Você está na página 1de 11

Cinema e ideologia: entre a alienação e a emancipação na contemporaneidade

1. Introdução
O presente artigo pretende propor uma discussão que parte da caracterização do uso do
cinema como instrumento ideológico pela indústria cinematográfica desde o século XX a
partir do ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica, de Walter
Benjamin. Em seguida, apresentam-se duas explicações, uma de Benjamin, outra de Félix
Guattari, sobre como ocorreria essa possibilidade de manipulação subjetiva inconsciente do
cinema, bem como uma concordância entre os autores a respeito da possibilidade vislumbrada
de um cinema transformador. Por fim, discute-se um fenômeno contemporâneo de mudança
nos parâmetros de representação e temas ficcionados pelos filmes em favor de grupos
historicamente oprimidos, fato que tem sido muitas vezes encarado com um raso otimismo.
Para contrapô-lo, são examinadas algumas contribuições de Theodor Adorno e Siegfried
Kracauer na compreensão do funcionamento da produção cultural no capitalismo.

2. Desenvolvimento
É possível dizer que o cinema tornou-se a forma artística dominante 1 desde o advento
do que Walter Benjamin chamou de reprodutibilidade técnica em seu ensaio A obra de arte na
época de sua reprodutibilidade técnica, publicado pela primeira vez em 1936. O conceito de
reprodutibilidade técnica aponta para uma produção artística na qual já não há distinção entre
obra original e cópia e que é previamente concebida para ser massivamente distribuída, sendo
a fotografia e o cinema suas principais expressões. O próprio autor exalta a importância do
cinema como a forma de arte mais capaz de mobilizar as massas, traduzir as transformações
contemporâneas e tocar nas questões existenciais: “O cinema é a forma artística
correspondente ao risco de vida acentuado em que vivem os seres humanos da atualidade”
(BENJAMIN, 2014, p. 108).
Desde que o ensaio benjaminiano foi escrito, a produção cinematográfica cresceu
vigorosamente, adquirindo cada vez mais o status de indústria em decorrência tanto da
magnitude que atingiu quanto do seu caráter mercadológico. Assim, o cinema tornou-se um
dos setores mais lucrativos do capitalismo, ao mesmo tempo em que se desdobrou em outras
produções para além dos filmes ainda mais massificadas, como os seriados e as telenovelas,

