um crime, antes descrita somente pelas palavras
do texto jornalístico, passou a ser amplamente difundida; a fotografia do crime
apresentou os mais obscuros e profundos detalhes do fato, imagens que o olho
humano não poderia captar sem o recurso da câmera fotográfica.
O cinema também foi objeto de crítica para Benjamin (2017). A partir da
aceleração da sequência de imagens por meio da montagem e dos recursos como
enquadramento, lente de aumento e tomadas em primeiro plano, o cinema criou nova
experiência de percepção do mundo. A câmera lenta, para o autor, é um exemplo
importante que destaca momentos e detalhes que antes passavam despercebidos,
uma vez que no teatro, por exemplo, tais recursos não estavam disponíveis.
Benjamin (2017) explica que o cinema não mostra a realidade para o ex-
pectador, mas apresenta imagens da câmera. Para ele, o expectador experimenta
diversas sensações, testando e estranhando. E ainda: “o cinema caracteriza-se não

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só pelo modo como o homem se apresenta perante a aparelhagem, mas também


pelo modo como, com a ajuda desta, ele representa o mundo circundante [e como
isso] enriqueceu nossa percepção” (BENJAMIN, 2017, p. 37). Fotografia e cinema
marcam o período chamado pelo autor de “era da reprodutibilidade técnica”. A
crítica de Benjamin condiz com as transformações também apontadas na crítica
de Adorno e Horkheimer (2006) à Indústria Cultural.
Para Adorno (2004), o homem é um mero instrumento de trabalho e con-
sumo nessa Indústria Cultural e pode ser comparado a um objeto manipulável e
ideologizado, em aspectos que vão além do seu trabalho, quer seja em sua vida
familiar, de lazer ou religiosa. O que disso decorre é que a ideologia dominante
passa a ser a máquina e o homem, em parte, torna-se também um produto. A saída,
segundo Adorno (2004), encontra-se na própria cultura do homem, na limitação
do sistema e na valorização da estética. Adorno (1970), com a Teoria Estética,
afirma que não adianta combater o mal com o próprio mal, pois é a arte que pode
libertar o homem das amarras do sistema e transformá-lo em um ser autônomo.
Para ele, o campo da arte é o único reduto autêntico da razão emancipatória e
da crítica à opressão social. Se na Indústria Cultural esse homem é um objeto
de trabalho e consumo, na arte ele é um ser livre que sente, pensa e age. Adorno
e Horkheimer (2006) conferem à arte um papel crítico em relação à cultura, à
sociedade capitalista e à racionalidade técnica. Para os autores, as transformações
sociais exigem mudanças culturais.
A Teoria Estética de Adorno aponta para caminhos contrários à estética de
Kant, que postula ser a racionalidade a marca da nossa maioridade enquanto
humanos. Kant (1995) relaciona a estética ao conceito de belo e propõe ao homem
o julgamento da beleza a partir dos princípios e dos conceitos da razão. Para o
filósofo alemão, “aquilo que é puramente subjetivo na representação de um objeto,
isto é, o que constitui a sua relação ao sujeito, e não ao objeto, é a sua qualidade
estética” (KANT, 1995, p. 49-50). De outro modo, Adorno denuncia a crise desse
sujeito kantiano e propõe a liberdade do homem pela arte, em face do processo
de racionalização do mundo. O sujeito, enfraquecido pelo domínio da indústria
cultural, encontra na relação com outros sujeitos uma retomada da sua subjetividade.
Interessa a este estudo, portanto, a experiência estética em Adorno, uma vez que
não está mais subordinada pela relação sujeito e objeto, como em Kant (1995). Na
arte, a supremacia do homem em relação à natureza perde força, pois a experiência
estética permite a recusa da dominação, própria da racionalidade instrumental.
O homem refugia-se na natureza oprimida e uma nova relação homem-natureza
e sujeito-objeto é estabelecida em uma perspectiva não mais antropocêntrica. Tal

