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A emancipação do sujeito por meio da obra de arte: uma reconciliação da

reprodutibilidade técnica com o conceito de aura em Walter Benjamin

Por: Vinícius Luís Thomazini Silveira

O presente trabalho tem como objetivo analisar e problematizar o ensaio “A obra de


arte na era de sua reprodutibilidade técnica” 1 escrito em 1935, de autoria de Walter
Benjamin, focando sobretudo na questão da teoria técnica benjaminiana que, por sua vez,
cairá de encontro ao seu conceito de aura, 2 visando estabelecer como e de que maneira a
aura da obra de arte poderia ser resgatada e ser a força motriz e emancipatória do sujeito,
uma vez que esta estaria deteriorada pela reprodutibilidade técnica. 3
Seu interesse pela obra de arte não surgira por acaso: Benjamin foi um estudioso
da literatura alemã e um entusiasta do romantismo alemão, influenciado por poetas como
Friedrich Schlegel e Novalis. A influência do romantismo alemão – a qual Benjamin
procurou destacar seu potencial revolucionário e crítico, também vinda de Charles
Baudelaire, reconhecendo como seu cerne a religião, ou o messianismo judaico e,
também, a história –, fez com que o pensamento crítico e inquietante de Benjamin
surgisse muito cedo, principalmente quando procurou estabelecer uma revitalização da
crítica de arte e da estética em sua tese de doutorado, intitulada “O conceito de crítica de
arte no romantismo alemão”, defendida em 1919, em Berna, Suíça. 4

1 Abreviarei este ensaio por R.T (reprodutibilidade técnica), para dar melhor destaque ao nosso objeto de
pesquisa.
2 A técnica para Benjamin vem do conceito grego tékhné, relativo à arte, i.e, a técnica enquanto
capacidade criadora da arte e restituição de totalidade ao ser humano (Seligmann-Silva, Prefácio R.T,
Pág. 25). O conceito de aura, por sua vez, é remetido ao fenômeno religioso e ao messianismo judaico
influenciado por Benjamin e está ligado à autenticidade na obra de arte. Explicarei isso mais adiante.
3 O sujeito benjaminiano pode ser visto como um sujeito não livre de sua história e de suas tragédias, um
sujeito sobretudo histórico. A reprodutibilidade técnica irá de encontro a este sujeito, possivelmente visto
em sua época como um sujeito histórico-capitalista. Tal termo é termo usado por Benjamin para se
referir à reprodução massiva e tecnicista do sistema capitalista e ao abalo que a obra de arte sofre em
sua tradição – a qual nos remeteria ao abalo à sua autenticidade e unicidade. (Benjamin, R.T. Pág. 55).
4 Confira a tradução homônima desta tese, com prefácio e notas por Márcio Seligmann-Silva, pela editora
Iluminuras, São Paulo, 2011.

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Segundo Márcio Seligmann-Silva, a teoria da percepção e a teoria estética são
reformuladas por Benjamin por meio de uma filosofia da arte que traz consigo este
conceito de técnica. (R.T., Pref. pág. 25). A teoria da percepção e a teoria estética são
termos que podemos delimitar, respectivamente, por meio do sujeito que, enquanto ser
perceptível, subjetiva seu gosto. Dado isto, o trabalho de Benjamin é passar por essas
teorias e reelaborá-las, a fim de criar uma teoria social e política por meio da crítica da
arte, uma vez que se utiliza da própria história da obra de arte e sua perspectiva grega de
técnica para falar da obra de arte. Seu objetivo, portanto, é fazer um trabalho de
politização da arte sobre a estetização da política – operada pelo fascismo de sua época.
(Benjamin, R.T Pág. 94)
No entanto, foi a partir de 1925, após ter lido a obra de Lukács, “História e
consciência de classe”, de 1923, talvez o estopim mais significante, que Benjamin pôde
aflorar seu lado marxista – possivelmente resultando neste ensaio “A obra de arte na era
de sua reprodutibilidade técnica”, o qual demonstra um autor mais preocupado e
politizado com sua época.
Para aprofundar esse pensamento e possível estopim de agente politizador que a
arte pode surtir no sujeito, Benjamin parece apontar desde sua tese de doutorado até o
ensaio em questão para o que a arte pode fazer na reflexão do sujeito e a crítica como
sendo artifício manifestante como um médium-de-reflexão (Reflexionsmedium), criando a
possibilidade do sujeito de fazer da crítica um projeto tanto estético como político. 5
Desse modo, a crítica, ou a tradução do que é subjetivado do objeto, deve ser vista como
forma e complementação, exposição (Darstellung) que converge, e não como um
transporte de sentidos meramente objetivados. É justamente nesta esteira que devemos
analisar o ensaio de Benjamin como um projeto de crítica da reprodutibilidade técnica
advinda do capitalismo em defesa de um resgate da aura na obra de arte e de sua
autenticidade e unicidade. O papel da aura em Benjamin, a saber, condiz numa exigência
de rememoração na qual a obra de arte representa em sua essência e tradição, no âmbito