1 Por dominante aqui nos referimos ao fato de o cinema ser o tipo de arte mais consumida e mais lucrativa até
a atualidade.
que, com a difusão em larga escala da televisão e obtiveram enorme alcance e sucesso perante
o grande público. A indústria cinematográfica se expandiria e se segmentaria ainda mais com
a internet e, principalmente, com os atuais serviços de streaming dentro dela, os quais
parecem ter se convertido hoje na sua principal plataforma de distribuição, aglutinando
filmes, séries, documentários e telenovelas.
Para além de ter se convertido em um dos principais setores produtivos do sistema
capitalista, o cinema cumpriu um papel de aparelho ideológico cultural desde o seu
surgimento. Nesse sentido, Benjamin também promove, em seu ensaio, a crítica do que
chamou de estetização da política, promovida pelo fascismo, que pode ser entendida como a
destruição da vida tomada como beleza e a exaltação da guerra. Talvez o maior exemplo
disso, à época do autor, tenha sido o documentário Olympia, de Leni Riefenstahl, que retratou
os Jogos Olímpicos de 1936 sob um viés de exaltação de corpos atléticos, monumentos da
antiguidade greco-romana e formações militares em estreita conformidade com os ideais
nazistas. Ou seja, ao mesmo tempo em que promoviam a guerra, a dominação exterior e
mortes em massa, as forças nacional-socialistas cultuavam um ideal de vida e de beleza
representado pelo corpo sadio ariano cuja propagação era não somente desejada, como
necessária para a sustentação do regime.
Nesse sentido, a propaganda, dentro da qual o cinema cumpre um papel essencial, foi
desde o século XX uma ferramenta indispensável não somente ao nazifascismo, mas aos
regimes totalitários como um todo, e até mesmo às ditas democracias ocidentais, na criação de
inimigos externos. Conforme sustenta Merlin (2019), o ódio a um inimigo externo constitui
um fator de criação de coesão social notado e utilizado sagazmente por Hitler e pelos demais
regimes totalitários.
Em outras palavras, não foi apenas o fascismo que utilizou o cinema e a arte como
veículo para a difusão — consciente ou inconsciente — de sua ideologia. Pouco tempo
depois, a indústria de Hollywood ficaria conhecida por produzir uma série de filmes ao longo
da segunda metade do século XX nos quais, em meio à Guerra Fria e à rivalidade crescente
entre Estados Unidos e União Soviética, personagens de origem russa eram retratados como
os inimigos a serem derrotados nas tramas cinematográficas. Esse papel seria igualmente
ocupado depois por vilões de origem árabe, não coincidentemente no mesmo período em que
os estadunidenses passaram a ocupar militarmente e provocar guerras no Oriente Médio. Para
ficar em apenas dois exemplos dentre muitos possíveis, podemos lembrar de produções
altamente lucrativas como Rocky IV e Alladin enquanto filmes etnocêntricos e difamatórios
de um tipo russo e árabe, respectivamente. 2 Isto é, o cinema passou a ocupar cada vez mais
um papel privilegiado, como prevera Benjamin, nas disputas políticas em escala global.
Para além de constatar sua apropriação política, é necessário ir mais além e perguntar a
que se deve esse potencial sugestivo e manipulador do cinema. Novamente, é possível
encontrar uma resposta potencial no ensaio de Benjamin em um dos inúmeros conceitos dos
quais lança mão no escrito, qual seja, o de inconsciente ótico. De acordo com o autor, o
cinema apresenta inovações técnicas como o close e a câmera lenta que não só explicita ou
acentua estruturas e movimentos já conhecidos a olho nu, mas descobre
uma outra natureza que se abre para a câmera, diferente daquela que se abre para o
olho. Diferente sobretudo na medida em que, no lugar de um espaço de atuação em
que o ser humano atua conscientemente, entra um espaço de atuação inconsciente
(...) Experimentamos algo do inconsciente ótico pela primeira vez por meio dela,
assim como experimentamos algo do inconsciente pulsional pela primeira vez pela
psicanálise. (BENJAMIN, 2013, pp. 300-301)

Ainda que Benjamin não desenvolva suficientemente a noção de inconsciente ótico,


está claro que para ele o cinema - tal qual a psicanálise - é capaz de um acesso ao inconsciente
que lhe permite a produção de uma percepção coletiva cujo efeito é uma "imunização
psíquica" (idem, p. 301) contra a tendência psicótica produzida pela própria tecnização. Ou
seja, Benjamin já percebia os riscos mentais de uma sociedade cada vez mais subordinada à
técnica3 e, frente a isso, o papel sedativo do cinema.
Quase meio século depois e sob outros referenciais teóricos, Félix Guattari retomará
em um texto denominado O divã do pobre a relação entre cinema e inconsciente. Para o
francês, o cinema constitui "uma atividade de modelação do imaginário social" ou uma
"gigantesca máquina de modelar a libido social" (GUATTARI, 1984, p. 1) que, assim como a
psicanálise — da qual o autor é crítico — promove uma castração do desejo em favor da
manutenção da ordem dominante:
O psicanalista, assim como o cineasta, é conduzido por seu objeto. O que se espera
de um como de outro é a confecção de um certo tipo de droga que, apesar de
tecnologicamente mais sofisticada que os “pitos” tradicionais, não deixa de ter por
função transformar o modo de subjetivação dos que a consomem. Capta-se a energia
do desejo para retorná-la contra si própria, para anestesiá-la, para cortá-la do mundo
exterior, de forma que ela cesse de ameaçar a organização e os valores do sistema
social dominante (idem, p. 3)