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premissa equivale a uma visão de que o homem, pela racionalidade, não domina
a natureza e não domina o objeto. À luz da Teoria Estética, proposta por Adorno
e Horkheimer (2006), entende-se que o design, que surge como produto dessa
Indústria Cultural, de algum modo pode ser emancipado pela arte. A intenção,
como alerta Benjamin (2017, não é de uso da arte, pois implicaria a estetização
do design. A arte não pode ser vista como finalidade ou pela sua função social.
Por outro viés, Rancière (2005) entende a arte pela sua forma libertadora,
como um regime de partilha. O autor critica a visão de arte como um regime
figurativo, que educa e ensina pelo padrão figurado, e concebe-a como um modo
de ser (ethos) ou, ainda, como um regime poético ou representativo que organiza
as maneiras de fazer na sociedade. Para contrapor essa visão de arte como
regime figurativo ou representativo, Rancière (Ibid.) propõe um regime estético
da arte no qual a estética apresenta-se como um modo de ser específico da arte,
relativo ao modo de ser dos seus objetos. A estética, para Rancière (Ibid.), não
corresponde ao gosto ou ao prazer, mas é relativa ao sensível. Para esse autor, o
regime estético é o paradoxo da forma da própria arte, pois atenta contra todas as
formas. Portanto, a arte, como o design, poderia não ser somente a imitação ou
representação da realidade, como também poderia ser a criação e, sendo assim,
ela não representa o mundo, mas cria o seu mundo. Benjamin (2017), ao criticar
a estetização da política na arte, aponta para o regime figurativo e representativo,
para um regime que provoca o modo de ser, que ensina pela mimesis. Rancière
(2005) se contrapõe a essa premissa com a proposta de um regime estético, o que
marca a diferença da arte enquanto fim e meio. A arte na sua forma libertadora,
deve-se ser compreendida pelo regime estético, viés crítico adotado por Rancière
(Ibid.). Ou seja, o autor não alicerça sua perspectiva de arte sobre o uso que
faz dela, mas pela sua forma e os regimes que as sustentam.
Acrescenta-se que a arte tem na faculdade da imaginação a possibilidade
de criar aquilo que não existe, pois ela representa aquilo que não foi submetido
ao estado de dominação imposto pela racionalidade técnica (ADORNO, 1970).
Adorno (2004) observa que a arte, ao apresentar a imagem daquilo que não
equivale à realidade, cria no sujeito uma experiência estética que ultrapassa os
limites da racionalidade, permite a ele negar aquilo que o domina (a realidade),
portanto, o liberta. Nesse sentido, Benjamin (1992) propõe uma relação entre
Erfahrung (experiência) e Erlebnis (vivência) com os conceitos freudianos de
memória e consciência. A experiência é associada a uma memória, a um tipo de
produção de sentido, uma marca inscrita no sujeito. E a vivência cria no sujeito
uma consciência, um modo para lidar com o mundo moderno.

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Cenários panoramáticos: uma metodologia para projetação em design estratégico

Para Adorno (2004), a arte é a instância crítica que possibilita uma experiência
diferente daquilo que é imposto pela Indústria Cultural. A arte moderna é abstrata,
aponta para aquilo que não existe, para o novo, escapando a qualquer tentativa de
instrumentalização. Adorno (1970), então, confere à arte um caráter social, uma
forma de conhecimento e também de crítica à razão absoluta e ao totalitarismo.
Diferente da perspectiva de função da arte com caráter utilitário, objeto da crítica
de Benjamin (2017).
Desse modo, aproximar a arte e os processos de projetação em design pode
ser transformador, colocando o design no campo da imaginação e não somente
da representação. Essa proposta parte do princípio de que uma sociedade pautada
exclusivamente pela racionalidade técnica opera entre o pensar e agir e que, por
outro viés, pensar e sentir, ou sentir e pensar, seriam próprios de uma sociedade
pautada não apenas por essa racionalidade. O design implicado pela arte encontra
caminhos para alcançar uma sociedade humana além do Iluminismo, além da
dominação resultante da doutrina do Esclarecimento.
Nesse sentido, a projetação envolve uma ação reflexiva que critica a realidade
e, com potencial prático, age sobre essa realidade. Ao apontar a relevância da
relação entre arte e design, evidencia-se a possibilidade da transformação da
realidade em que a técnica prevalece para uma nova sociedade que a incorpora,
mas que não é dominada por ela. Se o design opera, por vezes, em uma lógica de
mercado, na qual sua autonomia é limitada pelos interesses econômicos, então ele
corre o risco de também tornar-se um produto da Indústria Cultural. Todavia, o
design pode ser emancipado dessa Indústria Cultural quando se aproxima da arte.
A arte é livre, emancipatória. Pela arte, resgata-se a estética, a ética e a política no
projeto de design. Ou seja, deve-se pensar em uma sociedade na qual o projeto de
design não seja orientado somente pela lógica de mercado, em que o lucro está na
centralidade das demandas, mas em uma sociedade na qual o sujeito sente, pensa
(sobre a própria realidade) e age (com ferramentas, tecnologias).

1.2 O DESIGN E A ARTE: ESTÉTICA, ÉTICA E POLÍTICA


A partir da premissa de que a relação entre arte e design favorece resultados
transformadores, pois promove a imaginação, inicia-se um caminho em direção à
estética, ética e política na projetação em design. Sem a pretensão de determinar um
conceito estrito, apenas pontuaremos que a arte, nesse contexto, é compreendida
pelos regimes estético, ético e político relativos ao que Rancière (2005) chama
de partilha do sensível que, em suma, são modos de relacionar-se com o mundo,
relativos aos modos de ser, de viver e de dizer.

