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Cinema em Walter Benjamin e Theodor Adorno:

a obra de arte em debate


BRUNA DONATO RECHE*

Resumo: Enquanto autores da Teoria Crítica, Theodor Adorno e Walter Benjamin, em comum,
discorreram sobre Arte, entretanto, ao se tratar de cinema ambos se opuseram. Benjamin é
entusiasta do tema, sobretudo no livro A Obra de Arte na Era da Reprodutibilidade Técnica (2019),
por outro lado, Adorno o afirma como produto da indústria cultural que tolhe o sujeito na sociedade
administrada. No objetivo de pensar o cinema enquanto obra de arte, ambos os autores apresentam
elementos fundamentais, inclusive Teoria Estética (2018b) de Adorno. Este artigo tem como
objetivo discutir sobre o cinema enquanto obra de arte a partir destes autores, especialmente na
reflexão das obras supracitadas e conclui-se que, uma vez que o cinema visa o desvelamento da
sociedade administrada e estimula a libertação do homem do modo como ela está organizada,
contribui-se para o desenvolvimento e emancipação social e coletiva que é, para Adorno, condição
essencial da verdadeira obra de arte.
Palavras-chave: Indústria Cultural; Cinema; Obra de Arte; Esclarecimento; Emancipação.
Cinema from Walter Benjamin and Theodor Adorno: The piece of art in discussion
Abstract: While authors of the Critical Theory, Theodor Adorno and Walter Benjamin discussed
about Art, but when it comes to cinema both are opposed. Benjamin is an enthusiast of the theme,
especially in the book The Work of Art in the Age of Its Technological Reproducibility (2019), on
the other hand, Adorno affirms Cinema as a product of the cultural industry that hinders the
individuals in the managed society. In order to think of Cinema as a piece of art, both authors
presents fundamental elements, including the book Aesthetic Theory (2018b) from Adorno.
Therefore this article aims to discuss Cinema as a piece of art stem from these authors, especially
the books previous mentioned. It´s concluded that, since Cinema aims at the unveiling of the
managed society and stimulates the freedom from the way it is organized, it contributes to the
social and collective development which is for Adorno an essential condition of the true piece of
art.
Key words: Cultural Industry; Cinema; Piece of Art; Aufklärung; Empowerment.

*
BRUNA DONATO RECHE é doutoranda em Educação pelo PPGE da Universidade do Estado
de Santa Catarina e docente do Instituto Federal Catarinense. E-mail: bruna.reche@ifc.edu.br

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Introdução vanguardas modernistas representavam o
desejo dos artistas em retirar a obra de
Theodor Adorno denuncia o cinema
arte do habitual pedestal contemplativo,
como produto cultural da sociedade
contestá-la e desprendê-la do invólucro
administrada. A Indústria Cultural,
das regras.
explica Adorno (1995), é a cultura
convertida em mercadoria, de uma Como explica Benjamin (2017) o
formação social estruturada em conceito de aura como uma trama de
mercadorias, inclusive relativas às valores atribuídos à obra na trama
próprias necessidades vitais, na peculiar de um tempo e espaço definidos,
sociedade do consumo e de uma que emoldurou as obras de arte até a arte
formação da identidade subjetiva social moderna. Decorrente disso, põe-se em
de dominação da classe operária pelos xeque o entendimento de cinema como
hábitos da classe dominante. Ela exerce a produto cultural exclusivo da sociedade
função pública da apropriação privada do administrada e reflete-se sobre a
trabalho e exercício do social no possibilidade de o filme ser obra de arte,
capitalismo. Ademais, determina “[...] a a partir do entendimento de Walter
estrutura de sentido da vida cultural pela Benjamin e Theodor Adorno sobre obra
racionalidade estratégica da produção de arte.
econômica, que se inocula nos bens O pressuposto é de que o cinema tem
culturais enquanto se convertem caminhado para uma estética política,
estritamente em mercadorias; [...] sobretudo com o expressionismo alemão
subordinando-os aos sentidos e o cinema soviético, quando o cinema
econômicos e políticos e, logo, à situação passa a ser observado como expressão de
vigente” (MAAR, 1995, p. 21). arte – que é a manifestação humana mais
O que Horkheimer e Adorno (1991) intrínseca – abre-se frestas para que o
demonstraram com a Teoria Crítica é cinema, apesar de instrumento burguês,
uma perspectiva de sociedade sem torne-se instrumento onipotente como
exploração nem opressão dos meios de Benjamin (2019) afirma ao defender que
produção material. Ao revisitarem as a maneira de fazer cinema, requer
categorias marxistas, visam a inúmeras áreas de conhecimento e que,
humanidade autoconsciente que portanto, é meio de desenvolvimento das
transcenda aos indivíduos modernos, faculdades humanas.
produtos da escassez tecnológica O cinema, para Benjamin (2019), é visto
capitalista (MARCUSE, 1999) e suas como um meio de aproximação do
relações aos moldes da esteira de homem ao domínio da técnica – para ele,
produção, cujos produtos culturais se segunda natureza do homem – a testar
permeiam no “[...] ofuscamento [...] das novas modalidades de convívio dos
fronteiras entre a esfera econômica e a homens e na relação com o meio, por
cultural” (RODRIGUES; CANIATO, outro lado, para Adorno, é produto que
2012, p. 230), transformando “[...] pela propaganda, passaram a
mercadorias em bens culturais e seu apresentar a mercadoria [...] como
consumo e bens de consumo. possuidora de um poder muito superior
Tendo como base as modificações ao homem, como portadora da
econômicas, políticas e sociais eminentes capacidade de lhe trazer a ‘felicidade’,
da sociedade capitalista em ascensão na acabar com suas angústias e toda forma
Europa do século XIX, sobretudo com a de tristeza” (RODRIGUES; CANIATO,
urbanização e industrialização, as 2012, p. 229 – grifos das autoras). No