2 A função político-ideológica de Hollywood compõe um quadro que continua válido, a exemplo do mais
recente filme da saga Missão Impossível, cuja produção teve participação direta do Pentágono com o de
aumentar o alistamento militar entre jovens dos Estados Unidos (https://jacobin.com.br/2022/06/top-gun-
maverick-e-outro-video-de-recrutamento-militar-disfarcado-de-filme/, acesso em 23/08).
3 Fato que hoje se tornou uma constatação banal frente aos quadros de adoecimento psíquico coletivo -
depressão, ansiedade, burnout, entre outras patologias - causados, em grande medida, pela aceleração dos
indivíduos pela tecnologia.
Temos aqui, portanto, um paralelo entre Benjamin e Guattari na medida em que ambos
veem o cinema como uma técnica artística capaz de modificação do inconsciente com
implicações derradeiramente políticas, ainda que, certamente, o inconsciente não significasse
a mesma coisa para os dois.
O acordo entre os autores não para por aí, pois ambos também defenderam que, se o
cinema cumpre um papel de sustentáculo ideológico do status quo, isso não significa que ele
não possa adquirir uma faceta revolucionária. Isto é, para Benjamin como para Guattari, o
cinema enquanto técnica não é, por natureza, reacionário, e ambos procuraram, ao seu modo,
vislumbrar papéis disruptivos para essa forma artística.
Por um lado, Benjamin sustenta que, com o advento da reprodutibilidade técnica,
ocorre o decaimento da aura, de modo que a arte pós-aurática representa o fim da
autenticidade, descolando-se da tradição e podendo ser usada para fins políticos em sua visão:
“No lugar de sua fundação no ritual, deve surgir sua fundação numa outra práxis, a saber: sua
fundação na política” (BENJAMIN, 1994b). Portanto, para o bem e para o mal, a arte somente
adquire essa função política para Benjamin após o aniquilamento de sua aura produzido pela
reprodutibilidade técnica da qual, como vimos, o cinema é a principal expressão.
Benjamin entende que tanto o cinema como o fascismo se apropriam, inicialmente, de
uma carência por novas organizações sociais e atuam em prol do interesse da classe
proprietária na imunização das massas de modo a evitar sua explosão revolucionária.
Enquanto o fascismo promove, de um lado, uma estetização da política com o enaltecimento
da guerra e da destruição, a proposta defendida por Benjamin é a de uma politização da arte
como resposta comunista ao fascismo. Embora o autor não desenvolva esse conceito em seu
ensaio, podemos intuir, em conformidade ao próprio texto e à sua trajetória, que a politização
da arte esteja alinhada com uma proposta de arte engajada e desalienante. De um modo ou de
outro, o que nos interessa aqui é que Benjamin vislumbra, após a reprodutibilidade técnica,
uma utilização da arte como motor da transformação política, seja qual for sua direção.
Por outro lado, Guattari salientará que, se o cinema detém as possibilidades de
manipulação do desejo e de produção subjetiva, isso não precisa necessariamente seguir uma
via repressiva, ainda que majoritariamente seja isso que ocorra. Contudo, se Benjamin
colocou o cinema em um debate situado no campo artístico, contrapondo-o à arte ritualística,
Guattari o circunscreve ao campo analítico, comparando o potencial transformador do cinema
com a psicanálise:
Se os meios “analíticos” do cinema são mais ricos, mais perigosos, que os da
psicanálise, imaginamos, em contrapartida, que também poderiam abrir-se a outras
práticas. Um cinema de combate pode vir a existir, ao passo que se vê mal, no atual
estado de coisas, a possibilidade de uma psicanálise revolucionária (GUATTARI,
1984, p. 8)

É pouco relevante, para o presente trabalho, se a "politização da arte" e o "cinema de


