Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1. Introdução
O presente artigo pretende propor uma discussão que parte da caracterização do uso do
cinema como instrumento ideológico pela indústria cinematográfica desde o século XX a
partir do ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, de Walter
Benjamin. Em seguida, apresentam-se duas explicações, uma de Benjamin, outra de Félix
Guattari, sobre como ocorreria essa possibilidade de manipulação subjetiva inconsciente do
cinema, bem como uma concordância entre os autores a respeito da possibilidade vislumbrada
de um cinema transformador. Por fim, discute-se um fenômeno contemporâneo de mudança
nos parâmetros de representação e temas ficcionados pelos filmes em favor de grupos
historicamente oprimidos, fato que tem sido muitas vezes encarado com um raso otimismo.
Para contrapô-lo, são examinadas algumas contribuições de Theodor Adorno e Siegfried
Kracauer na compreensão do funcionamento da produção cultural no capitalismo.
2. Desenvolvimento
É possível dizer que o cinema tornou-se a forma artística dominante 1 desde o advento
do que Walter Benjamin chamou de reprodutibilidade técnica em seu ensaio A obra de arte na
época de sua reprodutibilidade técnica, publicado pela primeira vez em 1936. O conceito de
reprodutibilidade técnica aponta para uma produção artística na qual já não há distinção entre
obra original e cópia e que é previamente concebida para ser massivamente distribuída, sendo
a fotografia e o cinema suas principais expressões. O próprio autor exalta a importância do
cinema como a forma de arte mais capaz de mobilizar as massas, traduzir as transformações
contemporâneas e tocar nas questões existenciais: “O cinema é a forma artística
correspondente ao risco de vida acentuado em que vivem os seres humanos da atualidade”
(BENJAMIN, 2014, p. 108).
Desde que o ensaio benjaminiano foi escrito, a produção cinematográfica cresceu
vigorosamente, adquirindo cada vez mais o status de indústria em decorrência tanto da
magnitude que atingiu quanto do seu caráter mercadológico. Assim, o cinema tornou-se um
dos setores mais lucrativos do capitalismo, ao mesmo tempo em que se desdobrou em outras
produções para além dos filmes ainda mais massificadas, como os seriados e as telenovelas,
1 Por dominante aqui nos referimos ao fato de o cinema ser o tipo de arte mais consumida e mais lucrativa até
a atualidade.
que, com a difusão em larga escala da televisão e obtiveram enorme alcance e sucesso perante
o grande público. A indústria cinematográfica se expandiria e se segmentaria ainda mais com
a internet e, principalmente, com os atuais serviços de streaming dentro dela, os quais
parecem ter se convertido hoje na sua principal plataforma de distribuição, aglutinando
filmes, séries, documentários e telenovelas.
Para além de ter se convertido em um dos principais setores produtivos do sistema
capitalista, o cinema cumpriu um papel de aparelho ideológico cultural desde o seu
surgimento. Nesse sentido, Benjamin também promove, em seu ensaio, a crítica do que
chamou de estetização da política, promovida pelo fascismo, que pode ser entendida como a
destruição da vida tomada como beleza e a exaltação da guerra. Talvez o maior exemplo
disso, à época do autor, tenha sido o documentário Olympia, de Leni Riefenstahl, que retratou
os Jogos Olímpicos de 1936 sob um viés de exaltação de corpos atléticos, monumentos da
antiguidade greco-romana e formações militares em estreita conformidade com os ideais
nazistas. Ou seja, ao mesmo tempo em que promoviam a guerra, a dominação exterior e
mortes em massa, as forças nacional-socialistas cultuavam um ideal de vida e de beleza
representado pelo corpo sadio ariano cuja propagação era não somente desejada, como
necessária para a sustentação do regime.
Nesse sentido, a propaganda, dentro da qual o cinema cumpre um papel essencial, foi
desde o século XX uma ferramenta indispensável não somente ao nazifascismo, mas aos
regimes totalitários como um todo, e até mesmo às ditas democracias ocidentais, na criação de
inimigos externos. Conforme sustenta Merlin (2019), o ódio a um inimigo externo constitui
um fator de criação de coesão social notado e utilizado sagazmente por Hitler e pelos demais
regimes totalitários.