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entanto, a partir da leitura do livro Teoria Segunda Guerra. O ensaio é fruto das
Estética (ADORNO, 2018b), tornou-se discussões de Benjamin com os membros
possível pensar o cinema como obra de da Escola de Frankfurt, sobretudo
arte, a partir dos próprios preceitos do Horkheimer e Adorno. Este último
autor, enquanto material produzido a discorda de muitas perspectivas de
partir da liberdade dos sentidos humanos Benjamin, seu otimismo diante dos
dos tolhimentos da sociedade veículos de comunicação e o julga como
administrada e, por isso, desenvolvidas. pouco dialético na utilização dos
conceitos (SELIGMANN-SILVA apud
Esse artigo, portanto, tem como objetivo
BENJAMIN, 2019). A importância deste
discutir sobre o cinema enquanto obra de
ensaio, entretanto, está no modo como
arte a partir de Walter Benjamin e
Benjamin (2019) esmiúça as relações
Theodor Adorno. As obras escolhidas,
artísticas na sociedade industrial. Seu
sobretudo Obra de Arte na Era de sua
otimismo é um caminho para pensar a
Reprodutibilidade Técnica de Walter
arte na contemporaneidade.
Benjamin e Teoria Estética de Theodor
Adorno possibilitaram um entendimento Ao constatar a sociedade fundada na
estrito dos autores sobre o tema e se síntese técnica, cada vez mais sem
adequaram aos limites propostos ao fronteiras, percebida na mobilidade
trabalho. incessante e no fim do trabalho como
conhecido por tantos anos, Benjamin
A arte do cinema em Walter Benjamin
(2019) resgata no cinema a característica
A Obra de Arte na Era de sua de pós-divisão do trabalho ao afirmar que
Reprodutibilidade Técnica de Walter nele o trabalho intelectual e manual não
Benjamin é um texto fundamental à se divide, vislumbrando no cinema a
discussão. Dividida em quatro versões, a formação politécnica necessária à
depender do país de publicação e com a humanidade para a superação da divisão
inserção de mais ou menos apontamentos do trabalho, “[...] o cinema teria libertado
do autor, este trabalho utilizou-se de duas o ser humano do cárcere de seu cotidiano
traduções. Uma da editora L&PM Pocket e aberto a ele novos mundos via zoom e
de 2019, com tradução de Gabriel câmera lenta” (SELIGMANN-SILVA
Valladão Silva, que apresenta a segunda apud BENJAMIN, 2019, p. 41).
versão do ensaio de Benjamin e outra, da
Desde que esse cinema, em seu aspecto
editora Autêntica de 2017, que faz parte
político, entretanto, auxilie a lidar com os
de ensaios traduzidos por João Barrento e
choques e aparelhos que dominam o
que apresenta a quinta versão do ensaio
cotidiano na sociedade industrial, “[...] ao
proposto por Benjamin. Interessante
tratar do cinema como um meio de testar
destacar que não se tratam de livros
nossas capacidades que nos ensina a
distintos, mas variantes nos estágios de
sobreviver em uma sociedade que exige
compilação de ideias do autor, que inicia
sempre cada vez mais de seus membros”
a escrita em 1935. Ao todo são cinco
(SELIGMANN-SILVA, apud
versões, modificadas de acordo com a
BENJAMIN, 2019, p. 36). O autor,
intenção de publicação tanto na
portanto, compreende o cinema como
Alemanha quanto na França.
instrumento de libertação das égides do
A segunda versão é tida como a original, sistema capitalista.
pois a versão francesa possui cortes, uma
Benjamin (2019) contribui na afirmação
vez que dependia do financiamento do
de que o cinema é produto da sociedade
Instituto de Pesquisas Sociais em plena
burguesa e formatado pela Indústria