combate" corresponderiam a um mesmo uso do cinema vislumbrado pelos autores. A própria
evolução da técnica cinematográfica ao longo do tempo que os separa torna difícil imaginar
que ambos estariam pensando nos mesmos termos, ainda que seja possível vislumbrar alguma
analogia. De outro modo, o que se deve salientar é que tanto um como outro buscou dar
explicações, que resultaram semelhantes, a respeito do potencial modelador do cinema e,
frente a isso, não adotaram uma postura derrotista ou fatalista quanto a um uso
exclusivamente controlador e repressivo dessa arte.
Não é novidade que o cinema vem mudando ao longo das últimas décadas no sentido
de uma mudança nos seus parâmetros de representação e temas ficcionados. Os filmes,
incluindo as grandes produções, têm progressivamente abandonado estigmatizações de grupos
sociais ou étnicos e incorporado padrões representativos pouco presentes até pouco tempo
atrás, como histórias protagonizadas por mulheres, pessoas não-brancas e não-
heteronormativas. Junto a isso, temas como resistência de povos, meio ambiente, racismo,
machismo e homofobia têm aparecido cada vez mais no circuito comercial do cinema.
Frente a isso, cabe o seguinte questionamento: deve-se considerar esse fenômeno
como uma prova de que o cinema está, finalmente, deixando de ser utilizado para fins
alienantes? Estaríamos diante de uma politização da arte ou de um cinema de combate
promovidos pela própria indústria cinematográfica? A despeito do entusiasmo gerado por
parte da sociedade e dos veículos de comunicação diante disso, as duas perguntas devem ser
respondidas negativamente. Cabe fundamentarmos essa resposta lançando mão de dois
autores cujas reflexões serão particularmente úteis, quais sejam, Theodor Adorno e Siegfried
Kracauer.
Amigo pessoal de Walter Benjamin, Adorno não compartilhava com ele das mesmas
ambições revolucionárias a respeito da reprodutibilidade técnica, tomando-a com um olhar
mais pessimista. A despeito disso, suas ponderações junto a Max Horkheimer a respeito do
que ambos chamaram de indústria cultural continuam profundamente válidas para a crítica da
cultura em geral e, em particular, para a discussão em torno do cinema aqui proposta. Para
isso, recorremos ao ensaio de Adorno traduzido como Resumé sobre a indústria cultural
(2021), conferência em que o autor exprime de forma sintetizada o significado e as
implicações da noção de indústria cultural.
Neste ensaio, Adorno a indústria cultural como a fabricação de "de modo mais ou
menos planejado, produtos talhados para o consumo das massas e que em larga medida
determinam de antemão esse consumo" (idem, p. 109). Ou seja, a indústria cultural abarca a
cultura que não necessariamente é produzida de forma industrial, como o nome poderia
sugerir, mas que é sempre produzida como mercadoria. Como se sabe, Adorno foi um grande
crítico da indústria cultural, enxergando-a como algo que "pede de cada um a conformidade
geral e desprovida de crítica; e faz propaganda do mundo do mesmo modo que cada produto
da indústria cultural é a sua própria propaganda" (idem, p. 112), ou seja, como uma forma
ideológica de apropriação da cultura e alienação das massas em favor do status quo. Para o
autor, com a indústria cultural a técnica deixa de estar intrinsecamente ligada à arte para
responder a uma razão externa e, deste modo, não extermina a arte aurática como pretendia
Benjamin, mas faz "conservar a aura putrefata como um círculo vaporoso nebuloso" (idem, p.
114).
No mesmo ensaio, Adorno alerta para a importância de não subestimar a capacidade
dos produtos da indústria cultural na formação da consciência dos indivíduos:
A função de uma coisa, mesmo que ela também diga respeito à vida de inúmeras
pessoas, não é nenhuma garantia de sua qualidade. A importância da indústria
cultural na economia psíquica das massas não torna dispensável, sobretudo a uma
ciência que se considera pragmática [a estética], que se reflita sobre sua legitimação
social, sobre seu em si; ao contrário, ela obriga a essa reflexão (idem, p. 115).

Com seu característico grau de acidez crítica, o autor chama atenção para temas muito
relevantes no que diz respeito à produção na era da indústria cultural como a homogeneização
dos produtos culturais, a transformação da cultura em mercadoria e o caráter ideológico desse
regime. Todos esses aspectos foram levados ao paroxismo no caso do cinema, com suas
produções gerando lucros cada vez mais altos e apresentando uma diversidade estética cada
vez menor. Nesse sentido, é necessário interpretar as mudanças "progressistas" do cinema
aludidas anteriormente como uma nova forma de apresentar produtos que continuam sempre
iguais: "O que aparece na indústria cultural como progresso, a novidade incessante que ela
oferece, continua sendo a troca de embalagem de um sempre-igual." (idem, p. 112). Se
tomarmos, por exemplo, os dez filmes mais assistidos em 2022 4, todos produzidos por
grandes estúdios, veremos que, por trás de temáticas distintas, encontram-se as mesmas
formas narrativas, os mesmos conflitos e os mesmos valores exaltados.