Em outras palavras, não foi apenas o fascismo que utilizou o cinema e a arte como
veículo para a difusão — consciente ou inconsciente — de sua ideologia. Pouco tempo
depois, a indústria de Hollywood ficaria conhecida por produzir uma série de filmes ao longo
da segunda metade do século XX nos quais, em meio à Guerra Fria e à rivalidade crescente
entre Estados Unidos e União Soviética, personagens de origem russa eram retratados como
os inimigos a serem derrotados nas tramas cinematográficas. Esse papel seria igualmente
ocupado depois por vilões de origem árabe, não coincidentemente no mesmo período em que
os estadunidenses passaram a ocupar militarmente e provocar guerras no Oriente Médio. Para
ficar em apenas dois exemplos dentre muitos possíveis, podemos lembrar de produções
altamente lucrativas como Rocky IV e Alladin enquanto filmes etnocêntricos e difamatórios
de um tipo russo e árabe, respectivamente. 2 Isto é, o cinema passou a ocupar cada vez mais
um papel privilegiado, como prevera Benjamin, nas disputas políticas em escala global.
Para além de constatar sua apropriação política, é necessário ir mais além e perguntar a
que se deve esse potencial sugestivo e manipulador do cinema. Novamente, é possível
encontrar uma resposta potencial no ensaio de Benjamin em um dos inúmeros conceitos dos
quais lança mão no escrito, qual seja, o de inconsciente ótico. De acordo com o autor, o
cinema apresenta inovações técnicas como o close e a câmera lenta que não só explicita ou
acentua estruturas e movimentos já conhecidos a olho nu, mas descobre
uma outra natureza que se abre para a câmera, diferente daquela que se abre para o
olho. Diferente sobretudo na medida em que, no lugar de um espaço de atuação em
que o ser humano atua conscientemente, entra um espaço de atuação inconsciente
(...) Experimentamos algo do inconsciente ótico pela primeira vez por meio dela,
assim como experimentamos algo do inconsciente pulsional pela primeira vez pela
psicanálise. (BENJAMIN, 2013, pp. 300-301)
2 A função político-ideológica de Hollywood compõe um quadro que continua válido, a exemplo do mais
recente filme da saga Missão Impossível, cuja produção teve participação direta do Pentágono com o de
aumentar o alistamento militar entre jovens dos Estados Unidos (https://jacobin.com.br/2022/06/top-gun-
maverick-e-outro-video-de-recrutamento-militar-disfarcado-de-filme/, acesso em 23/08).
3 Fato que hoje se tornou uma constatação banal frente aos quadros de adoecimento psíquico coletivo -
depressão, ansiedade, burnout, entre outras patologias - causados, em grande medida, pela aceleração dos
indivíduos pela tecnologia.
Temos aqui, portanto, um paralelo entre Benjamin e Guattari na medida em que ambos
veem o cinema como uma técnica artística capaz de modificação do inconsciente com
implicações derradeiramente políticas, ainda que, certamente, o inconsciente não significasse
a mesma coisa para os dois.
O acordo entre os autores não para por aí, pois ambos também defenderam que, se o
cinema cumpre um papel de sustentáculo ideológico do status quo, isso não significa que ele
não possa adquirir uma faceta revolucionária. Isto é, para Benjamin como para Guattari, o
cinema enquanto técnica não é, por natureza, reacionário, e ambos procuraram, ao seu modo,
vislumbrar papéis disruptivos para essa forma artística.
Por um lado, Benjamin sustenta que, com o advento da reprodutibilidade técnica,
ocorre o decaimento da aura, de modo que a arte pós-aurática representa o fim da
autenticidade, descolando-se da tradição e podendo ser usada para fins políticos em sua visão:
“No lugar de sua fundação no ritual, deve surgir sua fundação numa outra práxis, a saber: sua
fundação na política” (BENJAMIN, 1994b). Portanto, para o bem e para o mal, a arte somente
adquire essa função política para Benjamin após o aniquilamento de sua aura produzido pela
reprodutibilidade técnica da qual, como vimos, o cinema é a principal expressão.
Benjamin entende que tanto o cinema como o fascismo se apropriam, inicialmente, de
uma carência por novas organizações sociais e atuam em prol do interesse da classe
proprietária na imunização das massas de modo a evitar sua explosão revolucionária.