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Cultural, mas, à época em que a diferença e este, por sua vez, diferencia-se de obra
da obra artística original e sua cópia não de arte. O filme é construído “[...] a partir
faz mais sentido quando se trata de de muitas imagens e sequências de
disseminação artística e, ao contrário, a imagens, dentre as quais o editor pode
cópia, facilitada pelas tecnologias optar – imagens que puderam ser
digitais, pode chegar em lugares que o melhoradas do modo que se desejasse ao
original não pode, bem como possibilita longo do processo desde a captura até o
o enfoque à elementos que o original não corte final” (BENJAMIN, 2019, p. 68). A
permite, sobretudo quando está envolvida obra de arte do cinema surge na
pela aura dos valores emblemáticos, o montagem do filme e é decorrente da
cinema, enquanto experiência resposta a que reflete a performance
multissensorial por meio da disseminação artística particular do ator de cinema
de suas cópias, pode contribuir ao acesso depois de inúmeros testes, pelos quais
à cultura artística e, enquanto produto que servem de cena para a montagem final do
requer um trabalho especializado de filme.
várias áreas de conhecimento, é produto Estes testes, “[...] não são passíveis de
artístico das faculdades humanas exposição num grau desejável. E é
desenvolvidas que influencia os exatamente neste ponto que o filme entra
espectadores ao próprio em jogo” (BENJAMIN, 2019, p. 73)
desenvolvimento. tornando-se obra de arte, a depender do
O filme para Benjamin (2019) é a obra modo como evoca nos espectadores “[...]
que sintetiza e determina essa ambição um estado em que precisa agir com a
em tornar crucial um nível cada vez mais totalidade de sua pessoa viva”
elevado de qualidade da obra de arte. No (BENJAMIN, 2019, p. 74) que, para ele,
cinema, a presença do espectador firma a traduz-se em outra práxis, a política, cuja
“[...] quintessência de tudo o que nela é função no cinema deve evocar ao homem
originalmente transmissível” as “[...] percepções e reações que são
(BENJAMIN, 2019, p. 57) que, diferente exigidas para se lidar com uma
da falsificação, sua reprodução técnica aparelhagem cujo papel em sua vida
mostra-se autônoma do original, uma vez aumenta quase que diariamente” diante
que “[...] pode ainda colocar a cópia do das imagens e mensagens bombardeadas,
original em situações inatingíveis a esse à época, pela televisão e mesmo no
mesmo original. Acima de tudo, ela torna cinema, e hoje, pelas TDIC´s e que sua
possível levar essa cópia ao encontro do libertação ocorrerá somente “[...] quando
receptor” (BENJAMIN, 2019, p. 57) e a condição humana tiver se adaptado às
não mais o receptor ao encontro da obra novas forças produtivas desencadeadas
de arte aurática, atualizando o pela segunda técnica” (BENJAMIN,
reproduzido além do tempo e o espaço. 2019, p. 66).
O cinema, portanto, é fruto da sociedade A segunda técnica, para o autor, significa
burguesa, mas pode ser obra de arte que o alcance de objetivos humanos
ascende ou mesmo transcende essa emancipatórios ainda utópicos à
sociedade, que evoca o pensamento sociedade desigual vigente, ao “[...]
crítico, as potencialidades humanas, liberar progressivamente o ser humano
auráticas ou massificadas, a ética, a do trabalho forçado”, cujo sujeito “[...]
estética, a relação com o sublime e o ainda não se familiarizou com esse
efêmero, a relação mais intrínseca de ser campo de ação, mas já anuncia suas
humano. O cinema diferencia-se de filme reinvindicações para com ele”