5 A questão aparece na tese de doutorado de Benjamin e é destacada, também, no livro “A atualidade de


Walter Benjamin e de Theodor W. Adorno”, de Márcio Seligmann-Silva, editora Civilização Brasileira, Rio
de Janeiro, 2010. A crítica para Benjamin, segundo Seligmann-Silva, se desdobra em cinco níveis:
autorreflexão, leitura e reflexão da obra, reflexão sobre a história da arte e da literatura, reflexão crítica
da sociedade e, por fim, articulando tudo isso e atrelando principalmente à evolução histórica da
sociedade, liberais e marxistas, que depositavam fé constante em um avanço no devir da história.

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metafísico de análise. A autenticidade para o autor diz respeito ao aqui e agora da obra de
arte, analisando historicamente o ambiente da obra de arte e sua inserção na tradição e
no sujeito, não descartando sua origem. Embora pelos gregos a reprodutibilidade técnica
se deu pela fundição e cunhagem, era uma forma admirada por Benjamin enquanto
preservava seus valores de eternidade, dado que cada trabalho de fundição e cunhagem
eram únicos, na medida em que cada matriz tinha suas particularidades. Mas foi com a
xilogravura, antes da escrita, que Benjamin aponta como uma das responsáveis por tornar
as artes gráficas tecnicamente reprodutíveis.
Todavia, o problema para Benjamin é a função da obra de arte e a perda de sua
aura em vista da reprodutibilidade técnica. Para chegar a um possível resgate da aura,
Benjamin traça toda uma dialética histórica, até chegar à fotografia (séc XIX) e ao trabalho
da produção técnica, que passa da mão ao olho – para só assim chegar ao cinema – no
qual será forte objeto de pesquisa benjaminiana e capaz de gerar um possível resgate de
preservação da aura.
Na esteira benjaminiana, será possível, então, uma reaproximação da obra de arte
à coletividade?
Tudo indica que o cinema, como uma das artes preferíveis de Benjamin, traria uma
possível resposta – mas que para isso deveríamos saber lidar com a reprodutibilidade
técnica contemporânea. Nas palavras de Benjamin: “A totalidade do campo da
autenticidade mantém-se alheia à reprodutibilidade – e naturalmente não somente à
reprodutibilidade técnica” (R.T, pág 54). Ora, é justamente porque a autenticidade, o aqui
e agora da obra de arte, não é reprodutível. 6 O apoderamento banal do objeto através de
sua tecnicização faz com que o papel da reprodutibilidade atrofie sua aura e sua
unicidade.
Entretanto, Benjamin não despreza por completo a tecnicização, como podemos
ver pela sua admiração na qual o cinema pode proporcionar. Apesar de estar preocupado
com o função da obra de arte e traçar uma distinção da obra de arte enquanto valor de
culto e valor de exposição7, ele parece querer estabelecer um diálogo entre ambos.

6 A reprodutibilidade técnica para Benjamin ainda só será importante para o mercado artístico, enquanto a
obra de arte vira pura mercadoria. A não reprodutibilidade da obra de arte diz respeito ao papel de
resgate da aura e de sua autenticidade. O “aqui e agora” são frutos de uma metafísica benjaminiana que
nos remete à aura e ao papel de culto que essa unicidade da obra de arte é capaz de simbolizar,
analisada através de seu espaço e tempo. Sendo assim, sem tecnicização, a aura é preservada.
7 Segundo Benjamin, o valor de culto mantém a obra de arte oculta. Enquanto o valor de culto