4 10 filmes mais assistidos de 2022 nos cinemas mundiais, disponível em:


https://www.dci.com.br/dci-mais/cinema-e-tv/filmes-mais-assistidos-de-2022/283465/.
Se o conceito de indústria cultural se dirigia à cultura como um todo, podendo também
se aplicar ao cinema, com Kracauer (1988) tem-se uma reflexão que se detém especificamente
na relação entre indústria cinematográfica e sociedade. Ao propor uma análise psicológica da
Alemanha por meio do cinema nacional, o autor compreendeu, em primeiro lugar, o filme
como um produto coletivo, isso é, como uma verdadeira indústria que necessita de muitas
mãos e mentes funcionando coordenadamente para entregar um produto final. Mas o filme
produzido industrialmente pelos grandes estúdios também é coletivo em um segundo sentido,
qual seja, na medida em que precisa ser consumido por um grande público para justificar seu
alto investimento e, enquanto mercadoria, gerar lucro. É por isso que Kracauer dirá que o
filme é um produto destinado a multidões anônimas, precisamente porque a indústria do
cinema precisa tornar sua mercadoria consumível a um maior número possível de indivíduos
para fazer valer seus altíssimos custos. Como fazer, então, o filme-mercadoria conquistar o
público que irá consumi-lo? De acordo com Kracauer,
O manipulador depende das qualidades inerentes a seu material; mesmo os filmes de
guerra oficiais nazistas, produtos de propaganda como eram, espelharam algumas
características nacionais que não poderiam ser fabricadas. O que é verdade para eles
se aplica com muito mais meio aos filmes de uma sociedade competitiva.
Hollywood não pode se dar ao luxo de ignorar a espontaneidade do público. O
descontentamento geral se manifesta através das bilheterias e a indústria do cinema,
vitalmente interessada no lucro, é levada a se ajustar, o mais possível, as mudanças
de clima mental. Em resumo, o espectador norte-americano recebe o que
Hollywood quer que ele recebe; mas, a longo prazo, os desejos do público
determinam a natureza dos filmes de Hollywood. (KRAKAUER, 1988, p. 20, grifo
nosso)