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(BENJAMIN, 2019, p. 66) tal como os 2018b, p. 59). Para além: “É moderna a
pressupostos sociais da teoria crítica. arte que, segundo o seu modo de
Por outro lado, Theodor Adorno (2018a), experiência e enquanto expressão da crise
amigo de correspondência de Benjamin e da experiência, absorve o que a
um dos representantes da primeira industrialização produziu sob as relações
geração da Teoria Crítica da Sociedade, de produção dominantes” (ADORNO,
afirma que o cinema é o auge da 2018b, p. 60).
alienação massificada da Indústria Ambos os autores têm pontos
Cultural. Junto à Horkheimer, aponta: elementares à discussão sobre o cinema
[...]. Ultrapassando de longe o teatro enquanto obra de arte, pois, mesmo que
das ilusões, o filme não deixa mais à Adorno não o compreenda desta maneira,
fantasia e ao pensamento dos afirma que a verdadeira obra de arte
espectadores nenhuma dimensão na participa do esclarecimento da
qual estes possam, sem perder o fio, humanidade diante da sociedade
passear e divagar no quadro da obra administrada – enquanto Benjamin
fílmica permanecendo, no entanto, sustenta a tese de que o cinema é
livres do controle de seus dados manifestação artística da mais importante
exatos, e é assim precisamente que o desde o século XX na prerrogativa de ser
filme adestra o espectador entregue a expressão humana. Para aprofundar a
ele para se identificar imediatamente
discussão, no capítulo a seguir, discorre-
com a realidade (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985, p. 104). se sobre elementos fundamentais sobre
obra de arte para Theodor Adorno em
Ao não considerar a potencialidade do Teoria Estética no sentido de pensar o
cinema enquanto arte, inclusive faz cinema enquanto arte.
críticas ao trabalho de Benjamin. Em
Teoria Crítica, Adorno (2018a) aponta A obra de arte em Theodor Adorno:
que a cópia de uma obra apenas tem elementos para a arte do cinema
serventia às funções do artista, enquanto A obra Teoria Estética de Adorno
rascunho na elaboração de arte. Em suas apresenta a arte enquanto produto que é
palavras, a teoria da reprodução da obra material e, por essa razão, implica o uso
de arte de Benjamin peca em não ou não de técnicas, em consequência da
distinguir a arte desatrelada à ideologia tecnologia imanente à época e intenções
burguesa – “[...] o abuso da racionalidade artísticas que exprimem posições
estética para a exploração e dominação políticas e sociais; e também espiritual, é
das massas” (ADORNO, 2018a, p. 93) – um ente independente, um ser-em-si e um
e mesmo o fundamento que torna a obra ser-para-si, desarticulada de finalidades
em arte. Adorno (2018a), compreende o humanas e do caráter utilitário, que
cinema enquanto produto dos mais exprime uma história e uma verdade
difusores dos valores burgueses e de própria.
fomento à alienação. Por outro lado,
Obra não finalizada por Adorno, foi
aponta que, na arte moderna, os
publicada em 1970 em Frankfurt sob o
procedimentos técnicos mais avançados e
título Aesthetische Theorie, um ano após
diferenciados entrelaçam-se com as
a sua morte. A edição estudada é de 2018,
experiências mais avançadas e
traduzida para o português de Portugal
diferenciadas. É nesse sentido que, para
por Artur Morão, professor de Filosofia
ser arte, “[...]. Esta arte moderna deve
da Universidade Católica de Portugal e
mostrar-se adulta à grande indústria, não
publicada pela Editora70 de Lisboa.
a manipulando apenas” (ADORNO,

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Com ou sem a intenção, apresenta sempre atrelada à aura, ao objeto de culto,
fragmentos em um texto único e corrido ao impulso mimético dos valores
ao longo de 392 páginas, mais 149 aristocráticos, ao idealismo sociocultural
páginas de pequenos fragmentos sobre e, cuja estética tradicional, ocupou-se de
arte e estética, que requerem uma leitura contar a história diante de seus preceitos
prévia sobre o posicionamento de Adorno virtuosos. A obra sempre esteve atrelada
em relação à sociedade, especialmente e isso pressupõe sua privação de
quanto à barbárie e o mundo liberdade.
administrado, sua perspectiva da arte A obra de arte é diferente de obra porque
como uma segunda potência, tal como a verdadeiramente é fruto da arte. É livre e,
segunda natureza para Marx (2017), que assim, propõe questões antitéticas do
trata dos valores sociais de um objeto ou mundo real, materializando o impulso
elemento. humano de ser liberto ao expor suas
Destaque para a afirmação do autor de quimeras, devaneios e fantasias porque é
que a beleza, a sutileza, a identificação na arte onde cabe, por ora, ser real. Não
sublime com a obra de arte que suscita os tem espaço para a estética tradicional e
valores nobres e incorruptíveis do por isso a importância da teoria de
indivíduo burguês conduz à alienação. Adorno no sentido da reflexão sobre uma
Quem, realmente, no íntimo do espírito estética mais intrínseca e verdadeira às
“[...] se coloca objetivamente perante suas disposições.
uma obra de arte, dificilmente por ela se Arte é o clamor da onipotência enquanto
deixará entusiasmar, tal como está manifestação humana. Tem linguagem
subjacente no conceito de apelo direto” própria, que é inteligível ao mundo
(MARX, 2017 p. 366) porque ela é, por sempre administrado, é a fagulha da
natureza, a antítese do mundo humanidade. Portanto não é decifrável
administrado. aos olhos da alienação e nem pretende
Enquanto antítese, a arte não se reduz ao ser. É um impulso que toma corpo
mimético. Se se utiliza da linguagem do indefinido porque se definido fosse
homem para traduzir-lhe o estilo e, passaria pelos sentidos humanos que,
portanto, se se explica, por meio do estilo somente desenvolvidos, poderiam se
o significado da obra, cujo extremo foi conectar porque assemelhariam de
alcançado pela indústria cultural, reduz- alguma maneira. A arte indecifrável não
se a obra de arte ao já conhecido, gasto e é utilitária, mas um convite atrativo ao
dominado. Para uma estética não homem conectar-se com suas
subjugada ao mundo administrado, é potencialidades e transformar o mundo
preciso erigir-se com vistas à libertação também em onipotente, que é diferente de
de conceitos racionalizados, com vistas à barbárico e todas as violências que
libertação do próprio homem e de suas tolhem o ser humano em sua essência.
potencialidades: “[...]. A interação do Se a estética desejar ser fruto ou atrelar-
universal e do particular, que se produz se à verdadeira arte, que é um ser-para-si,
inconscientemente nas obras de arte e que como prescreve Adorno, deve ser livre,
a estética tem de elevar à consciência, é a dialética do mundo real, mesmo que se
verdadeira necessidade de uma utilize do bruto, da violência e do feio, de
concepção dialética de arte” (ADORNO, modo a contrapor o mundo que é ainda
2018b, p. 274). administrado. Para isso, que a se
Obra é o que diferencia de artefato por despojem das crenças e dos sentimentos
despertar emoções subjetivas. Esteve