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Design e sociedade

Denomino partilha do sensível o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo


tempo, a existência de um comum e dos recortes que nele definem lugares e partes
respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo tempo, um comum
partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda numa
partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina propriamente a manei-
ra como um comum se presta à participação e como uns e outros tomam parte nessa
partilha (RANCIÈRE, 2005, p. 15).

Parece oportuno observar que o design opera nesse sistema de evidências


sensíveis e pela experiência do sujeito, “faz ver quem pode tomar parte no comum
em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que essa atividade se exerce”
(RANCIÈRE, 2005, p. 16). Ou seja, a experiência do sujeito faz ver. Essa partilha
é percebida de forma consensual e dissensual, o que marca a posição política do
homem no mundo, a exemplo do lugar da mulher ou do negro em determinados
momentos históricos. O mesmo autor propõe na partilha do sensível, a união do
comum e a separação das partes exclusivas ao definir o fazer ver, pois coloca luz
ao que é visível e, também, ao que é invisível nessa partilha. Nesse sentido, a arte
inaugura uma nova forma de visibilidade, e assim faz ver.
Ademais, entende-se essa partilha como um tecido, cujos fios são as relações
estabelecidas pelas práticas sociais que os constituem, o modo como sentimos
e percebemos o mundo. Por isso, Rancière afirma: “a estética promete uma
concepção não polêmica e consensual do mundo comum” (RANCIÈRE, 2002,
p. 8, tradução da autora). E mais, a política acontece no encontro discordante
das percepções individuais, das subjetividades – ela é, na sua essência, estética,
pois está fundada sobre a partilha do sensível. Então, a política tem sempre uma
dimensão estética;3 sendo assim, a dimensão sensível do design corresponde às
evidências sensíveis desse sistema. Sugere-se que essas evidências são sempre
organizadas pela possibilidade dos corpos que se fazem ver visíveis e invisíveis
em um estado de tensão, uma vez que sempre haverá a chance de alternância
dessas posições por eles ocupados. Por isso, a partilha do sensível é dinâmica e é
marcada pela possibilidade de mudança. Tais alternâncias são matéria de interesse
para o design, pois representam a possibilidade de elaboração de novos sistemas
de partilha sensível, o que é materializado pelo projeto de design.
A estética é um tipo de percepção sobre o mundo que se manifesta pela
dimensão sensível, como um modo de se relacionar com os fenômenos. É aquilo
que funda a percepção do sujeito sobre o mundo através dos sentidos. Ou seja,

3
Essa dimensão estética da política, não é correlata à estetização da política, que Benjamin
critica, uma vez que a perspectiva de Rancière sobre a arte não é sobre o uso da arte, seu fim, mas
relativo ao regime estético que é um modo de ser da arte.

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Cenários panoramáticos: uma metodologia para projetação em design estratégico

a estética não está na forma, nem no objeto, mas no modo como percebemos o
mundo e também remete ao modo de ser específico da arte, à matéria do sensível
(RANCIÈRE, 2005). A estética, pela compreensão da partilha do sensível,
sustenta o modo de funcionamento da sociedade. A partir disso, Rancière (2009)
propõe pensar a estética pelo ato estético que, em particular, é caracterizado pela
introdução de objetos novos e heterogêneos ao campo social da percepção, no
comum. O ato estético é uma ação em que o sujeito percebe o mundo pelo sensível,
assim como o ato projetual é uma ação de projetação. Ao fazê-lo, o ato estético
afeta a experiência do sujeito de certa maneira: reorienta o espaço da percepção e
rompe as formas de pertencimento sociocultural arraigadas no mundo cotidiano.
Enquanto ato, ele representa a sua realização, sua ação, sua existência no mundo.
Sobre política, Rancière (1996, p. 372) a define como “o conjunto das atividades
que vêm perturbar a ordem [...]. Manifesta-se apenas pelo dissenso, no sentido mais
originário do termo: uma perturbação no sensível, uma modificação singular do
que é visível, dizível, contável”. Nesse sentido, a política que envolve um tipo de
ação está presente na projetação em design, assim como a estética, que envolve
a percepção do mundo sensível. Além disso, “antes de ser um conflito de classes
ou de partidos, a política é um conflito sobre a configuração do mundo sensível
na qual podem aparecer atores e objetos desses conflitos” (RANCIÈRE, 1996, p.
372). A realização da promessa política é o ato político e ambos (ato estético e ato
político) têm consequências que não são controladas ou programadas, segundo o
mesmo autor. Logo, o debate se torna profícuo para o design quando ganha o status
da prática, não apenas conceitual, e é ressignificado nos processos de projetação.
Ainda nessa reflexão, a ética, segundo Rancière (2005), equivale ao comum, à
maneira de ser do sujeito e do coletivo, relativa às formas de discursos e de práticas,
sob um ponto de vista consensual. Assim, o autor apresenta a ética enquanto ethos:
como modo de ser e viver, o que garante ao sujeito um vínculo com o entorno; e
ainda a ética enquanto princípio de ação, pelo viés social. A ética diz respeito ao
modo como a partilha do sensível se realiza, pela maneira como os sujeitos rela-
cionam-se. Por outro viés, a ética, em uma perspectiva kantiana, está relacionada
àquilo que se manifesta como uma exigência moral, como o homem deve agir.
Para Kant (1995), a ética não é determinada pelo princípio da motivação do sujeito,
mas é externa a ele, como lei universal. Assim como na estética, Adorno (1993)
contrapõe-se à perspectiva da ética kantiana; na obra Minima moralia, explica
que se deve aprender a lidar com a moralidade, a senti-la e, assim, a se apropriar
dela. Para Adorno (1993), a consciência moral interna no sujeito é despertada
pela experiência do corpo, pela sensibilidade. Por isso, ética, estética e política