Ou seja, Kracauer bem compreende como a indústria do cinema deve se adaptar, a


longo prazo, ao desejo do público se quiser ver o seu produto como uma mercadoria adequada
ao mercado. Nesse sentido, podemos dizer que o desejo do público define alguns limites —
ao menos a longo prazo, ainda que Kracauer não defina quanto tempo seja isso — dentre o
que será bem ou mal aceito. Tais limites podem ser de ordem meramente formal (quais
planos, cores, trilhas sonoras etc. são preferíveis), ou podem estar ligados à mensagem que o
filme transmite, o que está relacionado à dimensão da montagem do filme, e advém
inegavelmente de padrões éticos, estéticos e políticos que imperam na própria sociedade e
estão em contínua, mas lenta — e por isso são limites de longo prazo —, mudança.
Essa lógica fica mais clara quando olhamos o cinema de forma retrospectiva e
encontramos elementos que não são mais aceitos pela sociedade atual, ao menos em sua
maioria. É o caso do cinema de D. W. Griffith, diretor cujos traços racistas tornaram seus
filmes intoleráveis frente aos novos valores sociais. Ademais, o que Kracauer denomina como
o "padrão psicológico de um povo em uma determinada época" parece ter se deslocado de
uma identidade nacional com a massificação da cultura em ordem planetária, de modo que um
mesmo padrão psicológico de valores e desejos agora pode ser válido não somente a um povo,
mas a uma grande parcela da população mundial, embora inegavelmente as especificidades
nacionais continuem coexistindo.
O mérito de Kracauer está em compreender a dialética entre cinema e consciência
pública que continua válida e pode ser útil para pensar um cinema que assume uma roupagem
crítica e representativa. Nesse sentido, fica claro que os filmes de massa não mudaram de
caráter gratuitamente, mas como resultado da incorporação de novos padrões sociais de longo
prazo associados a lutas sociais, como o feminismo, o antirracismo negro, a pauta
LGBTQIAP+, o ecologismo, o anticolonialismo, entre outras. Ocorre que essa mudança
temática ocorreu de modo a adequá-la a um formato próprio da indústria cultural, de modo a
manter sua hegemonia. Ou seja, com isso, vemos, por exemplo, a valorização de narrativas
"dissidentes", mas que continuam centradas no indivíduo, em geral, em histórias de superação
individuais ou, quando coletivas, focadas na figura de uma liderança. Outro exemplo está no
fato de que Holywood manteve essencialmente, até agora, a chamada montagem paralela,
termo utilizado por Gilles Deleuze para se referir ao tipo de montagem que surgiu e se
perpetuou no cinema estadunidense marcada pelo maniqueísmo moral entre um protagonista
que encarna o bem e um antagonista que representa o mal.
Por mais adaptáveis que possam ser, as grandes produções do cinema não tocam
diretamente, por exemplo, em valores caros ao capitalismo como a propriedade privada dos
meios de produção e o trabalho assalariado. Nesse sentido, o direito à mudança das relações
de propriedade que é, segundo Benjamin, impedido pelo fascismo, continua sendo negado:
“As massas possuem um direito à mudança das relações de propriedade; o fascismo busca
dar-lhes uma expressão conservando essas relações.” (BENJAMIN, 2014, p. 117). Ou seja,
enquanto mantém fora da discussão as relações sociais essenciais do capitalismo, o cinema de
massas incorpora a crítica às distorções que decorrem da própria estrutura em que se assenta,
o que significa retirar dela o seu conteúdo radical, vendendo como renovado o que justifica,
no fundo, velhas formas de dominação.
Além disso, observa-se um efeito de anestesia social produzido pela captura de
demandas populares à representação cinematográfica, uma vez que esta última produz uma
sensação de satisfação ao realizar por meio da ficção o que é desejado fora dela. Assim, a
sensação dos indivíduos após assistirem a, por exemplo, uma série como Black Mirror, que
ficou conhecida por expor algumas tendências perturbadoras do uso da tecnologia no
capitalismo, não é a de mudar as relações sociais que provocam essa perturbação, mas a de
simplesmente contentarem-se com a recepção passiva de um conteúdo que se propõe crítico.
Sente-se, dessa forma, um estranhamento frente a problemas sociais da mais alta relevância,
mas que não é seguido de ação, e sim de uma espécie de satisfação passageira que se converte
em anseio pelo consumo incessante mais conteúdos — filmes, episódios, temporadas etc. —
que levarão a reobter o mesmo estranhamento satisfatório.
O impacto dessa forma de alienação é enorme se se considera o tempo crescente que
as novas gerações dispendem com o consumo de vídeos, filmes e séries. Esse consumo
contínuo de conteúdos leva ao esgotamento de seu tempo e energia em uma forma
individualizada e pré-formatada. O resultado disso é uma espécie de torpor sentido pelos
indivíduos com a repetição indefinida, de modo análogo ao que afirma Marc Jimenez ao
comentar o embotamento da contemplação repetida da arte pós-aurática de Benjamin, isto é,
aquela que já perdeu sua autenticidade após a reprodutibilidade técnica: “Desiludidos,
devemos nos dizer que a contemplação repetida de sua reprodução num certo sentido embotou
nossa sensibilidade: insensibilizados, permanecemos quase indiferentes à novidade da
experiência” (JIMENEZ, 1999, p. 341). A insensibilidade é, sem dúvidas, uma das marcas
psíquicas da contemporaneidade causada pelo excesso de consumo de informações que leva,
segundo Han (2018), ao "estupor crescente das capacidades analíticas, de déficits de atenção,
de inquietude generalizada ou de incapacidade de tomar responsabilidades" (HAN, 2018, p.
60), sintomas característicos do que o autor denomina como SFI (Síndrome da Fadiga da
Informação), a qual também leva a um quadro de "totalização do presente [que] aniquila as
ações que dão tempo [zeitgebenden] como o [se] responsabilizar e o prometer" (idem, p. 62).
A incapacidade de responsabilização, acrescentamos, impacta não somente as relações
interindividuais, como também a viabilidade de articulação de projetos coletivos.
Trata-se, nesse sentido, de uma espécie de sedação do engajamento social que decorre
da forma particular em que se estrutura a indústria cultural, destinada não a mudar o que
coloca sob crítica, mas a gerar um consumo cada vez maior de seus produtos, utilizando-se
para isso de técnicas — utilizadas amplamente também pelas redes sociais — que buscam
manter atrair e perpetuar os indivíduos enquanto espectadores. É o caso, por exemplo, do uso
dos algoritmos pelas plataformas de streaming a fim de identificar as preferências de cada
indivíduo para lhe sugerir conteúdos que terão mais chance de serem consumidos, com isso,
aumentando o seu tempo gasto na plataforma. Para a indústria cultural, em nenhum momento
está em questão a qualidade ou a variedade estética de tais conteúdos. Em síntese, o objetivo
da produção cultural é a geração de lucro e, para esse fim, qualquer tema, inclusive aqueles
advindos de anseios populares por transformações sociais, podem vir à tona desde que
manejados de forma a gerar engajamento, e não em uma consonância orgânica às pautas em
questão. Ter isso em mente deve levar a consciência comum a ir além da rasa constatação de
que estaríamos diante do progresso cultural encabeçado pela Disney ou por qualquer outro
grande estúdio de cinema.