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históricos vinculados ao conceito de obra potencialidades. Não será nos artifícios
de arte, arte e estética. da beleza, da sutileza e do suspiro que a
obra contribuirá ao despertar, mas
O conteúdo da verdade da obra de arte,
enquanto reflexo da brutalidade cotidiana
mencionada constantemente por Adorno,
do mundo administrado que suscitará ao
é o próprio movimento dialético que a
homem descamar-se da alienação
obra propõe em antítese ao mundo real e
histórica que se apossou de suas
por esse motivo, é também histórica que,
entranhas e encontrar sua verdadeira
por sua vez, difere-se da história da arte
essência social – e, por consequência, a
enredada pelos valores
obra de arte atingirá a segunda liberdade
aristocráticos/burgueses incumbidos pela
prescrita por Adorno. Somente aí é que a
estética tradicional. Essa consciência
verdade da obra de arte poderá, talvez, ser
bastaria para elevar Teoria Estética como
legível ao homem, enquanto não, sua
uma obra consubstancial, mas o autor
verdade permanece insolúvel.
provoca além. Em suas palavras: “[...]. A
sua relação com a história não é relativa É dessa verdade que Adorno escreve
de tal modo que ele próprio e a qualidade porque se coloca também na posição do
das obras de arte variariam apenas em homem [um pouco menos] alienado no
função do tempo. [...]. No entanto, o mundo administrado e enfrentando a
conteúdo de verdade e a qualidade não alienação:
cabem ao historicismo. A história é [...]. O critério da consciência mais
imanente às obras” (ADORNO, 2018b, p. progressista é o estado das forças
290). produtivas na obra [...] que, na época
A história imanente às obras é diferente da sua reflexividade constitutiva,
pertence também a posição que adota
da história da arte entrelaçada à história
no interior da sociedade. Enquanto
da humanidade porque a própria obra de materialização da consciência mais
arte, enquanto ser-para-si, é inteligível à progressista, que encerra a crítica
linguagem humana que está adaptada ao produtiva da situação estética e
parcial – contrário do todo –, que esteve extra-estética dada, o conteúdo de
de frente com a barbárie suscitada pelas verdade das obras de arte é
duas guerras mundiais, apontadas aqui historiografia inconsciente, ligada ao
porque Adorno suscita essa discussão que até hoje se manteve
mais de uma vez, mas que, na realidade, constantemente no estado latente”
enfrenta a barbárie todos os dias desde o (ADORNO, 2018b, p. 290).
início da existência e, portanto sua Ao afirmar que os critérios a que
história, humana – o curso do mundo não preenche a consciência mais progressista
é o desabrochamento da verdade. – ou menos alienada –, representam
Ao tornar a menção de Adorno (1962, p. também o vértice a que preenche o estado
29) “[...]. Escrever um poema após de desenvolvimento das forças
Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói produtivas – materiais e imateriais –,
até mesmo o conhecimento de por que deduz-se de Adorno que, se o homem é
hoje se tornou impossível escrever capaz de pensar a consciência
poemas”, sua antítese, fica evidente o progressista, intelectualmente ou por
pedido de que a humanidade desperte a meio de forças espirituais, é capaz
sua própria verdade, que é sua potência, a também de traduzi-la, materialmente por
expansão de seus sentidos, a essência meio de suas forças materiais. Essa
social desenvolvida no conjunto de sentença, portanto, expande a discussão
pessoas satisfeitas porque plenas em suas em dois sentidos.