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Para isso, é importante salientar que Benjamin defende duas ideias na sua concepção
histórica: a primeira técnica e a segunda técnica. A primeira técnica diz respeito ao sujeito
e sua dominação para com a natureza que o cerca; já a segunda técnica aparece como
uma espécie de harmonização entre natureza e humanidade. A segunda técnica parece
ser fundamental para esse processo da reprodutibilidade técnica vir de encontro benéfico
à sociedade e à preservação da aura. Segundo Gabriel Valladão Silva, a segunda técnica
é fundamental enquanto o sujeito consegue lidar com os elementos das forças sociais
como precondição para saber extrair das forças elementares naturais. (R.T, pág. 63) Daí
podemos visualizar uma possível emancipação através da arte do sujeito enquanto ser
consciente e político.
Entretanto, para haver tal harmonização, Benjamin aponta para uma urgência de
necessidade de história aberta e a de um tempo-de-agora (Jetztzeit), as quais necessitam
de um resgate nostálgico do “passado como método revolucionário da crítica do presente”
e de um interrompimento da história para reflexão da própria história e autorreflexão do
sujeito.8 Considerando a história como sendo história aberta, isto é, não descartando
todas as possibilidades e saber que não estamos imunes aos acontecimentos de cunho
catastróficos, pois, segundo Benjamin: “Marx havia dito que as revoluções são a
locomotiva da história mundial. Mas talvez as coisas se apresentem de maneira
completamente diferente. É possível que as revoluções sejam o ato, pela humanidade
que viaja nesse trem, de puxar os freios de emergência.” (Benjamin, W. Gesammelte
Schriften I, 3, pág. 1232. In: Idem 8).
Ora, sabendo-se que o nazifascismo estava em ascensão e, por outro lado, as
promessas do sistema capitalista cada vez mais vigentes, estabelecia-se dois cenários
em que surgiria uma urgência do pensamento pessimista e melancólico de Benjamin –
embora com uma perspectiva de mudança – da situação trágica de seu tempo. Se a obra
de arte é vista como técnica, e se essa técnica é possibilitadora de reivindicações
revolucionárias por meio de uma politização da arte – a saber, Benjamin apostou no
socialismo como pontapé inicial para tal politização – daí os “freios de emergência”

superestima de modo aurático e metafísico a obra de arte, exercendo uma espécie de autorreflexão
esotérica e mágica do sujeito, o valor de exposição trata a obra de arte como simples mercadoria,
massificando e atrofiando sua aura.
8 Löwy, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêncio. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história”,
Trad. Brant, Wanda Nogueira Caldeira. Ed Boitempo, São Paulo, 2014. (Pág 14-15).

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citados pelo autor –, é preciso ao menos reelaborar o que há de metafísica e esoterismo 9
na teoria técnica benjaminiana, ao passo que o autor não nos deixa ao mero marxismo de
época e de seu materialismo histórico, mas urge e traz à tona uma necessidade de uma
reinterpretação de meios insurgentes em nossa sociedade, partindo sobretudo do ponto
de vista metafísico e esotérico do saber, resgatando a memória como fio condutor para a
preservação da aura e a técnica como instâncias criadoras do sujeito histórico e
pensante. Uma relação de não apoderamento ao “aqui e agora” mas de transcendência à
verdadeira aura da obra de arte, criando um diálogo com a coletividade e toda a
aparelhagem técnica da reprodutibilidade, fazendo com que o sujeito não seja mero
espectador e passivo no âmbito da mera tecnicização mas que sobretudo tenha
autonomia e autorreflexão com a massificação da obra de arte, para só assim estabelecer
uma possível harmonização com a sociedade.

9 Idem 8. Esoterismo no sentido de autorreflexão e rememoração para uma interpretação do sujeito em


seu mundo, não descartando, contudo, a influência da teologia judaica de Benjamin. Daí a ideia de aura.

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Bibliografia

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica.


Organização e apresentação Márcio Seligmann-Silva. Trad. Gabriel Valladão Silva. Rio
Grande do Sul: L&PM, 2013.

_________. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Trad. Márcio


Seligmann-Silva, São Paulo: Iluminuras, 2011.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. A atualidade de Walter Benjamin e de Theodor W.


Adorno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio – Uma leitura das teses “Sobre o
conceito de história”. Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant. São Paulo: Boitempo,
2014.

___________.O capitalismo como religião. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo,
2014.

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