3. Conclusão
Se Walter Benjamin e Félix Guattari captaram, por um lado, uma possibilidade
emancipatória no cinema, conforme tentamos mostrar, por outro, tal possibilidade não
corresponde a uma mera incorporação de traços progressistas pela indústria cinematográfica.
Os apelos sociais aos quais o capital cinematográfico tem se adaptado são fruto de novos
questionamentos incutidos pela articulação de grupos sociais historicamente oprimidos.
Diante disso, não se trata de questionar a validade de tais lutas para o campo da cultura,
menos ainda, de advogar pelo retorno a um cinema aos moldes de Griffith. O que procuramos
questionar é o que, dentro desse quadro, permanece inquestionado, ou seja, a própria
existência do capital cinematográfico e da indústria cultural. Retornando a Benjamin, vê-se
que, enquanto o cinema for dominado pelo modo de produção capitalista, o controle das
massas pelo que é produzido jamais será atingido:
Certamente, não se deve esquecer que a utilização política desse controle deve
esperar até que o cinema se liberte dos grilhões de sua exploração capitalista. Pois,
por meio do capital cinematográfico, as chances revolucionárias desse controle
metamorfoseiam-se em contrarrevolucionárias. (BENJAMIN, 2014, p. 75).

Frente a tais problemas, é preciso que os progressos recém-incorporados pela


indústria cinematográfica sejam vistos com desconfiança, pois, conforme se tentou mostrar,
apesar de serem resultados das pressões geradas pelas lutas coletivas, constituem-se, ao
mesmo tempo, em uma forma de aprisionar ideologicamente a contestação à sua linguagem
limitada. Encarar esse processo com otimismo significaria, portanto, o enfraquecimento de
uma transformação do atual cinema para as massas em cinema das massas.

Bibliografia

ADORNO, Theodor W. Resume sobre a indústria cultural in Sem diretriz: parva aesthetica.
Editora Unesp, 2021.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica: segunda versão
in DUARTE, Rodrigo. O belo autônomo: textos clássicos de estética. Autentica, 2013.
GUATTARI, Félix. O Divã do Pobre. In: Psicanálise e Cinema. Coletânea do nº 23 da Revista
Communications. Comunicação/2. Lisboa: Relógio d' Água, 1984 .
HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital. Editora Vozes Limitada, 2018.
JIMENEZ, Marc. O que é estética?. São Leopoldo e RS: Editora Unisinos, 1999.
KRACAUER, S. De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1988.
MERLIN, Nora. Colonización de la subjetividad y neoliberalismo. Revista GEARTE, Porto
Alegre, v. 6, n. 2, p. 272-285, maio/ago. 2019. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/gearte

Você também pode gostar