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Ao fazer isso, por consequência, na obra de arte, tal como afirma Adorno
construção intelecto-material da obra de (2018b).
arte, esta torna a ocupar uma posição de Alcançar a verdade na obra de arte
destaque na sociedade que tem vistas à prescinde de um sujeito que não
sua emancipação, mas não resultante do mundo administrado.
necessariamente terá companhia as obras Portanto, a verdade da obra de arte
mais famosas ou mais belas ou as mais permanece em um mundo que é próprio
esteticamente virtuosas, nos termos dela porque o artista na sociedade
aristocrático/burgueses porque estas administrada, no máximo pode ter a
fazem parte da história da arte atrelada à consciência mais progressista em relação
estética tradicional, ocupa, distante disso, aos demais, mas, por enquanto, nunca se
um posição de destaque perante a história apresentou completamente livre e ainda
real da arte que, por ora, é inteligível ao não o é. A obra e o artista comungarão da
homem – historiografia inconsciente – verdade – por ora, inteligível – quando a
mas que existe porque participa do arte não for mais a antítese do mundo real
mundo própria da arte. porque surgirá da essência humana – que
Por outro lado, a consciência progressista é necessidade de manifestação –
é a antítese do mundo administrado compartilhada por todos.
porque o potencial de liberdade O cinema como obra de arte em
vislumbrado nunca foi tão contraditório Benjamin e Adorno
ao mundo organizado pelo capitalismo
neoliberal, no limite da má Na contemporaneidade, o cinema tornou-
irracionalidade humana. Ao remeter a se meio de ampliação, ou mesmo
ideia de Marx e Engels (2007, p. 41) massificação, de aspectos culturais antes
sobre a consciência progressista das restritos a um número pequeno de
forças produtivas, só é possível a pessoas. Assim, para muitos estudiosos, o
libertação plena do indivíduo no conjunto cinema é ótica de compreensão da
de sua história social, ou seja, em sociedade, tornando-se disciplinas
conjunto com demais indivíduos, pois a universitárias ou em cursos
riqueza espiritual de alguém depende antropológicos, sociológicos, históricos e
inteiramente da riqueza de suas relações críticos de artes que não pretendam uma
reais, somente assim “[...] são libertados formação técnico-prática, mas cultural
das diversas limitações nacionais e locais, mais ampla (BERNADET, 1980).
são postos em contato prático com a Ao entrar em contato com cenas que
produção (incluindo a produção possibilitam a percepção mais próxima à
espiritual) do mundo inteiro e em realidade cruel dos modos de relação da
condições de adquirir a capacidade de sociedade capitalista, contribui-se à
fruição dessa multifacetada produção de emancipação dos sujeitos: “[...] a
toda a terra. Portanto, não basta ao artista aplicação política desse controle será
ou há poucas pessoas fundamentarem postergada até que o filme tenha se
uma nova sociedade sob o esclarecimento libertado de sua exploração capitalista,
que se é permitido ao mundo pois os potenciais revolucionários desse
administrado, mas um esclarecimento controle são transformados em
coletivo capaz de, em conjunto com a contrarrevolucionários pela indústria
forças produtivas espirituais e materiais, cinematográfica” (BENJAMIN, 2019, p.
construir a humanidade em sua plena 80). Assim, não é o homem em si,
potencialidade, bem como a verdadeira defasado de possibilidades de