Enquanto o fascismo promove, de um lado, uma estetização da política com o enaltecimento
da guerra e da destruição, a proposta defendida por Benjamin é a de uma politização da arte
como resposta comunista ao fascismo. Embora o autor não desenvolva esse conceito em seu
ensaio, podemos intuir, em conformidade ao próprio texto e à sua trajetória, que a politização
da arte esteja alinhada com uma proposta de arte engajada e desalienante. De um modo ou de
outro, o que nos interessa aqui é que Benjamin vislumbra, após a reprodutibilidade técnica,
uma utilização da arte como motor da transformação política, seja qual for sua direção.
Por outro lado, Guattari salientará que, se o cinema detém as possibilidades de
manipulação do desejo e de produção subjetiva, isso não precisa necessariamente seguir uma
via repressiva, ainda que majoritariamente seja isso que ocorra. Contudo, se Benjamin
colocou o cinema em um debate situado no campo artístico, contrapondo-o à arte ritualística,
Guattari o circunscreve ao campo analítico, comparando o potencial transformador do cinema
com a psicanálise:
Se os meios “analíticos” do cinema são mais ricos, mais perigosos, que os da
psicanálise, imaginamos, em contrapartida, que também poderiam abrir-se a outras
práticas. Um cinema de combate pode vir a existir, ao passo que se vê mal, no atual
estado de coisas, a possibilidade de uma psicanálise revolucionária (GUATTARI,
1984, p. 8)
Com seu característico grau de acidez crítica, o autor chama atenção para temas muito
relevantes no que diz respeito à produção na era da indústria cultural como a homogeneização
dos produtos culturais, a transformação da cultura em mercadoria e o caráter ideológico desse
regime. Todos esses aspectos foram levados ao paroxismo no caso do cinema, com suas
produções gerando lucros cada vez mais altos e apresentando uma diversidade estética cada
vez menor. Nesse sentido, é necessário interpretar as mudanças "progressistas" do cinema
aludidas anteriormente como uma nova forma de apresentar produtos que continuam sempre
iguais: "O que aparece na indústria cultural como progresso, a novidade incessante que ela
oferece, continua sendo a troca de embalagem de um sempre-igual." (idem, p. 112). Se
tomarmos, por exemplo, os dez filmes mais assistidos em 2022 4, todos produzidos por
grandes estúdios, veremos que, por trás de temáticas distintas, encontram-se as mesmas
formas narrativas, os mesmos conflitos e os mesmos valores exaltados.
3. Conclusão
Se Walter Benjamin e Félix Guattari captaram, por um lado, uma possibilidade
emancipatória no cinema, conforme tentamos mostrar, por outro, tal possibilidade não
corresponde a uma mera incorporação de traços progressistas pela indústria cinematográfica.
Os apelos sociais aos quais o capital cinematográfico tem se adaptado são fruto de novos
questionamentos incutidos pela articulação de grupos sociais historicamente oprimidos.
Diante disso, não se trata de questionar a validade de tais lutas para o campo da cultura,
menos ainda, de advogar pelo retorno a um cinema aos moldes de Griffith. O que procuramos
questionar é o que, dentro desse quadro, permanece inquestionado, ou seja, a própria
existência do capital cinematográfico e da indústria cultural. Retornando a Benjamin, vê-se
que, enquanto o cinema for dominado pelo modo de produção capitalista, o controle das
massas pelo que é produzido jamais será atingido:
Certamente, não se deve esquecer que a utilização política desse controle deve
esperar até que o cinema se liberte dos grilhões de sua exploração capitalista. Pois,
por meio do capital cinematográfico, as chances revolucionárias desse controle
metamorfoseiam-se em contrarrevolucionárias. (BENJAMIN, 2014, p. 75).
Bibliografia
ADORNO, Theodor W. Resume sobre a indústria cultural in Sem diretriz: parva aesthetica.
Editora Unesp, 2021.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica: segunda versão
in DUARTE, Rodrigo. O belo autônomo: textos clássicos de estética. Autentica, 2013.
GUATTARI, Félix. O Divã do Pobre. In: Psicanálise e Cinema. Coletânea do nº 23 da Revista
Communications. Comunicação/2. Lisboa: Relógio d' Água, 1984 .
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Editora Vozes Limitada, 2018.
JIMENEZ, Marc. O que é estética?. São Leopoldo e RS: Editora Unisinos, 1999.
KRACAUER, S. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
MERLIN, Nora. Colonización de la subjetividad y neoliberalismo. Revista GEARTE, Porto
Alegre, v. 6, n. 2, p. 272-285, maio/ago. 2019. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/gearte