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Design e sociedade

estão intimamente relacionadas, não pela noção de dever, como diria Kant, mas
pela dimensão do sensível, o que está de acordo com a proposta de Rancière. E
a ética é um modo de agir, sem dúvida, mas atrelado à percepção da dimensão
sensível. E mais: diferentemente do sujeito kantiano, que age motivado pelo dever
moral (externo a ele), o sujeito, em Adorno, é enfraquecido pela sociedade, no
entanto, pela experiência estética, e experiência com outros sujeitos, ele retoma
à sua subjetividade. Nesse resgate, a moral passa a ser uma operação interna do
sujeito, na relação entre o corpo (do sujeito) e o mundo.
Se o ato político representa a ação que perturba pela sensibilidade, o ato
estético é um modo de percepção do mundo pela dimensão sensível, e o ato ético
é um modo de agir despertado pela sensibilidade. Logo, os atos ético, estético e
político são emancipatórios, pois podem libertar o sujeito. A proposta não é dis-
sociar tais atos, mas, a partir da sua concepção como tal, colocá-los no horizonte
dos processos de projetação. Essa proposição é sintetizada pela Figura 2.

3/10/2021
Figura 2 – AtoDiagramas
projetualtese 2020.drawio

ÉTICA
EXPERIÊNCIA ESTÉTICA LIBERTA O SUJEITO

AÇÃO DESPERTADA
ATO ESTÉTICO
ATO POLÍTICO
PELO SENSÍVEL
ATO  ÉTICO
DIMENSÃO SENSÍVEL

ESTÉTICA
ARTE

MODO DE SENTIR O
 ATO PROJETUAL

MUNDO

POLÍTICA
AÇÃO QUE
PERTURBA O
SENSÍVEL

Fonte: elaborado pela autora.

Configura-se como indissociável a relação entre estética, ética e política e


entende-se os atos estético, político e ético como próprios do ato projetual. Logo,
as ações realizadas em decorrência do processo de projetação, ao fazerem parte
da processualidade, são também ações estéticas, éticas e políticas. Trata-se de um
caminho contrário à estetização do processo projetual em design. Para justificar

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Cenários panoramáticos: uma metodologia para projetação em design estratégico

a importância dessa afirmação, retomamos Benjamin (1992) quando explica


que a estetização da política conduziu à guerra, como ocorreu no fascismo e no
nazismo. Ele afirma que:
A humanidade que outrora, com Homero, era um objeto de contemplação para os
deuses do Olimpo, é agora objeto de autocontemplação. A sua auto-alienação atingiu
um grau tal que lhe permite assumir a sua própria destruição, como a um prazer
estético de primeiro plano. É isso o que se passa com a estética da política, praticada
pelo fascismo. O comunismo responde-lhe com a politização da arte (BENJAMIM,
1992, p. 196).

Não se deve propor uma estética para o design ou uma política para o design,
pois há o risco de acabar em uma estética para a política do design, ou uma política
para a ética do design. A relação entre a arte e o design ocorre então pela implicação
dos atos éticos, estéticos e políticos com o ato projetual, em uma dimensão sensível.
Esse tipo de projetação é motivado pelo desejo de transformação sociocultural
que, pela imaginação, pode atuar na construção de novas realidades.

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