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compreensão do objeto artístico, mas as inseridos no contexto econômico
condições externas de produção da vida capitalista, se relacionam e mediam as
que permitem ou não suas relações resultantes desse processo e,
potencialidades se desenvolverem a tal sobretudo, são utilizadas para
ponto que a observação, a análise e a aperfeiçoamento da economia, no
relação com a obra de arte tornem-no entanto, é preciso reiterar que são
diferente: resultados dos processos intelectuais
[...] a apropriação sensível por e pelo humanos que levam em consideração os
homem da essência e da vida modos de produção econômicos,
humanas, das obras humanas, não determinantes para eles, mas não
será concebida somente no sentido determinados por eles.
do gozo imediato, exclusivo, no
Como pensar o cinema enquanto obra de
sentido da possessão, do ter. O
homem apropria sua essência
arte? A partir do esclarecimento das
universal de forma universal, isto é, relações da obra de arte com e, mais
como homem total. Cada uma das especificamente, dentro, das relações de
suas relações humanas com o mundo produção. Assim, uma obra de arte
(ver, ouvir, cheirar, degustar, sentir, produto de relações sociais neoliberais
pensar, observar, perceber, desejar, pode ter tanto uma posição a favor destas
atuar, amar), em resumo, todos os relações – sua perpetuação e
órgãos de sua individualidade, como consolidação – quanto uma posição
os órgãos que são imediatamente contra estas relações – de contradição e
comunitários em sua forma são, em antítese – evidenciando por meio de sua
seu comportamento objetivo, em seu
estética elementos que orientem seu
comportamento desde o objeto, a
apropriação dele. A apropriação da
posicionamento e é aqui que se encontra
realidade humana, seu o ponto de convergência à teoria estética
comportamento desde o objeto, é a de Adorno que também compreende, por
afirmação da realidade humana meio da estética da obra, a arte como
(MARX; ENGELS, 2004, p. 41). alienação ou esclarecimento na sociedade
administrada.
Se a arte se vê, cada vez mais, evocada a
pensar a sociedade ou mesmo a relação Como pensar o cinema como obra de arte
sujeito-mundo, é porque todas as para Adorno? A arte liberta só pode ser
perspectivas teórico-filosóficas construída na sociedade liberta da
voltaram-se para isso. E se a obra de arte estrutura contraditória capitalista
torna-se, cada vez mais, massificada, (ADORNO, 2018b) e a sociedade liberta
mesmo que por meio da reprodução só pode ser construída a partir da
técnica, é porque, ao surgir consciência de classes e das próprias
conglomerados urbanos fundamentados contradições do sistema opressor que se
em relações de consumo e, mais tarde, do vive, a sociedade administrada, por vias
consumo em larga escala, os modos de do compromisso político de construção
produção não se delimitam à fábrica, ao de uma sociedade brasileira à partir de
contrário, expandem-se e influem suas entranhas mais obscuras.
essencialmente todo o modo de expressão Defende-se o entendimento político do
social. cinema enquanto arte e é no
As criações humanas no contexto da entendimento de Adorno (2018b) que se
sociedade industrial, tal como a encontra a própria fundamentação, na
fotografia e o cinema, são compreendidos brecha que se abriu, a partir da arte
como produtos burgueses porque estão moderna em sua tentativa de

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desprendimento à tradição estética de isso, é preciso desconstruir o modelo
influência aristocrática e burguesa. teórico-metodológico da história da arte
Decorrente disso que a arte pode fundamentada nas discussões filosóficas
encontrar condições de reagir ao mundo estéticas imbuídas dos valores de pureza,
administrado, cuja racionalização do nobreza e virtude que são próprios da arte
trabalho capitalista, influi em todas as greco-romana, mas que não refletem o
relações sociais e é contornada, mundo administrado, de modo a se
alienadamente, pelo ato de consumo dos compreender a realidade em suas facetas
produtos culturais da Indústria Cultural contraditórias a fim da libertação dos
(HORKHEIMER, ADORNO, 1991) e à homens.
má irracionalidade do mundo real que Considerações finais
tolhe as pessoas, que as reduz, enquanto
força de trabalho unilateral (MARX, A relação com arte, na sociedade
ENGELS, 2004), com vistas à dominação contemporânea e por suas configurações
econômica. sociais neoliberais, é fortemente mediada
por valores e normas, reflexos, sobretudo,
Nesse contexto, “[...] a arte representa a
dos aspectos econômicos imbricados nos
verdade numa dupla acepção: conserva a modos de ser e se relacionar com os
imagem do seu objetivo obstruída pela demais e com o próprio contexto que
racionalidade e convence o estado de circunda os sujeitos. Na sociedade
coisas existente da sua irracionalidade, da industrial, quanto mais disseminado ou,
sua absurdidade [sic]” (ADORNO, mesmo, massificado, um objeto percorre
2018b, p.89) e da sua frivolidade que é o os espaços sociais ao redor do planeta,
esvaziamento de seu conteúdo social. mais valorativo é.
Portanto, somente quando a arte reflete o
tolhimento social do contexto que lhe Nesse sentido é que a perspectiva de
gera, por meio da violência, do bruto, do Benjamin, entusiasta do cinema enquanto
feio e do abstrato, como exemplos citados arte, contribui a pensar a arte do cinema,
por Adorno (2018b), ela torna-se um ser- na compreensão de que o cinema
em-si. estimula o pensamento sobre as
potencialidades humanas. Assim, apesar
Para Adorno (2018b), a obra é um ser- de ser produto da sociedade burguesa, ao
para-si e não ser-para-outro, isso significa ser orientado como instrumento de
compreender que a relação humana com libertação humana enquanto material
a obra e, mesmo, a tentativa de que, desenvolvido amplamente por meio
subjugação de um para outro é das áreas de conhecimento, pode ser
irrelevante, pois se a obra, de um lado, é livre.
manifestação e expressão natural
humana, de outro, está imbuída dos Nesse sentido, atribui-se a afirmação de
valores aristocráticos e burgueses, Adorno sobre a urgência de uma arte
construída, paulatinamente, sob a forma verdadeiramente livre. Acredita-se que,
da estética tradicional. dentro das condições atuais de produção
e exibição, o cinema consegue despertar
Se a arte acrescenta ao esclarecimento a reflexão social e política por meio de
humano em face da opressão da sua estética e mais do que isso, uma
sociedade administrada, sobretudo, com
estética que se aproxima à defendida por
o apogeu e disseminação dos produtos da Adorno quando nos atributos do feio, do
indústria cultural, acredita-se que isso
bruto e da violência a evidenciar, de
deva ocorrer por meio das características
que remetam a esse mundo material. Para

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modo não tradicional, o feio, o bruto e a ADORNO, T. Educação e Emancipação. Rio de
violência da sociedade administrada. Janeiro: Paz e Terra, 1995.
ADORNO, T. Prismas: La crítica de la cultura y
É quando o cinema contribui ao la sociedad. Barcelona: Ediciones Ariel, 1962
esclarecimento humano que se o
ADORNO, T. Teoria Estética. Lisboa: editora
considera como arte, a luz de Adorno, de
70, 2018b.
modo, inclusive, a construir uma
verdadeira estética à arte, mais ADORNO, T.; HORKHEIMER, M. Dialética do
esclarecimento. Rio de Janeiro, RJ: Jorge Zahar
relacionada ao mundo virtual que a arte Ed., 1985.
constrói, inteligível às palavras e às
sensações humanas, que é diferente da BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: L&PM
estética tradicional fundamentada nos Pocket, 2019.
valores perpetuados pela aristocracia e
BENJAMIN, W. Estética e Sociologia da Arte.
burguesia, enquanto estratos e classes Belo Horizonte: Autêntica, 2017.
detentoras dos meios da infraestrutura
social e, por sua vez, das relações BERNADET, J. C. O que é Cinema? São Paulo:
Brasiliense, 1980.
unilaterais e de escassez.
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. Teoria
O cinema enquanto arte se torna tal Cultural e Teoria Crítica. In: HORKHEIMER,
quando produzido na relação dialética de M.; ADORNO, T. (Orgs.). Textos Escolhidos.
contradição e superação que é próprio do São Paulo: Nova Cultural, 1991.
ato de se ser humano. Enquanto ato MAAR, W. L. A guisa de introdução: Adorno e a
político, é obra que resiste às experiência formativa. In: ADORNO, T.
contradições que insistem em tolher a Educação e Emancipação. São Paulo: Paz e
vida humana e proporciona o Terra, 1995
desenvolvimento das potencialidades MARCUSE, H. Tecnologia, Guerra e fascismo.
sociais porque são fruto dos próprios São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1999.
sentidos espirituais na relação com o MARX, K.; ENGELS, F. Educação, Formação e
mundo material que produzem outros Trabalho. In: MARX, K.; ENGELS, F. Textos
tantos espirituais e materiais na sobre Educação e Ensino. São Paulo: Centauro,
2004.
realização do desejo a partir das
necessidades que são intrínsecas à MARX, K. ENGELS, F. A Ideologia Alemã. São
Paulo: Boitempo, 2007.
expressividade humana. E quantas forem
as oportunidades de pensar a MARX, K. O Capital: crítica da Economia
potencialidade social e humana, mesmo Política – Terceiro Tomo. São Paulo: Boitempo,
2017.
que dentro da sociedade contraditória,
desigual, tolhida, unilateral e RODRIGUES, S.; CANIATO, A. M. P.
administrada, tantas serão possibilidades Subjetividade e indústria cultural: uma leitura
psicanalítica da cumplicidade dos indivíduos com
de ação com vistas ao compromisso a lógica da mercadoria. In: Psicologia em
político da plena organização Revista. v.18 n.2, Belo Horizonte. ago. 2012.
democrática. Disponível em:
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_a
rttext&pid=S1677-11682012000200005 Acesso
Referências em: 10 dez 2019.

ADORNO, T. A arte e as artes: primeira


introdução à Teoria Estética. Rio de Janeiro: Recebido em 2021-04-19
Bazar do Tempo, 2018a. Publicado em 2021-07-01

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